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Esta obra de referência é um dos resultados do Projeto Tradições Étnicas entre os Pataxó no Monte
Pascoal: subsídios para uma educação diferenciada e práticas sustentáveis, financiado pela Petrobras
através da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura. Além desta publicação, produziu-se
também a sua versão em CD-ROM, os Vídeos Didáticos, a Apostila Didática e os centros de referência
digital nos grupos de pesquisa NECCSos-UESB e PINEB-UFBA e um sítio na internet, acerca da
cultura Pataxó Meridional.

Grupos de Pesquisa atuantes no Projeto


Núcleo de Estudos em Comunicação, Culturas e Sociedades
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia NECCSos - UESB
Programa de Pesquisa Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro
Universidade Federal da Bahia PINEB - UFBA
REVISÃO
LUIZ ANTÔNIO CAETANO DA SILVA E ADLA VIANA
JOSÉ LUÍS CAETANO DA SILVA (REVISÃO TÉCNICA)

PLANEJAMENTO GRÁFICO
ADLA VIANA
MÁRCIO COSTA (COLABORAÇÃO)

ILUSTRAÇÃO DA CAPA
MARCELO RAMPAZZO

CONSTRUÇÃO DO E-BOOK
ADLA VIANA

AGOSTINHO DA SILVA, Pedro Manuel, et alli.


Tradições étnicas entre os Pataxó no Monte
Pascoal: subsídios para uma educação
diferenciada e práticas sustentáveis. Vitória da
Conquista: Núcleo de Estudos em Comunicação,
Culturas e Sociedades. NECCSos - Edições UESB.
2008, 500p.
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AUTORES

 Adailton Nunes Rocha


(clique aqui e acesse o currículo do autor)
Graduando em Comunicação Social com habilitação em
Jornalismo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia -
UESB e bolsista de iniciação científica do Núcleo de Estudos em
Comunicação, Culturas e Sociedades NECCSOs – UESB.
E-mail: danrocha10@yahoo.com.br

 Adla Viana Lima


(clique e acesse o currículo do autor)
Apoio Técnico do Núcleo de Estudos em Comunicação, Culturas
e Sociedades NECCSos-UESB Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia e graduanda em Comunicação Social –
Produção em Comunicação e Cultura da Universidade Federal
da Bahia, UFBA.
E-mail: adlaviana@gmail.com

 Bernard Bierbaum

Mestre em Antropologia pela München, Universitãt em 2000.


E-mail: bertree@googlemail.com

 Chestmír Loukotka

Linguista Tcheco. Estudioso das línguas ameríndias.

 Cláudia Santana Santos


(clique e acesse o currículo do autor)
Pós-Graduanda do mestrado em Zoologia Aplicada da
Universidade Estadual de Santa Cruz, UESC.
E-mail: claudiass_zoo@yahoo.com.br
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 Corinna Carmen Gayer


(clique e acesse o currículo do autor)
Mestre pelo Departamento de Ciências Sociais da Humbold-
University de Berlin e integrante do HumanDHS Education Team
da rede global Human Dignity and Humiliation Studies.
E-mail: corinna.gayer@gmail.com

 Francisco Cancela
(clique e acesse o currículo do autor)
Doutorando em História Social pela Universidade Federal da
Bahia, UFBA. Especialista em Docência, bolsista CAPES.
E-mail: franciscocancela@yahoo.com.br

 Gabriele Grossi
(clique e acesse o currículo do autor)
Professor de Antropologia e Sociologia Geral da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB.
E-mail: ggrossi2@yahoo.com.br

 Geslline Giovana Braga


(clique e acesse o currículo do autor)
Pós-Graduanda no mestrado em Antropologia Social da
Universidade Federal do Paraná, UFPA, e professora da
UNIBRASIL - Faculdades Integradas do Brasil.
E-mail: ges@onda.com.br

 Joaquim Perfeito
(clique e acesse o currículo do autor)
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio
de Janeiro, UERJ. Professor de Metodologia Científica e
Métodos e Técnicas de Pesquisa da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia, UESB.
E-mail: jsilva@uesb.br
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 José Augusto Laranjeiras Sampaio


(clique e acesse o currículo do autor)
Professor de Antropologia Cultural da Universidade do Estado
da Bahia – UNEB. Membro da Associação Nacional de Ação
Indigenista, ANAI.
Email: guga@anai.org.br

 José Luís Caetano da Silva (Org.)


(clique e acesse o currículo do autor)
Doutorando em Ciências Sociais/Antropologia pelo Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da
Bahia. Professor das disciplinas Sociologia Geral e da
Comunicação e Comunicação e Sociedade da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB.
E-mail: lucae34@yahoo.com.br

 Marcela Bomfim da Silva


(clique e acesse o currículo do autor)
Graduanda em Comunicação Social com habilitação em
Jornalismo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia -
UESB e bolsista de iniciação científica do Núcleo de Estudos em
Comunicação, Culturas e Socidades NECCSOs – UESB.

 Marcelo Rampazzo (capa)


(clique e acesse o currículo do autor)
Professor de artes gráficas na ABRA ( Escola de Arte e Desing )
e de colagem no MUBE ( Museu Brasileiro de Escultura). É
ilustrador e artista plástico com diversos trabalhos publicados e
exposições em diversos estados.
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 Maria Geovanda Batista


(clique e acesse o currículo do autor)
Professora da Universidade do Estado da Bahia, mestre em
Educação pela Universidade de Québec, em Chicoutimi.
Especialista em Didática e Planejamento Educacional pela
Faculdade de Filosofia de Passos e, em Supervisão Educacional
de I e II Graus pela UNIMONTES/MG.
E-mail: mgeobatista@yahoo.com.br

 Maria Rosário Gonçalves de Carvalho (Org.)


(clique e acesse o currículo do autor)
Professora do Departamento de Antropologia e dos Programas
de Pós-Graduação em Antropologia, Estudos Étnicos e
Africanos (Pós-Afro) e Ciências Sociais da UFBA
E-mail: rosario@ufba.br

 Pedro Manuel Agostinho da Silva


(clique e acesse o currículo do autor)
Professor da Universidade Federal da Bahia Departamento de
Antropologia, FFCH/UFBA. Pesquisador do Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da UFBA desde 1966.

 Rodrigo de Azeredo Grünewald


(clique e acesse o currículo do autor)
Professor Associado de Antropologia da Universidade Federal
de Campina Grande (UFCG) / Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (PPGCS) / Laboratório de Estudos em
Movimentos Étnicos (LEME).
E-mail: grünewald@ufcg.edu.br
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 Sheila Brasileiro
(clique e acesse o currículo do autor)
Técnica pericial do Ministério Público Federal e mestre em
Ciências Sociais/Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia –
PPGCS-UFBA.
E-mail: sheilab@prba.mpf.gov.br

 Thayara Nunes Novaes do Carmo


(clique e acesse o currículo do autor)
Graduanda em Ciências Biológicas da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia e bolsista de iniciação científica do Núcleo de
Estudos em Comunicação, Culturas e Sociedades NECCSos –
UESB.
E-mail: thayarabio@yahoo.com.br

 Tiago Carvalho Lima


(clique e acesse o currículo do autor)
Graduando em Engenharia Agronômica da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB e bolsista de iniciação
científica do Núcleo de Estudos em Comunicação, Culturas e
Sociedades NECCSOs – UESB.
E-mail: tiagogbi@hotmail.com
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SUMÁRIO (CLIQUE E ACESSE O TEXTO)

1 INTRODUÇÃO...........................................................................................................11
MARIA ROSÁRIO GONÇALVES DE CARVALHO E JOSÉ LUÍS CAETANO DA SILVA

2 A HISTÓRIA DA LUTA PATAXÓ NO MONTE PASCOAL

2.1 OS PATAXÓ MERIDIONAIS: UMA BREVE RECENSÃO HISTÓRICO-BIBLIOGRÁFICA


MARIA ROSÁRIO GONÇALVES DE CARVALHO......................................................................15

2.2 “SOB O SIGNO DA CRUZ”: RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO DE IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DA


TERRA INDÍGENA COROA VERMELHA
JOSÉ AUGUSTO LARANJEIRAS SAMPAIO............................................................................44

2.3 O ALDEAMENTO, O FOGO E O PARQUE: RESISTÊNCIA PATAXÓ EM BARRA VELHA


RODRIGO GRÜNEWALD................................................................................................160

2.4 A TERRITORIALIZAÇÃO PATAXÓ MERIDIONAL EM TORNO DO MONTE PASCOAL


JOSÉ LUÍS CAETANO DA SILVA.....................................................................................206

3 TRADIÇÕES ÉTNICAS PATAXÓ

3.1 ENTRE SANTOS,ESPÍRITOS E ENCANTADOS: OS PATAXÓ DE BARRA VELHA, BAHIA


GABRIELE GROSSI......................................................................................................279

3.2 A REPRESENTAÇÃO RITUAL: O TORÉ/AWÊ E OS SENTIDOS DOS PERSONAGENS


JOSÉ LUÍS CAETANO DA SILVA.....................................................................................302

3.3 IDENTIDADE PATAXÓ NA FESTA DE SÃO SEBASTIÃO EM CUMURUXATIBA/BA


GESLLINE GIOVANA BRAGA.........................................................................................333

3.4 PAU DO BASTIÃO: SINCRETISMO, COR, DANÇA E CANTO NO AWÊ


ADAILTON NUNES ROCHA, MARCELA BOMFIM..................................................................362
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3.5 O ANTIGAMENTE E O HOJE EM DIA (NOTAS INÉDITAS DE 1988-1989)


BERNHARD F. BIERBAUM............................................................................................367

4 ETNOECOLOGIA: VISÃO E DI-VISÃO DE MUNDO

4.1 CONDICIONAMENTOS ECOLÓGICOS E INTERÉTNICOS DA LOCALIZAÇÃO DOS PATAXÓ DE BARRA


VELHA
PEDRO MANUEL AGOSTINHO DA SILVA...........................................................................375

4.2 OS PATAXÓ MERIDIONAIS (PORTO SEGURO BAHIA): CONSIDERAÇÕES SOBRE A DEMARCAÇÃO


1980
REALIZADA EM

MARIA ROSÁRIO GONÇALVES DE CARVALHO....................................................................393

4.3 ASPECTOS ECOLÓGICOS DA PESCA EM ALDEIAS PATAXÓ, EXTREMO SUL/BAHIA


JOSÉ LUÍS CAETANO DA SILVA , CLÁUDIA SANTOS...........................................................403

4.4 ETNOCONHECIMENTO DOS ÍNDIOS PATAXÓ NO MONTE PASCOAL, BAHIA: CONHECENDO OS


MAMÍFEROS ATRAVÉS DE PEGADAS

THAYARA NUNES, JOAQUIM PERFEITO DA SILVA...............................................................408

4.5 CONHECIMENTO SOBRE PLANTAS MEDICINAIS DOS INDÍGENAS PATAXÓ


TIAGO CARVALHO LIMA...............................................................................................411

4.6 A CURA DE DOENÇAS ATRAVÉS DO CONHECIMENTO ETNOZOOLÓGICO


THAYARA NUNES NOVAES DO CARMO............................................................................416

4.7 O PLANTIO DE EUCALIPTO E A PRODUÇÃO DE CELULOSE: NOTAS SOBRE O IMPACTO AMBIENTAL


PATAXÓ MERIDIONAIS
E SOCIAL ENTRE OS

JOSÉ LUÍS CAETANO DA SILVA, CLÁUDIA SANTANA SANTOS..............................................421

5 EXPRESSIVIDADE PATAXÓ MERIDIONAL

5.1 A LÍNGUA DOS PATACHOS


CHESTMÍR LOUKOTKA.................................................................................................439

5.2 FAZER A FLECHA CHEGAR AO CÉU NOVAMENTE: OS PATAXÓ NO EXTREMO SUL DA BAHIA
BERNHARD F. BIERBAUM............................................................................................454
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5.3 EXPRESSIVIDADE PATAXÓ MERIDIONAL: CARACTERÍSTICAS ÉTNICAS E O CICLO DE PRODUÇÃO E


REPRODUÇÃO SOCIAL E CULTURAL

ADLA VIANA LIMA......................................................................................................464

5.4 ETNICIDADE E ADESÃO PESSOAL: A ESCOLHA DO NOME INDÍGENA


JOSÉ LUÍS CAETANO DA SILVA.....................................................................................473

5.5 AS MÚLTIPLAS FACETAS DA FESTA DO MASTRO DE SÃO SEBASTIÃO. A MÁQUINA DE


ASCESE DO PODER RELIGIOSO
MARIA GEOVANDA BATISTA.........................................................................................496

6 NOÇÕES PATAXÓ: PROCESSO IDENTITÁRIO, LUTA E POSSE DA TERRA

6.1 PATAXÓ MERIDIONAIS: UM SOBREVOO HISTÓRICO-ANALÍTICO


SHEILA BRASILEIRO....................................................................................................534

6.2 DIVERSIDADE CULTURAL E DIVERSIDADE BIOLÓGICA NO MONTE PASCOAL


CORINA CARMEN GAYER.............................................................................................547

6.3 UMA BARREIRA CONTRA OS PERIGOS DO SERTÃO DO MONTE PASCOAL: A CRIAÇÃO DA VILA
DOPRADO, OS ÍNDIOS PATAXÓ E A RE-SIGNIFICAÇÃO DO CONTATO (1764-1820)
FRANCISCO CANCELA..................................................................................................601

6.4 NOÇÃO NATIVA DE POSSE DA TERRA ENTRE OS PATAXÓ NO MONTE PASCOAL


JOSÉ LUÍS CAETANO DA SILVA.....................................................................................620
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1
1. INTRODUÇÃO

Maria Rosário Gonçalves de Carvalho


José Luís Caetano da Silva

Neste livro, Tradições Étnicas Entre os Pataxó no Entorno


do Monte Pascoal: subsídios para uma educação diferenciada e
práticas sustentáveis, objetiva-se inventariar, pesquisar e registrar
o patrimônio étnico do povo Pataxó a começar pelas danças que
seguem cânticos e batucadas, comuns a todas as aldeias no entorno
do Monte Pascoal como o Auê, primeira manifestação étnica
registrada, as rodas de samba que também sempre foram comuns, o
Toré que vêm sendo recriado como dança por influência do contato
cada vez mais integrado com os demais Pataxó, Tupinambá e
demais povos indígenas do Nordeste, onde é uma prática comum.
O mesmo será feito com a participação Pataxó em cerimônias
religiosas do catolicismo local como a Puxada do Mastro de São
Sebastião em Cumuruxatiba, distrito de Prado/Ba) e as festas de
São Braz e São Sebastião em Barra Velha, Porto Seguro/Ba, ou a
comemoração do dia de reis em Coroa Vermelha, Santa Cruz de
Cabrália/Ba; com os rituais religiosos conduzidos nas aldeias por
pajés Pataxó – incluindo os produtos e conhecimentos usados na
cura de enfermidades, locais de danças e de enterro dos mortos;
com a língua Pataxó – incluindo nomes indígenas e sua significação;
com rituais e exibições nas festividades do Dia do Índio e outras em
extinção como a Gabiraba, cantoria onde se lançam desafios através
1Texto baseado no projeto Tradições Étnicas entre os Pataxó no Monte Pascoal, 2004.
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de rimas; e, por fim, com o artesanato de uso Pataxó –


especialmente as técnicas e artefatos voltados para a pesca,
mariscagem, agricultura, culinária e demais afazeres domésticos.
Visa-se, ainda, subsidiar a difusão deste patrimônio, ao
contribuir com processos de ensino-aprendizagem que formarão
multiplicadores de práticas sustentáveis na relação entre a
territorialização Pataxó e as Unidades de Conservação da Costa do
Descobrimento.
Foi um trabalho de campo entre os Pataxó do Monte Pascoal,
conduzido no livro de Pesquisa Sobre Povos Indígenas da Bahia,
que se tornaria o momento inaugural do PINEB; “...uma viagem de
reconhecimento que congregou professores (de Antropologia e de
História), e alunos de graduação em Ciências Sociais [UFBA]. A
equipe desembarcou de sua canoa [...] em 8 de dezembro de 1971,
dando início a um levantamento que geraria importantes laudos,
dissertações e teses que ajudaram a demarcar as fronteiras
territoriais e simbólicas do povo Pataxó.
Agora, quatro décadas depois, a etnicidade Pataxó assumiu
uma multiplicidade de posições em suas práticas, valores e mesmo
nas tradições que legitima ou não. A territorialização Pataxó forçou
processos de heterogeneização e homogeneização em relação à
sociedade abrangente que provocaram mudanças no que se poderia
chamar de patrimônio imaterial que sinaliza diacriticamente o povo
Pataxó evidenciando seu caráter étnico diferenciado em relação ao
restante da nação brasileira.
Concomitantemente, os Pataxó saíram do seu relativo
isolamento em relação às demais populações de origem pré-
cabralina que habitam o Nordeste e demais regiões do Brasil.
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Nestas três décadas o Pataxó descobre-se índio, na mesma medida


os demais índios descobrem a força da etnia Pataxó; evidenciada
pela sua atuação nas organizações dos povos indígenas do Brasil.
Em meio às comemorações dos 500 anos os Pataxó
descobrem-se como vitrines, para o Brasil e para o mundo, de meio
milênio de relações entre índios e não-índios e instrumentalizam a
força política que este simbolismo lhes dá e passam a ver neste
momento histórico a hora de se recuperarem de perdas que lhes
foram impostas durante todo o século XX.
Tais processos históricos vividos pelo povo Pataxó justificam
per si um novo levantamento sobre os Pataxó com a amplitude e o
rigor do que foi feito na década de setenta pelo PINEB.
Outros fatores auxiliam na justificativa e na demonstração da
importância de tal estudo. O principal deles é o fato da
territorialização Pataxó vir convivendo com Unidades de
Conservação nacionais e com o entorno de proteção das mesmas;
fato que torna a educação ambiental central para se contrabalancear
a difusão do patrimônio imaterial Pataxó, com a preservação de seus
locais e produtos, com a necessidade de se proteger o meio
ambiente.
Por fim o livro justifica-se pelas condições atuais de vida em
que se encontram as populações Pataxó no Extremo Sul da Bahia.
Nas Terras Indígenas já homologadas sofre-se pela exaustão das
terras que nunca foram em quantidade necessária para a
reprodução social do grupo. Nas não homologadas sofre-se pela
intrusão e pelos conflitos com os que disputam estas áreas aos
Pataxó, incluindo entidades governamentais como o INCRA e o
IBAMA (Caetano da Silva, 2003).
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Em todas se luta contra a fome, a falta de unidades de ensino,


de atendimento de saúde, de esgotamento sanitário, de coleta de
lixo, de emprego e, principalmente, luta-se contra o preconceito em
relação ao ser Pataxó impedido de trabalhar nas fazendas ou nas
pousadas por ser considerado inimigo dos seus proprietários,
ridicularizado quando criança, na escola, pelas pinturas exóticas que
traz consigo após as danças e festividades, combatido como
agressor da natureza quando repete gestos seculares de seu povo
em busca de alimentar-se ou produzir artefatos.
Todos estes fatores tornam extremamente custosos a
manutenção dos valores, das práticas, das tradições e costumes que
os diferenciam etnicamente do restante da população. Ao fazer a
opção por permanecer Pataxó um indivíduo não está
instrumentalizando uma identidade útil, está entrando num universo
de lutas que, mormente, lhe será prejudicial.
Vê-se assim que ações visando preservar o patrimônio
imaterial deste povo equilibrando suas práticas com a preservação
da natureza que os cerca é uma obra que urge ser realizada e uma
ação educacional que muito terá a ensinar a todos os envolvidos no
processo.


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2. A HISTÓRIA DA LUTA PATAXÓ NO MONTE PASCOAL

2
2.1 . OS PATAXÓ MERIDIONAIS: UMA BREVE RECENSÃO HISTÓRICO-BIBLIOGRÁFICA

Maria Rosário de Carvalho

Meu avô contava que em tempo de dia santo, eles


morava esse tempo nas roça, eles saía pra fora, vinha pra
beira da praia... eles morava lá dentro, agora tinha a sede
lá fora. Nesse tempo eles saía prá fora, com medo dos
tapuio brabo da mata (ele alcançou os tapuio véio)...
resultado que os tapuio véio vinha e fazia barraca no
3
“Céu” e no “Angelim . Quando eles via assobiando
capoeira, macu, remedando macaco já sabia que era os
índios que vinha, os tapuio véio brabo da mata... quando
chegava nas roça deles, tava tudo de cara pra cima
chupando cana. Aí passava, falava com eles (falava a
mesma língua) e não ligava eles não, passava pras
roças... trazia cana, banana, batata, dava a eles. Iam
embora lá pra praia, quando voltava da pescaria eles
chegava aqui, os tapuio brabo da mata, vinham trazer
caça pra eles e os outros dava peixe. Esses tapuio vinha
de Minas Gerais, lá de cima, a nação não dizia, mas que
vinha de Minas Gerais. Os brabo pegava as caça, as
mulher (as tapuia) e vinha trocar com as outras daqui com
farinha, beiju, coco, cauim e voltava pras barracas deles.
2Texto baseado numa parcela da dissertação da autora

3 Locais situados, respectivamente, ao norte e sul da Aldeia de Barra Velha.


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(...) Chamava tapuio brabo porque os tapuio da mata


comia gente, até eles mesmo, os tapuio daqui de fora, os
índio... Não vestia nada não, metade era nu e metade na
tanga, não tinha roupa não. Os daqui já vestia roupa
(depoimento recolhido em 1976).

Uma das primeiras informações disponíveis sobre a região


ainda hoje habitada pelos Pataxó provém de um ofício do
Governador Francisco da Cunha Menezes para o Visconde de
Anadia, em 1805, participando-lhe haver encarregado o Capitão-mor
da Capitania de Porto Seguro de explorar as barras e rios dessa
capitania. Em janeiro desse mesmo ano a memória resultante desse
trabalho exploratório é enviada ao Governador.
Aproximadamente no local onde hoje se localiza a Aldeia de
Barra Velha, o Capitão-mor refere à existência de “...boas terras
para todas as plantações, e tão próprias para canas, que entre
grandes matos se conservão canaviaes com canas de formidável
grandeza, cujos deixarão os Índios, que neste lugar estiverão
aldeados, de onde os removeo o Ministro José Xavier Machado para
a Villa do Prado para se aproveitarem de melhor comércio, e
civilizarem” (Castro e Almeida 1918: 241).
Nessa mesma memória é registrada a presença, em um sítio
da Villa de N. Snr. da Purificação com o nome de Prado, de “Índios
moradores plantadores de árvores de espinho” (ib.: 239). O dado
parece significativo, já que o fato de haver referência à ocupação no
local reivindicado, pelos Pataxó, como sendo um seu assentamento
tradicional, autoriza a hipótese de que o posterior deslocamento para
o sul, por resolução administrativa, tenha ocorrido para forçar a
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quebra de isolamento dos índios e conduzi-los à denominada


civilização, em razão do maior desenvolvimento comercial do Prado.
Levando-se mais adiante a hipótese, poder-se-ia concluir que, por
esses motivos, essa vila pode ter funcionado, eventualmente, como
local de aldeamento para as tribos vizinhas, em razão da maior
centralização que isso permitiria, implicando, adicionalmente, em
segurança para os moradores locais.
Em 1808, algum tempo antes, portanto, da viagem do Príncipe
Maximiliano de Wied-Neuwied, o Desembargador Luiz Thomaz de
Navarro empreendeu uma viagem por terra, da Bahia ao Rio de
Janeiro, com o objetivo de examinar os caminhos para
estabelecimento dos correios. Ao passar pela vila do Prado, ele
registra grande decadência, atribuída aos contínuos ataques dos
índios, notadamente os Pataxó e Botocudos, aos quais os
moradores imputavam os maiores males; numerosas fazendas
estariam despovoadas e “seus donos lavrando nas estéreis ou
pantanosas terras mais vizinhas ao mar... corridos desses bárbaros”,
conforme ofício que o desembargador recebera do Sargento-mor
Comandante da vila de Caravelas. E o mesmo Sargento-mor
acrescentava que

“...a violência é o meio mais próprio de tornar


tranqüilas e habitáveis as terras, em que transitam estes
bárbaros, pela experiência de 22 anos em que eles as
tem feito conhecer indóceis, e incapazes de que o amor,
sofrimentos e beneficência os chame à sociedade civil, e
grêmio da igreja, o que se conseguirá mais facilmente
sitiando-os, e impedindo-lhes com armas e resistência, e
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trazendo-os violentados ao povoado das Villas, onde não


devem ficar em liberdade, porque de certo se
retrocederão, como já tem obrado alguns, que,
baptisados, apostam...” (Jornal do Instituto Histórico e
Geographico Brazileiro 1846: 449).

Essa mesma fonte diz que já havia índios em contato, “gentio


bárbaro, desde o ano de 1786 em que saiu a primeira vez na Villa de
Porto Alegre d`esta Comarca sob pretexto de paz, em número de
mais de 120 indivíduos; até hoje sempre tem dito que no seu corpo
numerado estão reunidas as 3 Nações Comonachó, Bacumim,
Machacari, e que entre os Portugueses vinham refazer-se de
ferramentas cortantes, para fazerem armamento com que se
defenderem das duas Nações suas inimigas, Pataxó, e Botocudo...”
(ib.: 446).
E o próprio Sargento-mor revela, mais adiante, que tal
inimizade na verdade não existia, pois “se fingem inimigas”, e que o
pretexto de paz era uma forma de “roubar e matar livremente
quando querem” (ib.).
O Príncipe de Wied-Neuwied, em viagem no período de 1815
a 1817, encontra a margem norte do rio S. Mateus (ou Cricaré)
freqüentada pelos “Pataxós, Cumanachós, Machacalis e outras
tribos, até Porto Seguro” (1958: 170), enquanto a margem sul seria
dominada pelos Botocudos, tidos como temidos pelas outras tribos
que “fazem causa comum contra eles” (ib.). Mais adiante, ele
observa que as florestas do Mucuri eram também habitadas pelos
Patachós e que só acidentalmente os Botocudos as atravessavam;
pode-se concluir do que ele afirma que tanto Patachós como
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“Capuchos, Cumanachos, Machacalis e Panhamis” fossem mais


numerosos ou mais aguerridos. É possível concluir, igualmente, já
que o mesmo viajante fala numa provável aliança das quatro tribos
com os Patachós, que houvesse entre elas “semelhanças de
linguagem, maneiras e costumes que parecem indicar estreita
afinidade” (b.: 176). Até aqui, e apoiada inicialmente em Wied-
Neuwied, talvez possamos admitir uma certa dispersão dos bandos
4
pataxó que se deslocariam do rio São Mateus até Porto Seguro ,
encontrando hostilidade apenas da parte dos Botocudos; esses
seriam os Pataxó meridionais. É de suspeitar a existência, ademais,
de certa diferenciação cultural entre esses bandos, pois

“enquanto os Puris, os Patachós e os Botocudos do Rio


Doce fazem os arcos do lenho dessa árvore [palmeira
airi], as tribos que vivem mais para o norte, inclusive os
Botocudos do Rio Grande de Belmonte e os Patachós do
Rio do Prado, empregam, nesse mister, o pau d’arco
(Bignonia)” (ib.: 206).

Além disso, o mapa que acompanha a obra do Príncipe


Neuwied assinala uma outra área povoada por Índios Pataxó, entre
o Rio de Contas e o Pardo; seriam estes, portanto, os Pataxó
setentrionais. Cabe, pois, o reconhecimento de dois grandes
agrupamentos denominados pataxó, um entre o São Mateus e o Rio
de Santa Cruz Cabrália, e o outro, entre os rios por último referidos,

4 Segundo o mapa de Wied-Neuwied, eles alcançavam o rio de Santa Cruz Cabrália como limite setentrional.
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sendo, ambos, classificados como ramificações dos Tapuias pelo


5
sábio alemão .
Na descrição da costa de Porto Seguro há uma observação a
respeito de um roçado de mandioca mandado fazer, no rio S.
Mateus, pelo Ministro que servia na Comarca, “afim de se situarem
alguns Índios para afugentarem o Gentio que nesta passagem se
acoitavão” (Castro e Almeida 1918: 234); informa ainda essa fonte
que o plano, datado de trinta e dois anos atrás (logo, 1773), não fora
posto em prática devido à mudança de ministro. Como o S. Mateus
era um dos limites dos deslocamentos dos Pataxó meridionais e de
outros grupos, tudo leva a crer que seriam eles, provavelmente com
os Botocudo, os Gentios que se tornava necessário afugentar. Ao
mesmo tempo, é também possível que alguns deles já estivessem
mantendo contatos pacíficos com os moradores, conforme podemos
deduzir da referência do Capitão-mor da Capitania de Porto Seguro
à presença de índios em torno da fazenda Ponte do Gentio, na vila
de Alcobaça, onde havia engenho de açúcar, de farinha de
mandioca e de anil:

“nessa mesma fazenda se acha assistindo o Gentio


bárbaro desde que ali sairão de paz no ano de 17... até o
presente tendo ido alguns a sua aldeia nas cachoeiras do
Rio Mercury, e voltado outros, mas são estes índios tão
acerrimos, na occiosidade, que pouco, ou nada trabalhão,

5 O Príncipe de Wied-Neuwied assinala que “Já em 1662, os Aimorés (botocudos), Puris e Patachós foram mencionados por Vasconcellos

Simão de Vasconcellos “Memórias curiosas sobre os índios” entre as tribos tapuias do rio Doce; e embora sejam os primeiros os verdadeiros

senhores dessas paragens, os outros incursionavam algumas vezes até aí” (1958: 163). Por outro lado, Emmerich & Monserrat, buscando

delimitar as áreas ocupadas pelos Aimorés ou Botocudos, afirmam que Salvador Correa de Sá, ao realizar uma entrada em 1577, os encontrou

nas imediações do rio Doce, “juntamente com outras nações tapuias, como Patachós, Apuraris e Puris” (1975: 5).
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e só cuidam em destruir os canaviaes, roças de mandioca,


e todos os mais legumes e frutas da dita fazenda; e
chegando a matarem quantidade de gado, com que se
tem feito perniciosos; mas todo esse destrôco tem tolerado
e tolera o senhorio da fazenda por entender que conservar
a paz, e amizade com semelhante gente, e por este meio
persuadil-os ao Cristianismo é coisa de agrado e Deus, e
serviço de S.A.R” (ib.: 238).

É interessante notar que o proprietário da referida fazenda era


o próprio capitão-mor, como ficamos sabendo através do Príncipe de
Wied-Neuwied, e que à passagem deste pelo local já ela pertencia
ao ministro Conde da Barca, que a comprara aos herdeiros do
Capitão. Confirma o citado autor que este se mantivera “em paz com
os selvagens”, e que após sua morte a propriedade se arruinou,
passando a manter uma atitude de provocação para com os
indígenas. Assim é que, vingando a morte, por um negro, de um
índio pataxó, os denominados selvagens revidaram-na, atacando os
negros numa das roças e matando-os a flechadas. Disso pode
concluir-se, com alguma reserva, que o Gentio bárbaro a que se
refere o Capitão-mor fosse um bando pataxó já em contato
intermitente desde o século XVIII, e que a própria denominação
“gentio bárbaro” decorreria do fato de serem índios não aldeados ou
“não civilizados”. Por outro lado, que os pataxó já estivessem em
convívio pacífico nos sertões de Alcobaça confirma-o o príncipe,
quando diz que Pataxós e Maxakalis “visitam pacificamente as
moradas dos brancos, oferecendo, em ocasiões, cera ou caça, em
troca de outros produtos” (1958: 212).
22 Ir para o sumário >>

Ao contrário, parte dos indígenas mais freqüentemente


estabelecidos entre S. Mateus e Alcobaça estaria, na sua grande
maioria, isolados, enquanto alguns, já em convívio pacífico,
reiniciavam hostilidades -- e tanto assim era que em “Os Lençois”
(atual divisa da Bahia com Espírito Santo), onde há muito viviam em
paz, as hostilidades recomeçaram devido à morte de um deles; às
margens do Mucuri, uma serraria deixara de ser instalada por estar a
região “totalmente dominada pelos Patachós e pelas feras” (ib.: 173,
174, 177). Na viagem de volta do Mucuri, o príncipe e seus
acompanhantes são rondados pelos Pataxó e, talvez, também, pelos
Botocudos.

“Os Patachós, com toda a certeza, nos observavam


dos sombrios esconderijos, não sem espanto e
desagrado... Ouvimos, muitas vezes, esses aborígenes
imitar a voz da coruja, da capueira...e outras vezes...
Quando a nossa gente dançava o batuque nas noites de
luar, tocando a viola (guitarra) e acompanhando sempre
com palmas, estas eram repetidas pelos selvagens do
outro lado da lagoa” (ib.: 192).

Não fica claro, porém, se teriam sido os mesmos índios os


responsáveis pela morte, em 1816, de cinco homens, mulheres e
crianças, a uma légua da Vila de Port’Alegre ( Mucuri), na nova
estrada que o ministro Conde da Barca encarregara o Capitão Bento
Lourenço de construir, através das matas de Mucuri, até a capitania
de Minas Gerais. A expedição punitiva que então se organizara por
ordem do ouvidor, composta com gente armada de S. Mateus, Vila
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Verde, Porto Seguro e outros lugares, não logrou resultado, pois não
os encontrou.
O Príncipe de Wied-Neuwied encontrou os Pataxó na vila do
Prado, em 1816, quando haviam chegado, dias antes, das florestas
para as plantações, portando grandes bolas de cera para vender.
Estariam em contato amigável com os habitantes dessa Vila há três
anos, desde 1813, portanto, através da mediação dos Maxakali, que
há mais tempo se mantinham em convívio pacífico. Na ocasião do
encontro mantinham comércio, observando o sábio que “tinham
muito tino para comerciar”, desejando principalmente facas e
machadinhas (ib.: 214). Pela sua descrição, fica-se sabendo que os
Pataxó usavam os cabelos soltos, cortados no pescoço e na testa,
raspando alguns a cabeça e mantendo apenas um pequeno tufo na
frente e atrás, sendo a maioria de estatura média e conservando o
costume de atar o prépucio com um ramo de cipó. Seriam entre
todas as “tribos selvagens” “os mais desconfiados e reservados”,
lembrando, em vários aspectos, os “Machacaris” ou “Machacalis”
(ib.: 215).
Aceitando 1813 como data de início do estabelecimento de
relações pacíficas entre Pataxó e regionais, estaríamos incorrendo
em contradição sobre o que afirmamos anteriormente em relação à
possibilidade de serem Pataxó os índios que já em 17... mantinham
relações amigáveis com o Capitão-mor de Porto Seguro. Supomos,
porém, dado o grande número de bandos desse grupo que parecia
existir, que seu contato se tenha feito de forma não simultânea e sim
distinta de bando para bando, hipótese que julgamos bastante
plausível, se considerarmos que mesmo entre aqueles definidos
como meridionais havia alguns bandos ainda hostis e outros já em
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“contato intermitente” no princípio do século XIX. Todavia, talvez


pudéssemos estabelecer como termo de início de contato dos
Pataxó meridionais - justamente os que nos interessam, por deles
fazerem parte os atuais Pataxó de Barra Velha - os fins do século
XVIII, ou os inícios do século XIX. Em apoio desta última data - o
que corroboraria Wied-Neuwied - há um ofício de Marciano de Jesus
Fontoura (MS 1), sub-delegado de polícia do Prado, que, a propósito
de protestar contra a mudança dos índios da vila do Prado para
Alcobaça, por não se tratar de “lotes de gado que o seu Pastor
desloca para o lugar que mais interesse tem”, se refere à existência
de índios mansos que poderiam ajudar a amansar outras tribos,
como fizera seu pai, há cinqüenta anos, na época que era “Capitão
de Conquistas” da Vila do Prado - quando “amansou primeiramente
a nação Maxacary, com estes amansou 5 bandeiras de nação
Pataxó, dos quais ainda existem poucos aqui...”. Como o ofício é de
fevereiro de 1857, isso teria ocorrido aproximadamente em 1807; ao
mesmo tempo, o documento permite-nos confirmar alguns outros
pontos, como, por exemplo, o de que os Maxakalí atuaram como
mediadores no contato e que alguns bandos foram efetivamente
pacificados no período compreendido entre 1807 e 1813, termo esse
que permite maior precisão por ser definido com base em duas
fontes; e que em 1857 ainda havia Pataxó na vila do Prado. Isto
parece apoiar a hipótese, já anteriormente suscitada, de haver essa
vila funcionando como local de aldeamento para as tribos vizinhas,
para onde, inclusive, haviam sido transferidos aqueles índios a que o
Capitão-mor da comarca de Porto Seguro se referia em 1805, e que
teriam, assim, mais uma vez, cogitada a sua transferência, na época
em que o ofício em causa foi enviado.
25 Ir para o sumário >>

Finalmente, o próprio fato de Pataxó e Maxakalis já estarem,


ao tempo de passagem de Wied-Neuwied, sem suscitar
perturbações nos sertões de Alcobaça, onde mantinham relações
pacíficas há mais tempo, é atestado pelo próprio ofício, disso se
utilizando o sub-delegado para demonstrar a falta de oportunidade
para a referida transferência, pois afirma
“não sei qual a vantagem de poderem os
missionários apresentarem a V. Sa. com a muda de Aldeia
desta Vila para a Vila de Alcobaça, Vila aquela que não é
perseguida pelos índios; e nem por aquele rio passam, por
ser rio muito faminto de víveres, as matas daquele rio
muito faminta de caça (MS 1)”.
Por outro lado, graças a um outro ofício do Diretor Geral dos
Índios (MS 2) dirigido ao Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios do Império, Visconde de Mont’Alegre, apresentando a
relação das aldeias da província, fica-se sabendo que ainda em
1851 havia, na vila do Prado, “hordas de indígenas bravos, que
algumas vezes tem saído com ânimo de fazerem hostilidades, e
raras vezes saem sem fazer mal”. E que não há, nesse documento,
qualquer referência a uma aldeia de índios no local onde está
situada Barra Velha atualmente, como também não parecia haver
em 1816, se levarmos em consideração que, nessa época, a foz do
Corumbau era em frente ao local onde hoje se localiza a aldeia,
como veremos adiante, e que tendo passado por aí Wied-Neuwied,
nenhuma menção faz à presença de índios, afirmando que as
margens do Corumbau “eram somente freqüentadas, no momento,
por garças, alguns maçaricos e gaivotas (Larus), já que os Aimorés,
ou Botocudos, tinham expulsado os habitantes com os seus feros
26 Ir para o sumário >>

ataques” (1958: 219). Mais adiante, porém, no vilarejo de Cramimoã


(hoje Caraiva), recebeu dos índios locais notícias dos Pataxó que
viveriam nas florestas vizinhas, aonde os primeiros iam buscar os
arcos e flechas que utilizavam nas caçadas, trocando-os por facas,
por serem “raras e extremamente caras, na costa, a pólvora e as
balas” (ib.: 220).
Corroborando o que colocamos anteriormente a respeito da
variada situação de contato dos Pataxó com os regionais já no
século XIX -- uns bandos em contato intermitente, outros mais
resistentes a tais contatos, e ainda outros hostis -- Wied-Neuwied
registra o risco que apresentava a costa desde o Prado até o rio do
Frade, considerada perigosa por causa dos selvagens; “mas,
presentemente, a população está em boas relações com os
Patachós e não os teme; embora não sendo total a confiança,
preferia-se [sic] sempre viajar em comitiva numerosa” (ib.: 222). Ao
passar por Trancoso, ele recebeu do sacerdote local a notícia de
que os Pataxó que apareciam muitas vezes na vila “vêm sempre
completamente nus, e, se ele manda amarrar um lenço em torno da
cintura das mulheres, nunca deixam de arrancá-lo imediatamente”
(ib.: 225). Na viagem de volta ao rio Grande de Belmonte, quando
mais uma vez se deteve na vila do Prado (em cujas matas virgens “o
rude Patachó e o Machacari dividem a soberania com a onça e o
tigre negro”), encontrou nas habitações dos índios uma mulher
machacari que entendia a língua dos Patachós, “coisa muito rara;
porque, sendo os últimos, de todas as tribos aborígenes, os mais
desconfiados e reservados, é difícil a uma pessoa, que não pertença
à tribo, aprender-lhes a linguagem” (ib.: 276).
27 Ir para o sumário >>

Saint-Hilaire (1938), tendo passado apenas na província de


Minas Gerais, onde encontrou Malalis, Panhames, Copoxós, alguns
Macunis e Monoxós fugindo às perseguições dos Botocudos, nada
nos acrescenta. Spix e Martius também não são pertinentes para a
área que nos interessa, tendo apenas passado pela comarca de
Ilhéus habitada pelos Kamakans “pacificados desde o ano de 1806”,
e inimigos dos Pataxó (“cutachos”) e Botocudos. Eles se referem,
pois, aos Pataxó setentrionais. Avé-Lallemant (1961) visitou o vale
do Mucuri, em local onde, com já vimos, havia Pataxó, porém
nenhuma referência faz a estes, tratando apenas como Botocudo
todos os índios que cita. Ao tempo em que por aí passou, os
Botocudos do alto Mucuri estariam em “contato intermitente” com os
imigrantes trazidos pela empresa colonizadora de Teófilo Ottoni.
Durante o lapso representado pelas viagens de Wied-Neuwied e
Avé-Lallemant, ou seja, de 1816 a 1859, não há qualquer notícia
explícita a respeito dos Pataxó. Só em 1844 há um requerimento dos
habitantes da vila do Prado ao Presidente da Província (MS 3),
solicitando providências contra “os selvagens indígenas, que ora
assaltando inesperadamente as roças tem não só devastado as
plantações, como barbaramente arrancado as vidas aqueles que de
súbito encontram...”. Uma fazenda, cujo proprietário há seis meses
estava em contato pacífico com os índios, “satisfazendo-lhes a gula
e sustentado por espaço de seis meses a cem e mais pessoas
daquela raça”, fora assaltada, tendo os índios flechado e morto
quatro trabalhadores. Argumentando ser o Prado uma vila pobre,
logo sem recursos para manter uma força armada, seus moradores
solicitam o envio de um destacamento de pelo menos trinta praças.
28 Ir para o sumário >>

E, com efeito, foi enviado um destacamento da Guarda Nacional da


Bahia.
Em 1851, em relatório encaminhado ao Ministro dos Negócios
do Império (MS 4), o Diretor Geral dos Índios dá conta da situação
das Missões do Prado e Mucuri, informando que faltam missionários
ali, “onde os indígenas selvagens mais de uma vez por ano saem
das matas, e às vezes fazem hostilidades”. Algum tempo depois, em
fevereiro de 1857, o subdelegado da polícia do Prado, a quem já nos
referimos anteriormente e que fora um dos signatários do
requerimento de 1844, ao remeter ofício ao Diretor Geral dos Índios
(MS 1), protestando contra a transferência dos índios da vila do
Prado para a de Alcobaça, registra que o Reverendo Prefeito dos
Missionários Capuchinhos e mais outro sacerdote já se haviam
dirigido para o Prado e daí para um sítio denominado Lage, de onde
voltaram sem ver os índios “pois que estes cansados de esperar,
foram para as matas onde tem suas roças, e até hoje não tem
aparecido”. Nota-se, assim, que tais índios já eram agricultores,
mantendo roça nas matas do Prado; seriam os “índios mansos” que
fariam com muita facilidade ficar as “mais tribos mansas”; logo,
havia, em 1857, índios “isolados” ou pouco afeitos ao contato.
Embora considere que seria “grande felicidade” a transferência
desses índios para outro local, o subdelegado julga

“que não se possa obter tal atenção em razão de


que estes índios e outras tribos que são moradores nas
margens do Rio desta vila desde a criação da mesma, que
fizeram aqui suas moradas, onde tem seus ninhos, será
forçosa a muda de umas gentes que ainda se acham
receiosas” (MS 1).
29 Ir para o sumário >>

Em fevereiro de 1857, há um novo ofício do Diretor Geral dos


Índios (MS 5), Casimiro de Sena Madureira, ao Presidente da
Província, comunicando que não recebera qualquer resolução a
propósito da aldeia em que deveriam estabelecer-se os “indígenas
das matas do Prado que tem aparecido nas fazendas de Mel.
Antônio de Castro e outros agricultores do centro daquele termo”. E
chama a atenção para as providências a serem tomadas “para a
civilização a dar aos indígenas sem comprometer imediatamente as
rendas da província e das outras aldeias”.
Pouco depois, em 1861, há uma referência explícita à criação
de uma Aldeia no Rio Corumbau, Vila do Prado, pelo Cônego
Rodrigo Igncio. de Szª. Meneses, Vigário Capitular. Em
correspondência enviada à Presidência da Província, ele comenta
sobre o fato de os padres lazaristas trazidos para a catequese dos
o
Índios, conforme a lei 662, de 31 de 10br . de 1857, terem sido
desviados do seu destino e empregados em lugares onde não havia
Índios, o que teria comprometido o seu trabalho missionário, pois,
quando as missões são feitas perante um povo já civilizado e
instruído nos mistérios da religião, não abrangem propriamente a
significação do termo catequese, conforme o texto sagrado. Ao
contrário, pois, convinha que eles fossem empregados não só para
introduzir os Índios no grêmio do cristianismo, “regenerando-os em
Jesus Cristo pelo baptismo mas tambem para q’, adoçando-se-lhes
os costumes, a Sociedade a seo turno aproveite essa imensa
actividade, q’ se perde nos esconderijos das matas”. Era seu
entendimento ser da mais palpitante necessidade criar uma Aldeia
no Rio Corumbáo, na Vila do Prado, onde, nos bravios contíguos a
30 Ir para o sumário >>

esta Vila, existiam centenas de famílias indígenas que ora estavam


nas brenhas, ora na Vila, sem caráter algum hostil mas persistentes
em seus “costumes selváticos”. Esses índios costumavam pescar no
Corumbau, atraídos pelo peixe que ali abundava e pelos mariscos
da praia do mar que corresponde ao mesmo rio. Armavam seus
ranchos enquanto aí permaneciam para pescar e salgar o peixe,
que, seco, era transportado para a mata, onde moravam na outra
parte do ano. As terras do Corumbau eram, então, quase todas
devolutas. De acordo com o vigário capitular, a localidade é “um-
Edem - e tem proporções pra grandes fazendas, especialmente para
criação de gado”. Em troca, uma aldeia aí fundada, além das outras
vantagens, se constituiria em um monumento à memória do
Presidente da Província e, em breve espaço de tempo, tomaria
grande perspectiva de desenvolvimento. Conforme a sua avaliação,
os religiosos da Ordem dos Capuchinhos seriam os mais
apropriados à catequese dos Gentios, até por que o amor e
veneração devotadas por eles aos Índios seriam de “tradição
hereditária”, e se a sua vinda para o Brasil e seu zelo apostólico
tivessem diminuído isso se deveria, simultaneamente, à falta de
perseverança em reclamá-los e à inexistência de um sistema regular
de catequese (MS 6).
A recomendação do vigário capitular foi prontamente aceita: ao
falar à Assembléia Provincial, em 1º. de março de 1861, Antonio da
Costa Pinto, Presidente da Província, trata da criação de uma aldeia
de Índios no rio Corumbau e transcreve, ipsis literis, trecho da
cio z
correspondência que o Cônego Rodrigo Ign . de S ª. Meneses lhe
dirigira, no qual refere às centenas de famílias ora nas brenhas e ora
na Vila do Prado, sem caráter hostil mas persistentes em seus
31 Ir para o sumário >>

costumes selváticos, e à sua fertilidade e proporções para


6
estabelecimento de grandes fazendas (Pinto 1861: 36). O avanço
sobre as terras dos índios era, também, constatado pelo Presidente
da Província, que declarou haver expedido circular, a todos os juízes
municipais, para que se procedesse à sua demarcação ex-ofício: “as
terras pertencentes aos Índios, que lhes foram originariamente
concedidas acham-se pessimamente administradas, e muitas
usurpadas pelos vizinhos e pessoas poderosas dos lugares” (Pinto
1861: 41).
Em 25 de abril do mesmo ano será a vez de Casemiro de
Sena Madureira reportar-se ao Desembargador João Lins
Cansansão de Sinimbu, o novo Presidente da Província, para dar-
lhe conta da sua concordância com a posição do vigário capitular
quanto ao estabelecimento de uma aldeia às margens do Corumbau,
já que “se conforma igualmente semelhante idéia com as que tenho
apresentado em meus idênticos trabalhos, e isto desde o primeiro
datado de 1858... em vista de outros tais aldeamentos a estabelecer-
se e para os quais conseguintemente tenho feito também a mesma
requisição da vinda dos próprios Padres Capuchinhos que são
decerto mais azados para o desempenho da difícil missão da
catequese”. Aparentemente, Madureira não havia tomado, ainda,
conhecimento da fala de Antonio Costa Pinto (MS 7).
Despachado para o Delegado Diretor Geral das Terras, o
ofício tem parecer favorável, dizendo “que se funde a aldeia de
índios conforme opina o respectivo Diretor”. Se ligarmos a resolução

6 Para Pedro Agostinho, o Governo Provincial tinha por objetivo colocar os índios num sítio onde, liberando as florestas da vila do Prado para a

colonização, permanecessem acessíveis a uma catequese que os transformasse em reserva de mão-de-obra (Agostinho 1978: 23).
32 Ir para o sumário >>

de criar essa aldeia às margens do Corumbau ao requerimento dos


fazendeiros moradores na vila do Prado (MS 3), senão como fator
determinante, pelo menos como provocador, já teremos exemplo
bem ilustrativo da competição econômica entre índios e nacionais,
“porque além de prosperar a lavoura [...] ficarão garantidas inúmeras
vidas livrando por este modo aos habitantes da flecha assassina de
semelhantes bárbaros”. Disso talvez possamos concluir que aos
índios hostis era necessário afastar, pelo perigo que representavam
ao assaltar fazendas e pessoas, ou então “amassar” para facilitar
maior penetração e exploração da área, na medida em que índios
aldeados equivaliam a mão-de-obra facilmente absorvida e nem
sempre fácil de ser obtida fora da população indígena.
Quanto a este tipo de questão, valeria, aqui, um parêntese.
Referindo-se ao estabelecimento de duas novas Missões no
Município de Ilhéus, mas evidenciando a política mais geral seguida
pela Província na abertura da Assembléia Legislativa em 1848, a
fala do Presidente da Província é suficientemente elucidativa:

O aldeamento dos nossos indígenas nesse lugar


não é só útil pelo lado Moral e da Religião, mas ainda
pelas vantagens industriais que daí resultam [...] [é] fora
de dúvida que essas duas aldeias estabelecidas na
direção da dita estrada muito contribuirão para a sua
conservação e limpeza por conseguinte para que ela seja
muito mais freqüentada, pois que a experiência mostra
que os Aldeados dirigidos por um hábil administrador, de
bom grado se prestam a esse trabalho, o que por meio de
33 Ir para o sumário >>

outros braços não seria fácil de conseguir (Magalhães


1848: 9).

As evidências autorizam afirmar que a aldeia planejada para


ser estabelecida às margens do Corumbau seja a atual Aldeia da
Barra Velha. Agostinho já levantara essa hipótese, comparando a
carta nº 1200 da Diretoria de Hidrografia e Navegação, publicada em
1943 e corrigida em 1963, com a mesma carta corrigida até 1971, e
constatado que

“...a foz do Corumbau parece ter sofrido considerável


deslocamento para o sul, o que, nessa zona costeira
ocupada por extensos cordões litorâneos, não se afigura
impossível... [pois] na carta cuja correção vai até 1963, o
Rio Corumbau deságua muito próximo do sítio hoje
ocupado pela povoação: é cabível imaginar que essa
proximidade e o posterior deslocamento da foz justifiquem
o próprio nome da aldeia, Barra Velha” (Agostinho 1974:
5-6).

Se Agostinho colocara isso em termos de hipótese, podemos


afirmar, baseada em depoimentos dos índios e na descrição da
costa pelo Capitão-mor de Porto Seguro em 1805 (Castro e Almeida
1918: 241), que a foz do Corumbau era frente ao sítio onde se
localiza a aldeia, tendo-se posteriormente deslocado mais para o sul,
o que realmente justifica a denominação da aldeia como Barra
Velha7. Assim sendo, não parece restar muita dúvida quanto ao fato
7 Assim, o Capitão-mor da Capitania de Porto Seguro descreve a área que nos interessa “Deste rio [Cai] para o N. 2 léguas em distância está a

ponta de Corumbau, que fica Leste-Oeste com o monte Pascoal, e na altura à margem (latitude 17.000) nesta dita ponta forma a costa ao S. dela
34 Ir para o sumário >>

de ser a atual aldeia-Barra Velha a mesma criada em 1861 para


reunir os índios que viviam em volta da vila do Prado.
A última notícia de que dispomos da presença de pataxós em
torno do Prado é de antes do estabelecimento dessa aldeia, ou do
projeto de sua criação, ou seja, de 1857, através do sub-delegado
do Prado, quando se refere às “cinco bandeiras de nação Pataxó,
dos quais existem poucos aqui...” (MS1). Até que ponto, porém, os
índios transferidos da vila do Prado seriam de uma só etnia, ou, ao
contrário, seriam de etnias várias? Embora pareça certo que Pataxó
havia, não podemos, contudo, assegurar a não existência de
Maxakali, por exemplo, ou de qualquer outra etnia que à época
vivesse nas cercanias do Prado.
Em 1892, ou seja, trinta e um anos depois do provável
estabelecimento da aldeia às margens do Corumbau, há uma
referência explícita à Barra Velha. Ao referir a Trancoso, que dá com
vila de Porto Seguro situada à margem direita do rio do Frade,
Vianna (1892: 556) cita os “arraiais de Itaquena, Caraivamemuan, os
mais florescentes, e Cachoeira, S. Simão e Barra Velha, perto de
Caraivamemuan”8. É possível concluir-se, assim, que por essa

uma belissima enceada, onde ancorão embarcações a abrigar-se das tempestades, pois faz reparo ao maior número de ventos; por fora a grande

recife de pedras, que chamão Itacolomins, e o fim dele dista da costa léguas e meia, cujo recife também serve de reparo ao mar, pelo que se

conservão as embarcações nesta enseada, como em rio manso; por terra dos Itacolomins também a canal de navegação da costa havendo bom

prático: O terreno da distância sobre dita são barreiras das mesmas cores já em outras declaradas, e acompanhão 1 légua, e a outra e mata

virgem, que vem até o comoro da praia, e terras boas para plantações, e nesta última distância e a dita praia lisa, e boa até a ponta já anunciada:

desta para o Norte uma légua se encontra o rio Corumbau; a sua barra só serve para canoas, e nela se entra ao sudoeste, e depois segue a Sul até

a dita ponta da costa, que se lhe dá o mesmo nome...” (Castro e Almeida1918: 241).

A distância entre a ponta de Corumbau e a foz referida pelo Capitão-mor é a mesma que há entre as duas localizações nos mapas

da Diretoria de Hidrografia e Navegação e nas aerofotografias consultadas.

8 O autor comete um erro, pois Trancoso não se localiza à margem direita do Rio do Frade mas no rio do mesmo nome.
35 Ir para o sumário >>

época já se dera o deslocamento da foz do rio Corumbau, passando


a aldeia a chamar-se pelo nome atual.
Em 1939, uma esquadrilha realizou um vôo a Porto Seguro,
sob o comando do almirante Gago Coutinho, e esteve na aldeia de
Barra Velha.

“Deixamos a aldeia de Barra Velha às primeiras


horas da madrugada. É desolador o aspecto de miséria do
povoado onde passamos a primeira noite [...] Temos visto
caboclos inteiramente abandonados. Caboclos doentes e
analfabetos. Na aldeia Barra Velha, encontramos uma
pequena população descendente dos Tupiniquins. Todo
mundo é doente. Uns atacados pelo impaludismo, outros
pela verminose” (Castro 1940: 55).

A aldeia se encontrava em franca decadência, ou desse modo


foi apreendida pelos visitantes, e a sua população aparentemente
muito pouco integrada ao subsistema imediatamente mais amplo. “
Os caboclos que são descendentes dos Tupiniquins9, são
indolentes. Vivem da caça e raramente atiram as suas redes ao mar,
que dista quatro quilômetros da aldeia” (ib.: 56). Também podemos
supor que estivessem muito pouco afeitos ao contato com a
sociedade nacional, ou pelo menos aos segmentos que não os das
povoações vizinhas, dado que “uma pequena população de caboclos
fugiu da aldeia Barra Velha e se internou na mata, com medo dos
aviões... Os caboclos, apavorados com o ronco dos motores
abandonaram os casebres e fugiram para o mato” (ib.: 132)10. Até

9 A esse respeito consulte-se Calderón, Valentim “Os Pataxó não são descendentes dos Tupiniquins” Jornal da Bahia, Salvador, 7/12/1968.

10 Fuga semelhante ocorreu à nossa chegada em 1971, quando o grupo celebrava a festa da sua padroeira, N. Sra. da Conceição, no dia oito de
36 Ir para o sumário >>

essa época Barra Velha parecia inteiramente desconhecida e


isolada do sistema mais amplo, não vindo a público a sua existência
nem quando da criação do Parque Nacional do Monte Pascoal, que
uma comissão encarregada pelo Presidente da República resolver
instalar para “determinar o ponto exato do descobrimento do Brasil”
(ib.: 193). Essa Comissão, presidida pelo então ministro Bernardino
José de Souza estava, na época da viagem de Gago Coutinho, em
trabalhos na área.
Só em 1951 chega ao conhecimento público a existência da
Aldeia de Barra Velha, figurando seu nome nos noticiários dos
jornais em função de um movimento de sublevação em que se viram
envolvidos os Pataxó. De motivações obscuras, transformou os até
então ignorados Pataxó em “facínoras” e “bandoleiros” para o
veemente noticiário, tendo provocado uma forte reação policial que,
além de danos físicos, provocou a desorganização do pequeno
grupo, até então absolutamente inofensivo. Debelada em tempo
breve, a “revolta dos caboclos de Porto seguro” (A Tarde, 30-5-51)
revelou a existência de pessoas em “lastimável estado de miséria,
todos passando fome e alguns doentes” (ib.), que teriam sido
insuflados por dois indivíduos que o “capitão” da época conhecera
no Rio de Janeiro, e que teriam prometido dirigir-se à aldeia para
realizar a medição de suas terras. Tal aconteceu, quando
pretextando ser isso necessário para a consecução de seus
objetivos, indispuseram os índios contra as populações regionais
vizinhas, conseguindo conduzi-los até a povoação de Corumbau,
onde ocorreu um assalto a um comerciante, o que desencadeou a
repressão policial. Esta, possivelmente desconhecendo a debilidade

dezembro.
37 Ir para o sumário >>

dos pretensos “bandoleiros” e a inspiração de elementos estranhos,


identificados como “engenheiro” e “temente” (A Tarde, 8-6-51),
exacerbou a sua ação repressiva e sufocou com dureza e
arbitrariedade a rebelião, conforme podemos deduzir das notícias
dos jornais e dos depoimentos contemporâneos do então “capitão”,
e, posteriormente, de outros índios. Destes últimos trataremos mais
adiante, atendo-nos no momento aos primeiros. Da repressão
resultou a morte dos dois líderes brancos e a prisão do “capitão”,
tendo sido feitos “dez prisioneiros inclusive homens e mulheres” (A
Tarde, 1-6-51). Quase que simultaneamente, noticiava-se uma
tentativa de rebelião em Umburanas (Minas Gerais), para onde teria
tentado deslocar-se “um grupo de 4 indivíduos” de Barra Velha (A
Tarde 28-5), caracterizando a imprensa os dois movimentos como
idênticos e sugerindo uma ligação entre os dois. Até que ponto seria
realmente um movimento com ligações com aquele de Barra Velha,
ou apenas a tentativa isolada de alguns indivíduos em busca de um
possível auxílio por parte dos moradores de Umburanas? Esta última
hipótese parece a mais provável, se levarmos em conta a
declaração do próprio capitão Honório e Borges de que mandara
“cinco índios pedir auxílio aos caboclos de aldeiamento de
Emburanas”.
Improvável parece, no entanto, que o “capitão” Honório
houvesse “previamente organizado o traiçoeiro ataque, estando
apenas à espera de dois elementos do Rio de Janeiro conforme
depõem alguns caboclos que se acham prisioneiros” (A Tarde, 1-6-
51). O próprio municiamento do grupo para a revolta -- “espingardas
de carregar pela boca, facas e facões” -- ou seja, seus instrumentos
de trabalho, indica a ausência de um plano sistemático de ação, pelo
38 Ir para o sumário >>

menos da parte dos índios. A declaração do “capitão” de que


consentiria aos “índios e seus parentes seguirem a orientação dos
dois atacantes estranhos em virtude de acreditar que os mesmos
procediam como agentes do governo” (A Tarde, 7-6-51) leva a crer
que os índios foram envolvidos, possivelmente com promessas de
demarcação de terras, e que sua participação não se lhes afigurara
ilegal, uma vez que acreditavam estar acompanhado e seguindo
ordens de “agentes de governo”. Quanto à motivação destes últimos
-- indivíduos que se apresentavam com a falsa identidade e eram
supostamente ligados ao Partido Comunista, um deles identificado
pelo comandante da operação policial, major Arsênio Alves, como
Ari Bhering, o qual teria vínculos com certo agitador que, condenado
à pena de 10 anos, fora indultado -- ainda hoje não está esclarecida.
Tratar-se-ia de simples aventureiros, arriscando-se à deflagração de
um plano com objetivos de exploração econômica, ou, ao contrário,
seria um movimento de caráter social de tendência radical, agindo
junto a populações rurais? Em apoio a essa última hipótese há o
depoimento de Honório Borges, que afirma ter o “engenheiro”
distribuído entre os índios peças de fazendas existentes na casa
assaltada em Corumbau, de propriedades de Teodomiro Rodrigues.
Além disso, o fato de terem sido cortados os fios da linha telegráfica,
leva-nos à suposição de que não se trataria de um simples assalto,
seguido da fuga dos líderes, mas de uma ação de maior alcance.
A rebelião terminou como começara, desorganizada e sem
condições de resistência por parte dos sublevados -- “a aldeia fora
atacada de madrugada e em menos de uma hora ocupada” (A
Tarde, 11-6-51); índios foram mortos sem que os jornais soubessem
precisar o número e a aldeia incendiada pelo destacamento policial,
39 Ir para o sumário >>

provocando a debandada de crianças e adultos e a dispersão


forçada do grupo. A justificativa para o incêndio é dada pelo próprio
comandante da tropa: “As palhoças cheias de alimentos em
adiantado estado de decomposição, como quartos de bois abatidos
dias antes, etc., estavam pondo em perigo a vida dos soldados” ( A
Tarde ib.).
O isolamento físico-geográfico do grupo, implicando num
isolamento também social, deve ter contribuído para seu
desconhecimento pelas fontes científicas mais recentes. Assim é
que Ribeiro define os Pataxó como grupo “isolado” em 1900 e
“extinto” em 1957 e faz referência aos Pataxó Hãhãhãi que viviam no
Posto Paraguassu, na porção sul, e que estariam “extintos” (Ribeiro
1970: 149); logo, nenhuma observação é feita a respeito de outro
grupo Pataxó, não Hãhãhãi. Malcher (1962: 262) refere-se também
apenas aos Pataxó do Posto Paraguassu (Hãhãhãi), afirmando que

“...anteriormente os Pataxó tinham suas aldeias na


região de matas entre o Jequitinhonha, Mucuri e Arassuai,
mais tarde à margem direita do rio das Contas, desde o
Pontal até o rio do Peixe, por um lado e o Alto Almada, por
outro”

Metraux e Nimuendaju (1963) também não fazem qualquer


menção aos Pataxó de Barra Velha, registrando a existência de “16
Patachó que permaneciam na reserva Paraguaçu, entre os rios
Cachoeira e Pardo, sudeste do Estado da Bahia” (1963: 241-242);
trata-se, assim, mais uma vez, dos Pataxó-Hãhãhãi. Kietzman, na
sua listagem de grupos indígenas, registra a existência de 25
40 Ir para o sumário >>

descendentes de Pataxó-Hãhãhãi que “vivem no Posto Caramuru, a


2 milhas de Itaquira, Bahia” (1967: 500); Galvão também informa
apenas sobre um grupo mestiço Pataxó em Itabuna, Bahia (1967:
202), enquanto Melatti (1970: 50), baseando-se em Dall’Igna
Rodrigues, nomeia os Pataxó-Hãhãhãi entre os “grupos que
deixaram de falar a língua indígena”.
Dessa forma, perdurou um desconhecimento geral, pela
literatura especializada, da existência de um grupo indígena auto-
identificado como Pataxó e vivendo nos limites meridionais do
município de Porto Seguro, por significativo lapso de tempo.
Nimuendaju, por exemplo, que esteve, em 1939, em viagem pelo sul
da Bahia, restringiu-se tão somente à região interior entre o Rio de
Contas e o Rio Doce (Edelweiss 1971: 277), e nenhuma notícia
forneceu sobre os Pataxó de Barra Velha. Isso implica em
considerarmos que, se não fora o movimento de 1951, talvez ainda
hoje a sua existência fosse ignorada, continuando a ser considerado
um grupo “extinto”.

FONTES PRIMÁRIAS MANUSCRITAS

1857.02.10. Ofício de Marciano de Jesus Fontoura, sub-


delegado de Polícia do Prado, a Casemiro de Sena Madureira,
Diretor Geral dos Índios. Arquivo Público da Bahia – Secção
Histórica: Presidência da Província – Agricultura, Indústria e
Comércio – índios – Maço 1857/1864 (MS 1).
1851.01.22. Ofício enviado por Casemiro de Sena Madureira,
Diretor Geral dos Ìndios, ao Visconde de Mont´Alegre, Ministro e
Secretário de Estado dos Negócios do Império. Arquivo Público da
41 Ir para o sumário >>

Bahia – Secção Histórica: Presidência da Província – Agricultura,


Indústria e Comércio – Índios – Maço 1823/1853 (MS 2).
1844.04. Requerimento dos Habitantes da Vila do Prado ao
Presidente da Província. Arquivo Público da Bahia – Secção
Histórica: Presidência da Província – Agricultura, Indústria e
Comércio – Índios – Maço 1823/1853 (MS 3).
1851.01.10. Relatório das Aldeias Indígenas da Bahia enviado
por Casemiro de Sena Madureira, Diretor Geral dos Índios, ao
Visconde de Mont´Alegre, Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios do Império. Arquivo Público da Bahia – Secção Histórica:
Presidência da Província – Agricultura, Indústria e Comércio – Índios
– Maço 1823/1853 (MS 4).
1857. 02.24. Ofício de Casemiro de Sena Madureira, Diretor
Geral dos Índios, ao Desembargador João Lins Vieira Cansansão de
Sinimbu, Presidente da Província da Bahia. Arquivo Público da
Bahia – Secção Histórica: Presidência da Província, Agricultura,
Indústria e Comércio – Índios, Maço 1857/1864 (MS 5).
5203 – Religião – Provincial e Colonial – 1839/1861 –
APEB Missões e Cathequeze
cio z
O Cônego Rodrigo Ign . de S ª. Meneses, Vigario Capitular,
afirma ao Presidente da Província a necessidade de criação de uma
Aldeia no Rio Corumbáo, na Vila do Prado, onde existem centenas
de famílias indígenas que ora estão nas brenhas e ora na Vila.
(Maço 6).
1861.04.25. Ofício de Casemiro de Sena Madureira, Diretor
Geral dos índios, ao Desembargador João Lins Vieira Cansansão de
Sinimbu, Presidente da Província da Bahia. APEB – Secção
Histórica: Presidência da Província - Agricultura, Indústria e
Comércio – Índios – Maço 1857/1864. (MS 7).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
42 Ir para o sumário >>

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Instituto de Alta Cultura – Junta de Investigações Científicas do
Ultramar. p. 393-400. AVÉ-LALLEMANT, Robert. 1961. Viagem pelo
Norte do Brasil (1859). Rio de Janeiro: MEC-INL.

CASTRO, R. Berbert (Org). 1940. “Sob os céus de Porto Seguro”.


Diretoria de Cultura e Divulgação do Estado da Bahia, Imprensa
Oficial do Estado.

CASTRO & ALMEIDA, Eduardo de. (Org.). Inventário dos


Documentos relativos ao Brasil existentes no Archivo de Marinha e
Ultramar de Lisboa – V – Bahia 1801-1807. Rio de Janeiro: Officinas
Graphicas da Biblioteca Nacional.
EDELWEISS, Frederico. 1971. Curt Nimuendaju na Bahia. In:
UNIVERSITAS Nos. 8/9 , janeiro/agosto. Salvador: EDUFBA. p. 277-
280
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1959. In: Indians of Brazil in the twentieth century. Washington:
Instiute for Cross-Cultural Research. p. 169-205.
EMMERICH, Charlotte & Ruth Monserrat. 1975. Sobre os Aimorés,
Krens e Botocudos.
Notas Lingüísticas. Boletim do Museu do Índio. Antropologia no. 3,
Rio de Janeiro; Brasil.
JORNAL DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO
BRAZILEIRO. 1846. Itinerário da Viagem que fez por terras da Bahia
ao Rio de Janeiro, por ordem do Príncipe Regente, em 1808, o
Desembargador Luiz Thomaz de Navarro (manuscrito inédito,
offerecido ao Instituto pelo seu sócio correspondente Francisco
Adolpho de Varnhagen.
JORNAL A TARDE. 28-05-51; 30-5-51; 1-6-51; 7-6-51; 8-6-51; 11-6-
51.
43 Ir para o sumário >>

KIETZMAN, Dale W. 1967. Indians and Cultural Areas of Twentieth


Century Brazil. In: Indians of Brazil in the Twentieth Century.
Washington: Institute for Cross-Cultural Research. p. 3-51.
MAGALHÃES, João José de Moura. 1848. Fala que recitou o
Presidente da Província e Desembargador João José de Moura
Magalhães na Abertura da Assembléia Legislativa da mesma
Província. Bahia: Tipografia de João Alves Portella.
MÉTRAUX, A & NIMUENDAJU, C. 1963. The Mashacali, Patachó
and Malalí Linguistic Families. In: Handbook of South American
Indianas. Vol I. New York, Cooper Square Public, Inc. p. 229-
263.MALCHER, José M. Gama. 1962. Índios. Rio de Janeiro:
Conselho Nacional de Proteção aos Índios, Ministério da Agricultura.
MELATTI, Júlio Cesar. 1970. Índios do Brasil. Brasília: Editora
Coordenada de Brasília.
PINTO, Antônio da Costa. Falla recitada na abertura d´Assemblea
Legislativa da Bahia pelo Presidente da Província ... no dia 1º. de
março de 1861. Bahia, Typographia de Antonio Olavo de França
Guerra.
RIBEIRO, Darcy. 1968. O Processo Civilizatório. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira.
SAINT-HILAIRE, Augusto de. 1938. Viagem pelas Províncias do Rio
de Janeiro e Minas Gerais. Tomo 2º. , Brasiliana, Vol. 120-A, Rio de
Janeiro: Cia Editora Nacional.
SPIX, JOHN BAPTISTE VON & MARTIUS, CARL F. PHIL.VON.
1928. Através da Bahia. 2ª. edição. Imprensa Oficial do Estado da
Bahia.
VIANNA, Francisco Vicente. 1892. Memória sobre o Estado da
Bahia. SNT. Tipografia do Estado da Bahia.
WIED-NEU
44 Ir para o sumário >>


2.2. "SOB O SIGNO DA CRUZ". RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO DE IDENTIFICAÇÃO E
11
DELIMITAÇÃO DA TERRA INDÍGENA PATAXÓ DA COROA VERMELHA

José Augusto Laranjeiras Sampaio

"Que Deus entendeu de dar a primazia


Pra todo bem, todo mal, primeiro chão na Bahia
Primeira missa, primeiro índio abatido também"
(Gilberto Gil, "Toda Menina Baiana", 1978)

1 – Introdução

Este relatório é o resultado do trabalho antropológico para identifica-


ção e delimitação da Terra Indígena Coroa Vermelha, e, juntamente
com mapas e memorial descritivo de limites e com os laudos do le-
vantamento fundiário, integra o produto final do trabalho do Grupo
Técnico constituído pela Portaria 860, de 14 de agosto de 1995, da
Presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai).
A Terra Indígena Coroa Vermelha é ocupada tradicionalmente pelo
povo indígena Pataxó e tem uma população local de 693 habitantes.
Está situada nos municípios de Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro,

11Relatório antropológico para identificação e delimitação da Terra Indígena Coroa Vermelha Grupo Técnico constituído pela Portaria 860, de

14 de agosto de 1995, da Presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai).


45 Ir para o sumário >>

Bahia, e tem uma extensão de 1.492 hectares - em duas glebas de


72 e 1420 hectares - conforme aqui identificada e delimitada.
Além de conhecimentos anteriores desta Terra Indígena, do povo
que a habita e de documentos a eles relativos, o presente relatório
fundamenta-se em trabalho de campo realizado nas semanas finais
de agosto e nas iniciais de setembro de 1995, seguido de coleta su-
plementar de dados documentais e da organização de todo o materi-
al, efetuadas no mês de outubro.
Por fim, a elaboração deste relatório ocupou os dois meses finais de
1995 e os iniciais de 1996, um período marcado, em seu intermédio,
pelas edições do Decreto 1.175, de 08 de janeiro, da Presidência da
República, e da Portaria 14, de 09 de janeiro, do Ministério da Justi-
ça, que reformulam os procedimentos técnicos para identificação e
delimitação de terras indígenas.
Devido a este fato, o presente relatório foi formulado de modo a
atender plenamente o disposto nos novos dispositivos, sem deixar
de tomar em conta, contudo, a regulamentação vigente à época da
constituição do Grupo Técnico, a saber, o Decreto 22, de 19 de feve-
reiro de 1991, e a Portaria 239, de 20 de março daquele ano.
Em se tratando de uma Terra Indígena com quase quinhentos anos
de história documental, ocupada por um povo indígena com pelo
menos duzentos anos de contato com a sociedade colonial e distri-
buído, hoje, multi-territorialmente, por sete Terras Indígenas em qua-
tro municípios do Extremo Sul da Bahia e mais uma em Minas Ge-
rais, julgou-se necessário iniciar o relatório por uma "Sinopse Históri-
co-Documental da Presença Indígena no Extremo Sul da Bahia" (ca-
pítulo 2), antes de se proceder à exposição de dados específicos a
46 Ir para o sumário >>

respeito da constituição histórica da Terra Indígena em causa, o que


é feito no capítulo 3: "Os Pataxó na Coroa Vermelha".
Por sua vez, a história recente desta Terra Indígena é profundamen-
te marcada por intensos processos de expansão econômica regional
e de desordenadas urbanização e intrusão da própria Terra. Parale-
lamente a isto, se desenvolveu um tortuoso processo de regulariza-
ção que, em suas idas e vindas, desdobra-se há já mais de dez
anos. Assim, se afigurou como indispensável ao presente laudo
identificatório, a devida exposição de dados e a análise destes pro-
cessos, o que ocupa o capítulo 4: "Os Processos de Intrusão e de
Regularização da Terra Indígena Coroa Vermelha".
Finalmente, o eixo temático do relatório organiza-se nos dois capítu-
los seguintes, que correspondem ao estudo etnológico da Terra Indí-
gena: "A Aldeia Pataxó da Coroa Vermelha: Aspectos Sociais" (capí-
tulo 5), e ao propriamente dito laudo de "Identificação e Delimitação
da Terra Indígena Coroa Vermelha" (capítulo 6), executado em aten-
ção ao disposto no Artigo 231 da Constituição Brasileira.
O capítulo 7, "Levantamento Fundiário", apenas comenta e contextu-
aliza as informações constantes dos laudos de vistoria e outros ane-
xos ao presente relatório.

