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ESFERASDAINSURREIÇAO

NOTAS PARA UMA VIDA NAO CAFETINADA


Suely Rolnik

© Suely Rolnik, zoi8


© n l edições,zoi8
ISBN978 85-6694359-7

Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito


brasileiro, a n l edições não segue necessariamente as
convençõesdas instituições normativas, pois considera
a edição um trabalho de criação que deve interagir
com a pluralidade de linguagens e a especificidade
de cada obra publicada.

COOROENAÇAO EOiTORiALPeter Pál Pelbart


e Ricardo Muniz Fernandes
DiREÇÃOOEARTERicardo Muniz Fernandes
ASSISTENTEEDITORIALInês Mendonça
PROJE'roGRÁFICOErico Peretta
PREPARAÇÃO
E REVISÃOPedra Taam
IMAGENS Capítulo O {zzcotzsaelzfe
colonial-capífaZÍsfíco
RodrigoAraújo coletivo BijaRI
IMAGENS/CAPA
Graâsmos a partir de pintura corporal Guarani

A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos,


para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso
ou eletrânico, está autorizada, desde que citada a fonte.
Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se
entrar em contato com os editores.

z'ediçãojJunho,zoig

n-ledicoes.org
NCONSCIENTE DiHgimo-nos aos inconscientesqueprotestam. Procura-
mos aliados. Precisamos de aliados. E temos a impressão

COLONIAL- de que essesaliados jú eüstem, de que não esperaram


por nós, de que há muita gente que está$ana, que pensa,

CAPITALISTIC +
sente e habalha em direções análogas: nada a ver com
moda, mas com um "ar do tempo" mais pro@ndo, no
qual sejazem investigações convergentes em domínios
muito dhersos.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, t97z:

Uma atmosfera sinistra envolve o planeta. Saturado de partí-


culastóxicas do regime colonial-capitalístico, o ar ambiente
nossufoca.
Clom sucessivas transmutações, tal regime vem persis-
tindo e se soâsticando desde o anal do século XV, quando se
dá sua fundação. Suaversão contemporânea ânanceirizada,
neoliberal e globalitária - começa a se formar já na virada do
século XIX para o século XX e intensiâca-se após a Primeira
Guerra Mundial, quando se internacionalizam os capitais;
mas é a partir de meados dos anos i97o que atinge seu pleno
poder, aârmando-se contundentemente e não por acaso
- após os movimentos micropolíticos quc sacudiram o pla-
neta nos anos l96o e l97o. É já nesse período - meados dos
anos i97o - que se dão os primeiros passos de um trabalho
de decifração dos rumos atuais do regime em sua complexa
natureza, os princípios que a regem e os fatores que criam as
condições para sua consolidação.

l Gilles Deleuze e Félix Guattari, "Sur Capitalisme et Schizophrénie", entre


vista a Catherine Backês-Clément, publicada na revista L'Arc, n. 49, março
de l97z, Pauis, pp. 47-55. Publicada no Brasil com o título "Entrevista sobre
o Anta-Édipo(com Félix Guattari)". Ver: Gilles Deleuze, C07zva'sacões,
São
Paulo:Editora34,i99z,p.34.

29
r'
Porém, como costuma acontecer em momentos de tran. voltar a reaparecer após a crise de 2008.3 A nova série de
sição radical, é sobretudo a partir de meados dos anos i99o movimentos, que se encontra ainda hoje em curso, emerge
- quando se fazem sentir mais claramente seus efeitos nefas- em diferentes pontos do planeta, principalmente a partir do
tos na vida cotidiana - que essadecifração se expande e se início dos anos joio, que antecedem a escrita deste ensaio.
densiâca, dando lugar a um debate coletivo que vem se des- É no contexto desses movimentos e do debate a eles asso
dobrando desde então. Tal debate é impulsionado pela expe- dado que se insere o presente ensaio. Seu ponto de partida
riência dos movimentos sociais que emergem ao longo da é uma das questões em pauta nessa construção coletiva: o
décadaanterior em reação à tomada de poder mundial pelo modo de relação entre capital e força vital próprio ao regime
atual regime. Como raios, essesmovimentos vêm irrompendo em suaatual versão, inteiramente distinto de seumodo for-
nos céus do capitalismo globalitário a cada vez que se formam dista. Nesta nova versão, o âmbito da força vital de que se
nuvens tóxicas pela densiâcação da atmosfera em alguma alimenta o capitalismo já não se reduz à sua expressão como
de suas regiões, quando sua perversão ultrapassa o limite
do tolerável. A intensidade de irrupção de tais movimentos década.Outro exemplo é o movimento LGBTQI, que, no Brasil, se organiza
no anal dos anos l97o e se expande cada vez mais desde a década de l98o
- equiparável à da violência do regime que os desencadeara - Nesta mesma chave, datam do início dos anos i99o no Brasil as manifesta
tende então a provocar uma desestabilizaçãotemporária de ções que foram chamadas de "Caras-Pintadas" (i99z), compostas sobretudo
suatirânica onipotência. E com a mesma velocidade com que de jovens que, reunidos a favor do {nzpeac/zme?zf
de Collor, atuavam também
na esfera micropolítica, aspecto que ressurgirá mais contundentemente nas
surgem, desaparecem, para logo ressurgir, de outro modo e manifestações em massa de zot3. Um exemplo internacional deste segundo
em outros lugares, mobilizados por novos acontecimentos tipo de movimento são as manifestaçõesdo May Day que se espalhampelo
que nos instalam no intolerável o que os leva evidentemente mundo em zoom.O terceiro tipo de movimento caracteriza-se por atuar mais
especiâcamentena esfera macropolítica: no Brasil, datam do início dos anos
a produzir outras cartograâas, outros sentidos, distintos dos
ig8o o movimento das Diretas Já(i983-i984) e o surgimento do Partido dos
que os antecedem. Essa série de movimentos estende-se até Trabalhadores, que, no momento de sua fundação, funcionou como um cata
o início dos anos 2000,' quando então se interrompe, para lizador de movimentos macro e micropolíticos, para logo em seguidaredu
zir-se à esfera macro; mais para o anal dos anos lg8o, surgem os movimentos
sociais como o MST, assim como aquelesque se organizaram ou se fortale-
2 Podemosclassificar em três tipos os movimentos que eclodiram em várias ceram em torno da Assembleia Nacional Constituinte (ig87), como é o caso
partes do mundo ao longo da décadade x98o até o início dos anos zoom. O do notório avançodo movimentoindígena.Um efeito signiâcativodestes
movimentos - que, de distintas maneiras, aconteceram também em outros
primeiro caracteriza-se por atuar mais especiâcamente na esfera micropolí-
tica: um exemplo é o movimento Punk - que teve início nos Estados Unidos países do continente sul-americano - é a eleição de governantes de esquerda
em meados dos anos l97o e, no Brasil, no anal daquela década e ao longo para a presidência de alguns desses países, no início dos anos zoom, após um
dos anos i98o -, que se contrapunha ao otimismo pacifista e romântico do período de reconstituição da democracia com o âm dos governos ditatoriais
nestes contextos.
movimento hippie. No Brasil, no mesmo período, ganham força movimentos
que se enquadram no segundo tipo, que caracteriza-se por atuar simultâ- 3 Entre os movimentos que eclodem pelo mundo no início dos anos joio, e
nea e indissociavelmente nas esferas micro e macropolíticas - entre os quais que aliam macro e micropolítica em sua atuação, citemos; a Primavera árabe
movimentos feminista e negro, que, emboratenham nascidojá no anal do (adio), Occupy(zou), Movimiento i5-M e Indignados(zon) e, no Brasil,os
século XIX, com altos e baixos desdeentão, ganham um novo alento naquela movimentos de zoi3.

30 ESFERASDAINSURREIÇAO O[NCONSCIENTECOLONIAL-CAPITALÍST]CO 31
força de trabalho, o que implica uma metamorfose radical criação individual e coletiva de novas formas de existência,
da própria noção de trabalho. Isso é acompanhado por uma suasfunções, seus códigos e suas representações que o capital
paulatina diluição da forma Estado democrático e de direito e explora, fazendo dela seu motor. Disso decorre que a fonte da
das leis trabalhistas que dele dependiam, próprias do regime qual o regime extrai sua força não é mais apenas económica,
em sua versão anterior.4 mas também intrínseca e indissociavelmente cultural e subje-
tiva - para não dizer ontológica -, o que Ihe confere um poder
perverso mais amplo, mais sutil e mais difícil dc combater.
O abuso da vida Diante desse quadro, 6ca evidente que não basta agir na
esfera macropolítica, onde atuam tradicionalmente as esquer-
Se a base da economia capitalista é a exploração da força de das,sobretudo as institucionais - isso explicaria inclusive sua
trabalho e da cooperação intrínseca à produção para delas impotência face aos rumos anuaisdo regime colonial-capita-
extrair mais-valia, tal operação - que podemos chamar de lístico. Segundo a visão introduzida por autores que pensaram
"cafetinagem" para Ihe dar um nome que diga mais precisa- a novarelaçãoentre capital e trabalho colocando seufoco na
mente a frequência de vibração de seusefeitos em nossos cor- apropriação pelo capital da potência de criação - especial-
pos foi mudando de õgura com as transíigurações do regime mente Tom Negri e Michael Hardt,s que designaram a nova
ao longo dos cinco séculos que nos separamde sua origem. dobra do regime por "capitalismo cognitivo" -, a resistência
Em sua nova versão, é da própria vida que o capital se apro- hoje passaria por um esforço de reapropriação coletiva dessa
pria; mais precisamente, de sua potência de criação e trans- potência para com ela construir o que tais autores chamam de
formação na emergência mesma de seu impulso ou seja, sua "o comum".óEm diálogo com eles,podemos deânir o comum
essência germinativa -, bem como da cooperação da qual tal como o campo imanente da pulsão vital de um corpo social
potência depende para que se efetue em sua singularidade. A quando a toma em suasmãos, de modo a direcioná-la à criação
força vital de criação e cooperação é assim canalizada pelo de modos de existência para aquilo quc pede passagem.Ainda
regime para que construa um mundo segundo seus desígnios. segundoHardt e Negra,da construção do comum resultam
Em outras palavras, em sua nova versão é a própria pulsão de mudanças nas formas da realidade. Seu argumento é que se,
no capitalismo industrial, asformas da força de trabalho e sua
4 A este respeito ver a obra de Tom Negrae Michael Hardt, especialmente a cooperação - no caso, organizadas como produção em cadeia
trilogia composta por Império, Rio de Janeiro: Record,zoom;MuZüdão:Caem'a
e demão'aaa 7zaera do Império, Rio de Janeiro: Record, 2014; e Bem estar comtlm.
5 Ver nota anterior.
Rio de Janeiro: Record, zoi7. As ideias especíâcas destes autores com as quais
aqui dialogo são desdobramentos da obra conjunta de Gilles Deleuze e Félix 6 A noção de "comum" vem sendo elaborada por vários autores de diferentes
Guattari no que diz respeito à relação entre capital e trabalho. Ver sobretudo: perspectivas. A problematização desta noção na presente coletânea situa-se
Gilles Deleuze e Félix Guattari, O AlzH-Edípo,Rio de Janeiro: Editora 34, adio; num diálogo com a perspectivaaditada por Nega e Hardt, agregandoà sua
e Mí! Prafõs,Rio de Janeiro: Editora 34, i996-i997, publicados originalmente ideia de construção do comum uma dimensão estética e, principalmente, clí-
em i97z e i98o, respectivamente. nica, necessáriaspara sua viabilização.

