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Rolnik Esferas Da Insurreição
Rolnik Esferas Da Insurreição
z'ediçãojJunho,zoig
n-ledicoes.org
NCONSCIENTE DiHgimo-nos aos inconscientesqueprotestam. Procura-
mos aliados. Precisamos de aliados. E temos a impressão
CAPITALISTIC +
sente e habalha em direções análogas: nada a ver com
moda, mas com um "ar do tempo" mais pro@ndo, no
qual sejazem investigações convergentes em domínios
muito dhersos.
Gilles Deleuze e Félix Guattari, t97z:
29
r'
Porém, como costuma acontecer em momentos de tran. voltar a reaparecer após a crise de 2008.3 A nova série de
sição radical, é sobretudo a partir de meados dos anos i99o movimentos, que se encontra ainda hoje em curso, emerge
- quando se fazem sentir mais claramente seus efeitos nefas- em diferentes pontos do planeta, principalmente a partir do
tos na vida cotidiana - que essadecifração se expande e se início dos anos joio, que antecedem a escrita deste ensaio.
densiâca, dando lugar a um debate coletivo que vem se des- É no contexto desses movimentos e do debate a eles asso
dobrando desde então. Tal debate é impulsionado pela expe- dado que se insere o presente ensaio. Seu ponto de partida
riência dos movimentos sociais que emergem ao longo da é uma das questões em pauta nessa construção coletiva: o
décadaanterior em reação à tomada de poder mundial pelo modo de relação entre capital e força vital próprio ao regime
atual regime. Como raios, essesmovimentos vêm irrompendo em suaatual versão, inteiramente distinto de seumodo for-
nos céus do capitalismo globalitário a cada vez que se formam dista. Nesta nova versão, o âmbito da força vital de que se
nuvens tóxicas pela densiâcação da atmosfera em alguma alimenta o capitalismo já não se reduz à sua expressão como
de suas regiões, quando sua perversão ultrapassa o limite
do tolerável. A intensidade de irrupção de tais movimentos década.Outro exemplo é o movimento LGBTQI, que, no Brasil, se organiza
no anal dos anos l97o e se expande cada vez mais desde a década de l98o
- equiparável à da violência do regime que os desencadeara - Nesta mesma chave, datam do início dos anos i99o no Brasil as manifesta
tende então a provocar uma desestabilizaçãotemporária de ções que foram chamadas de "Caras-Pintadas" (i99z), compostas sobretudo
suatirânica onipotência. E com a mesma velocidade com que de jovens que, reunidos a favor do {nzpeac/zme?zf
de Collor, atuavam também
na esfera micropolítica, aspecto que ressurgirá mais contundentemente nas
surgem, desaparecem, para logo ressurgir, de outro modo e manifestações em massa de zot3. Um exemplo internacional deste segundo
em outros lugares, mobilizados por novos acontecimentos tipo de movimento são as manifestaçõesdo May Day que se espalhampelo
que nos instalam no intolerável o que os leva evidentemente mundo em zoom.O terceiro tipo de movimento caracteriza-se por atuar mais
especiâcamentena esfera macropolítica: no Brasil, datam do início dos anos
a produzir outras cartograâas, outros sentidos, distintos dos
ig8o o movimento das Diretas Já(i983-i984) e o surgimento do Partido dos
que os antecedem. Essa série de movimentos estende-se até Trabalhadores, que, no momento de sua fundação, funcionou como um cata
o início dos anos 2000,' quando então se interrompe, para lizador de movimentos macro e micropolíticos, para logo em seguidaredu
zir-se à esfera macro; mais para o anal dos anos lg8o, surgem os movimentos
sociais como o MST, assim como aquelesque se organizaram ou se fortale-
2 Podemosclassificar em três tipos os movimentos que eclodiram em várias ceram em torno da Assembleia Nacional Constituinte (ig87), como é o caso
partes do mundo ao longo da décadade x98o até o início dos anos zoom. O do notório avançodo movimentoindígena.Um efeito signiâcativodestes
movimentos - que, de distintas maneiras, aconteceram também em outros
primeiro caracteriza-se por atuar mais especiâcamente na esfera micropolí-
tica: um exemplo é o movimento Punk - que teve início nos Estados Unidos países do continente sul-americano - é a eleição de governantes de esquerda
em meados dos anos l97o e, no Brasil, no anal daquela década e ao longo para a presidência de alguns desses países, no início dos anos zoom, após um
dos anos i98o -, que se contrapunha ao otimismo pacifista e romântico do período de reconstituição da democracia com o âm dos governos ditatoriais
nestes contextos.