***
Devo registrar aqui o inestimável apoio prestado, durante o trabalho
de campo, pelos companheiros do Grupo Técnico: o engenheiro
agrimensor José Aparecido Brinner e o técnico agrícola Francisco
Nogueira Lima, da Diretoria de assuntos Fundiários da Funai, e o
também engenheiro agrimensor Ismar Galvão, do Instituto de Terras
da Bahia. Registro também a eficácia e a diligência com que a coor-
47 Ir para o sumário >>

denadora do Grupo Técnico e Diretora de Assuntos Fundiários da


Funai, antropóloga Isa Pacheco, providenciou todo o necessário
para o bom andamento dos trabalhos.
A convivência e as discussões, durante o trabalho de campo, com
Adson Rodrigues e Sumário Santana, da equipe do Conselho Indige-
nista Missionário (Cimi), de Eunápolis, foram, ademais do apoio prá-
tico que prestaram, extremamente úteis para que os trabalhos decor-
ressem em clima de confiança e eficiência.
A coleta de informações, em campo e mesmo depois, contou com a
colaboração da Administração Regional da Funai em Eunápolis, diri-
gida pelo Sr. João Vianey, e da arquiteta Cássia Boaventura, res-
ponsável pelo escritório do Instituto do Patrimônio Histórico e Artísti-
co Nacional em Porto Seguro.
A Associação Nacional de Apoio ao Índio, de Salvador, através dos
seus servidores Carlos Isaías, Lúcia Mascarenhas e Rosa Costa,
forneceu um importantíssimo acervo documental, indispensável à re-
alização do trabalho, além de ter prestado todo o apoio material ne-
cessário, representado por uma grande quantidade de telefonemas,
faxes, fotocópias e correspondência.
A leitura crítica e a revisão do presente relatório por parte das cole-
gas Ana Flávia Moreira Santos - pós-graduanda em Antropologia da
Universidade de Brasília - e Sheila Brasileiro - perita antropóloga do
Ministério Público Federal - em muito contribuíram para o aperfeiço-
amento do seu estilo e, sobretudo, para a clareza e segurança dos
dados e das análises apresentados.
Por fim, há que registrar-se a impressionante unidade de propósitos
e a clareza na percepção da sua intrincada situação manifestadas
por todos os Pataxó da Coroa Vermelha, o que, ademais da sua in-
48 Ir para o sumário >>

teressada participação nos trabalhos e discussões, em muito contri-


buíram para a segurança e a credibilidade do presente relatório, pelo
que expresso-lhes aqui, através dos seus líderes e representantes
Carajá, Chico, Itambé, Nengo e Saracura, a minha admiração e o
meu apreço.

2 - Sinopse Histórico-Documental da Presença Indígena no Ex-


tremo Sul da Bahia: do Contato com a Expedição Cabral aos
Atuais Estabelecimentos Pataxó

O documento mais antigo sobre os índios na região Extremo Sul da


Bahia é, como se sabe, a Carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500
(1974). Evidentemente, Caminha não refere a designação étnica do
povo com o qual teve contato, mas fornece dados etnográficos valio-
sos concernentes à sua indumentária, utensilhagem, habitação e
mesmo hábitos que, confrontados com documentos posteriores
como, por exemplo, Gandavo (1980 [1570]), Soares de Souza (1971
[1587]) etc, não deixam dúvidas quanto a se tratarem de tupis os ín-
dios que foram contactados pela expedição cabralina na porção do
litoral entre as atuais cidades de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrá-
lia.
Este povo tupi habitava ao longo de toda a faixa litorânea do Sul e
Extremo Sul da Bahia e é designado "Tupiniquim" por todas as fon-
tes históricas mais relevantes para a região, já no século XVI (Nó-
brega, 1988 [1555]; Gandavo, op. cit.; Soares de Souza, op. cit.;
Cardim, 1978[1625]). Nóbrega delimita a sua área de expansão do
"rio de Camamu até o Cricaré", reconhecendo-o como "dono da cos-
ta" (Op cit: 200-1).
49 Ir para o sumário >>

A tradição oral dos povos tupi do litoral nordestino - dentre os quais


os Tupiniquim - tal qual referida por cronistas coloniais como Soares
de Souza (op. cit.), para a Bahia, e d'Abbeville (1975 [1610]), para o
Maranhão, atesta que estes ocuparam a região, vindos do sul e do
oeste, nos séculos imediatamente anteriores à conquista lusitana.
Este tema das grandes migrações tupi constitui hoje domínio incon-
teste na etnologia indígena brasileira, como o comprovam Métraux
(1927), Fernandes (1989 [1948]) e Clastres (1975), dentre outros.
Ao avançarem sobre o litoral extremo sul e sul do atual Estado da
Bahia - a faixa compreendida entre as embocaduras do Mucuri e do
Jiquiriçá - os Tupiniquim desalojaram povos que aí viviam e que de-
signavam genericamente "Aymoré", assim também preferencialmen-
te denominados nos documentos coloniais portugueses. Tinham es-
tes povos a característica comum de não viverem em grandes aldei-
as, como os Tupi, mas sim basicamente da caça e da coleta, ado-
tando modos de vida itinerantes, em pequenos bandos de, em geral,
não mais que algumas dezenas de indivíduos12 Nestas perambula-
ções estes grupos "desciam" também à costa, para "fazer sal" (Nó-
brega, op. cit.) e, principalmente, para ter acesso à rica fauna dos
estuários e manguezais, que continuavam a disputar aos Tupi e, de-
pois destes, também aos portugueses. Com efeito, suas rápidas e
devastadoras incursões sobre estas áreas seriam, reconhecidamen-
te, o principal fator determinante do mais completo fracasso econô-
mico das Capitanias de Ilhéus e Porto Seguro durante todo o perío-

12Ver descrição detalhada em Soares de Souza, op. cit.


50 Ir para o sumário >>

do colonial13, o que culminaria inclusive com suas extinções e anexa-


ções à da Bahia.
No que concerne à definição de faixas de território originalmente
ocupadas por estes diversos povos - "Aymoré" e Tupi - não se pode,
em se tratando de povos tribais, adotar concepções rígidas quanto a
seus limites, que, evidentemente, não se encontravam regulamenta-
dos entre os diversos grupos presentes. Podemos contudo caracteri-
zar o território efetivamente ocupado por um povo indígena, mesmo
às épocas pré-colonial e protocolonial, nos termos da apropriação
econômica exercida sobre um ecossistema ou ecossistemas, segun-
do padrões culturais próprios. Tal caracterização não exclui, neces-
sariamente, a possibilidade de coabitação de mais de um povo - en-
tendido aqui como uma unidade cultural discreta, e não como unida-
de política, o que dificilmente ocorre neste tipo de sociedade (Sah-
lins, 1970) - sobre um mesmo território, como tudo indica ter sido o
caso da ocupação simultânea e culturalmente diferenciada, mas não
isenta de conflitos, exercida por povos tupi e não tupi sobre as mes-
mas supra referidas faixas de litoral.
Desta forma, em se considerando de modo mais abrangente toda a
faixa de mata atlântica que recobria originalmente o Sul e Extremo
Sul baianos e a faixa costeira que lhe é imediatamente adjacente, te-
mos, claramente configuradas, uma ocupação mais sedentária - ain-
da que historicamente mais recente - concentrada preferencialmente
nas proximidades da costa, orientada para uma agricultura relativa-
mente mais intensiva de tubérculos (mandioca) e cereais (milho),
para a coleta animal nos manguezais e restingas e para a pesca ma-
13Ver a respeito Soares de Souza, op. cit., Cardim, op. cit. e as Cartas Jesuíticas - principalmente Nóbrega, op. cit. e Anchieta, 1988 [1594] -

para o período inicial da colonização, bem como Navarro, 1846 [1808], Wied-Neuwied, 1958 [1817] e Aires do Casal, 1976 [1820], dentre

outros, para o seu período final.


51 Ir para o sumário >>

rítima, por parte de povos tupi (no caso Tupiniquim); e outra menos
sedentária, dispersa preferencialmente pelo interior das matas - es-
pecialmente após a intrusão tupi ao longo da costa - orientada para
a caça e a coleta silvestres e para uma agricultura menos intensa,
ou quase nenhuma agricultura, sem excluir o estabelecimento sazo-
nal na faixa costeira para acesso às importantes fontes protéicas aí
disponíveis, ainda que sem recurso à pesca oceânica, por parte dos
povos não tupi. Destes, as identificações étnicas e faixas territoriais
mais específicas só se tornariam mais claras para o colonizador nos
fins do século XVIII, com a intensificação dos contatos.
De fato, apenas a partir do início do século XIX, quando se torna
mais efetiva a conquista das matas interiores da região, conhece-se
melhor a identidade dos diversos povos indígenas que aí viviam,
principalmente a partir de relatos de viajantes estrangeiros como
Spix e Martius (1971[1831]) e, em especial, Wied-Neuwied (1958
[1817]), e de alguns nacionais como Navarro (1846 [1808]). Destes
relatos se pode depreender com segurança a distribuição geográfica
dos povos não tupi na área, tal qual predominante durante todo o pe-
ríodo colonial e ainda prevalecente ao seu final:

1) Os Pataxó dominavam toda a faixa entre o Mucuri e o Rio de San-


ta Cruz - hoje mais conhecido como João de Tiba - no qual "guerrea-
vam com os Botocudos", como informa Wied-Neuwied (ib.). Com re-
lação à sua dispersão no sentido leste-oeste se pode afirmar que se
estendiam da costa até as proximidades da Serra dos Aimorés, atual
limite entre os Estados da Bahia e de Minas Gerais, já que daí para
oeste, nos cursos médios do Mucuri ou do Jequitinhonha, não há re-
ferências comprováveis à presença destes índios, como indica o
52 Ir para o sumário >>

exame de fontes seguras para esta área do atual nordeste mineiro,


como Saint-Hilaire (1938 [1830]).
Quanto à sua ocorrência ao longo da costa, onde surgiam ainda com
muita frequência no início do século XIX apesar da presença cons-
tante de nacionais, vale referir o que relata o príncipe de Wied-
Neuwied:
"(...) esta costa, desde o Prado até o Rio do Frade, era considerada
muito perigosa por causa dos selvagens, e ninguém se aventurava a
percorrê-la sozinho (...), mas, presentemente a população está em
boas relações com os Patachós e não os teme, embora, não sendo
total a confiança, preferia-se sempre viajar em comitiva numerosa
(...)" (Ib.:222).
Ainda dos Pataxó e de suas relações com os colonos, diz:
"(...) vagueiam pelas matas, e as suas hordas surgem alternadamen-
te, no Alcobaça, no Prado, em Comechatiba, Trancoso, etc. Chegan-
do a qualquer lugar os moradores lhes dão algo para comer, trocan-
do com eles miudezas por cera e outros produtos da mata, após o
que voltam às brenhas" (Ib.:216).

2) Os Maxacali e outros grupos da mesma família linguística - Malali,


Paniame etc. - ocorriam na mesma faixa, em menor quantidade que
os Pataxó (Navarro, op. cit.:443), com menor incidência na costa e
com maior dispersão para o interior (Saint-Hilaire, op. cit.), inclusive
14
e sobretudo ao longo do médio Jequitinhonha .

3) Diversos bandos de Botocudos dominavam ao sul do Mucuri, até


além do rio Doce. De outra parte, ao norte do rio de Santa Cruz, ou-

14 Ver também a respeito Paraíso, 1995.


53 Ir para o sumário >>

tros bandos da mesma família linguística - dos quais a autodesigna-


15
ção étnica é muito recorrentemente referida como Gren ou Gueren
- voltavam a ocorrer nas proximidades da costa até as imediações
do rio Pardo, mantendo, segundo Wied-Neuwied (op. cit.), contatos
com os primeiros "pelo interior", onde certamente mantinham dispu-
tas territoriais com os Pataxó e Maxacali.
A mesma fonte é bastante clara ao caracterizar a posição relativa,
na área, dos três grandes conjuntos culturais aqui referidos:
"(...) os Botocudos vagueiam pelo alto Santa Cruz. Mais perto do lito-
ral, porém, o rio lhes demarca os limites do território, vivendo os Pa-
tachós e os Machacaris na região situada à margem sul " (Ib.:229).
4) Outro grande conjunto de bandos pataxó situava-se desde o mé-
dio curso do rio Pardo até o curso do rio de Contas e do seu afluente
16
Gongoji, ao norte .

5) A oeste destes Pataxó, no planalto entre os rios Pardo e Gongoji,


habitavam, ainda segundo as fontes supra referidas, os Camacã - ou
"Mongoyó" - que também disputavam territórios com os Pataxó, a
leste, e que se encontravam, naquele período inicial do século XIX,
em processo de aldeamento no médio Pardo e no baixo Colônia ou
Cachoeira (Paraíso, 1981), em povoações administradas por padres
capuchinhos (Regni, 1988).
Outras informações importantes procedem destes relatos:

1) Pataxós, Maxacalis e outros pequenos grupos mantinham alian-


ças na região correspondente hoje ao Extremo Sul baiano - do Je-

15 P. ex. Spix e Martius, op. cit.

16 Ver a respeito - além de Wied-Neuwied e Spix e Martius, op. cit. - Paraíso, 1981, para uma sinopse histórica.
54 Ir para o sumário >>

quitinhonha ao Mucuri - para combater os Botocudos, mais numero-


sos ao norte e ao sul deste território e, se pode supor, com incursões
também nesta área. Relata, mais uma vez, Wied-Neuwied que:
"(...) Os Patachós lembram, em muitos pontos, os Machacaris ou
Machacalis; as línguas têm alguma afinidade, embora difiram enor-
memente a vários respeitos. Parece que ambas as tribos se aliaram
contra os Botocudos, e que tratam os prisioneiros como escravos,
pois, no Prado, uma menina botocuda foi, há pouco tempo, oferecida
à venda (...)" (Ib.:216).

2) Encontravam-se ainda, ao longo da costa, pequenas povoações


de Tupiniquim, de há muito aldeados junto a estabelecimentos colo-
niais - Prado, Caravelas, Santa Cruz etc - e na antiga missão jesuíti-
ca de Trancoso (Wied-Neuwied, ib.:223).
A propósito, com relação aos aldeamentos jesuíticos de Tupiniquim
costeiros, que chegaram a mais de uma dezena no primeiro século
da colonização17, é certo que, dizimados pelas epidemias e pelas
guerras, apenas os de Trancoso e Vila Verde - atual Vale Verde, no
médio Buranhém - sobreviveram àquele século (Leite, 1945) e, ao
que tudo indica, ao lado de aglomerados dispersos, à própria pre-
sença colonial dos jesuítas, tendo, pelo menos em Vale Verde, per-
durado até o presente a memória da ascendência indígena dos seus
habitantes (Sampaio, 1994).

3) Havia também uma aldeia de camacãs, localmente conhecidos


por "meniens", na vila de Belmonte, junto à foz do Jequitinhonha
(Wied-Neuwied, Ib:235).

17 Ver Nóbrega, op. cit.; Aspicuelta Navarro et al, 1988 [sec. XVI]; Anchieta, op. cit.
55 Ir para o sumário >>

4) São preciosos os relatos etnográficos sobre estes povos ainda


bastante autônomos e que não deixam dúvidas de que se tratam de
registros diretos e pessoais:

"(...) apareceu na vila do Prado um bando de selvagens que eu tanto


queria conhecer. Eram da tribo dos Patachós, da qual eu não tinha
visto nenhum até então e haviam chegado poucos dias antes das
florestas, para as plantações. Entraram na vila completamente nus,
sopesando as armas, e foram imediatamente envolvidos por um ma-
gote de gente. Traziam para vender grandes bolos de cera, tendo
nós conseguido uma porção de arcos e flechas, em troca de facas e
lenços vermelhos"(Wied Neuwied, ib.:214).
A partir desta época intensifica-se a conquista destes povos com o
estabelecimento de quartéis nos cursos médios dos rios da região,
origem de algumas atuais cidades como Linhares e Salto da Divisa.
Havia então grande interesse em garantir o livre trânsito terrestre en-
tre o litoral nordestino e a região das minas. Assim, a presença de
"índios selvagens" no sul da Bahia, Espírito Santo e nordeste minei-
ro era percebida como um incômodo obstáculo à unidade nacional,
em uma época marcada por conflitos internacionais. Isto certamente
explica o fato de que Dom João VI, então no Brasil, tenha, em 1808,
chegado a assinar uma inédita declaração de guerra aos Botocudos
do Rio Doce, cujos efeitos, seguramente, não se restringiram a este
18
povo .
O estado de ânimo dos habitantes da região e das autoridades lo-
cais e nacionais contra os índios pode ser bem avaliado a partir de
relatos como o que se segue:

18 Ver a respeito Hemming, 1987.


56 Ir para o sumário >>

"(...) só posso afirmar que a violência é o meio mais próprio de tornar


tranquillas e habitáveis as terras em que transitam estes bárbaros,
pela experiência de 22 annos em que elles a têm feito conhecer in-
doceis, e incapazes de que o amor, soffrimentos e beneficência os
chame à sociedade civil, e gremio da igreja, o que se conseguirá
mais facilmente sitiando-os, e impedindo-lhes com armas e resistên-
cia, e trazendo-os violentados ao povoado das villas, onde não de-
vem ficar em liberdade, porque de certo retrocederão, como já têm
obrado alguns, que batisados, apostatam, e vêm depois com os bár-
baros para interpretes da lingua; mas sim transmittidos às praças,
onde não há matas, pelas quaes se entranhem para a sua primitiva,
e onde se lhes dê a cultura, e os empregos proporcionados à sua ín-
dole (...)"
(Do Sargento-Mór Comandante das Ordenanças da Villa de Caravel-
las ao Desembargador Luiz Thomaz Navarro. Navarro, 1808:449).

Deste modo, por volta de meados do século XIX, já não há notícia


de índios isolados no Extremo Sul baiano. Ao contrário, registram-se
aldeamentos de indígenas recém reduzidos ao longo de toda a cos-
ta, em Porto Alegre (Mucuri), Viçosa, Peruípe, Alcobaça, Prado, Cu-
muruxatiba e Santa Cruz (Dória, 1988). É de se supor que a maioria
da população destes aldeamentos fosse composta de pataxós - ma-
joritários na região, como se viu acima, e de contato mais recente -
mas certamente também de Maxacalis e Botocudos.
Em 1861, o Presidente da Província da Bahia, Antônio da Costa Pin-
to, trata, no âmbito da Assembléia Provincial, de proposta de criação
de uma aldeia de índios no Rio Corumbau - no ponto intermediário
da costa entre as vilas do Prado e de Porto Seguro - com o objetivo
57 Ir para o sumário >>

declarado de abrigar as famílias indígenas que, na área em torno da


primeira vila, persistiam em seus "costumes selváticos" e "(...) vão
pescar constantemente no Rio Corumbau em cujas margens armam
ranchos, onde moram, até que terminada a pesca e a salga, se reti-
ram para as matas" (Pinto, 1861:36, apud Carvalho, 1977:80).
Nesse mesmo ano de 1861, o estabelecimento desta aldeia recebe
a aprovação do diretor geral dos índios, à luz da qual o delegado di-
retor geral das terras determina "que se funde a aldeia de índios"
(Carvalho, ib.).
Pode-se afirmar, com base em depoimentos colhidos por Carvalho
(ib.) a partir da tradição oral dos Pataxó contemporâneos, e na des-
crição da costa feita pelo Capitão-Mór de Porto Seguro, em 1905
(em Almeida, 1918:241, apud Carvalho, ib.:82), que a aldeia planeja-
da e autorizada em 1861 é a atual aldeia de Barra Velha, local de
origem da grande maioria dos atuais Pataxó e, certamente, um pon-
to de afluência importante dos antigos Pataxó, desde tempos ime-
moriais, para pesca e coleta dos crustáceos ali abundantes, como in-
dica o relato acima, de Pinto, e como já o percebera, quarenta anos
antes, Wied-Neuwied, quando para aí ainda afluíam bandos de índi-
os isolados (op. cit.:220).
Carvalho (ib.) fornece indicações seguras de que a implantação da
aldeia do Corumbau visava de fato concentrar, em uma única povoa-
ção isolada, toda a população indígena até então aldeada junto às
19
vilas regionais . Tal parece com efeito ter sido executado, pois não
se encontram, após a década de 1860, muitas referências documen-
tais aos outros aldeamentos na região. É também bastante plausível
que o estabelecimento desta aldeia única guarde relação com a Lei
de Terras de 1851, à qual se seguiram medidas restritivas aos terri-

19 Cf. Dórea, op. cit.


58 Ir para o sumário >>

tórios e aldeamentos indígenas em todas as províncias nordesti-


20
nas .
Isto permite supor que a população aí reunida, certamente mais uma
vez majoritariamente pataxó, como demonstra de resto o próprio
etnônimo hoje prevalecente e adotado pelo grupo, compunha-se
também de maxacalis e botocudos, e de tupiniquins egressos de
Trancoso e de outros pontos da costa, além de, possivelmente, ca-
macãs vindos de Belmonte.
Tudo indica que, após a implantação desta aldeia, os indígenas do
Extremo Sul, aí confinados e isolados da população regional, desa-
pareceram das preocupações desta e das autoridades governamen-
tais, o que explica a escassez documental a seu respeito desde en-
tão, só rompida mais significativamente em 1951 pelo noticiário da
imprensa regional acerca de um movimento de sublevação protago-
nizado pelos Pataxó de Barra Velha. A "Revolta dos Caboclos de
Porto Seguro" (A Tarde, 30/05/1951) desvelaria a existência de índi-
os em "lastimável estado de miséria, todos passando fome e alguns
doentes" (ib.), e que teriam sido sublevados por dois indivíduos que
lhes prometeram realizar a "medição" de suas terras (Carvalho,
ib.:84-5).
Vale referir que, mesmo antes de 1951, mais precisamente em 1939,
as condições de vida na aldeia haviam sido registradas por partici-
pantes de uma expedição aérea que, sob o comando de Gago Couti-
nho, cruzou a região, visitando Barra Velha, onde viviam "(...) cabo-
clos doentes e analfabetos. (...) todo mundo é doente, uns atacados
pelo impaludismo, outros pela verminose..." (Castro, 1940:55).

20 Cf. p. ex. Carneiro da Cunha, 1992.


59 Ir para o sumário >>

Relatos como este, conquanto contribuam à comprovação da in-


questionável continuidade da ocupação Pataxó na área de estabele-
cimento da aldeia de Barra Velha, não seriam suficientes para abalar
um século de omissão e desconhecimento oficiais a respeito destes
índios, o que só viria a ser efetivamente rompido após a implanta-
ção, na área, do Parque Nacional de Monte Pascoal, já na década
de 1960, quando se efetiva um projeto em gestação há pelo menos
vinte anos.
Com efeito, já por ocasião da expedição de Gago Coutinho, se en-
contrava na região uma comissão instituída "pelo Presidente da Re-
pública para determinar o ponto exato do descobrimento do Brasil"
(Castro, op. cit.:193) e de cujos trabalhos se teria originado uma pri-
meira proposta de criação de um parque na área. Esta comissão foi,
também, muito provavelmente, responsável - ou um dos responsá-
veis - por fazer chegar aos Pataxó a informação da existência do
Marechal Rondon e de um órgão federal de proteção aos índios, o
que, segundo relatam os próprios Pataxó (Carvalho, ib.), motivou
uma viagem de representantes seus ao Rio de Janeiro na década de
1940, a qual estaria, por sua vez, na origem da misteriosa e frustra-
da tentativa de "medição" e do levante de 1951, dos quais e da via-
gem que os precedera aparentemente não se conhecem registros
nos arquivos do indigenismo oficial (Carvalho, ib.).
De concreto sabe-se - pela imprensa e pela vigorosa tradição oral
Pataxó (ib.) - da violenta repressão policial que se seguiu, e das per-
seguições de que, a partir daí, foram alvo os Pataxó, causa inicial da
sua dispersão, pois, atemorizados, muitos pataxós deixaram sua al-
deia buscando trabalho nas fazendas da região (Carvalho, ib.). Data
também já do início dos anos 1950 a implantação de dois pequenos
60 Ir para o sumário >>

núcleos Pataxó em áreas isoladas de matas na região, em Águas


Belas, no município do Prado, e em Mata Medonha, no Município de
Santa Cruz Cabrália, além do incremento de um fluxo migratório
para a localidade de Imbiriba, onde uma família Pataxó se estabele-
cera já nos anos de 192021.
O êxodo de pataxós de Barra Velha se consolidaria porém em segui-
da à implantação do Parque Nacional de Monte Pascoal que, apesar
de já criado pelo Decreto 12.729/43 (Diário Oficial da União,
19/04/1943), se torna efetivo através do Decreto Estadual 171.912,
de 1960, no qual o Estado da Bahia doa à União 22.500 hectares
para instalação do Parque, aí abrangido o núcleo central do tradicio-
nal território dos Pataxó de Barra Velha.
A literatura aqui compulsada, a própria tradição oral Pataxó e traba-
lhos elaborados a partir de estudos de campo, notadamente os de
Carvalho (ib.), Agostinho (1981) e Sampaio (op. cit.), permitem a
inequívoca afirmação de inconstitucionalidade deste Parque, por es-
tar assentado sobre território objeto de direitos originários indígenas,
22
recepcionados desde, pelo menos, a Constituição de 1934 .
Não tratarei, porém, desta questão em particular. Vale aqui a remis-
são a ela apenas para observar que, a partir dessa década de 1960,
a repressão exercida pela recém implantada guarda florestal, impe-
dindo aos índios a exploração regular do seu território, isto é, de
plantar, caçar ou coletar (Carvalho, ib.), força o recrudescimento do
seu fluxo migratório, o que perdura mesmo após o seu caso ter che-
gado ao conhecimento do órgão indigenista, que teria, de início, esti-
mulado mesmo esse fluxo, como parece atestar o deslocamento, à

21 Ver a respeito Furtado, 1986; Bierbaum, 1989 e Sampaio, 1994.

22 Cf. Gonçalves, 1994.


61 Ir para o sumário >>

época, de pataxós para a "Fazenda Guarani", em Minas Gerais,


onde funcionava um posto do Serviço de Proteção aos Índios.
Também a partir dos anos de 1960, com a construção da rodovia BR
101, alterações profundas se processam em toda a economia regio-
nal, marcadas basicamente por um voraz e predatório surto madei-
reiro, mas também, sobretudo a partir do início da década seguinte,
com a inauguração das BR 101 e 367, pela abertura, nos municípios
de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, de um importante pólo turís-
tico. Para os Pataxó, com sua economia tradicional inviabilizada, a
produção e comércio de artesanato para o florescente mercado que
se inaugurava aparece como uma interessante alternativa de sobre-
vivência, estimulada inclusive por autoridades regionais, o que daria
origem a dois novos núcleos indígenas voltados quase que exclusi-
vamente para esta atividade, em locais de afluxo turístico privilegia-
do: um pequeno aglomerado originalmente situado na localidade de
Pé-da-Pedra, à entrada do Parque do Monte Pascoal, e transferido
em seguida, mais uma vez por pressão da administração do Parque,
para o entroncamento das BR 101 e 498, em terreno cedido por um
fazendeiro - localidade de Trevo do Parque - e uma povoação bem
maior, na costa do município de Santa Cruz Cabrália, junto ao local
da "Primeira Missa no Brasil", a notória praia da Coroa Vermelha.

3 - Os Pataxó na Coroa Vermelha

Já no primeiro laudo identificatório da terra pataxó da Coroa Verme-


lha estão estabelecidas com bastante clareza a data e as condições
de implantação desta comunidade indígena:
"A ocupação pataxó em Coroa Vermelha começou precisamente no
dia 17 de novembro de 1972, quando o senhor Alberto do Espírito
62 Ir para o sumário >>

Santo Matos, cognominado cacique Itambé, transferiu-se com seus


familiares para o Ilhéu de Coroa Vermelha, pressionado em Monte
Pascoal pela política genocida do IBDF, que vê nos índios os depre-
dadores do meio ambiente, quando é o próprio órgão que faz vistas
grossas à devastação em áreas sob sua jurisdição, (...)" (Rogedo et
al, 1985:18)
Esse documento informa ainda que, logo em seguida, em 1973,
Itambé solicitaria e obteria uma autorização da Capitania dos Portos
de Porto Seguro e do Departamento Nacional de Estradas de Roda-
gem (DNER) para edificar uma moradia permanente no local, onde
então se ultimava a implantação da BR-367, inaugurada no ano se-
guinte com a implantação da grande cruz que destaca hoje a Coroa
Vermelha.
É importante assinalar aqui que o estabelecimento de pataxós no lo-
cal seria desde logo apoiado e estimulado por políticos e empresári-
os regionais, ou, como observado alhures, para a gênese da nova
aldeia,
"as privações vividas pelos Pataxó em Monte Pascoal seguramente se ali-
aram aos interesses da emergente indústria turística local, para a qual se
deve ter engendrado, como um engenhoso chamariz, a idéia de que hou-
vessem índios vendendo artesanato junto ao recém inaugurado marco que
parece pretender confusamente celebrar tanto a realização ali da 'Primeira
Missa no Brasil', em 1500, quanto a inauguração, em 1974, das rodovias
BR-101 e BR-367, viabilizadoras do auspicioso fluxo turístico que se anun-
ciava" (Sampaio, 1994:23).
Assim, à família de Itambé logo se seguiram as de Zé Lapa e de
Francisco Alves da Silva (Rogedo et al, op. cit.), o "Chico Branco",
que, ao longo das duas décadas seguintes, viria a dividir com Itambé
a liderança política e econômica da comunidade emergente, tornan-
63 Ir para o sumário >>

do-se o principal agenciador do estabelecimento nela de novos con-


tingentes indígenas e do florescente comércio de artesanato.
Já naquele ano de 1974, a prefeitura de Santa Cruz Cabrália desti-
nou e delimitou, informalmente, lotes para os Pataxó às margens do
acesso ao monumento, construindo-lhes aí, ademais, casas de plan-
ta arredondada e cobertura de piaçava, de modo a corresponder aos
estereótipos de indígenas por parte do público turista23.
Assim, as bases da ocupação pataxó na Coroa Vermelha estariam,
já na primeira metade dos anos 1970, plenamente caracterizadas,
tanto pelo meio de subsistência que orientou sua criação e organiza-
ção - o comércio de artesanato - quanto em sua distribuição espaci-
al, assentada sobre o pontal que tem como eixo os cerca de qui-
nhentos metros de pista que ligam a BR-367 ao monumento, situado
já junto à orla da praia, pela qual o referido pontal se prolonga mar
adentro na belíssima faixa de areia que, exposta na maré baixa, tem
em sua extremidade o notório ilhéu - ou "coroa" - que, nomeado pela
cor viva dos seus corais, se apresentou ao punhado de portugueses
que por aí passou ao raiar do século XVI como cenário adequado
para o rito celebratório da sua "descoberta".
Esta área pataxó na Coroa Vermelha tem, pois, formato aproximada-
mente triangular, delimitada, em seu lado maior, pela pista da BR-
367 que, neste trecho à beira-mar, liga as cidades de Porto Seguro,
16 quilômetros ao sul, e Santa Cruz Cabrália, 8 quilômetros ao norte.
Os outros dois lados são constituídos pelas faixas de praia que se
unem no pontal da Coroa e se estendem por cerca de um quilômetro
em cada sentido, aproximando-se da rodovia à medida que se afas-
tam do pontal e culminando, respectivamente, ao sul na Ponta do

23 Ver a respeito Rocha Júnior, 1987.


64 Ir para o sumário >>

Mutá, limite entre as orlas dos municípios de Santa Cruz Cabrália e


Porto Seguro, e ao norte na embocadura do rio Mutari, pouco abaixo
da sua confluência com o rio Jardim que, cortando a porção norte
desta faixa de ocupação pataxó, fornece a água para banho e con-
sumo da comunidade.
Na situação original em que se estabeleceu a ocupação pataxó, ti-
nham os índios suas casas e pontos comerciais distribuídos, funda-
mentalmente, em ambos os lados da pista de acesso ao monumen-
to, dando os fundos destes para terrenos utilizados pelas famílias
para criatório doméstico, coleta de lenha e acesso ao rio Jardim,
bem como aos dois supra-referidos trechos de praia onde são exer-
cidas, complementarmente, atividades de pesca e mariscagem.
Além disso, deve-se ressaltar que o exercício da atividade artesanal,
de importância crescente com os incrementos do fluxo turístico e da
população indígena, tornou-se viável graças à disponibilidade - par-
cial ao menos - nas proximidades, da matéria-prima necessária. De
fato, para sua obtenção, os Pataxó chegantes à Coroa Vermelha re-
correram, desde o início, à extensa franja de matas então existente -
e ainda hoje parcialmente presente - recobrindo o platô situado na
borda superior da encosta que se estende paralelamente a todo
aquele trecho da costa, tendo em suas extremidades os núcleos ori-
ginais - as "cidades altas" - de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália.
Na porção deste platô mais próxima à Coroa Vermelha, a uma dis-
tância média de uma légua do pontal, os Pataxó vêm coletando, há
mais de vinte anos, parte da madeira - principalmente galhos de ara-
pati e de arruda - e das sementes - contas - de que necessitam,
além do recurso eventual à escassa plumagem da fauna aérea ainda
remanescente.
65 Ir para o sumário >>

Ao proceder a esta caracterização da ocupação Pataxó na Coroa


Vermelha é essencial enfatizar que, em ambas as áreas - "praia" e
"mata"- não se encontravam, no início dos anos de 1970, quaisquer
outros ocupantes; o que é sobejamente atestado nos primeiros estu-
dos identificatórios (Rogedo et al, op. cit. e, em especial, Mariz,
1979) e em testemunhos consensuais dos primeiros moradores indí-
genas e de moradores e autoridades de Santa Cruz Cabrália e Porto
Seguro.
No que diz respeito à situação legal destas áreas, a "mata" se cons-
tituiria então de terras devolutas do Estado, enquanto que a "praia"
integrava, desde 1906, o patrimônio municipal de Santa Cruz Cabrá-
lia, por força da Lei Estadual 169, de 13 de setembro.
Vale ressaltar que, apesar disto e de ter a Prefeitura promovido mes-
mo a vinda e o estabelecimento de pataxós na Coroa Vermelha, o
poder público municipal jamais regularizou, sob a forma cabível em
sua esfera de competência, esta ocupação indígena. Do processo
administrativo original, aberto pela Funai já em 1973 a respeito desta
comunidade, constam radiogramas trocados, em novembro de 1979,
entre o delegado regional do órgão em Governador Valadares, Car-
los Grossi, e o seu presidente, nos quais o primeiro informa da apro-
vação, pela Câmara Municipal de Santa Cruz Cabrália, de uma lei
autorizando a doação de 16 hectares de terras aos Pataxó na Coroa
Vermelha, e o segundo o autoriza a se deslocar até aquele municí-
pio para "receber a escritura". Não há mais notícias a respeito e a
dita lei, se porventura de fato aprovada, provavelmente não chegou
a ser sancionada e, certamente, não foi efetivada, já que, naquele
mesmo ano de 1979, teve início, apoiado - ao menos parcialmente -
66 Ir para o sumário >>

em aforamentos concedidos pela Prefeitura, o processo de intrusão


da área de ocupação indígena no pontal da Coroa Vermelha.
Os desdobramentos deste processo, bem como os das iniciativas da
Funai no sentido de regularizar a Terra Indígena, se estenderiam pe-
los dezesseis anos seguintes, até o presente, em uma sucessão de
medidas, episódios e documentos conflitantes e conflituosos que,
para facilitar a sua compreensão, serão resenhados a seguir de for-
ma esquemática e cronológica.

4 - Os Processos de Intrusão e de Regularização da Terra Indí-


gena Coroa Vermelha

1) A partir de 1979, a Prefeitura de Santa Cruz Cabrália concede vá-


rios aforamentos na área da Coroa Vermelha, muitos deles inciden-
tes sobre áreas de utilização indígena, para criatório doméstico, hor-
tas, coleta de lenha etc. O maior destes aforamentos, concedido à
Imobiliária Centauro, incide mesmo sobre muitas residências indíge-
24
nas .

2) Já há alguns anos, a comunidade pataxó, sob a liderança do capi-


tão Itambé, iniciara, junto à Funai, gestões para que esta providenci-
asse a regularização de suas terras na Coroa Vermelha. Como re-
sultado destas gestões, é enviado à área, em fevereiro de 1979, o
servidor antropólogo Alceu Cotia Mariz que constata, como ficou
dito, a prevalência, ainda, da exclusividade da ocupação indígena no
local, mas, embora registre que os índios não desejam fazê-lo, con-
clui por recomendar o seu retorno ao Monte Pascoal (Mariz, op. cit.).

24 Cf. Carvalho & Sampaio, 1992 e Boaventura, 1995.


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Deste modo, não se efetivam, em seguida, quaisquer providências


fundiárias por parte do órgão.

3) Em 1981, a Superintendência do Patrimônio Histórico e Artístico


Nacional (Sphan), através do Processo 1020/80, ex-ofício, inscrito
em Livro de Tombo a 29 de janeiro, considera a área onde estão os
sítios históricos de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália "de interesse
para fins de preservação histórica e paisagística", efetivando assim o
tombamento determinado no Decreto-Lei 25, de 30 de novembro de
1937. O processo seria redefinido e aprofundado em 1984, com "es-
pecial atenção à Coroa Vermelha" (Boaventura, op. cit.).
Já em 1981, de acordo com sua Informação Técnica 23, o Patrimô-
nio Histórico embargara o projeto do loteamento "Aldeia Pinta", da
Imobiliária Centauro. O "cancelamento" seria mantido pelo juiz da
Comarca de Porto Seguro, a 19 de setembro de 1983. O órgão con-
seguiria, à época, outros pequenos embargos sobre terrenos afora-
dos a particulares na faixa costeira da Coroa Vermelha, não o lo-
grando contudo com relação ao loteamento "Aldeia Nina", da mesma
imobiliária, que tivera o seu alvará municipal concedido antes do
tombamento de 1981, embora suas características contrariassem
flagrantemente as disposições deste. Naquele mesmo ano haviam
começado a se erguer as primeiras mansões no loteamento.

4) Diante do silêncio da Funai, Itambé e seus companheiros viajam a


Brasília, em 1981 e em 1982, para, seguidamente, voltar a pleitear a
proteção e a regularização das suas terras. Na segunda destas oca-
siões, a 17 de maio de 1981, relatam em documento ao Presidente
do órgão a situação na área, dominada pelas "negociatas do prefei-
68 Ir para o sumário >>

to", e a apreensão vivida pela comunidade que tivera, inclusive, obs-


truído com arame farpado o seu acesso ao rio Jardim. Com este re-
lato, os Pataxó apresentaram à Funai o colorido folheto publicitário
da Centauro, com ilustração da planta dos três loteamentos compo-
nentes do "Parque Coroa Vermelha", ironicamente batizados "Aldei-
as" "Santa Maria", "Pinta" e "Nina", os dois últimos incidentes sobre
terrenos de ocupação indígena à margem direita da BR-367, confor-
me claramente demonstrado no traçado que os Pataxó fizeram so-
bre o próprio folheto, assim demonstrando ao órgão indigenista a ex-
tensão que lhe competia assegurar.
Paralelamente a estas iniciativas porém, a Imobiliária promoveria
uma política de "aproximação" à comunidade, contratando alguns ín-
dios para pequenos serviços e, pelo menos em um caso, para a pró-
pria corretagem dos seus lotes. Surgiriam assim os primeiros sinais
de dissensão na ordem interna do grupo.

5) Finalmente, em 1985, através da Portaria 1847/E, de 28 de mar-


ço, a Funai constitui Grupo Técnico, sob a coordenação da servidora
antropóloga Isa Pacheco Rogedo, que, efetivamente, realizaria os
primeiros estudos identificatórios da Terra Indígena.
Abordando de modo bastante direto a atuação indigenista oficial até
então, o Grupo avalia que
"o que se pode observar com relação ao grupo Pataxó (...) é que
tanto o SPI quanto a Funai sempre exerceram uma tutela inócua.
Foram incapazes de assistir e defender os interesses dos tutelados
naquilo que lhes é mais vital: a terra" (Rogedo et al, ib.:11);
69 Ir para o sumário >>

e, com relação ao estabelecimento da comunidade da Coroa Verme-


lha, conclui, diferentemente do parecer anterior de Mariz, que,
"compreendemos o direito deste povo de escolher o seu proprio ca-
minho" (ib.)

O Grupo procederia então aos trabalhos de identificação territorial,


percebendo, desde logo, a importância tanto da área de habitação e
comércio, no pontal, quanto da área de coleta nas matas sobre a en-
costa, a ocidente. Tenta-se então, a princípio, uma proposição de
delimitação que englobasse as duas áreas em uma extensão contí-
nua25, alternativa dificultada por não se poder caracterizar devida-
mente a faixa entre a BR-367 e a borda inferior da encosta como "de
ocupação indígena", já que os Pataxó apenas a cruzam quando em
trânsito entre as duas áreas que efetivamente exploram. Ademais,
àquela altura, em meados dos anos de 1980, havia já, sobre esta fai-
xa intermediária, ocupações consolidadas e edificadas de terceiros,
inclusive grandes loteamentos como o "Aldeia Santa Maria".
Deste modo, optou-se pela delimitação de duas glebas: uma no pon-
tal, com extensão estimada então em 50 hectares; e outra limitada a
leste pela borda da encosta, estimada em cerca de 1700 hectares
(ib.). Realizar-se-ía então o levantamento fundiário destas glebas
(Proc. Funai/BSB/3410/85), o qual constataria a presença de 13
"pretensos proprietários" (Rogedo et al, ib). Em seguida, para discu-
tir e consolidar a proposta de delimitação junto à comunidade indíge-
na, é constituído um outro Grupo Técnico, sob a coordenação da
servidora antropóloga Rosane Furtado, que elabora o laudo final de
identificação (Furtado, 1986) de uma área estimada em 70 hectares,

25 Cf. mapa da Funai de 07/85.


70 Ir para o sumário >>

para a "Gleba A", e 1400 para a "Gleba B" (Proc.


Funai/BSB/0674/86, mapa de 17/04/86).
O processo estava assim concluído a nível do órgão indigenista e
pronto para ser submetido à avaliação do Grupo de Trabalho Inter-
ministerial - criado pelo Decreto 88.118/83 e reformulado pelo
94.945/87 - ao qual competia então autorizar o encaminhamento de
tais processos à homologação presidencial.
6) Antes disto porém, a Coroa seria visitada por mais uma antropólo-
ga da Funai - Sônia Demarquet - que, em seu relatório (Demarquet
& Oliveira, 1987), referendaria os limites identificados, concentrando-
se em enfatizar a necessidade de se assegurar à comunidade o usu-
fruto da gleba da "mata", já que essa se ressentia da impossibilidade
da prática de alguma agricultura que lhe permitisse prover sua sub-
sistência, sobretudo nos meses de "baixa estação" turística, quando
os rendimentos do comércio de artesanato não suprem tais necessi-
dades. Ficara claro, desde o estudo de 1985, que aquela área, em-
bora sem qualquer destinação ou exploração econômica que não a
coleta exercida pelos Pataxó, também tinha "pretensos
proprietários", o que, supostamente, desencorajava os indíos a am-
pliar sua exploração com a implantação de cultivos.

7) Uma vez encaminhado ao Grupo Interministerial, em 1987, junta-


mente com outros processos de Terras pataxós na região, este reve-
lou interesse em visitá-la, o que foi feito, naquele mesmo ano, por al-
guns dos seus componentes, representantes da Funai, dos Ministéri-
os do Interior e da Reforma Agrária, do órgão fundiário estadual e do
Conselho de Segurança Nacional. Nesta ocasião ficou constatada a
rápida expansão das construções nas imediações do pontal - "Gleba
71 Ir para o sumário >>

A" - o que ensejou a recomendação de que se fizesse um novo le-


vantamento nesta área; tarefa assumida pelo Instituto de Terras da
Bahia (Interba).

8) O minucioso levantamento topográfico e cartorial realizado pelo


Interba - sob a coordenação da assessora Magda Tofoletti - revelaria
que o loteamento "Aldeia Nina" - maior unidade aforada incidente so-
bre o território indígena identificado pela Funai em sua gleba costeira
e também a mais próxima ao núcleo dessa área, junto ao monumen-
to, e que não fora atingida pelos embargos da Sphan - se encontra-
va à época dividido em duas glebas. A primeira - "Nina 1" - adjacen-
te à pista da BR-367, fora dividida em 95 lotes, em sua maioria já
vendidos pela Centauro, muitos dos quais com edificações recentes
ou em construção. Cerca de dez lotes, mais próximos ao acesso ao
monumento, incidiam diretamente sobre residências indígenas; o
mesmo ocorrendo com o que deveria ser a "área verde" do lotea-
mento - segundo sua planta aprovada pela Prefeitura e Sphan - e
que, na verdade, se assentava sobre o próprio "miolo" da aldeia Pa-
taxó. A segunda gleba - "Nina 2" - mais próxima à praia, encontrava-
se então hipotecada a uma instituição bancária - e portanto não ven-
dida pela imobiliária, embora loteada - e coberta por poucas dezenas
de residências indígenas.
Em direção ao sul da Terra identificada havia apenas um pequeno
terreno aforado a particular, junto à Ponta do Mutá, com pequena
construção inacabada embargada pela Sphan. Em direção ao norte,
por sua vez, encontravam-se, seguindo a margem esquerda da BR-
367, a área onde seria o loteamento "Aldeia Pinta" - entre o "Nina" e
o rio Jardim - e, entre este rio e o Mutari, terrenos aforados respecti-
vamente a Valter Sambrano, Ubaldino Pinto e à imobiliária Brasil
72 Ir para o sumário >>

Colônia. Todos não loteados ou edificados, por força, sobretudo, da


regulamentação de preservação.
Quanto a ocupações indígenas, havia, sobre a área do "Pinta", pe-
quenos equipamentos comunitários como cemitério e campo de fute-
bol, além das margens do Jardim, espaço fundamental para lava-
gens, banhos, coleta de água e recreio. Já o triângulo norte desta
porção da área - formado pelos baixos cursos do Jardim e do Mutari
e pela pista da BR-367 - é quase todo constituído por solo arenoso e
integra a Terra identificada em função da indispensabilidade da sua
preservação para assegurar à comunidade indígena a qualidade das
águas das quais se serve.
Em suma, o relatório do Interba (Tofoletti, 1988) revelava que, entre
1979 e aquela data, a Prefeitura havia aforado quase 100% da área
identificada pela Funai em 1985 e 1986 na "Gleba A", embora ape-
nas sobre cerca de 10 hectares do loteamento "Nina 1" já houves-
sem alienações e edificações "regulares", nos termos da Prefeitura e
do Patrimônio Histórico. Todas estas informações foram cuidadosa-
mente plotadas em uma planta topográfica que revelava ter a gleba
identificada exatos 77 hectares, já excluída a faixa de domínio do
DNER junto à rodovia.
Quanto à "Gleba B", que não fora alvo da solicitação de levantamen-
to pelo Grupo Interministerial, sabia-se então que se encontrava no-
minalmente em poder das imobiliárias Coroa Vermelha - do grupo
Góes-Cohabita, com sede em Salvador - e Brasil Colônia - de Belo
Horizonte - e da empresa agro-industrial "Florestas Rio Doce", subsi-
diária da Companhia Vale do Rio Doce. Apenas para esta terceira
parcela havia um título concedido pelo Estado, em 1985, correspon-
dente ao imóvel Pau Brasil-Rio Jardim, com 392 hectares. As três
73 Ir para o sumário >>

parcelas se mantinham sem sinais de ocupação ou beneficiamento


por parte dos seus detentores nominais e livremente percorridas pe-
los Pataxó em sua coleta tradicional26.

9) Em sua reunião a 20 de julho de 1988, o Grupo Interministerial so-


bre Terras Indígenas, através da "Resolução 03", deliberou, com re-
lação à Coroa Vermelha, "não reconhecer tal área como de ocupa-
ção permanente indígena, nos termos do Inciso 1 do Artigo 17 da Lei
6001/73" (GTI/Dec.94.945, 1988), determinando à Funai que, em um
prazo de 120 dias, diligenciasse
"outra solução, à nível administrativo, junto aos órgãos fundiários da
União e do Estado da Bahia, dado o problema social existente de
fato" (ib.)
A Resolução foi tomada com parecer contrário do Interba, membro
do Grupo, que não concordou com a "tese" da "não-ocupação per-
manente indígena", e o seu presidente, Eduardo Almeida, recusou-
se a assinar a Resolução.
Embora a telegráfica Resolução não esclareça as bases da "inter-
pretação" que o Grupo faz do texto legal, é possível perceber - a
partir inclusive da ligeira referência feita em seus "considerando" ao
"cárater recente" da ocupação pataxó - que esta se tenha orientado
por uma percepção distorcida do que sejam "terras de ocupação
permanente indígena", em função, sobretudo, de uma leitura restriti-
va do conceito de "imemorialidade", de que trata a Lei 6.001. Na
mesma reunião, o Grupo também não reconheceu como de ocupa-
ção permanente os territórios pataxó estabelecidos no presente sé-
culo em Águas Belas, Imbiriba e Mata Medonha (Resoluções 01, 04

26 Ver Brasileiro & Sampaio, 1990.


74 Ir para o sumário >>

e 05; ib.), fazendo-o contudo com relação a Barra Velha, embora, a


rigor, como se viu, a data de estabelecimento desta aldeia também
possa ser historicamente identificada - como de resto praticamente
todos os atuais estabelecimentos indígenas no país - ainda que com
antecedência de um século: 1861. Por outro lado, se se quiser pen-
sar em termos "genuinamente" imemoriais, de ocupação Pataxó - ou
dos povos dos quais os atuais Pataxó são herdeiros - seria necessá-
rio considerar, como também se viu, todo o atual Extremo Sul baia-
no27. Fica evidente que não seria aquele o tipo de "interpretação" re-
querido por conceitos legais como os de terras "imemoriais", "de
ocupação permanente" ou "tradicionalmente ocupadas" por povos in-
dígenas. Ironicamente, menos de noventa dias após as supracitadas
resoluções, a Constituição de outubro de 1988 - e a jurisprudência
dela decorrente - viria por por terra quaisquer interpretações engano-
sas a este respeito28. Voltar-se-á a isto adiante, evidentemente.

10) Retornando a atenção à cena social em questão, não será difícil


imaginar como a resolução do Grupo Interministerial, traduzida local-
mente na notícia de que "a Coroa Vermelha não seria regularizada
como Terra Indígena", capitalizada por interesses políticos e empre-
sáriais, disseminou intranquilidade entre os Pataxó que, mais que
nunca, se sentiram ameaçados de perder suas terras.
Em 1989 ou 1990, a imobiliária Centauro levantou a hipoteca da gle-
ba "Nina 2" e reiniciou a venda de lotes totalmente incidentes sobre
áreas de moradia e comércio indígenas. Prepostos da imobiliária e

27 Ver a respeito Carvalho & Sampaio, op. cit.

28 Ver p. ex. Gonçalves, op. cit.


75 Ir para o sumário >>

compradores dos lotes passaram então a ameaçar derrubar casas


dos índios e um deles chegou a tentar fazê-lo.

11) Neste contexto, em 22 de agosto de 1990, parte significativa da


comunidade pataxó da Coroa Vermelha ocupou pacificamente, com
moradias improvisadas - barracas - e roças, a área inculta apropria-
da pela "Florestas Rio Doce" inserida no perímetro delimitado pela
Funai - gleba B (Furtado, op. cit.). Esta ocupação foi muito decidida-
mente apoiada pelo poder público municipal de Santa Cruz Cabrália,
pela Administração Regional da Funai em Eunápolis e por empresá-
rios locais, que contribuíram com alimentos e barracas e, sobretudo,
com o compromisso de não intervenção policial (Brasileiro & Sam-
paio, 1990). Ficaria nisto evidenciada uma proposição de barganha
envolvendo o abandono das pretensões comunitárias indígenas so-
bre a crescentemente intrusada e valorizada área do pontal (gleba
A), alternativa já então claramente admitida por alguns líderes indí-
genas, o que marcaria um momento crítico de dissensões e tensões
internas à comunidade (ib.)

12) A estratégia seria completada logo em seguida, ás vésperas das


eleições gerais de 1990, com três medidas que viriam esclarecê-la
cabalmente:

A - A 31 de outubro, em reunião agenciada por políticos regionais na


sede da Florestas Rio Doce, em Belo Horizonte, com a participação
de representantes indígenas e da Funai, a empresa "concorda com
a permanência" dos índios no imóvel, não adotando nenhuma medi-
76 Ir para o sumário >>

da restritiva até que se encontre uma "solução" para o caso (Flores-


tas Rio Doce, 1990).

B - Nos meses de outubro e novembro, a prefeitura, ainda sob a pre-


missa de que o pontal da Coroa Vermelha não seria "regularizável
como Terra Indígena", concedeu cerca de setenta aforamentos de
pequenos lotes a famílias indígenas, alegadamente o único instru-
mento capaz de lhes garantir as posses.

C - Paralelamente, foi formulado um acordo entre a comunidade in-


dígena e a Imobiliária Centauro, pelo qual a primeira "abria-mão" de
suas posses incidentes sobre o loteamento "Aldeia Nina", em troca
do que a empresa lhes cederia 74 pequenos "lotes regularizados"
em "outra área" do loteamento, presumivelmente aquela do embar-
gado "Aldeia Pinta", embora o proprietário da empresa, José Mar-
tins, acenasse então com a possibilidade de recomprar lotes ainda
não edificados do "Nina" para viabilizar o acordo. Este seria de fato
firmado, naquele mesmo novembro, por apenas dois "representan-
tes" indígenas e pelos responsáveis pela Superintendência da Funai
em Goiânia, Thomaz Wolney de Almeida, e por sua Administração
Regional de Eunápolis, Giuseppe de Souza, mas sem a anuência da
direção do órgão, notadamente da sua Diretoria de Assuntos Fundiá-
rios.

Na verdade, os aforamentos concedidos a famílias pataxó se consti-


tuíam em parcela de uma série de concessões feitas pela Prefeitura.
Com efeito, a documentação do escritório local do Iphan registra o
período correspondente à gestão municipal de 1989 a 1993 como
77 Ir para o sumário >>

aquele em que se acelerou, no local, os processos de degradação


ambiental e de ocupação irregular promovidos pela Prefeitura (Boa-
ventura, op. cit.)
O incremento das invasões sobre o pontal era já de fato nítido em
1989, e estas, que pelo menos desde o ano anterior já cobriam toda
a faixa de domínio do DNER - junto à BR-367 - expandiam-se daí
para as áreas adjacentes ao longo do acesso ao monumento e so-
bre as faixas não edificadas do loteamento "Nina", em especial a
gleba "Nina 2", intrusando ainda mais drasticamente os minguados
estabelecimentos indígenas, Conforme inclusive denunciado à Fu-
nai, a 08 de setembro de 1989, em ofício da atenta Capitania dos
Portos de Porto Seguro.
A estas invasões se fez acompanhar, pois, a desregrada concessão
de aforamentos que, ainda que tenham talvez se constituído numa
tentativa do poder municipal em manter o controle sobre o processo
de ocupação, teve efeito justamente inverso: feitos sem a necessária
planta de parcelamento e, evidentemente, sem a não menos impres-
cindível aprovação dessa planta pelo Iphan (Boaventura, ib.), tais
aforamentos, viciados em sua própria origem, logo revelariam outros
problemas técnicos, como superposições, e só contribuiriam para a
completa caotização da situação dominial, consolidando as invasões
e construções irregulares como forma dominante de ocupação da
área. Exemplarmente, cerca de dez dos aforamentos concedidos a
indígenas o foram sobre lotes recém comercializados pela Centauro
no "Nina 2", o que comprometia o próprio acordo que então se firma-
va entre "comunidade indígena" e imobiliária, e que deveria se cons-
tituir em peça decisiva da tentativa conjunta que esta e a Prefeitura
78 Ir para o sumário >>

faziam para resgatar as aparências de legalidade das ocupações na


área.
A rápida sucessão de interferências na situação fundiária do pontal,
em fins de 1990, geraria veementes protestos da parcela da comuni-
dade indígena que, ainda sob a liderança do "capitão" Itambé, se
considerava lesada em seus direitos e, a partir de então, se mobili-
zaria em contrário, no que se destacaria a adesão de todas as de-
mais comunidades Pataxó, temerosas de perderem definitivamente
o estratégico ponto de apoio para o comércio de artesanato repre-
sentado pela sua aldeia da Coroa Vermelha (Carvalho & Sampaio,
op. cit. e Sampaio, op. cit.).
Em meados de 1991, a imobiliária Centauro iniciou o aterro de uma
lagoa e outras alterações na planta original do loteamento "Aldeia
Nina", para possibilitar a constituição dos microlotes a serem permu-
tados com os índios. A medida causou mais protestos, junto a ór-
gãos ambientais, por parte de parcela da comunidade indígena e de
associações indigenistas e ambientalistas, face à flagrante violação
da legislação de proteção ambiental, paisagística e cultural. Com isto
as obras foram embargadas e, ao menos temporariamente, interrom-
pidas (Sampaio, ib.).

13) Enquanto isto, o Conselho Estadual de Proteção Ambiental (Ce-


pram), em reunião ordinária a 28 de janeiro de 1991, já em atenção
às demandas e protestos indígenas, aprovara resolução consideran-
do a Coroa Vermelha
"área de interesse para fins de preservação ambiental e paisagística
e salvaguarda do patrimônio indígena ali existente." (Cepram, 1991)
79 Ir para o sumário >>

De resto, já a Constituição Estadual, promulgada em 1989, em seu


artigo 261, inclui a área da Coroa Vermelha no "Sítio do Descobri-
mento", tornando-a, para efeitos da sua preservação, "patrimônio do
Estado".

14) Retornando, uma vez mais, ao plano institucional do processo de


regularização de Terras Indígenas, este seria redefinido pelo Decre-
to 22, de 04 de fevereiro de 1991, adequando-o ao disposto na
Constituição de 1988, fazendo retornar ao órgão indigenista a res-
ponsabilidade e a autonomia por suas etapas de identificação e deli-
mitação e extinguindo assim, em definitivo, o já então inativo Grupo
Interministerial criado em 1983. Os procedimentos técnicos dessas
etapas seriam definidos pela Funai na Portaria 239/91, de 20 de
março, não se aplicando contudo aos processos de identificação e
delimitação já realizados. Para "reestudar" aqueles, dentre estes ca-
sos, sem regularização concluída anteriormente ao Decreto 22, foi
criada, no âmbito do órgão, pela Portaria 398/91, de 26 de abril, uma
Comissão Especial de Análise (CEA).
Foi assim retomado o processo da Coroa Vermelha que, em parecer
formulado pela mesma técnica responsável pelo laudo original de
identificação (Furtado, 91), aprovado pela CEA a 21 de agosto, teria
recomendada a realização de novo estudo. Para tanto foi constituí-
do, pela Portaria 1.445/91, de 04 de novembro, Grupo Técnico coor-
denado pela servidora antropóloga Vilma Leitão.
O novo relatório (Leitão, 1992) reafirmaria as informações básicas
que nortearam a formulação dos anteriores (Mariz, op. cit.; Rogedo
et al, op. cit.; Furtado, 1986 e Demarquet, op. cit.), ou, essencial-
mente, a anterioridade, sobre quaisquer outras, das ocupações pata-
80 Ir para o sumário >>

xó, tanto na área do pontal - para habitação e atividades artesanais,


comerciais e outras associadas à sua subsistência - quanto na
"mata" identificada na "gleba B" - para atividades extrativas, de cole-
ta e caça. Registraria também, em parcela desta segunda área, o
estabelecimento pacífico, desde 1990, de habitações e cultivos. Por
fim, seguindo os três trabalhos imediatamente precedentes (ib.),
também constataria, no plano socioeconômico, a imprescindibilidade
das terras já anteriormente identificadas nas glebas "A" e "B" para a
sobrevivência e a reprodução física e cultural da comunidade pataxó
da Coroa Vermelha - nos termos do Artigo 231 da Constituição - e,
mais que isto, para a própria reprodução do povo pataxó como um
todo, seja pela posição economicamente estratégica que ocupam
para o comércio do artesanato de todas as aldeias pataxó (Leitão,
op. cit.), seja por sua importância simbólica na constituição e repre-
sentação das bases atuais de uma etnicidade pataxó e das relações
deste povo com a sociedade envolvente.
No que diz respeito à delimitação, o relatório em foco manteria os li-
mites anteriormente estabelecidos para a "gleba B", alterando contu-
do os da "gleba A", para deles excluir a porção correspondente ao
"Nina 1", área adjacente ao limite oeste da gleba - BR-367 - e já qua-
se completamente edificada com grandes mansões. Se pode deduzir
que esta exclusão se deveu fundamentalmente à constatação de
que tal faixa, com aproximadamente 15 hectares, já perfeitamente
destacada no contexto ocupacional local, não seria caracterizável
como imprescindível aos Pataxó, nos termos do Artigo 231 da Cons-
tituição.
Finalmente, relativamente ao levantamento fundiário, seria constata-
do o supra referido processo de caotização espacial e legal das ocu-
81 Ir para o sumário >>

pações intrusadas sobre a área do pontal, com ênfase para a super-


posição de aforamentos e para o desrespeito aos dispositivos regu-
lamentares de preservação. Enquanto isto, na área da "mata" persis-
tia a completa inexistência de benfeitorias de implantação ou utiliza-
ção por parte de pretensos proprietários que não dos próprios Pata-
xó (Leitão, ib.).
Por outro lado, tendo visitado a comunidade no auge das tensões
que a dominavam entre 1990 e 1993, o Grupo Técnico constatou a
"forte cisão" (ib.) presente, causada sobretudo por divergências rela-
tivas ao próprio processo de regularização do seu território no pon-
tal, entre os partidários da "Terra Indígena" e aqueles que haviam
apoiado os aforamentos municipais e o acordo de 1990 com a imobi-
liária Centauro. Era fácil perceber então como a descrença advinda
de um longo e ainda infrutífero processo de regularização e o imedi-
atismo de uma alternativa aparentemente capaz de impor algum limi-
te à voracidade das invasões se aliaram para manter forte a segun-
da opção - ao menos em parcela da comunidade - mesmo diante de
mais um Grupo Técnico de identificação e delimitação.
Assim, a tragicamente compreensível ausência de unidade, ou, me-
lhor dizendo, a indefinição da própria comunidade, se tornaria a prin-
cipal razão para que, apesar da propriedade e da adequação da pro-
posta técnica esboçada em 1992, o processo de regularização da
Coroa Vermelha, por mais três anos, retornasse às gavetas da Dire-
toria Fundiária da Funai, até que o desenrolar dos fatos voltasse a
ensejar a sua retomada.

15) Avaliações mais recentes da situação ocupacional do território


indígena, em 1994 (Sampaio, op. cit.) e 1995, puderam constatar a
82 Ir para o sumário >>

ocorrência de algumas alterações, em geral bastante previsíveis,


que vão esquematizadas a seguir:

A - Apesar de embargos do Ibama em 1991, os lotes destinados


pela Centauro às famílias indígenas foram, pelo menos em parte, de
fato constituídos, física e formalmente, e, tanto quanto os aforados
pela Prefeitura, em boa parte alienados, em geral a comerciantes.

B - Apesar de ter sua planta de loteamento aprovada pelo Iphan (In-


formação Técnica 24, de 01/03/92), a gleba "Nina 2" se encontra to-
talmente invadida e não há aí sequer uma construção regular. Ape-
sar de intensificados nos últimos anos, os embargos extrajudiciais do
Iphan nada têm podido fazer para conter a permanente expansão
das construções ilegais nesta área e naquelas aforadas pelo municí-
pio entre 1989 e 1993. Tais embargos, mesmo quando executados
pela Polícia Federal, têm tido em geral o efeito de paralisar as obras
por alguns dias, prosseguindo estas, quase sempre, até a sua con-
clusão (Boaventura, op. cit.).

C - As mais diversas construções irregulares também proliferaram


sobre a faixa de domínio do DNER, recobrindo-a totalmente, e já
atingindo outras áreas até recentemente não edificadas, como o tri-
ângulo entre a pista e os cursos do Jardim e do Mutari, onde se for-
mou uma favela junto à margem esquerda do primeiro rio.

D - Aumentou e se diversificou consideravelmente o comércio, so-


bretudo na área central, próxima ao monumento, com destaque para
os bares. Esta faixa estratégica se tornou cada vez menos controla-
83 Ir para o sumário >>

da pelos Pataxó, que já não têm aí a exclusividade nem mesmo no


comércio do seu próprio artesanato.
E - A população indígena crescente, tendo reduzidas suas antigas
áreas de ocupação habitacional, sobretudo em seu núcleo original,
se amontoa nos terrenos remanescentes, dando origem à possivel-
mente primeira grande favela indígena do país.

F - Também em função da concentração ocupacional e comercial


em torno do monumento, parcela significativa das famílias indígenas,
a partir de 1993, transferiu suas moradias para uma área mais ao
norte, próxima à margem direita do rio Jardim - e também aforada à
Centauro - desde então conhecida como "aldeia nova", onde as con-
dições de ocupação não são muito diferentes do processo de "faveli-
zação" acima referido com relação à área de ocupação habitacional
mais antiga da comunidade, ao longo do acesso ao monumento.

G - Persistem as pequenas escaramuças entre pataxós e pretenden-


tes diversos às áreas que os índios ocupam, inclusive, e sobretudo,
ainda a imobiliária Centauro. Os conflitos contudo não parecem ser a
causa decisiva da maioria das alterações ocupacionais indígenas
havidas desde 1991.

H - O controle rigoroso sobre a área ocupada em 1990 na "mata" foi


claramente assumido por alguns líderes da comunidade. Apenas
cerca de dez famílias mantêm moradias permanentes ou transitórias
no local, mas há roçados também de algumas outras, ainda que mui-
to menos do que seria necessário para prover a tão desejada diver-
sificação da base produtiva da comunidade. A ausência de maiores
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investimentos produtivos aí está declaradamente associada à indefi-


nição da sua situação dominial.

I - A situação do normativamente multi-protegido patrimônio ambien-


tal e paisagístico da área do pontal parece cada vez pior: a vegeta-
ção de restinga está completamente devastada e os leitos do Mutari
e do Jardim açoreados, havendo também sinais evidentes de polui-
ção de suas águas, que continuam sendo utilizadas pelas famílias
pataxó para todas as necessidades domésticas. Há muitos esgotos
a céu aberto e lixo por toda a parte, sobretudo na praia.

16) A partir do primeiro semestre de 1994, a vanguarda das preocu-


pações oficiais com relação ao caos ocupacional do pontal da Coroa
Vermelha seria assumida pelo governo do Estado da Bahia que,
através do seu Programa de Desenvolvimento Turístico (Prodetur),
da Secretaria de Cultura e Turismo, inicia estudos para embasar
uma intervenção ampla na situação ocupacional da área.
Ficaria clara nessa iniciativa a inadmissibilidade, para os interesses
da próspera indústria turística local e para seus patronos governa-
mentais, da presença de tantas flagrantes marcas de degradação
em um sítio de tamanha importância turística, com perceptíveis pre-
juízos econômicos para aquela indústria. Há também que se consi-
derar, na caracterização desta linha de preocupações, a constatação
da total fuga do processo ocupacional em questão ao controle das
instâncias administrativo-legais aí mais plenamente constituídas:
seja pelo "excesso" de intervenções irresponsavelmente promovidas
pelo poder municipal, a quem o Estado concedera as terras no início
do século; seja pela "ausência" de intervenções cabíveis da parte da
85 Ir para o sumário >>

União, à qual compete a salvaguarda da terra de ocupação tradicio-


nal indígena e do patrimônio ambiental e cultural aí existentes. Por
fim, a perspectiva de que o local seria, no ano 2000, palco preferen-
cial para as comemorações internacionais dos quinhentos anos de
"descobrimento", é, também, fator determinante no elenco de moti-
vações que orientaram a iniciativa estadual de tentar torná-lo mais
"apresentável".
Deste modo, já nos contatos iniciais de técnicos do Prodetur com lí-
deres pataxó da Coroa Vermelha, se lhes anunciou a intenção de re-
tirar todas as ocupações irregulares do entorno do monumento à
"Primeira Missa" - o que, na perspectiva daqueles, inclui também as
moradias indígenas - para dar ao local o tratamento paisagístico
adequado à sua vocação turística e histórico-monumental. Ficaria
porém desde logo claro também que, nessa perspectiva, uma tal vo-
cação inclui necessariamente a presença indígena. Daí, do que se
pode depreender da proposta de intervenção, esta consistiria, de
fato, na remoção das construções no entorno do monumento e na
manutenção, nesta área, de um centro - ou "mercado"- para comer-
cialização do artesanato indígena, a ser construído em conformidade
com o padrão considerado adequado ao desejado tratamento turísti-
co-monumental. Seguindo o mesmo padrão, as moradias indígenas
seriam relocadas em área menos "nobre", mas também integrante
do sítio, onde está hoje implantada a "aldeia nova" (Bahia, 1995).
Numa primeira iniciativa para formalizar sua proposta de interven-
ção, a Secretaria de Cultura e Turismo formularia, em abril de 1995,
minuta de convênio com a Funai, o Iphan e a Prefeitura Municipal.
Nesta, a participação do órgão indigenista se justificava, generica-
mente, pelo fato de haver, no local, índios; sem qualquer referência
86 Ir para o sumário >>

contudo ao fato de que uma tal presença configurava a presença


também de direitos próprios e, muito especialmente, de direitos terri-
toriais. Por esta razão, a Funai não deu qualquer encaminhamento
administrativo-burocrático à proposta, mas, certamente, tomou ciên-
cia da necessidade urgente de dar um fim consequente ao seu pró-
prio processo de regularização da Terra Indígena.
Prosseguindo em sua iniciativa, o Governo do Estado enviaria à As-
sembléia Legislativa, em dezembro de 1995, mensagem requerendo
autorização para realizar desapropriações de terras e benfeitorias
públicas e particulares no local. Discutida em regime de prioridade, a
mensagem seria aprovada e tornada lei em 10 de janeiro de 1996,
não sem que antes, porém, alertados da sua existência, os Pataxó
da Coroa Vermelha manifestassem sua contrariedade, o que os le-
vou a intervir, com o acompanhamento de associações indigenistas,
nas próprias discussões legislativas, provocando a inclusão de duas
emendas que ressalvam "os direitos indígenas presentes" e garan-
tem a permanência dos Pataxó na área delimitada na mesma Lei au-
torizativa.
Numa avaliação sumária, as emendas introduzidas após a interven-
ção pataxó parecem tornar a Lei contraditória, já que, "resguardar os
direitos dos índios" implicaria necessariamente em não desapropriar
terras indígenas, que, contudo, não são, na própria Lei, como tais re-
conhecidas.
Enfim, a 29 de janeiro o Governador do Estado divulgaria o Decreto
5.143, que "considera de utilidade pública, para fins de desapropria-
ção", a mesma área delimitada em Lei no pontal da Coroa Vermelha.
Voltar-se-á a isto adiante.
87 Ir para o sumário >>

A defesa desta medida, da parte de técnicos e dirigentes do Prode-


tur cientes dos direitos indígenas, se baseia no argumento de que
seria este o único instrumento eficaz para barrar, de imediato, o pro-
cesso, ainda bastante voraz, de avanço das ocupações e constru-
ções irregulares sobre o pontal. Espere-se então que, uma vez devi-
damente configurado o direito indígena presente, as "desapropria-
ções" pelo Estado possam ser convertidas em indenizações de ben-
feitorias indevidamente implantadas sobre Terra Indígena, e que as
intervenções urbanísticas projetadas só se executem, na forma le-
gal, mediante prévia anuência e acompanhamento direto da comuni-
dade indígena e da Funai.

17) Antes disto porém, é fundamental que se registre aqui que, retor-
nando a atenção sobre a comunidade pataxó em foco, alterações
significativas em sua ordem sociopolítica interna passaram a se pro-
cessar de modo perceptível a partir, aproximadamente, de 1993
(Sampaio, 1993 e 1994). Com efeito, a constatação do malogro dos
acordos de 1990 com a Prefeitura e a Centauro, e, sobretudo, a con-
tinuidade inapelável do avanço das intrusões sobre suas terras, a
ponto de lhes retirar o controle sobre o comércio de artesanato e ou-
tros no próprio centro da sua aldeia, no entorno do monumento,
comprometendo completamente o próprio eixo da sua tradicional
base de subsistência, levaram-nos a superar as divergências acirra-
das em 1990 e 1991 (Leitão, op. cit. e Carvalho & Sampaio, op. cit.).
Neste sentido também interviu, a partir de 1994, a presença do Pro-
detur, que os Pataxó, escaldados, perceberam como mais uma inter-
venção indevida de esferas do poder público não comprometidas
com a atenção e a proteção aos seus direitos.
88 Ir para o sumário >>

A partir do início de 1995, a nova ordem política da comunidade se


tornaria plenamente instituída com a indicação de um novo cacique
e a criação e registro de uma associação comunitária dos indígenas
da Coroa Vermelha. Neste processo parecem ter interferido positiva-
mente a articulação da comunidade com o movimento indígena regi-
onal e nacional e a sua aproximação a organizações indigenistas
não-governamentais, bem como a adoção de uma postura mais inte-
ressada e participativa nos problemas da comunidade, em especial
os territoriais, da parte da Administração Regional da Funai em Eu-
nápolis, também renovada à época.
Isto posto, voltam os Pataxó a reivindicar enfaticamente a adoção
das providências para que se efetive a regularização da sua Terra
na Coroa Vermelha, o que resultaria na constituição, pela Presidên-
cia da Funai, através da Portaria 860, de 14 de agosto de 1995, do
Grupo Técnico responsável pelo presente relatório.
Diante do exposto, é certo que, estando ultrapassadas as dificulda-
des que barraram os processos anteriores de identificação e delimi-
tação desta Terra Indígena - em 1988 pelo mau juízo do extinto Gru-
po Interministerial do Decreto 94.945 e, em 1992, pela presença de
tensões e divergências internas à comunidade articuladas a interfe-
rências externas - estão dadas as condições para que o presente
trabalho venha a prover os subsídios necessários e legalmente pre-
vistos para que se logre o pretendido objetivo institucional de regula-
rização da Terra Indígena.

5 - A Aldeia Pataxó da Coroa Vermelha: Aspectos Sociais

A aldeia da Coroa Vermelha se define por três características bási-


cas e indissociáveis, a saber:
89 Ir para o sumário >>

1) No plano econômico, pela absoluta prevalência da atividade de


produção e, sobretudo, comércio de artesanato, voltado essencial-
mente para um público consumidor turista, como atividade axial para
a sua subsistência.

2) No plano espacial, a comunidade se caracteriza por dispor de


duas áreas de ocupação distintas, muito bem diferençáveis, defini-
das nas identificações anteriores como glebas "A" e "B". A primeira,
onde está a "aldeia" propriamente dita, tem configuração plenamente
caracterizável como urbana, seja pela sua atividade principal, o co-
mércio; seja pela sua própria estrutura físico-ocupacional, com habi-
tações concentradas e acesso pavimentado que a integra à área ur-
bana contínua que abrange hoje toda a faixa costeira entre os núcle-
os originais das cidades de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. A
segunda, embora próxima à primeira - cerca de 6 quilômetros - pode
ser caracterizada em total contraste com essa, recoberta que é pelo
próprio "oposto lógico" do urbano e do "civilizado": a "mata". Com
efeito, ainda que explorada pela comunidade pataxó da Coroa Ver-
melha de modo também indissociável e indispensável à sua base de
subsistência, tal exploração, como já indicado, é quase que exclusi-
vamente coletora e, até 1990, não havia aí habitações permanentes
ou cultivos em roças.