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- eram pré-deânidas pelo capital, no modo de expropriação
r'
indiscerníveis. Nessa transtenitorialidade criam-se condições
dessaforça próprio à nova versão do regime, suasformas não mais favoráveis para a mobilização da potência de criação das
sãopré-determinadas, pois é da própria potência de sua cona
práticas ativistas, bem como da potência micropolítica nas
trução que se apropria o capital. Sepor um lado, segundo eles, práticas artísticas que, apesar de terem em tal potência sua
isso abriria uma possibilidade de autonomia na condução do essência,encontram-se hoje dela destituídas em favor de sua
destino da força vital, no entanto, tal força é desviada a favor cafetinagempelo capital, que tem nessedomínio uma fonte
da produção de cenários para a acumulação de capital. privilegiada para sua expropriação.
Ainda segundoos autores, partindo do princípio de que Uma inquietação move a escrita deste ensaio: se já é um
a potência vital pertence a quem trabalha, é precisamente passo importante reconhecer, como fazem os autores men-
a experiência de suarelativa autonomia que gera condições cionados, que não basta resistir macropoliticamente ao atual
favoráveis para sua reapropriação. Retomando a conversa regime e que é preciso agir igualmente para reapropriar-se
com eles, podemos acrescentar que é da reapropriação dese da força de criação e cooperação ou seja, atuar micropoli-
jante, individual e cooperativa, do destino ético da pulmão ticamente -, reconhecê-lo racionalmente não garante ações
vital7 em síntese, de sua reapropriação ontológica que eficazes nessa direção. ]i que a reapropriação do impulso de
pode resultar um desvio coletivo de seu abuso pelo regime na criação só se efetua ao incidir sobre as ações do desejo, de
direção de uma ética da existência. No entanto, como os auto modo a imprimir-lhes sua direção e seu modo de relação com
res nos apontam, sua reaproriação pela sociedade é virtual o outro; no entanto, tais açõestendem a chocar-secom a bar
enquanto não encontra suasformas de atualização. Buscar regrada política de produção da subjetividade e do desejo ine-
tais formas depende de uma vontade coletiva de agir visando rentes ao regime vigente. Como em qualquer outro regime, é
a construção do comum, o que não é dado czpdod. o modo de subjetivação que nele se produz que Ihe confere
E exatamente nessa direção que vem atuando parte dos suaconsistência existencial, sem a qual ele não se sustentaria;
citados movimentos coletivos que irrompem em meados um não vai sem o outro. No caso da nova dobra do regime
dos anos i99o e voltam a irromper em diferentes momen- colonial-capitalístico, o abuso da pulmãovital nos impede de
tos desde então no atavismo propriamente dito e, não por reconhecê-la como nossa, o que faz com que a sua reapropria-
acaso,também na arte, sendo suas fronteiras cada vez mais
ção não seja tão óbvia como gostaria nossa vã razão.
Levando isso em consideração, é evidente que não se
7 A ideia de "destino ético da pulmão",inspirada em JacquesLacan, tal como aqui logra retomar asrédeasdessapotência por um simples
proposta vem do trabalho do psicanalista e teórico brasileiro João Pera Schiavon decreto da vontade, por mais imperiosa que esta seja, nem
Ver especialmente sua tese de doutorado, PraEmafísmoPuZslolzat,defendida em
por meio da consciência, por mais lúcida e bem-intencio-
zoo7 no Núcleo de Estudos e Pesquisasda Subjetividade do Departamento de
Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e seu artigo nada.Tampouco é possível reapropriar-se coletivamente
homónimo publicado na revista Cadernos de Sübeümdade, Revista do Núcleo de dessa potência como um só corpo supostamente natural,
Estudos e Pesquisas da Subjetividade, pp. 124-l31, São Paulo, adio.
que estaria dado a pdod e, ainda por cima, com sinergia

34 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O l NCONSCI ENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 35

l
absoluta entre todos os elementos que o compõem como força vital de criação e cooperação. Nesse sentido, podemos
pretendem os arautos messiânicas de um paraíso terrestre. É também designa-lo por "inconsciente colonial-cafetinístico",
preciso resistir no próprio campo da política de produção da pelas razões acima evocadas. É provavelmente à resistên-
subjetividade e do desejo dominante no regime em suaversão cia a esseregime de inconsciente que se referem Deleuze e
contemporânea- isto é, resistir ao regime dominante em nós Guattari, quando clamam por um protesto dos inconscientes,
mesmos-, o que não cai do céu,nem se encontra pronto em já em i97z quando apenas se esboçava o trabalho de ela
algumaterra prometida. Ao contrário, esseé um território boração coletiva da arrojada experiência de Maio de i968 e,
que tem que ser incansavelmente conquistado e construído simultaneamente, a tomada de poder pelo novo regime mani-
em cada existência humana que compõe uma sociedade, o festava seus primeiros sinais, todavia nebulosos.
que intrinsecamente inclui seu universo relacional. De tais A intenção que move o presente texto é perscrutar a moda-
conexõesoriginam-se comunidadestemporárias que preten- lidade anualdo inconsciente colonial cafetinístico introdu
dem agir nessa direção construindo o comum. Entretanto, zida pelo capitalismo õnanceirizado e neoliberal - a qual se
tais comunidades jamais ocupam o corpo da sociedade como deâne,insisto, pelo sequestrodessaforça no próprio nasce-
um todo, pois ele sefaz e se refaz no inexorável embateentre douro de seu impulso germinador de mundos. Mas como dri-
diferentes tipos de forças. blar esseregime de inconsciente em nós mesmos e em nosso
entorno? Em outras palavras, em que consistiria o tal protesto
dos inconscientes?
Mas como liberar a vida de sua cafetinagem? Responder a esta pergunta exige um trabalho de investi-
gaçãoque só pode ser feito no campo da própria experiên-
Insurgir-se nesseterreno implica que se diagnostique o modo cia subjetiva. Há que se buscar vias de acessoà potência da
de subjetivação vigente e o regime de inconsciente que Ihe criação em nós mesmos: a nascente do movimento pulsio
é próprio, e que se investigue como e por onde se viabiliza nal que move as ações do desejo em seus distintos destinos.
um deslocamento qualitativo do princípio que o rege. Sem Um trabalho de experimentação sobre si que demanda uma
isso, a tão aclamadaproposta de reapropriação coletiva da atenção constante. Em seu exercício, a formulação de ideias
força criadora como proõlaxia para a patologia do presente é inseparável de um processo de subjetivação em que essa
não sairá do laboratório das ideias, correndo o risco de per- reapropriação se torna possível por breves e fugazes momen
manecer confinada no plano imaginário e suas belas ilusões tos e cuja consistência, frequência e duração aos poucos se
alentadoras elas mesmas dispositivos de captura. ampliam, à medida que o trabalho avança.
Proponho designar por "inconsciente colonial-capitalístico" Assim sendo, o trabalho necessário para responder a esta
a política de inconsciente dominante nesse regime, a qual pergunta nos exige que, junto com o deslocamento da política
atravessa toda sua história, variando apenas suas modalida- de produção da subjetividade e do desejo dominante na nova
desjunto com suastransmutações e suas formas de abuso da versão da cultura moderna ocidental colonial-capitalística,

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P'
desloquemos igualmente a política de produção do pensa- som. Tais ressonânciase as sinergias que produzem criam
mento própria a essacultura, ativando sua medula vital e sua as condições para a formação de um corpo coletivo comum
habilidade para desarmar as conâgurações do poder. Sem isso, cuja potência de invenção, agindo em direções singulares e
nossa intenção morre na praia. Da perspectiva desses deslo- variáveis, possa refrear o poder das forças que prevalecem
camentos,pensar e insurgir-se tornam-se uma só e mesma em outras constelações - aquelas que se compõem de corpos
prática; uma não avançasema outra. Clorroboracom essa que tentam cafetinar a pulmãovital alheia ou que se entregam
indissociabilidade o fato de que, embora tal prática só possa a sua cafetinagem. Com essas sinergias, abrem-se caminhos
realizar-se, por princípio, no âmbito de cada existência, ela para desviar tal potência de seu destino destruidor.
não se dá isoladamente. Primeiro porque seu próprio motor E esta precisamente a perspectiva que rege o pensamento
não começa nem termina no indivíduo, já que sua origem são na elaboração deste ensaio - ela é, portanto e por princípio,
os efeitos das forças do mundo que habitam cada um dos cor- não só transdisciplinar, mas indissociável de uma pragmática
pos que o compõem e seu produto sãoformas de expressão clínico-política. Sendo este necessariamente o trabalho de
dessas forças - processos de singularização em cada um deles, muitos e de cada um e que nunca se esgota, as ideias que
que se esculpem num terreno comum a todos e o transâ- serão aqui compartilhadas são apenas algumas ferramentas
guram. Nada a ver com autorrefiexividade, interioridade ou conceituais entre as que estão sendo hoje inventadas em
assuntos privados. A segunda razão, inseparável da primeira, múltiplas direções para encarar a pergunta acima colocada:
é que tal prática alimenta-se de ressonâncias de outros esfor- "Como liberar a vida de sua cafetinagem?" Tal processo de
ços na mesma direção e da força coletiva que elas promovem invenção decorre da inteligência coletiva que vem se ati-
- não só por seu poder de polinização, mas também e sobre- vando em velocidade exponencial, mobilizada pela urgência
tudo pela sinergia que produzem. de enfrentar o alto grau de perversão do regime em sua nova
Ressonâncias desse tipo não são apenas encontráveis em versão. As ferramentas aqui sugeridas nos auxiliarão a exami-
um campo determinado do saber que teria o suposto mono- nar tanto a política de produção da subjetividade, do desejo,
pólio da expet"figa no assunto - como por exemplo os estu- do pensamento e da relação com o outro que nos leva a uma
dos culturais, pós-coloniais ou queer,que seriam os mais entrega cegaà apropriação da força de criação pelo capital,
óbvios. Podemos encontra-las em vários campos da prática quanto aquela em que se viabiliza sua reapropriação. Con-
teórica e, mais do que isso, elas podem surgir da produção de taremos assim com um critério para estabelecer a distinção
pensamento em qualquer esfera da vida coletiva da assim entre essasmicropolíticas e o tipo de formações do incons-
chamada "alta cultura" à canção popular, passando pelas ciente que resulta de cada uma delas no campo social.
experimentações que se fazem, entre outras esferas, nas da Para evidenciar o que basicamente as difercnciaria, evo
sexualidade,da relação com o outro, da agricultura ou naquilo carei Lygia Cllark. Se recorro a essa artista brasileira é por-
que os povos indígenastêm insistido em nos dizer desde que ela inventou uma profusão de "proposições", como ela
que ousaram tomar a palavra publicamente em alto e bom mesma chamavaessaspráticas, que favorecem naqueles

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P'
dispostos a experimenta-las o acesso à sua própria potência . ela intitulou O antes é o depois. Inaugurava-se com esse
de criação e à eventual ativação do trabalho para dela rea- estudoum novo rumo de suaconhecida série Bichos,voltado
propriar-se, inviabilizando seu abuso o máximo possível. Em para a exploração da Êta de Moebius: uma superfície topoló
outras palavras,tais obras lhes proporcionam uma oportuni- gica na qual o extremo de um dos lados continua no avesso
dade de lançar-se num processo que os leve a driblar o poder do outro, o que os torna indiscerníveis e a superfície, uniface
do inconsciente colonial-capitalístico em suaspróprias sub-
jetividades; ou, no mínimo, de legitimar e fortalecer essepro-
cesso, caso o mesmo já esteja em andamento. Privilegiarem
apenas CamÍtzbczndo,a primeira dessas proposições da artista
e da qual surgiram todas as demais. A obra nos fornecerá a
base para aquilo que pretendo aqui explorar.

Caminhando com Lygia Clark pela superfície topológica

CczmZn/za?zdo data de i963. Sua criação é uma resposta sin-


gular a um dos desafiosque impulsionaram o movimento FITA DE MOEBIUS

das práticas artísticas nos anos l96o até i97o: ativar a


potência clínico-política da arte, sua potência micropolítica,
então debilitada por sua neutralização no sistema da arte.
O impulso que deu origem a essemovimento resultou de Em seu estudo para essaobra, a artista investigava sucessi-
um longo processo desencadeado pelas vanguardas do início vos cortes longitudinais na superfície de uma âta de Moebius,
do século XX, cujas invenções foram se capilarizando pela feita de papel. À medida que a investigação avança, Clark vai
trama social, interrompendo-se apenasdurante a Primeira sedando conta de uma experiência ímpar que ocorre no ins-
e SegundaGuerras Mundiais. Finda a SegundaGuerra, tal tante mesmo do ato de cortar. Aos poucos a artista decifra
capilarização retomou seu curso ainda mais radical e den o que essaexperiência Ihe revela: a obra propriamente dita
samente até gerar o amplo movimento social que sacudiu o se plasma nessa ação e na experiência que promove, e não
planeta nos anos i96o até meadosdos anos t97o, marcado no objeto que dela resultaria. Tal experiência consiste na
pela reapropriação da pulsão criadora em práticas coletivas abertura de uma outra maneira de ver e de sentir o tempo e
na vida cotidiana, muito além do campo restrito da arte. o espaço:segundoela, um tempo sem antesnem depois; um
A origem dessaproposição de Clark foi um estudo da espaçosem frente e verso, dentro e fora, em cima e embaixo,
artista para uma obra que posteriormente e não por acaso esquerda e direita. E mais, um devir da forma da tira de papel,

40 ESFERASDAINSURREIÇÃO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 41


7'
que acontece a cadavolta do recorte em sua superHcie, traz
FAÇA SEU PRÓPRIO CAM/NHANDO
a experiência de um tempo imanente ao ato de cortar. Essa
outra maneira de ver e de sentir Ihe dá, portanto, acessoà
experiência de um espaço que não precede o ato, mas dele
decorre e que, sendo assim, tampouco pode ser dissociado
do tempo. Em síntese: vivido dessa perspectiva, o espaço
surgiria dos deveresdas formas que vão sendo criadas na
superfície topológica da tira, produtos dasaçõesde corta-la.

Faça seu próprio Camín;zango

A revelaçãodeixa Lygia Clark perplexa e a leva a converter


essaexperiência numa proposição artística, para a qual ela
escolhe o nome Caminhando. Ela consiste em oferecer ao
público tiras de papel, tesouras e cola,junto com instruções
de uso breves e simples, com uma só ressalva: a cada vez
que se reencontre um ponto que se escolheraanteriormente
para perfurar a superfície, este deve ser evitado para pros-
seguirrecortando.