movimento hippie. No Brasil, no mesmo período, ganham força movimentos
que se enquadram no segundo tipo, que caracteriza-se por atuar simultâ- 3 Entre os movimentos que eclodem pelo mundo no início dos anos joio, e
nea e indissociavelmente nas esferas micro e macropolíticas - entre os quais que aliam macro e micropolítica em sua atuação, citemos; a Primavera árabe
movimentos feminista e negro, que, emboratenham nascidojá no anal do (adio), Occupy(zou), Movimiento i5-M e Indignados(zon) e, no Brasil,os
século XIX, com altos e baixos desdeentão, ganham um novo alento naquela movimentos de zoi3.
30 ESFERASDAINSURREIÇAO O[NCONSCIENTECOLONIAL-CAPITALÍST]CO 31
força de trabalho, o que implica uma metamorfose radical criação individual e coletiva de novas formas de existência,
da própria noção de trabalho. Isso é acompanhado por uma suasfunções, seus códigos e suas representações que o capital
paulatina diluição da forma Estado democrático e de direito e explora, fazendo dela seu motor. Disso decorre que a fonte da
das leis trabalhistas que dele dependiam, próprias do regime qual o regime extrai sua força não é mais apenas económica,
em sua versão anterior.4 mas também intrínseca e indissociavelmente cultural e subje-
tiva - para não dizer ontológica -, o que Ihe confere um poder
perverso mais amplo, mais sutil e mais difícil dc combater.
O abuso da vida Diante desse quadro, 6ca evidente que não basta agir na
esfera macropolítica, onde atuam tradicionalmente as esquer-
Se a base da economia capitalista é a exploração da força de das,sobretudo as institucionais - isso explicaria inclusive sua
trabalho e da cooperação intrínseca à produção para delas impotência face aos rumos anuaisdo regime colonial-capita-
extrair mais-valia, tal operação - que podemos chamar de lístico. Segundo a visão introduzida por autores que pensaram
"cafetinagem" para Ihe dar um nome que diga mais precisa- a novarelaçãoentre capital e trabalho colocando seufoco na
mente a frequência de vibração de seusefeitos em nossos cor- apropriação pelo capital da potência de criação - especial-
pos foi mudando de õgura com as transíigurações do regime mente Tom Negri e Michael Hardt,s que designaram a nova
ao longo dos cinco séculos que nos separamde sua origem. dobra do regime por "capitalismo cognitivo" -, a resistência
Em sua nova versão, é da própria vida que o capital se apro- hoje passaria por um esforço de reapropriação coletiva dessa
pria; mais precisamente, de sua potência de criação e trans- potência para com ela construir o que tais autores chamam de
formação na emergência mesma de seu impulso ou seja, sua "o comum".óEm diálogo com eles,podemos deânir o comum
essência germinativa -, bem como da cooperação da qual tal como o campo imanente da pulsão vital de um corpo social
potência depende para que se efetue em sua singularidade. A quando a toma em suasmãos, de modo a direcioná-la à criação
força vital de criação e cooperação é assim canalizada pelo de modos de existência para aquilo quc pede passagem.Ainda
regime para que construa um mundo segundo seus desígnios. segundoHardt e Negra,da construção do comum resultam
Em outras palavras, em sua nova versão é a própria pulsão de mudanças nas formas da realidade. Seu argumento é que se,
no capitalismo industrial, asformas da força de trabalho e sua
4 A este respeito ver a obra de Tom Negrae Michael Hardt, especialmente a cooperação - no caso, organizadas como produção em cadeia
trilogia composta por Império, Rio de Janeiro: Record,zoom;MuZüdão:Caem'a
e demão'aaa 7zaera do Império, Rio de Janeiro: Record, 2014; e Bem estar comtlm.
5 Ver nota anterior.
Rio de Janeiro: Record, zoi7. As ideias especíâcas destes autores com as quais
aqui dialogo são desdobramentos da obra conjunta de Gilles Deleuze e Félix 6 A noção de "comum" vem sendo elaborada por vários autores de diferentes
Guattari no que diz respeito à relação entre capital e trabalho. Ver sobretudo: perspectivas. A problematização desta noção na presente coletânea situa-se
Gilles Deleuze e Félix Guattari, O AlzH-Edípo,Rio de Janeiro: Editora 34, adio; num diálogo com a perspectivaaditada por Nega e Hardt, agregandoà sua
e Mí! Prafõs,Rio de Janeiro: Editora 34, i996-i997, publicados originalmente ideia de construção do comum uma dimensão estética e, principalmente, clí-
em i97z e i98o, respectivamente. nica, necessáriaspara sua viabilização.
