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SANTOS, Waniamara J.
Universidade Federal de Ouro Preto
waniamaraj@yahoo.com.br
Resumo: Este artigo reflete sobre a proposição de novas identidades indígenas, em cinco
obras memorialistas, pelo escritor Daniel Munduruku (um dos principais nomes da Literatura
Indígena contemporânea), desvelando e modificando a percepção da sociedade brasileira não-
indígena quanto ao universo nativo brasileiro pela palavra escrita. A metodologia adotada
para o desenvolvimento da pesquisa seguiu a linha dos estudos comparados, entrecruzando
Literatura, História e Antropologia ─ proposta dos Estudos Culturais. Os resultados obtidos
permitem evidenciar a construção de identidades indígenas transculturais inseridas no espaço
urbano. A abordagem teórica que permite essa constatação baseia-se na teoria da Memória
Cultural, cunhada pelo egiptólogo Jan Assmann (2006), e da Transculturalidade narrativa,
defendida pelo crítico literário uruguaio Ángel Rama (2008).
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Lei instituída no âmbito da Educação Escolar no Brasil, em alteração a Lei N. 0 9.394, de 20 de dezembro de
1996, modificada pela Lei N.0 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece a obrigatoriedade de promoção do
ensino de História e Cultura Africana e Indígena no currículo do primeiro ao nono ano do Ensino Fundamental
nas Escolas Brasileiras.
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No caso da obra Você sabia pai?, o texto corrido consiste em um monólogo interior
travado pelo narrador-personagem e direcionado ao seu pai. O espaço da narrativa erige todo
o texto no universo particular do narrador. O tempo da enunciação é o psicológico, o da
narrativa é linear, cadenciando a trajetória de vida do narrador: infância, adolescência,
juventude e fase adulta.
Vários eixos temáticos são tratados ao longo das narrativas corroborando para
justificar o seu objetivo explícito de desvelar a história e a cultura Munduruku. Dentre esses
eixos temáticos evidenciam-se:
a negação da identidade estereotipada atribuída aos índios pelos brancos;
os conflitos de identidade;
o modo de vida e as tradições Munduruku;
a construção da indianidade (relações de alteridade);
a espiritualidade e as crenças Munduruku;
as denúncias e a crítica social;
meio ambiente e questões de território.
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Em termos de representação, para fins desta pesquisa, acorda-se com a acepção de Spivak (2010) que comenta
duas abordagens para o termo: uma política, compreendida como “falar por” e a outra da arte e filosofia
enquanto “re-presentar”. No caso dos nativos escritores e o objeto livro indígena, verifica-se um movimento
duplo: a individualidade, o autor, que fala por e, ao mesmo tempo, re-presenta o nativo. Porém, em termos de
sociedade brasileira, o que há é a possibilidade de “tornar visível o que não era visto”, não o de tornar o
indivíduo vocal. (SPIVAK. Pode o subalterno falar?, p. 61).
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[...] Você lembra quando me disse que todas as coisas estão amarradas entre
si como uma grande teia? Que cada coisa é reflexo de um criador? Que
coisas e pessoas foram forjadas de uma mesma essência, por isso merecem
nosso respeito.[...]
Assim, vê-se que é uma escrita engajada, servindo a uma causa político-ideológica, em
que se constata, claramente, a crítica direta ou velada e as denúncias em relação ao tratamento
dispensado às comunidades nativas. Seu trabalho de escrita tem, portanto, uma função social
enquanto desafia os discursos hegemônicos e busca promover em seus leitores crenças
próprias enquanto produtores de saber e conhecimento.
Munduruku denuncia de maneira natural, sem chocar seus leitores mirins, mas com
sabedoria suficiente para incutir em seu público o incômodo pela situação mostrada. Em
muitas vezes, recorre ao uso de ironias que desvelam as situações de crítica e denúncia social.
Assim, percebe-se que recorrer ao humor para reverter o peso dos relatos de crimes cometidos
contra a população nativa é parte do estilo criado pelo escritor.