Aqueles que se dispusessem a viver essa obra teriam que se


apropriar dos objetos que Clark colocava à sua disposição.
Com eles, montariam sua própria âta de Moebius, fazendo
uma torção na tira de papel e colando a superHcie de uma das
extremidades ao avessoda outra. Deveriam então escolher um
ponto qualquer de sua superfície para, a partir dele, iniciar o
corte no sentido longitudinal e seguir cortando até que esta

42 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O l NCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 43


Y'
se esgotasse,não havendo mais espaço para novas perfura-
ções.Nessemomento, independentemente de ter sido ou não
respeitado a ressalva da artista, a tira voltava a ter duas faces,
readquirindo frente e verso, dentro e fora, em cima e embaixo,
esquerda e direita - deixava de ser uma superHcie topológica.
Certamente, não é à toa que a artista decidiu fazer essa
ressalva;ao contrário, de leva-la em consideração dependeria
a própria possibilidade de haver obra. É que o ato de cortar SEVOCEEVITAOS MESMOS
não é neutro: seus efeitos variam segundo o tipo de recorte PONTOS PARA SEGUIR
RECORTANDO
que cada um escolhe efetuar em seu "caminhando".
Se seguirmos a ressalva da artista e escolhermos um novo
ponto a partir do qual prosseguir cortando - a cadavolta que
dermos na superfície e nos depararmos com um ponto já
perfurado -, uma diferença se produzirá em suaforma e no
espaçoque se cria a partir dela.A forma irá semultiplicando
numa variação contínua, que somente se esgota quando já
não resta superfície alguma para recortar. A obra se efetua
na repetição do ato criador de diferença e nele se encerra.
Em suma, a obra propriamente dita é o acontecimento dessa
experiência.

44 ESFERAS DA iNSURRErçAO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 45


Y'
Não obstante, se não seguirmos as instruções da artista - e
insistirmos em voltar a recortar a partir de um ponto já per-
furado -, o resultado é a reprodução infinita de sua forma
inicial. Esta não cessaráde permanecer idêntica a si mesma,
a cada vez que repetirmos a escolha de nossa ação, até que
não haja mais lugar onde recortar. Nesse tipo de corte o ato é
estéril, não produz obra: o acontecimento da criação de uma
diferença na qual a obra como tal se plasmada.

SEVOCE ESCOLHESEMPRE
O MESMOPONTOPARA
SEGUIRRECORTANDO

SUASAÇOES PRODUZEM
DIFERENÇAS

46 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O l NCONSCI ENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 47


SUASAÇÕES REPRODUZEM O MESMO

Mas o que tudo isso teria a ver com reapropriar-se da potên-


cia de criação? Mais amplamente, o que tudo isso teria a ver
com deslocar-se da política de produção de subjetividade sob
domínio do inconsciente colonial-cafetinístico, na qual viabi-
liza-se a expropriação dessapotência?A resposta a essasper-
guntas depende dc examinarmos a experiência na qual esta
proposição se realiza como obra-acontecimento e, sobretudo,
a escolha da ação que a torna possível e o que a distingue das
escolhas que a impossibilitam.
Com essa intenção, o convido, leitor, a um exercício de
fabulação: prqete uma âta de Moebius sobre a superHcie do
mundo e o imagine como uma superfície topológica feita de
todo tipo de corpos (humanos e não humanos), em cone-
xões variadas e variáveis - o que nos permitiria qualiâcá-la
de "topológico-relacional". Imagine também que uma de suas
faces corresponda às formas do mundo, tal como moldado
em sua atualidade; enquanto que a outra corresponda às for-
ças que nele se plasmam em sua condição de vivo e também
aquelas que o agitam, desestabilizando sua forma vigente.
Imagine ainda que, como na âta de Moebius, tais faces sejam

48 ESFERASDAINSURREIÇAO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 49


indissociáveis, constituindo uma só e mesma superfície, uni-
face. De fato, não há forma que não seja uma concretização
do fluxo vital e, reciprocamente, não há força que não esteja
moldada em alguma forma, produzindo a sustentação vital da
mesma, como também suastransõgurações e inclusive sua
dissolução, num processo contínuo de diferenciação. Com
isto em mente, examinemos primeiro como apreendemos,
respectivamente, formas e forças, o tipo de experiências que
tais capacidadespromovem, bem como a dinâmica da relação AS DUAS FACESDA SUPERFÍCIE
que se estabelece entre ambas. TOPOLOGICO-RELACIONAL
DE UM MUNDO

Formas e forças: uma relação paradoxal

Assim como formas e forças são distintas, não são as mesmas


as capacidades por meio das quais registram-se os sinais de
cada uma delas. Do exercício de tais capacidades resultam
duas das múltiplas dimensões da experiência complexa que
designamos por "subjetividade". E assim como formas e for-
ças embora distintas são inextrincáveis, constituindo uma
só e mesma face da superfície topológico-relacional de um
mundo, tais capacidadesoperam simultânea e inseparável
mente na trama relacional que se tece entre os corpos que
a constituem a cada momento que tenhamos ou não cons
ciência das mesmas e independentemente do grau em que Os sinais das formas de um mundo são captados pela via da
mantenhamos atavacada uma delas para guiar nossas esco- percepção (a experiência sensível) e do sentimento (a expe-
lhas e as ações que delas decorrem. riência da emoção psicológica). De tais capacidades se com-
põe a experiência mais imediata que fazemos de um mundo,
na qual o apreendemos em sua concretude e seus atuais
contornos - aquilo que chamamosde realidade. São modos
de existência, articulados segundo códigos socioculturais,
que conâguram distintos personagens, seus lugares e sua

50 ESFERAS OA INSURREIÇÃO O l NCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALISTICO 51


distribuição no campo social, o que é inseparável da distribui- Examinemos agora a via de apreensão de um mundo
ção do acessoaos bens materiais e imateriais, suashierarquias que nos permite captar os sinais das forças que agitam seu
e suas representações. Tais cartografias e seus códigos orien- corpo e provocam efeitos em nosso próprio corpo - aqui,
tam esse modo de apreensão de um mundo: quando vemos, ambos em sua condição de viventes. Tais efeitos decorrem
escutamos, farejamos ou tocamos algo, nossa percepção e dos encontros que fazemos - com gente, coisas, paisagens,
nossos sentimentos já vêm associados aos códigos e repre- ideias, obras de arte, situações políticas ou outras etc. -,
sentações de que dispomos, os quais projetamos sobre esse sejapresencialmente, seja pelas tecnologias de informação
algo, o que nos permite atribuir-lhe um sentido. e comunicação à distância ou por quaisquer outros meios.
Proponho qualiâcar tal capacidade de "pessoal-sensorial- Resultam desses encontros mudanças no diagrama de veto-
.sentimental-cognitiva". Por meio dela se produz a experiên- res de forças e das relações entre eles, produzindo novos
e distintos efeitos. Introduzem se outras maneiras de ver
cia da subjetividade enquanto "sujeito", intrínseca à nossa
condição sociocultural e moldada por seu imaginário. Sua e de sentir, que podemos associar à experiência que Lygia
função é a de possibilitar que nos situemos na vida social: Cllark teve ao recortar sua âta de Moebius e que a levou a
decifrar suas formas, seus códigos e suas dinâmicas por meio criar Cczminhando.A essas outras maneiras, Gilles Deleuze
da percepção, da cognição e da informação, estabelecer rola e Félix Guattari deram o nome, respectivamente, de "per-
ções com os outros por meio da comunicaçãoe senti-las cepto" e "abeto".
segundo nossa dinâmica psicológica. Em resumo, decifrar os O percepto é distinto de percepção, pois consiste numa
sinais das formas nos permite existir socialmente. atmosfera que excede as situações vividas e suasrepresen-
Essemodo de apreensão do mundo nos é familiar por prin- tações. Quanto ao afeto, este não deve ser confundido com
cípio, porque é marcado pelos hábitos culturais que nos con- afeição,carinho, ternura, que correspondem ao sentido usual
duzem no cotidiano. No entanto, nas sociedadesocidentais e dessa palavra nas línguas latinas. É que não se trata aqui de
ocidentalizadas, sob o poder do regime colonial-capitalístico, uma emoção psicológica, mas sim de uma "emoção vital", a
a função que tal capacidade desempenha ganha um poder qual pode ser contemplada nessaslínguas pelo sentido do
desmesurado.É que na política de subjetivação dominante verbo afetar - tocar, perturbar, abalar, atingir; sentido que, no
entanto, não se usa em suaforma substantivada. Perceptos
nessescontextos tendemos a nos restringir à experiência
enquanto sujeitos e a desconhecer que se esta é sem dúvida e abetosnão têm imagem, nem palavra, nem gesto que lhes
indispensável por viabilizar a gestãodo cotidiano, a sociabi- correspondam enâm, nada que os expresse - e, no entanto,
lidade e a comunicação -, ela não é a única a conduzir nossa são reais, pois dizem respeito ao vivo em nós mesmos e fora
existência; várias outras vias de apreensão de um mundo ope- de nós. Eles compõem uma experiência de apreciação do
ram simultaneamente.Tal reduçãoé precisamenteum dos entorno mais sutil, que funciona sob um modo extracognitivo,
aspectosmedulares do modo de subjetivação sob domínio do o qual poderíamos chamar de intuição; mas como esta palavra
inconsciente colonial-capitalístico.

52 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALISTICO 53


pode gerar equívocos,: preâro chama-lo de "saber-do-corpo" exterior, como o é na experiência do sujeito; o mundo vive
ou "saber-do-vivo", ou ainda "saber eco-etológico". Um saber efetivamente em nosso corpo e nele produz gérmens de
intensivo, distinto dos conhecimentos sensível e racional pró- outros mundos em estado virtual.
prios do sujeito. A pulsação dessesmundos larvares em nosso corpo nos
Tal capacidade, que proponho qualiÊcar de "extrapessoal- lança num estado de estranhamento. Este se intensiÊca nas
-extrassensorial-extrapsicológica-extrassentimental-extra- sociedades ocidentais e ocidentalizadas, as quais abrangem
cognitiva", produz uma das demais experiências do mundo hoje o coqunto do planeta. É que a redução ao sujeito na polí-
que compõem a subjetividade: sua experiência enquanto tica de subjetivação que nelas prevalece implica em estarmos
"fora-do-sujeito", imanente à nossa condição de corpo vivo dissociados de nossa condição de viventes, o que nos separa
- a qual chamei de "corpo-vibrátil" e, mais recentemente, dos afetos e perceptos e nos destitui do saber-do-vivo. Com
de "corpo-pulsional". Nessa esfera da experiência subjetiva, a obstrução do acessoaos efeitos das forças do mundo em
somos constituídos pelos efeitos dasforças e suas relações nossocorpo, embora os mundos virtuais que eles engendram
que agitam o fluxo vital de um mundo e que atravessam sin- nos perturbem, somos impedidos de apreendê-los, o que
gularmente todos os corpos que o compõem, fazendo deles torna sua pulsação ainda mais estranha. Esse é um segundo
um só corpo, em variação contínua, quer se tenha ou não aspectoessencial do modo de subjetivação sob domínio do
consciência disto.
inconsciente colonial-capitalístico, inseparáveldo primeiro.
A função dessa capacidade é, portanto, a de nos possibilitar
existir nesse plano, imanente a todos os viventes, entre os
quais se estabelecem relações variáveis, compondo a biosfera o paradoxo disparador do desejo
em processo contínuo de transmutação. O meio de relação
com o outro nesseplano é distinto da comunicação,caracte- As experiências de cada uma das faces da superfície topológi-
rística do sujeito: podemos por ora chama-lo de "ressonân co-relacional do mundo funcionam segundológicas, escalas
cia" ou "reverberação", na falta de uma palavra que o designe e velocidades inteiramente díspares. Sendo elas simultâneas
mais precisamente. Aqui não há distinção entre sujeito cog- e indissociáveis e, ao mesmo tempo, irredutíveis uma à outra,
noscente e objeto exterior: o outro, humano ou não humano, a dinâmica da relação que se estabelece entre ambas não é de
não se reduz a uma mera representação de algo que Ihe é uma oposição, mas sim de um paradoxo. Tal dinâmica nunca
desemboca em síntese alguma (nem sequer dialética), tam-
8 0s sentidos usuais da palavra "intuição" tendem a estar marcados pela perspec pouco na dominação ou na anulação de uma pela outra(como
uva exclusiva do sqeito, ao qual se encontra reduzida a experiência subjetiva em prometem certas teorias do desenvolvimento cognitivo e psi-
nossa cultura e que resulta em seu logocentrismo. Desta perspectiva, todo e qual
cológico, que mais são ideologias que sustentam o império do
quer modo de deciítação do mundo que seja distinto do modo cognitivo, próprio
do sujeito, é considerado inferior. Chega-seinclusive a demonizar a intuição, em sÜeito, próprio da cultura moderna ocidental colonial-capi-
momentos em que suaexpressãoameaçademasiadamente o sfafus qzzo. talística). Em suma, tal relação não desemboca em qualquer

54 ESFERASDA iNSURRnçÃO O lNCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALISTICO 55


tipo de harmonia ou estabilidade permanentes; ao contrário, de alarme que convoca o desejo a agir, de modo a recobrar
por ser paradoxal ela é por princípio incontornável, produ- um equilíbrio vital, existencial e emocional. O desejo é então
zindo uma tensão constante, que varia apenas em grau. impelido a fazer cortes na superfície topológico-relacional
Sendo assim, os mundos virtuais engendrados na expe- do mundo que devolva à subjetividade um contorno, uma
riência das forças produzem uma fricção com a experiência direção e seu sentido.
das formas moldadas segundo as cartograâas socioculturais
vigentes. A razão é simples: o fato de tais cartograâas serem
a materialização de arranjos de forças anteriores distintos O ESTRANHO-FAMILIARCOLOCA
UMA
do anual,pois resultam de outros corpos e outras conexões INTERROGAÇÃOPARA A SUBJETIVIDADE

entrc eles impede a expressão dos mundos virtuais gerados


pelo novo arranjo de forças no presente.A subjetividade se
vê lançada na experiência de um estado concomitantemente
estranho e familiar, o que desestabiliza seu contorno e as
imagens que ela tem de si mesma e do mundo, provocando-
Ihe um mal-estar. Gera-se com isso uma tensão entre, de
um lado, o movimento que pressionaa subjetividade na dure
ção da "conservação das formas em que a vida se encontra
materializada" e, de outro, o movimento que a pressionana
direção da "conservação da vida em suapotência de germi-
nação", a qual só se completa quando tais embriões tomam A INTERROGAÇÃOÉ UM SINAL DE ALARME VITAL
consistência em outras formas da subjetividade e do mundo, QUECONVOCAO DESEJOAAGIR

colocando em risco suas formas vigentes. Tensionada entre


essesdois movimentos, a subjetividade converte-se num
grande ponto de interrogação, para o qual terá que encon-
trar uma resposta.
Podemos chamar esse ponto de interrogação tensionante
de "inconsciente pulsional".P Ele é o motor dos processos de
subjetivação:a pulsaçãodo novo problema dispara um sinal

g A noção de "inconsciente pulsional", que adotamos aqui, inspira-se no


modo como esta vem sendo trabalhada pelo psicanalista e teórico brasileiro
Jogo Pera Schiavon. Nota 7 deste ensaio.