3) Por fim, no plano das representações simbólicas, ou do "imaginá-


rio"; naquele plano mais fundamental em que se constitui plenamen-
te uma identidade pataxó, ou, mais especificamente, uma identidade
90 Ir para o sumário >>

dos Pataxó na Coroa Vermelha, se articulam os outros dois planos -


econômico e físico-espacial- desse sub-sistema social indígena.
Lugar histórico do encontro inaugural entre portugueses e indígenas
e, em especial, lugar onde, na nossa historiografia oficial, este "en-
contro" viveu seu contexto maior de realização ritual, a Coroa Ver-
melha não poderia deixar de ser, hoje, um 'locus' socioespacial privi-
legiado para a "representação" deste "encontro", concebido no ima-
ginário social brasileiro - e sem dúvida também dos Pataxó - como
um momento emblemático da constituição da própria nacionalidade.
Assim, se revivem e se atualizam, cotidianamente, na Coroa Verme-
lha, os sentidos polares seminais da nação e, significativamente, se
os faz "sob o signo da cruz" - como bem está posto na placa à base
da própria, que ali também está a consubstanciar, monumentalmen-
te, em concreto, os valores mais caros ao impulso conquistador e
colonial que é, no plano do ideário dominante, fundador da própria
nação. Mas que consubstancia também, para o pólo indígena, o sig-
no maior da sua transfiguração, mas também da sua indelével per-
manência, "povo testemunho" (Ribeiro, 1977) que é dos 500 anos de
história da nação ali "inaugurada" e na qual segue buscando - inclu-
sive pela sua emblemática presença junto à cruz monumental - o
seu "lugar" na memória, ali cotidianamente evocada, e, sobretudo,
no território.
São precisamente estas as imagens e as identidades que se articu-
lam e se negociam na cena histórico-comercial da Coroa Vermelha,
par e passo com as aparentemente simplórias ações de comprar e
de vender artesanato indígena. Tem-se aí de uma parte o turista,
neo brasileiro citadino e possuidor de "dinheiro", signo máximo do
poder de que se investe a "sua" civilização ocidental, para quem a
91 Ir para o sumário >>

visita ao "território indígena" da Coroa Vermelha tem, de um lado, o


sentido de lhe reafirmar as imagens clássicas da sua "história",
constitutivas de uma identidade nacional na qual a concepção de um
domínio "ocidental- cristão" estabelecido através da absorção "har-
moniosa" de elementos culturais indígenas e negros é fundamen-
29
tal ; de outro o de lhe permitir vivenciar estas representações ao ad-
quirir - isto é, absorver desde uma posição dominante que não exclui
o desdém e a pechincha - aqueles "elementos culturais" consubstan-
ciados aqui no artesanato indígena, renovados "troféus" da sua rea-
firmada conquista sobre aquele subsegmento social "ainda" diferen-
ciado que ali defronta a sua "absorvente" sociedade, e dos quais o
dinheiro - seu "elemento cultural" por excelência - lhe permite "tomar
posse". De outra parte, os Pataxó, "proto-brasileiros" que se pensam
e são aí reconhecidos como "os índios que receberam Cabral", têm,
em sua presença e na sua "atuação" na Coroa Vermelha, poderosos
elementos de afirmação da sua indianidade e, em especial, de legiti-
mação dos direitos pertinentes a estacondição. Para eles, dispor do
artesanato é, aqui, signo da sua especificidade cultural e do seu do-
mínio transformador sobre a natureza - a "mata"- 'locus' por excelên-
cia da sua identidade, cuja presença ali, próxima, sob seu efetivo
controle, mais que simplesmente evocada pelo artesanato, lhes é
tão indispensável - nos planos material e simbólico - quanto o é,
para o personagem que se lhes opõe na cena, a do mundo urbano
de onde ele extrai o dinheiro e outros elementos e signos de poder
que viabilizam sua inserção privilegiada neste pequeno teatro históri-
co da sociedade nacional. Teatro que, em sua dramática dimensão
de fidedignidade, parece não poder ainda prescindir dos persistentes

29 Ver a respeito, por exemplo Da Matta, 1979.


92 Ir para o sumário >>

esbulhos de patrimônio e invasões de territórios indígenas.


Isto posto, passar-se-á à complementação do quadro da aldeia pata-
xó da Coroa Vermelha a partir do exame de alguns dados e informa-
ções mais objetivos da sua vida social.

5.1 – Demografia

A característica mais marcante da estrutura populacional indígena


da aldeia Coroa Vermelha tem sido, desde a sua origem, um alto ín-
dice de incremento, alimentado, nas décadas de 1970 e 1980, pelo
também alto incremento econômico, na região, da atividade turística
que lhe dá suporte, e pela ausência de perspectivas de subsistência
nas demais aldeias Pataxó, em especial na maior e mais antiga de-
las, a sitiada Barra Velha.
Boa parte dos importantes contingentes pataxós oriundos de Barra
Velha que afluíram para a Coroa Vermelha em seus primórdios não
vieram, contudo, diretamente daquela aldeia, mas sim de fazendas,
cidades e povoados próximos, por onde tais contingentes perambu-
laram, sobretudo a partir da implantação do Parque Nacional de
Monte Pascoal em 1960. Com a consolidação do núcleo original da
Coroa Vermelha, em meados dos anos de 1970, ganha destaque um
afluxo direto de Barra Velha, o que é significativo para que se dimen-
sione o estreito vínculo ainda hoje prevalecente entre as duas aldei-
as.
Um afluxo secundário, mas que merece referência para o período
inicial da aldeia, foi o alimentado pelo outro segmento histórico dos
Pataxó, aquele situado ao norte do rio Pardo (vide supra), reunido
desde a década de 1930 na Reserva Caramuru-Paraguaçu que, na-
93 Ir para o sumário >>

queles anos de 1970, vivia o período mais crítico de sua invasão por
fazendas (Paraíso, 1981). Deste pequeno grupo afluente provieram
importantes líderes da consolidação da comunidade, como "Nélson
Saracura" e "Chico Branco".
Por fim, a partir principalmente já dos anos de 1980, é perceptível a
consolidação de novos polos de afluxo, como a aldeia de Boca da
Mata, implantada na década anterior também na área do Monte Pas-
coal e que passou a sofrer problemas graves por isolamento e esgo-
tamento de solos (Sampaio, 1994), e a geograficamente mais próxi-
ma Mata Medonha. Boa parte do fluxo de população originário des-
tas aldeias tem caráter temporário, o que contribui, por um lado, para
a grande importância que tem a Coroa Vermelha como centro socio-
político e de informações para todos os Pataxó e, por outro, para a
existência de um significativo contingente populacional flutuante e
sazonal, o que configura outra destacável característica demográfica
desta aldeia.
Não se conhecem informações populacionais para a primeira déca-
da da aldeia. O estudo identificatório de 1985 (Rogedo et al, op. cit.)
recenseou 235 pataxós na Coroa Vermelha. Em 1988, um outro pes-
quisador (Bierbaum, 1990) estimaria sua população em "250 habi-
tantes no inverno e cerca de 300 no verão" (ib.), realçando assim,
pela primeira vez, a presença de um contingente flutuante, justamen-
te no ano que marcou o início do período mais crítico de insegurança
territorial da aldeia. Um grande salto populacional parece se registrar
no início da década seguinte, quando, em um autocenso, a comuni-
dade refere a presença de 650 índios no verão de 1991-92 (Carva-
lho & Sampaio, op. cit.), não se especificando qual o critério adotado
na avaliação do grau de permanência deste contingente. Novas in-
94 Ir para o sumário >>

formações provenientes da própria comunidade assinalam, no verão


de 1993-94, uma população de 1200 indivíduos, "aí supostamente
incluído o contingente flutuante" (Sampaio, 1994).
No recenseamento realizado pela administração Regional da Funai
durante os presentes trabalhos de campo de identificação e delimita-
ção, em agosto e setembro de 1995, com acompanhamento de re-
presentantes da comunidade, foi constatada uma população indíge-
na efetivamente residente de 693 pessoas, distribuídas em 131 gru-
pos domésticos e 118 unidades domiciliares.
Quanto à distribuição etária, foi levantada uma população de 352 in-
divíduos (185 homens e 167 mulheres) com idades superiores a 14
anos, e 341 (186 homens e 155 mulheres) com idades inferiores a
14 anos. Este aparente equilíbrio entre população ativa e não ativa
dado pelo limite dos 14 anos deve contudo ser relativizado em fun-
ção do alto índice de trabalho infantil, sobretudo na venda de artesa-
nato. Já a ligeira preponderância da população masculina - 371 con-
tra 322 mulheres - pode ser indicativa do fato de constituir a aldeia,
ainda, uma "frente de expansão" pataxó. Por outro lado, o total obti-
do para a população residente em um período de "baixa estação"
parece confirmar a indicação de que a população total da aldeia du-
rante o verão ultrapassa a mil.
Não dispomos de informações específicas sobre natalidade, mortali-
dade e fertilidade na aldeia, mas os dados de população sugerem
que estas taxas não diferem aqui daquelas típicas de outras comuni-
dades indígenas ou de aglomerados periurbanos na região, com ín-
dices relativamente altos de natalidade e médios de mortalidade, o
que resulta num crescimento vegetativo certamente superior à média
nacional, a que se acrescenta o incremento por imigração. Tal pode
95 Ir para o sumário >>

ser facilmente depreendido de uma comparação dos totais populaci-


onais desde 1985, bem como dos números atuais para a população
infantil ou da média de 5,3 membros por grupo doméstico, seme-
lhante às encontradas em periferias urbanas e superior às das de-
mais aldeias pataxó (Sampaio, 1994). Por sua vez, a já evidente si-
tuação de pressão sobre o território de habitação dos Pataxó da Co-
roa Vermelha está também aqui demonstrada pela alta média de 5,9
moradores por unidade domiciliar, índice que certamente ultrapassa
a de 8 quando considerada a população flutuante.

5.2 - Trabalho e Subsistência

A atividade artesanal, predominante na aldeia, pode ser, para fins


descritivos, dividida em quatro etapas básicas: obtenção da matéria-
prima, elaboração, beneficiamento e comercialização.
A matéria-prima é obtida de preferência por coleta direta nas matas
do próprio território de ocupação da comunidade (gleba B), ou em
outros territórios pataxó, em especial o do Monte Pascoal (Terra In-
dígena Barra Velha). A obtenção fora dos limites da comunidade é,
em geral, feita por meio de compra, tanto a pataxós de outras aldei-
as quanto a fornecedores não indígenas. Embora não se exija gran-
de especialização nesta etapa do processo produtivo, a mediação no
acesso a materiais, incluídos aqui os bens de produção - ferramen-
tas - tem tido, pelo menos em alguns períodos da história da aldeia,
importância estratégica, conformando inclusive alianças políticas e
comerciais entre seus membros, o que, no caso da obtenção de ma-
téria-prima, parece envolver tanto a coleta quanto a aquisição, na
qual a necessidade de alguma capitalização certamente favorece a
formação de alianças, verticais ou horizontais. Não podemos avaliar
96 Ir para o sumário >>

com muita precisão qual a importância relativa, hoje, das duas mo-
dalidades de obtenção da matéria-prima, mas é importante assina-
lar, tendo em vista os objetivos do presente estudo identificatório,
que os pataxó da Coroa Vermelha almejam e avaliam ser possível
lograr a auto-suficiência ou quase auto-suficiência na produção des-
ses materiais básicos, sobretudo a madeira, através do manejo sus-
tentado dos recursos do seu próprio território, o que esperam poder
ser implementado com o necessário apoio técnico e, evidentemente,
uma vez obtida a sua regularização.
Praticamente todo membro adulto da comunidade, de ambos os se-
xos, está apto a desempenhar tarefas na elaboração das peças arte-
sanais, o que não implica que não haja graus muito diversos de ha-
bilidade e especializações bem marcadas quanto à confecção de al-
guns tipos de peça. As exigências do mercado consumidor geraram,
ao longo dos últimos vinte anos, sensíveis alterações, tanto na varie-
dade das peças artesanais produzidas pelos Pataxó, quanto no seu
padrão de qualidade, em especial no que diz respeito ao acabamen-
to, o que exige, em geral, algum tipo de tratamento secundário ou
"beneficiamento".
Por beneficiamento se entende o tratamento dado às peças, em es-
pecial às de madeira, por meio de artefatos eletromecânicos de lixa,
polimento, etc. A relevância desta etapa intermediária entre a elabo-
ração primária e a comercialização fez crescer a importância relativa
da Coroa Vermelha dentre as comunidades pataxó: com o aumento
dos custos e complexificação do processo produtivo, suas condições
de acesso direto ao mercado consumidor, maior capitalização e dis-
ponibilidade de energia elétrica tornaram ainda mais favorável a sua
estratégica localização. Com isto, muitos moradores da aldeia pas-
97 Ir para o sumário >>

saram a se dedicar preferencialmente à compra de peças pré-traba-


lhadas de outros artesãos, muitos de outras aldeias, para beneficiá-
las e vendê-las ao consumidor final a preços mais vantajosos.
É na etapa final do processo - a comercialização - contudo, que me-
lhor se define a vocação especial da aldeia da Coroa Vermelha, ca-
racterizada, como exposto acima, por uma posição geográfica e sim-
bólica privilegiada na relação com o público consumidor do artesana-
to pataxó. Desde o final dos anos de 1970, porém, a espetacular ex-
plosão da indústria turística regional - com as decorrentes valoriza-
ção das terras a beira-mar e desregrada competitividade das ativida-
des comerciais em geral - tem feito com que esta posição privilegia-
da tenha trazido mais problemas que favorecimentos à comunidade,
como evidenciado pela intrusão das suas terras no pontal (gleba A)
por especuladores imobiliários e comerciantes diversos, o que culmi-
nou, nos últimos anos, com o total comprometimento do comércio in-
dígena, conforme relatado acima. Esta inserção desigual da comuni-
dade no perverso mercado regional de turismo tem, ademais, produ-
zido outras consequências deletérias à sua ordem social:
"Este incremento da concorrência tem aumentado a importância estratégi-
ca das crianças pataxó, mais aptas a percorrer incansavelmente, com o ar-
tesanato, toda a extensão de praias e abordar diretamente os potenciais
fregueses. A escola indígena da aldeia fechou." (Sampaio, 1994:35)
A crescente perda das suas posições comerciais é, seguramente,
uma das principais causas da presente mobilização da comunidade
pela extrusão e regularização do seu território.
Por fim, vale ao menos referir que a importância do artesanato para
a economia e para a própria identificação social dos Pataxó contem-
porâneos tem gerado uma rica elaboração formal dos seus produtos
e um complexo universo representacional no relacionamento destes
98 Ir para o sumário >>

índios com a sociedade envolvente, cuja abordagem extrapola em


30
muito os limites do presente trabalho . No que aqui nos concerne,
parece suficientemente caracterizada a relevância, para a subsistên-
cia e a reprodução física e cultural desse segmento social indígena,
do território explorado, disputado e pleiteado pelos Pataxó na Coroa
Vermelha, tanto no que diz respeito à mata - fonte de matéria-prima
e 'locus' de uma importante dimensão identificatória do grupo em
sua "relação com a natureza" - quanto ao estratégico controle do es-
paço simbólico e comercial do "pontal da Primeira Missa".
As atividades complementares à subsistência pataxó - pesca e ma-
riscagem, extrativismo vegetal, agricultura e trabalho remunerado -
também trazem, bem marcadas, as condicionantes da sua base ter-
ritorial.
Situados à beira-mar, os habitantes da aldeia têm oportunidade de
pescar e coletar mariscos ao longo da praia da Coroa Vermelha, nos
recifes próximos e no estuário do rio Mutari. Estas atividades, embo-
ra realizadas sob condições técnicas precárias, são importantes para
suprí-los de fontes de proteína animal, de outros modos dificilmente
acessíveis, já que seus rendimentos comerciais - em especial na
"baixa estação" - frequentemente não lhes permitem comprá-las, e
que as limitações de espaço na aldeia restringem muito o desenvol-
vimento de criatórios domésticos.
Por duas ocasiões, desde a sua origem, a aldeia dispôs de peque-
nas embarcações comunitárias, obtidas com apoio de agências filan-
trópicas. Contudo, a indisponibilidade de recursos para a sua manu-
tenção, as dificuldades de uma administração "comunitária" e a pró-
pria ausência de tradição dos Pataxó em praticar a pesca além dos

30 Para uma iniciação ao tema veja-se Rocha Júnior, 1987 e Grunewald, 1995.
99 Ir para o sumário >>

limites da faixa costeira não permitiram à comunidade dispor, de


modo duradouro, destes bens. A falta de recursos técnicos e, princi-
palmente, a concorrência das muitas bem equipadas "barracas" ins-
taladas ao longo da praia da Coroa Vermelha também vedam inteira-
mente à comunidade indígena o acesso ao rico mercado de consu-
mo imediato de pescados representado pelos muitos banhistas que
frequentam esta praia.
Além da matéria-prima para o artesanato, os índios da Coroa Ver-
melha também extraem da mata produtos vegetais de algum valor
de mercado, notadamente a piaçava, que comercializam regular-
mente desde a implantação da aldeia, e, entre 1991 e 1995, a ma-
deira, derrubada inicialmente para a abertura de roças, e que teve
depois expandida predatoriamente a sua extração por alguns indiví-
duos, o que gerou protestos e a repressão da própria comunidade
que, no último ano, restringiu bastante esta prática.
Também desde o início dos anos de 1990, conforme relatado acima,
os Pataxó empreenderam uma ocupação agrícola nas matas do seu
território (gleba B), iniciativa que, claramente, teve os objetivos de,
por um lado, dotá-los de uma longamente desejada alternativa de
subsistência e, por outro, de tornar mais efetiva a ocupação do seu
tradicional território, ameaçado pelas invasões em sua porção cos-
teira e, sobretudo, pela equivocada Resolução do Grupo Interminis-
terial sobre Terras Indígenas em 1988. Atualmente, algumas famílias
indígenas mantêm na área roçados com cultivos de subsistência,
destacadamente de mandioca, alguns dos quais são, por sinal, bas-
tante extensos e já incluem alguns cultivos comerciais como o aba-
caxi.
100 Ir para o sumário >>

De modo geral, é perceptível que, embora o domínio indígena sobre


este território esteja plenamente caracterizado por uma exploração
contínua e exclusiva há mais de vinte anos, o crescimento demográ-
fico e as necessidades de subsistência da comunidade estão a exi-
gir, cada vez mais, um reordenamento desta exploração, no sentido
de possibilitar a expansão das áreas cultivadas, par e passo com a
implementação de um manejo sustentado nas atividades extrativas,
o que a comunidade já chegou a tentar com a criação de um viveiro
de mudas de espécies silvestres.
É justamente este pouco desenvolvimento de práticas econômicas
alternativas ao comércio de artesanato que leva alguns membros da
comunidade a, eventualmente, recorrer ao mercado de trabalho lo-
cal. Embora esta prática seja facilitada pela inserção da aldeia em
um meio urbano, ela é percebida pelos índios como desfavorável e
indesejável, tanto por fugir às suas tradições, quanto em função de
que sua predominante falta de especialização não lhes permite in-
gresso senão nos estratos inferiores do setor de serviços. Ademais,
sua demanda por trabalho ocorre predominantemente nos períodos
de "baixa estação", desfavoráveis ao comércio do artesanato, quan-
do, pelas mesmas razões de refluxo do mercado turístico, a oferta
de serviços em Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália está também
deprimida; daí o engajamento pataxó neste mercado se fazer sem-
pre, de fato, em condições muito desfavoráveis de remuneração e
31
sem o amparo das regulamentações trabalhistas . Aliás, os meses
da "baixa estação" - de março a junho e de agosto a novembro - cor-
respondem, quase sempre, a períodos de penúria da comunidade,
quando as famílias que não conseguiram amealhar alguma poupan-

31 Ver por exemplo Demarquet & Oliveira,op. cit.


101 Ir para o sumário >>

ça durante o "verão" realmente passam por dificuldades (Sampaio,


1995).
Há que considerar aqui, por fim, o trabalho doméstico, que ocupa
tempo considerável, sobretudo das mulheres e crianças da comuni-
dade, e, tanto quanto as demais atividades, marca, em seu exercí-
cio, o domínio pataxó sobre o seu território. A propósito, as tarefas
domésticas estão dentre as que mais sofreram com as restrições
crescentemente impostas a este território e com a sua degradação
ambiental. Pelo menos durante toda a primeira década de existência
da aldeia ainda era possível se encontrar lenha - utilizada então
como principal combustível doméstico - com abundância na área do
pontal, próxima às moradias indígenas, hoje praticamente inexisten-
te por força das intrusões e desmatamentos. As famílias pataxó ain-
da coletam, sobretudo na rarefeita vegetação costeira remanescente
nas proximidades dos rios Jardim e Mutari, algumas espécies arbus-
tivas componentes da sua farmacopéia tradicional, mas também
ameaçadas hoje de extinção. Conforme o padrão original das habita-
ções indígenas no local, estas dispunham de terreiros e quintais
onde era possível o desenvolvimento de alguma horticultura e a cria-
ção de suínos e galináceos. A maioria das residências atuais não
dispõe desses anexos e estas atividades se encontram apenas resi-
dualmente presentes, altamente restringidas pela indisponibilidade
de espaço. Finalmente, a fonte de água utilizada pela comunidade -
o rio Jardim - além de ter hoje o seu acesso dificultado pelas intru-
sões, se encontra ameaçada pelo desmatamento e, principalmente,
pela poluição, inclusive por esgotos domésticos, pois a área, apesar
de fortemente urbanizada, não conta com equipamentos adequados
de saneamento básico.
102 Ir para o sumário >>

5.3 - Organização Social e Política

A predominância das atividades artesanais e comerciais, além da


própria situação urbana, poderiam fazer supor a ausência de uma
maior integração social entre as diversas famílias indígenas da Co-
roa Vermelha. Tal contudo não ocorre - ou pelo menos não ocorre
em grau elevado - prevalecendo algumas importantes instâncias de
articulação social, nos planos econômico e político, seja internamen-
te à comunidade, seja na organização do seu relacionamento com o
universo social envolvente.
No que concerne à ordem interna, embora cada grupo doméstico se
constitua, de fato, em uma unidade de produção grandemente autô-
noma - dominando a maioria das etapas do processo produtivo e,
sobretudo, tendo acesso direto ao mercado e gerindo de modo inde-
pendente os recursos daí provenientes - há que se considerar o pa-
pel desempenhado pelas relações de parentesco e de clientela, im-
portantes na constituição de redes de cooperação e solidariedade,
horizontais ou verticais, que podem ser muito significativas na aten-
ção a demandas como a obtenção de matéria-prima, ferramentas,
créditos etc, além do socorro frequentemente necessário em função
da subordinação do sistema como um todo a um mercado externo
sazonal e em boa medida incerto. Estas redes correspondem, em
geral, a famílias extensas ou a conjuntos de famílias extensas subor-
dinadas a lideranças políticas e econômicas proeminentes. A sua
abrangência inclusive tende a extrapolar os limites estritos da comu-
nidade local, abrangendo os muitos membros de outras aldeias pata-
xó que compôem a massa de população flutuante da Coroa Verme-
103 Ir para o sumário >>

lha, e cujo acesso ao espaço social e comercial desta passa, neces-


sariamente, por vínculos de parentesco ou clientela com aquelas re-
des, o que, ademais, contribui para uma plena configuração da al-
deia como principal polo político pataxó. Por outro lado, é evidente
que tais redes não definem uma "unidade" política da Coroa Verme-
lha, performando, ao contrário, grupos opostos e concorrentes, como
se verá adiante.
As expressões de uma "unidade" social da aldeia se evidenciam,
como seria de se esperar, no contexto das suas relações com a so-
ciedade envolvente, no qual a condição indígena joga um papel fun-
damental, podendo ser aqui analiticamente desdobrada em duas di-
mensões básicas. De uma parte se deve observar que, conforme já
descrito, toda a base socioeconômica da comunidade assenta num
"comércio" com a sociedade nacional fundado na mobilização de re-
pertórios simbólicos associados àquela condição, para o que, evi-
dentemente, é requerida a efetivação de mecanismos internos de
produção e controle de padrões comportamentais e de "uso" público
de uma "imagem" coletiva definidora do segmento etnicamente dife-
renciado. De outra parte, a afirmação e a consolidação sociais deste
segmento inapelavelmente entranhado em um sistema abrangente e
predominantemente hostil depende enormemente da sua competên-
cia em construir e legitimar eficazmente suas "fronteiras" - inclusive
as de um território exclusivo - o que demanda o recurso à dimensão
jurídico-administrativa da condição indígena e às instâncias de poder
encarregadas da sua gestão, além, evidentemente, da consolidação
interna de uma ordem política mais unitária. Enfim, se pode afirmar,
em síntese, que, no caso do subsegmento social pataxó na Coroa
Vermelha, é justamente a contingência da sua alta dependência de
104 Ir para o sumário >>

um mercado - que exige a expressão cotidiana da sua etnicidade


mas que também o constrange a um campo social em que esta sua
especificidade cultural tem que ser exercida em condições de con-
corrência comercial e de conflito territorial - que conforma a sua uni-
dade social, contrabalançando plenamente as tendências dispersi-
vas decorrentes da sua inserção urbana e da possibilidade de aces-
so direto das suas unidades ao mercado externo. Este acesso, de
resto, está diretamente condicionado pelo fato de serem elas unida-
des "indígenas", enquanto tais situadas em posição de contraste e
de "diálogo" com o contexto social envolvente.
Esta contingência pode ser avaliada no desenvolvimento político-ins-
titucional da comunidade. Já ao final dos anos de 1970 haviam se
constituído claramente os grupos representados, de um lado, pelo
32
"capitão" Itambé, considerado o fundador da aldeia - e que tem se
destacado na vanguarda das mobilizações em defesa da Terra -
mas que, apesar de gozar de grande visibilidade externa e de consi-
derável respeito interno, lidera essencialmente o seu próprio grupo
familiar extenso, e, de outro, por Chico Branco, que, chegado à Co-
roa em 1976, se destacaria como principal articulador comercial da
comunidade e como líder da maioria das novas famílias que afluíam
para a aldeia. Os dois grupos tendiam a concorrer, não tanto por um
comando político centralizado - de resto não formalizado - mas prin-
cipalmente pela hegemonia no comércio de artesanato, embora, em
grande medida, administrassem conjuntamente o espaço físico e
simbólico deste comércio. Apenas em junho de 1985, quando se ini-
ciavam os encaminhamentos oficiais para regularização da Terra
(Rogedo et al, op. cit.), se instituiu um cacique, Benedito Arapati,

32 Ver também Rogedo et al, op. cit.


105 Ir para o sumário >>

que, apesar de pretendidamente neutro, mantinha, como seria de se


esperar, vínculos de lealdade mais definidos com o grupo majoritá-
rio. Já no relatório de Rogedo et al (ib.) está claramente posto que,
dentre a população recenseada, 174 pessoas seguiam a liderança
de Benedito, 48 a de Itambé e 13 estavam neutras. Esta ordem fac-
cional deixou de ser internamente administrável para se converter
em confronto mais grave a partir do momento em que as ameaças
sobre a Terra se tornaram mais efetivas e que a facção majoritária
decidiu - influenciada por políticos locais e pela própria Administra-
ção Regional da Funai - investir na ocupação agrícola e habitacional
da "mata" e nos malogrados "acordos" territoriais de 1990 (Brasileiro
& Sampaio, op. cit. e Leitão, op. cit.). A tradicional maioria desse gru-
po entraria em colapso a partir de então, tanto pelo dito malogro
quanto pela mobilização das demais onze aldeias pataxó no Sul e
Extremo Sul em apoio ao grupo tradicionalmente minoritário na al-
deia e, sobretudo, à manutenção do pleito pela regularização de
toda a Terra Indígena, em especial da sua imprescindível e mais
ameaçada porção costeira (Leitão, op. cit. e Sampaio, 1993 e 1994).
As novas exigências organizacionais da comunidade, ditadas agora
claramente pela necessidade comum de defesa da Terra, conduziri-
am, a partir de 1993, ao fortalecimento não da facção minoritária,
mas sim de uma unidade política da aldeia, marcada em 1995, como
já referido, pela indicação de um novo cacique e pela criação da
ACIPACOVER (Associação Comunitária Indígena Pataxó da Coroa
Vermelha), sob a presidência de Chico, ainda o líder internamente
mais expressivo da comunidade e principal avalista de uma total re-
formulação das posições adotadas em 1990 pela maioria dos seus
seguidores.
106 Ir para o sumário >>

A comunidade não tem, por outro lado, liderança religiosa formal,


embora algumas pessoas mais idosas sejam reconhecidas como co-
nhecedoras de práticas curativas - sobretudo fitoterápicas - associa-
das a tradições cosmológicas e mágico-religiosas indígenas. Tam-
bém não há, contudo, práticas religiosas coletivas institucionalizadas
ou que o grupo identifique como próprias. Na verdade, como seria
de se esperar no caso desta aldeia, todo o seu universo ritual é do-
minado pelo seu relacionamento com a sociedade nacional, em si
mesmo já altamente ritualizado nas práticas cotidianas de contato
entre pataxós e turistas. A vigência deste campo intersocietário, ple-
namente legitimado no contexto local, de certo modo explica que os
Pataxó prescindam de outras formas de expressão étnica formal,
como os rituais religiosos do Toré, Praiá ou Ouricuri, que, em outros
povos indígenas na região, são acionados também como indicado-
res de indianidade em situações interétnicas ritualizadas33.
Como todo conjunto ritual porém, as expressões de indianidade dos
Pataxó não poderiam se sustentar satisfatoriamente apenas no exer-
cício das suas rotinas ligadas ao artesanato, às fotografias e aos diá-
logos estereotipados com os turistas. Elas atingem seu momento
mais forte e excepcional nas participações que os Pataxó têm, "a ca-
ráter", nas festividades e encenações que anualmente celebram o
"Descobrimento", a 22 de abril em Porto Seguro, e a "Primeira Mis-
sa", a 26 de abril na própria Coroa Vermelha, e que, seguindo-se ao
"Dia do Índio", a 19 de abril, compõem um verdadeiro ciclo ritual pa-
taxó-regional.

5.4 - Relações com Outros Grupos Indígenas

33 Ver por exemplo Nascimento, 1994.


107 Ir para o sumário >>

Todas as oito aldeias que, com a Coroa Vermelha, são resultado da


diáspora pataxó na segunda metade deste século, compõem, com
Barra Velha, um conjunto social que, apesar de relativamente disper-
so entre os anos de 1960 e 1980, vem, desde 1989, rearticulando
formalmente, em encontros regulares, sua unidade (Sampaio, 1994),
dada não apenas por uma história comum e pelas relações de pa-
rentesco, mas também por aspectos culturais renovados pela inten-
sa elaboração artística exigida pela produção artesanal para comér-
cio e pela contingência comum da luta por territórios, no que o caso
da Coroa Vermelha, afeto a todos os pataxós que a frequentam, me-
rece destaque no contexto dessa mobilização em torno de uma uni-
dade pataxó. A esta iniciativa se tem associado, mais recentemente,
o segmento setentrional dos Pataxó atuais, reunidos em quatro al-
deias na região Sul do Estado. Há uma tendência crescente a que
os dois segmentos se considerem um único povo indígena, o que
tem expressão, por exemplo, na recente formação de um conselho
de caciques das doze aldeias, criado não por acaso em reunião na
Coroa Vermelha, no início de janeiro de 1996, e a ser instalado for-
malmente, também não por acaso, em Barra Velha, neste fevereiro.
Além das relações entre grupos locais, merece referência o vínculo
dos Pataxó com os seus velhos aliados Maxacali (Wied-Neuwied,
op. cit.), hoje confinados no nordeste mineiro, mas aos quais os Pa-
taxó não deixaram de recorrer em momentos críticos da sua história
recente, em especial nos anos de 1950 e 1960. Palavras do idioma
maxacali são reconhecidas e utilizadas pelos Pataxó baianos como
suas próprias, representando uma importante dimensão da sua iden-
tificação étnica.
108 Ir para o sumário >>

5.5 - Presença do Estado e Infra-Estrutura Comunitária

Já desde o início do relacionamento da comunidade pataxó da Co-


roa Vermelha com a Funai, por volta de meados dos anos de 1970,
ficaria claro que sua principal demanda junto ao órgão estatal dizia
respeito à garantia do seu território, questão que só presentemente
logrou dispor das condições para seguir seu curso administrativo
normal, até chegar devidamente a termo. Além do longo e tortuoso
processo fundiário resenhado acima (capítulo 4), em poucos outros
aspectos se tem feito sentir a presença do órgão indigenista junto à
comunidade que, apesar de sua significativa população, não conta
ainda com um Posto Indígena.
De fato, a única ação sistemática da Funai na aldeia parece ter sido
a manutenção de uma escola, que costumava ser assistida por duas
professoras funcionárias do órgão, até que, há alguns anos, a preca-
riedade e a exiguidade das suas instalações, para uma população
estudantil crescente, fez com que a própria comunidade se decidisse
pelo seu fechamento, alimentando a expectativa da construção de
um novo prédio que, não ocorrendo, forçou a matrícula de crianças
da comunidade em uma escola municipal situada na margem da BR-
367 oposta à aldeia e que, pelo menos durante certo período em
1994 e 1995, permaneceu sem funcionar. Planeja-se, evidentemen-
te, a reinstalação de uma escola da comunidade que atenda ao dis-
posto na regulamentação federal relativa a uma educação indígena
diferenciada.
Não há programas permanentes de saúde na comunidade e a preca-
riedade do atendimento só é minimizada pela proximidade de cen-
109 Ir para o sumário >>

tros urbanos razoavelmente equipados, notadamente Porto Seguro,


embora a comunidade também não disponha de transporte próprio.
A Fundação Nacional de Saúde programou e orçamentou, para
1994, a construção de unidades sanitárias para as residências da al-
deia, o que, inexplicavelmente, não chegou a ser feito. Também não
se percebe a existência de ações de apoio técnico agrícola que pos-
sam subsidiar as tímidas iniciativas dos índios neste campo.
Além da Funai e da FNS, os índios da Coroa Vermelha sofrem o
efeito de ações do Iphan, o qual tendem a considerar como um alia-
do na defesa do seu território, em função das tentativas de embargo
de construções e loteamentos irregulares e das ações de proteção
do patrimônio ambiental e paisagístico local, atentamente percebidas
como mais eficazes que as bissextas aparições de prepostos regio-
nais do Ibama, órgão que aprenderam a ter, muito justificadamente,
como o maior inimigo público dos Pataxó, desde a implantação do
Parque de Monte Pascoal.
Para complementar este breve quadro da presença federal, vale
mencionar as instituições que administram as faixas contíguas à al-
deia: o Ministério da Marinha que, através da Capitania dos Portos,
conferiu importante respaldo à consolidação da aldeia no local, já em
1973; e o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem que,
apesar dos alertas indígenas, não foi capaz de acionar competente-
mente a autoridade policial responsável pela repressão às invasões
sobre sua faixa de domínio junto à pista da BR-367, acabando por
tacitamente permitir a consolidação de um expressivo núcleo de vizi-
nhos incômodos para a aldeia.
Até o recente conjunto de episódios ligados ao Prodetur (vide
acima), a presença da administração estadual não era perceptível de
110 Ir para o sumário >>

modo destacável nos limites da Terra Indígena. Enquanto isto, a re-


lação da comunidade com o poder municipal tem sido predominante-
mente marcada pelos conflitos fundiários já relatados e, eventual-
mente, por um razoável componente de ambiguidade, sobretudo em
períodos eleitorais, quando a barganha em torno de pequenos bene-
fícios individuais ou coletivos domina a cena. A relativa representati-
vidade eleitoral dos Pataxó já gerou candidaturas de índios da Coroa
Vermelha às Câmaras Municipais de Santa Cruz Cabrália e Porto
Seguro, sem sucesso porém.
A aldeia é servida pela linha de transporte coletivo urbano que liga
Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, cujos veículos têm frequência
de trinta minutos durante o dia e, em seu percurso, ingressam no
próprio território da aldeia, retornando e fazendo parada no balão
próximo à cruz monumental.

6 - Identificação e Delimitação da Terra Indígena Coroa Verme-


lha

A Constituição Brasileira de 1988, que - como todas as precedentes


desde 1934 - reconhece aos povos indígenas, em seu Artigo 231, os
"direitos originários" sobre as terras que "tradicionalmente ocupam",
define, no parágrafo primeiro do dito Artigo que
"são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habi-
tadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades pro-
dutivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários ao seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução fí-
sica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições." (BRASIL,
1988)
111 Ir para o sumário >>

Com o objetivo de deixar claro todo o vasto mas preciso significado


deste dispositivo constitucional, lançar-se-á mão aqui dos esclareci-
mentos de Silva (1990), conforme competentemente resenhados e
comentados por Gonçalves (1994):

1 - serem por eles habitadas em caráter permanente; 2 - serem por


eles utilizadas para suas atividades produtivas; 3 - serem imprescin-
díveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar; 4 - serem necessárias à sua reprodução física e cultural.
Tudo segundo seus usos, costumes e tradições."
"a definição constitucional de terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios foi melhor abordada até hoje, s.m.j., por José Afonso da Silva,
em seu Curso de Direito Constitucional Positivo, quando assinala
que a base dessa definição se acha fundada em quatro condições,
'todas necessárias e nenhuma suficiente sozinha', a saber:
"Ao ler o trecho do Curso de Direito Constitucional Positivo, de José
Afonso da Silva, impressiona sobremaneira a expressão 'todas ne-
cessárias e nenhuma suficiente sozinha'. Representa isso que a de-
finição constitucional do que sejam terras indígenas pressupõe a in-
teração das condições citadas. Ou seja, é terra tradicional indígena a
'soma das áreas' que, segundo usos, costumes e tradições, formem
um todo expresso por habitação permanente, utilizadas para ativida-
des produtivas, imprescindíveis à preservação dos recursos ambien-
tais necessários a seu bem-estar, e necessários à sua reprodução fí-
sica e cultural." (Gonçalves, ib.:82)
Ou, em conclusão,
"na definição de terras de ocupação tradicional indígena os elementos da
definição constitucional se entrelaçam e se interagem, não se podendo di-
112 Ir para o sumário >>

zer que tal área seja indígena a partir de um só daqueles elementos."


(ib.:87)
Prosseguindo em sua exposição, dirá Gonçalves que,"diante dessa
definição cujos elementos se entrelaçam e se interagem, podem-se
extrair duas conclusões. Quanto à primeira, socorre-me novamente
o professor José Afonso da Silva: 'terras tradicionalmente ocupadas'
não revela uma relação temporal, não se refere a tempo de ocupa-
ção. 'Ocupadas tradicionalmente não significa ocupação imemorial'.
Segundo o ilustre autor:
'tradicionalmente refere-se (...) ao modo tradicional de os índios ocu-
parem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, en-
fim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já
que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que
têm espaços mais amplos em que se deslocam etc. Daí dizer-se que
tudo se realize segundo seus usos, costumes e tradições'."
"A segunda conclusão, s.m.j., decorre do fato de terras tradicional-
mente ocupadas pressupor habitação em caráter permanente, como
base de um habitat, no sentido ecológico da relação de um povo
com a terra onde vive. Tal relação, de conseguinte, visa garantir pos-
se permanente, que, também no dizer de José Afonso da Silva, não
significa um pressuposto do passado como ocupação efetiva, mas,
especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas
terras inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, ao
seu habitat."
"Habitação de caráter permanente pressupõe, entretanto, um fato
concreto, a própria ocupação indígena sobre determinada área, que
lhe é destinada à posse permanente, para sempre."
"Tal fato, 'in casu', não está desassociado dos demais elementos an-
tes referidos, que se interagem, para definir o que seja terra tradicio-
113 Ir para o sumário >>

nalmente indígena, como antes assinalado. Contudo, deve o expert


(s.m.j.) partir da situação atual, pelo fato da existência de habitação
permanente, daí se apurando, face ao reconhecimento do direito ori-
ginário e congênito, a extensão do território necessário ao desenvol-
vimento e bem-estar das comunidades indígenas, segundo seus
usos, costumes e tradições-habitat de um povo" (ib.:82-3)
Tais considerações autorizam plenamente o autor a concluir que
"não se deve privilegiar somente dados históricos, quando se trata de defi-
nir terra de ocupação tradicional indígena, porque o 'tradicionalmente' do
texto constitucional não se refere a tempo pretérito, mas à forma de ocupa-
ção de um dado território. Implica em dizer também da ocupação atual, se-
gundo culturas e tradições, as quais também são mutáveis." (ib.:87)
E, para encerrar estas remissões com uma referência direta e sintéti-
ca ao trabalho técnico de identificação de Terras Indígenas, vale re-
ferir que
"é o modo de ser deles, que o expert, perito-técnico-antropólogo, irá tradu-
zir, a partir de determinado espaço, (...). Terá em vista não somente vestí-
gios de ocupação, mas dará o enfoque, a partir da habitação permanente,
da terra como suporte da vida social ligada a um sistema de crenças e co-
nhecimentos." (ib.:82)
Com as considerações acima julgamos terem se delineado plena-
mente os subsídios necessários a que se proceda a uma precisa e
inquestionável identificação e delimitação da Terra Indígena Coroa
Vermelha, afastando, inclusive, dúvidas eventualmente sugeridas
quanto ao seu caráter de terra de ocupação tradicional indígena.
Tais dúvidas, nunca plenamente formuladas, podem ser, tentativa-
mente, identificadas em dois aspectos básicos. O primeiro, mais evi-
denciado pela já comentada resolução Interministerial de 1988, diria
respeito ao caráter "permanente" da ocupação pataxó no local, su-
114 Ir para o sumário >>

gerindo a indispensabilidade do preceito da "imemorialidade" para


uma tal caracterização e "considerando o caráter recente" desta ocu-
pação. Ora, ficou sobejamente demonstrado, pelo exposto acima,
que "terras de ocupação tradicional" não revela uma relação tempo-
ral e que "posse permanente (...) não significa um pressuposto do
passado como ocupação efetiva" (ib.) Isto posto, estão seguramente
encerradas quaisquer discussões a respeito. Ver-se-á adiante que,
com base nos dados históricos já elencados (capítulo 2), mesmo sob
o aspecto da presença imemorial, a ocupação pataxó na Coroa Ver-
melha merece consideração.
A segunda ordem de objeções, mais difusa e, por isto mesmo, não
claramente formulada em nenhum documento que conheçamos,
mas subliminarmente presente em muitas colocações referentes não
apenas aos Pataxó ou a Coroa Vermelha, mas a povos diversos no
Nordeste ou outras regiões que tenham longo tempo de contato e
alto grau de envolvimento com a sociedade nacional, diria respeito
também ao caráter tradicional da ocupação indígena, mas, neste
caso, com ênfase sobre a "forma de ocupação de um grupo sobre
determinado território" (ib.), já que esta, em muitos casos, se faria
sob padrões econômicos e culturais tidos como "recentes" ou mes-
mo como "não indígenas". No caso da Coroa Vermelha, por exem-
plo, alegar-se-ia, segundo esta ótica, que a produção e, sobretudo, o
comércio de artesanato, base da sua subsistência e principal marca
da sua presença sobre esse território específico, não corresponderia
a formas "tradicionais" de ocupação indígena ou de ocupação pata-
xó.
Poder-se-ia responder a esta objeção com a simples referência, ain-
da com base nas colocações acima, a que, "... para definir o que
115 Ir para o sumário >>

seja terra tradicionalmente indígena (...), deve o expert partir da situ-


ação atual..." e fazê-lo "...segundo culturas e tradições, as quais
também são mutáveis." (ib.) Vale contudo aproveitar o ensejo para
aprofundar um pouco a questão e remeter, ao menos como referên-
cia, a dois recentes trabalhos de Oliveira, nos quais, ao abordar em
especial a situação atual dos povos indígenas no Nordeste (1993) ou
as próprias "expectativas e possibilidades do trabalho do antropólo-
go em laudos periciais" (1994), o autor esclarece, à luz da moderna
teoria antropológica, qual o estatuto científico dos complexos conjun-
tos de fatos sociais passíveis de serem reunidos sob a rubrica de
"tradição cultural".
Se possível sintetizar aqui o essencial desta discussão, deve ser
dito, em primeiro lugar, que o "tradicional" não se identifica por "tra-
ços" culturais tomados isoladamente; não se exprime por resíduos
ou elementos "remanescentes" de uma suposta "cultura original".
Definido como "sistema de crenças e conhecimentos" (Gonçalves,
op. cit.), é, evidentemente, em uma dimensão "sistêmica" que o "tra-
dicional" deve ser percebido, ou seja, é com referência a um sistema
social, tomado de modo integrado, que tal qualificativo deve ser atri-
buído, e não a elementos isoláveis deste sistema que, em alguma
medida, pareçam marcar, mais nitidamente, vínculos com um "pas-
sado", sejam eles artefatos, ritos ou mesmo sistemas de parentesco.
A importância desta advertência pode ser dimensionada ao se per-
ceber que ela desautoriza e elimina das avaliações operacionais de
tradicionalidade qualquer propensão às costumeiras considerações
quantitativas do tipo "mais tradicional" ou "menos tradicional", o que,
aliás, está inteiramente consoante com a formulação jurídica do con-
ceito, para a qual, claramente, importa unicamente a definição, em
116 Ir para o sumário >>

termos absolutos, quanto à tradicionalidade ou não de um determi-


nado sistema social.
Dito isto, cabe considerar por que parâmetros ou critérios um dado
"sistema de crenças e conhecimentos" se define como tradicional,
informando modos próprios de ocupação da "...terra como suporte
da vida social" (ib.) Ora, se o que está em questão é o caráter de
segmentos sociais minoritários e diferenciados articulados a um sis-
tema maior, abrangente - no caso a própria sociedade nacional - pa-
rece claro que a definição pretendida opera, antes que tudo, no con-
traste entre estes dois sistemas - o dito "tradicional" e o envolvente
ou nacional - e, até este ponto, não é necessário ir além das já am-
plamente consagradas formulações a respeito de "critérios de india-
nidade"34. A propósito, o caráter "contrastivo" ou "interacional" dos
sistemas interétnicos é, tipicamente, tomado como parâmetro descri-
tivo e explicativo destes sistemas35. As "fronteiras" (Barth, 1969) dos
segmentos étnicos no interior desses sistemas inclusivos, notada-
mente em situações em que grupos minoritários se encontram em
estreita articulação com a sociedade envolvente, a ela identificados
em muitos dos seus "conhecimentos" e práticas, tendem a ser mar-
cadas, de modo "emblemático" (Carneiro da Cunha, 1982), por atri-
butos culturais que se destacam justamente por esta, diríamos, pro-
priedade demarcatória. A própria constituição ideológica de grupos
étnicos pois, revela e se funda em concepções relativas à posse de
acervos culturais próprios e que remetem, invariavelmente, a "ori-
gens" e "histórias" também próprias, articuladas ainda a territórios
específicos sobre os quais se imprimem as "marcas" destas origens

34 Cf. Carneiro da Cunha, 1984.

35 Ver, p. ex., Cardoso de Oliveira, 1976.


117 Ir para o sumário >>

e histórias. Deste modo, estas concepções já evidenciam uma ne-


cessária e mesmo insistente remissão, por parte de tais grupos étni-
cos, a tudo que consiste em suas "tradições".
Disto se pode concluir, porém, que tradições são fatos sócio-cultu-
rais que pertencem e dizem respeito, essencialmente, ao "presente"
dos sistemas sociais, já que é nele e em função dele que essas as-
sumem e revelam seu pleno sentido. Por outro lado, é totalmente
evidente que tradições "falam" de um "passado", repositório de ex-
periências e de memórias do grupo que, embora elaboradas de
modo tanto a "ganhar" sentido no presente, quanto a "dar" sentido
ao presente - um labor que, sem dúvida, pode envolver um razoável
componente de "invenção" (Hobsbawn & Ranger, 1983) - também
conformam e limitam, enquanto repertórios preconstrangidos, as
possibilidades da sua reelaboração - e do próprio sistema como um
todo - face ás compulsões e interesses que no presente se lhes
apresentam. Na exemplar concepção de Barth (1984), a cultura, to-
mada em perspectiva histórica, poderia ser comparada às "corren-
tes" ou "fluxos" de um rio, que podem submergir aqui, reaparecer
adiante, fundir-se, desviar ou mesmo desaparecer, carregando em
suas trajetórias objetos estranhos momentânea ou definitivamente
incorporados, quiçá diluídos. Forças em movimento que são, tais
"correntes culturais" se apresentam, via de regra, fugidias e indefini-
das aos olhos do observador pontual. Mapear retrospectivamente
suas trajetórias de modo a compreender suas variadas configura-
ções e seus processos seria, ainda conforme Barth (ib.), a tarefa do
estudioso da cultura e, em particular, do pluralismo cultural. No que
aqui nos interessa mais diretamente, o que esta metáfora sugere é
que a percepção histórica e processual de um dado sistema social
118 Ir para o sumário >>

deve possibilitar a compreensão da sua unidade e integridade, por


mais que este, rio que é, se apresente, em seu estuário, sob forma
muito diversa do que poderá ter sido em sua mais remota cabeceira
perscrutável.
Assim, sistemas sociais tradicionais seriam, no nosso entender,
aqueles que, por constantes "atualizações" do seu passado - enten-
dido fundamentalmente como memória/experiência - reelaboram có-
digos culturais - "crenças e conhecimentos" ou, vale dizer no caso, a
"tradição" propriamente dita - de modo a manter marcada, em um
"modo de ser" (Gonçalves, op. cit.) próprio - e que certamente não
prescinde de sua peculiar relação com um território - suas especifici-
dade, unidade e integridade - mínimas que possam parecer - face ao
sistema envolvente e ás transformações que ele impõe. Vale assina-
lar aqui, nesta perspectiva - e resgatando a perspicaz assertiva do
jurista de que "tradições (...) são mutáveis" (ib.) - que segmentos so-
ciais tradicionais não se confundem, em hipótese alguma, com "po-
vos sem história"36. Ao contrário, é justamente a sua particular inser-
ção histórica em um sistema abrangente que lhes confere, em última
análise, o atributo da tradicionalidade.
Retornando agora, e de modo exemplar, ao caso dos Pataxó em ge-
ral, e da Coroa Vermelha em particular, o que se pode perceber é
que este subsegmento indígena, na segunda metade deste século,
em resposta a compulsões externas representadas, fundamental-
mente, pela eclosão de grave conflito interétnico (1951), pela perda
do seu território no Monte Pascoal (1960) e pela emergência da in-
dústria do turismo (1973), reelabora "tradições" - a própria indianida-
de, o artesanato, a relação com a "mata" - de modo a reagir, o mais

36Cf. Wolf, 1982.


119 Ir para o sumário >>

competentemente possível, ao que o sistema envolvente lhe impõe.


A formação de uma comunidade pataxó na Coroa Vermelha - ditada
também, como foi visto, por estímulos propiciatórios externos - é,
claramente, resultado destes fatores: as compulsões externas e a re-
elaboração pelo grupo do seu "modo de ser" próprio e da sua inser-
ção social e territorial, a partir das informações disponíveis em sua
"tradição". Assim, a releitura simbólica do sítio histórico interétnico
da Coroa Vermelha, a reelaboração formal e ocupacional da sua
produção artesanal adaptando-as à finalidade comercial, a peculiar
relação econômica e simbólica estabelecida com a "mata" etc, confi-
guram, tipicamente, o que acima se procurou definir como "modos
de ser" próprios, traduzíveis em formas de ocupação da "terra como
suporte da vida social ligada a um sistema de crenças e conheci-
mentos." (Gonçalves, op. cit.) Está-se diante, pois, de um exemplar
sistema tradicional indígena de ocupação territorial, ainda que, como
não poderia deixar de ser face à sua história, profundamente trans-
formado e inovador.
Com este entendimento, passar-se-á a seguir, por fim, à identifica-
ção e delimitação, propriamente ditas, da Terra Indígena Coroa Ver-
melha.

6.1 – Identificação

Trata-se aqui, evidentemente, de, tendo como referência as quatro


condições constitucionais requeridas para a definição de terras de
ocupação tradicional indígena, verificá-las sobre o território de ocu-
pação pataxó na Coroa Vermelha.
120 Ir para o sumário >>

Um exame sumário do exposto nos capítulos precedentes, bem


como das identificações anteriores (Furtado, 1986 e Leitão, 1992),
não deixa margem a dúvidas de que esta comunidade indígena ocu-
pa e explora duas glebas distintas, separadas por uma faixa de cer-
ca de 6 quilômetros de extensão, ocupada hoje por terceiros e que,
por suas características naturais e urbanas, jamais consistiu em área
de interesse ou de exploração do grupo. Por razões práticas, man-
ter-se-á aqui as designações de glebas A e B, adotadas desde 1986
(Furtado, ib.), para estas duas áreas, respectivamente o "pontal" e a
"mata".
Tendo em vista a caracterização, sobre o terreno, dos requisitos
constitucionais, subdividir-se-á aqui a Terra Indígena em cinco seto-
res: quatro na gleba A que, embora menor, apresenta diversidade de
formas de ocupação, e um correspondente à gleba B que, quase
toda recoberta com vegetação silvestre, apresenta maior uniformida-
de ocupacional. Dar-se-á, a seguir, uma sintética descrição física e
social de cada setor, para, em seguida, distribuí- los em conformida-
de com os requisitos constitucionais.

Gleba A:

Setor 1: compreende a área, com cerca de 20 hectares, imediata-


mente adjacente à cruz monumental e que se estende, ao longo da
pista de acesso a esta, da praia até o seu entroncamento na BR
367. É a faixa onde se concentraram, desde o início, as moradias in-
dígenas. É também onde se processa todo o comércio de artesanato
com os visitantes e têm os pataxó seus pontos de venda. A área
pode ser considerada especialmente dotada para esta finalidade, por
121 Ir para o sumário >>

se constituir no próprio sítio histórico da "Primeira Missa", pela pre-


sença do monumento e do acesso rodoviário, além da vizinhança da
praia e do próprio ilhéu da Coroa Vermelha.
Atualmente este setor tem uma ocupação totalmente urbana, em
grande parte com aspecto de favela, totalmente recoberto por cons-
truções indígenas ou de intrusos. Corresponde também à área deli-
mitada no projeto inicial da Secretaria de Cultura e Turismo da Bahia
para fins de recuperação urbanística e ambiental (BAHIA, 1995).

Setor 2: está situado imediatamente ao norte do anterior, ao qual se


liga por uma faixa mais estreita de ocupação, situada entre a praia e
o limite leste do loteamento Nina 1 (Avenida Temponáutica). Tem
cerca de 20 hectares e se estende do dito limite com o setor 1 até as
margens direitas dos rios Jardim e Mutari - abaixo da sua confluên-
cia com o primeiro - e à BR-367.
No início da ocupação indígena, este setor era quase totalmente re-
coberto pela vegetação litorânea, sendo utilizado como fonte de le-
nha e como área de expansão para criatórios domésticos, além de
para outras atividades domésticas e de lazer junto ao rio Jardim.
Neste setor foram também instalados alguns equipamentos comuni-
tários, notadamente o cemitério e o campo de futebol. Com a expan-
são demográfica da comunidade e, sobretudo, com o agravamento,
desde 1988, do processo de intrusão sobre o setor 1, muitas moradi-
as indígenas vieram aqui se instalar, constituindo o que chamam
hoje de "aldeia nova". Este setor também está intrusado por constru-
ções de não-índios, embora em menor grau que o anterior e, apesar
do seu aspecto predominantemente urbano, as construções são me-
nos concentradas e subsistem alguns nichos de vegetação.
122 Ir para o sumário >>

Setor 3: compreende o triângulo, com cerca de 30 hectares, situado


a Noroeste do setor 2 e delimitado pelas margens esquerdas da BR-
367 e do rio Jardim e pela margem direita do Mutari. Predomina aqui
o solo arenoso e não há moradias ou exploração econômica indíge-
nas, mas apenas algumas poucas construções de intrusão recente.
A importância deste setor para a comunidade pataxó consiste em
que a sua preservação protege, ao menos em parte, as águas do
Jardim e do Mutari. É também projeto dos índios, uma vez regulari-
zada a sua ocupação, assegurar a preservação e a sua posse deste
setor com o plantio de coqueiros para comércio dos frutos com seus
habituais clientes turistas.

Setor 4: consiste na praia da Coroa Vermelha, que se estende, lon-


gitudinalmente ao flanco oriental dos setores 1 e 2, desde a foz do
Mutari, ao norte, até além do limite do setor 1, para o sul, margeando
a BR-367 até a Ponta do Mutá, limite natural da praia.
Não é preciso ressaltar aqui a importância econômica e simbólica,
para a comunidade, da vizinhança com o mar e posse do ilhéu da
Coroa Vermelha. As ocupações permanentes - se assim se pode
chamá-las - aqui são apenas cerca de duas dezenas de barracas co-
merciais.

Gleba B: explorada, desde a implantação da comunidade, pela ex-


tração e coleta vegetais, é também, desde 1990, local de algumas
roças. Tem ainda, contudo, aspecto bastante homogêneo, predomi-
nando a mata.
123 Ir para o sumário >>

Considerando que a ocupação pataxó sobre estes cinco setores


está, como foi visto nos capítulos 3, 4 e 5, bem caracterizada desde
a implantação da comunidade há já mais de vinte anos - embora as
formas de ocupação em cada setor possam ter se alterado, de modo
significativo até, em alguns, ao longo deste período - far-se-á, a se-
guir, de modo apenas esquemático, a conjugação das quatro condi-
ções constitucionais com os referidos setores de ocupação.

1) Terras habitadas em caráter permanente:

Setor 1: é a área escolhida pelos Pataxó para implantação das suas


moradias desde a instalação da aldeia. Atualmente, apenas cerca da
metade das residências indígenas situam-se aí, e as intrusões e a
urbanização limitam bastante a existência de alguns espaços do-
mésticos tradicionais, como terreiros e quintais.

Setor 2: área originalmente destinada à extensão de atividades do-


mésticas e comunitárias, tornou-se também área residencial a partir
dos anos de 1980 e abriga hoje cerca de metade das habitações in-
dígenas.

Observação: o projeto da recuperação urbanística e ambiental pre-


tendida pelo Estado prevê a transferência, para este último setor, de
todas as moradias indígenas, mantendo o setor 1 como área comer-
cial dos Pataxó e promovendo sua recuperação paisagística e ambi-
ental. Esta alternativa praticamente inverteria a configuração que a
aldeia originalmente apresentava, entre as décadas de 1970 e 1980.
Voltar-se-á a isto no capítulo sobre o levantamento fundiário.
124 Ir para o sumário >>

2) Terras utilizadas para atividades produtivas:

Setor 1: pela sua relevância histórica e turística é uma área alta-


mente estratégica para o comércio de artesanato e, por isto mesmo,
o setor economicamente mais importante para a comunidade.

Setor 4: garante o acesso ao mar e, portanto, às atividades produti-


vas realizadas nele e na sua orla.

Gleba B: área de extrativismo vegetal e, potencialmente, de silvicul-


tura, sendo, deste modo, fundamental para a produção artesanal. É
também onde se exercem as atividades agrícolas.

3) Terras imprescindíveis à preservação dos recursos ambi-


entais necessários ao bem-estar do grupo:

Setor 2: importante pela presença do rio Jardim, principal fonte de


água da comunidade, e pela existência de vegetação litorânea rema-
nescente.

Setor 3: o mais importante para a conservação das águas do Jardim


e do Mutari. Além disto, como setor ambientalmente mais preserva-
do da gleba A, garante um certo equilíbrio para as características
eminentemente urbanas desta gleba.
125 Ir para o sumário >>

Setor 4: a preservação deste trecho de praia é indispensável à se-


gurança dos recursos naturais marítimos e costeiros aos quais recor-
re a comunidade, inclusive aqueles de ordem paisagística.

Gleba B: a preservação da mata e o manejo sustentado dos seus


recursos são requisitos indispensáveis à garantia da autonomia
econômica e bem-estar da comunidade.

4) Terras necessárias à reprodução física e cultural do gru-


po:

Este requisito, no nosso entender, de certo modo aglutina o requeri-


do nos anteriores. As terras necessárias à reprodução física do gru-
po, por exemplo, certamente não podem excluir as "utilizadas para
atividades produtivas", senão também aquelas "imprescindíveis à
preservação de recursos ambientais". Dando ênfase aqui às áreas
mais tipicamente necessárias à reprodução "cultural" da comunidade
- e também do povo Pataxó como um todo - "segundo seus usos,
costumes e tradições" (BRASIL, op. cit.), referir-se-á aqui apenas os
setores mais significativos neste aspecto.

Setor 1: o sítio histórico da "Primeira Missa" tem, nos termos das


atuais tradições pataxó, importância central na construção da sua
identidade étnica e vincula-se simbolicamente, de modo indissociá-
vel, à sua própria base produtiva.

Gleba B: de modo análogo, a posse e exploração de uma área de


"mata" também tem, no contexto urbano e interétnico em que se in-
126 Ir para o sumário >>

serem os Pataxó da Coroa Vermelha, grande significado na constru-


ção da sua especificidade indígena.

Comentário: poder-se-ia argumentar, não sem razão, que, se a pre-


sença e posse dos Pataxó sobre o sítio histórico da Coroa Vermelha
é fundamental na construção da sua identidade, tal sítio também se
encontra muito diretamente associado à construção de uma "identi-
dade" nacional brasileira, como o demonstram o próprio afluxo turís-
tico para o local e os multíplos focos públicos e privados de preocu-
pação com a sua preservação. Ao que aqui interessa, importa assi-
nalar que tal fato inquestionável em nada se contrapõe aos direitos
territoriais indígenas aí presentes. Os interesses da nacionalidade
brasileira no local são assegurados pelo seu tombamento como pa-
trimônio histórico e pela regulamentação especial aí incidente no to-
cante à preservação ambiental e paisagística. A regularização da
Terra Indígena, por sua vez, não contraria estes direitos legalmente
constituídos e que devem, inclusive, ser observados e preservados
pela comunidade indígena e pelo órgão indigenista governamental,
em especial porque são também inteiramente consoantes com os in-
teresses indígenas e com seus "usos, costumes e tradições".
Deve ser observado, ademais, que a sociedade nacional e a "identi-
dade" brasileira têm caráter inclusivo e, como já visto, a presença in-
dígena na Coroa Vermelha está inequivocamente adequada às re-
presentações histórico-nacionais aí ensejadas. Não é à toa que a
instalação de pataxós no local, em 1972, foi reconhecidamente esti-
mulada pela emergente indústria turística. O mesmo está evidente
nas perspectivas de recuperação e preservação do local, em especi-
al no esboço do Prodetur-Bahia (op. cit.) que, apesar do seu equívo-
co quanto ao estatuto legal da Terra e da sua ênfase em um trata-
127 Ir para o sumário >>

mento paisagístico, prevê a remoção de todas as ocupações no "se-


tor 1", a garantia da presença indígena em novas moradias no "setor
2", e a edificação, única no local, de um "mercado de artesanato in-
dígena" na área nobre do "setor 1", junto à cruz monumental.
É claro que, uma vez demarcada e regularizada a Terra Indígena, o
acesso de não-índios a ela poderá e deverá ser regulado em confor-
midade com disposições da legislação indigenista. É óbvio, contudo,
que o acesso de turistas e visitantes, notadamente ao "setor 1", terá
que ser assegurado, sobretudo em atenção às próprias necessida-
des da "reprodução física e cultural" da comunidade indígena, que
não prescindem hoje do que se chamou acima de "cena histórico-co-
mercial da Coroa Vermelha".

***

Pode ser verificado, pelo exposto acima, que a Terra Indígena Coroa
Vermelha, apesar da sua reduzida extensão, abriga formas muito di-
versas de ocupação indígena, configuradas em áreas de praia (setor
4) ou restinga (setor 3), urbanas ou periurbanas (setores 1 e 2) e de
floresta secundária (gleba B). Pode-se constatar também que, ape-
sar dessa variedade, a complexidade do tradicional sistema econô-
mico e cultural indígena aí desenvolvido faz com que os cinco seto-
res identificados apresentem caracteristícas múltiplas, de modo tal
que apenas um deles - o três - atende a somente uma - a terceira -
das condições constitucionais de definição das terras de ocupação
tradicional indígena.
Para que se disponha de uma perspectiva de conjunto da distribui-
ção espacial de tais condições, apresenta-se a seguir, em conclu-
128 Ir para o sumário >>

são, uma relação esquemática dessa distribuição por cada um dos


setores:

Gleba A:
setor 1: condições 1, 2 e 4;
setor 2: condições 1 e 3;
setor 3: condição 3;
setor 4: condições 2 e 3.
Gleba B: condições 2, 3 e 4.

6.2 – Delimitação

Uma vez caracterizada, já em 1986 (Furtado, op. cit.), a ocupação


pataxó na Coroa Vermelha em duas glebas distintas, procurar-se-á
aqui recapitular o processo de definição dos seus limites e, principal-
mente, expor o modo como presentemente se os constituiu, em con-
formidade com a identificação acima.
A começar pela gleba A, é fácil perceber que a sua disposição cos-
teira e marginal à BR-367 conforma sua distribuição longitudinal,
alargada e tendente a triangular na sua parte central, à altura do
pontal da Coroa Vermelha, conforme já descrito no capítulo 3. Têm-
se, assim, bem conformados os seus flancos mais extensos, defini-
dos, a leste, pela linha da costa, e, a oeste, em princípio, pela mar-
gem esquerda da BR-367, um nítido limite à sua expansão, evidente
já à época da implantação da aldeia, quando se construía a rodovia.
Estreitada para o norte e, principalmente, para o sul, a gleba tem li-
mites naturais nestas extremidades, bastante bem caracterizados a
nível da costa, dados, respectivamente, pelo estuário do Mutari e
pela Ponta do Mutá, limite entre a praia da Coroa Vermelha e a sua
vizinha imediata ao sul, a da Ponta Grande. A partir destes pontos
129 Ir para o sumário >>

na costa os limites da gleba se fecham, ao sul, por uma curta linha


da praia à margem da rodovia, e, ao norte, pelo próprio curso do Mu-
tari que, neste trecho, recebe, em sua margem direita, o rio Jardim,
que, como já recorrentemente referido, é a fonte de água da aldeia.
Conforme esta descrição de limites, tem este rio o seu curso inferior
- da ponte na BR-367 à confluência com o Mutari - inteiramente no
interior da gleba.
Os quatro setores em que se subdivide esta gleba parecem ter esta-
do caracterizados ocupacionalmente já quando dos primeiros estu-
dos identificatórios (Rogedo et al, 1985 e Furtado, 1986). Tal é segu-
ramente verdadeiro para os setores 4 e 3, bem marcados por limites
naturais dados, respectivamente, pela franja que limita a faixa areno-
sa da praia e pelo rio Jardim. No caso do setor 3, é característica
também, em contraste com os setores 1 e 2, a ausência de habita-
ções e de exploração indígena regular.
Já a área central, que abrange o que se identificou aqui como seto-
res 1 e 2, parece ter tido seus limites progressivamente caracteriza-
dos, consolidando-se, aproximadamente, na segunda metade dos
anos de 1980, posto que se evidenciam, pela primeira vez, com mai-
or nitidez, no levantamento fundiário e topográfico realizado pelo In-
terba em 1987 e 1988 (Toffolette, op. cit.).
Recapitulando dados bem conhecidos, pode se observar que esta
área teve bem marcada a sua ocupação indígena, já na fase inicial
desta - nos anos de 1970 - a partir de duas faixas situadas em suas
extremidades: a faixa de concentração residencial e comercial, ao
sul, ao longo do acesso ao monumento, e, ao norte, a margem direi-
ta do rio Jardim, local de atividades domésticas também já original-
mente bem definidas. Entre estas duas faixas havia uma extensão
130 Ir para o sumário >>

parcial e difusamente ocupada, com trilhas em meio à vegetação -


fonte de lenha e de ervas medicinais - e a pequenos criatórios. Esta
faixa de ocupação mais esparsa tinha, como limites melhor identifi-
cáveis, apenas a orla marítima e a BR-367, como aparece na delimi-
tação de 1986 (Furtado, 1986). A partir desta situação inicial, as pos-
sibilidades da ocupação indígena seriam, como se sabe, rapidamen-
te restringidas pelo processo de intrusão, tornando-se, conseqüente-
mente, mais definidas.
O marco decisivo neste processo foi, sem dúvida, a implantação da
gleba "1" do loteamento "Aldeia Nina" que, autorizado pelo município
em 1981, ficaria fora do alcance da regulamentação federal de prote-
ção patrimonial que, para o local, sucedeu em pouco àquela autori-
zação. Livre dos questionamentos da Sphan já por volta do final de
1983, a imobiliária Centauro, ao que tudo indica, ainda retardaria por
certo tempo a alienação dos lotes, já que, em 1985, Rogedo et al
(op. cit.) identificariam apenas treze "pretensos proprietários" em
toda a área. Como se sabe, esta situação estaria radicalmente alte-
rada três anos depois (Toffolette, op. cit.), o que evidencia que o pe-
ríodo entre 1985 e 1989 de fato marcou a consolidação ocupacional
da gleba "1" do loteamento e, em decorrência, consolidou também a
caracterização de limites da ocupação indígena nos setores aqui
identificados como 1 e 2.
É evidente que o processo de intrusão no pontal da Coroa Vermelha
não estancou com tais consolidações. Ao contrário, há vários regis-
tros (Brasileiro & Sampaio, 1990; Sampaio, 1993; Boaventura, 1995
etc) de que esse processo se tornaria crítico para os Pataxó justa-
mente após 1988. Com efeito, se pode avaliar, com base no exposto
acima (capítulo 4), que, foram precisamente as construções irregula-
131 Ir para o sumário >>

res (Boaventura, ib.) no período entre 1989 e 1993 que retiraram aos
índios o domínio exclusivo de uma faixa livre, para trânsito e para
exploração secundária, desde o núcleo da aldeia até o rio Jardim,
faixa que, até então, se mantinha desimpedida entre o limite da orla
e a Avenida Temponáutica, limite oriental da gleba "1" do "Nina". O
claro domínio indígena sobre esta faixa está inequivocamente de-
monstrado, em 1988, no minucioso trabalho do Interba (Toffolette,
op. cit.).
Em suma, o que se quer aqui ressaltar é que, por ocasião desse que
foi o primeiro diagnóstico detalhado da situação ocupacional - real e
"cartorial" - do pontal, os Pataxó ainda mantinham, em que pesem
aforamentos já concedidos, o controle efetivo - e, mais que isto, o
domínio social pelo uso - de toda a área aqui delimitada da Terra In-
dígena em sua gleba A. Ou seja, toda a extensão do pontal à es-
querda da BR-367, à exceção da maior parte do "Nina 1", então já
em franco processo de edificação.
Há, assim, um conjunto de elementos que favorecem a eleição da
real situação de ocupação da área em 1987/8 como um momento
privilegiado na definição de limites da gleba A dessa Terra Indígena,
o que se pode sintetizar do seguinte modo:

1) Do ponto de vista técnico-antropológico, o território efetivamente


ocupado pelos Pataxó em 1988, não apenas tivera consolidados os
seus limites, mas, sobretudo, podia ser comprovadamente caracteri-
zado como satisfatório ao desempenho das suas atividades comerci-
ais e domésticas, então ainda exercidas sobre um espaço exclusivo
e contínuo, além de ser suficiente para a proteção de recursos natu-
rais vitais aí disponíveis: o ecossistema costeiro remanescente e,
fundamentalmente, o seu patrimônio hídrico.
132 Ir para o sumário >>

Julgamos ter sido suficientemente demonstrado aqui que a atual si-


tuação de crise e, se pode afirmar, de quase completo colapso na
relação dos Pataxó com o seu território no pontal, se instaurou ple-
namente em decorrência do rápido e caótico processo de intrusão
desencadeado, 'grosso modo', a partir do verão de 1988/9.

2) Do ponto de vista administrativo e legal, o levantamento de 1988


(ib.) - que, secundado por outras fontes de informação, atesta a refe-
rida caracterização de limites - além da precisão técnica que permitiu
um seguro mapeamento da situação da área, foi realizado em cará-
ter oficial, solicitado que foi pelo Grupo Interministerial, e menos de
dois anos após a primeira formalização de uma identificação da Ter-
ra (Furtado, 1986), com a finalidade explícita de completar esta pro-
posta técnica. Marcou, deste modo, o arremate da etapa técnico-ad-
ministrativa de um processo que, não houvesse esbarrado no ca-
nhestro equívoco do dito Grupo e pudessem os seus dados ter ori-
entado, em tempo hábil, uma competente reavaliação de limites, não
seriam necessárias então quaisquer providências extrusivas relati-
vas a edificações de terceiros na Terra Indígena, nos termos em que
seus limites vão aqui formulados.
Vale por fim salientar que, com tal caracterização de limites, procu-
rou-se aqui seguir, rigorosamente, o que recomenda Gonçalves (op.
cit.) ao frisar que
"...deve o expert partir da situação atual, pelo fato da existência de habita-
ção permanente, daí se apurando (...) a extensão do território necessário
ao desenvolvimento e bem-estar das comunidades indígenas, segundo
seus usos, costumes e tradições." (ib.:82-3)
Deve-se assinalar, em adendo aos elementos acima, que a área
consolidada do antigo "Nina 1" se constitui, ainda hoje, na única efe-
133 Ir para o sumário >>

tiva ocupação não-indígena sobre o pontal da Coroa Vermelha que


se acha totalmente regular - loteamento e edificações - de conformi-
dade com a legislação e com pareceres técnicos ambientais e do pa-
37
trimônio histórico . A importância deste dado - apesar dele não se
revestir de nenhum peso decisivo na caracterização de limites da
Terra Indígena - reside no fato de que a exclusão desta área consti-
tui a única alteração significativa de limites entre a delimitação de
1986 (ib.) e a atual.
Com efeito, a postulação de que se efetivasse tal alteração aparece,
já em torno de 1989, em propostas da parcela da comunidade que
então se mantinha empenhada em pleitear a regularização desta
gleba da Terra Indígena (Sampaio, 1993). A formulação concreta de
tal proposta aparece com clareza na abortada identificação realizada
em 1991 pelo Grupo Técnico ligado à "Comissão Especial de Análi-
se" da Portaria 398/91 (Leitão, 1992). No mapa confeccionado por
este Grupo, o perímetro de delimitação contorna externamente toda
a área do "Nina 1", conforme esta aparece nas plantas da Prefeitura
de Santa Cruz Cabrália e da própria imobiliária.
De nossa parte, acatamos, com base na identificação acima, a pro-
posição de que se mantenha fora dos limites da gleba A da Terra In-
dígena a área do antigo loteamento, hoje consolidada no plano ad-
ministrativo e com cerca de oitenta edificações de alto custo, adotan-
do, contudo, procedimento diverso na sua delimitação. No caso, ao
invés de tomar por referência apenas as plantas disponíveis, procu-
rou-se verificá-las diretamente sobre o terreno, o que implicou em
uma significativa alteração no limite sul da área em questão com a
Terra Indígena, justamente na faixa onde se localizam as habitações

37 Ver acima o capítulo 4.


134 Ir para o sumário >>

indígenas mais longamente consolidadas, próximas ao acesso ao


monumento.
O exame das plantas mostra que a dita área de loteamento tem con-
figuração aproximadamente retangular, limitando-se a oeste com a
faixa de domínio do DNER junto à BR-367, e, nos três demais flan-
cos, com áreas de ocupação indígena. Nos seus limites norte e les-
te, a área tem seu perímetro definido, tanto nas plantas quanto de
fato, respectivamente, pelas avenidas dos Navegantes e Temponáu-
tica. O limite sul, contudo, que, segundo as plantas, deveria consistir
em uma "área verde" desde a borda dos lotes até a dita pista de
acesso, simplesmente nunca se constituiu deste modo, já que a su-
posta área verde, pelo menos desde meados dos anos de 1970 -
isto é, muito antes do próprio aforamento que daria origem ao lotea-
mento - se mantém completamente ocupada por residências indíge-
nas. Mais que isto, estas residências se estendem para o interior do
que seria o loteamento propriamente dito, recobrindo também os
seus supostos lotes mais meridionais. Deste modo, os limites reais
de ocupação não correspondem, aqui, evidentemente, ao exposto
nas plantas oficiais. De fato, ao se aproximar do dito limite sul, a
avenida Temponáutica simplesmente desaparece em meio a um
emaranhado de becos e de construções irregularmente dispostas,
de índios e de intrusos recentes.
Alguns dos supostos lotes que são, de fato, ocupados por casas in-
dígenas, aparecem, nas relações cartoriais (Tofollette, op. cit.), como
tendo sido vendidos pela Centauro a particulares, sendo a sua maio-
ria, contudo, ainda de propriedade formal da imobiliária. É claro que,
tendo em vista a real ocupação indígena, tais referenciais cartoriais
não poderiam ser tomados em conta no presente trabalho de delimi-
135 Ir para o sumário >>

tação. Deste modo, o limite sul da área definida por ocupações não-
indígenas consolidadas com a Terra Indígena, foi aqui traçado com
base nesta real ocupação, conforme memorial descritivo que acom-
panha este relatório.
Num balanço das variações de delimitação e de extensão desta gle-
ba A, tem-se que, no levantamento de 1986 (Furtado, op. cit.), a gle-
ba foi estimada em 70 hectares; por sua vez, o trabalho topográfico
mais preciso feito pelo Interba revelou, para os mesmos limites, uma
extensão mais exata de 77 hectares. Esta área, de conformidade
com a proposta de 1992 (Leitão, op. cit.), seria subtraída em algo em
torno de 15 hectares. Por fim, de acordo com os limites aqui adota-
dos, essa "subtração" se reduz, face as constatações acima relata-
das quanto à efetiva situação ocupacional. Este ajustamento, acres-
cido de uma melhor definição da extremidade sul da praia da Coroa
Vermelha, entre as pontas do Mutá e Grande, revela uma extensão
total de 72 hectares para a gleba A, conforme aqui delimitada.
O que importa ressaltar destes dados comparativos é apenas que,
apesar dos ajustes, as identificações dos modos e dos espaços de
ocupação tradicional indígena permanecem coerentes ao longo de
todo o processo, definindo-se, claramente, a partir da caracterização
dos quatro setores acima descritos.

