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As falsas memórias no direito penal: implicações e alternativas

Caroline Beuren

RESUMO

Neste artigo, revisamos estudos relativos à formação de falsas memórias e suas


possíveis implicações para o exercício do direito penal. As falsas memórias referem-
se a um conceito da psicologia definido por grandes pesquisadores dessa ciência
como a lembrança de eventos que nunca aconteceram de fato. A matéria da qual se
ocupa o processo penal brasileiro tem como base, em sua esmagadora maioria,
provas testemunhais, com toda a carga de subjetividade inerente a um relato em
primeira pessoa. Por essa razão, o relato pode ser contaminado pelos desejos e
anseios do sujeito, ou, pior ainda, basear-se em falsas memórias, uma vez que
estas se formam mais facilmente a partir de acontecimentos que envolvem forte
emoção, característica de grande parte dos casos analisados pelo direito penal. O
foco principal será a discussão de pesquisas acerca da formação das falsas
memórias e como elas podem influenciar um julgamento. Por fim, apresentamos
algumas sugestões para mitigar esse problema.

Palavras-chave: Falsas memórias. Direito penal.Prova testemunhal.

INTRODUÇÃO

As falsas memórias (também chamadas de memórias ilusórias) referem-se a


um conceito da psicologia definido por grandes pesquisadores dessa ciência – entre
eles, merece destaque Sigmund Freud – como a lembrança de eventos que nunca
aconteceram de fato. Devido a uma série de fatores, entre eles mecanismos
cerebrais específicos, essa falsificação abrange predominantemente situações que
envolvem alta carga emocional para o sujeito, seja ela positiva ou negativa. Além

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disso, é possível a terceiros estimular a criação de falsas memórias através de
sugestões sutis, que acabam por distorcer pouco a poucoa percepção do sujeito
acercado evento.

A matéria da qual se ocupa o processo penal brasileiro tem como base, em


sua esmagadora maioria, provas testemunhais, com toda a carga de subjetividade
inerente a um relato em primeira pessoa. Tais provas são, portanto, indiretas e
apresentadas em retrospecto, dependendo da memória do sujeito para sua
reconstrução. Por essa razão, o relato pode ser contaminado pelos desejos e
anseios do sujeito, ou, pior ainda, basear-se em falsas memórias, uma vez que
estas se formam mais facilmente a partir de acontecimentos que envolvem forte
emoção, característica de grande parte dos casos analisados pelo direito penal.
Essas memórias ilusórias podem, ainda, surgir em decorrência da dinâmica do
próprio julgamento, de forma que se faz necessário que o juiz esteja sempre atento
à formulação das perguntas, inclusive aquelas elaboradas pelos advogados das
partes, os quais possuem interesse na solução do litígio a favor da parte que
representam.

Tendo isso em mente, chega-se facilmente à conclusão de que as falsas


memórias podem trazer consequências gravíssimas ao processo penal, tanto para o
deslinde da ação quanto para a vida pessoal dos envolvidos. Sendo assim, este
artigo busca refletir acerca das falsas memórias e seus possíveis desdobramentos
no direito penal brasileiro.

MEMÓRIA

Ao contrário do que somos intuitivamente levados a acreditar, a memória não


funciona como uma fotografia ou um filme fiel à realidade; ela está mais para um
quadro que pintamos com cores e formas que jamais corresponderão àquilo que de
fato enxergamos. Além disso, a ação de relembrar sempre ocorre no presente,
influenciada pelo nosso contexto atual, e não por aquele que estava ativo no
momento em que o fato relembrado aconteceu.

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Sendo assim, nossas lembranças funcionam apenas como um recurso
aproximativo, criando representações limitadas pelas condições e capacidades do
cérebro e condicionadas às nossas interpretações pessoais. Tal fato foi corroborado
por uma experiência realizada em 1932 pelo psicólogo inglês Frederic Charles
Bartlett, conforme mencionado em artigo de Stein e Neufeld (2001, p. 179):

No seu clássico experimento, Bartlett apresentou a sujeitos ingleses uma


lenda do folclore dos índios norte-americanos, onde muitos dos fatos, bem
como sua sequência, eram estranhos à lógica ocidental. Ao solicitar aos
sujeitos que recordassem a lenda, Bartlett constatou que os mesmos
reconstruíam a estória, com base em suas expectativas e suposições
ocidentais, ao invés de lembrá-la literalmente como havia sido apresentada.
Era como se a memória dos sujeitos para a estória realmente apresentada
tivesse sido internamente distorcida.