56 O lNCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALISTICO 57
ESFERAS DA INSURREIÇÃO
E exatamente no momento em que o desejo é convocado a
POLÍTICAS DO DESEJO EM SUAS AÇÕES PENSANTES
agir que se deânirão suaspolíticas e aquilo que as distingue,
as quais correspondem a diferentes regimes do inconsciente
pulsional. Para descrevê-las, sugiro que voltemos ao Cami-
nhando que nos propõe Lygia Clark, lembrando agora dos dois
tipos de corte na superfície da âta de Moebius que essapro-
posição nos permitiu acompanhar.

Fabulando dois polos opostos de políticas do desejo MICROPOLITICA


ATIVA MICROPOLITICAREATIVA

Aqui o convido, leitor, a retomar seu exercíciode fábula


ção. Primeiro projete na superfície topológico-relacional do Evidentemente, essas posições diametralmente opostas são
mundo a ação de recortar. Em seguida, considerando que casos de âgura âccionais: elas jamais dominam totalmente a
o desejo é o que age em nós, imagine aqueles dois tipos de orientação do desejo, nem existem em estado puro. Oscilamos
corte como correspondendo a duas políticas das ações do entre várias micropolíticas ou posições mais ou menos próxi-
desejo frente à interrogação que o colocou em movimento masde uma ética da existência que, em maior ou menor grau,
já sabendo,pelo que vimos em CamÍn/lande,que a escolha variam em cada momento de nossas vidas e ao longo de seu
de onde e como cortar a superfície não é neutra. Imagine transcurso. Do mesmo modo, é equivocado pensar o corpo cole-
então que as duas políticas do desejo em questão ocupariam tivo - formado pelo embate entre diferentes vetores de força do
os extremos opostos no vasto e complexo espectro de micro- impulso vital do qual decorre a construção da realidade como
políticas que orientam suas ações no atual regime, de cujo homogêneo e muito menos estável, seja na posição de deixar
embate resultam os destinos da realidade da posição do que essa força seja apropriada, seja naquela que resiste à sua
desejo mais submissa ao regime de inconsciente colonial-ca- apropriação e inventa outros mundos, com outro regime do
pitalístico, na qual se daria uma entrega total à expropriação inconsciente a orientar suasformações. Se valer-se dessearti-
da força de criação, à mais desviante, na qual se daria sua total fício pode nos ser útil, é apenas porque nos permitirá distinguir
reapropnaçao com mais nitidez as características essenciaisdas micropolíti-
cascom poder potencial de escapardo domínio do inconsciente
colonial-cafetinístico daquelas que, ao contrário, nos levam a
nos submeter a ele e reproduzi-lo ao inõnito. Isso nos permitirá
igualmente explorar o tipo de formações do inconsciente que
resulta de cada uma dessas micropolíticas no campo social.

58 ESFERAS )A INSURREIÇÃO O INCONSCIENTECOLONIAL-CAPITALÍSTICO 59


Micropolítica atava e sua bússola ética inabituais da superfície para fazer seu corte, buscandovias
de passagempara a germinação e o nascimento do referido
Peço que se lembre primeiro do tipo de açãodo desejo que embrião de mundo que habita silenciosamente o corpo A
evita fazer cortes em pontos anteriormente escolhidos, tal atualização desse mundo em estado virtual que seu gérmen
como em CamZzz;zango
quando se leva a sério a ressalva de anunciase efetuará por meio da invenção de algo uma ideia,
Lygia Cllark. Imagine agora esse tipo de corte sendo feito na uma imagem, um gesto, uma obra de arte, entre outros; mas
superfície topológico-relacional de um mundo, na qual ope- também um novo modo de existência,de sexualidade,de ali-
ram-se as ações do desejo. mentação,uma nova maneira de relacionar-se com o outro,
Pois bem, essapolítica do desejo é própria de uma subje- com o trabalho, com o Estado ou com qualquer outro ele
tividade que habita o paradoxo entre suas duas experiências mento do entorno. Sejaqual for essealgo, o que conta é que
simultâneas, como sujeito e fora-do-sujeito. Uma subjetivi- ele carregue consigo a pulsação intensiva dos novos modos de
dade que conseguesustentar-se na tensão entre as forças ver e de sentir - que se produziram na teia de relações entre
que delas emanam, as quais desencadeiam os dois movimen- os corpos e que habitam cada um deles singularmente -, de
tos paradoxaisque constituem o inconsciente pulsional. E modo a torna-los sensíveis. Em outras palawas, o que importa
que logra igualmente manter-se alerta aos efeitos dos novos é transduzir'' o abetoou emoçãovital, com suasrespectivas
diagramas de forças, gerados na experiência intensiva de
qualidades intensivas, em uma experiência sensível seja pela
novos encontros e tolera as turbulências que tais encontros via do gesto, da palavra etc.-, e que esta se inscreva na super'
provocam em sua experiência como sujeito precisamente fície do mundo, gerando desvios em sua arquitetura atual.
as turbulências que a lançam no estado estranho-familiar. Como em Camí7z;za7zdo, imagine que nesse tipo de corte a
Ou seja, trata-se aqui de uma subjetividade que está apta a forma inicial da superfície topológico-relacional do mundo
sustentar-se no limite da língua que a estrutura e da inquie vá se multiplicando e se diferenciando, num processo con-
tação que esseestado Ihe provoca, suportando a tensão que tínuo de composição e recomposição. Nessamicropolítica,
a desestabiliza e o tempo necessário para a germinação de as ações do desejo consistem portanto em atos de criação
um mundo, sua língua e seussentidos. É que ela sabe(extra- que se inscrevem nos territórios existenciais estabelecidos
cognitivamente) sem saber (cognitivamente) que cortar a e suas respectivas cartograâas, rompendo a cena pacata do
superfície nos mesmos pontos não Ihe devolveria o equi- instituído.
líbrio, pois a manteria conânada na forma que perdeu seu
sentido, cuja falência é responsável por sua desestabilização.
O que orientará o desejo em seus cortes, nesse caso, é a
busca de uma resposta ao ponto de interrogação que se colo-
cou para a subjetividade ao se ver destituída de seus parâme-
io "Transdução" é uma noção da Física que corresponde a um processo por
tros habituais. Em suasações,ele se conectará com pontos meio do qual uma energiatmnsforma-se em outra de naturezadistinta.

60 ESFERAS DA INSURREIÇÃO 61
O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO
MICROPOLITICA ATAVAE
SUA BUSSOLA ETICA

62 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O INCONSCIENTE COLONIAL-CApITALÍSTIC 63


Nessecaso de figura, o motor do desejo em suas açõespen
sentesé a vontade de conservação da própria vida em sua
essência vontade radicalmente distinta daquela que quer
conservar a cartografia em curso. No entanto, a conserva-
ção da vida não se dá separadamente das formas vigentes na
superfície do mundo; lograr conserva-la depende de nego-
ciar com tais formas, de modo a encontrar os pontos onde
o desejo poderá perfurar a superfície do mundo para neles
inscrever os cortes da força instituinte. Uma bússola ética
o guia: sua agulha aponta para as demandas da vida em sua
insistência em persistir, mantendo-se fecunda, a cadavez que
DRIBLA
sevê impedida de fluir na cartografia do presente. Tal bússola
orienta as açõesdo desejo no sentido da criação de uma dife-
rença: uma resposta que seja capaz de produzir efetivamente
um novo equilíbrio para a pulsão vital, o que depende de seu
poder de atualizá-la em novas formas. Esta é a natureza do
que se pode chamar de um "acontecimento", o qual é produ-
zido por este tipo de política do desejo: um devir da subje-
VIDA NOBRE, tividade e, indissociavelmente, do tecido relacional no qual
PROLIFERAVIDA
gerou-se sua turbulência e seu ímpeto de agir.
VIDASINGULAR,
UMAVIDA Regido por essa micropolítica, o desejo cumpre sua fun-
ção ética de agente ativo da criação de mundos, próprio de
uma subjetividade que busca colocar-se à altura do que Ihe
acontece. E se ampliamos o horizonte de nosso olhar para
abranger a superfície do mundo tal como ela se configura na
atualidade, constataremos que estamos diante da micropolí-
tica de uma vida, individual ou coletiva, que logra reapropriar-
se de suapotência e, com ela, driblar o poder do inconsciente
colonial-capitalístico que a expropria. Em suma, uma vida que
logra orientar-se por uma ética pulsional. Vida nobre, prolí
fera vida, vida singular, uma vida.

64 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O INCONSCIENTECOLONIAL-CAPITALÍSTICO 65


l

Micropolítica reativa e sua bússola moral É evidente o teor alucinatório dessa imagem de uma con
servaçãoeterna do status qao de si e do mundo, pois se tal
Peçoque imagine agora, leitor, o tipo de ação na superfície conservação de fato ocorresse, isto implicaria no estanca
topológico-relacional do mundo de um desejo que insiste eH mento dos fluxos vitais que animam a existência de ambos,
escolher pontos já conhecidos para fazer seus cortes como
o que no limite significaria sua morte. O que, no entanto,
em Cami7z;zango quando não se leva em conta a ressalva de leva a subjetividade à crença nessa miragem é o medo de que
Lygia Clark. Esse tipo de corte corresponderia ao outro caso a dissolução do mundo estabelecido carregue consigo sua
de âgura Êccional, situado no extremo oposto do amplo leque própria dissolução. É que, sendo o sujeito estruturado na car-
de micropolíticas possíveis:a da posição mais submissa ao
tografa cultural que Ihe dá sua forma e nela se espelha como
inconsciente colonial-cafetinístico. Como é essajustamente a se fosse o único mundo possível, da perspectiva dessetipo
micropolítica que viabiliza a expropriaçãoda força de criação, de subjetividade reduzida ao sujeito e que com ele se con
esmiucemos mais detidamente sua dinâmica.
funde, o desmoronamento de "um mundo" é interpretado
Diferentemente do modo de subjetivação que acabamosde como sinal do âm "do mundo", bem como de seu "suposto
vislumbrar, essapolítica do desejo é própria de uma subjetividade si mesmo". Sea tensão entre estranho e familiar Ihe traz
reduzida à sua experiência como sujeito, na qual começa e ter- esseperigo imaginário é porque, assim limitada ao sujeito,
mina seu horizonte. Por estar bloqueada em sua experiência fora- a subjetividade desconhece o processo que leva à constante
-do-sujeito, ela se toma surda aos efeitos das forças que agitam transmutação de si e do mundo, por não ter como nele sus-
um mundo em suacondição de vivente, ignorando aquilo que o tentar-se. Impossibilitada de imaginar um outro mundo e
saber-do-corpo Ihe indica. O gérmen de mundo que a habita é de se reimaginar distinta do que considera ser seu suposto
por ela vivido como um corpo a tal ponto estranho e impossível si mesmo, ela se protege acreditando que "esse mundo", o
de absorver que se torna aterrorizador, razão pela qual deverá ser seu, pode durar tal e qual para sempre. Tomada pelo medo
calado a qualquer custo e o mais rapidamente possível. que provoca esse perigo imaginário de desfalecimento, ela é
Esse tipo de subjetividade vive o universo exclusivamente invadida por fantasmas que a assombram seres de imagens
como um objeto que Ihe é exterior e o decida apenas da pers- que se proyetam sobre suas experiências, a mantendo sepa-
pectiva de sua experiência como sujeito. A imagem de si que rada das mesmas. Os fantasmas levam a subjetividade a uma
resulta dessaredução é a de um indivíduo um todo indivisível. interpretação equivocada do mal-estar da desestabilização
como o próprio tempo indica. É a imagem de uma suposta uni- que essa experiência paradoxal Ihe provoca, o qual é por ela
dade cristalizada separada das demais supostas unidades que vivido como "coisa ruim". Assim interpretado, tal mal-estar
constituiriam um mundo, o qual é indissociavelmenteconce- converte-se em angústia do sujeito.
bido aqui como uma supostatotalidade, organizadasegundo
uma repartição estávelde elementos fixos, cada um em seu
suposto lugar, igualmente fixo.

