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20 • Público • Domingo, 2 de Fevereiro de 2020

O Padre
António
Vieira
no país dos cordiais
Ensaio Apesar da descolonização política, a psique
nacional reitera os hábitos mentais do colonizador;
e, na consciência de muitos, Portugal ainda é
império. Por outro lado, boa parte do comentariado
tradicional desquali ca as leituras alternativas da
história como anacrónicas, estrangeiradas e
“incordiais”. A quem serve a hegemonia lusotropical
e quem são os seus cultores? Um ensaio sobre a
eterna leveza do anacronismo e os guardiães do
consenso lusotropical

Por Inês Beleza Barreiros, Patrícia Martins Marcos,


Pedro Schacht Pereira e Rui Gomes Coelho
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RUI GAUDÊNCIO

E
m anos recentes, e de forma imperativo de sobrevivência do regime Estátuas e fantasia museológicas, bibliotecas e arquivos que
mais pronunciada desde salazarista — simultaneamente, colonial e Estátua do Padre António Vieira, emprestam o seu nome e título pro ssional
2017, há vários indícios claros fascista — no contexto da ordem política do inaugurada em 2017 no Largo ao serviço de narrativas edulcoradas e
de que o consenso em torno segundo pós-guerra, usou da fábula Trindade Coelho, em Lisboa: “Uma mitologizantes do passado colonial.
da narrativa sobre o Freyriana para naturalizar o seu próprio materialização fantasista da história” Uma das críticas que mais
signi cado e legados do poder e urdir a narrativa mitológica da recorrentemente são por estes guardiães
colonialismo português se missão civilizadora benigna. Nada disto é só endereçadas a todos os que questionam a
esgotou. passado. Ainda hoje estes legados insistem Outro contributo narrativo e sua versão “consensual” do passado é a de
Esse consenso, construído a partir de em reverberar, de forma acrítica, na esfera representacional é dado pela que incorrem no pecado nefando do
nais do século XIX, assentou, em parte, na pública portuguesa. internacionalização da universidade, o anacronismo: atreverem-se a impor a sua
exaltação do período das viagens de De facto, nem o 25 de Abril nem as incremento da mobilidade dos académicos visão do presente — não raro por eles
exploração marítima e expansão imperial de independências africanas beliscaram o portugueses e o crescente interesse de caricaturada como uma visão “politicamente
Quatrocentos e Quinhentos. consenso ideológico em torno do estrangeiros nos arquivos coloniais correta” e ideológica — à leitura dos eventos
Concomitantemente, este projecto imperial lusotropicalismo. Apesar da descolonização portugueses. Mas a questão da do passado. Segundo estes guardiães do
foi também acompanhado pela produção e política, que teve lugar no pós-25 de Abril, a descolonização, que também é académica, consenso histórico, habitamos hoje uma
difusão de um discurso defensivo que psique nacional reitera repetidamente os con gura, na sua essência, um problema de outra dimensão temporal onde passado,
interpreta esse passado como excepcional hábitos mentais do colonizador; e assim, na cidadania e representação democrática. presente e futuro em nada se tocam ou
no contexto europeu, porque alegadamente consciência de muitos, Portugal ainda é relacionam. À primeira vista, o suposto
inspirado numa visão humanista e universal. império. “antianacronismo” destes guardiães parece
Este discurso, que foi sofrendo adaptações
Os guardiães do consenso histórico
O questionamento crítico de que tem sido intuitivo. Mas uma análise mais cuidada dos
circunstanciais ao longo do tempo, infundiu alvo, desde pelo menos os anos 1950 por As intervenções críticas que têm marcado a labirintos da sua lógica revela um sem- m de
o lusotropicalismo de Gilberto Freyre. parte de intelectuais africanos e desde os actualidade têm suscitado fortes reações por paradoxos e incoerências.