l
absoluta entre todos os elementos que o compõem como força vital de criação e cooperação. Nesse sentido, podemos
pretendem os arautos messiânicas de um paraíso terrestre. É também designa-lo por "inconsciente colonial-cafetinístico",
preciso resistir no próprio campo da política de produção da pelas razões acima evocadas. É provavelmente à resistên-
subjetividade e do desejo dominante no regime em suaversão cia a esseregime de inconsciente que se referem Deleuze e
contemporânea- isto é, resistir ao regime dominante em nós Guattari, quando clamam por um protesto dos inconscientes,
mesmos-, o que não cai do céu,nem se encontra pronto em já em i97z quando apenas se esboçava o trabalho de ela
algumaterra prometida. Ao contrário, esseé um território boração coletiva da arrojada experiência de Maio de i968 e,
que tem que ser incansavelmente conquistado e construído simultaneamente, a tomada de poder pelo novo regime mani-
em cada existência humana que compõe uma sociedade, o festava seus primeiros sinais, todavia nebulosos.
que intrinsecamente inclui seu universo relacional. De tais A intenção que move o presente texto é perscrutar a moda-
conexõesoriginam-se comunidadestemporárias que preten- lidade anualdo inconsciente colonial cafetinístico introdu
dem agir nessa direção construindo o comum. Entretanto, zida pelo capitalismo õnanceirizado e neoliberal - a qual se
tais comunidades jamais ocupam o corpo da sociedade como deâne,insisto, pelo sequestrodessaforça no próprio nasce-
um todo, pois ele sefaz e se refaz no inexorável embateentre douro de seu impulso germinador de mundos. Mas como dri-
diferentes tipos de forças. blar esseregime de inconsciente em nós mesmos e em nosso
entorno? Em outras palavras, em que consistiria o tal protesto
dos inconscientes?
Mas como liberar a vida de sua cafetinagem? Responder a esta pergunta exige um trabalho de investi-
gaçãoque só pode ser feito no campo da própria experiên-
Insurgir-se nesseterreno implica que se diagnostique o modo cia subjetiva. Há que se buscar vias de acessoà potência da
de subjetivação vigente e o regime de inconsciente que Ihe criação em nós mesmos: a nascente do movimento pulsio
é próprio, e que se investigue como e por onde se viabiliza nal que move as ações do desejo em seus distintos destinos.
um deslocamento qualitativo do princípio que o rege. Sem Um trabalho de experimentação sobre si que demanda uma
isso, a tão aclamadaproposta de reapropriação coletiva da atenção constante. Em seu exercício, a formulação de ideias
força criadora como proõlaxia para a patologia do presente é inseparável de um processo de subjetivação em que essa
não sairá do laboratório das ideias, correndo o risco de per- reapropriação se torna possível por breves e fugazes momen
manecer confinada no plano imaginário e suas belas ilusões tos e cuja consistência, frequência e duração aos poucos se
alentadoras elas mesmas dispositivos de captura. ampliam, à medida que o trabalho avança.
Proponho designar por "inconsciente colonial-capitalístico" Assim sendo, o trabalho necessário para responder a esta
a política de inconsciente dominante nesse regime, a qual pergunta nos exige que, junto com o deslocamento da política
atravessa toda sua história, variando apenas suas modalida- de produção da subjetividade e do desejo dominante na nova
desjunto com suastransmutações e suas formas de abuso da versão da cultura moderna ocidental colonial-capitalística,
SEVOCE ESCOLHESEMPRE
O MESMOPONTOPARA
SEGUIRRECORTANDO
SUASAÇOES PRODUZEM
DIFERENÇAS
56 O lNCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALISTICO 57
ESFERAS DA INSURREIÇÃO
E exatamente no momento em que o desejo é convocado a
POLÍTICAS DO DESEJO EM SUAS AÇÕES PENSANTES
agir que se deânirão suaspolíticas e aquilo que as distingue,
as quais correspondem a diferentes regimes do inconsciente
pulsional. Para descrevê-las, sugiro que voltemos ao Cami-
nhando que nos propõe Lygia Clark, lembrando agora dos dois
tipos de corte na superfície da âta de Moebius que essapro-
posição nos permitiu acompanhar.
