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DANIEL MUNDURUKU: CONTADOR DE HISTÓRIAS, GUARDIÃO DE MEMÓRIAS, CONSTRUTOR


DE IDENTIDADES

SANTOS, Waniamara J.
Universidade Federal de Ouro Preto
waniamaraj@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo reflete sobre a proposição de novas identidades indígenas, em cinco
obras memorialistas, pelo escritor Daniel Munduruku (um dos principais nomes da Literatura
Indígena contemporânea), desvelando e modificando a percepção da sociedade brasileira não-
indígena quanto ao universo nativo brasileiro pela palavra escrita. A metodologia adotada
para o desenvolvimento da pesquisa seguiu a linha dos estudos comparados, entrecruzando
Literatura, História e Antropologia ─ proposta dos Estudos Culturais. Os resultados obtidos
permitem evidenciar a construção de identidades indígenas transculturais inseridas no espaço
urbano. A abordagem teórica que permite essa constatação baseia-se na teoria da Memória
Cultural, cunhada pelo egiptólogo Jan Assmann (2006), e da Transculturalidade narrativa,
defendida pelo crítico literário uruguaio Ángel Rama (2008).

Palavras-chave: Identidades; Memória cultural; Literatura indígena.

A reflexão promovida neste artigo é parte integrante da dissertação homônima


aprovada pelo Programa de Mestrado em Estudos da Linguagem da UFOP, em 29-01-2014.
Orienta-se na proposta de perceber de que forma memórias e tradição cultural norteiam o
trabalho do autor indígena Daniel Munduruku em cinco obras para a construção de novas
identidades literárias indígenas no espaço da sociedade brasileira. A seleção do escritor
justifica-se em razão de sua representatividade e visibilidade no cenário literário brasileiro.
Daniel Munduruku possui uma carreira de quase vinte anos e diversas premiações no Brasil e
no exterior, é um dos autores nativos mais conhecidos pela sociedade brasileira, escritor
adotado como referência em diversas Instituições de Ensino em conformidade com a Lei N. 0
11.645/20081 e, por fim, ele possui o maior número de livros publicados até o ano de 2015
dentre todos os outros escritores indígenas (cinquenta e um livros individuais; duas traduções
(inglês e espanhol); colaboração, organização e coordenação em publicações coletivas e a
contribuição em revistas especializadas em Literatura).
Em se tratando do corpus de análise, as obras selecionadas são classificadas como
literatura infanto-juvenil e a data de publicação dos livros descreve o percurso de
consolidação desse autor nativo ao longo de sua carreira como escritor, sendo:

Tabela 1: Corpus da pesquisa – Informações Gerais


ITEM TÍTULO EDITORA ANO
1 Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória Studio Nobel 2001
2 Você lembra pai? Global 2003
3 Histórias que eu ouvi e gosto de contar Callis 2006

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Lei instituída no âmbito da Educação Escolar no Brasil, em alteração a Lei N. 0 9.394, de 20 de dezembro de
1996, modificada pela Lei N.0 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece a obrigatoriedade de promoção do
ensino de História e Cultura Africana e Indígena no currículo do primeiro ao nono ano do Ensino Fundamental
nas Escolas Brasileiras.
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4 Histórias que eu vivi e gosto de contar Callis 2006


5 Histórias que eu li e gosto de contar Callis 2011
Fonte: Elaboração própria.

Nestas obras pondera-se que a escrita de Daniel Munduruku provém da perspectiva do


narrar histórias. Ainda que num ato de fingir, o escritor tece uma sua escrita de vida em que
outras vidas entrelaçam-se, compartilhando mundos, criando novas histórias, matéria de
memória, recriação, invenção. O ato de fingir a própria existência e torná-la sua história, sob o
seu ponto de vista, mostrando o que fez de suas leituras (de textos, de mundos e vivências). E
nesse propósito, fazer as pessoas que lerão os livros refletirem sobre a possibilidade do
convívio com a diferença, a busca da autoestima, a resolução de conflitos de identidades, de
sentimentos que podem ser expressos por todas as pessoas.
Essas obras servem para fortalecer o universo simbólico dos nativos brasileiros e
evidenciam os modos de vida, as crenças e a espiritualidade própria de cada um dos grupos
indígenas identificados: os Nambiquara, os Sateré-Mawé, os Macuxi e os Munduruku. (todas
as etnias originárias da região Norte do Brasil). Os indígenas são mostrados em situações
comuns do cotidiano em aldeia: brincadeiras infantis que não dão certo, namoros, os dias de
trabalho, a caçada na floresta (rito de passagem da infância para a adolescência), o costume do
banho matinal para retirarem as impurezas espirituais da noite, o uso das redes, hábitos
alimentares (mandioca, tapioca, mingau de banana, etc.), a divisão de trabalho entre homens,
mulheres. Esses são aspectos divulgados ao público pelo trabalho de escrita do autor, posto
em execução na tentativa de dar-se a conhecer sua etnia. Percebe-se que mesmo evidenciando
as diferenças culturais, as narrativas convergem para o objetivo único de mostrar a relevância
das tradições culturais nativas para a manutenção da indianidade; lembrar para se manter vivo
e carregar, em si, suas certezas e sentidos. O sentido de coletividade e o cultivo aos saberes e
conhecimentos ancestrais são elementos agregadores dos povos nativos.
As cinco obras trazem, também, importantes reflexões dos narradores-personagens
que são próprias da humanidade (morte, trabalho, aprendizado, relacionamentos, casamento,
sexualidade, etc.) e que colocam o leitor próximo do narrador, estratégia adotada pelo autor
para promover o espaço de discussão das diferenças em meio às semelhanças entre índios e
não-índios, que experimentam sensações similares.
O espaço das narrativas, invariavelmente, volta-se para as aldeias ou suas
proximidades, no entanto, existe uma relação de deslocamentos geográficos que introduz o
espaço das cidades enquanto lugar de transferências culturais. Importante notar que, ainda que
ocorram os testemunhos de deslocamentos e da diáspora indígena, os narradores criados por
Munduruku atestam que se pode estar fisicamente em qualquer lugar sem que, com isso, a
condição indígena seja abandonada, contrariando a crença do imaginário comum que prevê a
extinção do índio pela sua integração ao ambiente urbano. Aqui se percebe um ponto de
convergência dos nativos brasileiros. Os contos, portanto, deslocam a questão da
territorialidade indígena para uma acepção mais ideológica que espacial.
Sistematicamente, o tempo da narrativa é linear e da enunciação é cronológico (exceto
em Você Sabia pai?) em que se permite observar a passagem das horas, a alternância de dias e
noites, de anos. Em Meu vô Apolinário ocorre a utilização pelo escritor do recurso de
flashback quando da descrição da morte do avô, cena em que o narrador-personagem lembra-
se a partir da sensação do tato, involuntariamente, de uma situação em meses anteriores que o
velho índio já anunciava sua partida. O autor usa-se de pausas na narrativa em paralelo, como
no caso da história do curupira (da noite passada na floresta perdido com amigos da aldeia) e
o ensinamento relativo aos pássaros e a sua simbologia para os índios Munduruku, para
fornecer conhecimentos sobre as crenças da etnia Munduruku.
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No caso da obra Você sabia pai?, o texto corrido consiste em um monólogo interior
travado pelo narrador-personagem e direcionado ao seu pai. O espaço da narrativa erige todo
o texto no universo particular do narrador. O tempo da enunciação é o psicológico, o da
narrativa é linear, cadenciando a trajetória de vida do narrador: infância, adolescência,
juventude e fase adulta.
Vários eixos temáticos são tratados ao longo das narrativas corroborando para
justificar o seu objetivo explícito de desvelar a história e a cultura Munduruku. Dentre esses
eixos temáticos evidenciam-se:
 a negação da identidade estereotipada atribuída aos índios pelos brancos;
 os conflitos de identidade;
 o modo de vida e as tradições Munduruku;
 a construção da indianidade (relações de alteridade);
 a espiritualidade e as crenças Munduruku;
 as denúncias e a crítica social;
 meio ambiente e questões de território.