Essa desconfiança acerca da memória ganhou força nas ciências humanas a


partir do pós-modernismo, predominando a ideia de que não se pode encarar os
documentos históricos como uma verdade absoluta, pois eles contêm apenas uma
interpretação de um acontecimento para o qual cabem muitas outras interpretações.
Afinal, como aponta Seligmann-Silva (2013, p. 67):

não existe uma História neutra; nela a memória, enquanto uma categoria
abertamente mais afetiva de relacionamento com o passado, intervém e
determina em boa parte os seus caminhos. A memória existe no plural: na
sociedade dá-se constantemente um embate entre diferentes leituras do
passado, entre diferentes formas de “enquadrá-lo”.

A relatividade do discurso histórico também pode ser atribuída à própria


linguagem, uma vez que esta não é, de maneira alguma, um espelho que reflete
fielmente a realidade, e a própria escolha das palavras que compõem umdiscurso
nunca é inocente ou destituída de intenção por parte do autor.

Sendo assim, todo o conhecimento que temos dos acontecimentos passados


– e presentes, quando não os testemunhamos –, seja em documentos,
testemunhos, livros, fotografias ou, mais recentemente, vídeos, vem de
interpretações condicionadas por uma série de fatores – como, por exemplo, fatores
socioeconômicos, políticos e culturais – que geram diferentes perspectivas e,

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consequentemente, uma variedade incrível de verdades para um único fato. Assim,
não podemoster a pretensão de retratar o passado em sua totalidade, nem mesmo
quando relatamos um fato do qual fomos testemunhas.

Em situações que envolvem alta carga emocional, essas falhas da memória


ficam ainda mais evidentes. Por exemplo, vivenciar um evento que ativa as
respostas de alerta do cérebro faz com que nossa memória – de forma automática e
não intencional – trabalhe de maneira diferente durante as fases de codificação e
consolidação. Como explicam Santos e Stein (2008, p. 419):

[...] alguns estudos têm sugerido que o alerta reforça a codificação de


aspectos centrais do estímulo através de mecanismos de atenção não
intencionais, ao mesmo tempo em que tende a diminuir a codificação de
detalhes periféricos dos estímulos (Burke, Heuer, &Reisberg, 1992;
Christianson&Loftus, 1991). Esse padrão de ação do alerta na memória
também vem sendo encontrado em estudos sobre testemunhos oculares de
crimes, recebendo a denominação de weapon-focus (foco na arma) (Loftus,
1979). Esse fenômeno consiste na maior recuperação de detalhes referentes
à arma utilizada em um assalto em comparação a outros aspectos do evento.
Dessa forma, diante de um assalto a mão armada, as vítimas tendem a
evocar com maior exatidão os detalhes da arma utilizada no crime do que
outras informações sobre o evento (e.g., a cor da roupa utilizada pelo
assaltante).

Isto é, diante de situações que envolvem forte emoção, o que costuma


permanecer na memória é a essência do acontecimento, aquilo que o sujeito julgou
ser mais significativo, enquanto os outros elementos tornam-se difusos e acabam
desaparecendo ou sendo reconstruídos pela imaginação. Essa condição abre
caminho para que, de forma espontânea ou através de sugestões de terceiros, as
falsas memórias tenham origem.

FALSAS MEMÓRIAS

Para uma definição acurada do termo “falsas memórias”, consideramos


essencial citar Trindade (2012, p. 221):

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A Síndrome das Falsas Memórias traz em si a conotação das memórias
fabricadas ou forjadas, no todo ou em parte, na qual ocorrem relatos de fatos
inverídicos, supostamente esquecidos por muito tempo e posteriormente
relembrados. São erros que se devem à memória, e não à intenção de mentir.
Podem ser implantadas por sugestão e consideradas verdadeiras e, dessa
forma, influenciar o comportamento.