***

Já a delimitação da gleba B - a "Mata" - não apresenta ajustes de li-


mites a considerar, desde a sua primeira identificação. Isto se deve,
é seguro afirmar, à caracterização mais antiga e mais nítida desses
limites, que são dados, a norte, sul e oeste, pela presença de propri-
136 Ir para o sumário >>

edades rurais consolidadas como confrontantes, e, a leste, pela bor-


da do penhasco que se ergue sobre o baixio costeiro.
A permanência física destes limites, durante a década decorrida en-
tre 1986 e 1995, pôde ser atestada, durante os trabalhos de campo
do presente Grupo Técnico, pelo Engenheiro Agrimensor José Apa-
recido Brinner - da Diretoria de Assuntos Fundiários da Funai - que
os percorreu como membro deste Grupo encarregado da delimita-
ção, tendo sido também membro do Grupo Técnico que realizou a
delimitação original, em 1986.
A clareza na delimitação desta gleba, porém, se deve não apenas à
consolidação do seu perímetro, mas também ao contraste ocupacio-
nal entre as propriedades vizinhas, totalmente desmatadas para ex-
ploração agrícola e pecuária, e a Terra Indígena, onde predomina a
mata. No flanco oriental da gleba, abaixo do penhasco, se não há
propriedades com ocupações economicamente bem caracterizadas,
também não há matas que possam identificar estas áreas à bem
marcada gleba de ocupação tradicional indígena que, vista deste ân-
gulo, se destaca tanto pela cobertura vegetal, quanto pela sua posi-
ção elevada em relação à costa.
Os presentes trabalhos de identificação e delimitação revelaram uma
extensão de 1420 hectares para esta gleba, consoante com as esti-
mativas originais em torno de 1400 hectares (Furtado, 1986). Assim,
somando-se esta parcela aos 72 hectares da gleba A, tem-se, para a
Terra Indígena Coroa Vermelha, uma extensão total de 1492 hecta-
res.

6.3 - Antecedentes Históricos


137 Ir para o sumário >>

Sendo a aldeia e Terra Indígena da Coroa Vermelha de implantação


recente, a profundidade histórica requerida para a caracterização
territorial das formas de "ocupação tradicional indígena" aí pratica-
das é, evidentemente, reduzida, atingindo apenas pouco mais que
vinte anos. Nestes termos, e, sobretudo, nos do que é previsto na le-
gislação e na jurisprudência competentes, tal caracterização se fez e
se esgota nas considerações acima, onde se tratou especificamente
da "identificação" da Terra Indígena (subcapítulo 6.1).
Feita esta ressalva, as referências que se seguem, relativas a ante-
cedentes de ocupação indígena na área onde hoje se insere a co-
munidade Pataxó da Coroa Vermelha, têm caráter apenas comple-
mentar, no âmbito do presente estudo identificatório, e, de fato, se li-
mitarão a recapitular, para que se teçam comentários mais específi-
cos, informações já ordenadas no capítulo 2 acima.
De início, se pode delimitar, em linhas gerais, essa área de inserção
da atual comunidade, como correspondente à porção da costa e
suas adjacências situadas entre as embocaduras do João de Tiba,
ao norte, e do Buranhém, ao sul, o que nos permite observar, de
imediato, que tal área se inclui, inteiramente, no que se poderia ca-
racterizar como o território "imemorial" dos Pataxó que, como visto
acima, se estenderia do Jequitinhonha ao Mucuri e da costa à Serra
dos Aimorés.
É preciso ressalvar também que o conceito de "imemorial" é utilizado
aqui com bastante reserva, uma vez que, como já assinalado, este
não se aplica à identificação de Terras Indígenas, ou, pelo menos,
não tem nisto qualquer peso decisório, posto que terras "ocupadas
tradicionalmente não significa ocupação imemorial" (Silva, apud
Gonçalves, op. cit.:82), apesar do que um mal uso dos conceitos se
138 Ir para o sumário >>

possa prestar a sérias distorções e confusões nesse sentido, como


também já observado, no presente caso, no episódio da Resolução
Interministerial de 1988. Assim, ao se recorrer, aqui, à idéia de "ime-
morialidade", busca-se apenas sublinhar a perspectiva de, para
complementar e ilustrar o estudo identificatório, retroceder, tanto
quanto possível, em uma caracterização histórica da ocupação de
grupos humanos no local.
Prosseguindo, então, em tal objetivo e voltando ao resgate de infor-
mações essenciais do capítulo 2, se pode observar que, embora
seja possível uma delimitação bastante segura, para este tipo de si-
tuação, do território pelo qual se dispersavam, desde um tempo
"imemorial", os bandos pataxó, é mister lembrar que em faixas deste
mesmo território também se estabeleceram, em períodos históricos
diversos e sob modos próprios, "segundo seus usos, costumes e tra-
dições", outros grupos étnicos e sociais. Deste modo, para que se
logre a pretendida abrangência na caracterização histórico-ocupacio-
nal do "território imemorial pataxó", ou, mais especificamente, da sua
porção onde viria a se instalar a comunidade da Coroa Vermelha, é
preciso que se atente, caso a caso, para cada um destes períodos e
modos de ocupação. É o que se fará, ainda que sumariamente, a se-
guir:

1) Grupos tupi (ou tupiniquim): estabeleceram-se no território nos


séculos iniciais do segundo milênio da era cristã, ocupando e explo-
rando aí, de modo comparativamente mais concentrado e mais in-
tensivo, apenas a faixa litorânea. Se constituíram, no século XVI, no
alvo direto dos ataques militares e missionários dos colonos portu-
gueses, tornando-se, já ao final daquele século, praticamente extin-
tos em toda a região, com agrupamentos remanescentes, nos sécu-
139 Ir para o sumário >>

los seguintes, nas aldeias de São João (Trancoso) e Patatiba (Vila


Verde).

2) Bandos pataxó e, em menor número, de maxacalis: Ocupavam


e exploravam, de modo comparativamente mais disperso e menos
intensivo, todo o território em questão, frequentando a costa para al-
gumas atividades básicas de subsistência desde antes da intrusão
dos Tupi e ao longo da permanência destes e dos colonos portugue-
ses e neobrasileiros que os substituíram. No que diz respeito ao tre-
cho mais restrito da costa entre o João de Tiba e o Buranhém, suas
incursões podem ter perdurado até o limiar do século XIX, já que, no
início deste, Wied-Neuwied (op. cit.) ainda registraria as notícias dos
seus combates com botocudos ao longo do primeiro rio e de temidas
aparições costeiras de bandos ainda isolados na faixa imediatamen-
te ao sul, entre o Buranhém e o Jucuruçu. Foram, a partir de então,
combatidos e "descidos" para junto das povoações coloniais costei-
ras. Em se considerando o referido trecho mais estrito da costa, há
registro, no período intermediário do século XIX, de um aldeamento
indígena junto à então vila de Santa Cruz (Dórea, op. cit.), o qual
deve ter subsistido até a concentração compulsória da população in-
dígena da região, em 1861, na nova aldeia na foz do Corumbau,
para onde foram provavelmente levados, além de pataxós e maxa-
calis, também segmentos de origem tupi e, possivelmente, botocuda
ou camacã, grupos periféricos ao território aqui considerado.
Este fato histórico pode ser tomado como marco de "origem" da so-
ciedade pataxó contemporânea.

3) Portugueses e neobrasileiros: Estabeleceram-se colonialmente


no território a partir da quarta década do século XVI, com destaque
140 Ir para o sumário >>

para o trecho costeiro aqui tomado em detalhe, onde se implantaram


as povoações de Porto Seguro e Santa Cruz. Sua ocupação se man-
teria incipiente e restrita à costa ao longo dos trezentos anos seguin-
tes, consolidando-se e habilitando-se à expansão a partir da primeira
metade do século XIX.
Do exposto se pode concluir que a metade do século XIX marca o
afloramento de duas novas "tradições" sobre esse território, brota-
das, evidentemente, a partir das anteriores: de um lado, uma nova
tradição nacional, brasileira, enfim livre das limitações à sua expan-
são, pois, embora economicamente consolidada apenas no entorno
imediato de uma dezena de pequenas vilas costeiras38, detinha já o
controle efetivo de todo o território; e, de outro lado, uma tradição
"neoindígena" ou "neopataxó", pontualmente gestada a partir princi-
palmente de Barra Velha, a aldeia na foz do Corumbau.
A partir de então, a sociedade nacional de fato implantaria, progres-
sivamente, a sua ordem econômica sobre todo o território, de modo
ainda lento ao longo de cem anos, mas muito rapidamente a partir
da metade do século XX, com o ingresso na região de capitais e de
novos contingentes populacionais, atingindo-se um pronto arremate
deste período francamente expansivo ao longo da década de 1970,
quando se pode tomar como marcos deste pleno domínio territorial a
inauguração das rodovias BR-101 e BR-367, o auge do surto madei-
reiro que retirou toda a primitiva cobertura vegetal do território e a
implantação da indústria do turismo, ainda hoje em plena expansão.
De sua parte, a "nova" tradição indígena se manteria, também por
cerca de cem anos, restrita quase que exclusivamente ao seu núcleo
de Barra Velha, explorando aí o interflúvio Caraíva-Corumbau, pelo

38 De norte para sul: Belmonte, Santa Cruz, Porto Seguro, Trancoso, Cumuruxatiba, Prado, Alcobaça, Caravelas, Vila Viçósa e Porto Alegre.
141 Ir para o sumário >>

qual se estendiam, latitudinalmente, da Costa às encostas do Monte


Pascoal. Tal era o território que seriam, em parte, forçados a aban-
donar face às conhecidas compulsões de clara origem externa que
se lhes impuseram a partir de 1951, vindo a constituir, após uma
fase mais dispersa, nove novos estabelecimentos que teriam carac-
terizadas as suas consolidações paralelamente à da nova ordem
econômica regional, no máximo entre os anos de 1970 e 1980, como
se demonstrou aqui ser o caso da Coroa Vermelha.
Voltando agora ao caso específico da constituição desta Terra Indí-
gena e tomando por referência, em contraponto, a dimensão jurídica
da constituição do domínio colonial e nacional sobre territórios, sabe-
se que este se exerceu, na sua origem, pela concessão monárquica
de capitanias e sesmarias, um sistema que, com seus desdobra-
mentos, persistiu até o século XIX, quando foi completamente revisto
pela Lei de Terras de 1850. Esta criou, entre outras coisas, a figura
jurídica das "terras devolutas", aquelas que, sem reclamantes for-
mais, foram então "devolvidas" ao domínio do Estado. No caso das
duas glebas aqui identificadas como constituintes da Terra Indígena
Coroa Vermelha, tem-se que a gleba B, por um lado, permaneceu
como terra devoluta até se tornar Terra Indígena pelo fato do estabe-
lecimento da exploração pataxó, enquanto que a gleba A integrava
uma área que, por uma já referida Lei de 1906, passou de terra de-
voluta do Estado ao patrimônio municipal de Santa Cruz Cabrália,
permanecendo contudo, nesta nova condição, igualmente sem domí-
nio útil, até o estabelecimento da aldeia pataxó. Já se encontrava,
assim, plenamente caracterizada como Terra Indígena quando a
Prefeitura, extemporaneamente, a partir de 1979, passou a exercer,
142 Ir para o sumário >>

indevidamente, o seu extinto direito de propriedade, através da con-


cessão de aforamentos, sobretudo a empresas imobiliárias.
Disto tudo se pretende extrair aqui uma conclusão importante, mas
muito simples, de resto já formulada alhures, em parecer (Carvalho
& Sampaio, 1992). Trata-se de que, considerando:

1) que as parcelas de terra onde se estabeleceu a comunidade pata-


xó da Coroa Vermelha se inserem em um território que pode ser
identificado como tendo sido "imemorialmente" explorado pelo grupo
indígena, isto é, segundo seus usos, costumes e tradições anteriores
ao contato com a sociedade colonial, e;

2) que quando deste estabelecimento - ou reestabelecimento - estas


parcelas se encontravam sem qualquer ocupação ou exploração,
consistindo em terras públicas, do Estado ou do município, os quais,
por sua vez, também não exerciam aí qualquer forma de exploração;
tem-se que:

A Terra Indígena Coroa Vermelha se constituiu historicamente sobre


terrenos totalmente desocupados e inexplorados, integrantes de
uma área mais ampla que pode ser identificada, histórica ou imemo-
rialmente, como tendo constituído, no passado, patrimônio territorial
do povo indígena Pataxó, de onde este foi retirado por força das
compulsões coloniais; patrimônio parcialmente resgatado pelo esta-
belecimento da nova comunidade, sem que, para tanto, esta o tenha
subtraído a quaisquer outros titulares de direitos sobre este que não
o próprio poder público, tendo, ao contrário, tido seu próprio direito
territorial parcialmente usurpado, uma vez constituído - nos termos
143 Ir para o sumário >>

do Artigo 231 da Constituição Federal e seus antecedentes desde


1934 - pelo próprio poder público e por particulares.

7 - Levantamento Fundiário

O objetivo deste capítulo é o de formular alguns comentários analíti-


cos e de contextualização das informações que, em detalhe, estão
disponíveis no levantamento fundiário propriamente dito, isto é, nos
laudos de vistoria das ocupações de terceiros sobre a Terra Indíge-
na, elaborados pelo grupo técnico que originou também o presente
relatório.
Como é sabido, a situação das intrusões é bastante diversa nas gle-
bas A e B, pois, enquanto na primeira foram detectadas 210 ocupa-
ções, todas elas consistindo, quase exclusivamente, de edificações,
residenciais, ou, em menor número, de pequenos estabelecimentos
comerciais, na gleba B não há qualquer benfeitoria de terceiros a
considerar, embora haja documentos de pretensos proprietários de
áreas. Deste modo, tratar-se-á aqui em separado de cada uma das
glebas.

7.1 - Gleba A

Para o caso da gleba A, um seguro ponto de partida para a avalia-


ção da situação presente é o levantamento do Interba (Toffolette,
1988), cujos dados essenciais já foram expostos no capítulo 4, que
refere as informações cartoriais então levantadas, ou no capítulo 6,
em que se destaca não haver então ocupações úteis de terceiros so-
bre o território aqui identificado e delimitado. Frisa-se bem a expres-
são "ocupação útil" já que, como dito, embora não houvesse cons-
144 Ir para o sumário >>

truções ou outro tipo de aproveitamento dos terrenos, havia já docu-


mentos cartoriais de pretendentes a áreas que se encontravam, de
fato, sob ocupação indígena, seja por moradias, seja por quaisquer
das outras formas de aproveitamento, como reservas para coleta,
criatórios, trânsito etc. Esta situação leva a que se tome em conta
uma distinção básica para o entendimento do quadro fundiário e
ocupacional da gleba, entre o domínio formal e a efetiva utilização
do terreno e posse de benfeitorias, aspectos que se tornaram cada
vez mais discrepantes a partir de 1989.
Assim, numa breve avaliação das alterações havidas, tem-se que,
no plano fundiário, há a registrar a concessão pela Prefeitura de
Santa Cruz Cabrália, entre 1989 e 1993, de cerca de cem novos afo-
ramentos, que tiveram como "beneficiários" tanto índios quanto os
recentes intrusos não-indígenas. Estes aforamentos foram concedi-
dos sobre os poucos terrenos ainda não aforados, localizados sobre-
tudo junto à margem direita da pista de acesso ao monumento - ou
seja, entre esta e a praia - mas, principalmente, sobre a antiga "área
verde" prevista na planta aprovada do loteamento Nina, junto à mar-
gem esquerda do dito acesso, e também sobre lotes do "Nina 2", ou
sobre a área onde se implantaria o embargado loteamento "Aldeia
Pinta".
No aspecto ocupacional, das 210 ocupações identificadas no pre-
sente levantamento, cerca de 30 são "barracas de praia", que não se
constituem propriamente em imóveis e das quais se tratará adiante.
As demais cerca de 180, contudo, são, de fato, construções em alve-
naria implantadas, todas elas, após 1988 e, em sua maior parte, er-
guidas sobre as supra referidas áreas recém aforadas, havendo tam-
bém muitas sobre lotes do Nina 1 e 2 que foram, em sua maioria,
vendidos pela Centauro a clientes residentes em outros Estados. Há
145 Ir para o sumário >>

também edificações sobre terrenos de marinha, junto à praia, ou so-


bre a margem esquerda do rio Jardim. Das construções sobre as
áreas recém aforadas, há muitas, é fácil supor, sobre terrenos origi-
nalmente aforados a índios e que foram depois objeto de transações
e ou de reparcelamentos.
Do ponto de vista administrativo e legal, todos os aforamentos con-
cedidos entre 1989 e 1993 vêm sendo formalmente questionados
pelo Iphan e pela própria Prefeitura, através da administração que a
assumiu em 1993. Tais questionamentos se baseiam, por um lado,
em que não foi feita a necessária planta de parcelamento, nem hou-
ve, evidentemente, a indispensável aprovação desta pelo órgão fe-
deral. Por outro lado, concessões foram feitas sobre terras já afora-
das ou de destinação pública - nos termos da Prefeitura, é claro,
como a fictícia área verde constante do projeto original do Nina.
Além disto, refere-se o fato de não ter havido muito critério na distri-
buição e delimitação dos lotes que, em muitos casos, divergem com-
pletamente da real situação das posses - ou, melhor dizendo, das in-
trusões - já constituídas.
Pode-se afirmar também, com segurança, que são irregulares, nos
termos do patrimônio histórico e da regulamentação municipal, todas
as referidas 180 construções, já que não foram submetidas ao crivo
técnico do Iphan, que vem, insistentemente, buscando embargá-las,
como relatado por Boaventura (op. cit.), que traz, inclusive, dezes-
seis exemplos de ações de embargo, movidas ainda durante as
obras. Além disto, é também totalmente questionável a própria base
territorial destas construções, já que, aquelas que não se assentam
sobre os contestados aforamentos posteriores a 1989, o fazem so-
bre lotes considerados públicos ou, sobretudo, de terceiros, nas áre-
as do loteamento Nina.
146 Ir para o sumário >>

Com efeito, embora os lotes remanescentes do "Nina 1" - aprovado


desde 1983 - e o "Nina 2" - que obteve sua autorização pela Infor-
mação Técnica 24, de 01 de março de 1992 (Boaventura, ib.) - se-
jam os únicos parcelamentos incidentes sobre a Terra Indígena, ao
sul do rio Jardim, considerados regulares pelo Iphan, as "constru-
ções definitivas" aí implantadas, além de, como atesta o próprio ór-
gão, terem tornado a área "totalmente descaracterizada" (ib.), não
foram erguidas por nenhum dos particulares que chegaram a adqui-
rir à Centauro alguns dos cerca de vinte lotes aí existentes. O foram
por intrusos recentes que, de resto, vieram somar-se aos Pataxó
que, como se viu, aí já mantinham ocupações desde antes de 1979.
Em uma tentativa de ordenar os dados deste caótico quadro fundiá-
rio e ocupacional, far-se-á, a seguir, um resumo esquemático desses
dados, comparando as situações em 1988 e 1995, para cada uma
das áreas da gleba A:

1) Área ao sul do rio Jardim, correspondente aos setores 1 e 2


do presente laudo de identificação:
Sub-área 1: entre a margem direita da pista de acesso e a banda sul
da praia da Coroa Vermelha:
Situação em 1988: sem aforamentos; ocupada apenas por moradi-
as indígenas e pela escola da Funai;
Situação em 1995: terrenos aforados e ocupados, mais densamen-
te, por índios e por não índios recém intrusados.
Sub-área 2: "área verde" e lotes meridionais do Nina 1:
Situação em 1988: terras formalmente pertencentes à imobiliária
Centauro; a serem transferidas para o domínio público - área verde -
ou em processo de transferência a particulares - lotes. Ocupadas de
fato por moradias indígenas;
147 Ir para o sumário >>

Situação em 1995: nenhum comprador de lote constituiu posse ou


edificação e as moradias indígenas persistem aí, agora acrescidas
de algumas de intrusos. Área verde extinta, física e formalmente, e
completamente superposta por aforamentos concedidos a residênci-
as e estabelecimentos comerciais de pataxós e de outros.
Sub-área 3: Loteamento Nina 2:
Situação em 1988: terras formalmente em nome da Centauro; hipo-
tecadas a uma instituição bancária e ocupadas, de fato, por moradi-
as, criatórios e áreas de coleta e de trânsito dos Pataxó;
Situação em 1995: parcelamento aprovado em 1992; lotes vendidos
mas não apropriados por compradores. Área parcialmente superpos-
ta por novos aforamentos e totalmente ocupada por algumas resi-
dências de indíos e, principalmente, de intrusos.
Sub-área 4: entre o Nina e a margem direita do curso Jardim-Mutari:
Situação em 1988: terras formalmente em nome da Centauro, com
projeto de loteamento - "Aldeia Pinta" - definitivamente embargado
desde 1983. Área ocupada por equipamentos comunitários, recursos
vegetais e outras faixas de uso coletivo da comunidade indígena,
como a margem do rio Jardim;
Situação em 1995: área ocupada pela "Aldeia Nova" dos Pataxó e
por algumas construções de intrusos tendentes à proliferação.

2) Área entre os rios Jardim e Mutari, correspondente ao setor 3


do presente relatório, identificada como "imprescindível à preserva-
ção de recursos ambientais necessários" ao "bem-estar" da comuni-
dade pataxó.
Situação em 1988: como relatado acima (capítulo 4), esta área se
encontrava razoavelmente preservada e sem quaisquer edificações,
148 Ir para o sumário >>

mas partilhada em três grandes lotes apropriados por particulares:


Walter Sambrano, José Ubaldino Pinto e a imobiliária Brasil-Colônia;
Situação em 1995: a área permanece ainda razoavelmente preser-
vada em seu aspecto natural, mas a situação atual dos três lotes é a
seguinte:

A) "Sambrano": durante o levantamento fundiário, em agosto e se-


tembro de 1995, estavam sendo erguidas pequenas construções de
lazer - cabanas - aparentemente sem projeto aprovado pelos órgãos
competentes;

B) "Ubaldino": o lote continua desocupado mas existe projeto apro-


vado pelo Iphan para construção de um condomínio do tipo "apart-
hotel" (Boaventura, op. cit.);
C) "Brasil-Colônia": a área foi transferida da antiga proprietária
para uma outra imobiliária do mesmo proprietário da Centauro, José
Martins, que, ao que tudo indica, pretende loteá-la. Esta foi a única
ocupação em toda a gleba identificada em que não foi permitida a
vistoria pelos membros do Grupo Técnico.
Além destes lotes, há que registrar um conjunto de casebres ergui-
dos sobre a margem esquerda do rio Jardim, junto à ponte da BR-
367.

3) Área da praia, correspondente ao setor 4 da gleba aqui identifica-


da: as cerca de trinta "barracas" instaladas na praia são estabeleci-
mentos comerciais destinados à venda de bebida e comida aos ba-
nhistas e que, apesar de consistirem, em alguns casos, em estrutu-
ras de tamanho razoável, são consideradas "construções temporári-
as", posto que não dispõem de alvenarias. São instaladas "a título
149 Ir para o sumário >>

precário", mediante licenças periodicamente renováveis, concedidas


conjuntamente pela Prefeitura e pela Capitania dos Portos.
Os Pataxó da Coroa Vermelha são unânimes em manifestar seu de-
sagrado com a vizinhança destes estabelecimentos, principalmente
por causa do intenso comércio de bebidas alcoólicas e pela frequên-
cia de um público que consideram indesejado, dispersando seus cli-
entes potenciais no comércio de artesanato.
Os líderes da comunidade indígena informam que, em entendimen-
tos com a Capitania dos Portos, com a qual mantêm boas relações
desde a implantação da aldeia, essa assumiu o compromisso de não
renovar as licenças das "barracas", uma vez regularizada a Terra In-
dígena. Este compromisso estaria, inclusive, formalizado em corres-
pondência trocada entre a Capitania e a Funai. Vale frisar aqui que a
extrusão desses estabelecimentos não deve implicar em ônus inde-
nizatório para a União, já que se trata de construções removíveis e
autorizadas a título precário e temporário. Por outro lado, como exis-
tem, afora a Terra Indígena, pelo menos mais seis quilômetros de
praias no município de Santa Cruz Cabrália ao longo da BR-367, es-
tes estabelecimentos poderão ser relocados em outros trechos de
praia ainda menos procurados e pouco explorados, sem maiores
prejuízos para seus concessionários.
Em se tratando de áreas contíguas à Terra Indígena, há que se con-
siderar a faixa de domínio do DNER que, evidentemente, está fora
da Terra aqui identificada, mas se encontra, conforme relatado, com-
pletamente intrusada por moradias, em geral precárias, e por esta-
belecimentos comerciais, ao contrário surpreendentemente bem
equipados. Vale ressaltar aqui que pelo menos uma dezena das in-
150 Ir para o sumário >>

trusões sobre a Terra Indígena o são apenas parcialmente, assen-


tando-se, em sua outra parte, na dita faixa de domínio.
É claro que esta é também uma vizinhança incômoda e indesejada
para a comunidade indígena, que pretende, ademais, ter desimpedi-
do o acesso entre suas áreas de ocupação e a pista da rodovia, me-
diado apenas pela segurança da faixa de domínio. Deste modo, é
necessário que se recorra, neste caso, ao que dispõe o Artigo Sexto
do Decreto 1.141, de 19 de maio de 1994, relativamente às respon-
sabilidades da União na proteção e preservação do entorno de Ter-
ras Indígenas; uma responsabilidade que, no caso, além da Funai,
do Ibama e do Iphan, certamente diz respeito também ao órgão ro-
doviário federal.
Por fim, em se tratando de intrusões sobre a gleba A da Terra Indí-
gena Coroa Vermelha, não se pode deixar de considerar, desde a já
citada Lei Estadual de 10 de janeiro último, e do correspondente de-
creto de desapropriação, do mesmo mês, a presença do Governo do
Estado, uma vez que as desapropriações previstas incidem sobre
quase toda a área aqui identificada ao sul do rio Jardim, abrangendo
a totalidade dos setores 1 e 2 da gleba.
É, de certo modo, bastante compreensível que oEstado esteja em-
penhado em promover a recuperação urbanística e ambiental do sí-
tio histórico e, até mesmo, que pretenda fazê-lo a partir de um golpe
de indenizações que, em princípio, ele arbitrará, sobre tantos quan-
tos se pretendam titulares de direitos e ou proprietários de benfeitori-
as na área. Liquidaria assim, com a urgência que a situação deman-
da, todo o caótico quadro fundiário e legal aí instaurado, contornan-
do, ademais, como parece ser a expectativa, intrincadas querelas ju-
diciais com tantos envolvidos, inclusive os Pataxó, que, no que pare-
151 Ir para o sumário >>

ce ser a visão dos executivos estaduais, não teriam com isto nada a
perder.
O que não se compreende é que o Estado pretenda não admitir que
a forma "legal" encontrada para que se promova a consensualmente
necessária recuperação fere direitos territoriais indígenas muito cla-
ramente contemplados na Constituição Brasileira.
O ante-projeto da "recuperação urbanístico-ambiental da Coroa Ver-
melha" (BAHIA, op. cit.) previa, em julho de 1995, uma despesa de
R$5.000.000,00 (cinco milhões de reais) com indenizações, constru-
ção do "mercado de artesanato" e tratamento paisagístico, além da
relocação das moradias dos Pataxó; um montante que os próprios
técnicos do Prodetur reconhecem hoje estar defasado e subestima-
do.
Do ponto de vista dos Pataxó, a perspectiva de que o Estado possa
promover uma rápida desintrusão da sua Terra é, naturalmente, en-
carada como positiva, mas, muito justificadamente, preocupa-os
bastante a possibilidade de que mais intervenções venham a ser fei-
tas nesta sem que seja tomado em conta o seu direito. Concreta-
mente, embora não descartem a possibilidade de vir a transferir to-
das as suas moradias para a "Aldeia Nova", esta alternativa é trata-
da com muitas reservas por parte de alguns, sobretudo se ela tender
a ser adotada de modo autoritário e compulsório.
Assim, em síntese, o exame de qualquer alternativa com relação a
perspectivas de intervenção externa passa, necessariamente, pelo
pronto encaminhamento do processo de regularização da Terra Indí-
gena, a partir do que a comunidade e o órgão indigenista se porão
em melhor posição de autoridade para, se assim o desejarem, esta-
152 Ir para o sumário >>

belecer negociações com quaisquer pretendentes à execução de in-


tervenções sobre sua Terra.

7.2 - Gleba B

Impressiona, ao se pretender tratar de intrusões nesta gleba, o fato


de não haver aqui benfeitorias de terceiros, cercas sequer, apesar
desta área de matas tradicionalmente explorada pelos Pataxó da
Coroa Vermelha ser, sabidamente, tida como pertencente a três em-
presas.
Como já relatado, a comunidade indígena assumiu, formalmente, a
posse de uma destas áreas, a da "Florestas Rio Doce" - hoje da
"Vera Cruz Celulose" - aí estabelecendo casas e roças. Durante os
trabalhos de campo do presente Grupo Técnico, a comunidade co-
memorou os cinco anos desta posse pacífica, a 24 de agosto de
1995.
Como também já relatado, este imóvel, de 392 hectares, recebeu tí-
tulo do Estado em 1985, fazendo então parte de um estoque de cer-
ca de 200 mil hectares de terras que a empresa muito rapidamente
reunira em todo o Extremo Sul baiano.
Suspeitas em torno deste processo de concentração fundiária leva-
ram a então Secretaria de Estado da Reforma Agrária a determinar,
em 1987, a suspensão, pelo Interba, da concessão de títulos de ter-
ra para a empresa. Logo ficaria claro que esta, de fato, não utilizaria,
em seu projeto agro-industrial de produção de celulose, nenhuma
das terras que detinha ao norte do município de Itamaraju, já que as
de que dispunha daí para o sul eram mais que suficientes para ali-
mentar o seu complexo industrial - a "Bahia Sul Celulose" - situado
153 Ir para o sumário >>

no município de Mucuri, esclarecendo-se assim o real caráter espe-


culativo do dito processo.
Já na década de 1990, os imóveis "remanescentes" da "Florestas
Rio Doce" seriam repassados à "Vera Cruz", outro grupo agro-indus-
trial de celulose, que pretende fazer aprovar o seu projeto de implan-
tação de uma fábrica no município de Eunápolis. Curiosamente, os
executivos e técnicos da empresa, em suas recorrentes declarações
públicas em defesa do projeto têm insistido em que este exclui total-
mente a possibilidade de realizar plantios a menos de quinze quilô-
metros da costa, o que, a se crer, significa que o imóvel em causa
está fora dos seus planos. Seja como for, os responsáveis pelo pro-
jeto certamente sequer conhecem o imóvel, adquirido em um "paco-
te" ao outro grupo empresarial e, desde antes disto, sob pacífico do-
mínio dos Pataxó da Coroa Vermelha.
As duas outras áreas, de empresas imobiliárias, parecem ser "propri-
edades" cartorialmente constituídas, sem apoio em cadeias suces-
sórias adequadas, se é que estas existem, o que não foi possível ao
Grupo Técnico apurar em profundidade, inclusive porque não há,
nas próprias áreas, ninguém que se apresente como seu responsá-
vel, gerente ou guardião, a não ser, é claro, os próprios Pataxó que
por elas circulam e trabalham livremente.
A propósito, tendo sido solicitado ao cartório competente, em Porto
Seguro, os registros de possíveis imóveis incidentes sobre esta gle-
ba da Terra Indígena, foram fornecidas oito certidões de matrícula,
dentre as quais se identificam duas como seguramente incidentes,
as dos imóveis "Estaleiro" e "Estaleiro 2", em nome da imobiliária
"Coroa Vermelha", uma das empresas do grupo "Góes-Cohabita", in-
dicados, respectivamente, como situados à margem esquerda do rio
154 Ir para o sumário >>

Itinga, com 278 hectares, e à margem direita do rio Jardim, com 62


hectares.
Não foi possível identificar, com segurança, se alguma - ou algumas,
e quais - das cinco matrículas fornecidas que trazem como referên-
cia de localização o rio Mutari correspondem à área tida como de
propriedade da imobiliária "Brasil Colônia", ou "Colonial Mutari",
como parece ser a atual denominação da empresa. Três destas ma-
trículas estão em nome do próprio município de Santa Cruz Cabrália:
dois documentos de 4 hectares cada e um de 106, que, pela sua ex-
tensão ou referência de localização, próxima à BR-367, parecem
não ser incidentes sobre esta gleba de ocupação indígena.
As outras duas matrículas referidas ao Mutari estão em nome de
Aventino de Souza Dutra e se reportam a extensões de 380 e de
11,44 hectares que, possivelmente, correspondem aos 392 hectares
do imóvel que transitou entre as empresas agro-industriais e que é
nomeado, no título do Estado, Pau Brasil-Rio Jardim.
Por fim, a oitava certidão se refere à "parte" de um extenso imóvel
de 6.069 hectares que, pelos dados de localização, também parece
não ser incidente sobre a gleba em causa e, se o for, fazendo-o so-
bre o seu flanco meridional, no município de Porto Seguro, integran-
do assim a área atribuída à "Góes-Cohabita".

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2.3 O ALDEAMENTO, O FOGO E O PARQUE: RESISTÊNCIA PATAXÓ EM BARRA
39
VELHA

Rodrigo de Azeredo Grünewald

A territorialidade do povo Pataxó Meridional abrange toda


região litorânea que se estende dos limites Norte do município de
Santa Cruz Cabrália à Vila de Cumuruxatiba em Prado, no litoral do
Extremo Sul da Bahia. Como limite Leste, pode-se estabelecer o
Monte Pascoal e, a Oeste, o Oceano Atlântico. Suas aldeias
distribuem-se não apenas em áreas de matas, mangues e restingas,
mas também em regiões agrícolas e urbanas. Suas atividades
econômicas são muito diversificadas de acordo com os nichos que
os inúmeros grupos familiares Pataxó ocupam definitiva ou
sazonalmente – e muitas vezes dividindo economicamente tais
espaços com não-indígenas, especialmente em setores urbanos.
Tudo isso torna a questão fundiária Pataxó em algo bastante
complexo a ponto, inclusive, de os projetos de etnodesenvolvimento
para este povo deverem ser contextualizados aos seus nichos
específicos e, assim, diversificados setorial e culturalmente.
Não sabemos de processos sociais e territoriais relativos aos
nativos desta região anteriores à chegada do colonizador europeu,
mas os Pataxó Meridionais enfrentaram diversos momentos históri-
cos importantes para sua definição étnica caracterizados por confli-

39 Texto baseado em partes inéditas do levantamento para o capítulo 2 da Tese do autor.


161 Ir para o sumário >>

tos que podem ser investigados como próprios da ingerência de flu-


xos coloniais específicos e diferenciados socialmente. A noção de
fluxo colonial (Grünewald 2002) é usada aqui em referência às rela-
ções assimétricas de fluxos culturais que caracterizam relações de
sujeição de sociedades indígenas. Said tem sugerido a existência de
um imperialismo e um colonialismo que são sustentados e talvez im-
pelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de
que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação
(Said 1995:40). Parto assim do pressuposto da existência de cultu-
ras (como a indígena) colocadas em posições subalternas - mas das
quais, em contrapartida, podem ser re-elaboradas etnicidades. É
nesse contexto que se deve pensar a emergência de discursos so-
bre a diferença cultural como estratégia de sobrevivência em termos
de uma postura pós-colonial que força, segundo Bhabha (2001), um
reconhecimento das fronteiras culturais e políticas mais complexas
que existem no vértice de esferas políticas freqüentemente opostas.
Neste artigo, esboçaremos três momentos da vida dos Pataxó
Meridionais. Um primeiro momento (De Cabral ao Século XIX: invisi-
bilização) é o que vai da chegada do descobridor Pedro Álvares Ca-
bral até o século XIX. Um segundo momento está subdividido em
duas partes (A formação de uma aldeia: Barra Velha e O Parque e a
resistência Pataxó: terror e afirmação étnica) e centra-se na “aldeia-
mãe” de Barra Velha, desde sua formação, passando pela criação
do Parque Nacional do Monte Pascoal (PNMP), o reconhecimento
étnico dos índios pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e pela Fun-
dação Nacional do Índio (FUNAI). Por fim, um terceiro momento (O
Turismo, o regime de índio e as retomadas atuais: busca da susten-
tabilidade?) seria o do desenvolvimento do turismo e das atuais reto-
162 Ir para o sumário >>

madas de terras Pataxó. Contudo, o foco específico deste capítulo


recai sobre o segundo momento, do qual tentarei uma reconstrução
parcial de uma situação histórica (Oliveira 1988) decisiva para a con-
tinuidade Pataxó na região.
Especificamente para abordar o conjunto de eventos que se
estabeleceram nesta segunda situação - ou seja, em meados do sé-
culo XX e que terminaram com a afirmação étnica Pataxó em Barra
Velha - trato tanto com documentos quanto com uma memória social
Pataxó. Com relação à parte documental (arquivística), seguirei de
perto a dissertação de Carvalho (1977), além da utilização de docu-
mentação suplementar que coletei no Museu do Índio no Rio de Ja-
neiro. A abordagem da tradição oral está baseada basicamente na
junção de dados por mim coletados, aditados pelos recolhidos por
Oliveira (1985). Ao lidar assim com uma memória social Pataxó, es-
tarei incorporando à análise o método genealógico elaborado por
Foucault (1990), que trata do

acoplamento do conhecimento com as memóri-


as locais, que permite a constituição de um saber his-
tórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas
atuais ... Trata-se de ativar saberes locais, descontínu-
os, desqualificados, não legitimados, contra a instância
teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarqui-
zá-los, ordená-los em nome de um conhecimento ver-
dadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida
por alguns” (Foucault,1990:171). Minha intenção é pe-
netrar na discursividade local, ativar “os saberes liber-
tos da sujeição que emergem desta discursividade”
(ibid.:172).
163 Ir para o sumário >>

Ainda, selecionei a história oral como melhor veículo para li-


dar com a tradição oral Pataxó, pois esta, segundo Vansina (1965) é
o próprio suporte da memória social. Finalmente, considerações de
Radhakrishnan (1996) acerca da dupla dificuldade de uma historio-
grafia na diáspora40 foram importantes para situar depoimentos ten-
do em consideração deslocamentos que, a partir de múltiplos regis-
tros e múltiplas valências, pode gerar diferentes reflexividades em
torno de suas legitimidades étnica ou territorial.
Gostaria ainda de ressaltar que a idéia aqui não é promover
uma análise conjuntural, histórica ou etnológica das situações Pata-
xó que ficarão em evidência, mas tão somente me interessa trazer
ao leitor uma sistematização de narrativas acerca dos episódios re-
feridos bem como insinuar recortes analíticos que possam ser de in-
teresse a futuros pesquisadores.
De Cabral ao Século XIX: invisibilização
O ilhéu da Coroa Vermelha (município de Santa Cruz Cabrá-
lia) é palco do Descobrimento do Brasil, pois foi onde Pedro Álvares
Cabral desembarcou em 22 de abril de 1500 e onde também foi ce-
lebrada a Primeira Missa em solo brasileiro quatro dias depois que a
frota portuguesa ancorou na atual Baía Santa Cruz Cabrália.
Em Coroa Vermelha, o descobridor foi recebido por índios Tu-
piniquim, que habitavam aquela porção litoral em decorrência da
grande expansão Tupi — oriundos do Sul e do Oeste — na costa
brasileira. Na verdade, o continuum Tupi da Costa estava interrompi-
41
do no sul da Bahia e norte do Espírito Santo pelos tapuias generi-

40E deve se ter em mente os aspectos diaspóricos que periodicamente reconstroem a territorialidade Pataxó.

41 Termo genérico para populações de índios não-Tupi que dominavam originalmente o litoral e de onde foram expulsas na conquista Tupi (cf.

Fausto, 1998).
164 Ir para o sumário >>

camente conhecidos como Aimorés (na verdade os Botocudos) e


com quem guerreavam.
Este momento foi extremamente negativo para as populações
indígenas que, desde as primeiras tentativas de escravidão, foram
desterritorializadas42, travaram sérios conflitos entre si e com os co-
lonizadores que, ao longo dos séculos, se estabeleceram em fazen-
das e outras unidades produtivas, além de também congregar os in-
dígenas em aldeamentos capuchinhos ou jesuítas. Apesar de certo
contato com os colonizadores, continuaram os ataques às vilas e às
fazendas, considerando-se a existência de índios selvagens na re-
gião até meados do século XIX.
Sabe-se, pois, que nos três séculos seguindo ao Descobri-
mento não apenas os Botocudos, mas índios das famílias Pataxó,
Maxacali e Camacã, que andavam em pequenos bandos nas matas
próximas à faixa costeira, atacavam os donatários da Capitania de
Porto Seguro (Dantas, Sampaio e Carvalho, 1998). Em relato de via-
gem realizada entre 1815 e 1817, Wied-Neuwied (1989) divulga que
os Pataxó guerreavam com os Botocudos na região hoje referente
aos atuais municípios de Santa Cruz Cabrália e de Porto Seguro. E
ainda, segundo o mesmo cronista, os Pataxó apareciam recorrente-
mente em todo o litoral do Extremo Sul da Bahia para trocar seus
produtos da mata, para onde voltavam em seguida. A essa época,
se encontravam ainda nessa porção do litoral, “pequenas povoações
de Tupiniquins, de há muito aldeados junto a estabelecimentos colo-
niais — Prado, Caravelas, Santa Cruz etc — e na antiga missão je-
suítica de Trancoso” (Sampaio, 1996).

42 Digo desterritorializadas porque antes da colonização do europeu houve a expansão Tupi pelo litoral, promovendo certamente diásporas

acompanhadas de re-territorializações (àquela época, obviamente, independentes da presença de um Estado).


165 Ir para o sumário >>

Carvalho (1977) informa que a primeira notícia sobre a região


da atual Barra Velha (e adjacências) provém de um ofício do Gover-
nador Francisco da Cunha Menezes para o Visconde de Anadia, em
1805 e que cita a remoção de índios de canaviais onde hoje é Barra
Velha para a Vila do Prado para se aproveitarem de melhor comér-
cio e civilizarem. Na mesma memória está registrada a presença,
num sítio na Vila N. Snr. Da Purificação com o nome de Prado, de
índios moradores plantadores de árvores de espinho. A autora, em-
bora sem indicação da identidade desses índios, sugere seu deslo-
camento para o sul, por resolução administrativa, com o objetivo de
se quebrar isolamento, civilizá-los bem como tentativa de centraliza-
ção das tribos vizinhas e segurança para a população (Carvalho,
1977:66-67). Pode-se supor também o interesse econômico na
cana-de-açúcar. Certo mesmo é que índios estavam habitando local
onde hoje é Barra Velha.
43
Em 1808, Navarro (1846) registra a grande decadência da
Vila do Prado (inclusive fazendas) em conseqüência dos ataques
contínuos dos índios Pataxós e Botocudos, e que já havia índios
(Comonachó, Bacumim, Machacari, Pataxó e Botocudo) em contato
com os “brancos” na região desde 1786. Além disso, ainda no século
XVIII (1773) há notícias de contatos com índios no Rio São Mateus,
provavelmente os Pataxós Meridionais e os Botocudos que parece já
tinham contato pacífico com fazendeiros na vila de Alcobaça.
Mascarenhas (1998), ao tratar de Vale Verde (entre Arraial
d’Ajuda e Trancoso), diz que aí “foi uma aldeia fundada por jesuítas,
no século XVI, e denominava-se Aldeia do Espírito Santo dos Índios,
vulgarmente conhecida por Aldeia Patatiba” (Mascarenhas, 1998).

43 Acredito que é essa a primeira vez que o etnônimo Pataxó é registrado.


166 Ir para o sumário >>

Lembra que Vale Verde torna-se vila (Vila Verde) em 1762, logo
após a expulsão dos jesuítas, quando moravam 400 índios nessa al-
deia  supostamente mongoió e botocudo, embora provável tam-
bém a presença tupinaki (e é de se levar em consideração também a
presença sempre constante nas matas da região dos botocudos e
também dos pataxós). Na década de 20 do século XIX, Vila Verde
abarcava a mão-de-obra indígena que foi escasseando paralelamen-
te à decadência da vila de tal forma a que, na década de 1880, os
índios só fossem encontrados nas matas, restando ali apenas “ma-
melucos” que eram “produção do princípio de criação da Villa” (ibid.).
Se esses índios foram aldeados tão perto de Barra Velha e saíram
desse aldeamento em meados do século passado, me pergunto por
que não poderiam pelo menos alguns terem ido ocupar essa locali-
dade paralelamente (conjuntamente com) aos índios oriundos do
Prado? De fato, Mascarenhas informa em comunicação pessoal que
os nomes de família mais característicos dessa população indígena
no século passado seriam os Palmas, Patativa e Santos, este último
nome muito comum também em Barra Velha. Por fim, Mascarenhas
conta que dona Dió, idosa senhora de Vale Verde que se diz Pataxó
e que estava na frente da ocupação da Fazenda Santo Amaro  re-
conhecida agora como Aldeia Velha  conta que no “fogo de 51”, ín-
dios da Barra Velha (“aquela aldeia ao lado de Caraíva”) andaram
por Vale Verde procurando parentes para asilo.
Carvalho evoca outros episódios envolvendo pataxós e “bran-
cos”, bem como informações datadas e com datações hipotéticas
sobre o início do contato amistoso entre pataxós e regionais, da
onde sugiro se pensar de forma mais genérica a virada dos séculos
XVIII para o XIX como o característico dessa situação histórica, na
167 Ir para o sumário >>

qual, como lembra Carvalho, os maxacalis  já habituados ao conví-


vio pacífico  agiam como mediadores no contato, ajudando assim
na pacificação de vários bandos principalmente entre os anos de
1807 e 1813 e ocasionando assim a ocorrência de pataxós na Vila
do Prado ainda em 1857  o que apoiaria a hipótese de ter esta vila
funcionando como local de aldeamento para as tribos vizinhas (Car-
valho, 1977:73-75).
Apesar dessas e de outras notícias dos Pataxó fornecidas por
Carvalho para o período e para a região (Prado, em especial), pare-
ce que na localidade exata onde se situa Barra Velha atualmente
não havia qualquer habitação indígena. Conforme mostra Carvalho:

“... graças a um outro ofício do Diretor Geral dos


Índios (...) dirigido ao Ministro e Secretário de Estado
dos Negócios do Império, Visconde de Mont’Alegre,
apresentando a relação das aldeias da província, fica-
se sabendo que ainda em 1851 havia na vila do Prado
‘hordas de indígenas bravos, que algumas vezes tem
saído com ânimo de fazerem hostilidades, e raras ve-
zes saem sem fazer mal’. E que não há, nesse docu-
mento, qualquer referência a aldeia de índios no local
onde está situada Barra Velha atualmente, como tam-
bém não parecia haver em 1816, se levarmos em con-
sideração que nessa época a foz do Corumbau era em
frente ao local onde hoje se localiza a aldeia, ..., e que
tendo passado por aí Wied-Neuwied, nenhuma men-
ção fez à presença de índios, afirmando que as mar-
gens do Corumbau ‘eram somente freqüentadas, no
momento, por garças, alguns maçaricos e gaivotas
(Larus), já que os Aimorés, ou Botocudos, tinham ex-
pulsado os habitantes com os seus feros ataques’ (...).
168 Ir para o sumário >>

Mais adiante, porém, no vilarejo de Cramimoã (hoje


Caraíva), recebeu dos índios locais notícias dos Pata-
xó que viveriam nas florestas vizinhas, aonde os pri-
meiros iam buscar os arcos e flechas que utilizavam
nas caçadas, trocando-os por facas, por serem ‘raras e
extremamente caras, nas costa, a pólvora e as balas’
(...)” (Carvalho, 1977:75-76).

Carvalho também aponta que em 1844 há notícias de “índios


selvagens” assaltando plantações e matando pessoas em Prado o
que ocasionou o envio de um destacamento da Guarda Nacional da
Bahia para Prado a pedido de seus moradores. Informa também da
carência de missionários em 1851 e da transferência, em 1857 ao
que parece, de índios de Prado para Alcobaça, quando o Reverendo
Prefeito dos Missionários Capuchinhos e outro sacerdote se dirigi-
ram para Prado e de lá para um sítio chamado Lage, de onde volta-
ram sem ver índios, que teriam, cansados de esperar, partido para
as matas (do Prado) onde mantinham roças.
Mas, se até meados do século XIX os indígenas continuavam
atacando unidades produtivas na região a ponto de desestimular in-
vestimentos da Coroa, poucas décadas depois isso não se registra-
va mais. É assim que, por exemplo, para a Coroa Vermelha, um es-
tudo de 1898 (Aragão, 1899) requerido pelo Governador do Estado
da Bahia para a comemoração do IV Centenário do Descobrimento
— e no qual objetivava-se averiguar, com base nos dados de campo
então coletados, os fatos conhecidos sobre a chegada dos portugue-
ses no Brasil —, concluiu que não existiam “vestígios materiais dos
índios encontrados por Cabral nem mesmo descendentes diretos
169 Ir para o sumário >>

que tenham deles conservado a pureza da raça primitiva” (Aragão,


1899).
Este olhar que negava a existência de indígenas em Coroa
Vermelha contribuía não apenas para sua invisibilidade social con-
creta, mas concorreu também para invisibilizá-los na história tentan-
do a todo custo silenciar suas vozes. É por isso difícil atualmente de
se estabelecer as lógicas indígenas em suas uniões, cisões, resis-
tências etc na medida em que não há registros orais ou escritos dis-
so – a não ser o capítulo referente a uma territorialização forçada,
que envolveu um processo de reorganização social conjunto para as
populações autóctones da região numa aldeia. Sabemos que foi com
o objetivo de acabar com os ataques a fazendas de Prado e Porto
Seguro e civilizar os índios que, em 1861, o Governador da Provín-
cia da Bahia manda fundar a atual aldeia de Barra Velha (limite meri-
dional do município de Porto Seguro) congregando ali nativos apa-
rentemente das etnias Pataxó, Maxacali, Botocudo, Tupiniquim e
Camacã. Mas reunidos aí, não foram pelas autoridades reconheci-
dos em suas especificidades étnicas (não eram mais Pataxó, Maxa-
cali etc), mas apenas índios fadados ao esquecimento (o que se per-
cebe, inclusive, pela ausência de documentação a respeito) e em re-
lativo isolamento.

A formação de uma aldeia: Barra Velha

Em 1861, falando à Assembléia Provincial, o Presidente Anto-


nio da Costa Pinto “trata da criação de uma aldeia de índios no Rio
Corumbau, e informa que em torno da vila do Prado”:
170 Ir para o sumário >>

“‘há centenas de famílias, ora nas brenhas, e


ora na referida vila, sem caráter hostil é verdade, mas
persistente em seus costumes selváticos. Estes índios
vão pescar constantemente no rio  Corumbau  em
cujas margens armam ranchos, onde moram, até que
terminada a pesca e a salga, se retiram para as
matas’” (apud Carvalho, 1977:79-80).

A 25 de abril de1861, “o Diretor Geral dos Índios dirige-se ao


Presidente da Província concordando com a opinião do Vigário Capi-
tular quanto ao estabelecimento de uma aldeia às margens do Co-
rumbau” (ibid.:80) e sugerindo a vinda de padres capuchinhos para a
“difícil missão da catequese”.
Ainda conforme Carvalho, “tudo faz crer que a aldeia planeja-
da para ser estabelecida às margens do Corumbau seja a atual al-
deia de Barra Velha” (ibid.:82)  hipótese já levantada por Agostinho
que comparou carta da Diretoria de Hidrografia e Navegação de
1943, corrigida em 1963, com a mesma carta corrigida até 1971 e
constatou o deslocamento da foz do Corumbau para o sul. Tese que
se confirma ao se debruçar sobre “a descrição da costa pelo Capi-
tão-Mor de Porto Seguro em 1805 (...), que a foz do Corumbau era
frente ao sítio onde se localiza a aldeia” (ibid.:82) e principalmente
sobre os depoimentos dos índios moradores de Barra Velha, que
afirmam que o nome Barra Velha para a aldeia foi dado por eles de-
vido à mudança da barra do rio Corumbau para o sul (uns 6 km). Por
fim, em 1892, “falando de Trancoso, ..., Vianna (...) cita os ‘arraiais
de Itaquena, Caraivamenuan, os mais florescentes, e Cachoeira, S.
Simão e Barra Velha, perto de Caraivamenuan’. Conclui-se, assim,
171 Ir para o sumário >>

que por essa época já se dera o deslocamento da foz do rio Corum-


bau, passando a aldeia a chamar-se pelo nome atual” (ibid.:83).
Mas Barra Velha era também chamada de Bom Jardim, nome
44
este, segundo vários índios , dado pelos padres por causa dos per-
fumados jasmins ao lado da lagoa, e que até os dias atuais existem
“brancos” que chamam a aldeia de Bom Jardim — e foram os “bran-
cos” que sempre a chamaram assim (padres, agentes da Fundação
Nacional de Saúde etc). O nome Barra Velha seria, de fato, devido à
mudança da Barra para Corumbau. A barra era onde agora é o man-
gue, tem até a Pedra Grande, que seria como que arrecifes e que
agora está dentro do mangue — local “onde o avião caiu45”.
Assim, parece não restar dúvidas quanto à conclusão de Car-
valho de que a atual Barra Velha é a antiga Bom Jardim, que é “a
mesma aldeia criada em 1861 para reunir os índios que viviam em
volta da vila do Prado” (ibid.). Problema seria precisar a identidade
étnica desses índios, embora pareça o mais correto supor que não
se trata de apenas uma etnia  tese que é confirmada, pelo menos
para a composição atual da aldeia, pelos índios de Barra Velha,
como se extrai das seguintes informações.
Segundo o líder Adalton, Pataxó seria uma palavra em Tupi
(pois eles mesmos se chamavam por um outro nome) e significaria
“os chegantes no mar” — isto é, os que vêm do interior (mata) para
contato com região praieira. Essa declaração com relação aos índios
de antigamente foi reforçada em reunião com o próprio Adalton, com
Joel Braz e Arauê que confirmam que Barra Velha foi realmente for-
mada por “índios diferentes” que se juntaram onde hoje é Barra Ve-
44 Penina e Arauê lembram musica que os índios sempre cantam e que destaca o “tempo” que a aldeia se chamava Bom Jardim: “No Bom

Jardim nós pede licença, no Bom Jardim nós queremos ramiar...”.

45 O avião depois levantou vôo novamente. Talvez se trate da visita do Gago Coutinho à aldeia em 1939.
172 Ir para o sumário >>

lha, o que bastaria atestar pelo simples exame do fenótipo das famí-
lias da aldeia, como pelo “jeito de falar dos antigos dessas famílias
que era muito diferente” entre si.
As principais famílias Pataxó são: os Ferreira (a principal),
Braz, dos Santos, Nascimento, Alves, Santana, da Conceição, do
Espírito Santo, Brito etc. Essas famílias guardariam a descendência
direta de famílias indígenas que foram para a aldeia no século pas-
sado ou em meados do século atual. Os Ferreira e os dos Santos,
por exemplo, seriam de Barra Velha mesmo; os Alves teriam ido
para Barra Velha a partir de um lugar chamado Caveira, perto do
Brejo Grande e do Ribeirão, depois do Rio Corumbau, já no municí-
pio do Prado; os Nascimento eram de Barra Velha, com o “fogo” fo-
ram para o Rio dos Frades e voltaram; os Brito habitavam entre Bar-
ra Velha e o Rio Caraíva e começaram a se retirar a partir da década
de 40 para a fundação de Mata Medonha; Espírito Santo é pessoal
oriundo dos córregos e rios afluentes do rio Caraíva até Monte Pas-
coal, vários foram para a Coroa Vermelha passando por Juacena e
outros ainda se encontram espalhados pelos locais de origem; a fa-
mília Conceição também habitava as matas, porém mais próximas
ao rio Corumbau; Santana apareceu depois da II Guerra Mundial e
chegaram de barco do norte (“lá das bandas de Olivença ou Ilhéus”)
procurando lugar para ficar  foram recusados em Trancoso e Ita-
quena mas acolhidos em Barra Velha.
Essa família Santana já chegou em Barra Velha “misturada
com sangue negro”, já “eram índios misturados com negro”, tanto
que assim que chegaram foram acolhidos num lugar chamado Jue-
rana, na Lagoinha, área tradicionalmente habitada por negros em
Barra Velha. Na verdade, é de se supor (e há indícios de) que no sé-
173 Ir para o sumário >>

culo passado, quando os índios da região viviam assaltando as fa-


zendas da vila do Prado, ocorreu intercurso sexual entre índios e ne-
gras dessas fazendas. Não há nada, entretanto, que aponte para
Barra Velha ter servido de refúgio de negros que teriam escapado
das fazendas (apesar da Lagoinha).
De qualquer modo, em Barra Velha todos confirmam que eles
são índios de diversos “tipos misturados”. Segundo um avô (já faleci-
do) do líder Adalton, eles “em Barra Velha são misturados” e os anti-
gos Pataxó moravam “nas matas lá para cima de Corumbau” e cos-
tumavam descer para pescar no mangue; que nunca foram pescado-
res do mar, mas que “trocavam coisas com os amigos Tapuios” e
costumavam se encontrar numa estrada que passa pelo Céu e que
era o caminho utilizado pelos índios que moravam nas matas para
descer em direção à beira do mar, onde trocavam produtos da mata
por produtos da praia e do mangue. Esse local era tido como ponto
de encontro dos índios, que, embora pensados como diferentes,
eram considerados todos parentes46.
A “história do Céu” (e o lugar tem o nome de Céu por causa
dessa história) parece ser muito importante para os Pataxó uma vez
que celebra  muito mais do que qualquer achado arqueológico 
um modo de vida pretérito dos habitantes de Barra Velha. Segundo
Arauê, o Céu era o lugar do encontro dos índios que andavam no
46 Esse costume de os parentes irem a Barra Velha fazer troca, segundo Manoel França da Conceição que ouvia a declaração de Adalton, seria

“esse mesmo costume que tá tendo hoje porque tem um bocado que mora aí pra dentro dessas matas (para cima do rio Caraíva e até para perto

do Monte Pascoal, que é tudo parente) e quando a gente pensa que não chega eles aí com uma farinha essas coisas e faz troca pra levar de novo,

por peixe né, e aí eu acho que ele tá no mesmo costume”. Ambos informantes enfatizam que os Pataxó sempre andaram muito fazendo essas

trocas, “que maior parte dos parentes outros mora na roça, então traga coisa da roça e troca com os daqui, e é boa convivência”  e “os daqui

também sai e troca lá e já traz também, é uma convivência unida né?”. É assim que o velho Boré afirma que Pataxó não brigava nem se

encontrava com (ou conhecia) nenhum índio de outra qualidade porque era tudo Pataxó, que “é o índio do Extremo Sul da Bahia”. A partir desta

hipótese paralela, todo o comércio que circulava entre praia e mato faria parte de uma distribuição das mercadorias Pataxó.
174 Ir para o sumário >>

mato. Sua “bisavó” era a única índia de Barra Velha que participava
de tal encontro periódico. Ela precisava ir “se esfregar na mata” para
tirar o “cheiro de branco” do corpo, “porque os índios daqui já não ti-
nham o cheiro de índio do mato e os índios que se encontravam lá
poderiam estranhar”. Essa mulher conseguia se comunicar na língua
deles e “passou algumas palavras para os daqui”. Parece que esses
índios se reuniam lá para trocas comerciais, trocas de informação e
tal encontro era sempre ritualizado.
Segundo Penina, essa mulher se chamava Maria Correia, e
era mulher do Vicente velho, pai do Vicente e Epifane Ferreira:

“Maria Correia é que ia encontrar os índios no


Céu, ela passava folha nela e não preparava coisa de
branco, ficava três dias amoitada na mata para encon-
trar com índios. Fazia beiju, cauim e levava peixe. Eles
traziam muita caça: anta e porco do mato. Traziam isso
para ramiar: a dança e canto que esses índios traziam
ninguém sabe como é, eles faziam um círculo de pe-
dra, botava o porco do mato no meio e dançavam ao
redor. Eles festejavam o Auê deles e voltavam para al-
deia”.

Maria Correia morreu velha e Caetano foi ser o representante


no Céu e “foi fazer o mesmo trabalho de receber os índios que vi-
nham de outros lugares, que Barra Velha foi toda vida encontro des-
ses índios. Só que foi morto pelos índios porque estava já num jeito
diferente”47.
Se Adalton diz “que no Céu era o lugar do encontro dos índios
daqui mesmo”, Luis Ferreira diz que os índios que se encontravam
47 Parece que encontrou com esses índios embriagado de cachaça.
175 Ir para o sumário >>

no Céu “não eram índios daqui não”. Nana diz que eram índios Pata-
xó (e também ciganos) que andavam lá por Monte Pascoal e que
marcavam de se encontrar no lugar do cacique48 Caetano no Céu.
49
Levavam “uma feira”, tomavam muito Aluá (já era feito para esse
encontro) e iam para o mangue pegar ouriço, caranguejo etc para le-
var para eles. José Baraiá diz que a história do Céu é dos Tapuios
Velhos que vinham do mato encontrar com os que moravam no lito-
ral. Itajá (Conceição), por fim, disse que “nós recebia os Maxacali”
no Céu.
50
De tudo isso, percebe-se a riqueza com que os Pataxó tra-
tam não só de sua história, mas também de sua variada composição
étnica. Mas vale agora voltar aos documentos a fim de continuar
apontando uma cronologia dos acontecimentos historicamente signi-
ficativos relativos à Barra Velha.
Conforme Diário Oficial de 5 de julho de 1925, tramitava proje-
to em Primeira Discussão tratando da conservação das terras do
“Rio Pardo” e seu afluente “Água Presta”, que se destinavam aos
“índios Tupinambás Patachós”. Afora esta notícia registrada em ar-
quivos da FUNAI, destaca-se também, na informação do índio Arauê
sobre a mudança da barra do Corumbau, uma referência à queda de

48 Na verdade, “nessa época não tratava como cacique, era guerreiro de bandeira (que andava na frente da trilha [triocá]), cacique veio pela

FUNAI, Luis Capitão é coisa depois dos brancos, comparando com os guardas brancos” do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal

(IBDF).

49 Diz-se também que Maria Correia (ou Caetano, em outra versão) teria sido morta(o) por esses índios uma vez que eles chegaram e o Cauim

não estava pronto

50 Acredito que a variedade de versões orais que sustentam o passado, episódios históricos ou até os mitos indígenas deve ser incentivada pelo

pesquisador como algo rico de sua historiografia. Mais importante do que a busca por uma verdade é a evocação interpretativa das versões que

constituem o passado e sua relação com os que o elaboram no presente. Esta perspectiva vai contra o que alguns educadores indígenas –

amparados muitas vezes por ONGs indigenistas – fazem ao estabelecer uma única versão (quase como uma história oficial) nos livros escolares,

canonizando assim um passado disputado interpretativamente num movimento próprio à história oral.
176 Ir para o sumário >>

um avião que depois levantou vôo de novo. Acredito tratar-se da es-


quadrilha que em 1939 sob o comando do almirante Gago Coutinho
realizou vôo a Porto Seguro, passando por Barra Velha, sobre a qual
informou que:

“Deixamos a aldeia de Barra Velha às primeiras


horas da madrugada. É desolador o aspecto de miséria
do povoado onde passamos a primeira noite... Temos
visto caboclos inteiramente abandonados. Caboclos
doentes e analfabetos. Na aldeia Barra Velha, encon-
tramos uma pequena população descendente dos Tu-
piniquins. Todo mundo é doente. Uns atacados pelo
impaludismo, outros pela verminose.” (Castro, 1940
apud Carvalho, 1977:84).

No mais, divulgava-se também que “os caboclos que são des-


cendentes dos Tupiniquins, são indolentes. Vivem da caça e rara-
mente atiram as suas redes ao mar, que dista quatro kilometros da
aldeia” (ibid.). Além disso, “uma pequena população de caboclos fu-
giu da aldeia de Barra Velha e se internou na mata, com medo dos
aviões... os caboclos, apavorados com o ronco dos motores abando-
naram os casebres e fugiram para o mato” (ibid.). Assim, supõe Car-
valho que:

“Até essa época Barra Velha parecia inteiramen-


te desconhecida e isolada do sistema mais amplo, não
vindo a público a sua existência nem quando da cria-
ção do Parque Nacional do Monte Pascoal, que uma
comissão encarregada pelo Presidente da República
resolveu instalar para ‘determinar o ponto exato de
descobrimento do Brasil (...). Essa Comissão, presidida
177 Ir para o sumário >>

pelo então ministro Benardino José de Souza estava,


na época da viagem de Gago Coutinho, em trabalhos
na área” (ibid.).

Mas, afora esta visita de Gago Coutinho aos índios, destaca-


mos, quanto a uma história da vila de Caraíva, segundo página des-
ta localidade na internet51, que “a exploração da madeira era a princi-
pal atividade até 1948, quando a explosão de uma caldeira destruiu
a serraria, Caraíva perdeu o bonde do progresso...”. O que parece,
de fato, é que entre Porto Seguro e Prado nenhuma localidade fica-
va em evidência na primeira metade deste século.

O Parque e a resistência Pataxó: terror e afirmação étnica

Assim, desde que aldeados os índios permaneceram em qua-


se total esquecimento por parte das autoridades, sendo silenciados
pela (na) história. Até 1951 os Pataxó quase não tinham contato com
o “branco”, a não ser com pescadores, alguns fazendeiros ou peque-
nos comerciantes com quem uns poucos deles trocavam mercadori-
as. Para os pescadores, fiavam o tucum e entregavam aos bolos
para estes fazerem suas redes. Já os comerciantes algumas vezes
recebiam produtos Pataxó em consignação e os fazendeiros empre-
gavam sazonalmente sua força de trabalho.
Pela memória dos índios, segundo Oliveira (1985), durante a
“guerra da Alemanha” apareciam soldados de vez em quando para
patrulhar a praia  e os mesmos teriam ido embora de vez logo
após a guerra. Os índios “lembram-se desse período também por-
que extraíam borracha do mucugê... Nesse período a aldeia gozou

51 www.caraiva.com.br
178 Ir para o sumário >>

de alguma prosperidade. Reformaram até a igreja, cujo telhado de


palha foi substituído por telhas” (Oliveira, 1985:13).
Ainda segundo Oliveira, “não muito tempo depois houve um
acontecimento que veio marcar o destino de Barra Velha” (ibid.).
Equipe chefiada pelo engenheiro Dr. Barros apareceu para demarcar
as terras da região e precisava de gente para transporte dos pesa-
dos equipamentos e mantimentos  e aí foram contratados também
os índios Chico Palha e Patrício. Mas foi Mané Suia quem deu a no-
tícia a Oliveira que

“no final do trabalho o Dr. Barros vinha explican-


do que ia ser criado um parque florestal naquela área e
que eles não deveriam mais derrubar árvores na mata.
Só deveriam fazer roças nas capoeiras, mas o melhor
mesmo seria procurar logo outras colocações, pois
todo mundo seria retirado de dentro do parque. Era o
governo que queria assim. Não poderiam mais fazer
derrubadas para as roças, nem tirar cipó ou embira,
nem piaçava e muito menos caçar. A floresta iria ficar
por conta dos bichos” (ibid.:14).

Essa notícia deixou os índios atônitos, sem saber o que fazer


diante daquela situação inconcebível, pois não entendiam o fato de
ter que abandonar as terras onde criaram os filhos e enterraram os
“antigos”. Foi nessa época que Honório  “capitão ainda sem paten-
te, pois nunca tinha tido contato com o governo”  decidiu ir ao Rio
de Janeiro resolver a questão do abandono de suas terras. Honório
conseguiu chegar ao SPI nessa cidade, onde garantiram que enviari-
am alguém a Barra Velha para estudar uma solução para o proble-
ma.
179 Ir para o sumário >>

Interessante notar que em documentação do SPI referente à


cópia do “processo referente aos índios da Aldeia Velha, Monte Pas-
coal”, narra-se a passagem em 1 de setembro de 1949 (e protocolos
subseqüentes) do “Capitão Onoro”, pedindo auxílio (“roupa para as
crianças e ferramentas”, além de “não deixar o pessoal da Índia to-
mar minhas terras”) “para os pobres chefes da Aldeia de Índio de
Belo Jardim Monte Pascoal”. Em janeiro de 1950, o agente do SPI,
Manoel Moreira de Araújo, assinava o seguinte documento:

“Snr. Inspetor: — Dando cumprimento ao vosso


despacho... informo-vos o seguinte: Há no lugar deno-
minado Aldeia Velha, em Monte Pascoal, Município de
Porto Seguro, Estado da Bahia, um pequeno grupo de
índios chefiados pelo ‘capitão’ Onoro, que se encontra
no Rio há vários meses com o objetivo de solicitar au-
xílio ao S.P.I.. torna-se difícil a assistência que o ‘capi-
tão’ Onoro solicitou... sobretudo pelas dificuldades de
transporte para Aldeia Velha, também conhecida como
Belo Jardim, onde estão aldeiados os índios. Fui so-
mente até Porto Seguro e de lá a um lugarejo chamado
Ajuda, visto não haver transporte para Aldeia Velha
que está situada a 14 léguas de Ajuda, sendo este per-
curso feito à cavalo e à pé, geralmente, dada a dificul-
dade que se encontra para alugar cavalo digo animais
e pagar a uma pessoa que ensine o caminho que ora é
pela praia e ora pela mata, não havendo estradas. Os
dados que colhi sobre os índios foram-me fornecidos
pelo vigário de Porto Seguro, Revmo. José Gonçalves
de Oliveira que anualmente vai à Caraíva, lugarejo si-
tuado a 15 quilômetros da Aldeia Velha, onde celebra
missa que as vezes é assistida pelo ‘capitão’ Onoro e
180 Ir para o sumário >>

alguns dos seus parentes. Informou-me o Padre... que


antes do índio Onoro viajar ao Rio, esteve com ele em
Caraíva tendo dito que ia pedir auxílio ao governo. Dis-
se-me também o referido vigário que as terras onde
estão os índios são devolutas e sem valor para agricul-
tura, vivendo os índios de pesca e caça. Seria conveni-
ente que o S.P.I. localizasse esses índios porque so-
mos de opinião que uma simples distribuição de teci-
dos e ferramentas não resolveria a situação dos mes-
mos...”.

Por fim, acaba em conclusão por sugerir a transferência des-


ses índios para o P.I. Caramuru — o que foi pensado inviável por de-
mais autoridades do SPI por “se tratar de cidadãos integrados na-
quela região litorânea da Bahia, com inclinações e hábitos perfeita-
mente definidos, e... por acarretar onus para o Serviço...”. Assim, ne-
nhuma assistência prática aos índios foi prestada na época, inclusive
porque em despacho do chefe da 4ª IR Raimundo Dantas Carneiro,
os fiscais Tubal Fialho Viana e Francisco Sampaio que poderiam
52
identificar a área indígena estavam ocupados em outras missões.
Por outro lado, além dos deslocamentos dos funcionários do
órgão Sílvio dos Santos e Manoel Moreira de Araújo, há também
uma carta de 23 de fevereiro de 1951 onde Diogo Galeão Noronha
(morador de Ponta da Areia — BA), se dirigindo ao General Rondon,
informa que conheceu em Teófilo Otoni (MG), “Honório Borges dos
Santos, Capitão da Aldeia Bom Jardim, Monte Paschoal, em Porto
Seguro, Estado da Bahia, declarando que tencionava avistar com o
Presidente da República” e pretendendo reivindicar para a aldeia um

52 Note-se que a aldeia é sempre chamada de Belo Jardim (e não Bom Jardim) e não há qualquer referência nem por parte do Honório nem pelo

SPI da etnia a que esses índios pertenciam.


181 Ir para o sumário >>

“posto para proteção... com posto médico, escola etc”; uma “identifi-
cação da linha, que existe pessoas invadindo essas terras”; “forneci-
mento de ferramentas agrícolas, roupas, sementes etc”; uma pessoa
para introduzi-los nos “novos costumes”; e, por fim, que fosse confia-
da àquela comarca a proteção dos índios que, tendo muita madeira
de lei, produção agrícola etc para se evitar exploração dos mesmos.
Assim, Noronha sugere que a “Aldeia necessita de urgência” de cria-
ção de um posto, construção de uma estrada de rodagem devido ao
isolamento e criação de um armazém geral. Por fim, Noronha pede
para ficar responsável pela chefia do Posto, seguindo vontade do
Capitão Honório.
Mas, quando estava na sede do SPI, Honório foi ludibriado
por dois homens que, se identificando como Tenente e Engenheiro,
afirmaram que resolveriam seus problemas e apareceram em Barra
Velha em 1951 e lideraram os índios em um saque a uma mercearia
de Prado e a um roubo de uma vaca em Caraíva, fazendo com que
as polícias militares de Prado e de Porto Seguro cruzassem, numa
madrugada, fogo cerrado na aldeia, fazendo com que os índios se
dispersassem pelas matas e fazendas da região.
Assim, como afirmou Carvalho (1977), só em 1951 chegou ao
conhecimento do público a sua existência, através dos noticiários
dos jornais devido a um conflito armado em que se viram envolvidos
os Pataxó, apontados no jornal A Tarde53 como pessoas em “lasti-
mável estado de miséria, todas passando fome e alguns doentes”,
que teriam sido insuflados por dois indivíduos, identificados como
“engenheiro” e “tenente”, que o “capitão Honório” conhecera no Rio
de Janeiro e que se deslocaram para a aldeia a fim de realizar a me-

53 A “revolta dos caboclos de Porto Seguro”, segundo o jornal A Tarde de 30 de maio de 1951.
182 Ir para o sumário >>

dição de suas terras. Esses dois indivíduos “se apresentavam com


falsa identidade e eram supostamente ligados ao Partido
Comunista”. Sua motivação, segundo Carvalho,

“ainda hoje ainda não está esclarecida. Tratar-


se-ia de simples aventureiros arriscando-se à deflagra-
ção de um plano com objetivos de exploração econô-
mica, ou, ao contrário, seria um movimento de caráter
social de tendência radical, agindo junto a populações
rurais? Em apoio a essa última hipótese há o depoi-
mento de Honório Borges que afirma ter o ‘engenheiro’
distribuído entre os índios peças de fazenda existentes
na casa assaltada em Corumbau, de propriedade de
Teodomiro Rodrigues. Além disso, o fato de terem sido
cortados os fios da linha telegráfica, leva-nos à suposi-
ção de que não se trataria de um simples assalto, se-
guido da fuga dos líderes, mais de uma ação de maior
alcance” (ibid.:87).