Como é comum às obras destinadas ao público de crianças e adolescentes vê-se nas
ilustrações uma preocupação desde a composição da capa à disposição nas páginas de seus
livros que, articulando texto e imagem, concorrem para a produção de sentidos. Para Daniel
Munduruku, contudo, no caso dos cinco livros avaliados, essas ilustrações não são
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Utiliza-se a imagem das pegadas do Curupira de forma metafórica, aludindo-se a figura do encantado que
permanece com os pés virados para trás, assim, dando a ideia de alguém que segue com os passos na tradição, no
passado, porém com a cabeça direcionada a frente, rumo ao futuro, ao “moderno”.
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Quando referido o corpo, entende-se que, muito além da capacidade biológica de armazenamento de memórias,
existem arquivos de memória relacionados aos gestos, expressões faciais, entonações de vozes, coreografias,
hábitos e práticas corporais que perfazem a memória. Nessa amplitude, trata-se na pesquisa de um guardião de
memórias enquanto um “corpo que lembra”.
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Transcrição da fala de Daniel Munduruku sobre rituais no Fórum das Letras, em maio/2013. [transcrição nossa]
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bom andamento da comunidade e fazer o que for bom para ela [a comunidade] e não para si”.
(MUNDURUKU, 2009, p. 50).
O futuro para os indígenas é uma ilusão, uma promessa que pode nunca chegar e,
portanto, não é uma preocupação.
Em primeiro plano, no caso de Daniel Munduruku, a sua escrita nativa evidencia um
movimento de ruptura da identidade literária indígena com o passado colonial brasileiro −
origem da identidade de índio fixa e errônea, fonte de todo preconceito e estereotipia − no
intuito de instauração de uma nova ordem, buscando estabelecer um novo ponto de partida
marcado por um começo radical com referência a um padrão de memórias sociais. “Ao poder
pela memória responde a destruição da memória” (LE GOFF, 1990, p. 443). Entretanto, vê-se
em Munduruku que a ruptura proposta é alicerçada em lembranças, na revisitação da memória
ancestral, marcando não um começo, mas uma retomada. Ratifica-se essa alegação a partir
das considerações trazidas por Paul Connerton (1999) a quem afirma a impossibilidade do
novo6, discorrendo que todo início envolve uma recordação, não havendo, portanto, a ruptura
da temporalidade, da continuidade, conforme preconizado pelos grupos sociais. Isso, porque,
Na base das memórias do escritor nativo existe uma individualidade que se recorda:
“Você lembra, pai, que eu gostava muito de chupar manda no pé? Aprendi com você! Foi
você que me contou sobre a doçura da fruta quando é tirada do pé” (Munduruku, 2003, p.9).
Entende-se essa memória individual em termos de atos de recordação que tomam como objeto
seu passado pessoal e a ele se referem. A individualidade que recorda uma (sua) história
passada é fonte de autoconhecimento e de formação de uma identidade pessoal.
Essa memória individual manifestada nas obras legitima-se na/pela coletividade, uma
vez que não é possível lembrar sozinho, por meio de processos comunicativos estabelecidos
entre integrantes de seus grupos sociais (seja nas interações ou por meio de textos). Cabe
lembrar que sem o caráter social, uma memória estritamente individual configurar-se-ia como
uma linguagem privada. Jan Assmann (op. cit.) inclui em sua construção teórica a noção de
memória individual em inter-relação com a memória socialmente condicionada, quando
afirma que,
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Também Mikhail Bakhtin, por meio da ideia do dialogismo, a “memória” dos textos, a intertextualidade
defende a noção da impossibilidade do novo. Em sua investigação sobre a poética de Dostoiévski Bakhtin
identifica os traços fundamentais da organização do romance, interpretando-o como uma construção polifônica,
em que o entrecruzamento de vozes, num jogo dialógico, promove um cruzamento de várias ideologias. “O texto
escuta as “vozes” da história e não mais as re-presenta como uma unidade, mas como jogo de confrontações”
(CARVALHAL, 2001, p. 48)
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Na época em que se passa esta história, ele já devia estar com mais de
oitenta anos. Mesmo assim, fazia todas as coisas que um homem mais
jovem: caçava, pescava, ia para a roça, preparava belíssimos paneiros com
talas de buriti. Estava sempre trabalhando. (MUNDURUKU, 2009, p. 26)
Acima desses dois níveis de manifestação da memória existe uma memória cultural
que se vincula ao escritor e ao seu grupo étnico, orientando as ações em termos da
manutenção de seus universos simbólicos ao longo de gerações. Há uma continuidade de
significados em função das formas que são manifestadas nesse mundo simbólico: mitos,
narrativas, arte, sistema de valores, conhecimentos, práticas sociais e rituais, etc. Também a
memória cultural, aqui, concorrerá para irradiar uma consciência de unidade, particularidade e
sentido de pertencimento.