Estas memórias falsas devem ser distinguidas das memórias recobradas, isto
é, aquelas que realmente permanecem inacessíveis por algum tempo, mas,
posteriormente, vêm à tona. [...]

Sumariamente, a distinção resume-se ao fato de as falsas memórias serem


uma crença de que um fato aconteceu sem realmente ter ocorrido [...].

De acordo com Stein e Neufeld (2001, p. 180), como afirmado anteriormente,


as falsas memórias podem surgir de duas maneiras: espontaneamente, partindo do
próprio sujeito, ou a partir de sugestões externas feitas por outras pessoas. No
primeiro caso,

[...] o indivíduo lembra tão somente do significado, da essência do fato


ocorrido, ou seja, o indivíduo recupera a memória da essência sobre o fato
vivido [...]. Assim, quando o sujeito deve decidir se viu uma determinada
informação, ele compara a memória da essência do evento vivenciado com
esta informação e julga lembrar da segunda informação devido à similaridade
de significado desta com o evento realmente vivido (por exemplo, você viu
uma saia vermelha em uma vitrine, depois de algum tempo passa a se
lembrar que viu um vestido, devido à similaridade da essência dos dois
eventos. (STEIN e NEUFELD, 2001, p. 180)

Já no segundo caso, as falsas memórias são implantadas a partir de


sugestões externas ao sujeito, feitas de maneira deliberada ou acidental. O sujeito,
então, seguindo a mesma lógica de similaridade ao evento real, incorpora aquela
sugestão à sua lembrança, convencendo-se de que é verdadeira. Cabe lembrar que
todo esse processo ocorre de maneira inconsciente durante o processo de
rememoração.

Em seu artigo, Lopes Jr. e Di Gesu (2007) fazem referência à uma pesquisa
que ilustra claramente a maneira como sugestões externas podem ser incorporadas
a lembranças reais, gerando memórias falsas, e o quão fortes elas podem se tornar:
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[...] psicólogos apresentaram a voluntários acontecimentos reais relatados por
membros da família, o que de fato dá mais credibilidade à história, misturados
a acontecimentos inventados — ter derramado champanhe nos pais da noiva,
em uma festa de casamento. Na primeira vez em que o fato fictício foi
relatado, nenhum dos participantes lembrava-se dele. Entretanto, os
resultados da pesquisa mudaram ao longo de duas entrevistas consecutivas:
18% e depois 25% dos voluntários afirmaram se lembrar do incidente falso.

A verificação da aludida indução ou sugestionamento é tão significativa que


alguns voluntários da pesquisa acabaram por lembrar de acontecimentos
ocorridos logo após o nascimento — lembrança dos móbiles do berço do
hospital, das enfermeiras e das máscaras dos médicos —, quando, na
verdade, sabe-se que as “recordações ligadas ao primeiro ano de vida estão
perdidas para sempre, sobretudo, porque o hipocampo, que desempenha um
papel importante nos mecanismos da memória, não é suficientemente
maduro nessa idade, para guardar lembranças recuperáveis na idade
adulta”(LOFTUS, Elizabeth. “As falsas lembranças”, in:Viver Mente &
Cérebro, pp. 92-93).

Cabe ressaltar, como faz Trindade (2012, p. 222), que a Síndrome das Falsas
Memórias não aparece no Manual Diagnóstico e Estatístico das Doenças Mentais
(DSM – IV), nem na Classificação Internacional de Doenças (CID – 10), referências
mundiais na classificação e diagnóstico de doenças mentais. No entanto, “o DSM –
IV traz alguns transtornos que se relacionam à memória, tais como os Transtornos
Amnésicos, os Transtornos Dissociativos, o Transtorno de Estresse Pós-Traumático,
o Delirium e a Demência”, que, apesar de provocarem efeitos semelhantes em
termos de memória, não devem ser confundidos com as falsas lembranças.