66
ESFERASDAINSURREFÇÃO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 67
MICROPOLITICA
REATIVAE
SUA BÚSSOLA MORAL

SUBMETENDO-SEAO INCONSCIENTECOLONIAL-CAPITALISTICO

VIDA GENÉRICA, VIDA MÍNIMA, VIDA ESTÉRIL, MÍSERA VIDA

68 O l NCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALISTICO 69
ESFERASDAINSURREIÇÃO
Diferentemente da micropolítica correspondente ao polo
T'
ou um outro qualquer escolhido para desempenhar o papel de
oposto que descrevemosanteriormente, trata-se aqui de vilão. Em outras palavras, ou a subjetividade introjeta a causa
uma subjetividade que não consegue sustentar-se na tensão de sua desestabilização como uma suposta deâciência de si
do paradoxo entre suasexperiênciascomo sujeito e fora-do mesma,o que impregna suaangústia de sentimentos de infe-
.sujeito, tampouco entre os movimentos paradoxais que sua rioridade e vergonha;ou ela a projeta numa suposta maldade
fricção desencadeia,dos quais se constitui o inconsciente pul- que Ihe estaria sendo endereçada de fora, o que impregna sua
sional. O que orientará os cortes do desejo,nessecaso, será, angústia de sensações paranoides, ódio e ressentimento.
pois, o evitamento do ponto de interrogação pulsional que a
vibração do gérmen de mundo coloca para a subjetividade. O
desejo é convocado a recobrar um equilíbrio apressadamente Quando a autodepreciação e a vergonha interrompem a
e o faz orientado por uma bússolamoral, cuja agulhaaponta germinação de um mundo
para a cartografia na qual a vida se encontra materializada na
superfície tipológico-relacional do mundo em sua forma atual. No primeiro caso,o da introjeção, na intenção de aplacar
A agulha moral conduz o desejo na direção do rastreamento o sentimento de autodepreciaçãoe vergonha, o desejo
de modos de existir e representações - ambos resultantes de escolherá o ponto da superfície topológica-relacional do
cortes anteriores - para encontrar um ponto onde apoiar seu mundo mais obviamente adequadoa esseâm. São os pro-
corte, de maneira que a subjetividade possa rapidamente refa- dutos de tarja preta da indústria farmacológica, cujo mer-
zer para si um contorno reconhecível e livrar-se temporaria- cado alimenta-se precisamente desse desalento e também
mente de sua angústia. o alimenta, contribuindo para sua perpetuação, já que con-
O mundo converte se, assim,num vasto e variado mer- ârma a interpretação fantasmática de sua causae a angústia
cado, onde a subjetividade tem a seu dispor uma inanidade que Ihe provoca ao patologizar a experiência da desestabi-
de imagens para identificar-se e com as quais estabelecerá lização." O uso que a subjetividade deles fará, sejam quais
uma relação de consumo que Ihe permitirá recobrar o alí- forem, visa nesse caso a neutralização de sua angústia. O
vio fugaz de um quimérico equilíbrio. A escolha do desejo fato de suatensão ser quimicamente controlada não implica
de onde fazer o corte nesse opulento mercado depende do
repertório de cada subjetividade e da interpretação que faz n Um exemplo acerca da patologlzação da experiência da desestabilização por
da razão de seu desconforto. parte da psiquiatria que chega a ser caricatural, para não dizer patético, é o diag-
nóstico de "bipolar' com o qual alguns psiquiatras classificam aquilo que eles
Sendoo desconforto interpretado como "coisa ruim", consideram ser a suposta "doença dos artistas". Desta perspectiva, interpreta
evidentemente alguém tem que ser o culpado. Reduzida ao se como "depressivo" o estado de suspensãoem que se encontra a subjetivi-
sujeito, a subjetividade só dispõe de duas opções para determi- dadedo artista quando está em pleno processo de criação, desencadeadopor
um gérmende mundo que a habita, mas que ainda não encontrou a expressão
nar de quem é a culpa por seu estado instável, sendo ambas as adequada para trazê-lo para o sensível; e de "eufórico" ou "maníaco", o estado
opçõesfruto de construções fantasmáticas: o próprio sujeito de gozo vital que se experimenta quando tal gérmen encontra sua expressão.

70 ESFERASDA INSURREEÇAO O INCONSCIENTE COLONIAL-CApITALÍSTICO 71


em absoluto que a subjetividade se colocará mais disponível
T' uma íilosoíia ou uma ética da existência do que uma religião
para escutar o que seu saber eco-etológico Ihe assinala - propriamente dita, no sentido em que os ocidentais tendem
disponibilidade para a qual, aliás, o uso de certos químicos a concebê-la e pratica-la. No entanto, quando essasâlosoíias
poderia eventualmente contribuir. É que os químicos aqui sãopraticadas por subjetividades reduzidas ao sujeito, elas
ministrados neutralizam não só sua angústia, mas igual- tendem a converter-se em religiões. O saber-do-vivo é então
mente os afetos que a provocaram e tampouco viabilizam a projetado csotericamente em supostas entidades superiores,
recomposição de seu contorno anterior. Como os medica- e os rituais cuja função seria leva-los a se apropriarem de tal
mentos não Ihe trazem a resposta esperada,na insistente saber convertem-se em berçários para ninar brancos desam-
ilusão de poder refazer-seum equilíbrio mantendo-se no parados e carentes que adquirem com isso uma autoimagem.
mesmo lugar a todo custo, outros pontos ainda, já conheci- Em seu mundo esotérico, tal imagem corresponde ao que eles
dos, deverão ser escolhidos pelo desejo para a eles conec- chamam de seres "evoluídos" e "espiritualizados", o que os
tar-se e neles fazer seus cortes. acalma por um breve momento, permitindo-lhes manter-se
Paraatribuir um sentido ao sem sentido do estadoem no mesmo lugar. Sejam quais forem as receitas para adquirir
que a subjetividade se encontra, o desejo fará suas cone- a tal suposta paz, elas provocam alucinações fantasmáticas
xões e cortes em pontos de produtos discursivos oferecidos que se sobrepõem à avaliação da realidade, acompanhadas
por traâcantes de receitas de uma paz redentora. A oferta é de rituais obsessivos que permitem ao sujeito canalizar a
abundante: terapias de treinamento de autoestima, livros de energia de sua angústia em ações que Ihe devolvam a ilusão
autoajuda ou de anúncio de um suposto new age, ideologias de controle. Nessemesmo registro, o desejo também poderá
de toda espécie,igrejasevangélicas''do tipo fundamentalista conectar a subjetividade a complexos discursos intelectuais
que proliferam a tal ponto que podem ser encontradas em dos quais, nesse caso, fará igualmente um uso alucinatório,
qualquer esquina do planeta. Poderá também consumir reli os reduzindo a esqueletos de uma retórica seca e vazia, des-
giões orientais que, em princípio, teriam o poder potencial tituída da carne de um corpo vivo. Em suma,um tipo de rela-
de levar a subjetividade a experiências de (re)conquista do ção com tais discursos que neutraliza sua potência de afetar
saber-do-vivo e seu desenvolvimento ao longo da existência, e a ressonância que tais abetospoderiam encontrar no lei-
já que atribuem esse saber aos humanos e não a um suposto tor, favorecendo suaprópria reapropriação ou ampliação do
deus e trabalham seu desenvolvimento do nascimento até a saber-do-vivo.
morte em rituais individuais e coletivos. Isto faz delas mais Na verdade,tanto faz qual será o ponto discursivo elegido
para o corte da assim chamada "baixa cultura" às mais
iz O movimento evangélico não se reduz a estas vertentes fundamentalistas; há soâsticadaspiruetas íilosóâcas. É que da perspectiva dessa
vertentes, inclusive, que vêm desenvolvendo um trabalho comunitário na linha
política de desejo, diferentes visões de mundo passama equi-
da Teologia da Libertação proposta pela Igreja Católica e que substitui em parte
o trabalho por ela realizado mais ampla e intensamente nos anos ig6o e i97o. Daí valer-se, já que a relação que a subjetividade estabelece com
ítisar que setrata, nestecaso,de igrejasevangélicas"do tipo fundamentalista' qualquer uma delas é a mesma: seu consumo para recobrar

72 ESFERAS OA INSURREIÇÃO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 73


temporariamente uma voz por meio de seu mero eco. Seja Quando o ódio e o ressentimento interrompem a
qual for a visão aditada, ela é usada como um discurso-clichê germinação de um mundo
que serve de guia para uma subjetividade que, dissociada de
sua condição de vivente, não tem como saber o que Ihe acon No segundo caso, em que a causa do mal-estar é interpre
tece e, muito menos, encontrar palavras para dizê-lo. Em seu toda pela subjetividade como sendo a maldade que Ihe esta-
lugar, ela consome palavras alheias envoltas numa aura de ria sendo supostamente direcionada de fora, o desejo elegerá
verdade, que Ihe permite idealiza-las e, através de sua mime- como ponto para seu corte algo que Ihe sirva de bode expiató-
tização, livrar-se da autodepreciação. É isto que a torna presa rio. Um corpo que a subjetividade esvazia de sua singularidade
fácil de qualquer imagem ou discurso e a faz acata-las como para transforma-lo em tela branca sobre a qual projetará a
palavras de ordem. razão de seu mal-estar que então se converte em ódio e res-
Mas só os químicos e as plataformas discursivas não sentimento. E esseoutro demonizado pode ser uma pessoa,
garantem a composição de um contorno que devolva à sub um povo, uma cor de pele, uma classesocial, um tipo de sexua-
jetividade um equilíbrio. É que para livrar-se da vergonha e lidade, uma ideologia, um partido, um chefe de estado etc. São
do medo de exclusão que sua autodepreciação Ihe provoca, asxenofobias, as islamofobias, ashomofobias, astransfobias e
a subjetividadeterá que mimetizar também estilos de vida outras tantas fobias, assim como os racismos, os machismos,
que Ihe devolvam, como as palavras, a sensação de pertenci- os chauvinismos, os nacionalismos e outros ismos. Isto pode
mento, condição para sentir-se existindo. Para isso, o desejo levar a ações extremamente agressivas, cqo poder de contágio
a conectará a produtos que o mercado oferece para todos os tende a criar as condições para o surgimento de uma massa
gostos e segmentos sociais, sedutoramente veiculados pelos fascista. Não nos faltam exemplos disto na atualidade: para
meios de comunicação de massa.Tais produtos consistem ficar apenasno casodo Brasil, basta citar um dos fenómenos
em narrativas que transmitem imagens de mundos, sempre que ocorreram durante a campanhamidiática que preparou
apresentadasem cenários idílicos protagonizados por per- o terreno para o recente golpe de estado. Manifestaçõesde
sonagens idealizados. Deslumbrada, a subjetividade tentará rua reuniam milhares de pessoas,muitas delas vestidas com a
mimetizá-los por meio do consumo de mercadorias associa- bandeira do País, clamando fervorosamente pelo í7mpeac/zmenf
das a tais cenários fornecedores de performances prêt-à'For- da presidenta Dilma RousseH- alguns, muitos, chegando ao
re?"(no caso da publicidade essadinâmica é mais evidente). cúmulo de pedir a volta da ditadura militar.
Como os remédios de tarja preta, as igrejas, as ideologias, os Sejamquais forem os pontos escolhidos para o corte em
estimuladores de autoestima e os complexos discursos inte- ambosos casosde interpretação fantasmática da causado mal-
lectuais, tais mercadorias são usadas como perfumes para -estar provocado pela desestabilização introjeção ou projeção
disfarçar o odor infecto de uma vida estagnada. -, as ações do desejo regidas por uma micropolítica reativa têm
por efeito a diminuição da potência da condição de vivente, pro-
duzindo uma espécie de anemia vital, mas nem por isso menos