Mas, esmiuçando a memória dos índios quanto ao episódio,


somos informados que, no SPI, Honório ficou conhecendo dois indi-
víduos que afirmaram que logo estariam na aldeia  o que, de fato,
ocorreu no prazo previsto com a chegada a pé pela praia desde Por-
to Seguro destes dois homens se identificando um como “engenhei-
ro” e outro como “tenente”. Os dois disseram que não queriam ver
ninguém com fome e logo na tarde do dia seguinte já haviam matado
um boi de uma moradora de Caraíva. Os dois disseram também que
eles eram “os primeiros brasileiros” e que tinham que demarcar suas
terras porque eles eram os donos e ninguém podia tomar deles. Por
fim, o “engenheiro perguntou onde ficava o comerciante mais próxi-
183 Ir para o sumário >>

mo. E a resposta foi bem rápida  No Corumbau. O Teodomiro Sou-


za, dono da serraria, tinha uma casa de comércio também” (Oliveira,
1985:18).
No dia seguinte partiram os dois e mais um grupo de uns qua-
renta índios. Os dois trocaram tiros com Teodomiro, ferindo-o. De-
pois de amarrado, Teodomiro e a mulher iam sendo levados, junto
com o saque, para Barra Velha sob guarda de Manoel Graciano e o
menino Rufino (Tururim, hoje o mais conhecido líder Pataxó). Mano-
el, acostumado a cortar madeira para Teodomiro, e Tururim, discor-
dando de tudo aquilo, acabaram por soltar o Teodomiro  que anda-
va com muita dificuldade  e a esposa. Logo depois depararam com
os fios telegráficos cortados. Na aldeia, os índios se reuniram numa
casa grande para onde fora levado as mercadorias do saque  “fer-
ramentas, conservas, cobertores, chapéus e até sombrinhas”
(ibid.:19). Uns índios começaram a discutir sobre o que ocorrera, re-
voltados com o rumo das coisas e outros acharam que era aquilo
mesmo, que deveriam continuar cumprindo as ordens do governo.
Montaram sentinela, cortaram novamente os fios telegráficos que já
haviam sido consertados. Mataram uma vaca de outro morador de
Caraíva.
Na terceira noite, com “a igreja apinhada de gente dormindo
no chão”, ouviu-se um barulhão do fogo dos fuzis que atiravam con-
tra a aldeia e também entre si — pois a polícia de Prado chegou
atrasada e a de Porto Seguro, pensando se tratar de resistência dos
índios, atirou também contra aqueles policiais e depois até recuaram
até Caraíva. Os índios assim fugiram correndo pelo meio do mato
sob muita chuva (Ibid).
184 Ir para o sumário >>

Ao raiar do dia seguinte, começou a busca dos índios acua-


dos na mata: “os índios presos iam sendo amarrados com as mãos
para trás. Depois eram presos uns nos outros, feito caranguejos, e
trazidos para a aldeia” (ibid.). Vitorino Batista da Cruz, um morador
de Caraíva, ateou fogo nas casas, esperando assim que os índios
não voltassem mais para a aldeia, que foi totalmente saqueada (até
o grande sino da igreja), teve sua casa de farinha destruída e o forno
quebrado etc.
Em Caraíva, os índios presos foram levados para o Sobradi-
nho, uma antiga fazenda na beira do rio, onde apanharam muito, fo-
ram alvo de brincadeiras estúpidas, as moças mais bonitas ganha-
vam sabonete para se banharem e depois “era feito de tudo com
elas” e depois ainda humilhavam os homens. “Uma índia muito boni-
ta, chamada Luciana, prima do Manoel Santana, sofreu na mão de
todos. Essa índia até hoje não teve coragem de voltar a Barra Velha.
Mora em Comuruxatiba. É a única que ainda sabe alguma coisa da
língua pataxó” (ibid.:25).
Na mata, os índios dispersaram-se ao máximo (mantinham
reunidos apenas o pessoal da família) para que um maior número
escapasse das diversas patrulhas que se formaram. O “engenheiro”
e o “tenente” foram mortos a tiros na fazenda de Vicente André, no
córrego do Pindoba. Tururim e seu pai “quase foram maltratados por
um preto que ajudava a polícia” quando se refugiavam numa fazen-
da, mas apareceu um major dizendo que havia chegado ordem de
Salvador para soltar todos os índios, pois os dois culpados por tudo
já haviam sido mortos e que eles não tinham culpa. “A ordem dizia
também que os índios deveriam ser levados para as fazendas. Cada
185 Ir para o sumário >>

fazendeiro po-deria levar quantos índios quisesse” (ibid.:27). Tururim


e seu pai foram para Prado procurar seus parentes que estavam lá.
Josefa Ferreira, que se agüentou com as crianças no Campo
do Boi durante toda a semana, resolveu voltar para a aldeia, pois
não continuaria fugindo. Na volta Josefa ainda chegou a avistar
aquele Vitorino que havia botado fogo na aldeia com dois animais
carregando mandioca e banana da sua roça. Ao chegar na aldeia,
encontrou o “delegado de Caraíva Orelino Gomes” que queria lhe
dar uma surra, tendo sido dissuadido por um soldado que lembrou
que eles não tinham mais ordem para “pegar índios”. No lugar de
sua casa, “Josefa encontrou só cinzas e chorou por si e pelo seu
povo”. (ibid,)
Em sua residência em 1995, Josefa (e outras pessoas pre-
sentes) me afirmou que até essa época os índios não tinham contato
com o “branco”, que quando aparecia algum ficavam escondidas es-
piando sua aproximação, quando corriam para dentro do mato. Foi
Honório que levou o contato com o “branco” depois dessa sua via-
gem ao SPI. Assim, os índios teriam sido enganados pelos dois ho-
mens devido à sua “inexperiência”. Depois de todos terem corrido no
“fogo”, foi Epifânio Ferreira que “segurou a peteca de juntar os índios
de volta”.
54
Certo é que muitos índios estavam fora de Barra Velha , tra-
balhando em sua maioria “nas fazendas de cacau das redondezas,
costume já arraigado entre eles. Quando precisavam arranjar algum
dinheiro partiam para as fazendas. Isso coincidia com os períodos
que não tinham serviços em suas roças, enquanto esperavam a co-
54 E na verdade a notícia do fogo espalhou-se na região de forma tão desencontrada que muitos “falavam de revolução e houve muita gente que

mesmo não sendo índio tratou de esconder-se, levando pertences e animais. Ninguém queria ficar nas proximidades das estradas.” (Oliveira,

1985:31).
186 Ir para o sumário >>

lheita.” (Oliveira, 1985:31). Assim “Barra Velha ficou vazia. O mato


crescia no meio da rua e no lugar das casas. As roças foram destruí-
das, ou melhor, colhidas pelo pessoal de Caraíva” (ibid.:33). Os índi-
os espalhados pelas fazendas e o Cacique Honório, que foi levado
preso para Salvador e depois ainda tentou alguma ajuda no Rio de
Janeiro, quando voltou informaram a ele que os índios considera-
vam-no culpado por tudo e ele resolveu assim ir morar em Canaviei-
ra, onde morreu.
Josefa foi encontrar com o pai Epifânio numa fazenda de Ita-
bela na lida de cacau e do café (também tiravam casca de braúna
para fazer mangas) e lá, inconformados com a situação, vendo seu
povo espalhado, resolveram juntar novamente os índios e voltaram
para Barra Velha, onde dormiram na igreja por ser a única constru-
ção que restara.
A partir daí, “Epifânio começou a andar pelas fazendas da re-
gião procurando os índios e chamando-os para voltar. A maioria
queria voltar, mas estavam ainda com medo. Outros queriam espe-
rar a safra e ver se apuravam algum saldo. Mas havia também aque-
les que já possuíam um pedacinho de terra onde estavam se arran-
jando” (ibid.:34). Nos dois anos seguintes, muita gente já havia volta-
do. “Epifânio ficou sendo o Cacique. Tornaram a plantar roças e as
criações de porcos estavam aumentando novamente” (ibid.:35). Nes-
sa época houve uma grande seca que provocou um grande incêndio
55
na mata. “A essa altura, o Parque Florestal de Monte Pascoal já
havia sido criado pelo IBDF, e vieram muitos guardas para cercar o

55 O Parque, com localização 16º 45’ e 16º 55’ / 39º 08’ e 39º 30’, foi criado pelo Decreto 242 de 29 de novembro de 1961, quando começou a

indenizar as pessoas que moravam na área (22.500) entre o Corumbau e o Caraíva.


187 Ir para o sumário >>

fogo. Os índios também foram chamados para ajudar a apagar o


fogo” (ibid.).
Assim, segundo Oliveira,

“Barra Velha quase voltou à normalidade nos


sete anos seguintes. A diferença era a falta de muitos
que ainda temiam voltar, o que acontece até hoje. Ou-
tra diferença marcante era que o pessoal havia se mis-
turado muito, formando um grande contingente de
mestiços. Muitas mulheres haviam voltado com seus
maridos negros e mulatos, e vice-versa.” (ibid.).

Já no “começo dos anos sessenta, chegou o tenente Miraval-


do Siguara indenizando os moradores da área, para que desocupas-
sem o Parque. Só indenizavam as plantações de coco, banana,
cana, cacau e café” (ibid.). Mas “Epifânio foi a Brasília e foi orientado
para que não recebessem as indenizações para não perderem seus
direitos.” (ibid.), mas, “recebendo ou não, acabou saindo todo mundo
da área. Os índios tiveram que se espalhar novamente56 e Barra Ve-
lha voltou a ficar deserta” (ibid.:36)
Foi, segundo Oliveira, Alfredo Braz, que estava morando na
beira do rio Porto Seguro quem, em 1962, primeiro voltou com a fa-
mília (mulher e três filhas) para Barra Velha, aonde se sustentavam
do mangue. “Logo depois chegou o Epifânio com a Josefa e os filhos
vinham da Embiriba. Ficaram morando na praia. Mais gente foi che-
gando, como o Manoel Santana... Levínio também...” (ibid.:43). Essa
informação de Oliveira é negada pelos índios, em especial por Arauê
56 “Tinha índio em Itaquena, em Trancoso, em Porto Seguro, no rio dos Frades, no Come quem Leva, na Água Branca e no Só Não Vou.

Muitos foram para cidades mais distantes como Canavieira, Itabuna, Ilhéus e mesmo para Vitória e Linhares, no Espírito Santo” (Oliveira,

1985:36).
188 Ir para o sumário >>

e sua mulher Penina, que é uma das três filhas do finado Alfredo
Braz e também negada pelo irmão deste Álvaro Braz. Todos dizem
que o livro de Oliveira contém vários erros e que, nesse caso, a in-
formação correta é a de que novamente a família Ferreira foi que es-
teve na vanguarda da reconstrução da aldeia através de Epifânio e
seus filhos Josefa e Luis Capitão.
Nesse tempo começou a aparecer pessoas do Pongo e do rio
Preto que vendiam farinha, beiju e também banana e batata. Os índi-
os iam todos “para o mangue buscar o dinheiro do pagamento: ca-
ranguejos e siris” (ibid.). Josefa queria “botar uma roça”, mas “os
guardas do IBDF estavam sempre de olho, sempre prontos a cair em
cima deles” (ibid.:44) e os homens estavam com medo. A “viração”
deles “foi apanhar piaçava. Mas tinham que trabalhar de noite para
não serem surpreendidos pelos guardas. Era durante a noite tam-
bém que iam vendê-la em Caraíva. Batiam devagarinho na porta do
comerciante para não acordar os vizinhos.” (ibid.). Assim, “viviam
como ladrões, roubando as suas próprias terras” (ibid.:45) e ainda se
sentindo espreitados pelas inúmeras onças que abundavam naquela
época.
Segundo Tururim, “quando existiu esse problema do IBDF,
saiu todo mundo andando pelas fazendas dos outros. Aí nós volta-
mos, tinha um velho chamado Epifânio, era um índio velho. Então ti-
nha um velho chamado Heuretiano Braz, morava em Caraíva, era
um inspetor de Caraíva, feito uma autoridade, então ele conhecia as
leis do índio todinha, aquele livro grande, contava as histórias do Pa-
taxó, o dia de quando Cabral chegou...”. Tururim continua conver-
sando e explicando que “aí que se começou as crianças a aprender
o idioma do civilizado” e perder o idioma deles, mas que o trato com
189 Ir para o sumário >>

o “branco” só começou mesmo a ser conhecido com o fogo e com os


problemas com o IBDF, quando Heuretiano parece ter sido de gran-
de ajuda, pois segundo Tururim esse homem57 foi também “falou
com o velho Epifânio que era o cacique velho: — ô Epifânio, vocês
tão todos na mão, falta vocês se unir e procurar seus direitos, chegar
em Brasília e encontre seus direitos, só que vocês têm que andar
muito...”. E Epifânio de fato seguiu para Brasília e conseguiu do Pre-
sidente João Goulart, segundo Tururim, autorização verbal para co-
locar roças nas capoeiras e que preservassem a mata virgem. Mas
os guardas continuariam “aborrecendo a gente” até a entrada em
cena de Francisco Sampaio do SPI.
Com a morte de Epifânio, seu filho Luís ficou de cacique. A
irmã Josefa o achava muito ligado aos guardas e não gostava daqui-
58
lo  inclusive os afrontou uma vez colocando uma roça de mandio-
ca, logo derrubada. Ela disse que plantaria novamente e o fez, sen-
do novamente descoberta pelos guardas. Pouco tempo depois, Al-
fredo reuniu uns quinze homens e resolveram botar roça no peito,
embora o tenente Siguara sempre afirmasse que eles nunca conse-
guiriam o direito de permanecer na área. Foi aí que, no tempo do

57 Arauê também afirma que Heuretiano Braz Gonzaga (de Caraíva, escrivão, juiz de menor) era quem fazia as guias de viagem para o velho

Epifânio poder viajar, que eles não tinham registro.

58 Segundo seu filho José, que já foi cacique várias vezes, quando o Epifânio morreu, os guardas teriam dito: “agora tá fácil da gente tomar a

terra dos índios porque quem lutava pela terra morreu, agora ficou uns bestas que num sabe de nada; quando a minha mãe escutou a palavra. Ela

escutou e disse: não, morreu o velho, mas ficou eu pra resolver. E essa véia enfrentou uma parada dura, uma barreira forte pela frente e que

lutou, lutou, lutou com a maioria dos índios e eu que tava pequeno... mas acompanhei a luta dela do início ao fim. E por aí, da luta dela, ela

graças a Deus, Deus deu poder e deu força pra ela agir a parada dela, a batalha. Por que? Por que ela lutou e ela tava em riba do dela, do direito

dela, e era dela a terra. Agora, o cara queria botar o dono pra fora e tomar conta do que não era dele. Então ela lutou com os índios junto, lutando

mais ela e querendo o que era direito deles, e até lutou e tomou uma parte da terra. É essa terra que nós tamo”.
190 Ir para o sumário >>

Presidente João Goulart, resolveram ir a Brasília59 o cacique Luís e o


Alfredo  viagem esta que foi uma verdadeira odisséia.
Em decorrência, “pouco tempo depois, foi enviado a Barra Ve-
lha um funcionário do SPI chamado Francisco Sampaio. Trouxe mui-
tas ferramentas e disse que os índios poderiam trabalhar em suas
roças. Conversou também com o chefe dos guardas e avisou-lhes
que não molestasse mais os índios, porque a questão estava sendo
tratada a alto nível com o IBDF” (ibid.:63).
Mas vale destacar também informações extraídas de docu-
mentos do SPI. Primeiramente, em agosto de 1963 Francisco Sam-
paio envia telegrama ao diretor do PNMP, apelando para o “espírito
de justiça” deste no sentido de permitir que os índios continuassem
cultivando a terra necessária para sua subsistência. Em comunica-
ção interna do SPI de setembro do mesmo ano, Francisco Sampaio
apresenta as seguintes sugestões:

“Apreciando o apelo do Sr. Heuretiano Braz,


Sub-Delegado do Distrito de Caraíva, em Porto Segu-
ro, em favor de um grupo de 150 remanescentes da tri-
60
bo Pataxós , que habitam na região de Porto Seguro,
entregues a sua própria sorte, apresento-vos algumas
sugestões como ponto de partida, para atendimento
aos citados índios, dentro das possibilidades da nossa
Inspetora. 1. Como inicial providência sugeria, assim
que nos fossem distri-buídos recursos, a ida de um
funcionário do S.P.I. àquele local, para conhecer in-
loco a verdadeira situação dos índios, no que tange às

59 As viagens para contatos com o SPI tornaram-se constantes: só o Luís esteve oito vezes em Brasília, quatro em Recife (porque a região deles

pertencia àquela Inspetoria) e duas no Rio de Janeiro.

60 Parece ser a primeira vez que o etnônimo do grupo de índios da Barra Velha aparece documentado.
191 Ir para o sumário >>

terras que se encontram em poder dos mesmos e se


satisfazem as suas necessidades. 2. Denominação do
local, atividades que exercem para se manter, número
de habitantes... meios de transportes e auxílio que ne-
cessitam para o trabalho”.

Já em maio de 1964, Francisco Sampaio relata a um Diretor


do SPI (já informado pelo prefeito de Porto Seguro que os índios “es-
tavam sendo hostilizados por funcionários do Parque Nacional”) sua
viagem (iniciada em fins de março) à aldeia dos índios, informando
que:

“... interrompi minha viagem na cidade de Salva-


dor, a fim de ter entendimentos com o Dr. Aurélio Cos-
ta, Chefe da 4ª Inspetoria do Serviço Florestal da
Bahia, ao qual está subordinado o parque Nacional,
cujas terras foram pelo Governo do Estado da Bahia,
doadas ao Governo Federal para preservação da Flora
e Fauna... Conversei com o Dr. Aurélio a respeito da
denúncia que tinha, de que os índios se encontravam
perseguidos e privados de trabalhar nas terras em que
nasceram, pelos funcionários do Parque... Após me
ouvir... escreveu um cartão... dirigido ao Sr. Miravaldo
de Jesus Siguara, Chefe Provisório do Parque Nacio-
nal, autorizando-o a que combinássemos uma fórmula
que permitisse aos índios o direito de trabalhar no culti-
vo das terras... Porto Seguro... avistar com prefeito lo-
cal... Da vila de Caraíva... segui em companhia do Sr.
Heuretiano Braz, para a aldeia Bom Jesus, localizada a
2 quilômetros do rio Corumbau e a uns 600 metros em
direção do oceano. A aldeia na atualidade está reduzi-
da a 2 casas e uma igrejinha caiada de branco. O resto
192 Ir para o sumário >>

da população indígena vive esparsa. Não obs-tante,


sabendo da minha visita, reuniu-se naquele local gran-
de número de índios, que apresentaram as suas quei-
xas de estarem privados de trabalhar e de sofrerem
outros aborrecimentos por parte dos guardas florestais,
que os impedem de viver agrupados como desejam...
Infelizmente não encontrei o Sr. Miravaldo... que havia
viajado para Caravelas... Fiz um rápido recenseamento
dos índios, apurando existir 46 casais com 162 filhos e
14 homens solteiros, perfazendo o total de 266 pesso-
as... Retornando a Porto Seguro, comprei ferramentas,
extintores de formigas, inseticidas, anzóis, cobertores,
tecidos e medicamentos, que enviei ao Sr. Heuretiano
Braz, para distribuir com os índios... Em vista de não
ter encontrado o Chefe Provisório do Parque, fiz na vi-
agem de regresso nova interrupção em Salvador, para
participar ao Dr. Aurélio Costa o ocorrido e solicitar
providências, para assegurar aos índios o direito de
trabalhar e de permanecer nas terras de seus ances-
trais. Sugeri então, ao Sr. Aurélio, que fosse pelo me-
nos reservado para os índios, um quadrilátero de 900
hectares, assim deli-mitados: por uma linha de 3 quilô-
metros subindo da foz pelo rio Corumbau, por outra de
igual tamanho em sentido perpendicular com ângulo de
90 graus e finalmente pela terceira linha também de 3
quilômetros, paralela à primeira, descendo até a mar-
gem do oceano, daria os hectares pretendidos para
agasalhar os índios nos locais em que presentemente
se encontram a maioria deles e futuramente dos que
estão fora dessa área... O Dr. Aurélio, prometeu estu-
dar o assunto...”.
193 Ir para o sumário >>

Em outubro de 1964, destaca-se um telegrama no qual se in-


forma que “índios sendo escarreirados guarda florestal tentando ma-
tar tiro” e pede-se “providência urgente”, inclusive para um contato
da Diretoria do SPI com o diretor do Serviço Florestal “a fim de trazer
sossego e liberdade aos índios trabalharem dentro terras nasceram
e nunca abandonaram apesar dessa injusta criação Parque Nacional
que absorveu terras livremente habitavam”. Em dezembro desse
ano, outro telegrama informa ser impossível demarcação das terras
por causa do Parque.
Mas, voltando à memória dos índios através de Oliveira, “de-
pois disso os guardas amansaram um pouco. O tenente apareceu
um dia e demarcou um retângulo perto da aldeia. De terra aproveitá-
vel dava uns 500 metros de fundo, por 1 km, de comprimento. Deu
para desafogar um pouco, comparando-se à situação anterior”
(ibid.). Além disso, o SPI sempre enviava ferramentas de Recife 
apesar de muitas vezes desviadas em Caraíva pelo Oretinho que
trabalhava na serraria do Moura e ficou encarregado da área e foi
despedido por isso.
Cinco anos depois foi enviado o primeiro chefe de Posto para
a área Pataxó. Rogério Dias, que ficou morando em Porto Seguro,
era “funcionário do IBDF requisitado pela primeira gestão da FUNAI,
que pretendia colocar os próprios índios como guardas. Ele seria o
diretor do Parque Indígena. Com a mudança da direção da FUNAI,
as medidas passaram a favorecer o IBDF e Rogério foi rebaixado de
função e posteriormente demitido” (ibid.:63 - rodapé).
Mas os problemas na área persistiam, pois o “retângulo de-
marcado anos atrás já não dava para as roças. A primeira pessoa a
avançar o limite foi novamente a índia Josefa. Foi trabalhar perto do
194 Ir para o sumário >>

lugar chamado Céu. O novo chefe também havia trazido ferramentas


e disse que ainda não estava autorizado a mandá-los avançar na
mata, mas esperava que as ferramentas não ficassem debaixo das
camas” (ibid.:63). Mas a tensão continuava grande com os guardas
destruindo todas as roças além do limite e, segundo Adalton, atiran-
do naqueles que se aventuravam a pegar piaçava escondidos no
meio da noite.
Rogério, então, “recomendou-lhes que fizessem um campo de
pouso, para que pudesse aparecer alguma autoridade da FUNAI na
área e tomar conhecimento da situação. Recomendou-lhes que fi-
zessem o campo na surdina” (ibid.:64). Mas quando “os guardas
souberam da construção do campo, quiseram embargar o serviço. O
IBDF já havia conseguido um documento que provava a não existên-
cia de índios na área. Isso no tempo da presidência Bandeira de Me-
lo. Esse documento era assinado por uma comissão incumbida de
investigar a existência ou não de índios na área” (ibid.). Essa comis-
são, segundo Oliveira, “permaneceu vários dias em Porto Seguro,
gozando as delícias das praias e nem sequer esteve em Barra Ve-
lha” (ibid.).
Já Luis Ferreira fala que no campo de aviação, os homens
trabalhavam e as mulheres tiravam caranguejo, homens levavam e
61
voltavam com beiju e abóbora . O primeiro chefe de posto Rogério
— chamado de representante (ou capitão) — estaria “roubando os
índios” e foi denunciado em Brasília pelo Luis, que afirma ter conse-

61 Um homem que conheci no ônibus entre Ajuda e Trancoso me disse que foi caminhoneiro de profissão, mas que se mudou para trabalhar na

região em 1965 onde acabou por se tornar dono de serraria. Segundo ele, naquela época “os índios de Barra Velha vinham a Porto Seguro ou de

canoa ou à pé puxando animais com farinha ou abóbora para vender. Era comum as abóboras ficarem estragando. Às vezes deixavam na mão de

comerciantes para esses venderem”. Os índios confirmam essa história, e acrescentam que deixaram de fazer isso porque não tinham retorno

nenhum: deixavam as abóboras até em Porto Seguro e quando iam pegar o dinheiro, as encontravam apodrecendo e nada de dinheiro.
195 Ir para o sumário >>

guido, “rodando por Salvador, Rio e Brasília, os direitos da aldeia de


novo”. Maria, esposa de Luis, confirma que fizeram o campo de avia-
ção “com fome, comendo mandioca assada, comendo banana verde
assada, caranguejo com banana verde e as mulher iam pra o man-
gue e os homem ia pro campo com a enxada, o machado, a pá ca-
var a raiz de pau, pra cortar e aterrar de novo pra fazer esse campo.
Esse campo ia melhorar muito e não melhorou foi nada, melhorou
nada, porque não vem nada pra gente”.
Nessa ocasião, o índio Firmo, que estava morando do outro
lado de Caraíva, tinha ido morar em Barra Velha e, numa reunião
lembrou que eles eram os verdadeiros donos da terra e assim resol-
veram fazer uma roça bem grande para futura divisão do terreno.
Apareceu um dia o tenente Miravaldo acompanhado de cinco guar-
das reclamando a derrubada do mato, mas foi expulso da Barra Ve-
lha por Firmo. E continua-ram e Josefa mais uma vez ampliou os li-
62
mites da ocupação .
Oliveira também informa que o Rogério apareceu na aldeia
63
uma noite, vindo de barco e “acompanhado de um tal doutor Buti ”
(ibid.:67). Fizeram uma reunião para apresentação de uma proposta
para a desocupação da área pelos índios que se mudariam para o
outro lado do Caraíva, pois o “governador do estado havia doado
uma área de 15 mil hectares que iam até Limoeiro” (ibid.). Com tan-
62 Josefa diz que “essa aldeia acabou duas vezes: a primeira vez foi a do fogo, do Honório; a segunda vez foi a do Parque. Ninguém podia

trabalhar. Eu não saí porque era daqui, meus pais também, os avós também”. Os pais sempre pediram muito para ela não largar a aldeia e nem

os índios. Se agora tem muita gente na aldeia, houve época em que só tinha ela, seu irmão Luis Ferreira e seu pai Epifânio, que juntaram todo

mundo de novo. O Céu já era do pai dela, ela foi morar lá a pedido do pai. Já Arauê diz que foram quatro os “fundadores disso aqui”: o avô dele,

avô do Tururim, avô do Luis e avô do Patrício. “Quatro irmãos que segurou essa área de terra”. O avô dele morava em São João de Mina (onde

ele nasceu), “aqui quem morava era o finado Epifânio. São João de Mina era um povoado que morava umas oito famílias — tudo índio, era a

mesma aldeia, a mesma coisa”.

63 Hélio Jorge Bucker.


196 Ir para o sumário >>

tas garantias (embora soubessem os índios que grande parte das


terras era de puro areião) os índios já iam aceitando, quando Josefa
se intrometeu chorando na reunião dos homens afirmando que ela
não sairia de lá, no que foi logo apoiada por Firmo. No final, todos fi-
caram irredutí-veis afirmando que não trocariam o lugar onde esta-
vam enterrados seus antepassados, apesar das várias tentativas do
tenente Miravaldo oferecendo inclusive para eles trabalharem do ou-
tro lado do Caraíva mas continuarem morando em Barra Velha e
também de outras tentativas de transferência dos índios para Santa
Cruz Cabrália e para Maman-guape — Baía da Traição, na Paraíba.
“Essa última tentativa foi su-gerida pelo então chefe da Divisão de
Estudos e Pesquisas da FUNAI, Dr. Paulo M. da Silva” (ibid.:68).
Um dia, “chegou uma notícia em Barra Velha que causou
grande alvoroço. Ia ser inaugurado o prédio de uma escola de Monte
Pascoal e a notícia dizia que os índios ganhariam muita carne se
fossem dançar na festa. Todo mundo queria ir. A velha Josefa até
arranjou um jegue emprestado para trazer carne de volta” (ibid.). No
entanto, tal convite era “mentiroso”, pois ninguém os esperava nem
tampouco havia carne para eles. Tururim, que era o cacique na épo-
ca, mal conseguiu um pedacinho de carne na feira, e os índios tive-
ram que sair pedindo “até pelas casas de raparigas” até que foram
procurar o prefeito, quando “Josefa falou-lhe que estavam passando
aquela vergonha ali na cidade porque não tinham direito de trabalhar
em suas terras... O pessoal da cidade estava dizendo que eles devi-
am trabalhar e não andar pedindo” (ibid.:69).
Arauê, por seu turno, afirma (com apoio de Penina, Adalton
etc) que Oliveira mais uma vez está equivocado, pois a “primeira re-
197 Ir para o sumário >>

presentação” teria sido “muito antes disso”, há trinta anos64, quando


ele acompanhava sua tia Vicentina. Essa primeira representação te-
ria sido no Monte Pascoal (posto velho do IBDF perto da atual guari-
ta do IBAMA). Nessa época, a “mata ficava encostada aqui na aldeia
que só tinha quatro casas: Luis Ferreira, Estefânia (tia), Manoel San-
tana, velho Cassiano, Josefa, velho Julio”. Quem representava suas
lutas “para encaminhar era Maria Coruja, tia Vicentina — na frente
—, Luis Ferreira, Tururim era o língua, ele mais Vicentina. Os enca-
minhamento era daqui para Porto Seguro”. A “segunda representa-
ção foi quando começaram a enxergar o índio Pataxó”. A represen-
tação no passado era só o Auê. Luis Ferreira lembra bem de repre-
sentação em Porto Seguro por volta de 1970, “que o prefeito seu
Manoel mandava chamar nós quando tava para chegar assim a épo-
ca de 21 de abril, 22 de abril, que vinha gente de Portugal, aí ele
mandava chamar, ele mandava avisar eu, que era para levar os índi-
os, tudo em forma de índio; aí eu prevenia eles tudo de tanga, arco,
cocar e nós ia, às vezes ia juntar cem, cento e tantos índios, nós ia
para lá; lá eles davam a feira para nós comer durante o dia que nós
tivesse lá, cinco ou seis dias ele dava o alimento pra gente”. Lem-
bram também que “depois da representação que a gente fazia, ago-
ra de noite a gente ainda pedia licença da autoridade do lugar se po-
dia dançar: — ‘pode dançar’. Aí nós ia fazer a dança, eles gostava
muito, ficava muito satisfeito, agradecia a nós e davam um kaiam-
65
bá pra gente, pra ajudar o índio a comprar alguma coisa”.
Enfim, se essas são passagens trágicas da vida dos Pataxó,
que só na década de 1970 tiveram por fim parte de suas terras reco-
64 Isso em fevereiro de 1996. Sabe bem disso, porque nessa primeira representação ele tinha doze anos e no dia da entrevista estava com

quarenta e dois.

65 Dinheiro, no dialeto Pataxó.


198 Ir para o sumário >>

nhecidas oficialmente (mas homologada em 1981), são por outro


lado importantíssimas por comporem o processo conflituoso de sua
afirmação indígena – isto é, processo que os trouxe à visibilidade e à
negação de um pensamento ambientalista que exclui os seres hu-
manos tradicionais de seu habitat tradicional em nome de um preser-
vacionismo estanque.
Segundo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos
Renováveis (IBAMA), a idéia do PNMP é a de um “parque educativo,
recreativo e para visitação, não para exploração66”. Trata-se de uma
reserva ambiental visitada quase que unicamente de dezembro a
março e um pouco em junho e julho, ou seja, no período de férias,
por muitos turistas (raros os estrangeiros) pelo seu referencial histó-
rico e pela própria visualização do Monte Pascoal, lugar que marca,
67
no imaginário nacional, o Descobrimento do Brasil . Esse já é um
fluxo colonial que não pretende se acionar pelo desenvolvimento
econômico da floresta ou de unidades de produção individuais, mas
pela imposição de uma área de não utilização econômica, mas pen-
sada como símbolo de nacionalidade. É então um fluxo que descarta

66 Depois de reunião do Conselho de Caciques Pataxó realizada entre os dias 16 e 18 de agosto de 1999, os Pataxó ocuparam no dia 19 do

mesmo mês o PNMP que, segundo tais lideranças, está dentro dos limites de sua terra. O discurso apresentado em carta às autoridades

brasileiras foi o de uma “retomada” do seu território que a partir de então deveria passar a ser visto como Parque Indígena. Com isto, as aldeias

que rodeiam o Parque (Boca da Mata, Meio da Mata, Barra Velha, Águas Belas e Corumbauzinho) seriam integradas numa nova terra indígena,

que passaria por um re-estudo. Os Pataxó dizem ainda que não são “destruidores da floresta” e que preservariam e recuperariam o Parque da

situação que o governo, através do IBDF e depois IBAMA, deixou suas terras. Atualmente, não apenas o Parque continua ocupado, como

também há várias outras retomadas de terras tradicionais Pataxó entre os municípios de Prado, Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália.

67 Das entrevistas com os visitantes do Parque, destaco a “importância histórica” como o principal motivo (quase exclusivo) da visitação —

embora houve quem dissesse que estava visitando o Parque “sem nenhum motivo especial”. Quanto ao que pensam dos índios vendendo

artesanato nesse lugar de importância histórica, poucos quiseram falar alguma coisa, limitando-se geralmente a dizer que não podem emitir

opinião sobre o assunto.


199 Ir para o sumário >>

a população nativa, impondo a preponderância da nação com pre-


servação ambiental daquele espaço semântico do Descobrimento.
Mas Parques Nacionais, segundo MacCannell (1992), surgem
também no compasso da destruição da natureza, tornando a nature-
za museumizada; é uma lembrança do que a natureza seria se ainda
existisse, é uma celebração da natureza que acaba por afirmar o po-
der da civilização industrial que ao restringir natureza autêntica ou
histórica aos parques se dá ao direito de destruir tudo que não está
protegido pelo Decreto do Parque. Cria-se a ideologia da natureza
re-creacional, que é contrapartida do avanço do desenvolvimento
econômico na região68.
Em suma, este difícil momento (das primeiras sete décadas
do século XX) se revela importante e positivo na medida em que os
índios, apesar de todas as dificuldades, optaram por dar continuida-
de à sua indianidade ao invés de se integrar totalmente ao desenvol-
vimento regional. E foi a partir dessa escolha de permanecer índio e
na luta para conseguir isso no âmbito desse fluxo colonial que surgiu
a necessidade de criar um regime de índio (Grünewald, 2001) para
fomento da etnicidade e representação de expressões de indianida-
de nas amplas arenas políticas, sociais, econômicas e culturais que
se estabeleceram depois de seu reconhecimento étnico na década
de 1970 e que coincidiu com o início do desenvolvimento econômico
e cultural do litoral do Extremo Sul da Bahia pautado no turismo.

O Turismo, o regime de índio e as retomadas atuais: bus-


ca da sustentabilidade?
68 Seguindo essa perspectiva, é criado também em 1999 o Parque Nacional do Descobrimento (PND), sediado no município de Prado e

dedicado à preservação ambiental. Este Parque também procura atualmente expulsar de seu interior residentes Pataxó.
200 Ir para o sumário >>

O começo dos anos 70 marca o início de outro fator muito im-


portante para os Pataxó: a inauguração do artesanato indígena. De
fato, a vida continuava difícil para os índios nessa época, quando o
segundo chefe de posto em Barra Velha, Leonardo Machado, apre-
sentou-lhes o artesanato, principalmente o colar. Josefa lembra bem
que

“Naquele tempo, tava ‘naquela’, eu mesmo não


sabia fazer os colares, só sabia trabalhar na roça... Aí
ele ensinou e as mulheres começaram a fazer. Eu não
sabia fazer e vendo as outras fazer ia fazendo tam-
bém. Nós andava todas peladas, dormia à toa e não ti-
nha nem coberta; dormia junto ao fogo. Depois que o
Leonardo ensinou o artesanato deu para comprar co-
berta...”.

Seu irmão Luis Ferreira (e a esposa Maria) contam o seguinte


numa entrevista:
“O Leonardo abriu a estrada para fazer o artesa-
nato, ensinou como é que podia fazer... ele trouxe pe-
ças de outro lugar e disse: vocês faz assim... foi colar...
lança não... o arco que eu trouxe lá de Guarani naque-
la época também... ele trouxe mais colar, tanga...”.

Mas a aldeia ainda não era visitada pelo turista, então eles
vendiam esse artesanato em Porto Seguro, Prado, Cumuruxatiba.
Tururim também conta que foi mesmo o Leonardo quem sugeriu o
artesanato69:

69 Maria, uma índia, lembra também quando Leonardo sugeriu que fizessem o colarzinho para irem “melhorando mais de vida” e que houve

uma festa na Coroa Vermelha e ele convidou os índios para fazer uma representação lá e mandou eles fazerem colares, flechas, e “aquela roupa
201 Ir para o sumário >>

“que nós ia ter perdido um pouco da cultura, en-


tão quem conhecia mais era eu né, colar. Naquele tem-
po o colar não tinha saída, somente pra usar. Não ti-
nha negócio de sair pra vender, não tinha prestígio, so-
mente pro uso dele, mas quando saiu conhecimento do
colar, arco e flecha com arco ter saída. Aí foram conti-
nuando a fazer colar e saiu vender como eu vendi em
Salvador. Aí Pedro Agostinho teve aqui mais Maria Ro-
sário e falaram: — Tururim você vai lá em Salvador,
você vai lá que eu quero, pra nós conversar. Eu digo:
— Sr. Pedro, eu nunca saí na cidade não senhor... não
conheço... [deram dinheiro passagem e ele foi todo
atrapalhado, como relata comicamente]

Segundo Tururim, ele teria ido a Salvador para “levar conheci-


mento de Salvador que existia Pataxó que ninguém sabia que existia
Pataxó”. Nesta cidade explicavam para uma platéia como comiam,
cozinhavam, caçavam, pescavam etc. E aproveitavam para vender o
artesanato. Mas ainda segundo Tururim, a chegada do turista na al-
deia é que fez com que ela mudasse muito mesmo, principalmente
se for levado em consideração que até então, interagiam apenas
com pescadores e pequenos comerciantes locais.
José Baraiá, em reunião na casa de sua mãe Josefa, afirma
que foi quando o Leonardo “ensinou” o artesanato e o turismo entrou
na vida deles, que as coisas melhoraram em termos econômicos. De
início, lembra José, a entrada do turista era proibida na área e ele,
na época cacique, foi à Brasília e pediu na FUNAI para deixar o tu-
rista entrar “que o pessoal da minha aldeia aprendeu a fazer uns tra-

que o índio usava primeiro”, e eles foram nessa representação e venderam tudo o que levaram.
202 Ir para o sumário >>

balhos de artesanato e o turista vem para conhecer a aldeia e com-


pra os trabalho do índio e ajuda o índio”. Foi aí que a FUNAI tirou
“uma casinha tipo depósito que ficava perto da casa do Tururim para
não deixar o turista entrar” e ficou sob o controle do José a entrada
dos turistas:

“Aí os homem vinha: — ah, posso entrar! Vinha


com medo porque eles num podia antes entrar... Eu di-
zia: — ó, se for pra ajudar os índios, comprar as coisas
dos índio e deixar uma lembrança e vocês levar uma
lembrança daqui pra lá, eu deixo entrar; se for pra fa-
zer pergunta e num ajudar o índio em nada, também
num adianta a pessoa entrar. Aí começou o turista a
chegar, começou a vim, começou a vim e que chegou
a posição de cair no público de que num tinha mais
aquela proibição do turista entrar. Enquanto isso, os ín-
dio cresceu o número de artesanato, todo mundo
aprendeu a fazer, todo mundo arrumou o dinheiro mais
fácil e o turista sempre tá entrando na aldeia”

Com a expansão do turismo em toda a região, Corumbau e


Caraíva já estão atingidas de cheio pela frente turística, que já alcan-
ça também Barra Velha, com a chegada até de escunas, mas princi-
palmentes de turistas que querem fugir da movimentação de lugares
de grande afluxo turístico, incluindo aí estrangeiros que compram
suas peças no atacado para revender em seus países de origem. Al-
guns desses estrangeiros, maioria de europeus, já voltaram várias
70
vezes em Barra Velha para compra de mais peças . Isso faz com

70 Segundo informante que trabalhou na FUNAI, são estrangeiros que vêm ao Brasil em férias e aproveitam para “tirar um pouco do prejuízo

da viagem”, levando peças para vender na Europa.


203 Ir para o sumário >>

que os índios tenham até conhecimento da cotação do dólar e sai-


bam comercializar com essa moeda que circula freqüentemente den-
tro da aldeia.
Portanto, com a afirmação étnica e as dificuldades de subsis-
tência, o caminho do turismo se abriu levando os Pataxó a trânsitos
àquela época sequer imaginados. Em termos culturais o turismo aju-
dou a provocar uma reflexão em torno do “resgate” de uma cultura
ancestral que vem sendo reconstruída a partir de diversos projetos
nativos coletivos e individuais. Embora o turismo (como forma de co-
lonialismo) queira manter sob domínio a atividade produtiva indíge-
na, demandando uma produção cultural diferencial correspondente
às imagens de uma suposta vida indígena tradicional e integrando
os Pataxó a um domínio imposto pela ordem capitalista global (inclu-
sive em termos culturais), nem por isso deixa de ser também força
motriz para uma revitalização cultural que reforça ainda o orgulho ét-
nico entre jovens que agora têm um espaço menos belicoso para
exibição de sua indianidade.
Se o turismo iniciado nos anos 1970 parece ter sido uma for-
ma de sustentabilidade dos Pataxó de Barra Velha a partir dos dita-
mes de fluxos coloniais acima, desde 1999 assiste-se a um conjunto
de retomadas de terras tradicionais Pataxó que ficaram fora da de-
marcação original de 1981 e que são agora reivindicadas por pata-
xós que encontraram forças para lutar contra tais fluxos, resistiram
na região e lutam por suas terras contra os fluxos coloniais da área.
Entre Prado e Monte Pascoal houve uma série de investidas por par-
te de pataxós durante essa última década indo contra o PNMP, PND
e fazendeiros locais. Esses processos, entretanto, marcam outros
204 Ir para o sumário >>

capítulos da história Pataxó que devem ser tematizados em outras


sessões desta obra.

Referências:

ARAGÃO, Salvador Pires de Carvalho e. 1899. Estudos sobre a


Bahia Cabrália e Vera-Cruz feitos por Ordem do Governador do
Estado o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Cons. Luiz Vianna
pelo Major do Exército Salvador Pires de Carvalho e Aragão. Bahia.
BHABHA, Homi K. 2001. “O Pós-Colonial e o Pós-Moderno”. In: O
Local da Cultura. Belo Horizonte, Editora da UFMG.
CARVALHO, Maria Rosário G. 1977. Os Pataxó de Barra Velha:
seu Subsistema Econômico. Dissertação de Mestrado. Salvador,
UFBA.
DANTAS, Beatriz G., SAMPAIO, José Augusto L. & CARVALHO,
Maria Rosário G. 1998. “Os Povos Indígenas no Nordeste Brasileiro.
Um Esboço Histórico.” in: CUNHA, Manuela C. da (org.) História
dos Índios no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras. (2ª
edição) p. 431-456.
FAUSTO, Carlos. 1998. “Fragmentos de História e Cultura
Tupinambá. Da Etnologia como Instrumento crítico de conhecimento
etno-histórico” in: CUNHA, Manuela C. da (org.) História dos Índios
no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras. (2ª edição). p. 381-
396.
FOUCAULT, Michel. 1990. “Genealogia e Poder” in: Microfísica do
Poder. Rio de Janeiro, Graal. (9ª edição). p. 167-177.
GRÜNEWALD, Rodrigo. 2001. Os Índios do Descobrimento:
Tradição e Turismo. Rio de Janeiro, Contra Capa.
GRÜNEWALD, Rodrigo. 2002. “Os Pataxó e os Fluxos
Coloniais”. Trabalho apresentado no GT Povos Indígenas,
coordenado por João Pacheco de Oliveira e John Manuel
205 Ir para o sumário >>

Monteiro no XXVI Encontro Anual da ANPOCS em Caxambu.


(digitado).
MACCANNELL, Dean. 1992. “Nature Incorporated”. In: Empty
Meeting Grounds. London, Routledge.
MASCARENHAS, Márcio Fróes da Motta. 1998. O Patrimônio
dos Índios: Pré-Emergência Étnica entre os Caboclos de
Vale Verde. Monografia de final de curso apresentada como re-
quisito ao bacharelado em Ciências Sociais, concentração em
Antropologia. Salvador, Departamento de Antropologia, Faculda-
de de Filosofia e Ciências Humanas, UFBA.
NAVARRO, Luiz T. 1846. “Itinerário de Viagem que fez por Terra
da Bahia ao Rio de Janeiro, por Ordem do Príncipe Regente, em
1808, o Desembargador Luiz Thomaz Navarro (manuscrito inédi-
to, oferecido ao Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-
leiro, pelo seu sócio correspondente, Francisco Adolpho Varnha-
gen). in: Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Rio de Janeiro.
OLIVEIRA, Cornélio V. 1985. Barra Velha: o Último Refúgio.
Londrina.
OLIVEIRA, João Pacheco. 1988. ‘O Nosso Governo’: Os Ticu-
na e o Regime Tutelar. São Paulo, Marco Zero / CNPq.
RADHAKRISHNAN, Rajagopalan. 1996. Diasporic Mediations.
Between Home and Locations. Minneapolis/London, University
of Minnesota Press.
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Identificação e Delimitação da Terra Indígena Coroa Vermelha
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VANSINA, Jan. 1965. Oral Tradition: a Study in Historical
Methodology. England. Penguin Books.
WIED-NEUWIED, Maximiliano (Príncipe de). 1989. Viagem ao
Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia.
206 Ir para o sumário >>


71
2.4 A TERRITORIALIZAÇÃO PATAXÓ MERIDIONAL EM TORNO DO MONTE PASCOAL

José Luís Caetano da Silva

Eu sou um índio Pataxó, um índio da Bahia, e


estou aqui representando a Articulação dos Povos
Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.
Quero falar principalmente da questão da terra. Hoje os
povos indígenas do Nordeste não têm terra. Se a
[Fundação Nacional do Índio] FUNAI ou o governo
demarcarem todas as terras indígenas que existem no
Nordeste, não se dará três hectares para cada um, para
cada família dos pouco mais de 60 mil índios que estão
na região. É difícil você falar em formação, falar sobre a
questão da capacidade indígena já que não se tem nem
sequer terra para sobreviver. Quando o índio não tem
terra, não tem a vida, que é o principal. A nossa mãe é a
terra. Dentro disso, então, a situação pior é que no
Nordeste tem a pobreza também. São essas famílias
pobres que ocupam terras indígenas e não tem para onde
ir. Com isso se gera o conflito, conflito armado, a exemplo
do caso Kiriri da Bahia, que gerou mortes, a exemplo do
Xukuru de Pesqueira em que assassinaram o Chicão. São
os pequenos posseiros, também necessitados, que

71 Texto que compõe parte do capítulo 3 da Tese do autor.


207 Ir para o sumário >>

invadem. Enquanto a FUNAI e o governo não tomam uma


posição, não fazem uma política que realmente demarque
a terra, que homologue a terra, que tenha recursos pra
fazer as indenizações, vai se dar o conflito dentro da
sociedade indígena (Wilson Pataxó, 2000).

A presença de povos com o etnônimo Pataxó, no ES da Bahia


aparece em relatos desde o século XVI. No entanto, foram descritos
de forma mais pormenorizada no século XIX por Wied-Neuwied
(1958: 222 apud Carvalho, Sampaio 1992: 4) que os registrou “...em
toda a faixa entre o Mucuri e o Rio de Cabrália...”. Ainda, segundo o
mesmo autor, toda a costa, desde o Rio do Prado [possivelmente o
Jucuruçu], era temida pela presença de selvagens que, “...vagueiam
pelas matas e as suas hordas surgem alternadamente, em alcobaça,
no Prado, em Comechatiba, Trancoso...”. Nestas aparições
trocavam cera e outras coisas da mata por produtos manufaturados.
Os Pataxó interagiam com diversos outros grupos étnicos
Maxacali e Botocudo, formando, com os primeiros, aliança para dar
combate aos segundos. Nas proximidades havia, também,
Tupiniquin e Kamakã. Em 1861, cria-se na barra do rio Corumbau,
província da Bahia, entre os municípios do Prado e de Porto Seguro
uma aldeia de índios que reuniu indivíduos pertencentes a todos
esses grupos e que foi aprovada pelo Diretor Geral dos índios
(Carvalho 1977: 80).
As informações de Carvalho (ibid.: 82) vinculam essa aldeia à
atual Barra Velha que, desde sua fundação, tornou-se um ponto de
afluência para os Pataxó que podiam continuar mariscando nos
fartos manguezais existentes, complementando sua dieta de
carboidratos com proteína animal (Agostinho 1981: 74-75). Apesar
208 Ir para o sumário >>

da diversidade de grupos étnicos aldeados a maioria era Pataxó,


visto o etnônimo que o grupo adota atualmente (Carvalho, Sampaio
1992: 7). Seu isolamento se traduziria num esquecimento deles por
parte da sociedade abrangente.
O nome Barra Velha, porque, desde sua criação a boca da
barra do rio Corumbau se deslocou cerca de seis quilômetros para o
sul. Tal deslocamento, hipótese levantada por Agostinho (1974:5-6
apud Carvalho 1977: 82), evidenciada por Carvalho (1977: 82-83,
414) e confirmada nas entrevistas de Grünewald (2001: 88-89), é um
processo contínuo, pois o deslocamento da boca da barra do
Corumbau para o sul, causando inundações têm obrigado famílias
Pataxó de Prado/Ba a irem morar na margem esquerda do
Corumbau, área do Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal –
Porto seguro/Ba, haja vista não existirem mais áreas vazias na
Ponta do Corumbau –Prado/Ba, área de intensa ocupação turística
(Caetano da Silva 2003a). Tais inundações causadas por
deslocamentos de barra são comuns as margens de barras de
outros rios da região “...zona costeira ocupada por extensos cordões
litorâneos” (Agostinho ibid). A costa de Prado é uma área de relevo
muito instável dadas “...as zonas das falésias; as zonas de
escorregamento que são observadas em zonas de substrato
inconsolidados e com altas declividades, próximas as falésias e
paredes dos vales encaixados dos rios” e as “zonas de inundação as
principais [...] os fundos dos grandes vales que cortam os tabuleiros
costeiros como o do rio Jucuruçu” (Andrade 2003: 73).
De 1861, em diante, constata-se uma escassez documental e
de informações sobre os índios do ES, que só será rompida em dois
momentos na primeira metade do século XX. Em 1939 a esquadra
209 Ir para o sumário >>

do almirante Gago Coutinho encontra-os em estado de total miséria


e abandono.
Em 1951 ocorre a sublevação publicada pelo jornal A Tarde
como a “’revolta dos Caboclos de Porto Seguro’ [que] revelou a
existência de pessoas em ‘lastimável estado de miséria, todos
passando fome e alguns doentes’ [...] insuflados por dois indivíduos
[...] que teriam prometido [...] realizar a medição de suas terras”. Tais
insufladores estariam ligados supostamente ao partido comunista e
distribuíram entre toda a aldeia o saque conseguido na única ação,
um assalto a um comerciante do povoado de Corumbau que foi
baleado e trazido amarrado até a aldeia (Carvalho 1977: 84-85, 87).
A pequena monta de tal ação foi respondida com uma
violenta repressão da polícia, resultando na morte dos brancos
insufladores, na prisão de Honório “capitão” dos Pataxó a época e
na destruição da aldeia pelo fogo, marcando a memória coletiva
Pataxó que nomeiam esta agressão: ‘o fogo de 51’. Tal episódio que
deu partida a diáspora dos Pataxó da aldeia de Barra Velha
(Carvalho 1977: 84-85, 87, Grünewald 2001: 93-95, 2002: 49, Valle
2002: 49) e está na base da territorialização Pataxó no entorno do
Monte Pascoal; onde alguns se empregam em fazendas e outros
fundam novos núcleos (Bierbaum 1989).
Parte dos Pataxó, que construiu núcleos no entorno norte do
Monte Pascoal e sofreu impacto do turismo de Porto seguro e Santa
Cruz de Cabralia foram analisados no texto de Grünewald (2001). O
entorno sul tem sido analisado contemporaneamente nos relatórios
de viagens, pareceres e textos de Carvalho, Sampaio (1992)
Sampaio (1993, 1996, 1998, 2000, 2003a) e nas notas técnicas,
informes para o Ministério Público Federal e textos de Sheila
210 Ir para o sumário >>

Brasileiro (1998a, 1999a, 1999b, 1999c, 2000, 2003).


Mesmo no contexto de “...isolamento físico-geográfico...” dos
Pataxó que se refletia “...num relativo isolamento social e econômico
da sociedade inclusiva”, Carvalho (1977) pode perceber que,
“...embora os Pataxó se desloquem para Porto Seguro, estão [...]
mais próximos, geográfica e socialmente, de Itamaraju” (ibid.: 47);
onde eram feitas as compras de produtos industrializados pelos
vendeiros Pataxó (ibid.: 372). Tal relação com o entorno sul já se
dava desde o início do século XIX quando toda a área fazia parte do
território de Prado, ponto de maior desenvolvimento comercial e de
aldeamentos que punham em contato índios e brancos (ibid.: 67), a
própria criação de Barra Velha reunia índios que viviam no entorno
da Vila do Prado e que são levados para o extremo norte do seu
território, a Barra do Corumbau (ibid.: 82-83, 106)
No presente texto são analisadas, mormente, áreas ocupadas
por famílias Pataxó no entorno sul do Monte Pascoal que, em meio
ao seu processo de territorialização, ou ainda buscando sua
subsistência vêem emergir conflitos com grupos e/ou instituições
que lhes disputam a terra: proprietários ou herdeiros de fazendas
tituladas, ou não, pelo estado da Bahia, posseiros que ocuparam as
propriedades, repartindo-as, desmatando-as e construindo
benfeitorias, donos de pousadas e hotéis que substituem ou
complementam os grandes e pequenos empreendimentos
agropecuários nas áreas de interesse turístico, as Unidades de
Conservação - UCs do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente –
IBAMA e os Projetos de Assentamento (PAs) do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária – INCRA (Caetano da Silva
2003b).
211 Ir para o sumário >>

Cabe notar que as áreas de ocupação registradas nas idas ao


campo correspondem as mapeadas por Carvalho (1977), com a
população se estendendo pelos municípios de Prado e Itamaraju em
aldeias que vem se modificando e se moldando a uma estratégia da
coletividade Pataxó de ocupar o entorno sul do Monte pascoal.
Numa ida ao campo em novembro de 2003, foi possível registrar,
além da TI – TI Trevo do Parque em Itamaraju/Ba (6 famílias72) e da
TI Águas Belas em Prado (31 famílias), outras comunidades que
vêem reivindicando seu reconhecimento como Pataxó e os direitos
inerentes a sua condição étnica: em Itamaraju Pé do Monte/Aldeia
Nova, na zona de Cumuruxatiba Barra do Cahy (180
famílias/1050pessoas), uma facção da dela que ocupou área no
PND, assumindo o nome de Tiba (42 famílias), no Córrego Dourado
foram encontrados membros da comunidade Pequiatã (17
famílias/80 pessoas) – antiga Pequi – que está ocupando área no
PND, um quilometro após a aldeia Tiba, na direção Oeste. Cruzando
o PND, na mesma direção, por cinco quilômetros se encontra a
comunidade de Gentil (23 famílias). Esta é composta de Pataxó que
há muito abandonaram o Cahy e foram para Mata Medonha e que
agora retornam ao Prado. Há ainda o grupo que vem de Itamaraju
nas proximidades com o Guarany “Nova Alegria” (10 famílias). Ao
longo da margem do rio Corumbau estão as aldeias Corumbauzinho
(36 famílias/175 pessoas) e Craveiro (6 famílias) Na zona do
Corumbau há a área já citada Boca da Barra do Corumbau que
ocupa as duas margens do Corumbau, seguindo a costa a sul entre
as barras dos rios Cahy e Corumbau está se organizando a aldeia

72Os números de famílias e/ou indivíduos foram conseguidos no site da FUNAI, para o caso de TIs já homologadas como Águas Belas e Trevo

do Parque. Os números das demais comunidades baseiam-se em estimativas dos seus líderes.
212 Ir para o sumário >>

de Tauá; mesmo na Sede de Prado famílias Pataxó estão se


agrupando no Bairro São Brás com objetivo de formar uma aldeia
(Caetano da Silva 2003a)
O principal instrumento dos seus opositores, além da
violência pura e simples, é a violência simbólica expressa no
deslegitimar-lhes enquanto grupo étnico diferenciado, na
descriminação contra aqueles que assumem sua identidade étnica e
na cooptação de indivíduos, famílias, ou mesmo, facções do povo
Pataxó; através da manipulação da oferta de serviços e políticas
públicas que lhes são de direito individualmente enquanto cidadãos
brasileiros, e coletivamente, enquanto grupo étnico diferenciado.

• Estratégias dos Pataxó na luta pela subsistência

Entre 1971 e 1976 as principais atividades econômicas entre


os Pataxó de Barra Velha eram a agricultura e a pescaria, o que lhes
possibilitava uma dieta de carboidratos e proteínas, alguns poucos
possuíam trabalho assalariado, outros se empregavam
esporadicamente na colheita, em mercados e padarias; alguns
poucos se dedicavam ao comércio na própria aldeia. Entre os chefes
de família foi registrado apenas um artesão (Carvalho 1977: 145).
Nos anos oitenta a economia se polarizaria entre a agricultura e o
artesanato, tornando a pescaria residual. (Bierbaum 1990).
Carvalho e Sampaio (1992: 9-10) relacionam a proibição de
plantar em terras de ocupação tradicional tornadas área de proteção
ambiental, a inauguração da Br 101, em 1974 e o fluxo turístico aos
municípios de Porto Seguro e Santa Cruz de Cabrália para explicar o
redirecionamento da produção econômica do grupo em direção à
produção de artesanato para o mercado originado pelo turismo na
213 Ir para o sumário >>

alta temporada. Cujo caráter sazonal os deixa novamente em estado


de miséria durante nove meses do ano (Bierbaum 1989: 13). O
turismo torna-se, para Bierbaum (1990) uma das “dependências” as
quais está submetido o povo Pataxó constrangidos pela ‘“total
assimilação” ou “modernização”’. No entanto a maioria dos Pataxó
meridional tinha, no começo dos anos noventa, a agricultura de
subsistência como principal atividade (Bierbaum 1990).
Em diversos textos tem sido analisada a relação entre o
turismo e os Pataxó. Rocha Jr (1987) faz um histórico deste
processo de adaptação à sociedade abrangente que faz surgir o
“índio turístico”, especializado em produzir e vender artesanato. O
mesmo autor (1990) esboça um estudo das relações entre índios e
turistas em Coroa Vermelha, num projeto apresentado ao mestrado
em Comunicação na UFBA, que não foi levado adiante.
Em 1994 Rodrigo Grünewald (1994, 2001) retoma o tema dos
Pataxó e o turismo, pretendendo ver na produção artesanal mais
que um processo aculturativo – criticando e aceitando o pressuposto
aculturativo de Rocha Jr, de que estariam especializados no
artesanato. Sheila Brasileiro (2001: 6), num projeto sobre a
organização política dos índios do nordeste, acompanha Grünewald,
afirmando como uma especificidade dos Pataxó do ES da Bahia
atividades econômicas centradas na exploração do turismo, através
da exploração de artesanato em madeira, O que os diferenciaria dos
outros povos indígenas do Nordeste, cuja economia é baseada na
agricultura de subsistência por queima e “coivara”.
No entanto, o redirecionamento para o turismo não impediu a
permanência da agricultura de subsistência como característica
econômica determinante – inclusive, das práticas políticas coletivas,
214 Ir para o sumário >>

como se pode depreender das reivindicações de áreas de mata para


agricultura nas Tis Coroa Vermelha e Trevo do Parque, ambas
centros de comercialização de artesanato (Carvalho, Sampaio 1992,
Sampaio 1993, Caetano Da Silva 1998, Grünewald 2001) –
formando junto com a pesca e a mariscagem a base da segurança
alimentar nas comunidades Pataxó. Em Coroa Vermelha a atividade
econômica mais rentável era a venda de artesanato sinais diacríticos
indígenas como: armas, saiotes e enfeites corporais feitos de coco,
materiais extraídos dos coqueiros, sementes, conchas e penas de
galinha. A venda de artesanato era conduzida principalmente por
crianças nas barracas da praia, o artesanato produzido era do tipo
‘turístico’, como o classificam Bierbaum (1990) e Grünewald (1994).
Em entrevista morador de Coroa Vermelha/Praia – Santa Cruz de
Cabralia/Ba afirmou que apesar de idênticas, as peças de artesanato
vendidas aos turistas e as utilizadas em seus rituais eram totalmente
distintas. As primeiras seriam imitações das segundas que quando
vestidas o dotavam do espírito Pataxó (Caetano da Silva 1998).
Em setembro de 1998, foram examinadas questões sobre uma
disputa entre Pataxó de Coroa Vermelha e uma imobiliária local por
áreas que terminaram sendo demarcadas como parte da TI Coroa
Vermelha – Mata. No trabalho de campo entre os dias 4 – 7, foram
registrados quintais plantados com mandioca, aipim, coqueiro anão,
banana, milho, feijão, ervas diversas. No laudo se marcou a
permanência da agricultura de subsistência continuava sendo
praticada, mesmo numa TI próxima a uma movimentada praia
baiana; garantindo a segurança alimentar nos entremeios das altas e
baixas temporadas turísticas (Caetano Da Silva 1998). Esta pratica
de ‘limpar’ e plantar os quintais foi anotada também por Grünewald
215 Ir para o sumário >>

em entrevistas com Pataxó de Coroa Vermelha (2001: 124).


No entorno sul a agricultura de subsistência é uma prática
central para os Pataxó. O contato inicial com famílias Pataxó do
entorno sul se deveu à nomeação para elaboração de novo laudo,
numa ação do INCRA contra a FUNAI pela retomada de vinte e
cinco lotes do Projeto de Assentamento – PA Corumbau em agosto
de 1998 por Pataxó de Corumbauzinho e da TI Águas Belas. A
viagem de campo para elaboração de parecer foi entre os dias 22 e
24 de março de 1999. Em sete meses de ocupação em quase todos
os quintais, dos 25 lotes haviam sido plantados pés de feijão e milho.
Aproveitava-se o espaço dos cantos de cerca, uma das famílias
havia plantado 50 pés de abacaxi, touceiras de cana-de-açúcar que
colhiam e tornavam a replantar, já haviam colhido feijão e estavam
batendo suas vagens para debulha-las e com estas sementes
pretendiam plantar mais áreas. Colhiam também as raízes de
73
mandioca e replantavam a maniba nas áreas deixadas pelos
74
parceleiros . Quando questionados sobre estes quintais, os técnicos
do INCRA não quiseram considerá-los plantações: “não é assim que
se planta”, “isso não serve para nada”, afirmavam. Outra prática
registrada a época envolviam os pastos deixados pelos parceleiros
do PA. Estes, além do uso para criação residual de gado de
propriedade de famílias Pataxó, estavam sendo alugados pelos
Pataxó para os próprios parceleiros e outros criadores guardarem
suas boiadas. Nessa época afirmavam que plantavam o necessário
para a alimentação. A produção de excedente era quase impossível
devido à falta de financiamento. O banco não lhes negociaria
73Pedaço do caule do pé de mandioca, não é um termo de uso exclusivo dos Pataxó.

74Inicialmente os Pataxó colheram e produziram farinha com a mandioca plantada pelos parceleiros do INCRA; acordos posteriores permitiram

que estes colhessem a mandioca que haviam plantado (CIMI 2000).


216 Ir para o sumário >>

empréstimos sem a mediação da FUNAI (Caetano da Silva 1999).


Segundo o sub-cacique, o artesanato era essencial, junto com
a venda de mandioca e a criação de animais, para conseguir
dinheiro, principalmente para o café e o açúcar que não produzem.
Na entrada de sua casa havia uma área circular de terra batida, com
cercas de madeira e coberta de palha, um espaço de
aproximadamente vinte metros quadrados usado coletivamente para
a produção do artesanato. Nos vinte e cinco lotes foram registradas
duas cabanas individuais para a produção do artesanato. O
artesanato registrado era composto de ‘gamelas’ (pequena bacia de
madeira), colheres de pau, conchas, garfos de trinchar, pentes,
feitos com a ‘gameleira’. Tipo de artesanato vendido hoje em toda a
região do ES, mesmo em cidades que não são visitadas pelo grande
fluxo turístico. É possível pensar que este tipo de artesanato e o
citado turístico tenham forma de escoamento e destinos comerciais
diferentes; ninguém compra uma ‘colher de pau’ pensando que ela é
um símbolo indígena.
A pesca no rio Corumbau era mantida pela aldeia. Um dos
parceleiros, que havia sido posseiro na área e ficara com o mesmo
lote durante 12 anos, afirmou que, antes da retomada “...deixava os
índios passarem todos os dias no seu quintal para irem pescar”. Este
‘quintal’ é considerado pelos Pataxó de Corumbauzinho um dos seus
pesqueiros tradicionais. Um antigo morador de Barra velha confirma
o fato. Durante a viagem de campo se registrou no quintal do
parceleiro grandes pedras bem posicionadas na margem do
Corumbau que facilitam o mergulho e a pesca de anzol.
Em outubro de 2003, já como trabalho de campo para o
doutorado, visitou-se novamente a Corumbauzinho. As condições de
217 Ir para o sumário >>

vida pareceram visivelmente melhores do que na primeira visita. O


cacique e o sub-cacique ostraram extensas áreas plantadas com de
mandioca em áreas trabalhadas por trator, falaram também de uma
casa de farinha em funcionamento. Não foram registradas cabanas
para produção de artesanato, nem o aluguel de pasto. Até mesmo o
gado residual pareceu agora mais gordo que em 1999.
Entre 23 e 26 de outubro foram feitas entrevistas diretivas com
representantes de trinta famílias Pataxó moradoras das áreas
Pequiatã, Cahy, Tiba, Boca da Barra do Corumbau, Craveiro,
Corumbauzinho e Tauã entre o distrito de Cumuruxatiba e o
povoado de Corumbau – Prado/Ba. Nelas, buscavam-se
informações sócio-econômicas, culturais, dados sobre saneamento
básico, destinação do lixo, educação e relação com os órgãos
públicos. Fomos auxiliados por um grupo de nove alunos e dois
professores do curso de Comunicação e Jornalismo da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB: Claudia Lima e José
Duarte. A viagem foi financiada como uma aula pratica de duas
disciplinas e a UESB forneceu, transporte, estadia para os
professores, cinegrafista e câmeras de vídeo. Tivemos também a
companhia de uma estudante da Licenciatura em Ciências
Biológicas da UESB, nos assessorando na compreensão da
biodiversidade local.
Apesar da urbanização crescente provocada pelo turismo
intenso nas duas áreas o trabalho rural foi afirmado como central
para a reprodução de 21% (por cento) das famílias que responderam
à consulta. A pesca foi afirmada como atividade central para 32 %
(por cento). 18 % (por cento) dedicam-se ao artesanato, além de 29
% no setor de serviços. Percebe-se, no entanto, que quase metade
218 Ir para o sumário >>

das famílias já se dedica a atividades ligadas ao incremento do


turismo e da urbanização. Evidentemente em áreas mais para o
interior como Corumbauzinho, Águas Belas, Craveiro e mesmo as
que recentemente ocuparam o PND a relação com o turismo é
residual, sendo a pesca, a agricultura e a criação de animais a base
de sua segurança alimentar.
Nas entrevistas abertas com líderes e integrantes das
comunidades Pataxó visitadas durante a viagem de outubro ficou
evidenciada a permanência da agricultura como estratégia
econômica central dos Pataxó na luta para subsistir. É a terra para
plantar que se busca nas retomadas. É perceptível que, quando
ampliadas às condições de plantação, como nas aldeias que
invadiram o Parque Nacional do Descobrimento – PND o artesanato
torna-se residual, usado de forma funcional e ritual. A garantia de
sua sobrevivência é confiada a plantação. Quando os visitamos em
novembro de 2003 já haviam plantado de forma sobreposta,
mandioca, feijão, milho, abóbora e mesmo mudas de jaqueiras,
mangueiras e amoreiras. Pescavam nos riachos que cortam ou
estão próximos ao PND. Reclamaram da dependência das
minguadas cestas básicas da FUNAI.
Ao comentar sua visita a comunidade Pequi, na área que eles
possuem no Córrego Dourado oriunda de uma parcela em PA do
INCRA recebida por uma Pataxó, a Secretária de Ação Social de
Prado afirmou: ”...eles vivem numa faixa de 10ha. Olha, eu tive lá
visitando algumas vezes eu fiquei horrorizada. Eu cheguei onze
horas e não tinha um fogão acesso, nem uma panela em cima do
fogão”. Já, quando da visita que fizemos as comunidades no PND e
situação já parecia estar alterando-se. As famílias Pataxó
219 Ir para o sumário >>

convidaram a equipe para almoçar. Não foi possível aceitar o convite


pela rapidez da visita. O motorista aceitou almoçara enquanto o
restante da equipe trabalhava. Seu relato confirmou que os Pataxó
lá estão se alimentando basicamente de peixes pescados nos
riachos próximos e de legumes e verduras já colhidos após a
retomada do PND.
Afirmaram, no entanto, que dentro de poucos meses estariam
sobrevivendo da plantação. Quando perguntados sobre a pesca
marítima ou a mariscagem, afirmaram que poucos entre eles a
praticavam, sendo mais comum entre os que preferiram retornar
para o Distrito de Cumuruxatiba. É interessante que, da mesma
forma que o mar é visto como perigoso para quem não está
acostumado com ele a aspereza do lidar com a terra é também
pouco suportável para os que a este tipo de lide não está
acostumado.
O artesanato, como atividade econômica central, tem presença
forte, nas famílias que moram próximas as áreas turísticas litorâneas
como Cumuruxatiba e na Ponta do Corumbau, mas mesmo nestas o
trabalho rural e a pesca ainda mostram muita força enquanto
práticas tradicionais Pataxó.
Quase todas as crianças da área Pataxó Boca da Barra do
Corumbau estão envolvidas na venda de artesanato como
ambulantes. A situação parece semelhante à encontrada em Coroa
Vermelha em 1999. No entanto o contato é mais crítico, pois são
famílias Pataxó vivendo em condições instáveis de moradia (como já
foi visto) e tirando seu sustento apenas da pesca e mariscagem
controladas pelo IBAMA na Reserva Extrativista do Corumbau –
RESEX, e da venda de artesanato para os turistas; que possuem um
220 Ir para o sumário >>

poder aquisitivo muito maior que os freqüentadores de Coroa


vermelha. A ponta do Corumbau é ponto de turismo internacional.
Após conversar com as crianças se pediu para tirar fotografias e elas
cobraram R$ 1,00 (um Real) por foto. Foi preciso as convencer que
não se tratava de fotos turísticas. A insistência em vender artesanato
é tão grande, assim como a beleza das peças, que dificilmente se
resiste em comprá-las, é comum que se retorne carregado de
artesanato.
O cacique do sítio urbano onde acampam os Pataxó de Barra
do Cahy, instado a participar de uma reunião para discutir o Plano
Diretor Urbano do município de Prado, registrou-se na lista de
presença como trabalhador rural. Ele já havia sido entrevistado
anteriormente75 e, traçando a sua história de vida, incluíra diversas
atividades como motorista, policial civil, pescador, catador de
caranguejo e outras. No momento da reunião sua comunidade
acabara de retomar ama área desmatada no PND. Pareceu-lhe
importante não só categorizar-se enquanto trabalhador rural, como
também defender como proposta para Cumuruxatiba, dentro das
diretrizes do PDU, a construção de casas de farinha. Quando
retornamos a Cumuruxatiba, para a aula prática no fim do mês sua
posição já havia se alterado. Ele havia se retirado do PND com parte
dos seus e agora reafirmava principalmente a prática da pesca e da
coleta de caranguejo no mangue, reclamando da quantidade
permitida pelo IBAMA, trinta caranguejos na época da andada.
Entrevistas realizadas antes por minha orientadora com o próprio
cacique e sua mãe parecem confirmar que ele sempre esteve mais

75A atuação como consultor em Sociologia e Antropologia da empresa que elabora o PDU de Prado permitiu-me estar por duas vezes no

município em 2003 (de 31/07 – 04/08 e 02/10 – 07/10) levantando informações que estão também na base deste texto.
221 Ir para o sumário >>

envolvido com a pesca e a mariscagem. Pode-se pensar que o


processo faccional na aldeia tem os dividido em agricultores e
pescadores.
Na mesma reunião entrevistou-se um adolescente de quinze
76
anos proveniente da TI Mata Medonha junto com outras famílias
que se juntaram aos Pataxó da aldeia Pequi – no Córrego Dourado
para retomarem uma área no PND a qual nomearam Pequiatã, foi
como membro desta aldeia que ele se inscreveu como representante
na reunião. Ele tratou da história do seu grupo rememorando a
chegada dos seus antepassados em Mata Medonha, saídos de
Cumuruxatiba e o retorno de seus familiares para o Pequiatã.
Sempre a motivação era a luta pela terra para plantar as raízes; que
estão na base da sua alimentação.
Também na área Craveiro, a antiga Agrovila 1 do PA
Corumbau retomada por Pataxó de Águas Belas, a grande
esperança vinha da possibilidade de plantar e a maior queixa
provinha do fato da casa de farinha construída para os parceleiros
assentados pelo INCRA ter sido desativada por falta de energia
elétrica e mesmo pelo motor que fora de lá levado.
Como sua subsistência depende da terra as comunidades
Pataxó no ES se contrapõem a grupos que consideram intrusos em
seu território. Estes podem ser divididos em três tipos. Um envolve
proprietários privados, composto por posseiros e fazendeiros que
atuam, tanto em empreendimentos agropecuários, quanto em hotéis,
pousadas, resorts e hotéis fazenda. Outro compreende os técnicos
do IBAMA responsáveis pelas UCs da região (PNHMP, PND e

76Na viagem de campo seguinte se saberia que ele já possui uma esposa também adolescente e que está grávida e mora na área do Córrego

Dourado; mais próxima do núcleo urbano de Cumuruxatiba.


222 Ir para o sumário >>

RESEX) Por fim se contrapõem aos parceleiros assentados em PAs


implementados pelo INCRA.

a) A luta contra proprietários

Tratar de conflitos entre grandes proprietários de terra e


Pataxó, mesmo atendo-se aos casos ocorridos nos últimos quatro
anos no entorno sul do Monte Pascoal envolve analisar uma série de
denuncias, atos de violência, retomadas e expulsões de fazendas,
ações judiciais, policiais e mesmo conflitos armados entre os grupos
oponentes. Com uma clara desvantagem bélica para os Pataxó,
armados com seus simbólicos, arcos, flechas, lanças, bordunas e
velhos bacamartes contra armas automáticas – rifles, pistolas –
revólveres e escopetas calibre 12 de seus oponentes. Deixa-se de
fora, propositalmente, 500 anos de conflitos entre índios e não-índios
na “Costa do Descobrimento”. Conflitos que são comuns na região
desde a divisão da Capitania de Porto Seguro em sesmarias no
século XVI. Não é a intenção nem há espaço neste texto para uma
reconstituição histórica dos conflitos com proprietários privados.
Apenas se deseja, a partir da análise dos conflitos mais recentes no
entorno sul do Monte Pascoal, perceber como esta tensa relação
vem se estruturando.
A desvantagem é também institucional. Em todos os casos os
proprietários contaram com o apoio da polícia civil e militar. Muitos
destes possuem vínculos ou mesmo detêm postos no poder
executivo, legislativo e judiciário local e estadual. O apoio do
Ministério Público Federal não tem impedido que a Justiça Federal
emita mandados de reintegração de posse em todos os casos.
Em 02/04/2000, em meio aos preparativos para as
223 Ir para o sumário >>

comemorações e protestos que marcaram a passagem dos 500


anos da chegada dos portugueses a Costa do Descobrimento em
abril de 1500, 200 pataxó retomam a fazenda Boa Vista distrito de
77
Cumuruxatiba – Prado/Ba . Quinze dias depois são violentamente
expulsos por um grupo estimado de 30 ou 40 homens, comandados
pelo proprietário. 22 Pataxó (homens, mulheres e crianças) são
mantidos em cárcere privado num quarto da fazenda, muitos fogem
e parte das famílias monta um acampamento próximo a fazenda.
Seus líderes são ameaçados e perseguidos, inclusive em Itamaraju
município vizinho (CACI 2000).
A fazenda Boa Vista será retomada, novamente em abril de
78
2002. Num encontro dias antes apoiando a aldeia Pequi, seus
vizinhos no distrito de Cumuruxatiba, o Cacique de Barra do Cahy
afirmara: "Estou ameaçado pela pistolagem e pela bandidagem. Mas
temos nosso pai Tupã, que não vai nos deixar morrer. Nós devemos
ir dar apoio aos parentes que retomaram o Piqui. Se for pra pegar a
unha, nós pega, se for de morrer junto, nós morre". No entanto,
todos tiveram que sair oito meses depois por força também de uma
liminar de reintegração de posse deferida por Juiz Federal de Ilhéus.
(CIMI 2002). Os conflitos em Cumuruxatiba não se restringem aos
grandes proprietários. O relato da dona de uma pequena pousada
vizinha ao acampamento urbano da aldeia Barra do Cahy da uma
idéia de como a população local pensa a questão Pataxó: “...havia
movimento naquela época [2000] de que tinha um grupo de trabalho

77Na Barra do Cahy, ponto zero do contato entre portugueses e índios, anterior a chegada da frota a baia de Santa Cruz de Cabrália e as missas

na região da Coroa Vermelha, conforme Decreto presidencial de Fernando Henrique Cardoso.