Analisadas as obras, em primeiro plano, afirma-se que a sua escrita é a expressão do


coletivo. Verifica-se, pela avaliação do corpus, que nos textos há a representação2 da teia de
vozes nativas que seguem ultrapassando o tempo e o espaço neste território brasileiro. Essas
vozes agregadas informam ao leitor a sua existência e representam suas identidades.
Coexistem em seus textos ecos de vozes Nambiquara, Macuxi, Munduruku, Sateré-Mawé e
tantas outras, atreladas às memórias culturais que resistem em permanecer vivas,
independentes dos resultados de contatos e confrontos com a sociedade branca ao longo dos
quinhentos e quinze anos de Brasil. Afirma-se que a escrita de Munduruku visa à
coletividade, descortinando o universo pluricultural dos povos originais sem, no entanto,
deixar de marcar a existência de especificidades dentre os povos. Conforme afirma Graúna,
referindo-se ao universo indígena, “o ato de narrar configura um tecido de vozes da tradição”
(2013, p.127).
Em sua escrita Daniel Munduruku promove uma essencialização positiva, ou
estratégica, dessa coletividade, ou seja, utiliza-se de maneira clara de uma leitura acerca de a
situação indígena de modo a inverter as estruturas de dominação, enquanto um recurso
estratégico de sobrevivência. Os povos originais no Brasil possuem uma história comum
compartilhada em termos do tratamento dispensado (assimilação e extinção), por séculos são
considerados como homogêneos e iguais (vide a denominação comum índios) e concorrem,
basicamente, pelos mesmos direitos: saúde, educação, terras e cidadania. Essa essencialização
justifica-se como uma tentativa de fortalecimento da classe na luta pelo reconhecimento,
respeito e inserção na sociedade brasileira enquanto parte integrante e constitutiva dessa
brasilidade.
Acrescenta-se que, abarcando a coletividade e procurando dissolver as fronteiras
existentes com/na contação de histórias, Daniel Munduruku evidencia, também, essa
característica típica da filosofia indígena em que não sobressai a individualidade, pelo
contrário, é o coletivo que deve prevalecer. Munduruku (2003, p. 14) lembra dessa
característica em passagens como:

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Em termos de representação, para fins desta pesquisa, acorda-se com a acepção de Spivak (2010) que comenta
duas abordagens para o termo: uma política, compreendida como “falar por” e a outra da arte e filosofia
enquanto “re-presentar”. No caso dos nativos escritores e o objeto livro indígena, verifica-se um movimento
duplo: a individualidade, o autor, que fala por e, ao mesmo tempo, re-presenta o nativo. Porém, em termos de
sociedade brasileira, o que há é a possibilidade de “tornar visível o que não era visto”, não o de tornar o
indivíduo vocal. (SPIVAK. Pode o subalterno falar?, p. 61).
4

[...] Você lembra quando me disse que todas as coisas estão amarradas entre
si como uma grande teia? Que cada coisa é reflexo de um criador? Que
coisas e pessoas foram forjadas de uma mesma essência, por isso merecem
nosso respeito.[...]

Na sequência, constata-se que em Daniel Munduruku reside a proposta de uma


literatura crítica, de denúncia e de embate, mesmo que voltada a um público de crianças e
adolescentes. Surgem considerações sobre as políticas de assimilação desenvolvidas pelo
Estado Brasileiro contra os povos originais, a violência contra os povos nativos e, em
especial, contra as mulheres, a crítica aos indígenas efetuada pela filosofia capitalista e a
sociedade de consumo, o papel da Igreja Católica na colonização, etc. Enquanto expressão
literária com forte teor político percebe-se que é, dessa forma, que a liderança de Daniel
Munduruku no movimento literário indígena manifesta-se. A escrita é a maneira de romper
com os preconceitos persistentes no universo não-indígena e de evidenciar as diferenças de
crenças e ideologias entre brancos e autóctones brasileiros. Com o suporte do pensamento de
Jean Paul Sartre (2004, p. 18), entende-se que o escritor nativo possui uma escrita engajada, já
que palavra é ação e ao escrever desvenda e muda a percepção sobre o que tenciona mudar em
razão da perda de inocência do leitor sobre a coisa desvendada: “O escritor é um falador;
designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, insinua”. O
movimento de ver e ser visto acontece de forma segura e irônica (característica intrínseca à
personalidade do autor), em que Munduruku utiliza-se da escrita como uma antena, uma
carapaça, para informar a respeito de si, prolongamento de seus sentidos, empregando a
linguagem para encontrar na palavra a vivência, a sua “verdade”, a “verdade” de seu povo de
origem. Escreve porque é preciso dizer, é preciso contar uma nova versão dos fatos, dar-se a
compreender, existir e dar existência aos seus... Diz Sartre (2004, p. 20):

[...] ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la;


desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno
coração, traspasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada
palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo,
passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do
porvir. Assim, o prosador é um homem que escolheu determinado modo de
ação secundária, que se poderia chamar de ação por desvendamento.