Três diferentes modelos teóricos têm sido usados para tentar explicar o
fenômeno das falsas memórias: o Construtivista, o modelo de Monitoramento da
Fonte e o modelo da Teoria do Traço Difuso (TTD), sendo esta última a mais
popular. Essa teoria

[...] propõe que a memória não é um sistema unitário, mas sim constituído de
dois sistemas independentes e em paralelo (Reyna&Brainerd, 1995). Esses
dois sistemas codificam as informações sob a forma de diferentes
representações, denominadas representações literais e de essência. A
memória literal armazena os traços específicos, episódicos e detalhes das

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palavras, enquanto a memória de essência armazena o sentido de forma
inespecífica, ou seja, o significado, e os padrões gerais das palavras
apresentadas. Para a TTD, as falsas memórias seriam decorrentes da
recuperação de memórias da essência do material estudado, quando as
memórias literais não estão mais acessíveis. Já as memórias verdadeiras
seriam decorrentes, em sua maior parte, da recuperação de memórias literais
(Brainerd&Reyna, 2002). (SANTOS e STEIN, 2008, p. 417)

A fim de explicitar melhor esse conceito, Stein e Neufeld (2001, p. 182)


explicam que uma memória literal seria, por exemplo, lembrarmos exatamente a
prateleira em que guardamos determinado objeto dentro de um armário específico
de nossa casa. A memória de essência, por outro lado, seria a lembrança de que
guardamos tal objeto em algum armário da casa, sem conseguir precisarem que
prateleira ele estaria, e muito menos recordar em que armário o colocamos.

As memórias literais e de essência também se diferenciam quanto à sua


duração: a primeira “é mais susceptível aos efeitos de interferência por
processamento de informações, tornando-se inacessível mais rapidamente do quea
memória de essência, considerada mais duradoura e mais robusta” (STEIN e
NEUFELD, 2001, p. 182).

Para a Teoria do Traço Difuso, ambas as memórias (literais e de essência)


são codificadas, armazenadas e recuperadas de maneira paralela e independente
uma da outra. Stein e Neufeld (2001, p. 182) exemplificam essa afirmação da
seguinte forma:

[...] no momento em que você está guardando determinado objeto num


armário específico em sua casa, você estará provavelmente armazenando, ao
mesmo tempo e de forma independente, memórias literais a respeito desse
evento (o objeto em questão é uma chave e está sendo guardado na terceira
gaveta da porta esquerda do armário da cozinha), bem como memórias de
essência a respeito desse mesmo evento (estou guardando uma coisa dentro
de um armário).

Devido às diferenças na durabilidade dos traços literais e de essência, sendo


os primeiros menos duráveis do que os segundos, com o passar do tempo
ficará bem mais difícil para você recordar o local exato onde foi guardado o
objeto, ainda que lembre de tê-lo guardado em algum armário da casa.

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Além disso, pesquisas apresentadas no artigo de Stein e Neufeld (2001)
também demonstram que a variável temporal é uma forte influência quando se trata
da formação de falsas memórias, isto é, quanto mais tempo decorre entre o
momento do acontecimento e seu posterior relato, mais provável é que certos
elementos das lembranças sejam preenchidos por memórias falsas espontâneas ou
sugeridas. Essa afirmação é particularmente importante no contexto forense, uma
vez que o depoimento de algumas testemunhas, devido ao próprio desenvolvimento
do processo, acaba sendo colhido algum tempo depois do evento investigado –
tempo que pode não ser significativo para nós, mas que é demais em termos de
memória.

AS FALSAS MEMÓRIAS NO DIREITO PENAL

A verdade, como afirmado anteriormente, não pode ser acessada em sua


totalidade. Todavia, não se pode olvidar que o objetivo primordial do processo
judicial, seja ele em que esfera for, é a obtenção da chamada “verdade real”.
Entretanto, é sabido que a prova, no direito penal, é substancialmente testemunhal,
o que, pela natureza subjetiva com que se reveste, torna mais árdua a tarefa do
julgador em busca dessa “verdade real”.Sendo assim, não deve causar surpresa o
fato de ela não ser o elemento fundamental de um processo acusatório. Como
explicam Lopes Jr. e Di Gesu (2007), o julgador não é necessariamente atraído para
a verdade, mas sim para a versão mais convincente do fato, seja ela apresentada
pela acusação ou pela defesa. Respeitando as regras da doutrina para ser validada,
a prova entra nos autos não com o intuito de refletir a verdade, mas sim de
convencer o julgador – isto, sim, é fundamental.