74 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAplTALÍSTICO 75


l

presente e poderosa em seus efeitos. Como naqueles cortes da desejante de criação de mundos nos quais se dissolveriam os
fita de Moebius em Camitz/zangoquando se ignora a ressalva de elementos da cartografia do presente em que a vida se encon-
Lygia Clark, da política de desejo reativa resulta a eterna repro- tra asfixiada. Assim dissociada,a subjetividade está pronta
dução das formas do mundo em sua atual conõguração. para deixar que esta potência seja cafetinada pelo capital, e
Sob o impacto de uma micropolítica reativa regida por uma é o próprio desejo que orientará suas ações nessa direção,
bússola moral, a subjetividade dissocia-se ainda mais do que fazendo com que a pulsão passea gozar nesselugar.
Ihe acontece. E, se ampliamos o horizonte de nosso olhar para Regido por essetipo de micropolítica, o desejo passa a fun-
abrangera superfície topológico-relacional do mundo tal como cionar como agente reativo que interrompe o processo de cria-
conâgurada na atualidade, constataremos que o que se debilita ção de mundos. Como os gérmens de mundo que habitam
é precisamente a potência coletiva de criação e cooperação, os corpos engendram-se no encontro entre eles, formando
condição para a construção do comum, a qual emanado poder o campo que os atravessaa todos e faz deles um só corpo,
de insurgir-se e, ao mesmo tempo, o fortalece. Ao contrário, o a interrupção de suagerminação na vida de um indivíduo é
que será gerado é a conservação do status que: assim é a micro também, indissociavelmente, um ponto de necrose da vida de
política de uma existência, individual ou coletiva, que deixa seu entorno. Em outras palavras, cada vida que não se coloca
sua potência vital criadora ser expropriada, e entrega-se por à altura do que Ihe aconteceprejudica a vida de toda suateia
livre e espontâneavontade, chegandoaté a fazê-lo com fervor. relacional: o veneno que se produz propaga-se como uma
Em síntese, comparando as políticas atava e reaviva das peste por seus fluxos e os intoxica, estancando seu processo
açõesdo desejo,na primeira um novo equilíbrio se faz efe- contínuo de diferenciação. Estes são os efeitos de uma vida
tivamente, por meio de um ato de criação que transmuta a sujeitado ao poder perverso do inconsciente colonial-capitalís-
realidade com sua força instituinte; enquanto, na segunda, tico. Uma vida genérica,vida mínima, vida estéril, mísera vida.
o equilíbrio se refaz fictícia e fugazmente por um ato que,
na verdade, interrompe o destino da "potência de criação"
própria da vida para reduzi-la à "criatividade". Sendo a cria- Quando o abuso perverso se retina
tividade apenas uma das capacidades indispensáveis para o
trabalho de criação, quando esta dissocia-se do saber-do- No contexto do capitalismo globalitário ânanceirizado, como
-corpo torna-se estéril e não faz senão recompor o instituído. vimos, transmuta-se, resina-see se intensiâca o abuso per-
O desejo deixa, aqui, de agir em sintonia com o que a vida Ihe verso da força de trabalho (no sentido amplo de todo tipo
demanda, desviando-se assim de sua função ética. de ação em que se materializa o movimento da força vital)
É nisso que reside o veneno da micropolítica imanente à abuso que constitui a essência da tradição colonial-capitalís-
cultura moderna ocidental colonial-capitalística. Seusefei- tica. Já estamos distantes do regime identitário que estrutu-
tos tóxicos sãoa separaçãoda subjetividade de suaforça pul- rava a subjetividade no fordismo e Ihe atribuía a forma de sua
sional de germinação e suas sequelas: estanca-se a potência força de trabalho (aqui no sentido literal) e de cooperação

76 ESFERASDA l\SURREIÇAO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALISTICO 77

.J
Produz-se em sua nova dobra uma subjetividade flexível mercadorias encontram na fragilidade e em sua interpre
gestora de sua própria potência pulsional, o que, como men- taçãofantasmática pelo sujeito que nela projeta o perigo de
cionado no início, pareceria favorecer sua liberdade de Ihe exclusão, seja por autodepreciação ou por persecutoricdade
imprimir um destino de expansãovital. No entanto, pelo fato paranoide a base para seu consumo garantido, podendo
da subjetividade estar reduzida ao sujeito, o desejo tende a assim multiplicar-se ao infinito. luas a operação de incre-
desviar tal potência de seu destino ético, na esperança de Ihe mento da fragilidade não para por aí: ela é também usada na
garantir sua suposta estabilidade e sua sensaçãode pertenci- estratégia de poder introduzida pela nova versão do regime,
mento. Clom isso, o que segera nesseprocesso são formas de na qual aliam-se procedimentos micropolíticos aos tradicio-
existência das quais se extrai livremente capital económico, nais procedimentos macropolíticos, numa tríplice aliança
político e cultural. É, portanto, por meio dasaçõesdo próprio composta pelos poderes Judiciário, Legislativo e mediático.
desejo que a subjetividade alimentará a acumulação de capi-
tal e seu poder, oferecendo-se gozosamente ao "sacrifício"
como a trabalhadora do sexo que, enquanto não cai a bicha,se Quando o poder se vale do desço como suaprincipal arma
oferece ao cafetão na esperança de que este Ihc garanta não
só a sobrevivência, mas o próprio direito a existir. Se,desde o capitalismo industrial, os meios de comunicação
Por si só, isto já seria o suficiente para fomentar a pro- de massavêm constituindo um importante equipamento
dução de um desejo reativo. Mas há outros favores que con- do poder, sob a nova versão do regime ela ganha um pro-
tribuem para que esse seja o destino predominante da força tagonismo sem precedentes, sobretudo graças aos avanços
pulsional, agora supostamente autogerida. Com os avanços tecnológicos que permitem uma comunicação generalizada
dastecnologias de informação e comunicação,que no atual em tempo real. Um exemplo é o que vem se fazendo em
regime são cada vez mais velozes, o mal-estar do paradoxo, vários países da América do Sul, na última década. Clom base
impulsionador dos processos de subjetivação, faz-se mais na edição de informações selecionadas numa aliança entre
frequente e mais intenso. A subjetividade íiexível é inces investigaçõespoliciais e poder Judiciário, a mídia constrói
santemente bombardeada por imagens de mundo e narra- narrativas que, veiculadas em tom dramático, ampliâcam e
tivas - o que se agravacom suaproliferação robótica que as agravam a imagem da crise económica e do perigo de que
multiplicam ao inânito -, as quais tornam seusjá efémeros ela seria portadora. Isso alimenta a busca desesperadadas
contornos ainda mais rapidamente caducos.Diante disso, subjetividades por uma saída, a qual lhes será oferecida pela
por estar reduzida ao sujeito, aumenta sua vulnerabilidade a mesma narrativa, na âgura âctícia de um personagem bode
submeter-se a respostas prof-à'poder as quais, como já assi- expiatório sobre quem cairia a culpa pela situaçãode crise,
nalado, essesmesmos meios Ihe oferecem em abundância. também íicticiamente armada. Assim como a construção da
Essa dinâmica cria o solo que sustenta aspectos essenciais narrativa se baseia em informações reais que são, no entanto,
do novo regime. Sua vantagem para a economia é óbvia: as selecionadas e editadas, também desempenharão o papel de

78 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O l NCONSCIENTE COLONIAL-CAplTALÍSTICO 79


bode expiatório figuras ou partidos que se quer eliminar da são as eleições mascaradas de expressão da vontade popular
cena política, em torno dos quais foca-se precisamente a sele- - uma vontade que é, na verdade, mero fruto de manipula-
ção e a edição de informações. ção populista através dos procedimentos acima referidos. A
Veiculadas dia após dia, várias vezes repetidas e com dife- segunda são as operações fraudulentas no momento da vota-
rentes timbres de dramaticidade, tais narrativas oferecem uma ção, e a terceira, o {mpeachmenfdos governantes no poder,
pletora de sinais que conârmam a cenatemida portadora do quando necessário. Este é realizado pelo parlamento, disfar-
perigo de desagregaçãoeminente, fabulada por uma subjetivi- çado de recuperação da democracia por uma ficção jurídica
dade reduzida ao sujeito. Sucumbida ao medo, ao ponto em que que Ihe asseguraa legitimidade e seu amplo apoio popular
esteultrapassa o limite do metabolizável e toma-se traumático, - uma legitimidade que, nesse caso, é manobrada pela divul-
ela estápronta para agarrar-seao conto do bode expiatório para gaçãomidiática massiva de tal acção. Se golpes de Estado
nele projetar a causa de seu mal-estar, como sua única saída, ou efetuados pela força das armas militares interessavam ao
pelo menos a mais imediatamente disponível. E,portanto, com capitalismo industrial, estesjá não interessam ao capitalismo
alívio que tais narrativas são recebidas e adoradas como verdade íinanceirizado. Estados totalitários são uma pedra no sapato
por cadaum que,juntos, somam muitos. É que elasjustiâcam para a livre circulação de capitais, além do fato de estetipo
o mal-estar e permitem expulsa-lo de si o projetando sobre um de Estado promover o princípio identitário, quando o novo
outro, além de que seuefeito de contágio gerauma sensaçãode regime necessita de subjetividades flexíveis.
pertencimento em subjetividadesque, por não terem acessoao Em vez da força das armas militares, as armas de que se uti-
corpo-vivo do mundo ao qual pertencem por princípio - acesso liza o capitalismo globalitário sãode duasordens: a força pulsio-
a partir do qual poderiam participar da construção do comum nal e seuporta-voz, o desejo,suaarma micropolítica, articulada
-, sentem-se isoladas e temem ser humilhadas e excluídas do a uma aliança com as forças políticas locais mais reativas, sua
convívio social. As manifestações públicas massivas desse tipo arma macropolítica. Estas últimas encarnam-se em persona-
de subjetividadeconstituem o ritual coletivo que lhes oferece gensignorantes, grosseiros,abrutalhados c extremamente con
a sensação de pertencer a uma comunidade homogênea que servadores,remanescentesde um capitalismo pré-ânaceirizado
forma um todo supostamente estável, a qual substitui a cons- e, na maioria dos casos,de uma mentalidade ainda mais arcaica,
trução múltipla e variável do comum e as protege da ameaça pré-republicana, colonial e escravocrata. Tais personagens paté-
imaginária que essaconstrução lhes traz. ticos são usados como laranjas para fazer o trabalho sujo de
É com basenessetrauma induzido que se constroem as expulsão de cena dos políticos progressistas, preparando o ter-
condições para o poder semlimites do capitalismo globalitá- reno para a tomada de poder pelo capitalismo íinanceirizado,
rio, que passapela tomada do poder de Estado, em situações mundial por sua própria natureza,já que no mapa de suacircu
em que este todavia não se encontra inteiramente em suas lação não existem âonteiras nacionais. No caso do Brasil, é fácil
mãos. Isto se faz por meio de algumas operações que se reve- encontrar essetipo de figura nos poderes Legislativo, Executivo
zam e sejuntam, praticadasem diferentes doses.A primeira e Judiciário, que estão neles instalados desde sempre, apenas

80 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALISTICO 81


atualizando seu discurso e procedimentos. Para âcar apenas desresponsabilizar o Estado nos setores da educação, saúde,
em dois exemplos mais óbvios, citemos em primeiro lugar os moradia e condições urbanísticas o que atinge basicamente
deputados ruralistas, donos do agronegócio que destrói os ecos- as camadas mais desfavorecidas -, assim como privatizar o
sistemas e expulsa comunidades indígenas de seus territórios número máximo possível de bens públicos, sobretudo aqueles
ancestrais, recuperados na Clonstituição de i988 quando não cobiçados pelo capital privado por sua alta rentabilidade.
as dizimam literalmente em um genocídio impune que sequer No entanto, uma vez feito o trabalho sujo, começaum
é veiculado pela imprensa local. Em segundo lugar, grande segundocapítulo, no qual os personagensque o executaram
parte dos deputados evangélicos com seu moralismo hipócrita passam a ser também eles ejetados, por meio dos mesmos
e um ferrenho machismo heteronormativo, patriarcal e fami- procedimentos jurídico-mediáticos que haviam expulsado
lista, que sejustiâca e selegitima pela supostavontade de Deus. de cena os políticos progressistas. A estratégia consiste em
Mais amplamente estão os corruptos, que proliferam indistin multiplicar, dia apósdia, os decretos de prisão de tais polí-
Lamentepor todos os partidos e que viabilizam negócios de ticos, ao mesmo tempo em que se prende os donos e altos
Estadoespúrios em troca de propina dasempresas,por meio de executivos das principais megaempresas, com eles manco-
superíaturamento e outras falcatruas. O exemplo mais óbvio é munados. A partir das dilações "premiadas" de uns contra
o das empreiteiras responsáveis pela construção de equipamen- os outros, passa-se a privilegiar as informações referentes à
tos públicos que, embora sejam empresas locais, são de capital corrupção dessespolíticos, os quais sãoaliados precisamente
transnacional, com exceçãode algumas como a Odebrecht. aospartidos que fizeram o papel de laranjas na derrubada dos
O trabalho sujo consiste antes de mais nada em preparar e governos progressistas. Estes tornam-se os novos protagonis-
executar a expulsão dos políticos progressistas de cena. Uma tas no papel de bode expiatório na narrativa midiática. Isso,
vez consumada esta primeira tarefa, a segunda consiste em no entanto, não quer dizer que se deixa de focar os políticos
decisõestomadas rapidamente pelo poder executivo e/ou de partidos progressistas, os quais continuam na berlinda até
legislativo, muitas vezesvotadas na caladada noite, quando sua total destruição. Resolve-se com essa operação dois pro-
todos dormem, ou em períodos de férias e feriados - especial blemas de um só golpe. O primeiro consiste no expurgo dos
mente os de Natal e Ano Novo, quando a sociedade está dis- tais personagens patéticos da cena política, por meio de sua
traída com compras compulsivas de presentes e celebrações condenação que lhes retira o direito de exercer funções públi-
em família, na ânsia de encenar uma imagem de felicidade e cas. Isto tem a vantagem suplementar de dar à operação uma
harmonia. O ritmo alucinado de tais decisõesé difícil de acom- máscarade neutralidade, já que aparentemente a mesma é
panhar, pois quando a sociedade (ou, pelo menos, parte dela) imparcial, pois visa não só os partidos à esquerda, mas todos
se dá conta de uma dessasdecisões,já ocorreu uma outra os demais partidos e, com isso, leva a crer que a corrupção é
igualmente violenta que, mais uma vez, passou despercebida. seu suposto foco, que nada teria a ver com posições políticas.
Nem é preciso dizer que tais decisõesconsistem basicamente Gera-se assim mais verossimilhança à ficção da legitimidade
em desmantelar as leis trabalhistas e de previdência social e constitucional que encobre o golpe de Estado recém-realizado