Assim, vê-se que é uma escrita engajada, servindo a uma causa político-ideológica, em
que se constata, claramente, a crítica direta ou velada e as denúncias em relação ao tratamento
dispensado às comunidades nativas. Seu trabalho de escrita tem, portanto, uma função social
enquanto desafia os discursos hegemônicos e busca promover em seus leitores crenças
próprias enquanto produtores de saber e conhecimento.
Munduruku denuncia de maneira natural, sem chocar seus leitores mirins, mas com
sabedoria suficiente para incutir em seu público o incômodo pela situação mostrada. Em
muitas vezes, recorre ao uso de ironias que desvelam as situações de crítica e denúncia social.
Assim, percebe-se que recorrer ao humor para reverter o peso dos relatos de crimes cometidos
contra a população nativa é parte do estilo criado pelo escritor.
Como é comum às obras destinadas ao público de crianças e adolescentes vê-se nas
ilustrações uma preocupação desde a composição da capa à disposição nas páginas de seus
livros que, articulando texto e imagem, concorrem para a produção de sentidos. Para Daniel
Munduruku, contudo, no caso dos cinco livros avaliados, essas ilustrações não são
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elaborações próprias, mas assinaturas de ilustradores não-índios (Rogério Borges e Rosinha,


para o corpus desta pesquisa). É uma diferença significativa quando relacionadas às
publicações assinadas pelos demais autores indígenas, que confeccionam as ilustrações dos
seus livros de próprio punho. O uso da grafia-desenho tal qual identificada nos grafismos (a
arte de cestarias, cerâmicas, tecelagem e etc.) e nas pinturas corporais são também
considerados importantes formas ‘narrativas’, fundamentando a percepção de mundo desses
artistas. Há que se pensar que a escrita de Daniel Munduruku mostra um caráter comercial,
com seu trabalho voltado para o público não-índio e apropriado do universo das editoras
comerciais que o publicam. Diferentemente, a maioria das publicações indígenas no Brasil
volta-se para o público nativo, sem pretensões de vendagem, vinculadas aos programas de
Governo para a promoção do material didático nas Escolas das florestas. Mesmo em
publicações editoriais, como as de Elias Yaguakag ou Yaguarê Yamã, observa-se a
preocupação desses escritores que incorporam à sua escrita sua grafia-desenho. Isso diz um
pouco sobre o lugar em que se quer permanecer em termos de sociedade brasileira.
Sinteticamente, afirma-se que em Daniel Munduruku traduz-se a sua tentativa de
abranger o mundo “civilizado” em sua manifestação artística, sem, no entanto, deixar de
reconhecer, refletir (e abandonar) aquilo que é negativo nesse universo do Outro. E,
sobretudo, não deixar de reconhecer que a identificação com a comunidade índia,
independente da deglutição dada à cultura branca que não lhe é inerente, é função do cultivo
(e de seu retorno) ao que é próprio da coletividade nativa, orientando-o, prioritariamente, em
termos de suas crenças, espiritualidade, filosofia, hábitos e costumes: seguindo as “pegadas de
Curupira3”.
Para o escritor e os cinco livros em análise, as lembranças construídas são ao mesmo
tempo da ordem de lembranças vividas (suas ou de outrem) ou de leituras da diversidade de
textos realizadas ao longo da vida. Em se tratando das lembranças de ordem do vivido, são
consideradas formas de memórias, individual e coletiva, encenadas no espaço ficcional e
tomadas como objeto ou motivo para a elaboração das obras literárias. Enquanto transpostas
do universo da leitura, as memórias individuais são tratadas enquanto mnemônica textual. Sob
essa perspectiva, a literatura é concebida como um ato de memória, conforme Wolfgang Iser,
abrindo-se a possibilidade de acesso e observação da cultura manifesta e de como ela
acontece nas sociedades tradicionais.
Discorre-se sobre a figura do escritor nativo enquanto detentor do poder (e do saber)
de coleta e armazenamento dos “segredos” da coletividade traduzido na figura de um guardião
de memórias, bem como se discute as formas de apropriação desses conhecimentos e saberes
ancestrais visibilizados nas obras componentes do corpus elencado para avaliação nesta
pesquisa. Daniel Munduruku enquanto um guardião de memórias, conceito apropriado em Le
Goff (1990), ou seja, é compreendido como um homem-memória depositário das histórias
(objetiva e ideológica) de vida de seu povo (e suas, porque não dizer, visto que é parte dessa
coletividade), com poder (ou seja, capacidade e aprovação) para armazenar e propagá-las e,
desse modo, compreendido como importante instrumento de manutenção da coesão social de
seu povo. Em sua obra publicada em 2003, Coisas de índio, Munduruku esclarece o seu papel
e a aprovação da comunidade, afirmando que deixou a aldeia com a missão de levar ao
ambiente não-índio informações sobre a etnia Munduruku. Desde 1996, é este o trabalho
empreendido pelo autor nativo mediante a publicação de obras literárias.

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Utiliza-se a imagem das pegadas do Curupira de forma metafórica, aludindo-se a figura do encantado que
permanece com os pés virados para trás, assim, dando a ideia de alguém que segue com os passos na tradição, no
passado, porém com a cabeça direcionada a frente, rumo ao futuro, ao “moderno”.
6

Um homem-memória é, neste trabalho, percebido enquanto um corpo4 que lembra.


Vê-se que nas culturas indígenas existe uma conexão intrínseca entre a memória oral (e
escrita agora) e a memória corporal. Muitas são as práticas corporificadas de importância
cultural que representam a dimensão corporal da memória e encontram-se assentadas nos
hábitos e sedimentadas no corpo (no caso dos Munduruku): cantar antes de caçar ou pescar,
dançar, tomar banho ao acordar, bater os pés na fogueira antes de iniciar a contação de
histórias, etc. As práticas corporais aprendidas e incorporadas intergerações são de grande
importância para a dinâmica da aldeia. Diz Connerton que “o hábito é um conhecimento e
uma memória existente nas mãos e no corpo. Ao cultivarmos o hábito, é o nosso corpo que
“compreende”. (CONNERTON, 1999, p. 109). A transmissão de uma tradição só pode
acontecer se essa é interpretada.
A repetição reiterada das práticas na dimensão corporificada da memória em Daniel
Munduruku surge de forma clara no corpus, evidenciando a relação do nativo com os hábitos,
os rituais e a sacralidade de sua identidade étnica. Sobre a prática dos rituais afirma
Munduruku (2013):