60 ESFERAS DA INSURREIÇÃO 61
O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO
MICROPOLITICA ATAVAE
SUA BUSSOLA ETICA
Micropolítica reativa e sua bússola moral É evidente o teor alucinatório dessa imagem de uma con
servaçãoeterna do status qao de si e do mundo, pois se tal
Peçoque imagine agora, leitor, o tipo de ação na superfície conservação de fato ocorresse, isto implicaria no estanca
topológico-relacional do mundo de um desejo que insiste eH mento dos fluxos vitais que animam a existência de ambos,
escolher pontos já conhecidos para fazer seus cortes como
o que no limite significaria sua morte. O que, no entanto,
em Cami7z;zango quando não se leva em conta a ressalva de leva a subjetividade à crença nessa miragem é o medo de que
Lygia Clark. Esse tipo de corte corresponderia ao outro caso a dissolução do mundo estabelecido carregue consigo sua
de âgura Êccional, situado no extremo oposto do amplo leque própria dissolução. É que, sendo o sujeito estruturado na car-
de micropolíticas possíveis:a da posição mais submissa ao
tografa cultural que Ihe dá sua forma e nela se espelha como
inconsciente colonial-cafetinístico. Como é essajustamente a se fosse o único mundo possível, da perspectiva dessetipo
micropolítica que viabiliza a expropriaçãoda força de criação, de subjetividade reduzida ao sujeito e que com ele se con
esmiucemos mais detidamente sua dinâmica.
funde, o desmoronamento de "um mundo" é interpretado
Diferentemente do modo de subjetivação que acabamosde como sinal do âm "do mundo", bem como de seu "suposto
vislumbrar, essapolítica do desejo é própria de uma subjetividade si mesmo". Sea tensão entre estranho e familiar Ihe traz
reduzida à sua experiência como sujeito, na qual começa e ter- esseperigo imaginário é porque, assim limitada ao sujeito,
mina seu horizonte. Por estar bloqueada em sua experiência fora- a subjetividade desconhece o processo que leva à constante
-do-sujeito, ela se toma surda aos efeitos das forças que agitam transmutação de si e do mundo, por não ter como nele sus-
um mundo em suacondição de vivente, ignorando aquilo que o tentar-se. Impossibilitada de imaginar um outro mundo e
saber-do-corpo Ihe indica. O gérmen de mundo que a habita é de se reimaginar distinta do que considera ser seu suposto
por ela vivido como um corpo a tal ponto estranho e impossível si mesmo, ela se protege acreditando que "esse mundo", o
de absorver que se torna aterrorizador, razão pela qual deverá ser seu, pode durar tal e qual para sempre. Tomada pelo medo
calado a qualquer custo e o mais rapidamente possível. que provoca esse perigo imaginário de desfalecimento, ela é
Esse tipo de subjetividade vive o universo exclusivamente invadida por fantasmas que a assombram seres de imagens
como um objeto que Ihe é exterior e o decida apenas da pers- que se proyetam sobre suas experiências, a mantendo sepa-
pectiva de sua experiência como sujeito. A imagem de si que rada das mesmas. Os fantasmas levam a subjetividade a uma
resulta dessaredução é a de um indivíduo um todo indivisível. interpretação equivocada do mal-estar da desestabilização
como o próprio tempo indica. É a imagem de uma suposta uni- que essa experiência paradoxal Ihe provoca, o qual é por ela
dade cristalizada separada das demais supostas unidades que vivido como "coisa ruim". Assim interpretado, tal mal-estar
constituiriam um mundo, o qual é indissociavelmenteconce- converte-se em angústia do sujeito.
bido aqui como uma supostatotalidade, organizadasegundo
uma repartição estávelde elementos fixos, cada um em seu
suposto lugar, igualmente fixo.
66
ESFERASDAINSURREFÇÃO O INCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 67
MICROPOLITICA
REATIVAE
SUA BÚSSOLA MORAL
SUBMETENDO-SEAO INCONSCIENTECOLONIAL-CAPITALISTICO
68 O l NCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALISTICO 69
ESFERASDAINSURREIÇÃO
Diferentemente da micropolítica correspondente ao polo
T'
ou um outro qualquer escolhido para desempenhar o papel de
oposto que descrevemosanteriormente, trata-se aqui de vilão. Em outras palavras, ou a subjetividade introjeta a causa
uma subjetividade que não consegue sustentar-se na tensão de sua desestabilização como uma suposta deâciência de si
do paradoxo entre suasexperiênciascomo sujeito e fora-do mesma,o que impregna suaangústia de sentimentos de infe-
.sujeito, tampouco entre os movimentos paradoxais que sua rioridade e vergonha;ou ela a projeta numa suposta maldade
fricção desencadeia,dos quais se constitui o inconsciente pul- que Ihe estaria sendo endereçada de fora, o que impregna sua
sional. O que orientará os cortes do desejo,nessecaso, será, angústia de sensações paranoides, ódio e ressentimento.