A memória cultural representa a essência de uma identidade histórica enquanto meio
próprio e lugar fixo na vida cultural de um grupo. É a matéria de rituais e atuações altamente
institucionalizadas. Essa dimensão da memória com suas tradições remete a um passado
longínquo, formando o eixo diacrônico, fazendo alusão temporal de mais de cem anos.
Assmann reflete sobre a inexistência de uma distinção entre memória e tradição. Daniel
Munduruku discorre que é a memória, notadamente na dimensão cultural, que coloca o
indígena em conexão profunda com o que os ameríndios chamam por Tradição. Acrescenta
que, todavia, a Tradição não é entendida como estanque, imutável, mas sim dinâmica e
mutável para os ameríndios. Munduruku define a Tradição como “um método pragmático de
a memória se fazer presente”.
Em se tratando da memória cultural Assmann afirma que “só a memória cultural torna
o indivíduo capaz de dispor livremente de seu estoque de memórias e lhe concede a
oportunidade de orientar-se por toda amplidão de seus espaços de memória” (op. cit., p. 21).
Refletindo-se sobre a manifestação da dimensão cultural da memória na escrita nativa
de Daniel Munduruku, evidencia-se no corpus situações como a repetição do ritual de contar
histórias ao pé da fogueira, sempre à noite, exercido pelos anciãos, expandindo-se para um
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medida e relacionada a um grupo. Todavia, esses outros não são tratados apenas como um
conjunto de pessoas, mas sim, grupos que comungam de um passado comum e, portanto,
através dessa imagem comum concebem sua singularidade e sua unidade.
Para o corpus analisado, no caso da memória comunicativa, destaca-se a obra Você
Sabia Pai? em que se identifica a comunhão de um passado comum entre pai e filho e se
distinguem as transferências culturais entre esses membros pertencentes a duas gerações
diferentes de um mesmo grupo familiar nas suas interações. Destacam-se trechos como:
Você lembra, pai, quando me ensinou pela primeira vez a utilizar o arco e a
flecha? Lembra que eu machuquei meu dedo e você escondeu seus lábios de
um sorriso zombeteiro para não me deixar furioso? Seu silêncio respeitoso
foi o melhor ensinamento que já tive, pois você me ensinou a respeitar os
passos de cada pessoa. (MUNDURUKU, 2003, p. 8).
compreender o mundo branco com suas vítima, o coitado que precisa de proteção e
regras e valores sustento, não tem capacidade de gerir-se.
Justifica a prática de massacres e extermínios
Canibal, animal, selvagem, preguiçoso, como autodefesa e defesa dos interesses da Coroa
Índio cruel traiçoeiro, bárbaro e tantos outros adjetivos (e dos Grupos econômicos hoje) que tem
e denominações negativos. interesse nas terras indígenas e nos recursos
naturais nelas existentes.
Concebe os índios como sujeitos
Garante direitos específicos, cidadania plural e
Índio cidadão históricos, de direitos e, portanto, de
tratamento jurídico diferenciado.
cidadania específica (plural).
Fonte: Adaptado Baniwa (2006). Elaboração própria.
Apreende-se das obras analisadas que aceitar e viver conforme a tradição cultural de
sua etnia é uma conditio sine qua non para SER um índio, talvez até maior que a questão
genética, a vinculação ao nascimento. Porém, em relação à tradição, acredita-se que o contato
com a modernidade eurocêntrica não significou o extermínio das tradições autóctones, mas
sim processa-se o surgimento de formas sincréticas em que as matrizes indígenas, portuguesas
e espanholas constituem uma mistura.