82 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALISTICO 83


o qual aliás continua em curso por meio dessaoperação.O veloz dia após dia, culminando com o {mpeachn2e7zt
da pre-
terreno õca livre para a tomada de poder por administrado- sidenta Dilma Rousse# em zoi6. Nas mencionadas grandes
res formados no capitalismo de última geração,que azeitarão manifestações de massa a favor de sua destituição, o mantra
os trilhos do Paíspara o tráfico mais eficiente dos fluxos do "A culpa é da Dilma", que pouco a pouco tomou conta frene-
capital financeirizado, abolindo qualquer barreira à sualivre ticamente das ruas e praças por todo o País,surgiu precisa-
circulação. O segundo problema que se resolve é a amplia- mente do consumo da acção que a mídia havia construído,
ção da cena económica para a disputa dos negócios locais, os tendo a presidenta, o Partido dos Trabalhadores e seusqua-
quais se estendem a outros países - principalmente na Amé- dros principalmente seulíder, Lula da Salva no papel prin-
rica Latina e na África, caos mercadosforam conquistados cipal de bodes expiatórios.:4 Isso tem acontecido em outros
em sua maioria pelos governos do PT. E tudo isso recebido paíseslatino-americanos quando ainda resta a seusgovernan-
de braços abertos por grande parte da sociedadebrasileira, a tes progressistas algum tempo de mandato.
essasalturas inteiramente identiÊcada com a narrativa mediá- Jáem outras situações, quando seus mandatos estão próxi-
tica. O último capítulo dessanarrativa consistirá certamente mos do término, a estratégia midiático-jurídica-parlamentar
em apresentar o capital ânanceirizado no papel de salvador se inscreve na preparação das eleições, eliminando da disputa
da pátria que, setiver o pleno comando do País,Ihe devolverá o(s) candidato(s) mais progressista(s), de modo que esta se
dê entre candidatos neoliberais e ultraconservadores sendo
a dignidade pública e reestabelecerá sua economia da grave
estesúltimos, como vimos, um indesejado efeito colateral de
crise deliberadamente orquestrada nos capítulos anteriores.
Na América Latina, tais procedimentos são usados para seuempoderamentopelo próprio capitalismo íinanceirizado
que neles se apoia na preparação da tomada de poder. E o caso
desmantelar os governos progressistas que tinham se insta-
lado nas últimas décadasem alguns dos países do continente, do Peru,:sem que o candidato progressista perdeu de longe
após a dissolução das respectivas ditaduras militares, a qual
i4 A narrativa âccional logra enfeitiçar as massasporque ecoaem suasubje
se deu ao longo dos anos lg8o. É no momento da ascensão tividade não só por estar fragilizada pela ameaça da crise propagada por tal
da esquerda ao poder que começa a ser concebido o senado ficção. A base para o sucesso do feitiço é também o fato de sua pulsão vital
da nova modalidadede golpe. O primeiro laboratório da estar sob ca6etinageme de sua estrutura ser fortemente marcada pela tradi
consumação da nova estratégia de poder foi a destituição ção colonial-escravagista, da qual faz parte um sólido preconceito de classe,
inclusive entre os que se encontram na base da pirâmide social.
de Ferrando Lugo da presidência do Paraguai em 2012.:3Já l5 Durante a campanhaeleitoral para substituir Ollanta Humanaao final
comprovada a eficácia do novo conceito de golpe, a produção de seu mandato na presidência do Peru em meados de zoi6, sua âgura foi
do senado no Brasil, que havia começado a ser concebido destruída pela tríplice aliança dos poderes midiático, judiciário e paria
mentar, que logrou baixar drasticamente sua aprovação de 57,3%no início
em zoom com a eleição de Lula, intensifica se e torna-se mais de seu mandato para i6% no ano das eleições. A disputa âcou então entre
representantes dos dois poderes que hoje dominam a cena mundial: o ban-
i3 A estratégia mediática-judiciária-parlamentar que preparou o "golpe" no queiro de investimentos e economista neoliberal de centro direita, Pedra
Paraguaiteve início em zoo8 e seconsumou em zoiz. Pablo Kuczynski, e a candidata de extrema direita, Keiko Fujimori ilha

O l NCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 85
84 ESFERAS DA INSURREIÇÃO
para o neoliberal, o qual venceu com uma margem pequena
T' negociar. Tal ilusão sustenta-se na destruição do imaginário
de diferença em relação à candidata ultraconservadora. progressista acima referida e, ao mesmo tempo, a sustenta e
a reforça. Ora, tal precarização somada a uma suposta auto-
nomia deixa as subjetividades mais traumatizadas e impos-
O abuso produz traumas e deles se alimenta sibilitadas de agir. É quando elas tornam-se mais vulneráveis
ao abuso, prontas para entregar sua força pulsional à cafe
A subjetividade flexível produzida por esseregime é, por- tinagem, na ilusão de que esta lhes trará de volta um con
tanto e por princípio, mantidaconstantementeem estado torno e um lugar. E, mais amplamente, é assim também que
de fragilidade beirando o trauma e chegando,muitas vezes, a potência coletiva de criação e cooperação é canalizada para
a ultrapassar esselimiar, soçobrando no naufrágio. Isto se sustentar e alimentar o status qzéo seja por meio da apro-
faz por meio dos três procedimentos acima referidos: sua priação da força de trabalho, do consumo desenfreado, do
redução ao sujeito, o constante colapso de suas formas de apoio massivo a golpes de estado ou eleitorais, ou de outras
existência e de seus respectivos sentidos, colapso encoberto estratégias micropolíticas do regime aqui não evocadas.Em
pelo suprimento imediato de narrativas âctícias que Ihe são suma, é assim que a potência do desejo é desviada de seu
inculcadas diariamente pela mídia. Há ainda, no entanto, um destino ético, ativo e criador, para ser apropriada pelo capital
quarto procedimento do capitalismo íinanceirizado que con- e converter-se em potência reativa de submissão.
tribui para essafragilização da subjetividade, sobretudo nas É nisto que reside a perversão do regime colonial-capitalís-
camadas mais desfavorecidas: a precarização da força de tra tico em sua nova versão e, também, seu real perigo. O regime
banholegalizada pela anulação das leis trabalhistas por parte senutre da ameaçaimaginária geradana subjetividade por sua
dos Estados neoliberais, anulação que se legitima no argu- separação da condição de vivente e, ao mesmo tempo, nutre o
mento de que assim cada trabalhador terá autonomia para fantasma dessa ameaça, mantendo a subjetividadc cativa nessa
redução. A situação que estamos vivendo é uma incubadora
do ex-presidenteAlberto Fujimori, um ditador particularmentesinistro que desse perigo real e não há garantia alguma de que ele possa
governou o país entre i99o e 2000, e que hoje está cumprindo sua conde-
nação a z5 anos de prisão por seus crimes de corrupção, sequestro e assas-
ser evitado. O uso da micropolítica pelo capitalismo ânancei-
sinato. Uma campanha de igual ferocidade à que foi levada contra Humana rizado transnacional para obter poder macropolítico, somado
foi dirigida à representante da ascensãodas forças conservadoras, dando ao uso de políticos disponíveis para o trabalho sujo e ao incre-
vitória a seu rival, mas num quase empate. Hoje, Kuczynski já não é presa mento do conservadorismo, tem grandes chancesde produzir
dente do Peru. A estratégia da nova modalidade de golpe o engoliu, tendo
sido deposto no início deste ano (2018) e substituído pelo vice-presidente uma crise de proporções incontroláveis. E precisamente o que
Martín Vizcarra Cornejo, que conta com apoio do Congresso,inclusive da já está acontecendo e que torna a atmosfera irrespirável. A
Força Popular, partido de Keiko Fujimori. O principal foco de acusação que eleição de Trump para a presidência dos Estados Unidos e
levou a seu 1lmpeac;zmelzf
foram suas ligações com a Odebrecht que, não por
acaso,no mesmo momento desempenhava o papel de bode expiatório da de candidatos de extrema-direita na Europa, assim como o
hora na segunda temporada do senado do golpe no Brasil. Brexit e o vislumbre de desmantelamentoda União Europeia,

86 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O l NCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 87


são apenas seus sintomas mais gritantes. Também no plano se reconhecer que, exatamente por essa razão, nos leva a
local não faltam exemplos, mas eles são tantos que elencá-los expandir e complexificar a própria noção de resistência e,
tomaria um espaço inânito e nos afastariam de nosso foco - mais amplamente, de política. Isto gera um certo alento, na
além de que cita-los aqui seria desnecessário e redundante, já contracorrente da tendência a sucumbir ao medo e às habi-
que estão amplamente presentes nos noticiários cotidianos e tuais reações que provoca: seja a paralisia melancólica, seja
uma vasta bibliograâa os descreve e analisa. uma pressa de agir para dele livrar-se, agarrando-se a velhas
O que importa aqui é reconhecer que nessa balança instá- concepções de resistência que não fazem mais sentido o que
vel entre neoliberalismo e conservadorismoextremo, tempo- talvez sqa o caso do próprio conceito de resistência, marcado
rariamente associados,o peso pode pender para o segundo e por uma lógica da negação, da oposição, da não aceitação, que
com pleno apoio das massas,que, como torcidas organiza não inclui a positividade de uma ação transformadora.
das,regridem ao princípio identitário em suamáxima rigidez, Facea essenovo cenário, fica evidente que não basta tomar
tanto no plano individual e de grupos como classe, etnia, para si a responsabilidade como cidadão e lutar por uma
gênero, raça etc. - quanto no plano nacional. Essa ameaça distribuição mais justa dos bens materiais e imateriais, bem
paira hoje sobre o planeta, o que para o capital transnacional como dos direitos civis e, para além deles, do próprio direito
implicaria, em princípio, na ameaçade fechamento das por de existir. Isto é o mínimo que se deva almejar, e quando não
tas a seu livre fluxo. Em síntese,o tiro do capitalismo ânan- se assume sequer essa responsabilidade é porque a dissocia-
ceirizado parece estar saindo pela culatra. Isto não nos traz ção chegou a um grau de patologia alarmante. Mas, para além
vantagem alguma, pois tanto o regime colonial-cafetinístico dessa tarefa, é preciso também tomar para si a responsabili-
em sua nova versão quanto a volta de um conservadorismo dade como ser vivo e lutar pela reapropriação das potências
nacionalista, arcaico e fatal efeito inevitável do próprio de criação e cooperação e pela construção do comum que
regime e que o coloca em crise por sua própria lógica - são dela depende. Em outras palavras, não basta um combate pelo
igualmente nefastos, embora de diferentes maneiras. Não se poder macropolítico e contra aquelesque o detêm,há que
trata aqui de escolher qual deles é menos pior, pois estando se levar igualmente um combate pela potência aârmativa de
ambos intrinsecamente ligados, o mais grave é precisamente uma micropolítica atava, a ser investida em cada uma de nos-
essa sua explosiva combinação. sas açõcs cotidianas inclusive naquelas que implicam nossa
É exatamente a essa situação que se refere o termo "sinis- relação com o Estado, quer estejamos dentro ou fora dele. Não
tro", evocado no início deste ensaio para qualificar a atmos será exatamente esse o combate que está sendo levado pelo
fera que nos envolve na atualidade. A mescla de vários novo tipo de ativismo que vem proliferando pelo planeta?
tempos da história do capitalismo, todos eles em sua face Torna-se, pois, indispensável pensar e agir na direção de
mais perversa, complexifica ainda mais as dinâmicas do poder uma micropolítica avivade modo a enfrentar essasitua-
e, consequentemente, também sua decifração e a invenção ção igualmente no plano da subjetividade, do desejo e do
de estratégias para combatê-las. Se isto é alarmante, há que pensamento plano no qual se sustenta existencialmente