Em se tratando de direito penal, o juiz é o destinatário principal da


reconstrução do fato, de forma que “provar” significa convencê-lo de que o evento
ocorreu de determinada maneira. Para isso, são utilizados diversos tipos de provas,
mas a mais relevante ainda é aquela oferecida pelo testemunho dos sujeitos que
vivenciaram a situação em julgamento – a prova oral. Em algumas infrações que não
deixam vestígios – como, por exemplo, atentado violento ao pudor –, conforme
explicitado por Lopes Jr. e Di Gesu (2007), o julgador toma sua decisão baseando-
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se quase que exclusivamente no depoimento da vítima, explicitando a enorme
importância desse tipo de prova para o direito penal.

Como explica Di Gesu (2010) em seu livro, excetuando-se algum delito que
possa eventualmente ocorrer na sala de audiência ou na sessão de julgamento –
constituindo uma prova direta –, todas as provas oferecidas são indiretas.

No mesmo sentido, Gomes Filho aduz que uma primeira e essencial


dificuldade do magistrado acerca do conhecimento do fato a ser levado em
conta na decisão é justamente representada pela sua impossibilidade de
observação direta, isto é, “a atividade de investigação judicial se dirige a
acontecimentos passados, cuja reconstituição somente pode ser alcançada a
partir de meios indiretos”. Além disso, se ele presenciasse o acontecimento,
atuaria como testemunha, e não como julgador. (DI GESU, 2010)

Portanto, podemos concluir que a prova, no direito penal, destina-se a


convencer psicologicamente o juiz apresentando uma versão do fato em julgamento.
Para isso, é utilizado, na grande maioria das vezes, um relato testemunhal em
primeira pessoa, isto é, extremamente subjetivo, apesar da premissa de que o
depoimento deve ser dado da forma mais objetiva possível. Por não ter acesso a
provas diretas, o juiz não tem como garantir que o testemunho apresentado não
esteja sendo distorcido por interesse, paixão ou pelas já analisadas falsas
memórias.

Partindo dessa premissa, vigora, no direito brasileiro, o princípio do livre


convencimento motivado do julgador, pelo qual é necessário que, substancialmente
no exame da prova testemunhal produzida, o magistrado recorra à sua percepção
dos movimentos, atitudes e reações dos depoentes, a fim de se habilitar à conclusão
mais correta e justa possível dos fatos ocorridos.

A fim de auxiliar os operadores do direito na análise das declarações com as


quais se deparam, Trindade (2012, p. 226) desenvolveu o seguinte organograma,
reproduzido tal e qual consta na sexta edição da obra Manual de Psicologia Jurídica
para operadores do Direito:

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Assim, concluímos que existem vários fatores que contribuem de maneira
específica para a formação de falsas memórias na dinâmica penal. Um deles é o já
mencionado fato de as provas basearem-se principalmente em testemunhos orais,
indiretos e apresentados em retrospecto, dependentes da memória do indivíduo e
sujeitos às suas interpretações. Outro fator decorre da forte correlação entre falsas
memórias e fortes emoções, isto é, quando passamos por um acontecimento que
envolve forte emoção, o que costuma permanecer na nossa memória é a sua
essência, aquilo que foi mais significativo ou que representou maior perigo para nós
dentro daquele contexto, enquanto os elementos menos relevantes desaparecem da
lembrança ou são reconstruídos pela imaginação. Dessa forma, podemos dizer que
esse mecanismo do cérebro certamente é acionado em grande parte dos sujeitos
envolvidos em ações penais, uma vez que situações criminosas costumam envolver
fortes emoções.