eh quando eu penso em ritual... ou melhor quando a maioria das pessoas pensa em


ritual... certamente a gente pensa em celebrações...a gente pensa em... em canto
dança música reza preces...e muitas vezes o ritual... e a gente esquece que muitas
vezes esse ritual é sempre apenas um...O reFORço que o humano precisa pra ele se
senti parte de um todo do qual ele não domina ele é apenas...ehn...uma parte... que
pertence a um todo o ritual é uma memória que a gente faz de
pertencimento...quando a gente canta dança bate o pé no chãonão é ou...faz o corpo
da gente vibrar (ritmado) com nossa dança com nosso canto... a gente tá lembrando
que a gente não é dono mas a gente é parte e ser parte... e ter essa exata
DIMENSÃO da parte... é que nos permite a olhar o outro com muita... com muita
sacralidade...nos permite olhar o outro praqueles... praquelas pessoas que convivem
com a gente com...ahn...uma sacralidade necessária pra gente perceber que eles são
caminhantes... que eles são nossos parceiros...népor isso... nas tradições indígenas
que desenvolveu ao longo do tempo...essas práticas rituais pra não nos permitir de
esquecer quem somos...o que que ritual faz... ele é a memória de quem somos,
daonde viemos, pra onde vamos, qual nosso papel no mundoe não...o ritual não nos
permite ficar planejando demais... pensando no futuro...o ritual nos coloca o tempo
inteiro no presente, no aqui, no agora.5

E se fala em memória remete-se à noção de tempo que, para os indígenas, apresenta


uma conotação diferenciada da noção ocidental, a linearidade de passado, presente e futuro.
Para os ameríndios a noção de tempo é circular em que coexistem dois tempos: o passado e o
presente. O passado abrange o presente, é memorial e serve ao indígena para lembrar-lhe
quem é, de onde vem e para onde caminha. “O passado é a ordenação de nosso ser no mundo”
(MUNDURUKU, 2009, p. 49). É o passado que os lembra que são seres de passagem. Os
ameríndios acreditam que um povo sem passado é um povo perdido no tempo e no espaço.
Da mesma forma, o presente é o tempo que importa e deve ser vivido intensamente e
por inteiro. Cada ação deve ser significada em cada momento, sentida, experimentada em
corpo e espírito, obrigando os indígenas a permanecerem inteiros a cada ato sem desviarem-se
dele. “Viver o presente é olhar para si a cada dia, saber a necessidade daquele momento para o

4
Quando referido o corpo, entende-se que, muito além da capacidade biológica de armazenamento de memórias,
existem arquivos de memória relacionados aos gestos, expressões faciais, entonações de vozes, coreografias,
hábitos e práticas corporais que perfazem a memória. Nessa amplitude, trata-se na pesquisa de um guardião de
memórias enquanto um “corpo que lembra”.
5
Transcrição da fala de Daniel Munduruku sobre rituais no Fórum das Letras, em maio/2013. [transcrição nossa]
7

bom andamento da comunidade e fazer o que for bom para ela [a comunidade] e não para si”.
(MUNDURUKU, 2009, p. 50).
O futuro para os indígenas é uma ilusão, uma promessa que pode nunca chegar e,
portanto, não é uma preocupação.
Em primeiro plano, no caso de Daniel Munduruku, a sua escrita nativa evidencia um
movimento de ruptura da identidade literária indígena com o passado colonial brasileiro −
origem da identidade de índio fixa e errônea, fonte de todo preconceito e estereotipia − no
intuito de instauração de uma nova ordem, buscando estabelecer um novo ponto de partida
marcado por um começo radical com referência a um padrão de memórias sociais. “Ao poder
pela memória responde a destruição da memória” (LE GOFF, 1990, p. 443). Entretanto, vê-se
em Munduruku que a ruptura proposta é alicerçada em lembranças, na revisitação da memória
ancestral, marcando não um começo, mas uma retomada. Ratifica-se essa alegação a partir
das considerações trazidas por Paul Connerton (1999) a quem afirma a impossibilidade do
novo6, discorrendo que todo início envolve uma recordação, não havendo, portanto, a ruptura
da temporalidade, da continuidade, conforme preconizado pelos grupos sociais. Isso, porque,

[...] em todas as formas de conhecimento, fundamentarmos sempre as nossas


experiências particulares num contexto anterior para garantirmos que são de
todo inteligíveis, e que, antes de qualquer experiência isolada, a nossa mente
se encontra já predisposta com uma estrutura de contornos, de formas
conhecidas de objectos já experimentados. Compreender um objecto ou agir
sobre ele é localizá-lo neste sistema de expectativas. O mundo do
inteligível, definido em termos de experiência temporal, é um corpo
organizado de expectativas baseadas na recordação. (p. 7) [grifo nosso]

Na base das memórias do escritor nativo existe uma individualidade que se recorda:
“Você lembra, pai, que eu gostava muito de chupar manda no pé? Aprendi com você! Foi
você que me contou sobre a doçura da fruta quando é tirada do pé” (Munduruku, 2003, p.9).
Entende-se essa memória individual em termos de atos de recordação que tomam como objeto
seu passado pessoal e a ele se referem. A individualidade que recorda uma (sua) história
passada é fonte de autoconhecimento e de formação de uma identidade pessoal.
Essa memória individual manifestada nas obras legitima-se na/pela coletividade, uma
vez que não é possível lembrar sozinho, por meio de processos comunicativos estabelecidos
entre integrantes de seus grupos sociais (seja nas interações ou por meio de textos). Cabe
lembrar que sem o caráter social, uma memória estritamente individual configurar-se-ia como
uma linguagem privada. Jan Assmann (op. cit.) inclui em sua construção teórica a noção de
memória individual em inter-relação com a memória socialmente condicionada, quando
afirma que,

no ato de lembrar não descemos apenas até a profundidade de nossa vida


interior mais íntima, mas introduzimos uma ordem e uma estrutura nessa
vida interior que é socialmente condicionada”. (2006, p. 2)