Retornando à questão dos espaços, significativa a menção do espaço do quintal como
um lugar de vivência proposto na fronteira entre a aldeia e a cidade. Lugar inscrito no
ambiente urbano e que conserva as características da aldeia. É, também, um lugar de
identificação das diferenças, da troca de experiências entre índio e brancos, da construção de
conhecimentos diversos da tradição étnica, bucólico, que abriga a “parecença” com a aldeia
em termos do tratamento dado à natureza. Nesse lugar, como na aldeia, a criança protagonista
quer estar. A descrição do local é de um “imenso terreno baldio e ali eu reunia meus colegas
para brincar. [...] treinei meus ouvidos para ouvir as conversas das corujas e dos sapos”
(MUNDURUKU, 2009, p. 11). Apreende-se, disso, a tentativa de proposição de uma terceira
margem, um espaço de trânsito entre o ambiente da cidade e o da aldeia, sinalizando-se o
convívio com a alteridade sem que se processe a desigualdade em meio às diferenças.
Transpondo essa questão para o universo ficcional da Literatura Brasileiro, o que se
afirma é a tentativa de elaboração de uma identidade híbrida que figura entre o índio
romântico − símbolo da natureza virgem, da proteção das florestas, vinculado à paisagem
(alimentação, sustento, etc.) – e o índio cidadão (sujeito de sua histórica, igual nas diferenças,
com direitos e deveres). A edificação de um indígena diferenciado, proposta encerrada na
afirmação da criança protagonista: “não nasci como nascem todos os índios [...]”
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Disponibilidade em https:///www.facebook.com/waniamaraj Acessível em 30. Jul.2013.
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(Munduruku, 2009, p.9), afirmação que se reflete como indicativo dessa diferença em termos
dos demais nativos brasileiros.
O que se verifica, portanto, é que a leitura dos textos de Daniel Munduruku obriga
seus leitores a reavaliar seus critérios de classificação já que rompe com as noções inscritas na
literatura nacional, deixando-se atravessar por diversas línguas, linguagens e culturas em
graus variados.
E, por fim, não deixa de cumprir com a proposta de uma escrita engajada que descreve
as desigualdades sociais, raciais, econômicas e culturais, desfiladas entre as considerações do
narrador, permitindo ao leitor (modelo, maduro, um adulto?) perceber que essa identidade
literária criada figura no espaço marginal, periférico no ambiente urbano. A condição de
marginalidade releva-se na exposição de situações como o subemprego, a residência em
bairros periféricos ou a falta de condições financeiras para a aquisição de moradia própria.
Não é novidade situar-se os urbaíndios em periferias e favelas das grandes cidades brasileiras,
basta empreender-se ao cruzamento de dados e estimativos populacionais realizados pelo
IBGE ou ler-se jornais. O ilustrador Denilson Baniwa 8 lembra que “um indígena que sabe ler
e escrever, não será dono da fábrica, no máximo será o encarregado de escrever as planilhas
de lucros”. Essas desigualdades podem ser apropriadas em razão dos conteúdos presentes em
trechos como “Nós sempre moramos na periferia de Belém. Nossa maloca não era nossa e
muitas vezes tivemos que mudar de lugar, de casa e de bairro” (Munduruku, 2009, p. 10) ou
em “Quando precisava ajudar em casa, eu ia para a feira vender alguma coisa ou então ia
simplesmente ajudar as pessoas a carregar seus volumes nos supermercados e assim ganhar
algum trocado”. (Munduruku, 2009, p. 22).
Em virtude do exposto, observa-se que na trajetória efetuada pelo escritor nativo, de
retorno ao passado para (re)significar o presente, existe uma proposta clara de definição para a
identidade literária do índio contemporâneo. A personagem de papel que surge da escrita de
Daniel Munduruku é o resultado dessa proposta que engloba uma construção estratégica e
transcultural.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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8
Conteúdo veiculado em rede social Facebook. Disponibilidade <https:///
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15
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