Além disso, a própria dinâmica do julgamento pode favorecer a criação de


falsas memórias devido a dois fatores principais: a tendência natural do ser humano
de atender às expectativas de uma autoridade – no caso, juiz e/ou promotores – e a
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maneira como são formuladas as perguntasdurante a oitiva das testemunhas.
Trindade (2012, p. 224) explica como essa última situação pode acontecer:

No interrogatório de um caso, por exemplo, geralmente o entrevistador


procura buscar provas que atestem seus pontos de vista preconcebidos.
Dessa forma, sem se dar conta, pode formular perguntas sugestivas, ao
referir detalhes do acontecimento que está sendo questionado. Podemos
fazer uma analogia simples, mas não totalmente inverossímil, com a clássica
brincadeira em que se pergunta: de que cor era o cavalo branco de
Napoleão?

Ainda que seja inerente à prática do direito o jogo de perguntas e respostas


com o objetivo de desacreditar as testemunhas adversárias, concordamos com Di
Gesu (2010) quando ela enfatiza a importância de a legislação processual “vedar as
perguntas prejudiciais à sinceridade das respostas”, isto é, fiscalizar e proibir
questões que sugerem deliberadamente determinadas respostas.

A fim de mitigar a influência das falsas memórias na prática jurídica, Lopes Jr.
e Di Gesu (2007) apresentam sugestões que devem ser levadas em consideração e
que consideramos enriquecedoras para o debate:

As contaminações a que está sujeita a prova penal podem ser minimizadas


através da colheita da prova em um prazo razoável, objetivando-se suavizar a
influência do tempo (esquecimento) na memória. A adoção de técnicas de
interrogatório e a entrevista cognitiva permitem a obtenção de informações
quantitativa e qualitativamente superiores à das entrevistas tradicionais,
altamente sugestivas. O objetivo aqui é evitar a restrição das perguntas ou
sua formulação de maneira tendenciosa por parte do entrevistador, sugerindo
o caminho mais adequado para a resposta. De outra banda, a gravação das
entrevistas realizadas na fase pré-processual, principalmente as realizadas
por assistentes sociais e psicólogos, permite ao juiz o acesso a um completo
registro eletrônico da entrevista. Isso possibilita ao julgador o conhecimento
do modo como os questionamentos foram formulados, bem como os
estímulos produzidos nos entrevistados. Assumem especial importância não
como indício de prova propriamente dito, mas para que o julgador avalie
como foi realizado o procedimento e que métodos foram utilizados, a fim de
verificar ou não os graus de contaminação.

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Em que pese ao juiz seja dada a prerrogativa de vetar perguntas
consideradas irrelevantes, inoportunas ou que sugestionem o depoente a uma
determinada resposta, a verdade é que os advogados, de igual sorte, necessitam
ficar atentos à condução do depoimento e à formulação dos questionamentos
dirigidos às testemunhas, com o objetivo de extrair, da melhor forma possível, a
verdade dos fatos.

A partir de tudo que foi apresentado até aqui, tornam-se evidentes as sérias
implicações que as falsas memórias podem trazer para o contexto jurídico,
especialmente no âmbito penal. Apesar de as memórias ilusórias constituírem uma
parte natural da psicologia humana, nós, como operadores do direito, temos o dever
de buscar soluções para esse grave problema, ainda que não definitivas, tendo em
vista a complexidade da tarefa.

CONCLUSÃO

Neste artigo, revisamos estudos relativos à formação de falsas memórias e


suas possíveis implicações para o exercício do direito penal. Reconhecemos que é
um tema muito complexo e de grande importância para o exercício da justiça,
devendo ser amplamente estudado pelos operadores do direito, uma vez que
cotidianamente precisamos lidar com as lembranças das pessoas para obter provas
ou auxiliar no reconhecimento de criminosos.

Tais estudos adentram, por certo, em áreas diversas do direito, comoa


psicologia e suas implicações para o comportamento humano. Auxiliados por essas
pesquisas e por aquilo que nos ensina a prática do direito, chegamos à conclusão de
que é necessário atentar para elementos que vão além das palavras proferidas,
como, por exemplo, as reações, os gestos e as atitudes do depoente, para que seja
possível, a partir dessas percepções, dirigir o depoimento na busca da verdade.