6
Também Mikhail Bakhtin, por meio da ideia do dialogismo, a “memória” dos textos, a intertextualidade
defende a noção da impossibilidade do novo. Em sua investigação sobre a poética de Dostoiévski Bakhtin
identifica os traços fundamentais da organização do romance, interpretando-o como uma construção polifônica,
em que o entrecruzamento de vozes, num jogo dialógico, promove um cruzamento de várias ideologias. “O texto
escuta as “vozes” da história e não mais as re-presenta como uma unidade, mas como jogo de confrontações”
(CARVALHAL, 2001, p. 48)
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Como é forte a conotação autobiográfica no corpus afirma-se que existe um


predomínio da dimensão individual da memória nas obras estudadas (Meu vô Apolinário,
Você sabia pai, Histórias que vivi e gosto de contar e Histórias que ouvi e gosto de contar).
Com relação a essa dimensão, é percebida na cena enunciativa a construção do sujeito-
autor por meio das lembranças em diferentes etapas da vida na tentativa de evidenciar sua
identidade pessoal e sua indianidade, ou seja, o índio escritor. Reflete-se que essa identidade
dá-se em termos de combinação e comparação entre indivíduos e grupos os quais permanece
relacionado: a comunidade nativa e a sociedade não-indígena. As interações acontecem em
Daniel Munduruku tanto em termos de sua comunidade nativa quanto entre grupos de
parentes de outras denominações nativas. O que estabelece uma similaridade entre esses
grupos é o cultivo da tradição cultural e, num sentido mais amplo, um histórico de
experiências comuns. Há, portanto, o estabelecimento de uma identidade pessoal marcada
pela identificação de “espelhamento” ou de negação dentre si e os indivíduos dos grupos em
que transita:

Nessa época, cada um longe do seu povo, contávamos histórias de nossa


gente para matar a saudade que sentíamos de casa (MUNDURUKU, 2010, p.
19)

Destaca-se que a formação da indianidade nas obras de Munduruku passa pelo


autoconhecimento que se inicia em termos de negação de si mesmo. “Para meu desespero,
nasci com cara de índio, cabelo de índio (apesar de um pouco loiro), tamanho de índio”
(MUNDURUKU, 2009, p. 11). A identidade indígena é descrita como uma construção e uma
querência desenvolvida ao longo das experiências compartilhadas com a coletividade nativa e
Munduruku.
Surgem, ainda, duas novas dimensões da memória na escrita do autor nativo: a
coletiva (ou conectiva) e a cultural. Ambas as dimensões servem para promover a sua coesão
ao grupo de origem e fortalecer sua identidade nativa.
Entende-se a memória coletiva (de ligação ou conectiva) como o segundo nível de
manifestação, conceito cunhado por Assmann a partir de apontamentos de Friedrich Nietzsche
e Sigmund Freud. Conforme Jan Assmann (op. cit.), é a memória socializadora por
excelência. O conceito relaciona-se a uma vontade de memória, ou seja, as pessoas precisam
de uma memória para pertencer e para sua identificação social. A memória coletiva, em
Assmann, é elaborada para que o indivíduo viva socialmente, sendo culturalmente construída.
Assim, é a instância em que se dá a transmissão de valores e normas que caracterizam uma
identidade coletiva − se há identidade há uma contra-identidade, definidora da exclusão do
indivíduo a outros grupos − sendo regida, dessa forma, pelo controle e a censura provenientes
da cultura (enquanto uma contenção social).
Muito comuns são as lembranças reconstituídas da memória coletiva dos Munduruku
retiradas das obras, que concorrem para a manutenção da vida em coletividade, em termos de
transmissão de valores e normas. Por exemplo, tem-se a forma de divisão de trabalho, em que
se estabelece o papel entre homens e mulheres; ou entre crianças, jovens, adultos e velhos; as
formas tradicionais de cultivo da terra e os tipos de produtos cultivados; os modos de a
tradicional produção de farinha de mandioca; a caça e pesca; os rituais de passagem; as curas
com ervas e espíritos. Todas essas formas de apropriação da memória ancestral Munduruku
concorrem para o estabelecimento do sentimento de pertencimento e, em contrapartida,
circunscreve-o no âmbito da coletividade que o reconhece como um igual. Desse modo, a
memória conectiva apresenta uma relação inerente com a identidade coletiva que se manifesta
em razão da aderência à coletividade.
9

Exceto em Histórias que eu li e gosto de contar, os demais livros selecionados para


estudo apresentam as cenas de atividades cotidianas da vida nativa e dos Munduruku em que
os lugares femininos e masculinos encontram-se bem definidos. Há uma articulação entre
povo e natureza, expressando o modo de relação entre a cultura indígena e o espaço em que
habitam. Daniel Munduruku assinala a importância do trabalho e a existência do
desenvolvimento diário das atividades realizadas sem as comodidades do ambiente urbano
(inclusive sem energia elétrica e abastecimento de água potável). Essa situação permite que os
seus leitores conheçam a forma como sobrevivem os índios aldeados. Destaca as atividades
do povo Munduruku que para sua subsistência promovem o plantio e o cuidado com o roçado,
à caça de animais, a pesca, a extração e coleta de frutas e medicinas. Essas práticas diárias são
frutos de uma incorporação de conhecimentos ocorridos desde tempos imemoriais (locais de
plantio, revezamento e alternância de culturas, épocas de plantio, tipo de solo, conhecimento
de sementes, etc.) repassadas de pai para filho. Destacam-se trechos nas obras:

(O TRABALHO DAS MULHERES):

Eu e meus companheiros estávamos brincando juntos em um lugar de onde


dava para ver as mulheres trabalhando no roçado. (MUNDURUKU, 2009, p.
15)

(O TRABALHO DOS HOMENS):

Na época em que se passa esta história, ele já devia estar com mais de
oitenta anos. Mesmo assim, fazia todas as coisas que um homem mais
jovem: caçava, pescava, ia para a roça, preparava belíssimos paneiros com
talas de buriti. Estava sempre trabalhando. (MUNDURUKU, 2009, p. 26)