Entretanto, a mitologia do anos 1980 por parte de universitários parte dos que assumem o papel de guardiães Vejamos. Quando estes custódios se
excepcionalismo adquiriu particular força portugueses, não parece, até agora, ter do velho consenso: académicos e outros erguem hoje para enaltecer os “grandes
em Portugal a partir dos anos 50 do século permeado a opinião pública. A emergência intelectuais aposentados, o comentariado feitos”, as extraordinárias “descobertas” ou
passado, quando a diplomacia do Estado de novos atores sociais, com destaque para tradicional, grisalho e conservador — as fantásticas “revoluções” operadas pelos
Novo precisou de argumentos para justi car os sujeitos racializados, cujas intervenções predominantemente masculino, branco, “heróis” do passado, fazem-no a partir do
internacionalmente a ordem colonial a que na sociedade portuguesa sempre existiram lisboeta e de uma certa classe social — que mesmíssimo presente que connosco é
submetia os territórios que hoje conhecemos mas nunca foram reconhecidas pelas pulula um pouco por todos os jornais e partilhado. Apesar disso, olham para o
como os países africanos de língua o cial instâncias legitimadoras das narrativas televisões, interpretando a “realidade” passado apenas com o intuito de escolher
portuguesa. Esta ordem colonial, importa culturais e historiográ cas, constitui um nacional a uma só voz. A estes juntam-se “grandes feitos” para enaltecer, valorizando
marcar, era simultânea ao regime ditatorial fator decisivo na quebra da hegemonia também vários catedráticos, ainda no ativo, só certos momentos, datas e/ou
que imperava na metrópole. Ou seja, o lusotropical. e funcionários superiores em instituições protagonistas em detrimento de c
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outros — o que é não só uma opção editorial, constroem a visualidade, a sua reprodução
mas também um poderoso ato de curadoria. na longa duração e os seus modos de
O que os guardiães do consenso não apreensão.
fazem, pelo contrário, é explicar estas Assim, a questão a que falta responder é:
opções ou sequer admitir que elas existem quem é que em 2017 precisou desta estátua?
enquanto tais. Possivelmente, na sua E porquê? Qualquer resposta a esta pergunta
imaginação, serão autores de uma história tem necessariamente de começar com a
universal e eterna: válida para sempre e em indagação das suas origens e raízes
todos os lugares; imune a releituras; simbólicas. Esta estátua, antes de mais,
impérvia ao debate e acima de qualquer nasce de um equívoco: a tentativa de fazer
dúvida. E é precisamente a partir deste perdurar, de forma intencional, uma
equívoco que emana a fraude da história narrativa falsa acerca do império no espaço
consensual: querer naturalizar uma só público da capital.
interpretação da História como a única Patrocinado pela Câmara Municipal de
possível ontem, hoje e amanhã. Lisboa, a Santa Casa da Misericórdia, a
Desta forma, os guardiães não só Companhia de Jesus e o Patriarcado de
naturalizam o seu próprio poder, como Lisboa, numa iniciativa recente de
neutralizam qualquer questionamento ao requali cação do espaço urbano lisboeta,
seu prezado consenso, acusando quem o faz este insistente engano de interpretação,
de preconizar uma história ideológica e entretanto, germinou e teve sementes
anacrónica. No entanto, esquecem-se com quando foi encomendado ao escultor Marco
isto que celebrar os “grandes feitos” de Fidalgo, que, banhando-se no néctar das
homens envolvidos no processo violento de fantasias coloniais que sempre deleitam a
colonização e defender a narrativa rosácea Igreja e o poder político em Portugal,
do “grande Portugal” é também uma escolha conjeturou que Vieira teria chegado “ao
ideológica — curiosamente, a mesma escolha coração do povo índio através das crianças”.