78Organizado pela Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME, ANAI e CIMI, na Casa

Paroquial de Prado/Ba numa demonstração aos fazendeiros e pistoleiros que ameaçavam os grupos Cahy e Pequi, impedindo inclusive o acesso

a água destes últimos.que os Pataxó estavam sendo assistidos.


224 Ir para o sumário >>

que ia desapropriar as terras de Cumuruxatiba eles dizem que vão


desapropriar o distrito” e continua “...são as aldeias Pataxó Cahy e
Pequi. Cahy é dentro da cidade eles falam que vão tomar tudo que
vão invadir as pousadas as casas os hotéis. Isso é uma esperança
inclusive que eles dizem, tenho ouvido, do Grupo de Trabalho
[refere-se ao GT da FUNAI]”. Sua preocupação tinha um alvo claro,
pois, como Secretaria de Ação Social de Prado relacionava-se bem
com os Pataxó do Pequi, com os da área de Barra do Cahy, pois,
ainda segundo ela “...a aldeia é um grupo que está sobre a cidade,
nos fundos da minha pousada...”. Em 2002 a proprietária de uma
outra pequena pousada assumiu posição mais radical em relação à
questão Pataxó no Distrito. Primeiro afirmou que não existiam índios
lá e, com a insistência em conversar sobre o assunto, ela começou a
falar num tom de voz sussurrado afirmando que as pessoas de
Cumuruxatiba não gostam de falar sobre este assunto, pois, os
conflitos provocados pelos Pataxó prejudicariam, segundo ela, a
freqüência dos turistas ao Distrito..
Em 19 de agosto de 2003 os Pataxó retornaram para a fazenda
Boa vista e logo se viram ameaçados de expulsão pela Polícia Militar
de Prado que pretendia intervir sem ordem a liminar Federal
necessária. Não foi preciso tanto. Os fazendeiros, através de sua
associação rural, moveram ação judicial e foi concedida a liminar.
Apesar do proprietário ter se modificado o resultado foi o mesmo das
retomadas anteriores e as quinze famílias Pataxó foram expulsas.
Na aldeia Pequi trinta famílias resistiam à pressão de outro
fazendeiro, que ameaçava invadir a área retomada pelos índios em
junho. Também obteve liminar e as famílias foram expulsas para um
acampamento em Cumuruxatiba, aldeias no entorno do Monte
225 Ir para o sumário >>

Pascoal e para um povoado de Prado o Guarani localizado próximo


à sede de Itamaraju (CIMI 2003a).
Estes acontecimentos não eram casos isolados. Os Pataxó de
Corumbauzinho estiveram envolvidos em ocorrências semelhantes.
Em 1999, na já citada retomada dos 25 lotes eram acusados pelo
INCRA de só invadirem fazendas desapropriadas com fins de
Reforma Agrária. O acompanhamento de suas ações mostra que
esta acusação não condiz com a verdade.
Em outubro de 2000 42 pataxó de Corumbauzinho retomam a
Fazenda União, complexo agropecuário cujo proprietário era grande
empresário e político da região. Dias depois homens armados se
apresentaram como policiais civis procurando os lideres da
“invasão”, um capanga do fazendeiro estava entre eles (CIMI Leste
25/10/00, A Tarde 27/10/00). Uma semana após foram atacados por
quinze homens armados que estavam arregimentados numa
fazenda vizinha. Não conseguiram retirar os Pataxó graças à
chegada de mais 40 Pataxó e a uma tensa negociação. O filho do
fazendeiro negou o ataque afirmando que os homens estavam lá
para vacinar o gado contra febre aftosa e a presença da polícia se
justificava pelo roubo de cacau. Apresenta inclusive um atestado
administrativo do Diretor de Assuntos Fundiários da FUNAI/Brasília
(nº 134/DAF/98) onde se afirmava que após análise da área da
Fazenda União “... não foi constatada a sua incidência em TI (A
Tarde 04/11/00). Em 11/07/2001 uma liminar favorável concedeu
reintegração de posse ao fazendeiro. Em dois de agosto cinqüenta
policiais civis e militares expulsaram as dez famílias que estavam na
área em sua maioria idosos e crianças (CIMI Leste 2/08/2001).
Noutro argumento, o fazendeiro afirmava que sua família é a
226 Ir para o sumário >>

legítima proprietária das fazendas que compõem o Conjunto


Agropecuário Boa União; sendo este formado por fazendas
registradas no livro 2 do cartório de registro de imóveis da comarca
de Prado e cadastradas no Incra (A Tarde 04/11/00). Uma rápida
visita a este cartório evidenciou as dificuldades em se provar a
veracidade ou a incorreção de tal afirmação.
Em pesquisa de campo para o PDU de Prado se obteve a
informação de que no cartório de imóveis não se estava fazendo
novos registros, dada à situação caótica dos registros atuais. Numa
pequena sala cerca de trinta livros estavam empilhados os cinco
mais antigos num avançado grau de decomposição. tem-se no
cartório de Prado, pelo menos, 150 anos de registros fundiários de
toda a região. O juiz foi extremamente solícito em auxiliar na
pesquisa sobre a situação fundiária das áreas entre Cumuruxatiba,
Cahy e Corumbau. Apesar disso duvidou da possibilidade de se
realizar tal intento pela complicada situação do registro de imóveis.
Comentou que sua própria equipe vem tentando realizar este
levantamento desde o juiz anterior, que suspendeu novos registros
até que se organize o quadro atual; ordem que ele manteve.
O juiz e sua oficial de cartório afirmaram que o melhor caminho
seria trazer nomes de proprietários, números de registro ou
localização das áreas. Com estes dados seria possível localizar a
sucessão possessória – caso ela existisse. Tal trabalho só seria
realizável pela equipe do cartório, quem melhor conhece os livros.
Ele exigiria algum tempo e, ainda que cumpridas todas estas
condições, não eram dadas garantias de localização dos registros,
nem se podia garantir a sua não existência. Vários fatores funcionam
como complicadores. Mormente os donos atuais não são os
227 Ir para o sumário >>

mesmos que registraram, muitas vendas são feitas sem registro de


transferência o que recrudesceu após a suspensão, muitas
propriedades e proprietários simplesmente não possuem registro
algum e, em diversas, as áreas registradas foram acrescidas por
expansão sobre terras devolutas, grilagem, ou por aquisição de
novas propriedades.
Como insistisse em ver pessoalmente registros de sucessão
possessória de fazendas no Corumbau, Comuruxatiba e Cahy, o juiz
e sua oficial de cartório se entreolharam e a indicação da oficial –
“Ele devia ver o livro de 84”, com a qual o juiz concordou pareceu
uma dica de uma fonte interessante de exemplos sobre o caos do
registro de imóveis em Prado. O que foi confirmado com a análise do
livro, que cobre os registros e transferências realizados entre 1984 e
1989. Foram analisados os registros de imóveis rurais em Prado
entre os anos 1984 e 1985.
Como já fora informado não foram encontrados registros de
imóvel urbano no município, nem na Sede, nem no Distrito de
Cumuruxatiba. Quanto aos imóveis rurais apesar de existirem
registros é difícil dar-lhes crédito a começar na definição das áreas
que são medidas ora em ares, ora em tarefas, noutras hectares e,
ainda, alqueires. Outra característica que chamou a atenção foi que
entre 27 imóveis registrados 26 eram imóveis de pequeno porte.
Apenas uma propriedade chegava aos trezentos hectares. Em sua
ampla maioria regularizavam a cessão ou venda de pequenas
parcelas de grandes propriedades recortadas em áreas devolutas do
estado. A posse é legitimada por noções como “ocupação primária”
“posse mansa e pacífica por x anos”. Pequenas áreas nessas
condições são registradas, após o que são agrupadas e transferidas
228 Ir para o sumário >>

para um novo proprietário e, logo após, esta nova propriedade é


transferida para um outro comprador. Num dos casos estas
transferências foram registradas todas num mesmo dia (folha 7
página 2), entre o Natal e o Ano Novo.
A partir dos 27 registros se podem mapear os seus vizinhos,
foram citados 25 vizinhos. Destes, cinco possuíam cadastro no
INCRA, um estava registrado no cartório e os demais dezenove não
apresentavam registro algum. Entre estes sem registro estavam
alguns dos que conflitaram com os Pataxó. Na medida do possível,
haja vista que a maioria dos vizinhos são citados como João “de tal”,
Antonio “de tal”, em alguns não o registro não cita vizinho algum, em
alguns casos não se cita nem o comprador nem o vendedor. No
caso de reunião de propriedades, venda e revenda delas todas num
mesmo dia citado acima numa das áreas a vendedora é registrada
tendo o estado civil “viúva” no lugar do sobrenome não há registro
do nome de seu marido, note-se que, como a maior parte dos
registros analisados, este registrava a venda de 13ha de “terras
devolutas do estado” sem nenhum registro anterior a 1984, no
mesmo dia a área é registrada com um novo nome onde se afirma
que está “em vias de se legalizar...”, no mesmo dia, ainda, ela é
reunida a outras áreas, das quais não se cita registro algum e ganha
o terceiro registro e nome do dia. Por fim esta propriedade é
revendida ganhando o seu quarto registro e nome; passando a ter
então uma cadeia sucessória construída num só dia.
Não se pode duvidar totalmente das afirmações do fazendeiro
de Itamaraju que ao conflitar com os Pataxó de Corumbauzinho
afirmou que sua propriedade era composta por “... fazendas
registradas no livro 2 do cartório de registro de imóveis da comarca
229 Ir para o sumário >>

de Prado” (A Tarde 04/11/00). 2. O Exemplo citado acima mostra


como foi fácil no município legalizar posses sobre terras devolutas
do estado. Pretende-se levantar estes registros de forma mais
completa, aqui porem não se quer tratar da existência ou não destes
registros79. As condições de registro de imóveis encontradas
apontam para as ambigüidades destes documentos como prova de
propriedade legítima da terra. As ampliações de propriedades
através da compra de novas e sua expansão sobre áreas devolutas,
as transferências sem registro tornam difícil conectar as palavras
registradas e a coisa que elas registram, a representação e o objeto
que é representado. Falando de modo menos filosófico há grandes
diferenças entre as áreas que foram registradas e aquelas que são
cercadas, exploradas economicamente e controladas pelos
empregados/capangas fortemente armados pelos proprietários.
Mesmo vitorioso em seu intento de expulsar as famílias Pataxó
o fazendeiro, eleito prefeito do município de Itamaraju determinou
que o atendimento das TIs Águas Belas, Corumbauzinho e Craveiro
fossem transferidas para Prado, município em cujo território se
encontram estas TIs. Tal atitude pode ser interpretada como uma
retaliação, haja vista que o convenio entre a Fundação Nacional de
Saúde – FUNASA e a prefeitura de Itamaraju envolvia as
comunidades de Prado na implementação do PSFI. Cabe notar que
Prado não possuía Posto de Saúde da Família Indígena – PSFI que
teve de ser Instalado, alem da saúde municipal ser menos equipada
que a de Itamaraju, obrigando todos os casos mais graves a serem
transferidos para Porto Seguro. Alem disto a Sede de Itamaraju é

79Em alguns casos os registros existem, em outros não. Adiante se tratará de um caso onde herdeiros afirmam o registro de uma fazenda

desapropriada pelo INCRA e o registro não é encontrado pelo perito que analisou a propriedade.
230 Ir para o sumário >>

mais próxima destas aldeias que a Sede de Prado. Na entrevistas os


Pataxó vem reclamando da periodicidade da presença dos
profissionais do PSFI de prado nas aldeias. Evidentemente ficam
felizes em terem atendimento, apo´s o tempo que passaram sem tê-
lo, porém consideram o período que eram tratados pelo PSFI de
Itamaraju mais satisfatório
Em 15/04/2002 é retomada a fazenda Santo Agostinho e após
nova liminar de reintegração de posse que os obriga a sair da
fazenda, os Pataxó de Corumbauzinho e da Aldeia Nova do Monte
Pascoal transferem-se para a Fazenda Novo Horizonte. Durante
todo o 2 º semestre de 2002 a situação permaneceu tensa entre os
Pataxó do entorno sul do Monte Pascoal e os fazendeiros de
Itamaraju.
Em 2/11/2002, um Pataxó foi seqüestrado e amarrado por
pistoleiros ligados ao proprietário da fazenda Novo Horizonte.
Depois de passar por uma sessão de ofensas, socos e chutes, o
índio foi entregue à polícia sob acusação de ser "suspeito de ter
dado tiros nas proximidades da fazenda", como registra o boletim de
ocorrência registrado na delegacia. A polícia, que foi buscar o
indígena dentro da propriedade, o manteve o preso. As famílias
Pataxó fizeram uma vigília na fazenda Santo Agostinho, onde
ficaram até 05/11/02, quando homens passaram atirando contra os
indígenas. Um dos tiros feriu um índio na coxa esquerda e foi
presenciado pela equipe de reportagem da TV Sul Bahia, por
membros do Cimi, por policiais militares e por um representante da
Funai. A polícia federal resolveu intervir, chegando na área
acompanhada de policiais civis e militares. Os Pataxó foram
surpreendidos, quando a tropa fez busca nas aldeias e prendeu três
231 Ir para o sumário >>

índios por porte de arma. Estes só foram soltos no dia seguinte


mediante pagamento de fiança. A força tarefa também fez cumprir
liminares de reintegração de posse de três áreas contra que
estavam retomadas pelos Pataxó. Nenhuma providência foi tomada
com relação às ações dos pistoleiros (CIMI 2003a).
Como já citado na introdução um convite para lecionar
Sociologia e Metodologia numa faculdade de Itamaraju permitiu que
se estivesse lá dois dias por semana durante todo este período.
Segundo estudantes membros de famílias de proprietários locais o
conflito envolvendo as aldeias Pataxó recrudescia. Numa das
retomadas frustradas os Pataxó foram cercados e amarrados pelos
empregados, após o que se pediu ao cacique que liderava a
ocupação que apontasse os que realmente eram índios. Alguns não
teriam sido reconhecidos como Pataxó pelo cacique, libertou-se os
que o foram, enquanto os que não eram índios foram violentamente
agredidos e levados à polícia. Este aluno, inclusive, faltou várias
aulas por conta do temor da família que os Pataxó ocupassem
também suas terras, os proprietários da região, que, em sua maioria
moram em Itamaraju se encontravam em vigília e mesmo com as
chuvas durando dias permaneciam nas fazendas.
Uma das alunas prontificou-se a entrevistar o proprietário da
Fazenda Novo Horizonte. Ela trabalhava num posto de gasolina
onde o fazendeiro abastecia e almoçava e ficara sua amiga. A
fazenda havia sido comprada a pouco no início de 2002, por um
preço barato, segundo afirmou. Quando percebeu que a fazenda era
reclamada pelos Pataxó tentou estabelecer relações com eles. A
estudante visitou uma escolinha de alfabetização que construiu na
fazenda. Noutros momentos tentou ganhar a amizade dos índios
232 Ir para o sumário >>

distribuindo pão e ‘quentinhas’ para os Pataxó, quando eram


organizados protestos com bloqueio a estradas, e contratou alguns
deles para trabalhar na fazenda. Achava-se surpreso com a invasão
quando, segundo sua descrição, os Pataxó expulsaram
violentamente os seus empregados, o gerente da fazenda teve a
orelha mordida e foi trazido para atendimento médico em Itamaraju.
Fato confirmado pela estudante, pois, o empregado ficou hospedado
no hotel do posto onde trabalha.
Em outubro de 2002 a Frente de Resistência e Luta Pataxó –
FRLP relata o drama que os Pataxó passaram a viver com uma
campanha antiindigenista desencadeada em Itamaraju. Lá, eles são
acusados de roubar as fazendas de cacau e, até, de homicídio. “A
Radio 99 FM de Itamaraju insiste em caluniar nosso povo e nossas
lideranças, manipulando as informações, jogando a população
regional contra nós, juntando-se aos fazendeiros para mentir contra
80
o nosso povo” (FRLP 2002) . É interessante ver como o cacique de
Corumbauzinho descreveu numa entrevista de 2003 este conflito
com os fazendeiros: “... Pra toda essa região aqui que você ta vendo
ai, essa mata pra frente, essas daí tudo ainda é terra de fazendeiro
que ta em riba do direito dagente. Mas agente uma época nós já
fizemo retomada nessa terra”. Reclama da época do delegado da
FUNAI que chamava Tomaz que não cuidava dos direitos deles e
continua “...passado um ano que nós tava na retomada eles
entraram com uma liminar e tiraram nós de nossas terras. Mas
agente até hoje luta como vocês tão vendo. Aqui essa terra que
estou lhe explicando aqui [um dos conjuntos agropecuários
80Um enfermeiro que atuava no Posto de Saúde da Família Indígena – PSFI informou que a situação de conflito era grave, porém, duvidava

muito de certos crimes que eram imputados aos Pataxó. Segundo ele sempre que alguém desaparecia ou morria na mata se acusava aos Pataxó e

a morte ou desaparecimento deixava de ser investigada. Enquanto isso os verdadeiros culpados ficavam impunes.
233 Ir para o sumário >>

retomados] é do fazendeiro, mas ta em riba do direito dagente”.


Enquanto corria tal campanha um representante de outra
facção Pataxó o presidente do Conselho dos Caciques Pataxó de
Monte Pascoal, na Bahia chegou a Brasília para tentar acelerar a
indenização de cinco fazendas e evitar o acirramento dos conflitos.
Tal tentativa não foi bem aceita, seja por ONGs como o Conselho
Indigenista Missionário – CIMI e a Associação Nacional de Ação
Indigenista ANAI/Ba, seja por líderes da FRLP; questionou-se
especialmente a representatividade do Conselho de Caciques, pois
o mandato do presidente já estaria vencido e não foram feitas novas
eleições.
A TI Corumbauzinho continua na expectativa da retomada de
suas terras. Perguntado sobre a quem pertence o conjunto
agropecuário próximo a TI o cacique afirmou só saber que a área
tinha sido vendida e que não se sabia o nome do novo dono. Os
proprietários costumam vender após enfrentarem a primeira
retomada: “ai eu nem conheço quem é fazendeiro. Agente conhece
ai o empregado [...] por Maracá, mas Maracá nem é nome dele
mesmo, então eu nem tinha bem conhecimento com esse povo
ainda não. Mas a luta é desse jeito”.
A própria ação das frentes de expansão econômica na região
sempre foi prejudicial aos hábitos e tradições Pataxó. Após a
entrada de madeireiras e carvoeiros sobravam as terras nuas para
os pastos das criações de gado. Agora o desenvolvimento da região
apresenta um novo aspecto prejudicial às comunidades Pataxó no
ES da Bahia. A introdução da cultura do eucalipto vem trazendo
sérios riscos para os recursos hídricos, o solo, a fauna e a flora
locais, contribuindo também para a inviabilidade da agricultura
234 Ir para o sumário >>

familiar na região, ocupando todas as terras agricultáveis, inclusive


em áreas que seriam destinadas a reforma agrária, terras indígenas
e no entorno de Unidades de Conservação (FASE 2003) Na região
da Barra do Caí, em terras reclamadas pelos Pataxó, uma empresa
planta eucaliptos, através do fomento florestal, prática de aluguel de
áreas de terceiros para plantar eucalipto (FRLP 2003). Apesar das
queixas de todas as comunidades tradicionais do ES da Bahia o
governo Federal, através do seu banco Nacional de
Desenvolvimento – BNDES liberou empréstimos para que uma
empresa de celulose amplie em 30 % (por cento) as plantações de
eucalipto na região. Esta ampliação suprirá uma fábrica de celulose
da mesma empresa em Eunápolis, que também está sendo
construída com financiamentos governamentais. Para funcionar esta
fábrica exigiu a construção de uma usina hidrelétrica em Itapebi
(Sampaio 2003b, Atlanticanews 2003a, 2003b).
O enfrentamento do complexo agro-exportador baseado no
cacau, gado e eucalipto e de seus investimentos em áreas
consideradas de interesse turístico no ES baiano é complementado
pela tensa relação com as Unidades de Conservação Federais na
região. A cultura de eucalipto em fazendas no entorno de parques
nacionais coloca a questão de se uma cerca pode separar uma área
de preservação de outra explorada intensivamente. A resposta pode
estar na Capitania dos Descobridores, empreendimento que, como
se percebe pelo nome sugestivo, ocupa um espaço semelhante ao
das antigas sesmarias no Ponto Zero do Descobrimento do Brasil –
a, já citada, Barra do Cahy. Neste espaço funcionam em conjunto
um hotel resort, um complexo agropecuário e uma Área de
Preservação Privativa. Segundo os Pataxó que estão em
235 Ir para o sumário >>

Cumuruxatiba, qualquer pessoa pode visitar a área se pagar, menos


os Pataxó que foram de lá expulsos. Enquanto a comunidade Pataxó
se queixa outro projeto semelhante está para ser implantado na
Ponta do Corumbau, onde uma portuguesa, proprietária de um hotel
com chalés de 100m2 também deseja ajudar a preservar o meio
ambiente.

b) Contraposições e Sobreposições Pataxó a Política Ambiental

Desde a década de quarenta, vinha sendo planejada a criação


de um parque nacional na região do descobrimento em torno do
Monte Pascoal. A implementação deste parque, em 1960, fez
recrudescer o fluxo migratório dos Pataxó de Barra Velha, surgindo
núcleos nas matas da localidade de Mata Medonha (Furtado 1986:
13 apud Bierbaum 1989: 53-54) e na periferia do povoado
Corumbau, vizinho ao Parque e embrião da atual aldeia de
Corumbauzinho.
Nesse processo de retomada de suas fronteiras tradicionais os
Pataxó encontram não-índios em situação econômica semelhante,
beirando uma proletarização compulsória, principalmente devido à
falta de acesso a terra; parcial, no caso dos primeiros, e total, no
caso dos segundos. A oposição entre estes dois grupos assumiria
um conteúdo nitidamente econômico, que, só num segundo
momento, se revestiria de elementos ideológicos. O destino das
populações indígenas estaria, assim, instrumentalmente ligado à
organização do sistema maior (Carvalho 1977: 4).
Esses fatos ocasionaram mudanças na organização social dos
Pataxó. Bierbaum (1989: 13) aponta duas mudanças “...a redução
geográfica do espaço de vida tradicional, a mata, provocou a
236 Ir para o sumário >>

integração econômica dos índios. Caça e coleta se tornaram


insuficientes para a sobrevivência”. Foram substituídas pela
comercialização da mandioca e do artesanato, tornando os Pataxó
mais dependentes da sociedade abrangente. Bierbaum (ibid.) aponta
ainda para uma mudança de percepção em relação ao ambiente em
que viviam, com alguns Pataxó agindo da mesma forma que
fazendeiros, madeireiros, e ‘sem-terra’ queimando a mata, vendendo
madeira e plantando na terra “limpa”. Em suma, integrando-se no
mercado capitalista de uma forma dominada: aldeias sem comida ou
remédio, possuidoras ou próximas a arvores de alto valor comercial,
ou capazes de ampliar a produção de artesanato que também
passara a gerar renda. No decorrer dos anos noventa a acusação de
agressão às reservas de mata atlântica, torna-se um dos principais
instrumentos simbólicos da luta pela terra na região, onde cada
grupo denuncia aos outros, incluindo, além dos citados por Bierbaum
posseiros e carvoeiros. (Santana 2000, CIMI 2000).
Concomitantemente, ampliaram-se os conflitos sociais e a
desintegração política entre os índios, surgindo facções com idéias
novas “modernas”, jogando aldeias contra aldeias e dividindo-as
internamente (Bierbaum 1989, Sampaio 1993)
Tornou-se central para a solução dessas disputas a retomada
de sua área de posse imemorial no entorno do Monte Pascoal. Em
terras “...consideradas então como devolutas do Estado, não
pretendidas nem ocupadas por terceiros – casos de Águas Belas,
Imbiriba, Mata Medonha e Corumbauzinho – ou sobre terras de um
patrimônio Municipal – caso de Coroa Vermelha”. (Carvalho,
Sampaio 1992: 15).
O Parque Nacional do Monte Pascoal (PNMP) localiza-se em
237 Ir para o sumário >>

Porto Seguro/Ba,numa área de 22.500ha81. Foi implantado em 1960


para a proteção do sítio histórico do Monte Pascoal e preservação
de uma faixa quase intocada da Mata Atlântica. Uma real
reconstituição do território dos Pataxó, conforme os estudos
antropológicos de Agostinho da Silva (1981) e Carvalho (1977)
implicaria em subtrair ao Parque cerca de 14.000 a 16.000ha,
reduzindo-o apenas às áreas imediatamente em torno e a oeste do
Monte Pascoal. Tal possibilidade foi considerada inaceitável pelo
Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, tanto pela
redução drástica da área sob sua administração, quanto pela perda
da faixa costeira do Parque, valorizada pela presença do que seria o
único ecossistema de manguezais associados à Mata Atlântica;
incluído em uma área de preservação no país. Com o impasse a
FUNAI optou, em 1980, por um acordo com o IBDF. Com isto foi
cedida uma área correspondente à metade norte da identificada
como território de ocupação tradicional Pataxó. Esta área – 8.627ha
– foi homologada como a TI Barra velha Os manguezais do rio
Corumbau, permaneceram sob domínio do Parque, aos Pataxó
restaram os brejos arenosos junto ao rio Caraíva (Sampaio 1996:
15).
A subtração das áreas de recifes e mangue afetaria as
tradicionais atividades de coleta historicamente praticadas pelos
Pataxó cuja dieta baseava-se em carboidratos sob a forma da
principal planta cultivada - a mandioca – e da coleta, no mangue e
nos recifes - do suprimento de proteína animal: no mangue

81 Seu relevo é plano e ondulado e o clima é quente e úmido, com 1 a 2 meses secos. A temperatura média anual é entre 22 a 24ºC, e as

temperaturas absolutas, máxima e mínima, chegam a 38 e 8ºC, respectivamente. O solo varia entre latossolo amarelo distrófico e vermelho-

amarelo distrófico e a pluviosidade anual, entre 1.500 e 1.750mm. O tipo vegetacional dominante é a Floresta Ombrófila Densa, ocorrendo

também vegetação litorânea, como restinga e mangue. (Leitão et al. 2003: 03).
238 Ir para o sumário >>

caranguejos e moluscos; no recife moluscos e ouriços-do-mar


(Agostinho, 1981).
Em 1996, O Governo Federal, mediante Decreto nº 1.874,
incluiu o PNMP na área do projeto de criação do Museu Aberto do
Descobrimento. Em 1999, representantes dos povos Pataxó
confirmaram a necessidade de ampliação e recuperação do território
tradicional, dentre estes, a área que compreende parte das aldeias
Boca da Mata, Barra Velha, Corumbauzinho, Meio da Mata e Águas
Belas e em 19 de agosto ocupam o PNHMP, os funcionários do
IBAMA, responsáveis pela administração foram retirados e a área
passou a ser controlada pelos Pataxó.

“A reação nacional foi imediata, no mesmo dia da


ação dos Pataxó a rede globo lança matéria na tentativa
acintosa de detratar a imagem dos índios como
depredadores do meio ambiente e colocando a [...]
legitimidade do pleito em xeque. O IBAMA recorreu na
justiça [...], a FUNAI promoveu uma pressão duríssima
aos índios tentando aliciá-los com promessas de projetos
agrícolas, tratores, caminhonetes, dinheiro vivo [...] a
tensão é constante [assim como são] as tentativas de
negociação através dos órgãos oficiais do Estado
brasileiro” (Ferreira 2002)

Neste mesmo período o governo brasileiro reivindica junto a


UNESCO a transformação da área do PNMP em patrimônio natural
da humanidade que passa a ser nomeado Parque Nacional e
Histórico do Monte Pascoal - PNHMP. No II Congresso Brasileiro de
Unidades de Conservação (1999), ambientalistas de todo o país
lançam um abaixo-assinado pedindo a remoção imediata dos índios
239 Ir para o sumário >>

que invadiram parte das reservas naturais do PNHMP. Outros


ambientalistas defendem a criação de uma interface ampla entre a
conservação da biodiversidade e seu uso sustentável e as
populações e terras indígenas.
Um ano após a retomada do Parque os Pataxó comemoravam
terem realizado neste ano, mais detenções de madeireiros e de
caçadores invasores do "Parque" do que o IBAMA nos cinco anos
anteriores, o verão de 2000 teve também reduzido número de focos
de incêndio na Mata. Cumpriam, assim, sua declaração na "Carta do
Monte Pascoal" (1999): que o Parque seria tratado como uma área
de "plena preservação, não tendo nenhuma possibilidade de
desmate ou degradação ambiental de sua floresta". Tal feito era
antes impossível aos escassos, ineptos e desaparelhados três
funcionários mantidos pelo IBAMA.na Sede do Parque (ANAI 2000)
O verão do ano seguinte seria marcado por múltiplos focos de
incêndio não só no PNHMP como no Parque Nacional do
Desenvolvimento. Eles foram causados por carvoeiros que
queimaram indiscriminadamente para depois recolher o carvão.
Quase 5.000ha de Mata Atlântica foram atingidos. Tais fatos
apontam para apontam para a necessidade de reformulação do
território Pataxó com a integração das diversas TIs ao território do
Monte Pascoal como condição para a subsistência física, política,
econômica e sociocultural dos Pataxó como uma unidade étnica
diferenciada; necessidade já apontada coletivamente por
representantes das diversas aldeias no Monte Pascoal e na costa do
descobrimento. Com isso a retomada do PNHMP, em agosto de
1999 tornou-se um marco na luta dos pataxó.
O sucesso desta retomada quando comparada à truculência
240 Ir para o sumário >>

com que foram expulsos de propriedades privadas, apontou aos


Pataxó um caminho estratégico para a sua luta. “Nos parque é
governo contra governo. Na terra de fazendeiro tem jagunço e
tiro...”. Assim um representante da comunidade Pequiatã explicou a
decisão de retomarem áreas de capoeira e pasto no Parque
Nacional do Descobrimento PND.tomada por três grupos entre abril
e agosto de 2003 e onde continuam a chegar continuamente mais
famílias Pataxó, ocupando terras.
O PND foi criado em 2000 numa negociação com a antiga
BRALANDA (consórcio extrativista Brasil-Holanda), multinacional
que explorou por anos a Mata Atlântica local, grilando terras dos
índios, posseiros e ribeirinhos. A floresta supostamente preservada
pela Bralanda foi uma herança, de negociatas com governos
passados e seus órgãos ambientais, e de violentos conflitos que
expulsaram índios e trabalhadores rurais (CIMI Leste 2003b). Alguns
dos entrevistados nas comunidades Pataxó que retomaram o PND
afirmaram que a Bralanda, após expulsa-los, contratou-os para
trabalhar retirando madeira. Mesmo tendo sido a maior empresa de
desmatamento na área a Bralanda foi premiada pelo governo
Federal em 2000 que comprou a área que ela possuía e passou a
chamar a mesma de Parque Nacional “... sob o olhar atônito dos
agricultores, dos índios que dali foram expulsos e aplausos dos
ambientalistas...” (CIMI Leste 2003b)
Com 21.130 hectares o PND é uma Unidade de Conservação
cuja categoria é de Proteção Integral (Leony 2003) apesar da
devastação da Bralanda o PND ainda possui a maior mancha
continua de Mata Atlântica Sua retomada pelos Pataxo está gerando
grande polemica e debates. Inicialmente representantes do IBAMA
241 Ir para o sumário >>

declararam que "os índios terão que deixar a área, nem que seja
através de ação judicial" (CIMI 2003b). A negociação, entre o órgão
e as comunidades tem sido tensa; até um veiculo foi seqüestrado na
retomada da sede administrativa do Parque. Os Pataxó
denunciaram, nas entrevistas conduzidas em novembro de 2003 que
caçadores tem agido no Parque. Além do que, todo verão
caminhões pipas despejam o esgotamento de fossas assépticas das
pousadas e hotéis próximo a cabeceiras dos rios e córregos. Este foi
outro entre os motivos apresentados por lideres da comunidade Tiba
para terem optado por permanecer no Parque, a água dos rios na
periferia do núcleo urbano de Cumuruxatiba (onde estavam
acampados antes) e na Barra do Cahy estaria contaminada por
estes despejos. Alem de terra para plantar a terra onde celebram e
vivem como seus pais a avos é também onde buscam uma vida
mais saudável, nos moldes também do contato ancestral com a
natureza “...quando eu era criança nossa carne era a paca e o peixe,
mas agora tem o IBAMA”. No entanto, em restaurantes de
Cumuruxatiba pagando-se o preço se pode comer Paca denuncia
deles que já ouvira também no Seminário de Abertura do PDU de
Prado. Da mesma forma a denuncia sobre o despejo de
esgotamento sanitário foi confirmada pelo Ministério do Meio
Ambiente, segundo informação pessoal da engenheira que trata das
questões de saneamento básico no PDU de Prado.
Enquanto isso a FRLP denuncia que, "a atuação do Ibama,
através da chefe do parque nacional do Monte Pascoal tem
provocado divisão interna e jogado índios contra índios". É a
execução do "Termo de cooperação Técnica" imposto aos Pataxó
em meio à pressão causada pelos múltiplos incêndios do verão de
242 Ir para o sumário >>

2001. Mesmo tendo sido rechaçado pela maioria das lideranças o


projeto tem sido levado adiante pelo Ibama local, causando diversas
reações contrárias entre os índios e indigenistas do CIMI e da ANAI
(CIMI 2003b).
Recentemente o IBAMA aprovou projeto de R$ 762.000,00
para a elaboração e implementação de um plano de manejo na área
da RESEX. No projeto estão envolvidas, além do IBAMA, a
Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR/SP e duas ONGs
locais a Associação Pradense de Preservação Ambiental – APPA/
Núcleo de Educação Ambiental – NEAM e o Núcleo Jubarte. Outras
ações envolvem o oferecimento de curso para guias turísticos na
Aldeia Nova e incentivos a produção agrícola em Corumbauzinho.
Com isso Pataxó que moram na Boca da Barra do Corumbau e em
Corumbauzinho tem modificado sua opinião sobre o IBAMA e
afirmando não terem conflitos com o mesmo, como o fez o cacique
de Corumbauzinho, ou mesmo elogiando atuação do órgão, como os
pescadores Pataxó da Boca da Barra do Corumbau. Com a
proibição de barcos de pesca na RESEX a produtividade daqueles
Pataxó, que pescam de canoa aumentou, segundo afirmaram.

c) A Luta Intraclasse Conflitos Étnicos e Fundiários entre


Pataxó e Sem-Terra

A TI Águas Belas possuía, na segunda metade dos anos


oitenta, trinta homens e quarenta mulheres, quarenta por cento deles
na faixa etária de zero a dez anos. Vivia cercada em trinta há de
“terra exaurida, coberta de pragas, que não permitem a capina com
enxadas; proibida de caçar e pescar a comunidade tem passado por
243 Ir para o sumário >>

duras penas”. Era a primeira equipe da FUNAI que entrava em


contato com o grupo (GT/FUNAI 1985).
O grupo local saíra de Barra Velha na década de cinqüenta,
fixando-se inicialmente no Corumbau, onde passou grandes
dificuldades. Após a morte do pai da família, os quatorze irmãos
estabeleceram-se em Águas Belas, sob a liderança do irmão mais
velho. Suas rotas de caça e pesca envolviam “...as matas distantes e
próximas [...] os rios, desde os mais cercanos descendo até a barra
do Corumbao”. A comunidade começou a ser impedida de pescar no
Corumbau a partir de 1956, quando o Sr. Arthur Fontes
Mascarenhas mediu as terras ao leste da área. O grupo técnico da
FUNAI percebeu, também, a presença de “novos donos”, posseiros
interessados em ocupar a terra e explorar predatoriamente as
matas, estes vizinhos impediam até mesmo a passagem dos índios
pelas fazendas, isolando-os. Na época a comunidade requeria uma
área de mata de 400ha que era de uso comum, a qual foi
considerada pequena, pelos técnicos, mas já “...um vislumbre de
esperança...” (GT/FUNAI: ibid.).
O Grupo de Trabalho Interministerial não reconheceu o caráter
de posse imemorial, considerando a data de fundação apresentada
no laudo antropológico (Carvalho 1987: 05), 1951, ocupação
82
recente , mantendo os 1.200ha identificados pelo grupo técnico,
divididos em lotes de até 50ha por família (GT/INTERMINISTERIAL
1988).
Os trabalhos de demarcação de 88 foram obstruídos por um
fazendeiro, de posse de um Termo de Acordo com o IBDF que

82Esta interpretação do laudo antropológico foi rechaçada anos mais tarde, quando se reafirmou a imemorialidade de Águas Belas e outras Tis

do entorno do Monte Pascoal (Carvalho, Sampaio, 1992a: 1)


244 Ir para o sumário >>

tornava de preservação a mata compreendida em seu imóvel e que


correspondia a uma parte da área indígena identificada nos
processos da FUNAI /BSB/3408/85 e 0675/86. Interrompida a
demarcação o fazendeiro desmata a área em litígio, vende a
madeira. Pelo seu ato ele é “punido” pelo INCRA que desapropria
83
seu imóvel, indeniza-o e ali estabelece o Projeto de Assentamento
Três Irmãos em 1990. A questão foi debatida no V Encontro da
Nação Pataxó (Brasileiro, Sampaio 1991), Em 1993 os índios
novamente relatam a presença de parceleiros (seis famílias),
ocupando lotes de 30 há. Os Pataxó se queixam aos prepostos do
INCRA em Itamaraju, que se afirmam incompetentes para o
encaminhamento de suas queixas. Os Parceleiros ameaçam reagir
violentamente e o grupo Pataxó retrocede. Neste período a aldeia já
havia crescido: 56 famílias “registradas” na área, 31 lá residentes e
25 residindo em Corumbauzinho, além de um grande número de
famílias Pataxó no norte do Prado que lá poderiam ser assentadas
(Sampaio 1993: 10-12).
Do ponto de vista do INCRA (1999), a Fazenda Três Irmãos,
uma área de 1263ha foi desapropriada em primeiro abril de 1987
(Decreto de Desapropriação 97733) tendo sido efetuada no dia 10
de julho de 90 a imissão de posse da área, em favor do INCRA, que
registra e averba esta posse no cartório do Prado, pagando quase
oito milhões de cruzeiros de indenização ao suposto proprietário em
novembro do mesmo ano (Oliveira 1990). Em 1993 o PA Três
Irmãos passa a constar como implantado.
Paralelamente, seguia o processo da TI Águas Belas que,

83Percebe-se que o IBAMA, no caso da Bralanda, não foi o primeiro órgão governamental a premiar desmatadores com desapropriações e

indenizações na região.
245 Ir para o sumário >>

identificada nos diversos pareceres já citados, é encaminhada pela


portaria da FUNAI n.º 96 de 28/12/95 (CIMI, 1996: 693) e seria
homologada pelo Decreto presidencial s/n de 08/09/98 (CIMI 2000:
713). O PA Três Irmãos já havia sido retomado pelos Pataxó em
junho de 98 (Sampaio 2000: 718), aconteceram alguns incidentes
após isso, conforme o CIMI informou ao INCRA em ofício de julho de
98, onde pedia a esta Instituição a retirada e reassentamento dos
seus posseiros. Lentamente os parceleiros passaram a ser
transferidos até a madrugada de 25 de outubro de 1999, quando os
Pataxó retirariam todos os ocupantes ilegais de sua área já
demarcada; os quais foram, mais tarde, listados para serem
indenizados (DOU, 17/11/99 apud CIMI 2000: 713). A TI foi
demarcada com a superfície de 1.189ha e 17 Km de perímetro
(FUNAI 2000) e não estão ocorrendo intrusões.
Parte dos “sem-terra” que estavam assentados no PA Três
Irmãos e perderam sua parcela com a homologação da TI Águas
Belas passaram foram sendo transferidos para o Projeto de
Assentamento Corumbau, na fazenda de Arthur Mascarenhas, onde
desde os anos 1970 Carvalho (1977: 416) registrara a presença de
famílias Pataxó dispersas A. aldeia de Corumbauzinho aparece
citada também no trabalho de Bierbaum (1990), segundo ele ela
teria sido fundada em 1951 as margens do rio Corumbau, a uma
légua de Águas Belas. O antropólogo encontra em 1989 uma
população de 55 pessoas, além de famílias afastadas que
mantinham contato com a aldeia e expressavam desejo de voltar.
Em outro texto a fundação é datada no início da década de
sessenta, vinculando-a à implantação do Parque Nacional e a
proibição de uso das suas terras pelos Pataxó. Uma, entre as
246 Ir para o sumário >>

aldeias que surgem, localizava-se “...na periferia do povoado de


Corumbau, vizinho ao limite do Parque, embrião do atual núcleo de
Corumbauzinho” (Bierbaum 1989: 53 apud Carvalho, Sampaio 1992:
9).
Sampaio (1993: 13-14) traz novas informações Corumbauzinho
já contava com vinte e cinco famílias, ou mais, o que demonstrava
um crescimento em relação a 89. Estas famílias teriam parentesco
com as de Águas Belas (eram “registradas” lá) e, como elas, eram
originárias de Barra Velha. Sampaio (id) indicava, também, uma
proximidade social entre Águas Belas, Corumbauzinho e Trevo do
Parque. Esta proximidade social se expressava por uma articulação
entre suas lideranças, tornando as três aldeias pontos de referência
para os Pataxó dispersos na região entre os municípios de Prado e
84
Itamaraju, Bahia . Informou também que com exceção da intrusão
de um fazendeiro de Itamarajiu não havia no território de
Corumbauzinho “...nenhum grupo doméstico não Pataxó; apenas,
como é de comum, alguns indivíduos ligados aos Pataxó por
casamentos interétnicos” (Bierbaum 1989: 53 apud Carvalho,
Sampaio 1992: 9).
Conforme depoimentos dos caciques de Águas Belas e Trevo
do Parque, existiam dois grupos. Um mais coeso, cuja base era
formada pelas 25 famílias “registradas” em Águas Belas, era
favorável a manutenção do domínio comum das terras. Outro grupo
menor de famílias tencionava manter a disponibilidade comercial das
terras. Conforme Sampaio (1993: 15) a demarcação da TI

84Com exceção da intrusão de um fazendeiro de Itamaraiu – cujos favores aceitos por alguns Pataxó teriam gerado desavenças internas na

aldeia – não havia no território de Corumbauzinho “...nenhum grupo doméstico não Pataxó; apenas, como é de comum, alguns indivíduos

ligados aos Pataxó por casamentos interétnicos” (Bierbaum 1989: 53 apud Carvalho, Sampaio 1992a: 9).
247 Ir para o sumário >>

Corumbauzinho85 garantiria, não só, terra para uma pequena


comunidade Pataxó como, ajudaria a integrar as áreas reservadas
de Barra Velha, do Monte Pascoal e de Águas Belas, melhor
reintegrando os domínios tradicionais Pataxó.
Desconhecendo tais estudos e reivindicações, em outubro de
1996 o INCRA declarou como de interesse social para fins de
reforma agrária parte do espólio de Arthur Fontes Mascarenhas,
conhecida como Fazendas Reunidas Corumbau. Em abril de 1997
foi efetuada a imissão de posse e iniciou a implementação de um
novo projeto de assentamento no entorno do Monte Pascoal. que
assentaria 94 famílias em agosto do mesmo ano (INCRA 1998).
O PA foi considerado pelos Pataxó de Corumbauzinho como,
uma nova intrusão em TI e, em agosto de 1998 25 famílias Pataxó
ocuparam 25 lotes do PA Corumbau. Os sem-terra os haviam
abandonado, em acordo com as lideranças indígenas e na
esperança de conseguirem lotes melhores em outros
assentamentos, informação que me foi passada pessoalmente por
Augusto Sampaio e Sheila Brasileiro que acompanharam a
negociação. Esta ação causou diferentes reações. Os jornais e o
INCRA passaram a denunciar a ação como uma invasão dos Pataxó
a um assentamento onde o Estado já gastara quase dois milhões de
reais em créditos de implantação e investimentos para os 94
parceleiros (A Tarde 14/08/98: 3, INCRA 1998).
Outra reação parte da ANAÍ, que encaminha, ao MPF,
denúncia sobre o assentamento como uma intrusão em área
indígena tradicional (Messeder 1998). A 6.ª Câmara de

85A. Sampaio (1993) registrou seus limites norte, o rio Corumbau que a separa do Parque, e sul, a linha divisória da TI Águas Belas, faltavam

ser definidos os limites leste e oeste.


248 Ir para o sumário >>

Coordenação e Revisão decidiu pela urgência “...da regularização da


TI Pataxó, a fim de evitar o recrudescimento do conflito com os
colonos assentados em seu interior”. Através, ainda, da ANAÍ/Ba o
cacique de Corumbauzinho convoca uma reunião para a qual se
convida: FUNAI/BSB, ADR/Eunápolis, INCRA/Salvador, MST,
APOINME, CIMI/ES, Conselho de Caciques, Procuradoria da
República na Bahia – Salvador e imprensa.
Munido de uma certidão negativa da FUNAI o INCRA entra na
Justiça Federal Vara Única de Ilhéus, com uma ação de reintegração
de posse seguindo pedido da Associação dos Pequenos Produtores
do Assentamento Corumbau (Alves 1998) “Solicitamos de V. S.ª
providência no sentido de retomar a área que nos foi concedida por
este conceituado órgão, para que possamos trabalhar e da terra tirar
o sustento para nossos familiares”. Esta ação é mantida pelo
INCRA/Itamaraju (Brasileiro 1998), apesar do acordo celebrado
entre as superintendências do INCRA e da FUNAI em Brasília que
previa o cancelamento da ação e estabelecimento imediato de GT
para estabelecer os limites da TI, a indenização dos bens
patrimoniais levantados e a definição de uma área para
reassentamento dos parceleiros moradores da área que seria
delimitada pelo GT (FUNAI/Eunápolis 1998).
O INCRA (Borges 1998) convocou uma reunião em Itamaraju,
na qual compareceram representantes do INCRA, Movimento dos
Sem-Terra – MST, Associação dos Pequenos produtores Rurais do
assentamento Corumbau –lAPPRAC, CIMI, ANAI/Ba, Associação
dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo –
APOINME e Procuradoria da república. A FUNAI não compareceu,
nem comunicou a reunião aos Pataxó de Cormbauzinho. Ficou
249 Ir para o sumário >>

acordado que os Pataxó não sairiam dos 25 lotes nem ocupariam


novos lotes até o término dos estudos do GT, apesar de ter sido
enfatizada, pelas famílias de Corumbauzinho, “...a necessidade de
ocupar mais trinta e cinco lotes a fim de perfazer a área que
compreendem como território tradicional do grupo” (Brasileiro 1998)
Nos trâmites da ação o INCRA enviou uma série de questões a
serem respondidas por técnicos periciais em agronomia e
antropologia. Basicamente interrogavam sobre a presença Pataxó
na área do projeto, sobre o caráter imemorial pretendido pelos
Pataxó que ocuparam os vinte e cinco lotes, somando-se a temas
como a aculturação dos Pataxó que os tornavam um perigo para as
matas do Parque e a ausência de fauna e flora para caça e coleta na
área do assentamento o que a tornaria impraticável para os índios
(INCRA/Salvador 1998). Em informações passadas pessoalmente
aos técnicos que visitaram o local do conflito, afirmava-se que os
Pataxó só teriam invadido o PA por estarem interessados nas
plantações e pastos deixados por posseiros e parceleiros, além dos
equipamentos públicos implementados pelo INCRA.
Os Pataxó entrevistados no local, por sua vez, declararam que
retomavam área de moradia e uso de seus avós e tio-avós que
foram enganados e expulsos por Arthur Fontes Mascarenha.
Apresentaram como “prova” a presença de jaqueiras e coqueiros
plantados por seus antepassados no local. Falaram também na
existência de covas de índio na área, algumas feitas pelos próprios
índios “cemitérios” e outras “covas rasas” onde a polícia e
fazendeiros enterravam índios assassinados em antigas disputas por
terra, algumas vezes mais de um por cova (Caetano da Silva 1999).
Manoel Santana (1998) relata de forma semelhante à presença
250 Ir para o sumário >>

dos Pataxó na área de Corumbauzinho. Segundo ele os que foram


para lá estavam reocupando áreas de antigas aldeias. que foram
habitadas por antepassados dos pataxó de Corumbauzinho e Águas
Belas. Além destas existiria a área Craveiro retomada por Pataxó
que ocuparam a Agrovila 1 do PA Corumbau, e a antiga aldeia da
Caveira que fica no deságüe do Córrego Gibura no Rio Corumbau.
Sua localização foi confirmada por um morador da área Craveiro
“...aqui eles [os rios] ] faz isso aqui [forma ângulos com as mãos] lá
em baixo esse daqui encontra com o de cá, vira um só, então a
Caveira fica aqui, nesse mei aqui”. A área se encontra de posse de
um fazendeiro, fato também confirmado pelo subcacique de
Corumbauzinho.
Em abril de 1999 quando expiraria o prazo para a constituição
do GT.de delimitação da TI Corumbauzinho, a preocupação com
confrontos entre os dois grupos leva a Procuradoria da
República/Ba/MPF a convocar nova reunião entre os dias 02 e 03 de
junho na TI Águas belas e no PA Corumbau. Nela fica acordado que
os parceleiros poderiam colher tudo o que haviam plantado, que
nenhum lote a mais do PA seria ocupado por índios,
concomitantemente, nenhum índio sairia do lote onde estava até a
conclusão do GT, o MST e os assentados concordaram que se fosse
comprovado o caráter indígena da terra o PA teria que ser
transferido, o representante da UA/INCRA/Extremos Sul
comprometeu-se a conseguir uma área para transferir o
assentamento (Brasileiro 1999a). Por fim o Ministério Público
Federal recomenda a FUNAI a constituição imediata do GT (Leão Jr
1999).
Seguem-se, então, processos paralelos: um jurídico, dentro
251 Ir para o sumário >>

dos trâmites da ação do INCRA na Justiça Federal de Ilhéus


suspensa por seis meses, outro burocrático, visando a constituição
do GT e, um terceiro, social onde a tensão entre Pataxó e
assentados vai se ampliando. Os assentados acusam os Pataxó de
violência (Bras 1999), as reuniões entre as partes envolvidas
tornam-se difíceis (ANAI/BA 1999). Em novembro o MPF é
informado da interrupção dos trabalhos do GT por decisão dos
parceleiros do PA Corumbau que interpretavam como já vencido o
prazo de um ano para o reassentamento deles acordado entre a 6.ª
CCR e o INCRA (Brasileiro 1999b). Mais uma reunião foi tentada e
nada foi negociado pela ausência das principais lideranças do MST
e dos Pataxó. (Brasileiro 1999c). Novo prazo é dado para a
conclusão dos estudos da TI Corumbauzinho e rever os da TI Barra
Velha, haja vista a retomada do PNHMP pelos Pataxó (FUNAI/MJ
2000).
Apesar de todos os acordos os integrantes do MST expulsaram
violentamente as famílias Pataxó da área do Craveiro que estavam
na Agrovila 1 em março de 2000 (Brasileiro 2000). Em janeiro de
2002 novos conflitos estouraram com os Pataxó de Águas Belas e
do Craveiro reivindicando a retirada total dos assentados no PA
Corumbau (ANAI, 2002). Os conflitos voltam a ocorrer em julho com
a retomada da Agrovila 1 pelos Pataxó, acirrando a resistência de
ambos os lados em abrir mão da área86.
Uma liminar da Justiça federal deu reintegração de posse da
Agrovila 1 aos parceleiros assentados no PA Corumbau eles, porém,
não retornaram e a área permaneceu desocupada até fevereiro de
2003 quando os Pataxó voltam a retoma-la, reorganizando a área

86Informações veiculadas nos jornais televisivos locais. Confirmada pelo advogado que assessora o MST em informação pessoal.
252 Ir para o sumário >>

Craveiro. O depoimento de um dos lideres da área retrata a


retomada:
“a liminar ela foi cumprida né? Nós saímos da localidade onde
nós estávamos; ficamos também noventa dias fora desta localidade.
Mas, quando nós fomos olhar, as coisas mesmo que nossas, são
nossas né, essas casas aqui são nossas Tava tudo sendo destruída,
tava tudo um matagal, tava tendo um abandono; como se fosse um
lugar que ia ficar abandonado, sem prestígio. Mas aí nós retificamos
o nosso direito. Nós reuniu a nossa comunidade e fomo até a FUNAI
– ‘Dê uma decisão como poderia ficar essa comunidade’. Aí a
FUNAI, junto com o advogado Dr Waldir [MPF], ele autorizou que
nós possamos voltar para aqui pra dentro, pra que nós possamos
também cuidar do que é nosso”
E continua retratando o conflito com os sem terra e as razões
de terem retomado a área:

“Nós não temos um documento registrado, mas nós


tem um documento, que eu... vou fazer 52 anos e isso
aqui tudo era mata e morava meus parente aqui, meus
avós e desde criança que eu conheço isso aqui como área
dos índios. Mas depois agora assentaram... o INCRA
assentou os sem-terra aqui e eles querem que seje área
dos sem-terra, do MST, mas só que é uma área indígena
que todo mundo, quase, sabe. Todo mundo. O mundo
todo, quase, sabe disso. Que já teve demarcação, teve
uma mais longe, outra mais perto, então nós tamos aqui.
Realmente isso aqui é uma área indígena. Se não fosse
área indígena nós não taria aqui”.

Apesar de atualmente viver um momento calmo o conflito entre


253 Ir para o sumário >>

os dois grupos, que nas palavras de Augusto Sampaio “começou


calmo e acordado” pode recrudescer a qualquer momento. Em 2004
ainda se pode registrar que os Pataxó da área Craveiro queixaram-
se de ameaças por parte dos sem-terra, além disso, as crianças
Pataxó de Águas Belas e Corumbauzinho têm de estudar nas
escolas dos PAs Três Irmãos e Corumbau o que multiplica os
contatos apesar dos conflitos87.
Do ponto de vista dos sujeitos envolvido na disputa, coloca-se
a questão de como são construídas identidades diferenciadas e
opostas (Pataxó/’sem-terra’), marcando limites entre agentes sociais,
que compartilham um network, em grande medida, comum. Estes
limites estão marcados por valores étnicos e de classe.
Se a diferenciação entre os dois grupos aponta para processos
de mudança de identidade a ocorrência e a permanência de
identificações duplas – como no movimento dos “Pataxó Sem-Terra”
que deu origem ao núcleo de Mata Medonha e na presença de
Pataxó nos assentamentos da região que, não obstante tornaram-se
até lideres na luta com os demais sem-terra ligados ao MST
continuam reconhecendo sua origem Pataxó e sendo identificados
como tal pelos demais ‘sem-terra’, ainda que não o sejam mais pelos
Pataxó das aldeias onde saíram – coloca em questão o caráter
inefável e profundamente arraigado da identificação étnica e suas
proximidades e distanciamentos, semelhanças e diferenças, em
relação à identidade de classe.
Enquanto um conflito e uma diferenciação intraclasse
dominada a disputa desemboca noutro tipo de circularidade que
87As crianças Pataxó e seus pais denunciaram em todas as aldeias descriminações, nas escolas de Prado. Alunos e professores diziam que eles

deviam abandonar estas idéias de ser índio que vir pintado para a aula era ridículo. Como as tintas usadas nos grafismos com que se pintam

durante o Toré demoram semanas para sair algumas crianças optam por não participar do Toré, outras deixam de ir a escola.
254 Ir para o sumário >>

torna semelhantes as causas comuns em disputa e, mesmo, as


formações organizacionais que instrumentalizam a busca destes
objetivos coletivos. No entanto, e apesar mesmo desta dupla
circularidade, numa perspectiva das fronteiras de Barth, os limites
são mantidos e mesmo reforçados, construindo trincheiras em
88
fronteiras que, anteriormente, eram facilmente cruzadas .
Outra questão é o sentido político e social do conflito entre
parcelas do campesinato diferenciadas etnicamente. Os agentes de
ambos os grupos lutam por uma afirmada causa coletiva comum
terminando por entrincheirar-se em suas fronteiras e enfraquecendo-
se para o enfrentamento dos opositores em comum.

d) Etnografia em Prado: diversidade e Faccionalismo

Neste tópico a situação Pataxó será analisada frente aos


problemas decorrentes em nível municipal, utilizando-se para tal da
historia cultural do município complementada por uma etnografia da
diversidade enfrentada pelos Pataxó e que é comum a outros
municípios do Extremo Sul baiano, em especial Porto Seguro e
Santa Cruz de Cabrália.
Buscou-se, assim, registrar as práticas, discursos e propostas
observados durante a elaboração do Plano Diretor Urbano que
expressassem a diversidade sócio-cultural de Prado; identificada
como maior potencialidade no município de um ponto de vista
antropológico e o faccionalismo excessivo entre os agentes que
integram esta mesma diversidade, toma-se aqui a liberdade de
estender esta noção da etnologia indígena aos grupos que se
88Cabe lembrar que o índio Pataxó Galdino queimado vivo em Brasília lá estava para apoiar a “Marcha dos Sem”, puxada principalmente pelo

MST, mas que foi apoiada por todos os despossuídos do País.


255 Ir para o sumário >>

relacionam com os Pataxó e percebê-la como um obstáculo à


formulação e à implementação de programas e projetos no
município, para a comunidade Pataxó.
Num enfoque histórico-cultural Prado, desde o primeiro contato
entre portugueses e índios na Barra do Cahy, é um ponto de mistura
e de construção de uma diversidade cultural. Ainda no período
colonial, Prado – com seu contingente de índios mansos – foi o lugar
para onde conduziam povos indígenas arredios, esperando que o
contato com os mansos os conduzisse ao abandono da ‘selvageria’
e à mistura com os locais, concomitantemente Prado é o local da
resistência a esta mistura tendo seu desenvolvimento sido
interrompido, ainda na colônia pela ação violenta de diversos
grupos, entre eles os Pataxó, opondo-se entre si e em conjunto aos
não-índios que lhes desejavam conquistados e misturados
(ROSÁRIO, 1977). Os 500 anos de contato, cooperação, comércio e
conflito se expressam na constituição de uma sociedade
multifacetada; fato válido para quase todo o ES baiano
(GRÜNEWALD, 2001).
Em primeiro lugar o território de Prado, sua posse e a
destinação do seu uso, assim como os beneficiários deste uso,
quando focados a partir das diversas posições em interação, tornam
possível o recorte de diversas terras, visões de Prado que já foram
legítimas, há anos passados e que nos padrões atuais não o são
mais, ao menos não tanto. Estas configuravam o território de Prado
na visão e di-visão de mundo de madeireiros e carvoeiros e
continuam a refletir-se no Prado das plantações de eucalipto cuja
sustentabilidade é objeto de intensas discussões que envolvem
agentes e instituições municipais, regionais, estaduais, nacionais e
256 Ir para o sumário >>

internacionais (CAETANO DA SILVA, SANTOS 2004).


A devastação madeireira e carvoeira sempre foi à ponta de
lança da monocultura e do latifúndio, construído sobre terras
devolutas, dos mais diversos tipos, usando como instrumentos, às
vezes a ocupação primaria e o usucapião, noutras a pura e simples
grilagem e violência contra os verdadeiros ocupantes primários da
terra.
Outras levas de homens trouxeram novas visões para o
território de Prado, trilhando os caminhos abertos pelas BRs e BAs
construídas na região nas últimas três décadas. Alguns apenas em
busca de um novo lugar para morar, produzir, vivenciar sua
aposentadoria, ou mesmo esconder-se de faltas e perseguições no
seu passado pessoal. Outros atraídos pelo boom da indústria
turística sejam como fornecedores, sejam como clientes dos
serviços envolvidos no turismo. Por fim chegam os ambientalistas,
capitaneados pelos órgãos governamentais ligados ao meio
ambiente e, mais recentemente ONGs sócio-ambientais. Em comum
nos agentes que chegam uma busca pelo ‘paraíso’, ainda que a
destinação, a posse e mesmo a significação do mesmo em cada
visão varie.
No caso dos migrantes de outras regiões, em sua maioria
fugindo das metrópoles, percebe-se a busca de um lugar para viver
diferenciado do padrão de desenvolvimento que vivenciaram antes e
do qual fogem. Para os agentes envolvidos no turismo o ‘paraíso’
deve ser comercializado, com sérias expectativas em relação ao
turismo internacional que deseja, sobretudo, as pontas de areia
formadas nas barras e recifes de coral, entremeadas de falésias,
lagoas e mangues do muito instável relevo da costa pradense. A
257 Ir para o sumário >>

partir destes pontos de pousada as possibilidades são infinitas,


envolvendo turismo de observação (baleias e golfinhos), ecológico,
didático-pedagógico, rural, cultural, étnico ou ligado à prática de
esportes radicais os mais diversos, inclua-se um residual, porém
preocupante, turismo sexual que é visto por todos como um
problema a ser combatido, pois envolve até casos de prostituição
infantil; Informação registrada em grupo focal com moradores da
periferia e confirmada nos relatórios dos GTs do Seminário de
abertura.
Para os ambientalistas o paraíso deve ser deixado intocado,
haja vista as agressões que se ampliam com a chegada de mais
pessoas a região, somando-se aos que a impactavam. Suas ações
de denuncia acumulam-se e se esvaziam num cotidiano
insustentável pressionado pelo desenvolvimento inevitável.
Numa perspectiva etnológica a cultura, ou melhor, as culturas
locais resultam de um Prado ocupado por 500 anos pelas
comunidades tradicionais, pelos índios, pelos negros fugidos das
caravelas que caminhavam pela costa se deixando ficar no paraíso,
os pescadores que percorriam seus rios e sua costa; todos em
busca do sustento de si e de suas famílias.
É interessante notar que Cumuruxatiba uma imensa aldeia
Pataxó (a antiga Comechatiba dos índios, anotada pelo príncipe
Wied-Neuwied) a depender do enquadramento do olhar pode
assumir feições de área de remanescentes de quilombos, foi
possível encontrar entre os Pataxó descendentes de escravos
fugidos do porto de Caravelas. Noto que não é um fenômeno atípico,
pois, em Alcobaça existe uma comunidade auto-denomidada afro-
indígena, objeto inclusive de dissertação (Mello 2003, 2004).
258 Ir para o sumário >>

Concomitantemente, ‘Cumuru’ se apresenta a mídia como uma


aldeia cosmopolita ponto de turismo nacional e internacional por
conta de atrativos como as jubartes, golfinhos e a própria beleza da
sua costa, dos rios e matas no seu interior. Lugar onde os
‘descolados’ do Centro-Sul podem encontrar no verão seus amigos,
também ‘descolados’ e, também, do Centro-Sul. Uma destas
descoladas optou num Big Brother Brasil em se apresentar como
baianinha de Cumuru cuja origem no Sudeste se denunciava pelo
piercing no nariz, corte e colorido do cabelo.
Fora desse enquadre estão os que sempre lá estiveram, antes
de todas as frentes, pescadores tradicionais muitos de origem
Pataxó, em parte até ‘cadastrados’, como dizem, ainda que a
maioria negue, ou ao menos, não afirme tal identidade; o que é
compreensível ante os preconceitos e descriminações que a
identificação Pataxó acarreta.
Qualquer política pública com âmbito municipal para Prado tem
que levar em conta esta diversidade e as facções formadas por
interesses em conflito envolvidos. Projetos que levem em conta os
aspectos culturais relacionados às diversas comunidades que se
foram construindo e formando dependem de negociações amplas e
participativas, que inevitavelmente terão seus momentos de tensão e
mesmo conflitos abertos que terão que ser geridos a todo o
momento.
As distancias e o difícil acesso entre os distritos, vilarejos e a
Sede geram mesmo um desconhecimento das práticas culturais
entre as comunidades, fato que torna difícil para um sistema
administrativo centralizado na Sede dar atenção justa a todas as
comunidades que envolvem não só diferentes estratos da classe
259 Ir para o sumário >>

trabalhadora (camponeses, pescadores, comunidades extrativistas,


artesãos, trabalhadores urbanos em pequenas indústrias e no setor
de serviços), como também uma realidade multi-étnica (Pataxó,
nativos não-índios, da região, os negros, migrantes de outras
regiões do país e imigrantes, de diferentes nacionalidades).
Aos projetos turísticos que buscam construir um espaço
cultural municipal pronto para estabelecer relações com clientes e
capital internacional, opõe-se o fato de áreas importantes para o
turismo internacional como Cumuruxatiba, Barra do Cahy e
Corumbau, incluindo Áreas de Preservação Ambiental como PNHMP
(cujo entorno toca Prado via à fronteira natural do rio Corumbau) e o
PND, além da Reserva Extrativista de Corumbau (RESEX) estarem
sendo reivindicados por comunidades Pataxó como áreas de
ocupação tradicional.
Em 1999 um GT interministerial envolvendo FUNAI, Ministério
do Meio Ambiente, IBAMA, INCRA e Ministério Público Federal
passou a realizar estudos que visavam evidenciar que áreas
deveriam ser consideradas como Pataxó, quais seriam preservadas
como APA e em quais serão mantidos os assentamentos. Tal GT foi
substituído por um novo nomeado ano passado e, este ano, a
FUNAI criou mais dois GTs um que reúne Kai e Pequi e um outro
para Mata Medonha em Porto Seguro Tenta, assim, dar conta das
comunidade que estão no PND: Tiba, antiga facção da Kai que já
tem cacique e líderes próprios e a Nova Alegria,comunidade
formada pelos caciques Baraia e Gentil composta por Pataxó do
Pequi e oriundos de Mata Medonha.
Outro aspecto que complexifica a garantia dos direitos a terra,
sejam os difusos e coletivos, sejam os daqueles raros que possuem
260 Ir para o sumário >>

terras tituladas na região é a situação caótica do registro de imóveis


em Prado. Que provocou inclusive a suspensão há mais de cinco
anos de novos registros ou transferências.
Outros problemas, que não a terra, marcam as localidades de
Corumbau e Cumuruxatiba. Outra proposta que parece justa para as
comunidades tradicionais é a melhoria das suas condições de
trabalho, através da implantação de casas de farinha para os que se
sustentam a partir da agricultura e um plano de manejo mais
adequado para os que trabalham com pescaria e mariscagem:
carboidratos oriundos do plantio de raízes e tubérculos e a proteína
animal oriunda da coleta no mangue, da mariscagem e da pesca
fluvial e costeira, sua dieta tradicional conforme (Carvalho, 1977,
AGOSTINHO, 1981).
Cabe notar que famílias Pataxó dedicadas a agricultura familiar
tem se transferido para o PND, na zona de Cumuruxatiba e para o
PNHMP/RESEX na margem esquerda da Boca da Barra do
Corumbau o que diminui mais a presença dos trabalhadores rurais
Pataxó nas áreas urbanas. Ampliando, no entanto, conflitos com o
IBAMA e com os ambientalistas. Nos dois casos a justificativa que
as comunidades apresentaram para tais movimentos foi à pressão
dos não-índios que, vindo atraídos pelo turismo, tem ocupado as
áreas que os Pataxó habitaram. No caso da Boca da Barra do
Corumbau o problema se amplia pelo próprio movimento da barra
que vai erodindo áreas de habitação. No caso das áreas próximas a
Cumuruxatiba o principal problema é a contaminação das águas de
rios e mananciais (principal fonte dos Pataxó que em sua ampla
maioria não possuem água encanada) e a busca de terra para
agricultura de subsistência.
261 Ir para o sumário >>

A questão do abastecimento de água é agravada pela ausência


de serviço de coleta de lixo e de esgoto. O saneamento se mostra
inexistente nas nucleações populacionais situados a montante das
bacias do Cahy e Corumbau: Corumbauzinho, Águas Belas,
Craveiro, Nova Alegria, Tiba, Pequiatã e mesmo naquelas inseridas
em espaços urbanos de grande atividade turística como Barra do
Cahy (Cumuruxatiba) e Boca da Barra do Corumbau (Corumbau).
Do mesmo modo ocorre nos assentamentos e acampamentos.
Percebe-se assim que mesmo projetos de cunho econômico,
com o objetivo de desenvolver as comunidades tradicionais que
habitam a região (Pataxó, pescadores, sem-terra) teriam forte
impacto nas práticas de preservação ambiental. O recrudescimento
do extrativismo no mangue para a subsistência e na mata atlântica,
com vistas a produzir artesanato, foi efeito da expulsão dos Pataxó
das suas áreas de plantação tradicionais, da diminuição do pescado
para os pescadores costeiros que passaram a sofrer a concorrência
da pesca industrial e da modernização da agricultura e mesmo do
desemprego nos espaços urbanos que empurram levas de
trabalhadores para o meio rural; deixando-os sem terra para
trabalhar.
Das escolas consideradas como localizadas em Zona Rural 16
se encontram em assentamentos do INCRA. Uma na TI Águas
Belas, uma no Povoado de São Francisco, outra no de Limeira e
uma outra no de Palmares, as demais 24 pertencem a fazendas
próximas as sedes, aos povoados ou ao Distrito de Cumuruxatiba.
Foi possível visitar a Escola do Assentamento Modelo que estava
em perfeitas condições de uso e construção com salas relativamente
confortáveis. Já a antiga escola da Agrovila I encontrava-se
262 Ir para o sumário >>

abandonada, junto com as demais casas do assentamento que foi


retomado por índios Pataxó da Área Craveiro.
Alem da flagrante ausência das quatro últimas séries do
Fundamental e do Nível Médio para os aglomerados populacionais
da zona rural outros problemas atingem a educação pública
municipal em Prado: a falta de professores com capacitação de
Nível Superior, bibliotecas, laboratórios e unidades de informática.
Percebe-se que mesmo entre os que moram próximos aos
equipamentos urbanos o número de não alfabetizados ou os que o
são apenas de forma funcional supera em muito o número dos que
chegam ao Ensino Médio. Cabe notar que muitos não concluem este
último. Outro dado relevante é que mais de cinqüenta por cento dos
Pataxó entrevistados encontram-se ou cursando ou parados nos
quatro ciclos do Nível Fundamenta. Note-se a importância da
educação municipal para esta população. A situação se agrava
quando se entra para as aldeias mais distantes do litoral e,
conseqüentemente, dos equipamentos públicos. As crianças das
aldeias de Corumbauzinho, Águas Belas e Craveiro tem que estudar
nas escolas dos Projetos de assentamento Três Irmãos e
Corumbau. Dados os conflitos que estas aldeias e PAs já
vivenciaram a situação não é de todo cômoda, ainda mais com as
estradas de acesso que eles possuem. Cabe notar que a aldeia
craveiro, localizada na antiga Agrovila 1 do PA Corumbau, conta
com um prédio escolar recém construído. Tal equipamento público
construído pelo INCRA em TI poderia tornar-se escola para todas as
aldeias da margem direita do Rio Corumbau.
As queixas dos Pataxó encontrados na área Craveiro e em
Corumbau a respeito da educação – especialmente o fato de terem
263 Ir para o sumário >>

que usar as escolas dos Projetos de Assentamento Corumbau e


Três Irmãos – apontam para a necessidade de uma educação
diferenciada, o que também é um direito constitucional dos povos
indígenas. Na região do Cahy as queixas vão desde a distancia das
escolas, principalmente para as famílias que ocupam áreas longe da
costa – o que impossibilita a freqüência à escola de crianças em
idade de pré-escolar, até reclamações sobre o tratamento que
algumas professoras dispensam as crianças Pataxó, especialmente
quando estas chegam à escola, pintadas, após os torés. Pode-se
tomar como modelo um projeto recentemente implementado em
Coroa Vermelha, numa ação que envolveu as comunidades Pataxó
de Porto Seguro e Santa Cruz de Cabrália, ONGs, a Igreja Católica,
universidades, FUNAI e FUNASA numa ação de formação de
professores Pataxó.
O grande problema nos assentamentos e para o Programa de
Saúde da família Indígena – PSFI, que atua em convenio com a
FUNASA nas aldeias de Prado, são as distancias que tiram o lucro
do médico, alem de aumentar o custo de transporte que o município
não pode arcar. A secretaria reclama o fato de que muitas destas
famílias vieram de fora do município, não sendo quantificadas
quando da repartição de verbas entre os municípios. No caso do
PSFI se vem tentando novo convênio para a aquisição de mais um
veículo.
O turismo também traz custos no atendimento de saúde no
município com ações que não geram lucro para o hospital que
possui quarenta leitos e presta alguns procedimentos pelo SUS,
inclusive partos, vesícula e apendicite. Os casos de parto de alto
risco são encaminhados a Porto Seguro, pois, não há uma UTI neo
264 Ir para o sumário >>

Natal. A unidade pertencia antes ao Município o prefeito anterior fez


uma doação para uma equipe filantrópica que assumiu a gestão da
unidade.
A gestão dos PSF vem sendo considerada positiva pelo
Secretário de Saúde. Apesar de ser gerido com verbas do governo
Federal, em alguns casos, como no das enfermeiras, o Município as
remunera com um salário menor que o pago em outros municípios
da região, mas, segundo o Secretario de saúde, o profissional “tem o
privilégio de receber em dia e uma boa relação com o prefeito”.
Ainda segundo ele “o Conselho de Saúde se reúne na última quinta-
feira do mês. Nunca causou problemas assim como a Secretaria de
Saúde nunca deu motivos para que causassem problemas. Tudo
que é colocado em pauta é aprovado”.
Quanto às instalações a Secretaria de Saúde, alojada no
prédio da antiga prefeitura no centro, possui salas pouco funcionais
para a gestão e atendimento em serviços de saúde. Ao mesmo
tempo ela abriga a coordenação dos PSF e o PSFI que, em si,
envolve complexas relações com as comunidades indígenas de
Prado, exigindo um certo espaço e, talvez, um posicionamento mais
próximo das aldeias entre Cumuruxatiba e Corumbau.
Os prédios onde funcionam as unidades do PSF foram vistos e
considerados satisfatórios. Evidentemente o do Bairro São Braz,
construído especificamente para este uso, funciona melhor do que
prédios adaptados como um que se localiza num dos subbairros
divididos a partir do São Braz e que possui varandas, obrigando os
clientes a esperarem do lado de fora por falta de espaço interno, o
fato do prédio ser alugado é um complicador para que sejam feitas
reformas. Na Área Indígena Corumbauzinho o PSFI possui um
265 Ir para o sumário >>

posto, adaptado também em uma casa.