Acima desses dois níveis de manifestação da memória existe uma memória cultural
que se vincula ao escritor e ao seu grupo étnico, orientando as ações em termos da
manutenção de seus universos simbólicos ao longo de gerações. Há uma continuidade de
significados em função das formas que são manifestadas nesse mundo simbólico: mitos,
narrativas, arte, sistema de valores, conhecimentos, práticas sociais e rituais, etc. Também a
memória cultural, aqui, concorrerá para irradiar uma consciência de unidade, particularidade e
sentido de pertencimento.
A memória cultural representa a essência de uma identidade histórica enquanto meio
próprio e lugar fixo na vida cultural de um grupo. É a matéria de rituais e atuações altamente
institucionalizadas. Essa dimensão da memória com suas tradições remete a um passado
longínquo, formando o eixo diacrônico, fazendo alusão temporal de mais de cem anos.
Assmann reflete sobre a inexistência de uma distinção entre memória e tradição. Daniel
Munduruku discorre que é a memória, notadamente na dimensão cultural, que coloca o
indígena em conexão profunda com o que os ameríndios chamam por Tradição. Acrescenta
que, todavia, a Tradição não é entendida como estanque, imutável, mas sim dinâmica e
mutável para os ameríndios. Munduruku define a Tradição como “um método pragmático de
a memória se fazer presente”.
Em se tratando da memória cultural Assmann afirma que “só a memória cultural torna
o indivíduo capaz de dispor livremente de seu estoque de memórias e lhe concede a
oportunidade de orientar-se por toda amplidão de seus espaços de memória” (op. cit., p. 21).
Refletindo-se sobre a manifestação da dimensão cultural da memória na escrita nativa
de Daniel Munduruku, evidencia-se no corpus situações como a repetição do ritual de contar
histórias ao pé da fogueira, sempre à noite, exercido pelos anciãos, expandindo-se para um
10

passado atemporal em que a tradição oral é reverenciada e significa a vida em coletividade.


Nessa lembrança, o indígena dança em conjunto, batendo os pés no chão, em que a batida dos
pés recorda a criação do mundo: foi batendo os pés no chão que Kairu Sakaibê fez nascerem
todas as coisas. Todas as vezes que se batem os pés juntos, recriam e mantêm o céu suspenso,
como dizem os avós.
Também as narrativas que trazem a figura dos encantados (Curupira, Matintaperera,
Boto Tucuxi, Mãe d’água, etc.) são formas de apropriação dessa memória cultural efetuada
pelo escritor, descrevendo o universo simbólico dos Munduruku, Nambiquara, Sateré-Mawé e
Macuxi, enfim, dos ameríndios em geral, apropriados de um passado distante em termos
temporais e recuperados para conhecimento dos leitores.
Cabe pensar que essa dimensão da memória também converge para a instauração de
uma identidade étnica, coletiva (e reafirma a identidade individual) já que permite ao
indivíduo localizar, no movimento da escrita (auto)biográfica, o seu lugar no seio de seu
grupo étnico em termos de sua vinculação com a história e a cultura comum.
A título de complementação e adotando-se a notação proposta por Assmann (op. cit.)
para distinção entre os tipos de memória quanto à organização, afirma-se que a estratégia
utilizada pelo escritor indígena para elaboração de seus livros consiste de um trabalho de
anamnese em que, predominantemente, recuperam-se memórias narrativas ou voluntárias,
linguisticamente organizadas e possuindo significado numa estrutura coerente. Entretanto,
reside a manifestação ocasional da memória cênica ou involuntária, que é visualmente
organizada, sem, contudo, apresentar uma coerência. Um dos exemplos que se podem
destacar é descrito na obra Meu vô Apolinário, relativa às lembranças que sucedem a partir de
um toque de mãos, quando da situação do velório do avô do narrador-personagem (já
mencionada no corpo desse trabalho).
Além dos níveis úteis de memória acima discutidos (individual, conectivo e cultural),
os estudos desenvolvidos por Jan Assmann (op. cit.) explicitam a distinção de uma memória
comunicativa (na perspectiva da memória cultural) percebida nas transferências culturais
entre membros de um grupo social, nas interações, ou seja, no estabelecimento das
comunicações entre indivíduos de um grupo. Ainda que existam diferenças intergerações
nessas trocas os indivíduos experimentam o sentimento de pertença, a autoidentificação e a
autocompreensão. Assmann estabelece uma duração temporal de três gerações e forma uma
dimensão sincrônica para a memória comunicativa. Essa memória reflete-se nas discussões
acerca da experiência histórica de eventos específicos e da simbologia específica
representativa de um sistema político. É o primeiro nível de manifestação da memória
relacionada às experiências de mudança temporal.
Destaca que o conceito de memória comunicativa descreve o aspecto social da
memória individual. Essa modalidade da memória pertencente ao domínio intermediário entre
indivíduos encontra-se intimamente ligada às emoções tais como o amor, o interesse, a
simpatia, o ódio, a culpa, a vergonha, a afinidade, a inimizade, entre outros. As emoções
determinam o que se quer esquecer e o que precisa ser lembrado. Nesse ponto, Assmann
aproxima-se de Connerton que entende as emoções enquanto motivações para que a memória
imprima-se em “nossas mentes”.
Jan Assmann (e a pesquisadora Aleida Assmann, sua esposa) estabelecem que o
conceito de memória comunicativa abranja todas as variedades da memória coletiva baseadas,
exclusivamente, na comunicação diária. Cabe lembrar que para Maurice Halbwachs, essas
variedades por ele reunidas e analisadas sob o conceito de memória coletiva, constituem o
campo da História Oral. Conforme eles, toda a comunicação caracteriza-se por um elevado
grau de não-especialização, reprocidade, papéis, instabilidade temática e desorganização.
Desse modo, toda a memória individual constitui-se em comunicação com os outros, ou seja,
cada indivíduo, a partir das formas de comunicação, compõe uma memória socialmente
11

medida e relacionada a um grupo. Todavia, esses outros não são tratados apenas como um
conjunto de pessoas, mas sim, grupos que comungam de um passado comum e, portanto,
através dessa imagem comum concebem sua singularidade e sua unidade.
Para o corpus analisado, no caso da memória comunicativa, destaca-se a obra Você
Sabia Pai? em que se identifica a comunhão de um passado comum entre pai e filho e se
distinguem as transferências culturais entre esses membros pertencentes a duas gerações
diferentes de um mesmo grupo familiar nas suas interações. Destacam-se trechos como:

Você lembra, pai, quando me ensinou pela primeira vez a utilizar o arco e a
flecha? Lembra que eu machuquei meu dedo e você escondeu seus lábios de
um sorriso zombeteiro para não me deixar furioso? Seu silêncio respeitoso
foi o melhor ensinamento que já tive, pois você me ensinou a respeitar os
passos de cada pessoa. (MUNDURUKU, 2003, p. 8).