ideológica vigente em Portugal durante todo Mas o afã na perpetuação da narrativa dos
o regime salazarista. Mas o “labirinto da grandes homens e na exortação de Vieira
saudade” destes guardiães não precisa de como “defensor dos direitos humanos”,
coerência. Basta reparar que o anacronismo numa época em que esse conceito nem
só existe quando a sua visão hegemónica do sequer tinha sido formulado, não deixa
passado é questionada e quando a mitologia tempo para discursos mais complexos e que
dos “grandes homens” começa a soçobrar forcem as próprias instituições eclesiásticas
face ao contributo de comunidades — nomeadamente a Companhia de Jesus — a DR
historicamente excluídas, marginalizadas e encarar o seu papel fulcral na expansão do Museu
oprimidas. Impõe-se a questão: se a colonialismo e da economia escravocrata. a céu aberto
resistência dos povos historicamente Aqui esbarramos novamente com mitos. A Em cima,
oprimidos foi contemporânea aos actos ditos Companhia de Jesus não manifesta qualquer Fonte
heróicos, por que motivo é anacrónico para desconforto quando missionários jesuítas Monumental
os guardiães do consenso questionar a são exortados pelo seu brilhantismo nas de Belém,
resistência mas não o heroísmo? letras, física, matemática, entre outros com 32
domínios do conhecimento. No entanto, o brasões de
mesmo não acontece quando se discute o cidades do
O anacronismo em ação papel — bem documentado, aliás — da antigo
Anacronismo signi ca erro cronológico ou Companhia enquanto uma das maiores império
facto, evento ou posição atribuída a um proprietárias de pessoas escravizadas até à português, e
tempo do qual, aparentemente, se está sua expulsão do espaço imperial português Padrão dos
desfasado. Etimologicamente, anacronismo em 1759. Quanto a esse papel, impera um Descobri-
vem do grego anakhronismós, que quer dizer silêncio ensurdecedor — um silêncio que mentos, com
contra o tempo ou contratempo. Ora, o clama, de resto. uma espada
tempo em que vivemos tem-nos trazido Porém, evidentemente, o rigor histórico decorada
produtivos contratempos, ou esteve longe das preocupações dos com a cruz
contrariedades, que abrem lugar a novas promotores da estátua. Por isso é que o da Ordem de
temporalidades e narrativas dentro do cardeal-patriarca de Lisboa procurou atestar Avis, símbolo
presente. Nesse sentido, como a sua verdade histórica dizendo que estava da força das
“contratempo”, o anacronismo pode ser “ el àquilo que as gravuras reproduzem” — armas e da fé
objecto da história. Como contratempos, no fundo, apelando a uma desconcertante cristã. Ao
muitos dos projectos de memorialização que inverosimilhança como critério, já que as lado, estátua
hoje se contestam, apesar de falarem sobre o “gravuras” foram produzidas várias décadas de Fernão de
passado, não são efetivamente do passado. após a morte de Vieira. Por outras palavras, Magalhães,
Antes falam-nos do presente. D. Manuel Clemente parece ter querido dizer na Praça do
Monumentos recentes como a estátua do que a visão que os séculos XVIII e XIX Chile, em
Padre António Vieira, inaugurada em 2017 construíram do célebre causídico, e Lisboa, cuja
no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, são eloquente defensor da escravização dos base foi
na realidade não mais do que africanos, é aquela que os portugueses do pichada
materializações fantasistas da história. Essa século XXI precisam e merecem.
estátua constitui, por isso, um perfeito Ora, se o contexto da produção das ditas
exemplo de dissimulação e disfarce: nge ser gravuras foi caracterizado pela versão profética que Vieira também ajudou a panegíricos, os guardiães do consenso
uma ruína contemporânea de Vieira, recon guração e expansão do poder construir? Num momento histórico marcado consultassem tanto os arquivos como a
quando a nal ela foi inventada naquele imperial, devemos perguntar-nos que pela emergência dessas vozes historiogra a. Constatariam rapidamente
espaço só em 2017. Ou seja, a estátua é um projetos imperiais se delineiam de 2017 para tradicionalmente silenciadas e remetidas que a escravização dos povos indígenas fora
fac-símile encomendado, pago e inaugurado cá, para que a sociedade portuguesa do para as margens do espaço público e político proibida no império hispânico desde 1501 —
“hoje”. É, por isso mesmo, não mais do que século XXI, laica e nominalmente português, não é esta estátua a nal uma sendo reiterada nas Leis de Burgos (1512), na
um arcaísmo estórico que o presente urdiu e pós-colonial, mereça ser catequizada em declaração enfática de delidade a um bula papal Sublimus Deus de 1537 e nas Novas
que atabalhoadamente tentou maquilhar de permanência no espaço público pelos consenso decididamente anacrónico? Leis de 1542. Em contraste, as primeiras
jóia de família. Ela é a prova de que o tempo fantasmas de bronze que desse império Mas a narrativa do grande “herói dos iniciativas legais de proibição da escravatura
histórico não é algo linear, mas processual e sobraram. Não será antes que o anacronismo índios” volta a soçobrar quando analisada indígena para o caso português datam de
saturado de temporalidades — e que, prelatício, associado ao comemorativismo no contexto do seu próprio tempo. Esta Setecentos — não que as “capturas” tenham
simultaneamente, a construção das imagens municipal, preconiza uma política da narrativa quer-nos fazer crer que Vieira era alguma vez acabado, como poderá constatar
no tempo se inscreve em modos de fazer memória claramente apostada em apagar da único, excecional e absolutamente ímpar. quem visite a Torre do Tombo ou o Arquivo
organizados por discursos de poder que história todos os que não se reconhecem na Infelizmente, seria melhor se, em vez de Histórico Ultramarino.