pois, o evitamento do ponto de interrogação pulsional que a
vibração do gérmen de mundo coloca para a subjetividade. O
desejo é convocado a recobrar um equilíbrio apressadamente Quando a autodepreciação e a vergonha interrompem a
e o faz orientado por uma bússolamoral, cuja agulhaaponta germinação de um mundo
para a cartografia na qual a vida se encontra materializada na
superfície tipológico-relacional do mundo em sua forma atual. No primeiro caso,o da introjeção, na intenção de aplacar
A agulha moral conduz o desejo na direção do rastreamento o sentimento de autodepreciaçãoe vergonha, o desejo
de modos de existir e representações - ambos resultantes de escolherá o ponto da superfície topológica-relacional do
cortes anteriores - para encontrar um ponto onde apoiar seu mundo mais obviamente adequadoa esseâm. São os pro-
corte, de maneira que a subjetividade possa rapidamente refa- dutos de tarja preta da indústria farmacológica, cujo mer-
zer para si um contorno reconhecível e livrar-se temporaria- cado alimenta-se precisamente desse desalento e também
mente de sua angústia. o alimenta, contribuindo para sua perpetuação, já que con-
O mundo converte se, assim,num vasto e variado mer- ârma a interpretação fantasmática de sua causae a angústia
cado, onde a subjetividade tem a seu dispor uma inanidade que Ihe provoca ao patologizar a experiência da desestabi-
de imagens para identificar-se e com as quais estabelecerá lização." O uso que a subjetividade deles fará, sejam quais
uma relação de consumo que Ihe permitirá recobrar o alí- forem, visa nesse caso a neutralização de sua angústia. O
vio fugaz de um quimérico equilíbrio. A escolha do desejo fato de suatensão ser quimicamente controlada não implica
de onde fazer o corte nesse opulento mercado depende do
repertório de cada subjetividade e da interpretação que faz n Um exemplo acerca da patologlzação da experiência da desestabilização por
da razão de seu desconforto. parte da psiquiatria que chega a ser caricatural, para não dizer patético, é o diag-
nóstico de "bipolar' com o qual alguns psiquiatras classificam aquilo que eles
Sendoo desconforto interpretado como "coisa ruim", consideram ser a suposta "doença dos artistas". Desta perspectiva, interpreta
evidentemente alguém tem que ser o culpado. Reduzida ao se como "depressivo" o estado de suspensãoem que se encontra a subjetivi-
sujeito, a subjetividade só dispõe de duas opções para determi- dadedo artista quando está em pleno processo de criação, desencadeadopor
um gérmende mundo que a habita, mas que ainda não encontrou a expressão
nar de quem é a culpa por seu estado instável, sendo ambas as adequada para trazê-lo para o sensível; e de "eufórico" ou "maníaco", o estado
opçõesfruto de construções fantasmáticas: o próprio sujeito de gozo vital que se experimenta quando tal gérmen encontra sua expressão.
presente e poderosa em seus efeitos. Como naqueles cortes da desejante de criação de mundos nos quais se dissolveriam os
fita de Moebius em Camitz/zangoquando se ignora a ressalva de elementos da cartografia do presente em que a vida se encon-
Lygia Clark, da política de desejo reativa resulta a eterna repro- tra asfixiada. Assim dissociada,a subjetividade está pronta
dução das formas do mundo em sua atual conõguração. para deixar que esta potência seja cafetinada pelo capital, e
Sob o impacto de uma micropolítica reativa regida por uma é o próprio desejo que orientará suas ações nessa direção,
bússola moral, a subjetividade dissocia-se ainda mais do que fazendo com que a pulsão passea gozar nesselugar.