Os níveis de utilização da memória destacados nas obras literárias assinadas pelo


escritor nativo Daniel Munduruku concorrem para a formação de vínculos e de
reconhecimento entre grupos e indivíduo. Enquanto uma escrita (auto)biográfica, nesse
sentido, há a construção de sua individualidade, de como se percebe um indígena em meio a
sua comunidade e à sociedade branca. Cabe pensar que na interação há um duplo movimento,
tanto em nível individual: o indivíduo que se autoidentifica com os outros componentes do
grupo, reconhece a coletividade como igual e deseja pertencer; tanto como em nível coletivo:
os componentes do grupo identificam o indivíduo como igual, reconhecem sua a relação com
o grupo e desejam que ele pertença a esta coletividade.
A título de acréscimo, o que se reflete, ainda, é que ao trabalhar as lembranças que o
compõem Daniel Munduruku consegue promover o resgate de sua própria denominação
étnica (e levanta a importância dessa questão para os povos originais) como uma forma de
afirmação identitária. Ao homogeneizar os povos indígenas e nomeá-los como uma ‘coisa
única’, os portugueses promoveram a negação de suas identidades étnicas recusando a
existência de diferentes povos e culturas. A memória de sua etnia é evidenciada e a lembrança
do nome da sua comunidade de origem é promovido como uma das formas de resgate
identitário do autor. Lembre-se que essa forma de negação identitária foi promovida pelos
nazistas, lembra Candau (2011), com o evento do Shoah, em que a primeira negação de
memória aos judeus e homossexuais consistiu na perda de seus nomes próprios em detrimento
de uma atribuição genérica referente a um registro numérico.
Introduzindo-se o ser índio no mundo pós-moderno, as constatações aqui mostradas
vão de encontro às identidades historicamente constituídas neste território e o que se
depreende dessas identidades constituídas é o que se afirma por críticos e pesquisadores
diversos, como Graúna (2013), de que a abordagem executada na história da literatura
brasileira não é indígena, mas indigenista ou indianista. Assim, sempre realizada aos olhos
externos e, nessa medida, apenas imaginadas em contraste com o SER real. Alternam-se as
figurações do índio na literatura brasileira, exercendo funções de antagonismos em prol da
valorização do herói branco, compondo paisagens ou como coadjuvantes dos conquistadores
de suas terras e, resumidamente, em razão da ideologia contida na proposta do estilo de época
e do momento histórico, oscilam de três diferentes imagens, conforme ressaltadas na tabela
19, a seguir:

Tabela 1: Percepções do indígena brasileiro (período do ano de 1500 a 2012)


VISÃO CARACTERÍSTICA RESULTADO
Ligado à natureza, protetor das florestas, Fundamenta a relação de tutela e paternalismo
Índio romântico
ingênuo, pouco capaz ou incapaz de entre os índios e a sociedade nacional. O índio é a
12

compreender o mundo branco com suas vítima, o coitado que precisa de proteção e
regras e valores sustento, não tem capacidade de gerir-se.
Justifica a prática de massacres e extermínios
Canibal, animal, selvagem, preguiçoso, como autodefesa e defesa dos interesses da Coroa
Índio cruel traiçoeiro, bárbaro e tantos outros adjetivos (e dos Grupos econômicos hoje) que tem
e denominações negativos. interesse nas terras indígenas e nos recursos
naturais nelas existentes.
Concebe os índios como sujeitos
Garante direitos específicos, cidadania plural e
Índio cidadão históricos, de direitos e, portanto, de
tratamento jurídico diferenciado.
cidadania específica (plural).
Fonte: Adaptado Baniwa (2006). Elaboração própria.

É no espaço urbano e no contexto de proposição de uma cidadania diferenciada que se


encerra a experiência do escritor indígena Daniel Munduruku selecionado para fins de estudo.
A tessitura do texto é servida das lembranças edificadas em torno de sua memória individual,
numa busca de aceitação da sua identidade e descreve, de forma camuflada, os muitos
conflitos relacionados a essa condição. Dentre as questões trazidas pelo corpus vê-se que a
ênfase, sob a ótica do narrador, dá-se na questão da contraposição de realidades dessa criança
que transita entre os mundos da aldeia e da cidade. À aldeia, o narrador atribui adjetivos
positivos como “lugar maravilhoso” ou identifica como o local em que se quer estar “[na
aldeia] torcíamos para que as férias nunca acabassem” (Munduruku, 2009, p. 22).
Logicamente, esse local erigido pelo narrador (mesmo que seja uma territorialidade
ideológica) é um espaço onde reina a igualdade, a coletividade, da vivência pautada com os
pés na terra − essa terra percebida como a vinculação à cultura nativa. Um ambiente orientado
pelo respeito à natureza e aos seus espíritos, que não é o espaço de conflitos, da desigualdade
e de preconceitos. A localização da cidade, ao contrário, dá-se em termos de conflitos. É o
espaço da discussão, da negação de sua identidade índia, um ‘universo à parte’. Entretanto,
pela escrita autoral indígena, verifica-se que é a inauguração de um novo espaço de vivência.
Diz o narrador autodiegético: “Eu nasci na cidade. Acho que dentro de um hospital. E nasci
numa cidade onde a maioria das pessoas se parece com índio: em Belém do Pará”
(Munduruku, 2009, p.9). Essa declaração vai de encontro ao imaginário social que se prende
ao “estereótipo do índio ‘mateiro’, que vive na natureza com as ‘vergonhas’ de fora”
(TERENA, 2012, p.55). Emerge a sua proposta de identidade para um índio urbano (ou
urbaíndio). O que sugerem os textos e o que fica evidente são as transferências culturais
oriundas desse trânsito entre espaços diferenciados. E, nessa medida, o surgimento de uma
identidade mais ampla que se constrói em razão do esmaecimento das fronteiras, buscando-se
a reparação para as relações de assimetria nas zonas de contato.
O escritor indígena Daniel Munduruku propõe-se à criação de um formato de
identidade coletiva pós-moderna “disseminada no lugar, no exílio e na errância” (Bernd,
2006, p. 8) contraposta à ideia da ascendência genealógica e territorial (espaço físico). Ao
revalorizar o lugar habitado, o autor deixa entrever uma terceira via de representação,
corrigindo conceitos como o de homogeneidade, atraso cultural, selvageria e ignorância.
É prudente refletir que essa é a forma do escritor perceber a sua própria inserção no
ambiente urbano pós-moderno. No entanto, não é possível apontar que essa construção seja
partilhada pela grande maioria dos autores nativos, não se podendo partir para as
generalizações. O que se afirma, dessa forma, é que Daniel Munduruku constrói em suas
obras memorialistas e, com base em sua memória cultural, uma identidade indígena
transcultural que possibilita o trânsito desse novo indivíduo no ambiente urbano sem que
ocorra a negação dessa nova identidade em virtude dos deslocamentos e trocas culturais
empreendidas.
Salienta-se que o delineamento dessa nova acepção de identidades indígenas aparece,
de forma pronunciada, no livro Histórias que eu ouvi e gosto de contar e apontam para uma
13