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MARILYN MARQUES
estão imunes a esta dinâmica. Fosse esta concentrado na zona de Belém de forma logo, a recontextualização de símbolos de
estátua um testemunho da cultura material mais acentuada, juntamente com exclusão e opressão. O artigo vigésimo
de outro tempo — do tempo de Vieira, talvez instituições como o Arquivo Histórico primeiro da Constituição da República
—, seria admissível que historiadores, Ultramarino, a Sociedade de Geogra a, a Portuguesa consagra o direito à resistência a
arqueólogos, museólogos e antropólogos a Academia das Ciências, a Biblioteca da Ajuda tudo o que ofenda “direitos, liberdades e
estudassem e contextualizassem enquanto e o MNAM, que guardam a memória do garantias”.
tal. Mas esta estátua não é do século XVII, ela império perspectivada pelo poder. Grupos de cidadãos anónimos têm vindo a
é de 2017. Ela é “nossa” não só porque foi Infelizmente, para estas instituições, tomar em mãos a recontextualização da
produzida no nosso tempo, mas porque visitadas por inúmeros investigadores estátua de Vieira. Logo em 2017, cidadãos
também ela foi nanciada pelos poderes nacionais e estrangeiros, e fulcrais para um recitaram-lhe poemas e tentaram depositar
públicos actuais. estudo mais plural e crítico do passado, não ores, mas foram confrontados com uma
Assim sendo, esta estátua não nos pode se mobilizam os fundos. concentração de neonazis. Em 2018, o
ensinar nada de historiogra camente Aquela ideia de museu tem sido assumida monumento amanheceu durante vários dias
rigoroso acerca da história de Portugal, do pelos setores mais conservadores da com ramos de ores brancas, no que parece
seu império, dos modelos de colonização e sociedade portuguesa como pretexto para ter sido uma alusão às camélias brancas do
das relações raciais. Ela ensina-nos, sim, dar resposta a algumas das suas inquietudes: movimento abolicionista brasileiro do século
acerca da mitologia lusotropical do a diversidade social e cultural da sociedade XIX. Numa ação menos poética, mas de
colonialismo benigno — o que, em todo o portuguesa contemporânea, o mensagem igualmente rme, alguém pichou
caso, não é feito de forma clara e honesta. cosmopolitismo dos seus jovens e a o plinto com um “fuck colonialism” no
Esta estátua tenta recriar no presente uma crescente visibilidade pública de agentes até passado dia 10 de Junho.
imagem edulcorada tanto da colonização então desconhecidos. Os ilustres que Estas intervenções têm sido
portuguesa no Brasil, como do tratamento des laram diante da estátua de Vieira acompanhadas por outras de idêntico teor
dos povos indígenas, do papel da Igreja aquando da sua inauguração fazem parte do um pouco por todo o país. No ano passado,
Católica e da Companhia de Jesus, mais mesmo contínuo sociológico de intelectuais pela mesma altura, o monumento salazarista
especi camente. E isso, sim, diz-nos muito que caíram nos media e redes sociais durante da praça do Império no Porto também foi
sobre o nosso presente. os últimos dois anos, simplesmente para pichado: “Tirem esta merda daqui.” Há
A estátua de Vieira é duplamente tentarem convencer os portugueses de que meses, uma estátua de Pedro Álvares Cabral
anacrónica: por ser nossa contemporânea, não existe espaço para imaginar narrativas foi igualmente intervencionada em
apesar de não ser representativa do nosso diferentes, inclusivas e justas. “Quem achar Santarém. Desta vez, acrescentaram ao
presente. Antes, ela representa um que isto não vale nada então vá-se embora”, plinto “colonialismo é fascismo.”