Ihe acontece. E, se ampliamos o horizonte de nosso olhar para Regido por essetipo de micropolítica, o desejo passa a fun-
abrangera superfície topológico-relacional do mundo tal como cionar como agente reativo que interrompe o processo de cria-
conâgurada na atualidade, constataremos que o que se debilita ção de mundos. Como os gérmens de mundo que habitam
é precisamente a potência coletiva de criação e cooperação, os corpos engendram-se no encontro entre eles, formando
condição para a construção do comum, a qual emanado poder o campo que os atravessaa todos e faz deles um só corpo,
de insurgir-se e, ao mesmo tempo, o fortalece. Ao contrário, o a interrupção de suagerminação na vida de um indivíduo é
que será gerado é a conservação do status que: assim é a micro também, indissociavelmente, um ponto de necrose da vida de
política de uma existência, individual ou coletiva, que deixa seu entorno. Em outras palavras, cada vida que não se coloca
sua potência vital criadora ser expropriada, e entrega-se por à altura do que Ihe aconteceprejudica a vida de toda suateia
livre e espontâneavontade, chegandoaté a fazê-lo com fervor. relacional: o veneno que se produz propaga-se como uma
Em síntese, comparando as políticas atava e reaviva das peste por seus fluxos e os intoxica, estancando seu processo
açõesdo desejo,na primeira um novo equilíbrio se faz efe- contínuo de diferenciação. Estes são os efeitos de uma vida
tivamente, por meio de um ato de criação que transmuta a sujeitado ao poder perverso do inconsciente colonial-capitalís-
realidade com sua força instituinte; enquanto, na segunda, tico. Uma vida genérica,vida mínima, vida estéril, mísera vida.
o equilíbrio se refaz fictícia e fugazmente por um ato que,
na verdade, interrompe o destino da "potência de criação"
própria da vida para reduzi-la à "criatividade". Sendo a cria- Quando o abuso perverso se retina
tividade apenas uma das capacidades indispensáveis para o
trabalho de criação, quando esta dissocia-se do saber-do- No contexto do capitalismo globalitário ânanceirizado, como
-corpo torna-se estéril e não faz senão recompor o instituído. vimos, transmuta-se, resina-see se intensiâca o abuso per-
O desejo deixa, aqui, de agir em sintonia com o que a vida Ihe verso da força de trabalho (no sentido amplo de todo tipo
demanda, desviando-se assim de sua função ética. de ação em que se materializa o movimento da força vital)
É nisso que reside o veneno da micropolítica imanente à abuso que constitui a essência da tradição colonial-capitalís-
cultura moderna ocidental colonial-capitalística. Seusefei- tica. Já estamos distantes do regime identitário que estrutu-
tos tóxicos sãoa separaçãoda subjetividade de suaforça pul- rava a subjetividade no fordismo e Ihe atribuía a forma de sua
sional de germinação e suas sequelas: estanca-se a potência força de trabalho (aqui no sentido literal) e de cooperação
.J
Produz-se em sua nova dobra uma subjetividade flexível mercadorias encontram na fragilidade e em sua interpre
gestora de sua própria potência pulsional, o que, como men- taçãofantasmática pelo sujeito que nela projeta o perigo de
cionado no início, pareceria favorecer sua liberdade de Ihe exclusão, seja por autodepreciação ou por persecutoricdade
imprimir um destino de expansãovital. No entanto, pelo fato paranoide a base para seu consumo garantido, podendo
da subjetividade estar reduzida ao sujeito, o desejo tende a assim multiplicar-se ao infinito. luas a operação de incre-
desviar tal potência de seu destino ético, na esperança de Ihe mento da fragilidade não para por aí: ela é também usada na
garantir sua suposta estabilidade e sua sensaçãode pertenci- estratégia de poder introduzida pela nova versão do regime,
mento. Clom isso, o que segera nesseprocesso são formas de na qual aliam-se procedimentos micropolíticos aos tradicio-
existência das quais se extrai livremente capital económico, nais procedimentos macropolíticos, numa tríplice aliança
político e cultural. É, portanto, por meio dasaçõesdo próprio composta pelos poderes Judiciário, Legislativo e mediático.