88 ESFERAS DA INSURREIÇÃO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 89


o capitalismo ânanceirizado transnacional em suas facetas presente. Considerando que a cada modo de produção da
tanto neoliberal quanto conservadora,seu adversário mons- subjetividade e do desejo corresponde um modo de produ-
truoso que ele próprio gerou. Conquistar essapossibilidade ção do pensamento, vale a pena retomarmos aqui aqueles
depende da quebra do feitiço do poder tsunâmico da micro- dois polos fictícios da ampla gama de micropolíticas, da mais
política reativa do capitalismo globalitário, que se alastra por atavaà mais reativa, para examinarmos brevemente em que
todas as esferasda vida humana, destruindo seusmodos de se diferenciariam os princípios que regem a produção do
vida e, sobretudo, sua potência essencialde criação e trans- pensamento em cada uma delas e seus efeitos nos destinos
mutação. Isto implica na desidentiíicação com os modos de davida social.
vida que o regime constrói no lugar daqueles que devastou, Da perspectiva ética do exercício do pensamento, a
a afim de que possamos deserta-los - não para voltar às for- qual rege as ações do desejo no polo ativo, pensar consiste
mas do passado, mas para inventar outras, em função dos em "escutar" os abetos,efeitos que as forças da atmosfera
gérmens de futuros incubados no presente. SÓassim é que ambiente produzem no corpo, as turbulências que nele pro-
a ideia de reapropriar-se da força coletiva de criação e coo vocam e a pulsação de mundos larvares que, gerados nessa
peração,meio indeclinável para combater o atual estado de fecundação, anunciam-se ao saber-do-vivo; "implicar-se"
coisas,tem chancesde sair do papel e dos sonhos utópicos no movimento de desterritorialização que tais gérmens de
para tornar-se realidade. mundo disparam; e, guiados por essa escuta e essa implica
ção, "criar" uma expressão para aquilo que pede passagem,
de modo que ganhe um corpo concreto. Os efeitos do pen-
Quando pensar e resistir tornam-se uma só e mesma coisa samento exercido dessaperspectiva tendem a ser: o "contá-
gio potencializador" das subjetividades que o encontram, ou
Eu dizia no início destetexto que não é por decreto davon- mais precisamente, sua "polinização";'õ a "transâguração" da
tade ou pela boa intenção da consciência que se logra agir na super«cietopológico-relacional de um mundo em suaforma
direção dessa reapropriação. Agora talvez fique mais claro vigente pela irrupção dessecorpo estranho em seu contorno
por que eu sugeria que esseé um trabalho que deve ser feito familiar; a "transvaloração" dos valores que nele predominam.
por cadaum, em sua própria subjetividadee na trama rela-
cional da qual ela é indissociável, de modo a deslocar-seda
i6 0 termo "polinização" me foi sugerido por RolfAbderhalden, artista, funda-
submissão ao poder do inconsciente colonial-capitalístico.
dor do Mapa Teatro junto a Heidi Abderhalden e do Mestrado interdisciplinar
Talvez fique igualmente mais claro por que eu afirmava que, em Teatro e Artes Vivas na Universidade Nacional da Colâmbia. Ele aponta
intrínseca a essatarefa, está a necessidadede deslocar-se que o termo "contágio" tem sua origem na Medicina e é deste campo que foi
no âmbito do pensamento não em seu conteúdo, mas no extraído pela Sociologia. Tendo em vista que o termo contágio diz respeito à
contaminação" de doenças, reservarei ambos para qualiâcar os fenómenos de
próprio princípio que rege sua produção, do qual resultam proliferação de políticas de desejo reativas, mantendo a noção de "polinização"
justamente seusconteúdos e seusmodos de avaliaçãodo apenas para os fenómenos de proliferação de políticas de desejo ativas.

90 O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 91
ESFERASDAINSURREIÇÃO
Já da perspectiva de seu polo reativo, pensar consiste em orienta as jogadas do desejo. Daí o sentido de aârmar que,
"ensurdecer-se" aos abetos,às turbulências que ocasionam e dessaperspectiva, pensar e insurgir-se passama ser uma SO
às demandas da vida que estasnecessariamentemobilizam; e mesma coisa.
"refletir", como um espelho, uma suposta verdade que estaria
oculta na escuridão da ignorância e que "explicaria" a dester-
ritorialização delírio de um sentido que a mascara e supõe Maso que, afinal, teria a arte a ver com tudo isso?
seu controle; "revelar" essa suposta verdade, "iluminando-a"
com o farol da razão nesse caso, restrita a fórmulas retóri- Se as práticas artísticas teriam sem dúvida muito a nos ensi-
cas vazias por emanarem da dissociação da experiência real. nar para enfrentarmos a exigência de resistir no âmbito da
Em suma, pensar aqui significa racionalizar o desconforto, produção do pensamento e suas ações substituindo a pers'
denegando o que estranha ao transforma-lo em familiar. O pectiva antropo-falo-ego-logocêntrica por uma perspectiva
efeito do pensamento exercido dessaperspectiva tende a ser ético-estético-clínico-política -, é também inegável que sob
o "contágio despotencializador" das subjetividades que o o atual regime essapotência própria da arte se enfraque
encontram, o que contribui para a "interrupção do processo ceu.Nas sociedadesocidentais e ocidentalizadas,onde tem
de polinização", promovendo um "aborto da germinação de origem a instituição da arte há pouco mais de dois séculos,
futuros". O que resulta disso é a "reprodução" da cartografa esta constituía até recentemente o único campo de atividade
vigente e seus valores. humana onde a potência de criação estava autorizada a exer-
Qualiâco de "antropo-falo-ego-logocêntrica" essa política cer-se, tornando sensíveis os mundos virtuais que habitavam
reativa de produção do pensamento, regida pelo inconsciente os corpos fecundados pelo ar do tempo. E ainda que a atua-
colonial-capitalístico. Diante de seu poder, que se alastra lização dessesmundos estivesse, no caso, restrita a obras de
cada vez mais, não basta problematizar os conceitos que tal arte - fossem elas pinturas, esculturas, instalações ou outras
política produziu e continua produzindo; há que problema- -, quando estas logravam encarnar a pulsação de tais mun-
tizar o próprio princípio que a rege.Tal desafioimplica em dospor vir, tinham o poder de potencial de polinização dos
reativarmos o saber-do-vivo no exercício do pensamento, de ambientes nos quais circulavam.
modo a libera-lo de seuencarceramentonesse secologocen No entanto - e não por acaso -, sob a nova versão do
trismo e seus falsos problemas consequência de seu divór- regime colonial-cafetinístico, a arte tornou-se um campo
cio dos íiuxos vitais e dos verdadeiros problemas que seus especialmente cobiçado como fonte privilegiada de apro-
movimentos Ihe colocam. É preciso estar à espreita daquilo priação da força criadora pelo capitalismo com o íim de ins-
que o saber-do-vivo nos indica, do que depende a força e trumentalizá-la. Abre-se assim uma nova fronteira para a
a astúcia necessáriaspara resistir ao poder da equipe de acumulação de capital, por meio do uso que se faz da arte
fantasmas nascidos da submissão ao inconsciente colonial-
para lavagem de dinheiro, já que permite uma das mais rápi-
-capitalístico, que ainda hoje comanda as subjetividades e das e extraordinárias multiplicações do capital investido

92 ESFERASDAfNSURREIÇAO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 93


com base em pura especulação.Mas a coisa não para por Por serem tais fenómenos hoje plenamente reconhecidos,
aí: tal instrumentalização também tem objetivos micropo- descrevê-los aqui exaustivamente seria perda de tempo Vale
líticos. O primeiro é neutralizar a força transâguradora das a pena, no entanto, assinalar que exatamente pelo fato de que
práticas artísticas, reduzindo-as ao mero exercício da cria- tem se tornado cadavez mais difícil praticar o pensamento
tividade, dissociada de sua função ética de dar corpo ao que de uma perspectiva ético-estético-clínico-política também nas
a vida anuncia. O segundoobjetivo micropolítico consiste ações no campo da arte, muitos artistas têm se dedicado a
em valer-se da arte como passaporte para ser admitido nos práticas que fazem da problematização desse estado de coisas
salõesinternacionais das elites do capitalismo õnanceiri- a matéria prima de sua obra. Como exposto no início, tais prá-
zado. É que o âgurino com que se vestem tais elites inclui ticas tendem a transbordar as õ'onteiras do campo da arte para
ser colecionador, ter na ponta da língua dois ou três nomes habitar uma transterritorialidade onde se encontram e desen
de artistas e curadores entre as estrelas midiáticas da hora contram com práticas ativistas de toda espécie- feministas,
- que, não por acaso, são sempre os que se encontram na ecológicas, antirracistas, indígenas, assim como os movimen-
crista da onda do mercado da arte - e,por âm, fazer turismo tos dos LGBTQI, os que lutam pelo direito à moradia e contra
nos espaços institucionais a ela consagrados, sobretudo em a gentriâcação, entre outros. Nessesencontros e desencon-
seu circuito mundial. Consumir arte contemporânea, ou tros entre práticas distintas, produzem-se deveressingulares
pelo menos exibir-se em seus salões,distingue essaselites de cada uma delas na direção da construção de um comum.
daquelastradicionais do capitalismo anterior à sua finan- E aqui nos coloco uma pergunta, caro leitor: não residiria
ceirização, evitando assim o risco de serem consideradas precisamente no acontecimento desses deveres a potência
bregas, o que facilita seus negócios. Isto é especialmente política da arte? Isto é muito distinto de uma certa ideia de
patético no caso das elites sul-americanas que, ao vestir "arte política" ou "arte enganada" que converte suas práticas
esseâgurino, revelam seusridículos falsos-seZHs de coloni- em panfletos, veículos macropolíticos dc conscientização,
zados para encobrir sua baixa autoestima. Como essas novas denúncia e transmissão ideológica. Trata-se aqui, diferente
elites internacionais dominam o mercadoda arte por seu mente, de uma potência micropolítica que vem se aârmando
poder de compra de obras e de participação em conselhos de nos campos da arte em ciclos sucessivos desde os anos l96o,
museus - o que lhes permite indicar artistas que terão suas sendo também e cadavez mais assumida por práticas sociais
obras expostas, aumentando assim seu valor no mercado e. e ativistas fora desse campo.
com isso, multiplicando exponencialmente o capital inves- No campo especíâco da arte, tal movimento abrange não
tido nas mesmas -, os artistas tendem a adequar-se às suas só as práticas artísticas, mas todas as demais atividades que
demandas para terem seu lugar garantido em seus salões. É ele envolve: curadoria, gestão de museus, crítica, história etc.
assim que, também nessecampo, a potência de criação vai O que têm em comum as práticas curatoriais cujo pensa-
sendo desviada de seu destino ético e levada para a direção mento insere-se nessaperspectiva é a vontade de promover o
de produzir mercadorias e ativos financeiros. mencionado deslocamento do paradigma cultural dominante

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Quando se logra trazer para a experiência de uma proposta antropo-falo-ego-logocêntrica, reduzida ao sujeito e orien-
curatorial - seja ela realizada em museus ou fora deles - a tada pelo inconsciente colonial-capitalístico. Há nela uma
pulsaçãodos gérmens de mundo que batem à porta dasfor- denegaçãodo embate entre o plano das forças e sua com-
mas cristalizadas, estes são potencialmente portadores de plexa e paradoxal relação com o plano das formas, no qual
efeitos de polinização. E mesmo que tal pulsação se regra a sempre germinam novos modos de existência, num processo
movimentos artísticos do passado,a possibilidade de haver de criação sem âm.
tais efeitos extrapola seutempo e, inclusive, o espaçorestrito Na esfera do combate micropolítico, a imagem do paraíso
da arte. É que se as referidas formas ficaram no passado,a é a de um mundo onde a vida encontraria enâm sua suposta
pulsão que levou à germinação dos mundos em potencial paz eterna - um delírio fabulado por forças reativas. Na esfera
que as habitam pode ser reativada a qualquer momento. Isso do combate macro, a imagem do paraíso tem duas versões:
faz com que os gérmens de futuro, que âcaram soterrados a do paraíso da igualdade de uma sociedade socialista ou o
pela interrupção desseprocesso, possam ser ativados no pre da "livre" competição do mercado liberal. Ambas as imagens,
sente,engendrando outros cenários, diferentes daquelesdo concebidas após a primeira revolução industrial, denegam a
passado. E, se nada garante que os efeitos de que são porta- esfera micropolítica. No caso da imagem própria das esquer-
dores aconteçam de fato, é porque no âmbito das resistên- das - sobretudo as tradicionais e mais ainda as institucionais
cias micropolíticas nada pode ser previsto e muito menos tal denegação é em parte responsável por sua mencionada
garantido. Seja qual for o âmbito de atividade humana em impotência diante dos impasses atuais do regime colonial-ca-
que se dê a insurreição nessa esfera, sempre se confrontarão pitalístico e suas perversas operações na esfera micropolítica.
diferentes graus de forças ativas e reativas na definição das Abandonar a ideia de paraíso, assim como a de apocalipse,
formas do presente. a outra face da mesma moeda, é um dos desafios do combate
micropolítico ao regime colonial-capitalístico, a favor de uma
vida não cafetinada. Por deânição, tal protesto dos incons-
A crença no paraíso é uma droga cientes é um combate que jamais chega a essesuposto gozo
de um granPnaZe,expectativa própria de uma subjetividade
Nesse sentido, há que se desfazer da crença no delírio de reduzida ao sujeito, sua ignorância do saber-do-vivo e seus
um controle permanente e definitivo das engrenagens consequentes delírios. Estar à altura das demandas vitais leva
sociais que levaria a uma suposta plena realização do poten a um outro tipo de gozo, já deslocado das demandas egoicas:
cial humano. Tal crença é herdeira das noções de "salva um gozo vital.
ção" das religiões monoteístas ocidentais e de sua ideia de Cabeaqui nos colocar uma última pergunta, caro leitor: não
"paraíso"; a única diferença é a promessa de que o paraíso será precisamente no enfrentamento dessedesafio que mora
pode e deve ser encontrado nessa vida e não apenas após o sentido e o sabor de uma vida que insiste em perseverar?
a morte. Tal ideia é fruto de uma política de subjetivação

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ESFERAS DA INSURREIÇÃO

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