universalidade, numa constituição estratégica em termos de povos nativos já que


Mundurukus, Nambiquaras, Macuxis e Sateré-Mawés experienciam, da mesma forma, o
embate entre permanecer na cidade (adaptando-se às suas possibilidades) sem deixar de
ESTAR inserido na tradição de seu povo. O eterno conflito entre a tradição versus a
modernidade, entre o profano e o sagrado.
Resgata-se, aqui, que essa contraposição ao estilo antropofágico do Tupi or not Tupi,
ou seja, de ser índio vinculado à ancestralidade sem, no entanto, deixar de aproveitar das
benesses da modernidade em tudo o que convier (deglutir só o que for bom), retoma uma das
ideias em relação à indianidade delineadas nos primeiros textos escritos em terra brasileira: a
integração do indígena à cultura branca determinando a sua extinção (ideológica) para,
consequentemente, criação da categoria ‘brasileiros’. Há que se ressaltar que, mesmo
corroborando com esse pensamento que prevalece na sociedade brasileira, o que a escrita do
autor indígena constrói é uma nova forma de perceber a condição de integração. É possível
permanecer no espaço de convívio das cidades sem a extinção de sua indianidade, edificando
um novo índio brasileiro. Para isso, basta que se procedam aos ‘passos do curupira’, conforme
comenta o escritor Ademário Ribeiro (2013).

Seguindo em frente com os olhos e mentes na contemporaneidade, no porvir


e com os rastros voltados às origens étnicas – compatibilizando saberes do
passado e presente, da aldeia e cidade. Pé ante pé e não descompasso,
indiferenças. Cada saber é bom. É só saber fazer dele um saber de bem viver,
de ser do bem e de estar e fazer pelo bem... A literatura indígena quer isso.7

Apreende-se das obras analisadas que aceitar e viver conforme a tradição cultural de
sua etnia é uma conditio sine qua non para SER um índio, talvez até maior que a questão
genética, a vinculação ao nascimento. Porém, em relação à tradição, acredita-se que o contato
com a modernidade eurocêntrica não significou o extermínio das tradições autóctones, mas
sim processa-se o surgimento de formas sincréticas em que as matrizes indígenas, portuguesas
e espanholas constituem uma mistura.
Retornando à questão dos espaços, significativa a menção do espaço do quintal como
um lugar de vivência proposto na fronteira entre a aldeia e a cidade. Lugar inscrito no
ambiente urbano e que conserva as características da aldeia. É, também, um lugar de
identificação das diferenças, da troca de experiências entre índio e brancos, da construção de
conhecimentos diversos da tradição étnica, bucólico, que abriga a “parecença” com a aldeia
em termos do tratamento dado à natureza. Nesse lugar, como na aldeia, a criança protagonista
quer estar. A descrição do local é de um “imenso terreno baldio e ali eu reunia meus colegas
para brincar. [...] treinei meus ouvidos para ouvir as conversas das corujas e dos sapos”
(MUNDURUKU, 2009, p. 11). Apreende-se, disso, a tentativa de proposição de uma terceira
margem, um espaço de trânsito entre o ambiente da cidade e o da aldeia, sinalizando-se o
convívio com a alteridade sem que se processe a desigualdade em meio às diferenças.
Transpondo essa questão para o universo ficcional da Literatura Brasileiro, o que se
afirma é a tentativa de elaboração de uma identidade híbrida que figura entre o índio
romântico − símbolo da natureza virgem, da proteção das florestas, vinculado à paisagem
(alimentação, sustento, etc.) – e o índio cidadão (sujeito de sua histórica, igual nas diferenças,
com direitos e deveres). A edificação de um indígena diferenciado, proposta encerrada na
afirmação da criança protagonista: “não nasci como nascem todos os índios [...]”

7
Disponibilidade em https:///www.facebook.com/waniamaraj Acessível em 30. Jul.2013.
14

(Munduruku, 2009, p.9), afirmação que se reflete como indicativo dessa diferença em termos
dos demais nativos brasileiros.
O que se verifica, portanto, é que a leitura dos textos de Daniel Munduruku obriga
seus leitores a reavaliar seus critérios de classificação já que rompe com as noções inscritas na
literatura nacional, deixando-se atravessar por diversas línguas, linguagens e culturas em
graus variados.
E, por fim, não deixa de cumprir com a proposta de uma escrita engajada que descreve
as desigualdades sociais, raciais, econômicas e culturais, desfiladas entre as considerações do
narrador, permitindo ao leitor (modelo, maduro, um adulto?) perceber que essa identidade
literária criada figura no espaço marginal, periférico no ambiente urbano. A condição de
marginalidade releva-se na exposição de situações como o subemprego, a residência em
bairros periféricos ou a falta de condições financeiras para a aquisição de moradia própria.
Não é novidade situar-se os urbaíndios em periferias e favelas das grandes cidades brasileiras,
basta empreender-se ao cruzamento de dados e estimativos populacionais realizados pelo
IBGE ou ler-se jornais. O ilustrador Denilson Baniwa 8 lembra que “um indígena que sabe ler
e escrever, não será dono da fábrica, no máximo será o encarregado de escrever as planilhas
de lucros”. Essas desigualdades podem ser apropriadas em razão dos conteúdos presentes em
trechos como “Nós sempre moramos na periferia de Belém. Nossa maloca não era nossa e
muitas vezes tivemos que mudar de lugar, de casa e de bairro” (Munduruku, 2009, p. 10) ou
em “Quando precisava ajudar em casa, eu ia para a feira vender alguma coisa ou então ia
simplesmente ajudar as pessoas a carregar seus volumes nos supermercados e assim ganhar
algum trocado”. (Munduruku, 2009, p. 22).
Em virtude do exposto, observa-se que na trajetória efetuada pelo escritor nativo, de
retorno ao passado para (re)significar o presente, existe uma proposta clara de definição para a
identidade literária do índio contemporâneo. A personagem de papel que surge da escrita de
Daniel Munduruku é o resultado dessa proposta que engloba uma construção estratégica e
transcultural.

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8
Conteúdo veiculado em rede social Facebook. Disponibilidade <https:///
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15

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