desejo que a subjetividade alimentará a acumulação de capi-
tal e seu poder, oferecendo-se gozosamente ao "sacrifício"
como a trabalhadora do sexo que, enquanto não cai a bicha,se Quando o poder se vale do desço como suaprincipal arma
oferece ao cafetão na esperança de que este Ihc garanta não
só a sobrevivência, mas o próprio direito a existir. Se,desde o capitalismo industrial, os meios de comunicação
Por si só, isto já seria o suficiente para fomentar a pro- de massavêm constituindo um importante equipamento
dução de um desejo reativo. Mas há outros favores que con- do poder, sob a nova versão do regime ela ganha um pro-
tribuem para que esse seja o destino predominante da força tagonismo sem precedentes, sobretudo graças aos avanços
pulsional, agora supostamente autogerida. Com os avanços tecnológicos que permitem uma comunicação generalizada
dastecnologias de informação e comunicação,que no atual em tempo real. Um exemplo é o que vem se fazendo em
regime são cada vez mais velozes, o mal-estar do paradoxo, vários países da América do Sul, na última década. Clom base
impulsionador dos processos de subjetivação, faz-se mais na edição de informações selecionadas numa aliança entre
frequente e mais intenso. A subjetividade íiexível é inces investigaçõespoliciais e poder Judiciário, a mídia constrói
santemente bombardeada por imagens de mundo e narra- narrativas que, veiculadas em tom dramático, ampliâcam e
tivas - o que se agravacom suaproliferação robótica que as agravam a imagem da crise económica e do perigo de que
multiplicam ao inânito -, as quais tornam seusjá efémeros ela seria portadora. Isso alimenta a busca desesperadadas
contornos ainda mais rapidamente caducos.Diante disso, subjetividades por uma saída, a qual lhes será oferecida pela
por estar reduzida ao sujeito, aumenta sua vulnerabilidade a mesma narrativa, na âgura âctícia de um personagem bode
submeter-se a respostas prof-à'poder as quais, como já assi- expiatório sobre quem cairia a culpa pela situaçãode crise,
nalado, essesmesmos meios Ihe oferecem em abundância. também íicticiamente armada. Assim como a construção da
Essa dinâmica cria o solo que sustenta aspectos essenciais narrativa se baseia em informações reais que são, no entanto,
do novo regime. Sua vantagem para a economia é óbvia: as selecionadas e editadas, também desempenharão o papel de
O l NCONSCIENTE COLONIAL-CAPITALÍSTICO 85
84 ESFERAS DA INSURREIÇÃO
para o neoliberal, o qual venceu com uma margem pequena
T' negociar. Tal ilusão sustenta-se na destruição do imaginário
de diferença em relação à candidata ultraconservadora. progressista acima referida e, ao mesmo tempo, a sustenta e
a reforça. Ora, tal precarização somada a uma suposta auto-
nomia deixa as subjetividades mais traumatizadas e impos-
O abuso produz traumas e deles se alimenta sibilitadas de agir. É quando elas tornam-se mais vulneráveis
ao abuso, prontas para entregar sua força pulsional à cafe
A subjetividade flexível produzida por esseregime é, por- tinagem, na ilusão de que esta lhes trará de volta um con
tanto e por princípio, mantidaconstantementeem estado torno e um lugar. E, mais amplamente, é assim também que
de fragilidade beirando o trauma e chegando,muitas vezes, a potência coletiva de criação e cooperação é canalizada para
a ultrapassar esselimiar, soçobrando no naufrágio. Isto se sustentar e alimentar o status qzéo seja por meio da apro-
faz por meio dos três procedimentos acima referidos: sua priação da força de trabalho, do consumo desenfreado, do
redução ao sujeito, o constante colapso de suas formas de apoio massivo a golpes de estado ou eleitorais, ou de outras
existência e de seus respectivos sentidos, colapso encoberto estratégias micropolíticas do regime aqui não evocadas.Em
pelo suprimento imediato de narrativas âctícias que Ihe são suma, é assim que a potência do desejo é desviada de seu
inculcadas diariamente pela mídia. Há ainda, no entanto, um destino ético, ativo e criador, para ser apropriada pelo capital
quarto procedimento do capitalismo íinanceirizado que con- e converter-se em potência reativa de submissão.
tribui para essafragilização da subjetividade, sobretudo nas É nisto que reside a perversão do regime colonial-capitalís-
camadas mais desfavorecidas: a precarização da força de tra tico em sua nova versão e, também, seu real perigo. O regime
banholegalizada pela anulação das leis trabalhistas por parte senutre da ameaçaimaginária geradana subjetividade por sua
dos Estados neoliberais, anulação que se legitima no argu- separação da condição de vivente e, ao mesmo tempo, nutre o
mento de que assim cada trabalhador terá autonomia para fantasma dessa ameaça, mantendo a subjetividadc cativa nessa
redução. A situação que estamos vivendo é uma incubadora
do ex-presidenteAlberto Fujimori, um ditador particularmentesinistro que desse perigo real e não há garantia alguma de que ele possa
governou o país entre i99o e 2000, e que hoje está cumprindo sua conde-
nação a z5 anos de prisão por seus crimes de corrupção, sequestro e assas-
ser evitado. O uso da micropolítica pelo capitalismo ânancei-
sinato. Uma campanha de igual ferocidade à que foi levada contra Humana rizado transnacional para obter poder macropolítico, somado
foi dirigida à representante da ascensãodas forças conservadoras, dando ao uso de políticos disponíveis para o trabalho sujo e ao incre-
vitória a seu rival, mas num quase empate. Hoje, Kuczynski já não é presa mento do conservadorismo, tem grandes chancesde produzir
dente do Peru. A estratégia da nova modalidade de golpe o engoliu, tendo
sido deposto no início deste ano (2018) e substituído pelo vice-presidente uma crise de proporções incontroláveis. E precisamente o que
Martín Vizcarra Cornejo, que conta com apoio do Congresso,inclusive da já está acontecendo e que torna a atmosfera irrespirável. A
Força Popular, partido de Keiko Fujimori. O principal foco de acusação que eleição de Trump para a presidência dos Estados Unidos e
levou a seu 1lmpeac;zmelzf
foram suas ligações com a Odebrecht que, não por
acaso,no mesmo momento desempenhava o papel de bode expiatório da de candidatos de extrema-direita na Europa, assim como o
hora na segunda temporada do senado do golpe no Brasil. Brexit e o vislumbre de desmantelamentoda União Europeia,
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ESFERASDAINSURREIÇÃO
Já da perspectiva de seu polo reativo, pensar consiste em orienta as jogadas do desejo. Daí o sentido de aârmar que,
"ensurdecer-se" aos abetos,às turbulências que ocasionam e dessaperspectiva, pensar e insurgir-se passama ser uma SO
às demandas da vida que estasnecessariamentemobilizam; e mesma coisa.