entendimento da gura de Vieira presa a disse então um conhecido historiador e Os comentadores de serviço podem
uma narrativa panegirista e nacionalista. Por romancista. apressar-se a dizer que tudo isto é
outras palavras, ao propor a ideia de Vieira vandalismo. Porém, trata-se daquilo a que
como precursor iluminado dos direitos Frédéric Gros chamou dissidência cívica
Por outro lado, os discursos dos guardiães humanos — um anacronismo prospetivo, que
O regime da cordialidade (Désobéir, 2018). Aquilo que os pichadores
far-nos-iam ainda crer que Vieira inventou idealiza o passado a partir daquilo que só o (e os incordiais) fazem não é mais do que se reconhecerem a
uma mundividência antiesclavagista que futuro traria —, os promotores da estátua O consenso entre as elites tem rituais si mesmos como sujeitos políticos, no
a nal só glosou. Quando Vieira escreveu os instituem e perpetuam no espaço público próprios. Este “regime da cordialidade” quadro da reinvenção de uma democracia
sermões que hoje são criteriosamente uma visão anacrónica da gura de Vieira — armadilha todo o tipo de discussão e só tem que se quer crítica e interrogativa. A
escolhidos com artimanhas de contador de um anacronismo retrospetivo, que impõe ao sido rompido pela emergência de novos “merda” que os pichadores do Porto
estórias, havia já uma sólida tradição presente uma narrativa inquestionada do agentes que têm questionado as grandes incordialmente demandam que seja retirada
escolástica argumentando contra a ideia passado. Curiosamente, a mesmíssima visão narrativas do Estado-nação, seus símbolos e é uma estátua mas é também, e sobretudo, a
aristotélica de escravatura natural. Ou seja, que foi promovida no séc. XIX, e sobretudo espaços. É contra esta incordialidade que se materialidade dos consensos impostos no
Vieira não criou, Vieira anotou; e, quando o durante o Estado Novo, e que 45 anos de têm insurgido os que, até aqui, tinham por espaço público; o m da hegemonia
fez, fê-lo seguindo os moldes de uma democracia não conseguiram desmontar. garantida a sua hegemonia no espaço narrativa imposta pelos seus guardiães.
tradição centenária de práticas de É evidente, portanto, que os promotores público. Por lhes parecerem tão estranhos — Em suma, não há anacronismo na crítica
argumentação e construção do da estátua não se reconhecem no memorial pelas ideias, pelas origens e até pela cor da às estátuas produzidas em contexto colonial,
conhecimento. inaugurado em Lisboa (2008), na Calçada do pele —, os incordiais tendem a ser encarados seja esse contexto aquele que vigorou até
Infelizmente, os anacronismos Correio Velho, aquando do quarto como exteriores ao próprio corpo da nação. 1974-75 ou o que, após essa data, se reproduz
acumulam-se também no próprio pedestal centenário do nascimento de Vieira. Trata-se Veja-se, a título de exemplo, o tratamento continuamente no discurso o cioso do
que informa qualquer casual transeunte de um painel de azulejos que marca o lugar que receberam por parte do comentariado e Estado português. Como aliás não há
sobre quem Vieira foi: “Jesuíta, Pregador, onde terá nascido e mostra um excerto de do poder político o ativista Mamadou Ba em anacronismo na crítica ao “museu da
Sacerdote, Político, Diplomata, Defensor dos um dos sermões: “Para nascer, Portugal; janeiro último, quando se atreveu a criticar a descoberta” ou mesmo nos pedidos de
Índios e dos Direitos Humanos, [e] Lutador para morrer, o mundo.” Quando o chocante atuação da polícia na repressão de desculpas e reparações. Estas foram exigidas
Contra a Inquisição.” É curioso que os cardeal-patriarca diz que é com a estátua do habitantes de um bairro da periferia lisboeta em vida pelas pessoas escravizadas,
guardiães da hegemonia lusotropical não Largo da Misericórdia que, pela primeira ou da manifestação na Av. da Liberdade, ou, sendo-lhes de imediato negadas — é por isso
tenham encontrado qualquer anacronismo vez, se faz justiça e pública homenagem ao desde outubro, a deputada eleita Joacine que, quando hoje se as pedem, não há
nesta escolha de palavras. Como Vieira jesuíta, está a dizer-nos que é a primeira vez Katar Moreira. Uma análise de incontáveis anacronismo.