Entendemos que o delito penal, devido à sua própria natureza, gera forte
emoção para todos os envolvidos, o que, como vimos, favorece o desenvolvimento
de falsas memórias, uma vez que, nessas condições, a tendência da mente humana

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é reter apenas aquilo que contribuiu significativamente para o surgimento dessa
emoção, “deixando no esquecimento justamente o que seria mais importante a ser
relatado no processo, ou seja, a memória cognitiva, provida de detalhes técnicos e
despida de contaminação (emoção, subjetivismo ou juízo de valor)” (LOPES JR. e DI
GESU, 2007).Cumpre, portanto, analisar todas as provas com máxima cautela para
chegar o mais próximo possível da verdade dos fatos.

Em resumo, podemos dizer que parte significativa das provas apresentadas


no processo penal são oferecidas em retrospecto, retomadas por meio de uma
atividade mental e, portanto, essencialmente subjetiva, visando ao convencimento
do julgador. Concordando com Di Gesu (2010), não podemos, de forma
alguma,atestar a imparcialidade dos testemunhos, pois, além da inerente dificuldade
– ou até impossibilidade – de apreender a verdade em sua totalidade, as lembranças
do sujeito estarão inevitavelmente contaminadas por suas próprias interpretações do
evento, ou, em casos mais graves para o exercício da justiça, preenchidas por falsas
memórias.

Por certo, a interpretação que o julgador faz da carga probatória de cada


depoimento colhido nos autos também tem natureza subjetiva, embora alicerçada
nas diversas fontes do direito, em especial, na legislação aplicável.Nesse contexto,
quanto maior a percepção das várias nuances com que se reveste a narrativa de um
fato, maior também a probabilidade de se alcançar a “verdade real” e,
consequentemente, mais perto ficará a obtenção de um julgamento imparcial e justo.

Enfim, entendendo melhor a natureza humana, os operadores do direito


melhor se habilitarão a exercer suas atividades jurídicas de maneira mais justa e
comprometida com a verdade. Por isso, é necessário que o direito, enquanto
ciência, se associe a outros ramos científicos que possam auxiliar no exame das
provas produzidas, em especial no depoimento das partes e testemunhas, que, por
certo, se reveste de forte subjetividade na percepção dos fatos.

Concluímos, a partir de tudo que foi demonstrado neste trabalho, que existem
inúmeras variáveis que podem comprometer a veracidade dos depoimentos dados
no contexto forense, entre elas “os questionamentos repetidos durante longo
intervalo de tempo, o tipo de perguntas feitas e o status do entrevistador” (STEIN e
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NEUFELD, 2001, p. 184), que pode, por exemplo, intimidar a testemunha a ponto de
fazê-la recorrer a distorções de maneira inconsciente. Além disso, o modo como as
perguntas são feitas durante o processo deve ser sempre observado de perto pelo
magistrado e a conduta geralmente lenta do judiciário brasileiro deve ser acelerada
para que sejam evitados julgamentos injustos porque baseados em memórias falsas,
que tantos prejuízos trazem para a vida pessoal de alguns indivíduos e,
consequentemente, para a sociedade como um todo.

False memories in criminal law: implicationsandalternatives

ABSTRACT

In thisarticle, we review studiesabouttheformationof false memories


andtheirpossibleimplications for thepracticeof criminal law. False memories refersto a
psychology’sconceptdefinedbygreatresearchersofthisscience as
theremembranceofeventsthatneveractuallyhappened. Brazilian criminal
proceedingsismostlybasedontestimonialevidence, withallthesubjectivityinherent in a
first-person report. Therefore,
thereportcanbecontaminatedbytheindividual’sdesiresandwishesor, evenworse, it
canbebasedon false memories, sincethey are
easilyformedbyeventsinvolvingstrongemotion, a featureofmostofthe cases
analyzedby criminal law. The mainfocuswillbethediscussionabouttheformationof false
memories andhowtheycaninfluence a judgment. Finally, weintroduce some
suggestionstomitigatethis problem.

Keywords: False memories. Criminal law. Testimonialevidence.

REFERÊNCIAS

14
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2010.

LOPES JR., Aury; DI GESU, Cristina Carla. Prova penal e falsas memórias: em
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SANTOS, Renato Favarin dos; STEIN, Lilian Milnitsky. A influência das emoções nas
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SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, memória, literatura: o testemunho na Era


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TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do Direito.


Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.

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