Fora a ausência de um hospital melhor equipado para
emergências e especialidades. O trabalho das nove equipes de PSF
é considerado satisfatório. Destacaríamos a ausência de formação
entre alguns agentes comunitários de saúde, 54 na Sede e 27
atuando nas áreas rural.
A ação social no que diz respeito aos desempregados não vem
cumprindo um papel que ultrapasse o mero assistencialismo de
emergência e pontual em relação à diversidade de comunidades
carentes que pontilha o Prado. A atuação junto aos movimentos
sociais tem sido pífia a mediação de algumas ONGs como a Planeta
tem trazido a ação social para a assessoria a organização dos
desempregados e demais moradores dos bairros periféricos da
Sede.
Como já foi dito as comunidades Pataxó reivindicam a melhoria
das suas condições de trabalho, através da implantação de casas de
farinha para os que trabalham com agricultura e um plano de manejo
mais adequado para os que trabalham com pescaria e mariscagem.
Em entrevista com liderança da Aldeia do Kai ele queixou-se do
limite de trinta caranguejos por família e isto em época de “andada”,
segundo sua avaliação esta quantidade não resolve nem mesmo os
problemas de alimentação da família. Na aldeia do Craveiro, da
mesma forma que a escola, existe uma casa de farinha sem o motor
e a energia elétrica, apesar de instalada foi desligada. O plantio de
mandioca e a existência de uma casa de farinha em Corumbauzinho
tornaram a situação deles visivelmente melhor do que quando a
visitamos em 1999, quando a principal atividade econômica era o
artesanato.
266 Ir para o sumário >>

É perceptível que quando se ampliam as condições de


plantação, como nas aldeias que invadiram o PND o artesanato
torna-se residual, usado de forma funcional e ritual. A presença do
artesanato aumenta nas famílias próximas as áreas turísticas, mas
mesmo nestas o trabalho rural e a pesca ainda mostram muita força
enquanto práticas tradicionais Pataxó.
Quanto à segurança pública os assentamentos e aldeias
trazem conflitos fundiários e sociais, no bojo dos problemas sociais
que representam e opondo-se a fazendas tituladas, Unidades de
Conservação e grandes investimentos turísticos.
O estabelecimento de áreas indígenas capazes de garantir a
subsistência da população Pataxó, casas de farinha, projetos de
assentamento capazes de gerar emprego e renda na terra e um
maior controle na pesca industrial, com intervenções também no
beneficiamento do pescado produzido nas áreas costeiras e
extrativistas diminuirá a necessidade de impactar as importantes
áreas de mata e mangue, além dos arrecifes que cercam estas
populações.
Assim, mais que um desenvolvimento sustentável, o que se
tem de buscar é um ecodesenvolvimento, onde a preocupação com
as áreas citadas esteja em primeiro lugar, antes das ações
impactantes que costumam se impor como necessidades oriundas
do próprio desenvolvimento. E, caso se tome ethnos lato senso todo
ecodesenvolvimento é também um etnodesenvolvimento, pois, há
milhões de anos que os seres humanos fazem parte da fauna
ambiental. Não se pode falar de ecologia em Prado excluindo os
Pataxó e as demais comunidades tradicionais do meio ambiente.
Concomitantemente, percebe-se que esta ação não pode se
267 Ir para o sumário >>

dar apenas no âmbito municipal. O Parque Nacional e Histórico do


Monte Pascoal está situado inteiramente no território de Porto
Seguro, no entanto o entorno sul que lhe protege está em Prado.
Com a RESEX acontece o mesmo. Quanto às populações
envolvidas elas são provenientes de Prado, e de outros municípios
da região, sendo clientes da política indigenista brasileira via FUNAI
e da política de colonização e Reforma Agrária via INCRA. Estando
envolvidas Áreas de Preservação Ambiental (APA) e reservas
extrativistas o IBAMA tem que estar envolvido. Por fim a educação
ambiental de povos indígenas é de responsabilidade do mesmo
órgão que cuida da saúde dos mesmos, pois, saúde e educação
ambiental estão intimamente ligadas. Isto traz a FUNASA para o
debate, pois, dela é a responsabilidade pela saúde e educação
ambiental dos povos etnicamente diferenciados. Evidentemente a
FUNASA de Prado não está aparelhada para cumprir tais funções e
novos convênios entre o município e o governo Federal devem ser
buscados.
Tais ações de aproximação entre estas entidades
governamentais e comunidades mostraram novas tendências nas
relações entre estas pessoas a FUNASA e o IBAMA. Foi possível
encontrar elogios sobre a atuação destes dois órgãos, refletindo
numa atenção melhor a saúde das aldeias, ou, no caso dos que
habitam próximos à RESEX, numa maior quantidade de peixes
devida ao combate à pesca predatória. Está tendência ao diálogo
positivo pode espalhar-se pelas demais aldeias. Fica patente, que
tratar dos aspectos histórico-culturais de Prado e de como eles
afetam as interações humanas no município é uma questão mais
ampla do que o apoio financeiro a grupos folclóricos ou a construção
268 Ir para o sumário >>

de mais espaços para eventos. Envolve a possibilidade prática de


preservação e difusão de valores, de um modo de vida próprio.
Comparar-se-á a participação Pataxó com os Projetos de
Assentamento que enfrentam problemas similares em relação à
garantia dos seus direitos de cidade, com as mesmas afirmações
sobre serem um problema federal que é ‘empurrado’ para os
municípios. Segue-se aqui a definição de trabalhador rural conforme
recortada por Anete Brito Leal Ivo (1991) que é bastante ampla
cobrindo a diversidade de agentes que permeiam o mundo do
trabalho campesino. Ao lidar com problemas relacionados aos
trabalhadores rurais não podemos esquecer a multiplicidade de
agentes envolvidos nesta categoria, se não se quer cair no erro dos
especialistas na questão agrária que, nos anos 1970, a resumiam ao
problema do “bóia-fria” e, nos anos 1980, passaram a subsumi-la na
problemática dos “sem-terra” (Velho, 1980). É preciso ver que os
bóia-frias ainda existem e, quando desempregados, engrossam as
fileiras dos acampados e, esses mesmos acampados podem se
dedicar a atividades assalariadas na produção agropecuária, quando
tem oportunidade.
Corumbau, Guarany, Limeira, São Francisco, Palmares,
Córrego Dourado, Vale do Jucuruçu, em todos estes pontos uma
outra perspectiva perpassa o município de Prado. Neles se pode
encontrar a Prado rural, pontilhada de pequenos produtores
familiares proprietários de sua terra, posseiros os mais diversos e
assentados que compartilham em suas associações parcelas de
Projetos de Assentamento do INCRA, sem contar os acampados
que compartilham suas lonas e beiras de estrada e os que trabalham
como assalariados nos grandes empreendimentos agropecuários ou,
269 Ir para o sumário >>

sazonalmente, nas pequenas propriedades (estes dois últimos


grupos podem alternar as mesmas pessoas que, quando
empregadas, serão assalariadas, quando não empregadas podem
tentar a sorte na lona dos acampamentos).
Em Prado existem 19 agrupamentos de trabalhadores rurais
sem-terra (Fajardo, 2000), com diferenciadas condições de
produção, comercialização, habitação, educação, saúde,
esgotamento, relações com o poder público e suas políticas e
mesmo no aspecto dos vínculos organizacionais. Pode-se dividi-los
em três grupos principais: os PARs da área do São Francisco,
ligados ao Cédula da Terra, que utilizando técnicas de produção
multivariada ampliaram suas possibilidades de produção e
comercialização; os PARs ligados ao MST, onde a produção
resume-se a criação extensiva de gado e plantação e
beneficiamento de mandioca (CAETANO DA SILVA, 2003) e os
acampamentos, como o “Patativa do Assaré” (MST) que, ocupando
terras de um PAR do MST reúne 482 famílias e aguardava em 2003
a chegada de mais 150, todas cadastrados pelo INCRA. Neste
acampamento foram registradas condições precárias de higiene,
educação e saúde. Foi possível registrar, também, diversas
estratégias dos acampados no sentido de minorar esta
precariedade: farmácias organizadas por doações dos próprios
acampados, busca de atendimento junto á ONG Médicos Sem
Fronteiras, organização de uma escolinha para alfabetização e
séries iniciais; além do apoio do MST.
Apesar dos órgãos públicos municipais se queixarem dos
assentados e acampados, por eles provirem de outros municípios,
ou do próprio espaço urbano de Prado, venham de onde vierem, o
270 Ir para o sumário >>

significado da presença deles é um aumento significativo do número


de pequenos produtores familiares que formam aglomerados
populacionais que precisam ser atendidos pelos serviços públicos
municipais. Mesmo os parceleiros do INCRA dependem das políticas
municipais de saúde, educação. Especialmente após o fechamento
do escritório do INCRA em Itamaraju.
Subsumida pelo coronelismo comum ao Nordeste, a questão
agrária reaparece na década de 1970 nas lutas pelos direitos
trabalhistas dos bóias-frias, encetadas pelos sindicatos de
trabalhadores rurais e, a partir dos anos 1980, nas ações dos sem-
terra, organizados inicialmente pelas Comunidades Eclesiais de
Base católicas e, após desenvolver organizações próprias como o
MST, incorporar na luta dos trabalhadores rurais a visão da terra de
trabalho como um espaço sagrado do pequeno produtor familiar, o
que lhes permite romper com a ordem estabelecida nas ocupações e
acampamentos (MARTINS, 1989, GRAZIANO DA SILVA, 1980,
1991, VELHO, 1980, IVO, 1991, 1993).
Outros fatores, no entanto, influenciaram as ações de reforma
agrária em Prado e não são analisados pelos referidos no parágrafo
anterior. A desvalorização da terra pelo esgotamento ou pela
retirada do que elas possuíam de mais valioso (a madeira) tornou a
Reforma Agrária de questão tabu num interessante acordo para a
maioria dos envolvidos em conflitos fundiários em todo o ES baiano:
posseiros/grileiros (indenizados por benfeitorias), fazendeiros e seus
herdeiros de posse de parcas titulações e de registros duvidosos
sobre terras devolutas e esgotadas, técnicos do INCRA ávidos em
criar assentamentos, trabalhadores rurais sem terra e advogados
para mediar as transações. Assim Prado se torna em três décadas o
271 Ir para o sumário >>

paraíso da função social da terra. Muitos dos assentamentos são


implantados em terras que estavam sobre áreas em estudo pela
FUNAI para a homologação de terras indígenas Pataxó. O que não
só criou conflitos entre os sem-terra e estas comunidades
tradicionais, como dividiu a muitas destas transfigurando famílias
Pataxó em parceleiros do INCRA com “perfil de sem-terra”; deixando
outras de fato sem terra, apesar de por direito constitucional serem
os donos legítimos dela (CAETANO, 2002).
As múltiplas perspectivas de posse configuradas aqui
representam uma aproximação à noção nativa de posse da terra,
luta que os Pataxó empreendem ante as posses que se pretendem
legitimas e que são instrumentais para agentes sociais colocados
em interação com os Pataxó no entorno do Monte Pascoal. Tal
posse espera o laudo de revisão para dar continuidade a seu
processo de homologação, enquanto tal não ocorre espera,
alargasse, estreitasse, ao sabor das disputas entre e intra-classes.

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______.1996 [1922] Ethnic Groups. In: W. Sollors (ed.). Theories of
Ethnicity: A Classical Reader. London: Macmillan Press, p.52
279 Ir para o sumário >>


3 TRADIÇÕES ÉTNICAS PATAXÓ

3.1 . ENTRE SANTOS, ESPÍRITOS E ENCANTADOS: OS PATAXÓ DE BARRA VELHA,


BAHIA
Gabriele Grossi

Os Pataxó são um povo indígena, por muito tempo considerado


extinto, que ocupa a reserva indígena de Monte Pascoal. Eles são
classificado pelos regionais como “índios misturados”, causa de
casamentos inter-etnicos que deram origem a um processo de
miscegenizaçao. Sua cosmologia se apresenta extremamente rica e
complexa pela presença de elementos de diversas tradições
religiosas, ameríndia, católica e afro-brasileira, que são
constantemente re-significados, reintegrados ou simplesmente
justapostos dentro de um sistema simbólico em constante
transformação. Esta configuração religiosa è de difícil apreensão e
nenhum índio a domina na sua totalidade, ela aparece fragmentaria
e às vezes contraditória a nível teórico, opondo-se a qualquer
tentativa de classificação rígida, pois ela è extremamente flexível.
O que parece incoerente em nível do sistema lógico se revela ao
contrario bem adaptado no plano das práticas sociais, os Pataxó
doam uma significação própria à cosmologia católica, herança de
mais de 100 anos de missões de capuchinhos na região,
transformando-a e adaptando-a as próprias necessidades e ao
contexto histórico, integrando elementos do umbanda e do
candomblé, e a fragmento da própria tradição.
280 Ir para o sumário >>

Os longos períodos de ausência do padre, que visitava a aldeia uma


vez por mês, permitiram manter uma base da sua cosmologia
original, ajuntando símbolos cristãos como complementos, mais que
como substitutos. As relações entre os diversos elementos,
caboclos, espíritos, encantados, santos e Deus não são definido da
mesma forma para todos os índios e podem mudar seja nas práticas
sociais que nos discursos, dependendo do contexto de enunciação,
da situação política, da historia da família, e da posição ocupada
dentro da aldeia.
A partir desta constatação se poderia afirmar que a divindade
superior, Deus, o criador de todos os seres viventes, homens ,
animais e plantas, è geralmente reconhecidos por todos, sendo
chamado ou de Tupã, ou de nosso Senhor. Ele è o garante da
ordem e do equilíbrio cósmico, ente supremo, não è objeto de
nenhum culto especifico, pois è considerado como longe das
preocupações humanas, embora todos os cultos seja remetam
indiretamente a ele e dependam da sua vontade para se tornar
eficaz.
Os Santos

O segundo nível, articulado hierarquicamente com o primeiro, è


povoado pelo santos, entre os quais os mais populares são Nossa
Senhora da Conceição89, Nossa Senhora da Ajuda, Bom Jesus da
Lapa, São Benedito, são Judá, São Brás, são Sebastião e Cosma e
Damião. Habitam numa esfera celeste90 e são subordinados a Deus
de quem recebem o poder para realizar milagres, sobretudo nos

89 Esses santos são extremamente populares na região, não somente entre os Pataxó, e existem vários santuários dedicados a alguns deles.

90 Com a exceção de Sebastião, considerado um santo índio, e de Cosme e Damião que pertencem a mitologia do candomblé.
281 Ir para o sumário >>

casos mais graves. A relação com os santos è constitutiva da


cosmologia dos Pataxó, eles participam ativamente da vida cotidiana
e socorrem os índios nos momentos mais importantes: um acidente,
uma doença, o casamento da filha, a necessidade de comida..., toda
a vida social se desenvolve em contato permanente com santos e
caboclos.
Um ex cacique, Zé Baraià explicava assim sua devoção a São
Benedito:
“Os velhos, meu avo, era cacique, me dizia que a gente tinha que
acompanhar as festas, respeitar os direitos dos santos, festejar o
tempo deles. A gente ia crescendo e eles iam explicando pra
gente...e ai a gente tomava conhecimento com os santinhos. Tanto
que a gente tem muita consideração em santos, a gente até hoje
continua com as mesmas tradições”.
No relato aparece constantemente a reafirmação da continuidade
desta tradição, percebida como elemento transmidito pelos anciãos,
neste caso seu avo. A historia de sua relação com os santos è a
historia de sua própria socialização, a historia da reprodução das
relações de parentesco, construídas a partir de narrativas e práticas
compartilhadas. No decorrer desta socialização os santos são
apresentados como colega de caminho, ocorre participar dos seus
rituais, cultuá-los na época certa, se submeter às obrigações rituais.
As narrativas, constantemente repetidas, durante a atividade
cotidiana ou à noite ao redor dos fogos, constituem um dos
elementos fundamentais da socialização e permitem de ilustrar a
ação dos santos (e dos caboclos como veremos em seguida) de
forma paradigmática. Nessas narrativas se mostram as atitudes e o
comportamento recorrentes atribuídos aos santos, definindo assim
282 Ir para o sumário >>

seu temperamento: è na ação que ele mostra como se realiza seu


poder. As narrativas se misturam, se confirmam e reforçam
reciprocamente, delimitando um campo de significação que define o
universo das ações possíveis e orienta as expectativas dos índios.
Através dessas narrativas são construídas categorias cognitivas que,
incorporadas desde a infância, permitem de classificar e doar um
sentido a realidade e os vários acontecimentos, seguindo um modelo
religioso. A forma de agir de Zé Baraia è conforme e estas
categorias, se tornando um senso pratico, esquema de ação e
pensamento incorporado (Bourdieu, 1980). Ele opera nos momentos
do perigo, onde somente o santo pode agir, em troca de uma
promessa, estabelecendo uma relação de ajuda e devoção. É o que
aconteceu quando Zé Baraia saiu pra pescar em mar aberto com
uma pequena canoa e de repente o tempo começou a piorar,
chegou uma tempestade e o vento forte o afastou da terra firme, que
ficava cada vez mais distante:

“Se quando sai tivesse ventado logo eu não ia, mas acontece que
esse tempo me pegou lá no mar. Eu quase morro, tava todo
entravado de frio, as pernas não funcionam..água fria, vento frio ... e
eu dentro da água, não tem quem guente... o único santo que vou
me pegar agora é são Benedito, vou me pegar nele porque tenho
muita fé no santo. Me peguei ao Santo. E ai não tinha ele em casa
não, mas pedi que virasse o vento do norte pro sul, virasse pro leste,
que o vento do leste só traz pra terra. Ai no espaço de meia hora
que eu tinha me pegado na promessa com o santinho o vento parou.
O vento calmou, ai “ com essa calma eu vou pra terra” ai daqui a
pouco formou o vento leste e ai choveu forte, choveu, e vim para
terra, cheguei em Caraiva. Rapaz, cheguei em Caraiva quase morto
de frio, morto de frio.. O dia todo batendo os dentes de frio. Quem
283 Ir para o sumário >>

salvou a minha vida foi o santo, aí comprei o santo e botei dentro de


casa. Ta ai..”.

Assim em caso de perigos se pode recorrer ao ajuda dos santos,


única esperança no desespero. Zé Baraia reconhece que na época
ainda não tinha estabelecido com São Benedito uma relação de
cumplicidade e intimidade, como revela o fato de não possuir
nenhuma estatua do santo. Esta relação mais intensa se constitui a
partir de uma promessa: se mudar o curso do vento, o cacique
comprará uma estatua do santo, segundo uma lógica da
reciprocidade.
A promessa implica a adesão a um sistema de obrigações, de
engajamento recíproco, que caracterizará a nova relação,
socialmente reconhecida, entre o santo e o homem. A promessa
pode ser feita por coisas aparentemente banais da vida cotidiana,
como a procura de um objeto perdido, ou mais grave, como no caso
citado. A promessa deve ser sempre paga, se não serão os parentes
a quem caberá a responsabilidade de paga-la, pois a ligação
estabelecida com o santo è tão poderosa, que obriga mesmo em
caso de morte. Foi o caso de um índio, que foi batizado, para
cumprir a promessa que sua mãe, que tinha morrido. O juramento è
análogo a promessa, instaura a mesma relação, mas esta vez
diretamente com Deus. A sogra do pajé tinha jurado de bater em sua
filha, mas morreu antes de poder cumprir seu juramento “A mãe
encostou na outra filha “eu só vim aqui mesmo porque jurei de dar
uns palmadas nela e em vida não bati, então não posso conseguir
minha viagem. Jurei então sou obrigada a cumprir meu dever...”.
Deste exemplo aparece claramente como elementos católicos, o
juramento a Deus, se integram com elementos afrobrasileiros, o
284 Ir para o sumário >>

encosto ou possessão, formando uma configuração original mas


perfeitamente coerente na sua lógica interna.
A promessa è um elemento constitutivo do que Brandão (1980)
denomina “a religião popular” brasileira, caracterizada por uma
produção de crenças e de rituais autônomos em relação aos agentes
especializados da Igreja, e em contraponto a religião da elite e da
classe media.
A promessa se articula em etapas: o pedido deve ser
expressamente formulado e endereçado a um santo especifico com
os quais se possuem afinidades pessoais ou familiares, pois cada
santo possui sua própria personalidade, suas características e seu
domínio particular. São Bentos, por exemplo, è reputado
particularmente eficaz contra as mordidas de cobras. Da mesma
forma precisa definir as modalidades de pagamento da promessa,
uma vez que o pedido serà satisfeito, reconhecendo assim o poder
do santo. Varias são as modalidades de pagamento, dependendo da
dificuldade do pedido. Se fala de “pagar uma promessa” como se
tratasse de uma transação comercial e esta relação de do ut dês
aparece claramente explicitadas nas palavras da rezadeira, também
devota de São Benedito:
“São Benedito anda esmola aqui. A gente bota um dinherinho nos
pé dele quando chega com o pandeiro batendo. Bota um dinherinho.
Ai ele (o santo) canta, louva a gente, agradece. , Os foliões dele
agradece a gente. A gente pede pra ele ajudar a gente. Outro ano
quando vem a gente já tem também um dinherinho pra dar”

Instaura-se assim uma lógica da reciprocidade que continua no


tempo, se oferece um dinheiro para poder receber um dinheiro, para
poder oferecer novamente o ano seguinte... O pagamento deve ser
285 Ir para o sumário >>

proporcional ao pedido, se passará assim de forma mais simples


como acender uma vela, oferecer flores, soltar fogos até uma
peregrinação em um santuário ou oferecer uma festa. As
peregrinações mais renomadas são aquelas ao santuário do Arraial
da Ajuda, Nossa Senhora da Ajuda e a Bom Jesus da Lapa, onde
aconteceram milagres entre os mais populares da Bahia.
A relação com os santos se constrói sem a mediação de instituições
eclesiásticas, o padre não desempenha nenhum papel, pois se trata
de uma relação vivenciada como um pacto pessoal entre o santo e o
pagador da promessas. Podemos observar como Barra Velha se
insere no interior de um circuito de peregrinação e trocas de
natureza religiosa que inclui Prado, Bom Jesus da Lapa e Arraial
d’ajuda, integrando os Pataxó numa rede de amizade e crenças. É o
caso dos foliões de são Bento que chegam de Prado acompanhando
a estatua e recebem hospitalidade e oferendas.
Os santos cultuados, que moram nas regiões celestes
hierarquicamente mais próximos de Deus, são um numero limitado e
suas vidas moralmente exemplar os faz considerar como entidade
sempre benevolentes. Eles não se incorporam, com exceção de São
Sebastião e Cosme e Damião, considerado como santos encantados
e objetos de constantes re- significação nas tradições afro brasileira
91
e indígenas .
A comunicação com os santos acontece graças à mediação das
estatuas e das imagens, encontrados frequentemente em pequenos
altares domésticos. Os santos podem ser objetos de ritos públicos e
solenes, è o caso das festas do mastro dedicadas aos Reis, a são
91 São Sebastião è considerado como o mais índio dos santos, “São Sebastião é guerreiro. Ele ajuda o índio”- Ele è identificado com a causa

indígena, pois na iconografia è representado como guerreiro que morreu vitimas das flechas. Cosma e Damião foram provavelmente

introduzidos pelos escravos de origem africana que procuravam refugio, que os recebiam em cultos de possessão e que ainda hoje os recebem.
286 Ir para o sumário >>

Sebastião e a são Brás, que juntamente com a festa de Nossa


Senhora da Conceição constituem o ciclo de festividade mais
importante da aldeia de Barra Velha92, nos meses de dezembro e
janeiro.
Uma ligação profunda subsiste entre as imagens e o corpo dos
santos, a representação material possui um poder místico de origem
divina que explica o particular cuidado e a atenção com as estatuas.
Trata-se de um processo metonímico aplicado as estatua, pelo qual
uma parte significa a totalidade, e a manifesta, tornando possível a
relação. Não è possível uma relação intima com os santos sem o
intermediário das estatuas e das imagens, mesmo quando esta
relação è defasada no tempo, como no caso do cacique. Os santos
podem ser invocado em todas as circunstancias, sobretudo em caso
93
de necessidade, mas seu poder se materializa nas estatuas .
Cada vez que um índio fala dos santos, não è nunca de uma forma
abstrata, mas fazendo sempre referencia a um santo, indicando sua
representação material que se torna condição de seu poder
espiritual. A materialidade das imagens e estatuas do santo
possuem a mesma função que a materialidade do corpo dos índios
“possuídos” pelos caboclos, condição necessária de sua
manifestação. A mesma lógica è presente as forças espirituais não
podem agir sem um suporte material, seja o corpo do índio o a barro
da estatua.
Caboclos e encantados

92 As festas do mastro são amplamente difundida no sul da Bahia e se encontram em cidades como Trancoso, Caraiva e Porto Seguro. De

origem católica as festas do mastro foram importadas pelos padres jesuítas e capuchinhos, utilizadas como eficaz método de catequese dos

povos indígenas por sua analogia com a “corrida de tora”, tradição presente entre diversos grupo macro-je (Nimuendaju, 2001: 151-194).

93 Ver Augé (1988) sobre o problema posto pela materialidade ao pensamento humano.
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A articulação das relações entre santos e caboclos não apresenta


particulares dificuldade para os Pataxó, cada um preserva sua
especificidade e prerrogativas, atuando na própria esfera de
competência: “Santos não descem não, ma se dão bem com os
caboclos”. Ao contrario dos santos, caboclos e encantados não
habitam numa região celeste na proximidade de Deus, mas moram
na terra, fora da aldeia, na mata, no mar ou no mangue, num espaço
determinável geograficamente. Os caboclos são dotados de poderes
ambíguos, construtivos ou destrutivos, em conformidade a sua vida
anterior na terra, pois anteriormente a sua transformação em
caboclo eram seres humanos. O mundo dos caboclos e dos
encantados, considerado de natureza inferior aos santos, se
apresenta como um mundo aberto a continua transformações, com
um elevado nível de indefinição: novos seres podem se manifestar a
qualquer momento. Foi o caso dos índios que desapareceram no
mar, uma vez que tinham saído para pescar. Após alguns anos do
acontecimento eles se manifestaram numa sessão como caboclos,
sem falar nada mas vomitando água, confirmando assim o que ate
então era só uma hipótese: eles tinham todos morridos no mar.
No seu discurso os Pataxó utilizam o termo caboclo de maneira
diferentes, as vezes identificando-o com os encantados e outros
espíritos, as vezes diferenciando-o. Tentando sistematizar poderia
se dizer que os encantados ou encantos são humanos que não
morreram, fixando-se numa situação intermediaria, de encanto entre
vivos e morto. Os caboclos, por sua vez, seriam personagem
históricas que morreram, mas que, com a permissão de Deus,
podem continuar a se manifestar aos humanos através da
possessão, como seria o caso dos índios afogados. Esta distinção,
288 Ir para o sumário >>

teoricamente clara, aparece na pratica social mais duvidosa: os dois


termos são freqüentemente utilizados como sinônimos, recobrindo o
mesmo campo semântico.
Alguns caboclos são figuras históricas, antigos moradores de Barra
Velha, que procuram manter intensas relações com os parentes da
aldeia, interessando-se dos seus problemas, sejam de saúde,
amoroso ou político. e desempenhando um relevante papel no
processo de reivindicação das terras indígenas ocupadas pelos
fazendeiros da região.
Os índios que durante sua vida foram apreciados pelos seu
comportamento, pela dedicação a causa indígena são objeto de uma
particular reverencia, ao contrario daquele considerado como
problemático ou perigosos. A memória deles tende então a
desaparecer ou pode manifestar-se como espírito dos mortos,
ameaçador e perigosos, assim como foram durante sua vida. È o
caso do “capitão Honório”, considerado, talvez injustamente, o
responsável pela destruição da aldeia por parte do exercito
brasileiro, no “fogo de 51”.
Os caboclos são sensíveis ao apelos dos humanos, pois já
vivenciaram dificuldades parecidas, por isso se encarregam de
cuidar da saúde dos doentes ou de alertá-lo dos possíveis perigos.
Como afirmava Tururim: “Tem índios pra cuidar dos outros, avisam
que a pessoa ta doente, que ta chegando um perigo..”. Os caboclos
são índios, são parentes que cuidam dos outros parentes. Em caso
de dificuldade, não importa se de natureza individual, familiar ou
social, os Pataxó podem sempre recorrer a ajuda dos caboclos:
“Quando o povo chama eles descem. Pode estar longe mas se
chamar eles vem”.
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Alem de exercer uma função terapêutica, cuidando da saúde,


sugerindo banhos de folhas ou defumigações aos doentes, os
caboclos nas suas mensagem enfatizam a necessidade de preservar
as tradições e festas, contribuindo assim a fortalecer a percepção de
uma identidade étnica diferenciada: “Tava na festa, tudo mundo
sambando ne.. ai ele chegou, meu pai chegou nela..”quem ta aqui é
Emílio, eu não quero que termine esta brincadeira que nos temos.. o
samba.. não é pra acabar..vocês não desprezem esta festa.. esse
samba que vocês estão dançando ai não podem desprezar não..
essa é uma benza que vocês tem aqui dentro dessa aldeia”.
Os caboclos são os testemunhas de uma historia passada, a historia
das origens do povo Pataxó, e portanto são considerado os
guardiões da memória e das tradições:

“Minha irmã deixou uma coisa tão boa. . Eu recebia o caboclo dela.
Tem uns caboclo que quando chega conta todo os princípios da
aldeia. Como era, conta tudo. Ai vai dizendo e vai contando.. vai
dizendo e vai contando..”.

Enquanto guardiões da memória, os caboclos podem transmitir aos


parentes vivos a lembrança da violência que subiram, , da ocupação
de suas terras invadidas pelos fazendeiro, de um passado que não
querem que seja esquecido. Os caboclos participam ativamente ao
processo de reivindicação territorial e orientam as ações políticas
“Eles falam, falam que quer as terras de volta, inclusive as matas
que foram destruídas. Antes era toda mata”.
Não existe nenhuma manifestação política, ou reivindicação
territorial que não seja precedida de uma mensagem enviada pelos
caboclos que continuam a acompanhar e a orientar a luta dos seus
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descendentes. Qualquer ocupação de terra, seja a do Parque ou a


de fazendas é sempre acompanhada por uma orientação dos
caboclos. São “os mais velhos que lutam pela terra”, pois eles
conhecem melhor de que ninguém onde eles moraram, qual o
território que lhe pertencia, qual a delimitação das terras. São eles
que, as vezes de forma inesperada, oferecem indicações de metas e
objetivos a alcançar, sobre os tipo de estratégia a seguir, alertando
os próprios parentes sobre perigos e insidias escondidas.
Alguns caboclos não pertencem a historia comum dos Pataxó e são
diferenciados a partir de critério de residência: Na mata tem Sultão,
Gentil, Mata Bruta e a Caipora. E no mar tem Janaina, a Mãe d’Água
e Martins Pescador”. Outro critério de classificação è racial, alguns
caboclos são considerados negros como Nega Velha, Nego d’Água
e Preto Velho, enquanto os outros são considerados ameríndios. Os
caboclos são bastante numeroso e constituem uma lista grande e
variável, dependendo dos grupos familiares e da localidade: entre os
mais citado na aldeia encontramos Sultão, Gentil, Mata Braba,
Boiadeiro, Martins Pescador. Seu comportamento se diferencia
daquele dos índios históricos: são agressivos e vulgares, amam os
excessos, bebem e fumam, brigam e xingam. Os caboclos e os
encantados se manifestam publicamente, através da possessão,
sobretudo em tempos de festas, pois, segundo a tradição gostam
muito de musica e dança.
A possessão, uma espécie de aliança entre caboclo e o médium, è
um dos momentos mais importante da vida religiosa dos Pataxó,
pois os caboclos se manifestam e se incorporam para vir ajudar os
homens. Para receber os caboclos não há nenhuma iniciação ritual
estabelecida, esta capacidade é a principio reconhecida a todos os
291 Ir para o sumário >>

índios, não sendo necessária nenhuma predisposição particular.


Apesar desta possibilidade teórica, os caboclos escolhem livremente
o corpo que desejam possuir, seguindo critérios de seleção e
interesse pessoal.
Entre os Pataxó se encontram diversas modalidade de possessão,
que remetem as diversas tradições religiosas que se misturaram no
processo do contato, o que torna difícil determinar quais os origens e
de que maneira estas influencias se articulam e se misturam nos
vários grupos familiares.
Entre este modalidade, alguma parecem remeter a uma possível
origem ameríndia. O pajé de Barra Velha por exemplo utiliza o
tabaco antes da possessão, fumado num cachimbo ou utilizados
para defumigação. Esses elementos fazem pensar a confluência de
dois sistemas religiosos que se seriam conservados, se integrando
parcialmente, um de origem afro-brasileira e outro ameríndia. O
tabaco è utilizado frequentemente por varias populações ameríndia
(Descola, 1993; Viveiros de Castro, 1992) como meio para sair de si
e alcançar uma outra dimensão ou também para sua virtudes
terapêutica. O tabaco pode então ser utilizado para caçar os mau
espíritos de uma casa ou de um corpo, para curar as doenças e
permite de “fechar o corpo”, impedindo a entrada de mal espírito.
Uma outra forma de comunicação com os espíritos amplamente
difundida è através os sonhos. Os sonhos permitem o acesso a uma
outra dimensão da realidade, “o espírito sai quando a gente sonha”,
podendo aprender informações escondida aos humanos. Enquanto a
possessão è prevalentemente feminil, são sobretudo os homens que
sonham: è o caso dos pajés de Barra Velha e de Boca da Mata. Eles
relataram que durante os sonhos são visitados por indivíduos que
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lhes trazem mensagem, esses indivíduos podem ser soldados,


mulheres , crianças, mas os mais importantes são, como no caso da
possessão, espíritos da mata ou velhos índios. Esses caboclos os
acompanham há anos. Outros Pataxós afirmaram de sonhar com
seus parentes mortos que os convidam a valorizar suas tradições e
a não esquecer suas festas, em conformidade com as mensagem
veiculada pelos caboclos durante as possessões. Esta mesma
modalidade se reencontra na Amazônia entre os Achuar, (Descola,
1998:27) que podem comunicar com as plantas e os animais graças
aos encantados, mas que è sobretudo através dos sonhos que
conseguem respostas, seja por partes de espíritos que de heróis
mitológicos. Entre os Pataxó não temos heróis mitológicos, mas
existem heróis históricos, como o capitão Epifanio, entre outros, que
lutaram com determinação pela delimitação das terras indígenas e
pelo reconhecimento da identidade étnica e que, transformado em
94
encantados, se tornaram um modelo de herói mitológico . Os
acontecimento histórico são portanto mitologizados, a historia
transformada em mitologia, da mesma forma que a mitologia se
atualiza na historia pode contribuir a transformá-la pois os
encantados se referem constantemente a vida da aldeia,
expressando-se sobretudo sobre questões políticas e reiterando sua
preocupação pela salvaguarda das tradições e festas antigas e
sobre a necessidade de defender ou reconquistar o território
ocupado pelo ancestrais.
Os Pataxós, assim como muitas populações ameríndias,
reconhecem a existência de espíritos, ou encantados, que como ou
a Mãe da Mata, d’Agua , do Mangue que podem aparecer

94 Andrade (2202:82) observou o mesmo fenômeno entre os Timbalalà, no sertão norte da Bahia.
293 Ir para o sumário >>

transformados em animais ou homens, misturando atributos e


comportamento dos dois mundos. Este parecer ser o efeito de
mitologia amplamente difundidas no continente : “...se há uma noção
virtualmente universal no pensamento ameríndio , è aquele de um
estado original de indiferenciação entre os humanos e os animais,
descrito pela mitologia” (Viveiros de Castro, 1996: 118).
Estes mitos relatam como a condição comum aos homens e animais
que prevalecia originalmente era a condição humana, e somente em
conseqüências de uma serie de peripécias os animais teriam
perdidos esses atributos. Infelizmente não encontramos que
fragmentos dessas mitologias entre os Pataxó, mas os espíritos
associados ao território que eles descrevem parecem testemunhar
dessa indistinção entre homens e animais. Esses espíritos,dotados
de uma intencionalidade humana, exercem a própria
responsabilidade sobre aspectos específicos da topologia indígena,
em lugar determinados do território. Penetrando nesses territórios
ocorre ter um comportamento conforme as regras que eles definem,
evitando ações que possam causar problemas a animais e plantas,
submmetido a sua responsabilidade.
A Senhora do Mangue è considerada a responsável para todos os
seres vivente no mangue “siri, caranguejo, aratu, camuçutuba,
baiacu, concha, ostra, búzio, tainha, carateba”: por esta razão ela
possui o poder para permitir que os humanos se alimentem desses
animais. No entanto, ela não tolera abusos. Inúmeras narrativas
lembram as sanções que atingiram quem não respeitou as
interdições que visam limitar o consumo e proteger a reprodução dos
moluscos.
294 Ir para o sumário >>

A necessidade de salvaguardar o equilibro ecológico è um elemento


importante na ação desses seres: caçadores e pescadores que
cometem abusos, matando em excesso, ou seja eliminando fêmeas
durante o período produtivo e animais ainda jovem, ameaçam o
processo reprodutivo e consequentemente as possibilidade de
sobrevivência da própria população indígena, que vê sua reservas
alimentares se reduzirem drasticamente95. O equilíbrio entre
ecossistema e crescimento demográfico dos índios è
constantemente lembrado graças a esses contos, com finalidade
pedagógica, narrados as crianças. Todas as narrativas convergem
para alertar contra vícios morais, quais a avarice, o egoísmo, e a
ambição que poderiam causar danos irreparáveis ao mangue, um
dos ecossistema mais complexos do mundo96.
Esta interpretação da função social das narrativas não deve ,
entretanto, excluir outra, que se situa num nível de analise
cosmológico. Todas essas narrativas sobre o Senhora do Mangue
apresentam a mesma estrutura e a mesma moral daquelas que se
referem a Caipora, contendo os mesmo elementos, mesmo que as
vezes em ordem diferentes. A caipora è descrita como um ser
invisível que pode manifestar-se sob forma de animal ou como uma
sedutora mulher, manifestando assim sua capacidade de
transformação, que revela as múltiplas afinidades que subsistem

95 Descola (19)8) fala de uma “ética da caça” que implica de não matar mais animais do que necessário, de manter um comportamento

respeitoso e de não provocar sofrimentos inúteis.

96 O mangue desempenhou um papel fundamental na vida econômica da aldeia , e sua importância aumentou durante os anos 60 e 70, quando o

Ibama tentou impedir qualquer tipo de atividade agrícola ou de caça no território, expropriando os Pataxó do seu território, considerado

propriedade do Parco. O mangue era, na época, o único lugar onde podiam assegurar sua sobrevivência, coletando moluscos , sobretudo quando

não tinha mais nada para comer.


295 Ir para o sumário >>

entre os seres viventes, originariamente indiferenciado. Ela gosta de


“fumo”, o tabaco, e para torná-la amistosa è conveniente lhe fazer
alguns presentes antes de se aventurar na mata.
“A Caipora mora na mata. Ela atrai a agente, é uma mulher, mas é
invisível. Quando vai caçar diz “Caipora queria que você me desse
uma esmola ai pra gente ir embora”. Agora você tem que ter
devoção pra ela, ai toda vez tem que levar um agrado pra ela. Ela
gosta muito de fumo. Ai ela fica mansa e ela dá as coisas. Porque é
ela que toma conta da caça”.
Desta maneira, numa clara relação de reciprocidade, ela tende a
permitir um bom andamento da caça em troca do tabaco, doando as
predas. Esta lógica da reciprocidade se encontra em vários povos
amazônicos: “Plusiers d’entre eux offrent encore dês contrapartie
rituelles aux animaux et aux esprit qui lês representent, sous forme
d’offrande de tabac, de nourriture...” (Descola, 1998:30).
A caça è uma atividade que pode ser exercida frutuosamente
somente com o acordo da Caipora, mas ela è uma mulher ciumenta
e não permite que os homem, que trazem no corpo ou na roupa odor
de outra fêmea possam caçar, fazendo-o perder na mata. “A
Caipora trai os caçador. Quando o caçador vai na mata caçar chega
là, ela pega ele. Fica impedido”. E a mata è um lugar que pode ser
perigoso sem a proteção da Caipora pois, como nos dizia um índio:
“A mata, mata”. Para evitar então qualquer contato com corpos
feminino os caçadores respeitam as interdições sexuais, evitando de
ter relações sexuais no dia anterior a caça e pro precaução deixam
sempre sua roupa utilizadas para caça dentro de uma cabana na
mata, para evitar que a mulher, lavando-a, a impregne com seu
odor.
296 Ir para o sumário >>

Para Descola(1998) os povos amazônicos percebem a relação com


os animais caçados através os termos de uma homologia estrutural
que inclui a relação consangüíneos/afins; caça:animal
domestico::inimigo:criança cativa::afins:consangüíneos. Segundo
esta concepção a Caipora, responsável pela caça, seria pensada
como um afins do caçador, o que explicaria seu ciúme em relação as
outras mulheres, consideradas como potenciais concorrentes.
Podemos assim observar como as representações dos Pataxó sobre
os espíritos da mata remetam a uma mitologia ameríndia,
amplamente difundida na Amazônia; esta mitologia, da qual apenas
fragmentos são conservado entre os Pataxó deixou, entretanto, sua
marca visível nas práticas sociais e nos contos sobre os espíritos
que moram na mata.

Conclusão

A apresentação do sistema de crenças dos Pataxó, não deve criar a


ilusão que se trate de uma estrutura permanente ou a-histórica, pelo
contrario ela é constantemente submetida a transformações
decorrentes das provocações da historia. “Tem gente aqui que não
acredita nessas coisas não. Não acredita nos santos e nos
caboclos. Mudou tudo aqui. O pessoal novo não liga pra coisas de
nossa cultura, e ai vai perdendo...”.
Por exemplo a chegada da assistência medica, embora de forma
precária, graças a Funasa, reduziu a procura de caboclos para
problema de saúde, como se queixava uma índia: “A gente não
caçava medico pra tratar, que aqui não tinha medico.. Era tratado
com os caboclos velhos. Manifestava numa pessoa e quando
chegava fazia aquele remédio pra pessoa e ai ela melhorava. Era
297 Ir para o sumário >>

muito bom demais. Só usava remédio do mato, que extraia no mato


de noite, no escuro. Agora mudou tudo”.
Outra importante modificação foi provocada pela intensa atividade
missionárias de varias igrejas “crentes”, entre as quais Maranata,
Universal do Reino de Deus, Assembléia de Deus, que estão
introduzindo uma visão demoníaca dos cultos dos santos e das
possessões. Sua capacidade de atrair os índios varia fortemente
entre as varias aldeias e grupos familiares, numa gama de atitude
que varia da adesão ate a rejeição completa..”
Em Barra Velha a única que conseguiu se instalar, chegando a
construir um próprio lugar de culto foi a igreja Maranhatá, apesar da
forte resistência encontrada por parte de um segmento significativo
da comunidade, que os acusava de nao respeitar as tradições,
dividindo a comunidade, ameaçando assim a identidade étnica, que
sobre essas tradições repousaria: “Os crentes não trazem mal não.
Mas querem tirar a tradição da gente. Falam que nossos cantos,
nossas danças não vem de Deus. Ai não participam das festas da
comunidade”.
Esta ameaça é percebida em dois níveis, distintos mas articulados
entre si. Num primeiro nível o problema é colocado no plano
cosmológico, como conseqüência da invasão de um deus
estrangeiro, com suas pretensões de exclusividade, que se coloca
em posição antagônica as crenças dominantes e tenta de varias
formas de deslegitimá-las. As denuncia contra o falso Deus, que se
circunda de caboclo e encantado, forças diabólicas mascaradas,
constitui um claro exemplo disso. “Só existe um Deus, eles falam
que tem dois. São enjoados, falam que. Jesus vem buscar os
298 Ir para o sumário >>

crentes e não vocês. Dizem eles que nosso Deus é morto e o deles
é vivo”.
Nas relações sociais, a deslegitimação dos rituais e do sistema de
crenças representa uma ameaça a continuidade das festas dos
santos, mas sobretudo tende a impedir a comunicação com os
índios velhos, os caboclos, que se manifestam em sonhos e
possessão, cortando definitivamente o elo que liga o passado ao
presente e, impedindo sua transmissão as gerações futuras. A
dimensão religiosa se articula intimamente com aquela política, as
reivindicações pela terra se sustentam da revelação dos índios
velhos que pretendem defender seu território. As festas dos santos
constituem o elo de ligação com os parentes que “morreram nesta
religião” e que através delas continuam a comunicar seus desejos as
novas gerações. Como expressava angustiado um índios “Eles não
querem nossas tradições, nossas danças, mas o que vai ser daqui a
10 –20 anos?Quem vai cuidar dos índios velhos, dos caboclos?”.
Este atitude de recusa não è porem generalizada nem constante no
tempo. Alguns índios se converteram a essas igrejas, embora a
adesão a uma igreja crente não implica necessariamente a renuncia
ao culto dos santos e aos caboclos, como pretenderiam os pastores,
da mesma forma como a adesão ao catolicismo não implicou o
abandono da devoção a caboclos e encantados.
Um interessante exemplo è fornecido por Rosário, uma índia que se
converteu à Igreja Universal do Reino de Deus, apos sofrer por
longo tempo de uma doença na perna que os caboclos não
conseguiram curar. O pastor da igreja foi então na casa delas, a
pedido dos filhos já convertidos, rezou para a cura e apos um dia a
299 Ir para o sumário >>

dor passou. A partir de então ela freqüenta a Igreja Universal e


considera o pastor um grande “rezador”.

“Vivia na Boca da Mata. E vivia sofrendo de doente. Não tinha jeito


de me tratar. Andava doente na perna. Até que não gostava desse
negocio que tanto falava de “crente “ai. Tinha a maior raiva. Mas eu
andava doente...Sofrendo. ele me ensinava um remédio,
fazia...Fazia promessa com santo...Ai quando foi um dia eu falei
assim” o povo disse que a igreja crente é boa, eu vou ver se é boa
mesmo”. Disse um Pai Nosso pra Jesus. “Se for bom, se adivinhar,
se eu melhorar minha junta, vou pra igreja”. Ai eu rezei. No outro dia
amanheci melhor. Ai quando foi um dia chegou um pastor ai. Ele fez
uma oração pra mim. Eu melhorei e ai foi pra igreja. Eu não podia
andar e agora ando”.

O reconhecimento do poder do pastor e da força do seu Deus não


implica que ela cesse de gostar de seus caboclo, apesar da
proibição do pastor que os considera forças demoníacas, espírito
malignos. Os caboclos a ajudaram por muito tempo, consolidando
assim uma forte relação afetiva: “Eu gostava e ainda gosto deles.
Encaboclava ne. Eram caboclo da mata. Era Sultão da Mata...tudo
chegava. Agora que não chega mais não. Eu mesma não quero.
Agora to evangélica. Não pode não.”Assim como não pode mais
rezar pelos santos, o que não implica que ela os renegue “Agora
não rezo mais pra ele não, mas ainda gosto deles”.
Existe, portanto uma distancia entre o processo vivenciado pelos
índios e o sistema de crença apresentado pelos missionários, seja
católicos que evangélicos, os Pataxó interpretam os elementos
doutrinários que lhe são apresentados a partir das próprias
categorias religiosas. Se Rosário reconhece o poder taumaturgico do
300 Ir para o sumário >>

pastor e professa sua religião não por isso adere na sua totalidade
ao novo sistema doutrinal, pelo contrario opera algumas adaptações
que lhe permitem, dependendo do contexto, transitar entre os dois
sistemas de crenças: rezar para o “Deus vivo” e ao mesmo tempo
cultivar amizade e carinho com santos e caboclos, condenados
veementemente como forças demoníacas pelo pastor .

REFERENCIAS

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Barra Velha. Lisboa: Instituto de Alta Cultura. Junta de
Investigações Cientificas do Ultramar, 393-400.
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interétnicos da localização dos Pataxó de Barra Velha, Bahia.
Em Homenagem a ( e à revelia de ) Agostinho da Silva. New
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(inter)étnica entre os Tumbalalà do sertão baiano. Cadernos de
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BRANDÃO, Carlos Rodrigues. 1980. Os Deuses do povo. Um
estudo sobre a religião popular. São Paulo: Brasiliense.
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CARVALHO. Maria Rosário G. de. 1984. “A Identidade dos Povos do
Nordeste”. Anuário Antropológico, 82. Rio de Janeiro: Tempo
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301 Ir para o sumário >>

CARVALHO. Maria Rosario G. de. 1977. Os Pataxó de Barra Velha:


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DESCOLA, Philippe. 1993. Les lances du crépuscule. Paris : Plon.
DESCOLA, Philippe. 1998. “Estrutura ou sentimento: a relação com
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NIMUENDAJÚ, Curt. 2001. A corrida de toras dos Timbira. Mana 7
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VIVEIROS DE CASTRO, EDUARDO. 1996. “OS PRONOMES COSMOLÓGICOS E
O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO”. MANA, 2 (2): 115-144.
302 Ir para o sumário >>


3.2. A REPRESENTAÇÃO RITUAL: O TORÉ/AWÊ E OS SENTIDOS DOS
97
PERSONAGENS

José Luís Caetano da Silva

Introdução

A ritualização social, a estandardização da conduta corporal e


vocal mediante a socialização serve para comunicarmo-nos. Porém
se enfrenta as situações sociais equipados com uma biografia já
preestabelecida de encontros prévios com os demais. Através das
interações podemos dar forma e estrutura dramática a certos temas
inatingíveis: passado, crenças, diferentes categorias pessoais,
estruturas. Nelas se revive as crenças mais profundas. Celebrações
criam estruturas em eventos que são reflexos de idéias. Elas são
significativas (Goffman, 1983: 18).
Parte-se destas idéias para se ver o Toré como um ritual
expressivo da identidade Pataxó, no qual cada um dos agentes
empíricos envolvidos assume um personagem, uma pessoa ritual
(persona marcada por uma transformação na ‘fachada’ que
apresenta aos demais) que interagirá com as demais pessoas
rituais, incluindo objetos que encarnam figuras puramente rituais.
Analises sobre estudantes africanos na França, que circulam
em e entre duas esferas de interação as quais estão associados

97 Texto baseado em parte do capítulo 2 da tese do autor.


303 Ir para o sumário >>

códigos e normas de interação específicas, evidenciaram que na


esfera pública onde os acontecimentos interacionais se localizam no
quadro dos estatutos e das instituições da sociedade majoritária as
identidades raciais ou étnicas não estabelecem nenhum papel
aceitável e a sua colocação em relevo introduz o minoritário na
problemática do estigma e da gestão das impressões. Na esfera
fechada de interação se desenvolvem as atividades da rede que
sustentam a identidade in-group (grifo dele). Nela circulam bens e
valores, como a alimentação, a música, a dança, que só são
consumidos e negociados dentro desta esfera e representam
potentes recursos de identificação e meios de se comunicar
diferenças significativas (Poutignat, Streiff-Fenart, Vollenweider,
1993 apud Poutignat, Streiff-Fenart 1997 [1995]:118-119).
O primeiro significado da adesão a este personagem ritual
pode ser buscado na comparação com as estratégias de disfarce
descritas no capítulo anterior. Colocado no cotidiano das suas
interações com os outsider aos Pataxó eles se desviam do estigma
vinculado a sua etnicidade gerindo a impressão que passam aos
outros. Nestes momentos a etnicidade permanece como um
elemento de bastidor, só revelado a quem pode e/ou deve saber
dela. No momento extra-cotidiano do Toré a etnicidade deixa os
bastidores e se coloca no centro do palco, toma todo o enquadre
coletivo e individual. Esta modificação é expressa pelo uso dos
adereços corporais, armas, instrumentos e pinturas.

• Brincadeira, luta, fé

Caso, como afirma Devereux (1996 [1975]: 393) se considere a


identidade étnica um modelo ideal, um tipo de superego, ou um ego-
304 Ir para o sumário >>

ideal aqueles que expressarem sua personalidade étnica e refletirem


sobre si, pode-se dizer também, segundo este modelo, estarão
numa condição melhor perante o grupo, que a daqueles que traem
este ideal. O desempenho no Toré está intimamente ligado a luta,
pela terra e pela própria manutenção da identidade étnica Pataxó.
Participar no Toré ou não funciona como uma medida da
participação na luta, é refletida como sendo uma prática própria a
quem professe uma identidade étnica, desempenho que está ligado
a uma personalidade étnica, pertencente a alguém que categoriza a
si próprio como alguém étnico.
Nas entrevistas foram dados vários sentidos ao Toré: “é uma
98
brincadeira dos índios mesmo” , “uma reunião que ocorre de quinze
em quinze dias”99, uma pratica comum em qualquer festividade
coletiva para santos, casamentos, recepção de visitantes,
retomadas, muitas vezes e uma estratégia para reunir pessoas
mantendo em segredo ações coletivas que só serão comunicadas
durante o Toré, momento solene onde os peritos em Toré e nas
demais coisas da vida passam aos mais jovens seus ensinamentos
e os valores vinculados a tradições dos Pataxó; “O Toré é um canto
que tem maraca, tanga, o vestual. Brincar o Toré é luta, o Toré é de
guerra. Os perito velho reforça a luta”100, “é a nossa tradição”101.
É, sobretudo, um ritual de caráter religioso, o pajé tem papel de
destaque, assim como o cacique cargo que envolve alguma
102
vocação espiritual, escolha ou chamada, eles são muitas vezes os
98 Antigo cacique da aldeia Águas Belas.

99 Ex-cacique de Corumbauzinho.

100 Cacique da Tiba.

101 Perito da aldeia Tiba.

102 O cacique do Cai tentou incorporar os espíritos, foi a mata, foi mesmo a terreiros de candomblé. Sua mulher, segundo ele, explicou que ele
305 Ir para o sumário >>

peritos (mas não obrigatoriamente). O ritual é iniciado e encerrado


com uma oração cantada: O perecho Tupã ia venha a nós / Ale lua
no arco / O perecho Tupã ia venha a nós. Oração a Tupã, o Pai
Nosso e a Ave Maria na língua indígena, segundo a matriarca de
Trevo do Parque. Num Toré dançado pela facção Tiba esta oração
foi complementada com a seguinte letra que aponta para o sentido
do Toré enquanto uma representação da pessoa enquanto indígena:
“Na minha aldeia tem beleza sem iguá / Tenho arco e tenho flecha,
tenho raiz para curá / Viva a Tupã que vem nos trazer a luz”. Têm-se
aí diversas marcas que identificam uma pessoa diferenciada
etnicamente: o pertencimento a uma aldeia, o portar do arco e
flecha, a cura pelas raízes da natureza. Sinais que são comumente
utilizados para demonstrar aos outros uma condição indígena. Ser
Pataxó é pertencer a uma aldeia, saber fazer e utilizar um arco e
flecha ter vivido sem utilizar os remédios da medicina branca; são
explicações nativas sobre pessoas que possuem uma identidade
Pataxó. Pode-se acrescentar mais uma interpretação, no toré
analisado se pode ver como marca da condição étnica o
conhecimento para utilizar todos estes símbolos na luz trazida por
Tupã.
É preciso considerar o ponto de vista dos que performam a
etnicidade, mas também o dos observadores que conscientemente
atualizam a identidade étnica da pessoa que observam, e pela qual
são observados. Assim, são cumpridos papeis numa interação que é
responsável pela construção da personalidade étnica como uma
generalização a partir de dados comportamentais que pode servir
para descrever ou modelar aspectos considerados básicos para

tinha o corpo cruzado, fato que o protegia dando-lhe capacidade de liderança, mas, concomitantemente impedia a relação com os espíritos.
306 Ir para o sumário >>

entender um determinado agente social. Dai determinada prática


passa a ser vista como característica central na definição da pessoa,
apesar de que numa lógica estrita sejam infinitas as possibilidades
de comportamentos que podem ser considerados como
diferenciadores étnicos e nenhum deles poder ser considerado como
expressão de maior ou menor pureza étnica. Mormente a certeza
que se tem sobre a identidade étnica de alguém é que ela existe e é
reclamada por ele ou a ele imputada. E é nesta subjetividade que a
identidade étnica pode ter uma existência, ainda que efêmera, pois,
seu status lógico logo se mostrará diferente quando daquele das
personalidades étnicas analisadas (Devereux, 1996 [1975]: 395).
Tome-se o já citado Pataxó que se identificava, em 2003, como
evangelista da Assembléia de Deus, uma posição pessoal também
religiosa que o levou a aspirar a abertura de um ponto de pregação
na retomada, que pretendia transformar em congregação da
Assembléia de Deus, quando a área fosse homologada. O Quati não
via contradições entre as crenças pentecostais e a luta Pataxó que
comparava com o combate entre David e Golias. Apesar de menor
que o oponente David venceu porque estava com a razão, ele crê
em deus que assim, também será com os Pataxó. Apesar de ter
reconhecido que seus irmãos pentecostais estranharam no início
sua permanência com a aldeia e sua participação no Toré, afirmou
que eles tiveram que aceitar, pois, “o Toré me anima é minha
anima”. Dá mesma forma o fora à carne da Paca e do Tatu, eram as
carnes com as quais foi criado, numa liberdade dada gratuitamente
por Deus e que lhes foi tirada, mas que é recelebrada na
comensalidade em conjunto das festividades. A própria retomada,
numa área dentro de um parque nacional, tem para ele o sentido de
307 Ir para o sumário >>

um retorno espaço temporal a vida em meio à natureza e ao tempo


que chama de “tempo dos papais”. No Parque, segundo ele, pode-se
dormir sem preocupação com mosquitos, sem usar os mosquiteiros,
que tornam as noites muito mais quentes que o necessário; dorme-
se melhor do que nas proximidades da cidade, assim como, tem-se
melhor água e alimentos mais saudáveis.
Quanto ao Toré, completa “nosso ritmo é esse [afirmando
acreditar que] não estou saindo do padrão”. Ao tentar explicar esta
tradição o fazia com cuidado afinal estava diante de um perito em
toré, parente seu e que teria maiores condições de tratar do mesmo.
O fez através de um canto cuja letra expressa a condição Pataxó
após terem sido expulsos de suas terras, e se desligado dos seus
troncos velhos; as aldeias fundadas pelos pais e avós. A letra é um
samba de roda de grande circulação: “– Eu pisei na folha seca vi
fazer chuá, chuá” ressignificada nos cantos do Toré. O tal perito que
estava próximo já tinha utilizado esta letra numa entrevista anterior
dando sua explicação. Ele comentou novamente esta explicação,
reafirmando-a. Expulsos de suas terras os Pataxó estavam como
folhas secas, espalhadas pelo vento, sem paradeiro de um lado para
o outro.
O contexto deste diálogo foi uma área retomada ao Parque
Nacional do Desenvolvimento, pelo grupo Tiba, facção de quarenta e
duas famílias que se separou da aldeia Barra do Cai (180 famílias).
Enquanto as demais 140 famílias retornaram ao acampamento
urbano de Cumuruxatiba e ficaram no aguardo do laudo de revisão e
demarcação, os que formaram a facção Tiba decidiram permanecer
na área do Parque.
308 Ir para o sumário >>

Tal decisão contrariou ao cacique que num acesso de raiva


disse impropérios à mãe do perito, uma personagem histórica entre
os Pataxó: Luciana a Zabelê que esteve na viagem aos Maxacali em
Minas Gerais, quando a língua Pataxó foi reaprendida, sendo uma
das referencias na mesma até hoje, no Fogo de 51 sofreu violências
sexuais, a vergonha motivou sua saída de Barra velha e a vinda
para Cumuruxatiba para morar com seus parentes (Carvalho, 1977,
Grünewald, 2001, 2002, Valle 2002, 2003),
O perito é assim filho de um símbolo vivo da diáspora Pataxó
no entorno do Monte Pascoal. O ir de um lado para o outro continua
em Cumuruxatiba, lá a extração da areia monazítica já havia
empurrado seus parentes para a margem norte do Cahy para a
barra do rio, que dá nome à aldeia. Expulsos de lá, muitos vão para
103
a mata, que consideram seu patrimônio . Com a chegada da
madeireira Brasil/Holanda (Bralanda) são expulsos também da mata,
o perito inclusive foi um dos contratados para cortar madeira em
áreas onde moravam seus próprios parentes expulsos pela
madeireira. A maioria passam a morar no vilarejo de pescadores em
que tinha se transformado a Cumuruxatiba, sobrevivendo da pesca e
da mariscagem, até este ser ‘descoberto’ pelo turismo em busca da
beleza das falésias, pontas de areia, barras e recifes litorâneos, da
Mata Atlântica ainda intocada no interior e das baleias e golfinhos
que podem ser observados em mar aberto. Sua presença e,
principalmente, suas pretensões de direitos indígenas passam a
incomodar os que chegam para investir em hotelaria e serviços de
turismo. Uma chegou a afirmar que o índio desenhado na placa que
103 Este patrimônio, segundo D Bernarda e seu neto da Frente Pataxó, estaria vinculado a uma doação da área de Cumuruxatiba aos índios

pacatos que lá habitavam pelo explorador da areia monazítica, quando do fim da mina. Afirmam ter uma cópia desta carta, o que não foi

possível de verificar, ainda.


309 Ir para o sumário >>

indica a entrada para Cumuruxatiba na estrada Itamaraju / Prado era


uma coisa negativa para o turismo, pois, a presença de índios
significva conflitos e os turistas, segundo ela, fogem destes conflitos.
Ato conjunto, a área da Bralanda foi desapropriada pelo
governo e transformada no Parque Nacional do Descobrimento, uma
Área de Preservação Ambiental (APA), toda a costa do Cahy ao
Corumbau tornou-se uma Reserva Extrativista (RESEX), o Ponto
Zero do contato entre portugueses e índios, a Barra do rio Cahy,
ocupada imemorialmente por Pataxó tornou-se uma APA privada
(em teoria toda APA deveria estar sobre o controle do IBAMA) que
exibe o significativo nome de Capitania dos Descobridores. Nesta
ocorreu à expulsão mais violenta, em 1999 quando trinta homens
armados com rifles automáticos e metralhadoras atiraram contra
homens, mulheres e crianças Pataxó.
Durante a expulsão, quem assumiu uma posição central na
defesa do grupo foi a jocana [mulher no léxico Pataxó] do cacique da
aldeia Cai que se ajoelhou ante os atiradores, com os braços em
abertos. Segundo seu marido as balas desviavam e não a atingiam e
as armas começaram a travar, no que eram trocadas por outras que
ao serem disparadas travavam, também. Na versão de uma outra
testemunha, registrada por minha orientadora, as balas atingiam a
região torácica dela e eram absorvidas, pelo que seu peito teria
permanecido quente por três dias. O fato é que, apesar da violência
do ataque todos conseguiram escapar ilesos, fato possivelmente
devido a capacidade de resposta armada que os Pataxó de
Cumuruxatiba afirmaram possuir, na última viajem que fizemos ao
campo.
310 Ir para o sumário >>

O que não diminui o destaque concedido a pajé, mulher


considerada poderosa espiritualmente pelos Pataxó, assim como é
uma mãe de santo reconhecida pelos candomblés de todo o sul e
sudoeste baiano, conforme certificados exibidos nas paredes do seu
santuário. A mística de seu personagem causa viva impressão em
quem com ela dialoga. Todos os meus companheiros de pesquisa
de campo, relacionados ou não ao candomblé, voltaram vivamente
entusiasmado, após diálogos com a mesma. Foi possível observa-la
também rezando vários deles, a mim inclusive. Em todas as visitas
pessoas pediram para serem rezadas, além de ouvirem dela
conselhos, recomendações, profecias. Numa ocasião, um dos
rezados, pediu uma ‘consulta’ privada logo após a coletiva, tendo
passado mais de meia hora conversando com ela trancados no
santuário.
Tais rezas e o seu santuário utilizavam símbolos do
catolicismo: o sinal da cruz, o crucifixo, o Pai Nosso e a Ave Maria,
os santos (São Sebastião, São Brás, Santo Antonio, São Benedito),
Nossa Senhora D’Ajuda e da Purificação e o Divino Espírito Santo.
Santuários semelhantes podem ser registrados em outras aldeias.
Em todas as casas visitadas em Águas Belas tais santuários podem
ser encontrados. Uma senhora Pataxó que professa o catolicismo e
afirma nunca ter dançado o Toré ou vestido a tanga, contou que os
dias de santo na aldeia são comemorados até hoje. O cacique disse
que “o Bastião [São Sebastião] é comemorado com samba, pois São
Sebastião gostava de samba. Antes chamava samba. Corta o
mastro vem trazendo e cantando ate a aldeia e roda em volta do
mastro dia 20 de janeiro”. A senhora de Águas Belas que disse
nunca ter dançado o Tore, participou também da Puxada do Mastro
311 Ir para o sumário >>

em Cumuruxatiba, o qual tem uma bandeira no topo. Em Águas


Belas, segundo ela, mata-se porcos, quando se pode uma vaca e
todos participam da comensalidade, inclusive visitantes Pataxó, ou
não-Pataxó o mastro permanece, até o São João, quando é cortado
e transformado em lenha para a fogueira típica das festas juninas.
Em Corumbauzinho e Boca da mata a comemorações de São Brás,
a comemoração do Bastião em Corumbauzinho dura três dias
segundo seu cacique. Ainda em Águas Belas uma Pataxó de 47
anos, nascida lá contou como eram as brincadeiras conduzidas pelo
falecido pajé “ele fazia a festa, fogueira e coisa pra comer e fazia o
Auê. Cantava, dançava...”, ainda segundo ela ele não recebia
espíritos.
A Puxada do Mastro de São Sebastião é a principal festa das
comunidades indígenas no Distrito de Cumuruxatiba. Mesmo
hoteleiros que lhes disputam a terra comentam a beleza do evento;
destacam principalmente que a festa é completamente diferente de
outras “Puxadas de Mastro de São Sebastião” comuns em todo o sul
da Bahia. Outras aldeias pataxó visitadas em Prado reconheciam a
aldeia Cai por “dançarem um Toré arrochado”. Visitam outras aldeias
para festejar também, como se pode depreender da letra de um dos
cantos: “Saímos de nossa aldeia / Viemos festejar aqui / Oi somos
índios Pataxó / Oi somos a aldeia Cai”.
Dançar o Toré é parte essencial da historia da comunidade,
inclusive da aceitação da mesma como parte do povo indígena
Pataxó. Uma das visitas ao campo foi dedicada a filmar o Toré
dançado pelas comunidades de Cumuruxatiba. No pequeno índio
esculpido em madeira que está no centro do acampamento urbano
da aldeia Cai estavam escritos os nomes das duas comunidades
312 Ir para o sumário >>

Pataxó de Cumuruxatiba Cai e Pequi. Negociou-se com


representantes das duas aldeias a vinda de uma equipe de
jornalismo para filmar o Toré e realizar entrevistas com eles e com
as demais aldeias Pataxó no município de Prado.
A negociação ocorreu durante o Seminário de Abertura do
Plano Diretor Urbano de Prado, no qual se apresentaram como
agricultores de subsistência. As duas comunidades haviam acabado
de retomar áreas no PND e reivindicavam o direito de plantar
mandioca, assim como uma casa de farinha. Na viagem as
comunidades já haviam se dividido e em entrevista o cacique da
aldeia Cai já se apresentou principalmente como alguém ligado ao
mangue a mariscagem nos recifes. Sua expectativa em relação ao
laudo é a retomada da terra que nasceu na Barra do rio Cahy. Já
nas aldeias que permaneceram no Parque o discurso continuou
sendo o trabalho com a terra, produzindo para comer e para
reflorestar o Parque. O cacique da facção Tiba comentou que os da
aldeia Cai que retornaram sempre estiveram mais ligadas as pescas
e a mariscagem, não estando habituados com a lide na terra.
Foi possível observar o faccionalismo pela representação do
Toré. Marcada para o terreiro da aldeia Cai, quando se procurou os
representantes da aldeia Pequi estes que, em conjunto com outros
Pataxó vindos de Mata medonha, fundaram a aldeia Pequiatã a um
quilometro de onde ficou a Facção Tiba na retomada do Parque
Nacional do Descobrimento se negaram mesmo a dar entrevistas
filmadas fora desta área. Infelizmente não foi possível chegar até lá.
No domingo pela manhã procurou-nos um dos lideres da facção
Tiba, exatamente o perito. Comunicou-me que seu grupo estava no
Parque e que não participaria do Toré com o restante do Cai. Fomos
313 Ir para o sumário >>

visitar o grupo, pois, o Toré na aldeia Cai seria a tarde. Ao chegar,


foi possível ver que eles estavam pintados, perguntados afirmaram
que haviam dançado o Toré na noite anterior.
Sobre este perito é importante notar que além um nome
indígena, ele tem um apelido: José Fragoso, em parte por causa de
seu pai que tinha por sobrenome Fragoso, em parte, segundo
comentaram porque ele seria muito fogoso na dança do Toré,
gostava muito de dançar, o que foi possível confirmar pelo seu
desempenho no Toré que eles decidiram dançar como uma
demonstração, pois, o sol do meio-dia e a fato do terreiro que
limparam em forma de círculo, para tal fim, não ter cobertura não
permitiria uma representação mais longa.

• A representação

Ainda que fosse apenas uma demonstração o ritual seguiu


todos os passos a começar pela oração inicial conduzida pelo Pajé
da facção, que se apresentou como filho de santo da Pajé da aldeia
Cai, com quem aprendeu também a usar as ervas para curar. Ele se
ajoelhou num dos pontos de um perímetro de um terreiro limpo em
círculo no centro da aldeia, e abaixou a cabeça em direção ao centro
onde estavam fincados no chão: um mastro mais grosso que parecia
ter sido cortado, no qual amarraram um novo mastro no qual
hastearam uma bandeira com o desenho do rosto de um índio; um
arco ritual largo pintado em vermelho e preto e uma lança; entre esta
104
e o arco estava apoiado um arco e flecha de caça todo decorado

104 Explicaram-me diversas vezes que este arco por ser feito com uma madeira arredondada possuía uma mira melhor, sendo assim mais

utilizável do que os arcos que são vendidos para os turistas como símbolo Pataxó que é exatamente o arco ritual, mais largo e feito da casca do

Pati, uma palmeira local. Ou seja, é uma arma útil quer na caça quer em batalhas e não estava fincada no chão, como se tivesse pronta para ser
314 Ir para o sumário >>

em vermelho. Os demais se ajoelharam, também. Terminada a


oração o primeiro a levantar foi o perito, seguido pelo cacique e o
pajé, após o que todos se levantaram cantando e passaram a
dançar em torno dos símbolos centrais.
No decorrer dos cantos e danças o perito fogoso logo impôs
seu desempenho passando a liderar a marcha nos giros, puxando os
cantos que eram fortemente acompanhados, especialmente, pelos
demais pessoas rituais presentes: o cacique, o pajé e os demais
participantes da comunidade, como se definem os que não ocupam
postos de liderança. Um dos seus movimentos chamou a atenção.
Após duas ou três voltas conduzindo todos em círculo numa direção
ele girava noventa graus e conduzia a fila pelo meio do circulo que
ela formava, dividindo-o em duas partes. Quando ele atingia o lado
oposto do círculo girava outros noventa graus em direção contraria
e, assim, modificava em segundos a direção na qual o círculo girava.
Pode-se esboçar uma representação gráfica.
Vimos este tipo de movimento em outros Toré bservados nas
aldeias Cai e na Trevo do Parque, Águas Belas. Pareceu expressar
numa representação, além de sua perícia na brincadeira, que as
pessoas parte daquele grupo o seguiriam para onde quer que
guinasse, questionado quanto a essas guinadas dadas em 2003, o
mesmo perito não lembrava-se delas não pude assim confirmar tal
significado, em outros momentos que dançou o Auê, após esse
último diálogo já em 2007, guinou outra vez.
A mudança de direção causada pela guinada provocava a
divisão do circulo em duas metades. Se o círculo de pessoas
dançando o Toré numa mesma direção é a representação de uma

usada.
315 Ir para o sumário >>

aldeia, esta guinada pode ser vista como a representação do


faccionalismo, da divisão da aldeia em duas partes. Um dos sentidos
do Toré seria representar os sentidos/direções opostos que tomarão
as duas facções, sem que se rompa de todo o vínculo étnico que
lhes une..
No Auê da Tibá, observado em 2003, o Pataxó evangelista da
Assembléia de Deus, assumiu posição ao lado do cacique e, se na
dança seguia sempre a marcha do perito, muitas vezes impôs seu
tom mais forte de voz nos cantos que assim o exigiam, assim como,
sua experiência como evangelista o que envolve guiar comunidades
em canto rituais durante os cultos. Caso se tome a posição do
cacique, do pajé, do perito e do Pataxó evangelista no circulo que
iniciou o Toré se verá que eles formarem um X, tomando posições
lado a lado e frente a frente. Um casal de pessoas importantes para
o grupo também se postou frente a frente, Pai e mãe do cacique ela
proveniente do Corumbau, tem no nome a família Brás e a
Conceição e visitava Barra Velha para brincar o Auê105, ele cujo pai
possuía terras na atual área urbana de Cumuruxatiba, era parente
dos Pataxó que moravam na área106 retomada ao Parque e que
foram expulsos pela Bralanda, representava uma raiz local, também
Pataxó. Ao seu lado sua nora, a mulher do cacique que também
ficou do lado oposto ao do marido.
Tem-se, em alguma medida, uma representação das posições
internas a respeito da religiosidade, dois líderes religiosos um filho
de santo e um evangélico. Ao mesmo tempo posicionam-se e
equilibram-se o perito, que além deste papel representa os Pataxó
105 De todos os entrevistados foi a única que apresentou um cântico cuja letra incluía a palavra Auê: “Minha cumadi cuidado minha cumadi /

Cuidar de nossa terra Auê Auê”.

106Disse-me poder mostrar os esteios das cabanas deles inclusive, como fez o cacique Imbé na última viagem ao campo em janeiro de 2007
316 Ir para o sumário >>

de Cumuruxatiba no Conselho de Saúde da FUNASA em Porto


Seguro e o cacique que possui certas qualidades que são
importantes num cacique Pataxó. Pertence a família Brás o que o
torna parente próximo da maioria dos caciques do entorno sul do
Monte Pascoal107 e possui um fenótipo visivelmente indígena, assim
como sua mulher, fenótipo este que se reforça no seu filho. Ao
contrario, por exemplo, do perito que tem um fenótipo facilmente
confundível com o dos brancos que moram na região, ou mesmo o
evangelista cujo fenótipo é de afro-descendente. Fato comum em
Cumuruxatiba, local para onde fugiam escravos que escapavam dos
navios negreiros que aportavam no município de Caravelas no
século XIX. Caminhando pela praia passavam pela sede municipal
de Prado e encontravam entre os Pataxó de Cumuruxatiba abrigo,
pousada e casamento. Uma das avós do cacique da aldeia Cai, por
exemplo, era uma negra fugida. O léxico Pataxó tem uma palavra
própria para descrever os que expressam no seu fenótipo esta
mistura; são chamados de ingora.
Percebe-se, assim, que mais que um líder a pessoa do cacique
é a expressão de uma identidade Pataxó, do parentesco com
contemporâneos ou antepassados importantes para a luta pataxó e
da comunicabilidade visual da condição étnica da comunidade.
Cabem alguns comentários sobre este Pataxó que o perito
apontou como provável cacique caso a facção Tiba consolide-se
enquanto aldeia. Quando da visita a aldeia ele não tinha sido eleito
ainda e pareceu uma pessoa bastante reservada, de poucas
palavras. Seus comentários restringiam-se a falar sobre a plantação
107 Especialmente os três irmãos Brás que comandam as aldeias de Águas Belas, Corumbauzinho e a Aldeia Nova do Monte Pascoal. Mesmo

o cacique da aldeia Cai, que é da família conceição fez questão de se afirmar como primo desses irmãos Brás, parentesco que em conjunto com

o fato de ser casado com uma jocana poderosa espiritualmente e filho da matriarca da aldeia explicam sua escolha para a chefia sobre a mesma.
317 Ir para o sumário >>

e, quando perguntado sobre sua vida, afirmava-a como ligada ao


trabalho com a terra. Falou de modo mais enfático, quando foram
feitas perguntas sobre o artesanato comercial, afirmando a
inexistência do mesmo entre os que permaneciam no Parque,
restringiam-se ao artesanato usado nos rituais, mesmo o colar que
ele e o pajé usavam era feito com ossos e dentes de sui manitê
[carne de vaca no léxico Pataxó]. É preciso lembrar que um dos
grandes temores do IBAMA, pela presença Pataxó nos Parques é a
atividade de artesanato para comercialização, de alto impacto para o
bioma local. Sua participação no Toré foi mais ligada a preparação.
Ele era o responsável pela produção da tinta e pela pintura dos que
iam participar do Toré. Um colega professor que acompanhou a
visita pediu para ser pintado, no que foi atendido. Tal fato causou-me
estranheza, haja vista que o cacique da aldeia Cai falara que as
pinturas usadas no Toré não deviam ser feitas em brancos.
Comentei com ele tal afirmação e ele desenhou um grafismo em um
dos meus braços e pediu para que eu dissesse ao tal cacique que
ele, Imbé [nesta hora falou o seu nome indígena] havia feito o
desenho.
Voltando a aldeia Cai encontrei o cacique sendo pintado para o
Toré por um de seus filhos. Aproveitei e lhe transmiti o recado de
Imbé, mostrando o grafismo. Ele se mostrou um tanto contrariado,
mas não fez comentários e mandou o filho pintar um grafismo no
meu outro braço. Como as tintas levam quase um mês para sair,
durante este período portei nos braços uma representação gráfica
do faccionalismo Pataxó.
O Toré da aldeia Cai foi iniciado com a mesma oração, puxada
pela Pajé que soma também a posição de perito puxando as danças
318 Ir para o sumário >>

e os canto. Seu marido o cacique ocupou durante a dança um lugar


central, ficando próximo e dançando em volta do pequeno índio
esculpido em madeira no centro do pátio coberto de palha onde se
dança o Toré. Nestas voltas ele formava um círculo dentro do círculo
maior onde dançavam a Pajé e onde se destacavam, também,
posicionando-se no interior do círculo um filho do cacique. Seguindo
sempre o circulo maior estava um dos netos da mãe do cacique, D
Bernarda, filha dos que foram para o Cai, dona da área não
indenizada até hoje apesar de expulsa. Nestas diferentes posições
mais uma vez se equilibram no Toré: um líder translocal, o neto de D
Bernarda que estudou, usa a Internet e foi eleito Coordenador da
Frente de Resistência e Luta Pataxó e que teve um excelente
desempenho nas entrevistas realizadas antes do Toré; e um líder
local, filho do cacique que durante a preparação para o Toré exibiu
sua perícia em fabricar tinta, pintar pessoas, assim como falou da
sua competência para esculpir em madeira, mostrando a borduna
que esculpiu e deu para seu pai portar durante a dança do Toré. Na
dança sua performance foi vigorosa e era um dos poucos a puxar
canto e movimentos especiais, alem da pajé. Ao contrario do neto de
108
D. Bernarda que se manteve sempre no circulo . Apesar da
centralidade do cacique a performance mais vigorosa pôde ser
observada em Jovita, a pajé escorpião. Ao puxar cantos e passos
mostrou-se tão apaixonada quanto o perito da facção Tiba.
Enquanto outros como o evangelista, no evento Tiba, e o filho do

108 Os dois, desde então, vem liderando movimentos de retomada. O filho do cacique de forma individualizada, sem o apoio da comunidade,

mas com o apoio de alguns Pataxó e de pessoas não-pataxó, tentou retomar em maio, uma área no litoral de Cumuruxatiba que pertence a um

policial. Seu pai teve que intervir para que a policia não cometesse violências contra o grupo. O coordenador de FRLP veio em abril até a UFBA

para conversar com Rosário sobre o laudo, agora em junho passaram a retomar fazendas entre Parado e Itamaraju, palcos de diversas outras

antigas retomadas e expulsões.