nunca se de niu a si próprio como “político” que se faz do modo em que ele se reconhece. artigos de opinião publicados então e agora A crítica destina-se precisamente a
ou “defensor dos direitos humanos”, resta Que a igreja atual se reveja na pose de um mostraria que os afrodescendentes em assinalar a distância que o presente
saber quem o fez e porquê. É que no século padre junto a crianças submissas é algo que Portugal são tolerados apenas até ao reconhece em relação aos valores do
XVII “político” não era uma coisa que se era, preocupa, mas que deveria ser indiferente a momento em que se a rmam como sujeitos passado, o desejo de marcar uma ruptura
mas uma coisa que se praticava, enquanto o uma sociedade laica. Até ao momento em políticos de pleno direito e sobretudo se essa informada com esses valores. Não se trata de
conceito de “direitos humanos” nem sequer que essa visão toma conta do espaço público a rmação é acompanhada do exercício do uma recusa puritana da história, senão de
existia. Mas, evidentemente, o anacronismo e é patrocinada por fundos públicos — custo direito à palavra e ao espaço público. uma veemente recusa da oclusão que a
só importa quando as críticas legítimas de de 99 525,00 euros por ajuste direto, para Perante este contexto, que fazer com a instrumentalização da memória impõe à
vozes tradicionalmente marginalizadas se sermos mais precisos. Preocupa sobretudo estátua de Vieira? Os agentes sociais que ação histórica. Anacronismo é pretender que
levantam contra os agentes políticos, que seja a Câmara Municipal de Lisboa a criam e sustentam representações deste tipo essa continuidade é não só possível como
culturais e religiosos que tradicionalmente identi car-se com uma mensagem continuarão a reproduzir a sua hegemonia desejável. Urge, por isso, interromper a
têm dominado a sociedade portuguesa. paternalista e paroquiana, atrelada a uma lusotropical no espaço público. As leituras violência deste anacronismo como
conceção elitista de gestão do espaço alternativas que se zerem continuarão a ser durabilidade colonial, que continua a
público, já que não existiu qualquer consulta desquali cadas pelos intelectuais do regime produzir numerosas exclusões no presente,
História e usos do passado pública prévia à escolha do escultor, da obra como anacrónicas, estrangeiradas e e engajar numa crítica que dê a conhecer as
Do ponto de vista disciplinar, a História lida ou da sua localização. incordiais. Essa hegemonia continuará a temporalidades heterogéneas, passadas e
com a mudança, a contingência, a diferença; Não nos surpreendamos; esta foi a mesma confundir-se com o exercício dos poderes futuras, que atravessam o presente e os seus
o que foi e já não é. Por este motivo, é câmara que em 2018 promoveu públicos e uma visão de país que está longe objetos. E o único destino que se pode dar às
natural que os presentes em que a História é inadvertidamente o debate sobre um de representar todos os portugueses. Porém, estátuas enxertadas da imaginação colonial
feita regressem a velhos problemas, “museu da descoberta” destinado a celebrar monumentos como este continuarão a ser lusotropical é o regresso à fundição.
narrativas, textos e protagonistas históricos o lusotropicalismo. Sabendo como sabemos feitos em nome de todos e pagos por todos.
de novas maneiras. Nem Vieira nem que esse museu já existe a céu aberto, Cabe-nos reclamar o legado democratizador Historiadora de Arte; historiadora;
qualquer outra pessoa ou momento que seja disseminado um pouco por toda a cidade, e da Revolução de Abril e demandar, desde professor; arqueólogo

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