"refletir", como um espelho, uma suposta verdade que estaria
oculta na escuridão da ignorância e que "explicaria" a dester-
ritorialização delírio de um sentido que a mascara e supõe Maso que, afinal, teria a arte a ver com tudo isso?
seu controle; "revelar" essa suposta verdade, "iluminando-a"
com o farol da razão nesse caso, restrita a fórmulas retóri- Se as práticas artísticas teriam sem dúvida muito a nos ensi-
cas vazias por emanarem da dissociação da experiência real. nar para enfrentarmos a exigência de resistir no âmbito da
Em suma, pensar aqui significa racionalizar o desconforto, produção do pensamento e suas ações substituindo a pers'
denegando o que estranha ao transforma-lo em familiar. O pectiva antropo-falo-ego-logocêntrica por uma perspectiva
efeito do pensamento exercido dessaperspectiva tende a ser ético-estético-clínico-política -, é também inegável que sob
o "contágio despotencializador" das subjetividades que o o atual regime essapotência própria da arte se enfraque
encontram, o que contribui para a "interrupção do processo ceu.Nas sociedadesocidentais e ocidentalizadas,onde tem
de polinização", promovendo um "aborto da germinação de origem a instituição da arte há pouco mais de dois séculos,
futuros". O que resulta disso é a "reprodução" da cartografa esta constituía até recentemente o único campo de atividade
vigente e seus valores. humana onde a potência de criação estava autorizada a exer-
Qualiâco de "antropo-falo-ego-logocêntrica" essa política cer-se, tornando sensíveis os mundos virtuais que habitavam
reativa de produção do pensamento, regida pelo inconsciente os corpos fecundados pelo ar do tempo. E ainda que a atua-
colonial-capitalístico. Diante de seu poder, que se alastra lização dessesmundos estivesse, no caso, restrita a obras de
cada vez mais, não basta problematizar os conceitos que tal arte - fossem elas pinturas, esculturas, instalações ou outras
política produziu e continua produzindo; há que problema- -, quando estas logravam encarnar a pulsação de tais mun-
tizar o próprio princípio que a rege.Tal desafioimplica em dospor vir, tinham o poder de potencial de polinização dos
reativarmos o saber-do-vivo no exercício do pensamento, de ambientes nos quais circulavam.
modo a libera-lo de seuencarceramentonesse secologocen No entanto - e não por acaso -, sob a nova versão do
trismo e seus falsos problemas consequência de seu divór- regime colonial-cafetinístico, a arte tornou-se um campo
cio dos íiuxos vitais e dos verdadeiros problemas que seus especialmente cobiçado como fonte privilegiada de apro-
movimentos Ihe colocam. É preciso estar à espreita daquilo priação da força criadora pelo capitalismo com o íim de ins-
que o saber-do-vivo nos indica, do que depende a força e trumentalizá-la. Abre-se assim uma nova fronteira para a
a astúcia necessáriaspara resistir ao poder da equipe de acumulação de capital, por meio do uso que se faz da arte
fantasmas nascidos da submissão ao inconsciente colonial-
para lavagem de dinheiro, já que permite uma das mais rápi-
-capitalístico, que ainda hoje comanda as subjetividades e das e extraordinárias multiplicações do capital investido
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