319 Ir para o sumário >>

cacique no caso do Cai pareciam desempenhar bem para


demonstrarem a assistência sua competência no Toré, além de
demonstrarem (assim como os dois considerados peritos e todos os
demais) estar se divertindo com a representação; no caso da pajé e
do perito era evidente o prazer com que executavam sua
performance. A posição de perito parece envolver, assim, uma
paixão pessoal pelo ritual. A performance das pessoas no ritual do
Toré da aldeia Cai pode ser representada da seguinte forma.
Em uma das pausas do ritual perguntei a pajé sobre o Auê, a
antiga brincadeira dos Pataxó, e sobre como era brincada antes da
mudança para o Toré após a entrada da aldeia Cai na Frente de
Resistência e Luta Pataxó. Primeiro ela afirmou que muitos dos
cantos apresentados até aquele momento ela aprendera ainda
menina. Resolveu mostrar como era o Auê puxando um novo cântico
no que foi seguida por todos e o círculo novamente se formou. O
que se pode observar foi à mudança de ritmo, o cacique de
Corumbauzinho no dia anterior falara da diferença de ritmo entre o
109
Auê e o Toré, sendo o primeiro mais lento segundo ele . O perito
da facção Tiba disse que “...perdido o ritmo do Auê”, foi quando me
apresentou a mãe do cacique que, proveniente de Barra Velha
conhecia o Auê. O cântico que ela apresentou era realmente mais
lento e não foi utilizado no Toré Tiba. Um já citado morador de
Águas Belas, nascido no Craveiro assim descreveu o Auê na Barra
Velha de sua infância “Lá tinha Auê, bebia cauim que é feito de
mandioca, os índio bebe e os branco que tiver também. Rala no ralo
e bebe com açúcar. Eu já bebi, fica forte eêehh! Enquanto emite este
109 Ele tentou fazer seu filho de dois anos dançar um cântico onde, em alguma medida, aprende-se a marcar o passo da pisada de forma certa:

“Oi pisa, pisa, pisa / Oi pisa devagar / Vou pisar devagarinho na folha da jurema”. A cada verso, na palavra pisa ele batia o pé direito à frente do

esquerdo e tentava que o filho fizesse o mesmo.


320 Ir para o sumário >>

som, estufa o peito e afasta os antebraços do tronco, dobrando os


braços um pouco pra frente. Minha orientadora já havia emitido o
mesmo som e feito o mesmo gesto ao tentar explicar para um de
seus orientandos que também estuda os pataxó, o que viria a ser um
feijão cozido a moda Pataxó, um feijão que deixa forte. Noto que
durante o Toré da aldeia Cai, pelo menos uma vez o filho do cacique
gritou um som semelhante rêehh! E, em muitos momentos, dançava
arqueado na posição descrita.
Dos cantos e passos de Auê puxados pela pajé da aldeia Cai
um chama a atenção pelo que ele representa sobre a memória do
passado Pataxó, no período imperial, quando da formação provável
da aldeia de Barra Velha por ordem do governo (Carvalho, 1977):
“Eu avistei a torre da igreja / Só a ela nós temos que chegar / Deus
nos salve nossa aldeia real”. Outra letra apresentada localiza de que
torre este cântico anterior tratava: “Adeus Suprema / Adeus
Suprema que eu já vou embora / Adeus Suprema, fica com Deus e
Nossa Senhora”, numa referencia a uma procissão da Irmandade do
Divino Espírito Santo em Prado, na qual a festeira – organizadora da
festa – é responsável por carregar a coroa da imperatriz [a
Suprema], tal procissão encerra-se na igreja de Nossa Senhora na
Praça central de Prado e ocorre pelo menos desde o século XIX (Na
Carona, 2003, Mejia, Mejia, 2002).
Com o Auê mudaram, alem do ritmo e dos cantos os passos.
Todos entraram no círculo, dançavam agora também voltados para o
centro. Algumas vezes todos giravam em torno de si, Outras vezes
de braços dados o círculo se ampliava ao máximo, após o que se
contraía sem nunca se desfazer. Ao fim até nos observadores fomos
convidados a entrar na dança e, mesmo com a presença de tantos
321 Ir para o sumário >>

estranhos, o ritmo e o padrão continuaram sendo impostos aos


passos e todos puderam, por assim dizer, brincar de índio; imitando
um passarinho quando a letra do canto ordenava “...o biquinho pelo
chão, as asinhas pelo ar...” e rodopiando na continuação “...dona
Mariquinha rodou, dona Mariquinha roda”.
O faccionalismo duma aldeia Pataxó representado nestes dois
Toré fez pensar na afirmação de Devereux (1996 [1975]: 404) que
em certos casos as reivindicações por encarnar a essência daquilo
que representa o étnico é parte da identidade étnica. Tal busca pode
ser pensada enquanto uma das orientações normativas que
Hallowell (1967 [1954]) vê como características intrínsecas à
formação do self em todas as culturas, impondo valores, ideais;
enfim, capacitando cada self a, não só se comportar segundo estes
padrões, como também a julgar se determinados pensamentos ou
ações seguem os mesmos. No faccionalismo representado estão
envolvidas as disputas pelo que seria essencialmente Pataxó em
várias oposições (agricultura/pesca, costa/mata, Barra
Velha/unidades de parentesco extenso que se espalharam a partir
dela, Cai/demais aldeias em Cumuruxatiba, família extensa do
cacique/demais famílias) encarnadas em pessoas que buscam exibir
esta essência em sua performance na personagem mística que
desempenha.
Em alguns casos muito da mística de uma identidade étnica é
manufaturada por outsider (Devereux, op cit: 405), tal é importante
para que se compreenda a distinção que faz entre atualização e
exibição da personalidade étnica no comportamento. Boa parte do
comportamento observado numa personalidade étnica é atualizada
sem a consciência de que se manifesta a personalidade étnica.
322 Ir para o sumário >>

Quando implementada conscientemente no comportamento tende a


ser experimentada como a implementação de um modelo de
identidade étnica, contaminado pelo modelo de personalidade
étnica. Neste sentido a atualização inconsciente, espontânea de
algum aspecto da personalidade étnica é menos facilmente
identificável como tal, que um ato intencional de exibi-la; como em
testes feitos por psicólogos onde eram exibidas fotos do rosto de
pessoas flagradas em estados psicológicos reais (riso, choro, medo,
ódio) e de atores fazendo o mesmo; os sentimentos dos atores
foram mais facilmente identificados (op cit: 390).
Na viagem ao campo em maio de 2004 foi possível perceber
que a aldeia Trevo do Parque é uma aldeia treinada para receber
pessoas de fora (turistas). Foi criada por famílias que saíram de
Barra Velha para vender artesanato na entrada da estrada que dá
acesso ao Parque Nacional do Monte Pascoal110 em Itamaraju, por
isto Trevo (como são conhecidas tais entradas em auto-estradas).
Tal fato, apontado por Bierbaum (1990) levou Grünewald (2001) a
classificá-la como uma aldeia turística, mesma classificação que
concede a Coroa Vermelha do outro lado do Monte Pascoal já em
Santa Cruz de Cabrália. As representações como o Toré estariam,
segundo ele, suplantando os antigos sambas e as festas religiosas,
ambos vistos como elementos que poderiam ser avaliados como não
índios por observadores externos. Em contrapartida a situação
turística vinha sendo vivenciada a partir de novas representações
como o Auto do Descobrimento e a Primeira Missa, apesar de que o
autor já aponta que a contratação de alguns Pataxó para

110 Atualmente retomado pelos Pataxó.


323 Ir para o sumário >>

representarem numa festa como se fossem índios teria irritado os


111
demais membros da aldeia .
Na Trevo do Parque a fundadora e matriarca, quando
perguntada por quem conduzia o Toré apontou para um de seus
netos ainda na pré-adolescência. Chamado para entrevista ele
preferiu caminhar com outros da sua idade para o interior da escola;
uma sala de aula única de turma mista. Ao entrarem rapidamente o
cenário transformou-se. As carteiras foram sendo empilhadas nos
cantos e a sala tornou-se um salão no centro do qual o perito mirim
começou a puxar um canto num tom baixo, os outros da sua idade
formaram um pequeno circulo junto com ele e passaram a ser
‘afinados’ pelo exigente maestro no preparo de sua apresentação.
Os demais foram chegando, sua mãe, tias, as crianças112 por
fim sua avó. Esta se sentou e apreciou os cantos e a dança por
alguns momentos até que num repente pediu para que parassem e
admoestou a todos por não terem iniciado com a oração tradicional,
o Pai Nosso e a Ave Maria na língua indígena, a já citada “O
perecho Tupã ia venha a nós...”. A filha dela, mãe do perito mirim
disse “– Ele cantou mãe”. Sentado próximo à matriarca anui com ela
que a oração não havia sido cantada Todos pararam em circulo
virados para o centro do mesmo e cantaram a já citada oração a
Tupã. Desejada ou não a comunicação ritual ocorreu, finda a cena

111 Na entrevista com o morador de Coroa Vermelha em setembro de 1998 ele, um líder, afirmou que não participavam mais das

representações vinculadas a chegada dos portugueses em 1500. Após as agressões em Porto Seguro, na comemoração dos 500 é possível que

tenham se tornado um tabu. Em abril último uma ONG ecológica de Santa Cruz de Cabrália tentou reeditar o Auto do Descobrimento usando

atores vestidos como índios, os participantes da encenação foram dispersos e seu organizador agredido por um grupo de Pataxó (Sampaio,

2004).

112 Entre elas uma das mais determinadas era uma Pataxó de dois anos que desde que ouviu falar que se ia dançar o Toré passou a chamar as

demais crianças para dançar o Toré numa animação só suplantada pelo seu esforço em acompanhar o passo dos mais velhos no círculo.
324 Ir para o sumário >>

eu estava emocionado, como não ficara nos outros dois Toré. Foi
difícil agradecer a matriarca e despedir-me. Só em casa, ouvindo a
fita do início do Toré, percebi que o canto inicial que eu entendera
como um ensaio, a música, cantada em tom baixo, apenas por pré-
adolescentes, era também a oração a Tupã, estilizada pelo aprendiz
de perito e que a usava para abrir agradecendo a Tupã e afinar seu
“coral”. O fato do “regente” ter cantado a oração antes que o
cinegrafista ligasse a câmera, oração que foi ouvida por sua mãe e
que a levou a retrucar com a matriarca que o menino havia feito,
aponta para que mesmo uma representação montada rapidamente
para um público externo é praticada como um ato religioso, um ato
de fé.
Mesmo um Toré brincado nesta aldeia gerada pela pressão do
turismo e da comercialização de artesanato, uma apresentação
montada rapidamente para outsider, no momento da entrada da
matriarca se torna um momento solene, de ouvir a aprender com os
peritos velhos de não sair do padrão de permanecer no ritmo. É
interessante notar, sobretudo, que a avó, com a qual todos faziam
brincadeiras durante a entrevista e que brincava com todos, no
momento que se aproxima do círculo e assume seu personagem no
rito, rapidamente deixa transparecer o respeito que a sua pessoa
113
impõe e que é atribuído a ela pelos demais; mãe, avó, parteira e
rezadeira de todos ali.

113 Cujos métodos denotam um conhecimento tradicional. Segundo Tereza ela “...já pegou muito menino na trevo, só não tem pegado agora

porque não tem mais sustância aqui nos braços, pra fazer remédio, pegar folha, passar na barriga, pra subir né. Agora eu não posso mais. [...]

Aprendeu com uma parteira que pegava menino dela, chamava Nastácia. Me ensinou a pegar menino, me ensinou a oração, como é que faz se o

menino estiver travessado, agente vira. Agora se tiver assentado tem que dar emborcação pra virá a criança. [...] Vira a mulher de perna pra

cima, ai faz o remédio. Torna a virar umas três vez pra poder desvirar o recém-nascido”. Não quis falar sobre a oração “Você pode ter filho?”

Questionou-me, para que eu quereria saber tal oração.


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• A transformação no personagem

DaMatta (op cit: 223) usará uma perspectiva processualista


para relacionar as noções de indivíduo e pessoa, tomando a
segunda como uma vertente coletiva da primeira “...uma máscara
colocada em cima do individuo ou entidade individualizada [...] que
desse modo se transforma em ser social. Quando a sociedade
atribui máscaras a elementos que deseja incorporar no seu bojo o
faz por meio de rituais...” o que as torna algo socialmente
significante. É preciso lembrar com Mauss (op cit: 222) que a
presença ou ausência de máscaras permanentes ou temporárias é
apenas um arbítrio social, histórico e cultural. O ponto central lhe
parece estar na representação extática do antepassado,
especialmente na transformação.
Como já citado o evangelista ao se referir à luta rememorou a
morte de seu tio e primo e o ”tempo dos papais”, o cacique de
Corubauzinho falou da luta como algo que seus tios, fundadores da
aldeia, deixaram para ele ao morrer, a letra de um canto de Toré que
entusiasma a todos, cantado nos três Toré observados, num ritmo
de marcha ordena a retomada e rememora os antepassados:

“Oh diga ao povo que avança / Oh diga ao povo que


avançaremos (avançaremos) / Pra defender nossa nação
/ e vamos todos dar as mãos / Nós somos índios Pataxó /
Somos a nova geração / Nossos antepassados morreram
/ Pra defender a nossa nação / Sr seu Presidente / Oh
libera a nossa terra / Nossa aldeia esta sofrendo / Nos
precisamos da nossa terra”.
326 Ir para o sumário >>

Os Toré apresentados pela facção Tiba e pela aldeia Trevo do


Parque foram decididos e implementados em poucos minutos, ainda
assim a maior parte dos presentes portava pelo menos um dos
elementos do vestual, muitos vários, incluindo as pinturas, as de
alguns cobrindo boa parte do corpo, incluindo o rosto. A
transformação mais completa pode ser observada na aldeia Cai
onde todos os que dançavam estavam com o vestual completo,
114
pintados em preto e alguns em preto e vermelho . O cacique
expressava a mais completa transformação, não só pela quantidade
de peças que vestia como pela pintura, acentuadamente em
vermelho, que cobria seu rosto, tronco e membros.
A excessividade pode ser explicada, em parte pela vaidade do
agente empírico e pelas inúmeras câmeras que pretendiam filmar
esta transformação. No entanto, desde a segunda vez que o
encontrei (no citado seminário) ele reclamara de não ter tido tempo
de por seu vestual completo e que ele não gostava de aparecer
nestes momentos públicos sem ele. Não só ele, como todos aqueles
cujo fenótipo não permite que se os categorize como indígena
demonstraram esta preocupação. Foi comum que adultos
entrevistados pedissem a crianças e adolescentes próximos que
fossem buscar seu casquete e arco e flecha. Mesmo um
adolescente entrevistado sem o vestual foi busca-lo para posar para
fotos e depois dançou o toré com ele
Para Hallowell (1967 [1955]: 77) os conceitos tradicionais de
self jogam papeis no ajustamento dos indivíduos ao seu universo

114 Diferentes significados foram atribuídos aos grafismos e suas cores. Alguns eram símbolos religiosos, outros, desenhos abstratos. O

cacique de Corumbauzinho afirmou que estes diferenciavam os casados dos solteiros, um identificador categórico. Quanto às cores uma

moradora da aldeia Cai, proveniente dos Pataxó Hahahãi explicou que vermelho e preto significavam paz, só vermelho guerra. Ao contrário,

para o cacique da facção Tiba o vermelho e preto significavam sangue e luto recente, o preto luto pelas mortes dos antepassados.
327 Ir para o sumário >>

Just as concepts of spiritual beings, for example,


help to structuralize the vital part of the universe that is
other than self and orient the individual in cosmic
perspective, in the same way a concept the self not only
facilitates self-orientation but enables the individual to
comprehend the nature of his own being and, by
inference, the nature of other selves with whom he
interacts.

A fenomenologia implícita nesta posição é assumida na


influencia de Mead para quem o organismo determina o invironment,
sendo, neste sentido, responsável pelo seu meio ambiente, em
especial pelo seu meio ambiente comportamental (op cit: 86). Outro
approach fenomenológico parece corroborar e mesmo refinar esta
posição, ultrapassando mesmo o racionalismo cartesiano e sua
relação sujeito/ objeto. Para Merleau-Ponty (1945) não temos o
nosso corpo como se fosse uma coisa, somos o nosso corpo. Ele
participa da subjetividade, um todo transformado em linguagem.
Existimos no mundo e o mundo existe em nós através do corpo. De
forma mais completa Cassirer (1975 [1945]: 47-51), parte da
definição de um princípio único que unificasse a diversidade de
formas de vida, proposta por um biólogo (Wexküll, 1921, 1938 apud
loc cit). Todo organismo é monadário, tendo um mundo próprio
vinculado a sua própria experiência, o que unificaria as formas de
vida na sua diversidade seria assim a existência de um sistema de
estímulo resposta que o relaciona com o meio ambiente. No homem,
este sistema de recepção/reação é mediado pelo sistema de
pensamento que funciona apenas mediante a interpretação de
símbolos.
328 Ir para o sumário >>

Em Geertz (1989 [1973]).o homem é, também, um animal


amarrado em teias simbólicas e sua pretensão é construir uma
etnografia hermenêutica que permita superar o debate entre
objetivismo e subjetivismo. Suas melhores análises, porém são
provenientes da etnografia de representações teatrais do self. Para
isso Bali tornar-se-á um lócus da vida ritual, intensa obsessiva. A
própria concepção do self é teatral: o papel que desempenham no
palco, o espetáculo que encenam configuram o self balinês num
sistema simbólico de terminologias, títulos que demarcam a posição
do agente empírico numa estrutura fixa (Geertz, 1997 [1974]). Esta
temática tomaria sua tese de doutorado onde analisa o que chama
Estado–teatro Balinês no século XIX, o Negara (Geertz, 1991[1980]).
Na metafísica religiosa comumente toda uma classe especial
de objetos é tornada self: seres espirituais, divindades, ancestrais,
com os quais os agentes empíricos interagem. Estas relações são
muito semelhantes a que os seres humanos mantêm entre si
(Hallowell, op cit: 92).
Durante todo o ritual, o cacique permaneceu em volta do índio
esculpido colocado no centro do pátio circular coberto de palha.
Algumas vezes permanecia estático, como se em transe. Fazia
questão de representar o esforço que lhe custava dançar o Toré,
haja vista ter reclamado desde o dia anterior de dores nas pernas.
Seu vestual em tudo o assemelhava a escultura do centro.
Ele, que enquanto agente empírico já teve o maior número de
funções que pude registrar num relato de história de vida Pataxó
(agricultor, caminhoneiro transportando areia monazítica, pescador,
marisqueiro, líder de associação de pescadores, agente da policia
civil, artesão, cacique) representava no seu personagem a
329 Ir para o sumário >>

permanência da identificação Pataxó em meio à fragmentação com


a qual teve que conviver.
Seu corpo transformado115 simboliza que, em meio à
multiplicidade de aspectos e agentes envolvidos no processo
identitário Pataxó que o fragmenta em diversas maneiras de pensar,
agir e sentir, diferentes estratégias de subsistência e inserção no
mercado imposto pela modernidade e, especialmente em diferentes
rotas políticas que opõem em sentidos de ação díspares diferentes
grupos emergidos em meio ao faccionalismo e mesmo, apesar
destas pressões centrífugas em direção a dispersão identitária,
cresce o numero de pessoas, grupos de pessoas e, mesmo,
pessoas coletivas (famílias extensas, facções, aldeias, organizações
Pataxó e dos povos indígenas) fazendo uma pressão centrípeta pela
permanência da identificação étnica; especialmente o
reconhecimento ou retificação dos seus direitos enquanto povo
etnicamente diferenciado.
Mais uma vez o Toré / Auê pode ser lido como uma
representação ritual, cosmológica da condição étnica Pataxó,
entendida aqui lato sensu, englobando sua vida múltipla,
fragmentada e faccional; uma condição que não lhes é nova e
possível pensar que, guardadas as devidas proporções eles sempre
viveram assim. A força centrífuga expressada no círculo que unido
translada o centro, contrai-se e se dilata em torno dele, ou ainda, o
utiliza para marcar guinadas que o fazem ir e voltar e nos momentos
que individualmente giram, pulam, cantam, gritam, agacham-se e se

115 Dois outros causaram impressão. Entrevistados apenas uma vez foram encontrados transformados em seu personagem: um líder da aldeia

Pequiatã que não aceitou ser entrevistado fora da área que retomara e o Conselheiro, espécie de consultor sobre problemas internos da Aldeia

Nova do Monte Pascoal. Mesmo que tenham percebido minha aproximação antes que os percebessem e se preparado para o encontro de tal

forma. O fato de assim terem agido já seria tão significativo quanto o fato, também possível, de que possam se vestir, assim, todo o dia.
330 Ir para o sumário >>

ajoelham; cada um responsável por executar pessoalmente uma


performance que tem um ritmo, um padrão coletivo. Já a força
centrípeta, marca do seu processo identitário/unitário, cristaliza-se
no personagem ou símbolos rituais centrais, réplicas do sagrado,
fincadas a terra como os velhos troncos das jaqueiras plantadas no
centro de toda aldeia Pataxó, como os esteios das antigas casas
introduzidos na terra na vertical; servindo de fundação para as
unidades domésticas de parentesco extenso. O caráter estático
simbolizado aponta para a permanência do processo identitário
Pataxó, em meio à multiplicidade dos giros que as pessoas Pataxó
possam dar: individual, coletiva, ou mesmo, faccionalmentre. Quanto
mais são levados para lá e para cá, mais rameiam, não só
ampliando o número de ramos do tronco, mas mantendo-os
entrelaçados. “Olha os caboclo da jurema / Que o vento vai levando /
Vai levando, vai levando, os caboclo da jurema / Minha jurema,
minha jurema / Eu quero ver meus caboclo ramiar / É no ré, no renô
de Tupã”.

Referências

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Reserva Pataxó". Revista de Antropologia; 23: 19-29. São Paulo.
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Interétnicos da Localização dos Pataxó da Barra Velha, Bahia". Em
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______. 1990. Fazer a Flecha Chegar ao Céu Novamente. Resumo
da tese ______. 1989. Der lauf des krebses: Verãnderungen in
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332 Ir para o sumário >>

ROCHA JR., Omar. A Arte de Ser Índio: os Pataxó e os Turistas


na Coroa Vermelha. Projeto de pesquisa, apresentado ao Mestrado
em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Salvador/Ba: UFBA,
1990.
333 Ir para o sumário >>


3.3 IDENTIDADE PATAXÓ NA FESTA DE SÃO SEBASTIÃO EM CUMURUXATIBA/BA

Geslline Giovana Braga

Introdução

A pequena vila de Cumuruxatiba está localizada no município


de Prado, extremo sul do litoral da Bahia. A região em que se
localiza recebeu o nome de Costa do Descobrimento em dezembro
de 1999 e foi reconhecida como Patrimônio Mundial da Humanidade
pela UNESCO.
A área é foco de tensões recorrentes em torno de questões
territoriais. Distante cerca de 30 quilômetros do centro da cidade o
acesso se dá somente por estrada de chão. A vila hoje abriga
acampamentos e assentamentos do MST, área de Reserva
Ambiental, fazendas e aldeias Pataxó.
A maior parte da arrecadação de “Cumuru” vem do turismo,
que cresceu muito na última década. Hoje possui um calendário de
que compreende eventos, como festivais culturais, festa das
orquídeas e observação das baleias jubarte. Mas o evento mais
afamado da região é a tradicional “Festa do Pau de São Sebastião”,
organizada pelos índios Pataxó todo 20 de janeiro, dia consagrado
ao santo. A mesma festividade também acontece em outros redutos
Pataxó, como Corumbau e Porto Seguro. A particularidade do “pau”
de Cumuraxatiba é que a partir da observação de fatos associados à
preparação e realização da festa pode-se fazer uma apreciação
334 Ir para o sumário >>

etno-histórica dos contornos do processo em que os Pataxó


encontram-se inseridos e da sua longa história de contato com a
sociedade envolvente. “Ou em outras palavras: os contatualistas
pensam que os índios, com suas culturas, estão a significar apenas
a sua própria indianidade, mas, para os índios, o que se significa
com elas é a realidade” (VIVEIROS, 2000, p.204).
É quase impossível traçar um relato da história dos Pataxó,
que não a partir da perspectiva contatualista. Viveiros de Castro
classifica como ingênua tanto a perspectiva do “contato culturalista”
de Darcy Ribeiro quanto a “fricção interétnica” de Cardoso de
Oliveira, sendo a segunda um desdobramento aprimorado da
primeira: “Mas se como penso, não existe esse objeto chamado
‘contato interétnico’, é porque não há outro modo de contar a história
senão do ponto de vista de uma das partes” (VIVEIROS, 1999,
p.119).
Tradicionalmente litorâneos, os Pataxó estão entre os primeiros
indígenas a estabelecer contato com os portugueses e têm também
uma ampla história de contato com outros grupos, como os
Botocudo e Aimoré. São pertencentes ao tronco lingüístico macro-jê.
“Os grupos Macro-Jê (incluindo Kamakã, Maxakali, Botocudo,
Pataxó, Puri, Kariri, Ofaié, Jeikó, Rikbatsá, Guató e, possivelmente
Bororo e Fulniô) trata-se de relações mais distantes, datando
provavelmente de uns 5 ou 6 mil anos pelos menos” (URBAN, 1992,
p. 90). Ainda segundo Urban, a região sul da Bahia é de
concentração dos grupos Macro-Jê, o que justifica a grande
variedade lingüística “que possivelmente inclui as línguas
designadas Pataxó — não suficientemente conhecidas para uma
classificação precisa (...)” (op.cit. SAMPAIO, 2000, p.3).
335 Ir para o sumário >>

Devido a sua longa história de transformações, os Pataxó e


os demais grupos do Nordeste são freqüentemente classificados
como “índios misturados”. Segundo Oliveira, despertaram pouco
interesse etnográfico até os anos 1990, o que justifica a parca
bibliografia existente sobre o grupo. “Os índios do Nordeste não
possuiriam mais importância enquanto objeto de ação política
(indigenista), nem permitiriam visualizar perspectiva para estudos
etnológicos” (OLIVEIRA, 1998, p.3).
A classificação “índios do Nordeste”, invariavelmente
discutível, não é muito bem aceita, por ser uma categoria
meramente classificatória, relacionada ao território no qual estão
circunscritos, desconsiderando qualquer tipo de identificação local
que os grupos possam ter entre si, ou como se reconhecem. “A
unidade dos ‘índios do nordeste’ é dada não por suas instituições,
nem por sua história, ou por sua conexão com o meio ambiente, mas
por pertencerem ao Nordeste, enquanto conglomerado histórico e
geográfico” (OLIVEIRA, 1998, p.3).
Dantas destaca que essa classificação pode ser chamada
“classificação residual” (1992), pois diferente de outras não leva em
conta os mesmos critérios como a língua, história e origem. O
Nordeste brasileiro compreende nove estados e uma imensa
diversidade cultural, pensá-lo como um única coisa por si só já
reside num equívoco, freqüentemente praticado pelo senso comum
sulista e pela mídia nacional (que de certa forma representa esse
mesmo senso comum sulista). Portanto, colocar os grupos indígenas
espalhados pelo Nordeste, entre eles - Pataxó, Tupinambá,
Tupinaqui, Kamurú-Kariri, Kariri, Masakarí, Tupinambá, Chocó,
Chocó-Natu, Pankaruru, Sukurú, Fulni-ô, Tobajara, Potyguara,
336 Ir para o sumário >>

Timbira, Jaicó, Guegué, Guajajará, Kreye, Pukópye, Krikati e


116
Gamellas (NIMUENDAJU, 2002) - dentro de um mesmo caldeirão,
só parece funcionar em termos de delimitação territorial, que não
serve para um estudo etnográfico mais aprofundado. O que Galvão
(1959) chama de “área cultural Nordeste” parece simplista por
demais e mais uma vez mostra a falta de atrativo que tais grupos
exerceram até os últimos 20 anos.
Representando o contexto da década de 50, Darcy Ribeiro
comete incorreções semelhantes ao afirmar que existiam “resíduos
de população indígena no Nordeste”, considerando que essas
populações haviam deixado de existir ou simplesmente deixado de
serem indígenas (tema que será discutido mais adiante aplicado ao
caso Pataxó). “Na década de 50, a relação dos povos indígenas do
Nordeste incluía dez etnias, quarenta anos depois, em 1994, essa
lista montava a 23” (OLIVEIRA, 1998, p.1).
Viveiros de Castro caracteriza tal processo como
“transfiguração étnica”, no qual populações vistas como camponesas
assumem a sua indianiadade, porque além de serem camponesas
também eram índias, mais uma vez contrariando as “profecias” de
Ribeiro que sugeria o desaparecimento de populações indígenas no
Nordeste.
Viveiros de Castro diz que alguns teóricos vêem o Nordeste
como um “placebo sociológico”, uma ilusão bem fundada, uma
invenção da tradição (2000); ainda critica Oliveira em artigo de 1998,
que se propõe a discutir o porquê desses grupos terem permanecido
à margem dos estudos etnológicos brasileiros, dizendo haver uma
preferência pelo estudo de grupos mais exóticos e autênticos aos

116 Dados retirados do mapa etnográfico de Nimuendaju que relaciona outros variados etnômios ao longo do Nordeste.
337 Ir para o sumário >>

nossos olhos e que esses, por serem “misturados”, ofereceriam


poucos atrativos. Dantas confirma as idéias de Pacheco: “Marginal
é, aliás, justamente a categoria escolhida por Steward (1946) para
classificar dicotomicamente todos os povos sul-americanos não
relacionados à floresta tropical, caso típico de todos os povos do
Nordeste se excluídos os Tupi costeiro” (DANTAS, 1992, p.431).
Viveiros de Castro (2002), desconsiderando Oliveira, salienta que o
suposto interesse pelos grupos do Nordeste só surgiu quando esses
desejaram sair dessa suposta marginalidade ou condição de
misturados e passaram a buscar sua autenticidade perdida. Outra
crítica a Oliveira refere-se às questões de territorialidade abordadas
por ele, sugerindo que a busca identitária é também uma busca
territorial.
O objetivo desse artigo é traçar um panorama da situação
atual dos Pataxó de Cumuraxatiba, abordando como as questões
117
territoriais e da sua “etnogênese cultural” apresentam-se na festa
do Pau de São Sebastião. Oliveira observa no Toré, também tais
118
situações: “O ritual do Toré , por exemplo, permite exibir a todos os
atores presentes nessa situação interétnica (regionais, indigenistas e
os próprios índios) os sinais diacríticos de uma indianidade aos
índios do Nordeste” (OLIVEIRA, 1998, p. 9).

Pequeno histórico Pataxó

117 “ O termo etnogênese foi empregado por Gerald Sider (1976), no contexto de oposição ao etnocídio.” (OLIVEIRA, 1998, p. 9).

118 Toré é um ritual com danças, cantos e uso de ervas. Com o objetivo de espantar os males e atrair o bem é realizado por vários grupos do

Nordeste. Hoje também é considerado um rito de resistência e afirmação identitária.


338 Ir para o sumário >>

O grupo Pataxó reside historicamente na costa do litoral sul da


Bahia, tendo assim uma estreita relação com o mar. Após o impacto
dos primeiros contatos, que de acordo com dados históricos datam a
segunda metade do século XVI, seguiram-se tempos de aparente
paz, apesar da constante escravização de silvícolas.
Segundo Dantas, a Lei de 30/7/1609 declarou os índios livres
sob proteção da Companhia de Jesus, o que justifica a forte
cristianização ainda presente na região (1992, p.438). No mesmo
século, Pombal incentiva os casamentos interaciais no Brasil.
Segundo Laura Moutinho para os brasileiros o casamento interacial
sempre foi considerado uma forma de “branqueamento”, diferente de
outros lugares onde esse tipo de união significa um entrave para a
almejada pureza racial (2004, p.59). Temos assim a idéia de uma
nação “misturada”. Escritores das décadas de 1920/1930, como
Roquete Pinto, sugeriam que no Brasil a forte a miscigenação foi
uma forma de garantir o embranquecimento do índio e
posteriormente do negro; já para Gilberto Freyre, em Casa Grande e
Senzala, o índio aparece como um importante elemento no processo
de “miscigenação cultural” De acordo com Oliveira, “mistura” é uma
fabricação ideológica e distorcida, dada a freqüência da expressão
“índios misturados” nos relatórios sobre os índios da região (1998,
p.4). Dantas por sua vez considera a idéia de mistura como um
elemento diluidor do índio em não índio (1992, p.452).
Numa tabela sobre aldeamentos do século XVIII apresentada
por Sampaio (2000, p.445) não constam aldeamentos em Prado,
Corumbau ou Caraíva, localidades que circundam Cumuruxatiba.
Nesta época, porém, o combate aos "bandos selvagens" da região
deixa de ser empresa apenas dos colonos locais e passa a
339 Ir para o sumário >>

interessar ao próprio governo real que deseja destituir terras dos


indígenas.
O príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied, em
expedição pelo Brasil em 1816, contatou os Pataxós no município de
Prado e observou que esses diferenciavam-se dos botocudos por
causa do cabelo, e traziam sempre um saco amarrado ao pescoço.
No esboço que realizou para ilustrar o encontro, Maximiliano
destacou as calças vermelhas, o gorro e o machado do cacique
usado para abrir cocos, peças que segundo ele haviam sido
recebidas em trocas com portugueses, e acrescenta: “chama a
atenção o costume de amarrar uma certa parte do seu corpo, o
prepúcio, com uma planta trepadeira, adquirindo em vista disso um
aspecto muito estranho” (LÖSCHNER, 2001, p.15).
A Lei de Terras, de 1850, instituiu a propriedade fundiária no
Brasil e extinguiu muitos aldeamentos, por ser considerado que não
mais existiam índios, pois esses estariam misturados aos brancos:

Esse dispositivo legal, interpretado de modo que


convinha aos interesses regionais, fez com que a
população dos aldeamentos fosse insistentemente
apresentada como “misturada” e “mestiça”, o que
culminaria com a negação da existência de índios. Desse
modo, mediante a mistura de raças e culturas,
descaracterizar-se-iam os sujeitos de direitos históricos,
dentre os quais o mais relevante era a posse da terra
( DANTAS, 1992, p.452).

Em 1861 foi determinado pelo presidente da província da


Bahia o agrupamento dos indígenas numa única aldeia. Segundo
Sampaio essa é a origem da aldeia de Barra Velha, situada entre as
340 Ir para o sumário >>

Vilas de Caraíva e Corumbau, mas existem poucas referências que


confirmem essa hipótese (SAMPAIO, 2000 p.6).

Ainda de acordo com Dantas, os últimos grupos


Pataxó isolados foram contatados nas primeiras décadas
do século XX, durante o ciclo do cacau (1992, p.434).
Nesse período acentuou-se a violência contra a
população local que se viu obrigada a sucumbir ao
trabalho praticamente escravo na produção do cacau. As
epidemias também parecem ter promovido muitas baixas:
“Quando as roupas infectadas por lepra e varíola que
plantadores de cacau da região entre o Contas e o Pardo
espalharam-se pela mata, deram cabo dos últimos
bandos ainda isolados e vivendo de modo autônomo”
(RIBEIRO, 1970, apud SAMPAIO, 2006, p.6).

Em 19 de abril de 1943 foi criado o Parque Nacional de Monte


Pascoal, compreendendo a região onde está localizada a aldeia de
Barra Velha, que concentrava a maior população Pataxó da região e
ainda hoje é considerada a “aldeia mãe”. O modelo de parque
adotado no Brasil dificulta que as populações locais continuem a
viver nas terras que o compreendem. O intuito de tal ação é garantir
a preservação ambiental, em muitos casos desconsiderando o
direito à terra daqueles que nelas vivem. Nesse período os Pataxó
eram desassistidos por qualquer outro órgão do governo.
Devido a essa invisibilidade, em 1951, diz-se que os Pataxó
saquearam o comércio do povoado do Corumbau, “o que
desencadeou uma violenta reação policial a partir das cidades de
Porto Seguro e Prado, dando origem a uma série de perseguições e
ao início da sua dispersão pela região”(SAMPAIO, 2000, p.7).
341 Ir para o sumário >>

Esse fato ficou conhecido como “fogo de 1951”. Em


Cumuruxatiba, o acontecimento é comentado como evento que os
levou até lá Zabelê, mulher mais velha da Aldeia Tibá, diz ser a
única remanescente de sua família e fala das atrocidades ocorridas
em 51, mas apenas menciona o fato, dizendo que por isso começou
a dispersão dos Pataxó. Seus filhos Benedito e Damião contam
relatos que ouviram da mãe, de que muitos índios morreram, foram
humilhados, presos e sodomizados: “Pegavam rabo de cavalo e
colocavam na bunda dos índio e obrigavam a andar como cavalo”.
Dessa violenta memória também restou a língua Patahõ. Durante
muito tempo Zabelê foi única em Cumuruxatiba a falá-la; apenas em
1993 a língua foi reintroduzida através do ensino escolar.
A diáspora que desmembrou a aldeia de Barra Velha fez que
muitos índios passassem a trabalhar nas atividades madeireiras e
extrativistas da região. Segundo Couto e Machado (2002, p.4), as
décadas de 50, 60 e 70 em Prado foram marcadas pela presença de
posseiros e grileiros, remanejamento das terras devolutas, expulsão
de moradores para a plantação de madeira.
Posteriormente foi reintroduzida a comercialização do
artesanato, que garante o sustento a muitos índios na região. Em
1998, a população de Barra Velha era de 965 habitantes (ANAI,
1998) e dela derivam aproximadamente outras 18 aldeias
espalhadas ao longo do litoral Sul baiano, como as aldeias Alegria
Nova, Tauá, Caí, Tibá e Pequí, em Cumuraxatiba.

A festa do pau de São Sebastião

A festa do pau de São Sebastião acontece em Cumuruxatiba


todo dia 20 de janeiro. As pessoas que consultei não sabem precisar
342 Ir para o sumário >>

exatamente quando a festa começou a ser realizada, quando São


Sebastião foi escolhido como padroeiro, quando os Pataxós
começaram a organizar a festa, ou se eles foram sempre os
realizadores.
De acordo com Dantas, no século XVII já existia a devoção a
São Sebastião em terras baianas “e, efetivamente, em 1559 haviam
sido estabelecidas em povoações indígenas na Bahia cinco igrejas,
ou seja, N. S. do Rio Vermelho, São Sebastião, São Paulo, São
João e do Espírito Santo” (DANTAS, 1992, p.436). Durante a missa
que abre a festa é possível perceber tal fenômeno: indígenas
convertidos que não deixam de participar de todas as etapas
dedicadas a São Sebastião vão à missa, mas permanecem orando
de costas para o altar.
Segundo Câmara Cascudo, São Sebastião é muito popular no
Brasil, sendo padroeiro de várias cidades e dando nome a várias
localidades. Só no Paraná sete cidades têm o santo como padroeiro
e realizam festas em sua homenagem. No Rio de Janeiro conta-se
uma lenda, que São Sebastião esteve presente ao lado dos índios
Tamoios na batalha contra os portugueses que ocupavam a Bahia
de Guanabara, em 20 de janeiro de 1567, dia consagrado a São
Sebastião.
A história do santo diz que, condenado à morte, foi amarrado a
uma árvore e flechado até ser considerado morto, mas não morreu.
Os Pataxó de Cumuruxatiba dizem que Sebastião é um santo
guerreiro e foi escolhido padroeiro por eles por ter sobrevivido às
flechadas.
A tradição popular lembra que os devotos de São Sebastião
não morrem “nem de guerra, nem de peste, nem de fome”
343 Ir para o sumário >>

(CASCUDO, 1984, p.702). Guerra, peste e fome estiveram


sempre presentes nos últimos 500 anos de história Pataxó. Em
outros lugares, distantes de Cumuru e com outras populações
tradicionais – como garimpeiros e caiçaras - a fé em São
Sebastião também é originária de desgraças. Tanto em Igatu, na
Chapada Diamantina no estado da Bahia, como na Ilha das Peças
no Litoral do Paraná, dizem que Sebastião foi escolhido padroeiro
119
após uma epidemia de “bexiga” .
Em Cumuruxatiba a festa começa ao nascer do dia, com fogos
de artifício soltos pelos organizadores, em geral membros das
comunidades indígenas. O mastro já está decorado e pintado nas
cores do santo: o vermelho e o branco. Alguns na vila costumam
afirmar que o pau deve ser maior a cada ano para não desagradar o
santo. Em 2007, corriam boatos nas aldeias Tibá e Pequí, que não
participaram da organização da festa, de que o mastro era o mesmo
do ano anterior e que os índios da aldeia Caí haviam apenas
repintado, o que poderia provocar a ira do santo.
Em todos os anos que participei da festa o mastro fica numa
casa do começo da vila, que pertence a um dos componentes da
Aldeia Caí. No primeiro momento do dia, também acontece de forma
coletiva a ornamentação dos integrantes das aldeias. Usam-se saias
de palha, muitos colares de sementes e pinturas corporais.
Os ornamentos são usados em geral apenas no dia da festa,
ou quando apresentam-se em alguma festividade regional. Os
colares de sementes, feitos por quase todos os índios e vendidos
como artesanato com sucesso entre os turistas, dificilmente são
usados no dia-a-dia dos nativos. Colares de sementes e ornamentos

119 Bexiga é nome popular dado à varíola. Na primeira metade do século XX ocorreram várias epidemias da doença no Brasil.
344 Ir para o sumário >>

de penas em Cumuruxatiba são “coisa de turista”:

Nas atuais condições de vida dos Pataxó, a


comercialização de artesanato, ainda que dependente
de consumidores sazonais, aparece como uma
indispensável via de acesso ao mercado, mesmo para
os índios das comunidades do Monte Pascoal que,
distantes dos principais pontos de comércio, têm que
se submeter a intermediários ou se ausentar dos seus
locais de moradia na alta estação, com prejuízos para o
trabalho agrícola. (SAMPAIO, 2000 p.11)

Os artesanatos Pataxó em geral são vendidos nas praias e


lojas por preços módicos. Além dos adornos são comercializadas
lanças, bordunas, gamelas, arcos e flechas. As crianças da aldeia
Tibá, entre três e doze anos, são as grandes vendedoras de
artesanato da praia. Quando não conseguem vender, segue-se um
lista de pedidos: “Paga uma coca, me dá um real, tô com fome...” A
insistência em geral resulta num refrigerante, mas como são muitas
crianças alguns turistas sentem-se importunados. A labuta dos
indiozinhos dura o dia todo. As famílias consideram esse tipo de
atividade como uma ajuda aos pais que trabalham para fazer os
artesanatos.
Na aldeia Tibá a venda de artesanato pelas crianças foi
eliminada, o que é motivo de orgulho da comunidade. Dizem que
tiveram a compreensão de que as crianças acabavam por mendigar
quando sujeitas a essa situação.

Já na aldeia, as crianças Pataxó são bem


diferentes. São aparentemente tranqüilas, dóceis.
345 Ir para o sumário >>

Raramente desobedecem, respondem mal ou agridem


em suas ações. Estão normalmente acompanhadas por
um irmão maior ou um adulto, quando não estão
participando do conjunto das atividades de trabalho,
festas, reuniões ou danças sagradas. Entram e saem
naturalmente dos grupos envolvidos, sem pedir licença
deixam as tarefas, brincam um pouco e depois a elas
retornam. Durante todo o trabalho exploratório, iniciado
há mais de seis meses, não presenciei nenhuma
punição ou castigo entre eles ou envolvendo adultos.
(BATISTA, 2000, p. 15)

A preocupação com as crianças é constante entre os


integrantes da Tibá, pois intuem as crianças como responsáveis pela
continuidade de sua cultura. Zabelê ganhou uma casa para morar e
onde pudesse ensinar às crianças a língua, o artesanato e história
do seu povo. A casa estava sendo concluída em janeiro de 2007 e
Zabelê, aparentemente feliz, apenas lamentava queria que tivesse
sido colocado um teto de piaçava, mas que seria mais caro do que
colocar telhas. Ao ver a casa toda pintada de verde ela dizia que
achava que não ia se acostumar a uma casa que não era de barro,
diferente de todas as casas da aldeia, que talvez só usasse a casa
para ensinar as crianças. De qualquer modo as crianças ainda vêem
nos turistas a possível realização de seus pequenos desejos de
consumo. Na aldeia Tibá os pequenos não se cansavam de
enumerar presentes ganhos de turistas e me perguntavam: Você
não é turista, né?

Na comunidade de Cumuruxatiba, as atividades


de trabalho são relacionadas ao mar e à terra, à pesca
346 Ir para o sumário >>

e à agricultura e, nos últimos dez anos, também ao


turismo. As crianças têm acesso ao mesmo tempo às
culturas mais globalizadas, porque se relacionam com
turistas de vários cantos do mundo e do Brasil. (...)
Aqui os mitos da natureza, e os mito-brinquedos do
mundo moderno se entrecruzam matizando desejos,
produzindo o inesperado, o desconhecido e, às vezes,
o assustador. É uma situação nova que se desenha,
hoje na realidade camponesa, a exemplo do que já se
manifesta nos centros urbanos (BATISTA, 2000, p. 15).

Para a festa ornamentar-se tem relação com a busca por uma


identidade indígena. Nesse dia, aqueles que não vivem mais nas
aldeias se revelam como índios. Muitos comerciantes que usam
vestes tradicionais, em outros dias não mencionam suas origens,
durante a festa contam todas as suas relações de parentesco.
Demostra-se não gostar que não-índios vistam-se como tais, ou que
carreguem as bandeiras de São Sebastião. No primeiro ano que
estive no evento, em 2003, duas celeumas formaram-se no decorrer
da festa entre as mulheres indígenas: a primeira porque uma moça
que não era Pataxó, vestida de índia, insistia em levar a bandeira
vermelha do santo. Essa foi retirada de suas mãos várias vezes
pelas índias; a segunda porque uma mulher loura de fora da vila,
vestida como uma índia tinha apenas tinta preta nos seios desnudos,
os comentários indignados das mulheres Pataxó é que depois iriam
dizer que elas é que estavam peladas na festa. Oliveira destaca que
o Toré, também distancia índios de brancos:“Trata-se de um ritual
político sempre que é preciso demarcar a fronteira entre índios e
brancos” (OLIVEIRA, 1998, p. 9)
O simbolismo guardado na ornamentação que utilizam no dia
347 Ir para o sumário >>

da festa parece residir mais na associação por uma busca à


identidade indígena do que a um caráter expresso nos significados
dos adornos. Em 2003, a pintura vermelha era feita por alguns com
batom, apesar da grande quantidades de pés de urucum na região
(Foto 6: Ornamentação vermelha com batom). Percebeu-se uma
mudança significativa entre os anos de 2003 e 2007. No primeiro
predominavam as pinturas vermelhas, no último eram raras, e as
negras, feitas com carvão e jenipapo, estavam muito melhor
elaboradas; feitas pelos mais jovens, lembravam muito a grafia
Kayapó.
Os rapazes agora estão com muito mais freqüência usando
botoques nas orelhas e no nariz e muitas tatuagens. Mas, o que
poderia ser interpretado como uma espécie de retomada étnica,
acaba tendo mais contornos de uma associação à moda jovem
urbana das tatuagens, piercings e alargadores de orelha, do que a
uma volta à identidade indígena. Freqüentemente os mesmos
meninos propõem trocas de artesanato por óculos e roupas, mas só
aceitam objetos de “marca”.
O menor predomínio do vermelho em 2007, que havia sido
usado em outras festas, era justificado porque o vermelho é “para
guerra”. Muitos traziam escrito no corpo como distinção intertribal o
nome da Aldeia Caí, que organizou a festa e, ao que tudo indica,
teve discordâncias com outras aldeias. Alguns usavam apenas o
barro em lugar de qualquer tintura. A ornamentação de um senhor
em particular chamava atenção, por usar um cocar que tinha como
base uma toca de papai-noel e com penas de um espanador de pó.
Mesmo que desprovido dos simbolismos tradicionais, essa in-
dumentária encerra em si o signo da identidade étnica, do fazer-se
348 Ir para o sumário >>

índio, tornar-se índio, ou ainda mostrar-se índio, legitimar-se como


tal perante a comunidade da vila no seu evento mais representativo.
Depois da ornamentação todos descem para a missa na vila entoan-
do cantos indígenas. É interessante salientar que essa
acentuada manifestação da busca identitária ocorre numa festa,
apesar de sincrética, dedicada a um santo católico e que começa
dentro da Igreja. A “etnogênese” Pataxó, que se encontra apenas na
forma discursiva em outros momentos, é materializada nesse ritual,
que traz a afirmação da tradição indígena. A força centrípeta, para
usar o termo de Carlos Fausto (2001), aqui atua no sentido de que a
festa do pau de São Sebastião é pensada como um festa da comuni-
dade indígena e não como uma “festa de igreja” - manifestação do
outro, do não-índio. Essa “predação familiarizante” de São Sebastião
faz com que os “brancos” ocupem um papel secundário, que é refor-
çado ao longo da festa.
A distinção entre quem se considera ou não índio em Cumuru-
xatiba é muito tênue, pois como acontece em localidades muito pe-
quenas quase todos são parentes. Por isso “ser índio” tem relação
com dizer-se índio. A mistura para eles é só um fato, que pode vir a
ter um aspecto negativo perante os outros, por desprovê-los de origi-
nalidade necessária para o direito à terra.

A partir da segunda metade do século, sobretudo,


os índios dos aldeamentos passam a ser referidos com
crescente freqüência como índios “misturados”,
agregando-se-lhes uma série de atributos negativos
que os desqualificam e os opõem aos índios “puros” do
passado, idealizados e apresentados como
antepassados míticos” (DANTAS, 1992, p.451).
349 Ir para o sumário >>

A configuração social da região faz com que as aldeias sejam


não só um local para aqueles considerados índios legítimos, ou
mesmo misturados, mas uma morada para aqueles que precisam.
Essas distinções não são mencionadas, mas se evidenciam em
alguns fatos.
Como por exemplo, durante o barreamento120 de uma casa na
aldeia Tibá, que aconteceu dias antes da festa. Alguns dos
participantes ingeriram bebidas alcoólicas, uma das mulheres que
trabalhava carregando barro apresentou comportamentos
considerados indevidos pelos outros. Não demorou muito para
começarem a me dizer ao pé do ouvido: Ela não é índia. Ela mora
aqui mas não é Pataxó. Até mesmo as crianças me diziam baixinho:
Ela não é índia, é da macumba. Perguntei às crianças o que era
macumba e elas não sabiam dizer. Em seguida, a “não-índia” pegou
um balde, virou-o e começou a batucar e entoar cantos que
pareciam ser de terreiro, aí as crianças me disseram que aquilo era
macumba. É interessante perceber que a vida comunitária entre
índios e não-índios é indistinta dentro da aldeia, mas certos
comportamentos são reprovados e assim são feitas as distinções.
A diferença entre brancos e índios existe. Mas o que poderia
ser entendido por “misturado” na categoria nativa não é evidenciado.
Pois corresponderia ao todo, compreendendo quase todos os
membros nesse século de contato. O cacique Zé Chico disse-me
certa vez, que até alguns anos atrás eles não se entendiam como
índios, se diziam cablocos, que seus antepassados falavam em
120 O barreamento consiste num mutirão onde a estrutura de bambu/madeira de um casa é preenchida por barro ao longo do dia pelos membros

de uma comunidade; o dono da casa oferece aos participantes em troca do trabalho comida e bebida.
350 Ir para o sumário >>

Tupã, mas não se consideravam Pataxó. Falou também que depois


da chegada das leis se instituíram as hierarquias: “ A organização
política de quase todas as áreas passou a incluir três papéis
difrenciados – o cacique, o pajé e o conselheiro (isto é, o membro do
‘conselho tribal’) -, tomados como ‘tradicionais’ e ‘autenticamente
indígenas’” (OLIVEIRA, 1998, p.9). Disse também que não sabiam a
língua, apenas algumas palavras como canhambá, que significa
dinheiro.
Eunice Durkan comenta ser a categoria índio uma invenção da
nossa sociedade, e que os Pataxó não são os únicos a não se
entenderem como índios: “Aprenderam que eram índios no contato,
incorporado como uma definição da posição face a sociedade
nacional; a partir disso se constrói também a idéia de minoria
(VIDAL, 1983, p.15).
Contudo, a busca da legitimidade indígena Pataxó, expressa
na festa de São Sebastião, fica condicionada a elementos
aparentes, que remetem ao imaginário do senso comum com
relação aos índios: ser índio autêntico estaria condicionado a
elementos como um cocar, uma pintura, uma vestimenta. Tais
questões remontam às discussões de Oliveira e Viveiros de Castro.
Para o primeiro, a etnogênese dos índios do Nordeste aparece como
uma busca pela originalidade mítica perdida; para o outro, esses
índios estão apenas “virando índios de novo enquanto os outros
nunca pararam de virar”:

Essa imagem das sociedades indígenas


nordestinas, construída pelo discurso contatualista, é
curiosamente evocativa de ‘As formas elementares da
vida religiosa’. Ao buscar mostrar como a etnogênes
351 Ir para o sumário >>

produz entidades autenticamente indígenas, Oliveira


sai-se com entidades antropologicamente
durkheiminianas: uma vida espiritual voltada para a
celebração do sentido de pertença à comunidade;
rituais que marcam a fronteira entre o sagrado (os
membros do grupo, ou os índios puros) e profano (os
brancos, índios misturados); divindades que são como
totens territoriais a assegurar a ligação entre o mundo
histórico e sua origem mítica; e uma ‘natureza última’
de tipo religioso, expressão de uma consciência
coletiva étnica. Ou seja: a etnogênese como
reencatamento da sociedade. Mas também a
etnogêsnese como naturalização da sociedade
(VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p.205).

Para a realização da missa a comunidade indígena organizado-


ra da festa entra pela porta da frente da igreja, seguida pelos padres,
recebida pelos demais participantes ao som de hinos católicos. Um
dos apelos freqüentes do sacerdote no sermão é para que não se
abuse do álcool. Devido a esses excessos a festa desse ano apre-
sentou uma mudança na ordem dos fatos: a procissão com o andor
do Santo, que só ocorria no fim da tarde, antes do mastro ser levan-
tado ao fim da festa, aconteceu ainda de manhã antes da realização
da missa, com uma simples volta na quadra. O motivo, segundo os
organizadores, é que poucos conseguem encarar a procissão no fim
da tarde depois de todo dia ‘atrás do pau’.
Depois do sagrado vem o profano. Ao fim da missa, começa a
festa em si. Já ao som dos batuques retorna-se à casa onde o mas-
tro esta à espera. Nesse ano foi servido um almoço aos índios, que
se restringiu aos integrantes da aldeia Caí organizadora da festa. Jo-
352 Ir para o sumário >>

vita, a pajé e esposa do cacique Zé Chico, dizia-se muito brava por-


que seus parentes das outras aldeias não haviam aparecido até en-
tão.
Como os desentendimentos conflitos entre aldeias estavam
mais evidente em 2007, até a véspera da festa os índios da aldeia
Tibá e Pequi diziam não saber se iriam participar, falavam em não
descer à vila e realizar uma outra festa na própria aldeia. A decisão
segundo eles dependia da opinião da antropóloga responsável pelos
relatórios de demarcação das terras.
A origem das desavenças foi a expulsão de alguns membros
da aldeia Caí, que acabaram por agregar-se à Tibá e à Pequi. Se-
gundo membros dessas aldeias as brigas devem-se às questões ter-
ritoriais. Dizem que restaram na Cahí menos de 20 membros, paren-
tes diretos do Cacique Zé Chico e de sua mulher, a pajé Jovita. Zé
Chico é um dos mais envolvidos na luta pela conquista do território
Pataxó em Cumuruxatiba.
De acordo com Oliveira, a territorialização é um processo de
reorganização social que implica:

1) a criação de uma nova unidade sociocultural


mediante o estabelecimento de uma identidade étnica
diferenciadora; 2) constituição de mecanismos políticos
especializados; 3) a redefinição do controle social
sobre recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura
e da relação com o passado (OLIVEIRA, 1998, p.6).

Pode-se afirmar que tais tópicos estão representados na festa


do pau de São Sebastião. Conforme o relato etnográfico em curso,
podemos perceber todas as questões, uma a uma.
353 Ir para o sumário >>

Já com o mastro nos ombros, segue a pequena multidão para


casas e estabelecimentos comerciais que permanecem abertos na
vila. Aqueles que não pretendem participar sequer abrem as portas
no dia. Nesse ano os integrantes das aldeias Pequi e Tibá tomaram
parte na festa apenas na primeira parada do pau. Durante todo o
dia, a cada parada segue-se o mesmo ritual, o mastro é largado ao
chão e entoa-se a frase: “Eu não saio, eu não saio, não saio daqui
sem beber”. O dono da casa, ou comércio, oferece bebida a todos. A
“carta” varia entre batidas com frutas da região, vinho, cerveja, ca-
chaça e um preparado comercial à base de catuaba.
A associação fálica ao mastro é muito recorrente. Dizem que
se deve “ralar no pau”, ou seja, passar por cima dele com as pernas
abertas, dançando, cada vez que o mastro vai ao chão. A purgação
para quem não “ralar” é a de não casar. A combinação do excesso
de bebidas com influências das danças de axé baiano faz com que o
“rito” de passar sobre o pau se torne uma dança lasciva, o que de
certa forma contamina toda a festa. Muitas mulheres entoam durante
a festa a frase: “O pau de Bastião nunca vi e não quero vê.” Se San-
to Antônio é casamenteiro, São Sebastião pode ser o da sexualida-
de; a figura do santo, amarrado no tronco onde foi flechado, é recor-
rentemente utilizada e representada como algo sexy, associada in-
clusive ao homosexualismo. Em Cumuruxatiba, nos dias que antece-
dem a festa, fala-se que já se está sob a influência do santo, e que
“isso despertaria uma sexualialidade mais latente em homens e ani-
mais”.
Todo o percurso do mastro é acompanhado de batuques. A pri-
meira seqüência rítmica, que traz os índios da aldeia até a igreja
(ainda sem o carregamento do pau), é feita com um ou dois tambo-
354 Ir para o sumário >>

res e algumas maracas – instrumento caracteristicamente indígena –


e tem caráter mais solene; neste momento, as índias, formando um
coro feminino, entoam basicamente temas católicos e recorrentes a
São Sebastião. Após a missa, os participantes dirigem-se, sem can-
torias, para buscar o mastro. Daí para diante, os batuques seguem
com surdo, pandeiro, atabaque e outros elementos percussivos. De
início, a cantoria remete-se ao santo e é puxada pelos índios, sobre-
tudo as mulheres. À medida que a turba anima-se e cresce de pro-
porção, o ritmo e a dança tornam-se mais frenéticos, e o batuque as-
sume a forma de samba, transformando a festa numa espécie de
bloco de carnaval. Apenas quando do hasteamento do mastro e em
torno dele, no final do evento, ocorreu (isso, em 2007) um rito ape-
nas com maracas e cânticos em Patahõ, marcando de maneira inde-
lével a identidade indígena da cerimônia.
Apesar do aumento significativo de público nos últimos cinco
anos, a festa transcorre em clima pacífico, sem confusões, apesar
dos embriagamentos. A turba vai até o fim da vila, com última para-
da num camping, onde acontece a última distribuição de bebidas.
Em seguida, a pequena multidão volta pela praia até a frente da igre-
ja, para a cerimônia final: a subida do mastro do santo – o mesmo
que foi carregado durante todo o evento - que lá permanece até o
dia 30 de dezembro, quando é retirado para o próximo mastro ser
preparado. Os Pataxó da aldeia Tibá realizaram uma seqüência de
danças e cânticos em torno do mastro já erguido, como forma de
uma participação mais efetiva na festa.
Em 2003, o desfecho da festa quase foi fatídico, pois o pau foi
erguido antes da chegada da procissão à Igreja e sem a autorização
dos índios, que ficaram furiosos com o fato que consideram de total
355 Ir para o sumário >>

desrespeito. A confusão só não aumentou porque a cerimônia final


dentro da Igreja logo começou. Esse momento é quando se faz uma
benção se agradece pelo dia e decide-se com quem ficará a organi-
zação da festa. Pede-se categoricamente: Algum membro da comu-
nidade indígena “ficará” com a próxima festa?
Nos dias subsequentes, a festa ainda permanece na memória
de todos, destilam-se os mais diversos tipos de comentário a respei-
to dos acontecimentos. A vida volta a concentrar-se na busca pelo
sustento em função dos poucos turistas que ainda permanecem nos
últimos dias de janeiro. Continuam as incertezas sobre o território e
a certeza sobre a importância da manutenção da cultura indígena,
ainda que essas tradições estejam repletas de elementos que repre-
sentam apenas o que o outro vislumbra como ‘autenticidade indíge-
na’, que os Pataxó tomaram para si.

O mito

O mito fundador Pataxó, Txopai Itohã, narrado por Apinhaera


Pataxó e escrito por Salvino dos Santos Brás, é dotado de uma
grande simplicidade e mostra uma vida originalmente modesta:

Antigamente, na terra, só existiam bichos e passarinhos,


macaco, caititu, veado, tamanduá, anta, onça, capivara, cutia,
paca, tatu, sariguê, teiú...cachichó, cágado, quati, mutum,
tururim. Jacu, papagaio, aracuã, macuco, gavião, mãe-da-lua
e muitos outros passarinhos.
Naquele tempo, tudo era alegria. Os bichos e
passarinhos viviam numa grande união. Cada raça de bicho e
passarinho era diferente, tinha seu próprio jeito de viver a
vida. Um dia, no azul do céu, formou-se uma grande nuvem
356 Ir para o sumário >>

branca, que logo se transformou em chuva e caiu sobre a


terra. A chuva estava terminando e o último pingo de água
que caiu se transformou em um índio. O índio pisou na terra,
começou a olhar as florestas, os pássaros que passavam
voando, a água que caminhava com serenidade, os animais
que andavam livremente e ficou fascinado com a beleza que
estava vendo ao seu redor.
Ele trouxe consigo muitas sabedorias sobre a terra.
Conhecia a época boa de plantar, de pescar, de caçar e as
ervas boas para fazer remédios e seus rituais. Depois de sua
chegada na terra, passou a caçar, plantar, pescar e cuidar da
natureza. A vida do índio era muito divertida e saudável. Ele
adorava olhar o entardecer, as noites de lua e o amanhecer.
Durante o dia, o sol iluminava seu caminho e aquecia seu
corpo. Durante a noite, a lua e as estrelas iluminavam e
faziam suas noites mais alegres e bonitas. Quando era à
tardinha, apanhava lenha, acendia uma fogueirinha e ficava
ali olhando o céu todo estrelado. Pela madrugada, acordava e
ficava esperando clarear para receber o novo dia que estava
chegando. Quando o sol apontava no céu, o índio começava
o seu trabalho e assim ia levando sua vida, trabalhando e
aprendendo todos os segredos da terra.
Um dia, o índio estava fazendo ritual. Enxergou uma
grande chuva. Cada pingo de chuva ia se transformar em
índio. No dia marcado, a chuva caiu. Depois que a chuva
parou de cair, os índios estavam por todos os lados. O índio
reuniu os outros e falou:
-- Olha parentes, eu cheguei aqui muito antes de vocês,
mas agora tenho que partir.
Os índios perguntaram:
- Pra onde você vai?
O índio respondeu:
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-- Eu tenho que ir morar lá em cima no ITOHÃ, porque


tenho que proteger vocês.
Os índios ficaram um pouco tristes, mas depois
concordaram.
-- Tá bom, parente, pode seguir sua viagem, mas não se
esqueça do nosso povo.
Depois que o índio ensinou todas as sabedorias e
segredos, falou:
- O meu nome é TXOPAI.
De repente o índio se despediu dando um salto, e foi
subindo... subindo... até que desapareceu no azul do céu, e
foi morar lá em cima no ITOHÃ. Daquele dia em diante, os
índios começaram sua caminhada aqui na terra, trabalhando,
caçando, pescando, fazendo festas e assim surgiu a nação
pataxó. Pataxó é água da chuva batendo na terra, nas
pedras, indo embora para o rio e o mar. (VALE, 2001, p.61)

A leitura desse mito indica que os Pataxó, mesmo quando se


entendiam apenas por cablocos, não deixaram o que realmente
havia de autêntico em sua cultura, sendo a mistura também um dos
valores incorporados a ela. E agora sim, quando obrigados a provar-
se como índios, mostrar-se como índios, é que se perdem os seus
verdadeiros referenciais em nome de outros, que foram construídos
pelos brancos, e o que se espera é que se encaixem a eles.
Os Pataxó de Cumuruxatiba cumprem o seu papel, fazem o
que se espera deles, para garantir a legitimidade àquilo que sempre
lhes foi legítimo - o direito de viver em terras onde sempre e
originalmente estiveram. Segundo Carlos Frederico Marés de Souza
Filho, o índio como cidadão brasileiro é uma ficção: “Os índios não
constituíram a nação brasileira, para adquirir uma cidadania são
358 Ir para o sumário >>

obrigados a perder a sua identidade, deixar de ser índio (...)”(VIDAL,


1983, p.50 ).

Conclusão

O momento da festa do pau de São Sebastião e todas as suas


implicações refletem o contexto no qual os Pataxó estão inseridos.
Ser índio está condicionado a uma série de quesitos, não inventados
por eles, mas que dão garantia à legitimidade das terras que
almejam.
Diferente dos Piro da Amazônia estudados por Gow, que
exaltam a mistura como um aspecto de sua cultura, os Pataxó são
condicionados a buscar aspectos que possam indicar uma suposta
pureza idealizada pelo outro. Assim, aspectos que poderiam
realmente sinalizar para suas verdadeiras origens são preteridos
para aqueles criados no imaginário acerca de uma indianidade
utópica.
A festa é o momento do ano em que há a manifestação da
comunidade indígena como uma unidade sociocultural - apesar de
não existir o consenso entre tribos - com uma identidade própria e
distinta dos demais membros da vila.
Aproveita-se tal oportunidade para fazer-se ver a legitimidade
indígena e seus mecanismos políticos e de organização social. Isto
tudo é tão claro, que mesmo os mecanismos que podem ser
considerados falhos evidenciam-se, como por exemplo os
desentendimentos entre as tribos.
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Através das vestes, dos cantos e do culto a São Sebastião


reafirma-se a cultura Pataxó, a relação com o passado e presença
da tradição e das origens indígenas.

Referências

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362 Ir para o sumário >>


3.4. “PAU DO BASTIÃO”: SINCRETISMO, COR, DANÇA E CANTO NO AWÊ

Adailton Nunes Rocha, Marcela Bomfim da Silva

Introdução

Os Índios Pataxó baianos, os chamados Meridionais,


encontram-se no Extremo Sul da Bahia, mais precisamente no
Entorno do Monte Pascoal, onde dois centros regionais se destacam
– Cumuruxatiba mais ao Sul e Coroa Vermelha ao Norte. Na região
de Cumuruxatiba reside uma parte desses índios, seja na própria
cidade ou nas Aldeias que a circunda. A cidade se destaca como um
pólo turístico da região, com algo em torno de 65 hotéis e pousadas
no local, além da área de camping para os mais aventureiros. Sua
população e na maioria indígena, mas há a presença de não índios.
Essa presença se multiplica na região em épocas de alta estação
devido ao grande fluxo de turistas estrangeiros e de visitantes da
própria região.
Em janeiro acontece a Festa do “Pau do Bastião” e o número
de turistas, visitantes da festa ou de veraneio, se multiplica. A Festa
do “Pau do Bastião” é uma celebração indígena comemorada no dia
20 de janeiro. Ela começa precisamente no dia 31 de dezembro do
ano que está terminando a partir da retirada do tronco da árvore que
irá substituir um tronco erguido no ano anterior. A nova madeira é
cortada e guardada numa represa até o dia em que será colocada
no lugar do tronco que está fincado em frente à igreja, o local do
363 Ir para o sumário >>

ritual. Essa festa também é comemorada pela Igreja Católica em


honra a de São Sebastião, evidenciando o sincretismo religioso
existente na comemoração feita por índios e católicos.
A Festa incorpora elementos sacros católicos e rituais
indígenas, convivendo da forma mais pacífica e respeitosa possível.
Os índios retiram o tronco da represa no dia 20 de janeiro e levam-
no para Cumuruxatiba. No decorrer os índios vão cantando e
dançando o toré pelas ruas da vila até chegar à igreja onde é
realizada uma missa para os católicos e um ritual com danças e
cantos para os índios.
Para analisar a festa e também os bastidores, toda a
preparação nas aldeias e os contatos dispersos dos índios na
cidade, foram feitas cerca de 1000 fotografias, 15 horas de gravação
de imagens e 50 horas de gravação de áudio. O trabalho de campo
foi realizado no distrito de Cumuruxatiba, município de Prado. Foram
visitadas as aldeias Alegria Nova, Tibá, Águas Belas, Cahí,
Maturembá e Pequi. O projeto foi desenvolvido através de pesquisas
de campo nas aldeias supracitadas e os contatos com os índios
foram estabelecidos através de lideranças indígenas, que
negociavam com os caciques de cada aldeia a visita do grupo de
pesquisa. Os pesquisadores estavam munidos de caderno de
campo, gravadores digitais e analógicos, máquinas fotográficas e
equipamentos de filmagens com os quais recolheram depoimentos,
imagens e objetos utilizados para desenvolver o trabalho proposto.
O trabalho de transcrição das gravações obtidas no trabalho de
campo foi realizado, atendendo a critérios que consideraram os
depoimentos em sua originalidade. Na realização da transcrição de
relatos o trato com as fontes esteve permeado por um universo de
364 Ir para o sumário >>

significados norteados por variados sentidos, valores e atitudes.


Dessa maneira, foi preciso do tradutor cuidado em perceber se as
entrevistas possuíam uma narrativa específica, individualizada ou de
grupo; se as falas foram contínuas ou descontínuas. Se as
intervenções, quando, e se aconteceram, interromperam um fluxo
narrativo, induzindo ou sugerindo uma resposta do depoente. Já
para as fotografias, foi necessário fazer duas triagens: a primeira
para selecionar as fotos que estavam com os devidos aspectos
técnicos em harmonia – enquadramento, foco, iluminação, planos; e
a segunda para escolher as fotos que seriam utilizadas na exposição
Tradições Pataxó realizada no Dia do Índio em 19 de abril de 2007.
Em relação às imagens gravadas, essas ainda serão
decoupadas e editadas para a produção de 10 vídeos
documentários com 12 minutos cada um. Nesses vídeos estarão
registrados os passos da nossa pesquisa e diversos aspectos da
cultura indígena Pataxó como a dança, a pintura, a educação,
saúde, alimentação, relação com o meio ambiente, a língua e as
celebrações sagradas dentre elas o “Pau do Bastião”. Todo o
material produzido e compartilhado entre as equipes servirá para
que sejam analisadas as influencias que a crescente presença de
brancos na festa representa para a cultura Pataxó.
Laraia define que “o homem é o resultado do meio cultural em
que foi socializado”. Ele é um herdeiro de um longo processo
acumulativo, que reflete o conhecimento e as experiências
adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam A
manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite
as inovações e as invenções. Estas não são, pois, “o produto da
ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda
365 Ir para o sumário >>

comunidade”. Dessa forma, podemos considerar a festa do “Pau do


Bastião” uma expressão cultural legítima e identitária, já que reflete
os traços da cultura indígena Pataxó.
Um outro fator relevante que deve ser analisado é o turista que
está sendo incorporado à Festa. Esse fenômeno tem caracterizado o
processo de transvaloração, no qual os reais elementos festivos
estão sendo re-configurados. O que antes era feito de forma
sagrada, seja por qualquer dos crédulos, agora está se
transformando em uma festa elaborada para “turista ver”. Neste
processo o sagrado dar lugar ao profano através da inserção de
fatores econômicos e midiáticos.
Há que se considerar também que o festejo do “Pau do
Bastião” se transformou numa grande festa para a região ao atrair
turistas e lucros para os moradores. Nesse contexto surge um
impasse entre as Aldeias indígenas que estão localizadas na região
de Cumuruxatiba. Enquanto algumas Aldeias preferem que o festejo
do “Pau do Bastião” aconteça na Vila de Cumuruxatiba e de forma
aberta onde todos os turistas possam participar e até mesmo
interferir na celebração, outras Aldeias preferem que a Festa seja
realizada pelos próprios índios em suas Aldeias e com a mínima
interferência externa.
Este conflito que se estabeleceu entre as diferentes lideranças,
provocou uma fragmentação da Festa. Apesar de a festividade ser
realizada no mesmo local – Vila de Cumuruxatiba, os Torês/Awês –
dança indígena utilizada como forma de agradecimento a Tupã, ser
supremo - foram celebrados em tempos distintos e conduzidos com
posturas diferentes. A diferença na execução do ritual sagrado está
diretamente ligada à presença do homem branco e à forma que esta
366 Ir para o sumário >>

presença tem dado as festividades do “Pau do Bastião”. A cada


mudança o ritual vai perdendo o seu verdadeiro sentido, re-
configurando os valores culturais do povo indígena.
É nesse momento que a cultura acaba se transvalorando, ou
seja, ela adquire um novo significado. A tranvaloração é um conceito
nietzschiano que trata da quebra de valores, da mudança no
comportamento já estabelecido e socialmente aceito, para uma re-
configuração de conceitos e posturas desse mesmo homem.
Podemos caracterizar a filosofia de Nietzsche como uma filosofia do
valor. Juntamente com esta filosofia do valor ele trabalha a
dimensão crítica, questionando o valor dos valores. O que antes era
tido como expressão cultural hoje é visto como encenação para os
visitantes. O Torê/Awê é representado hoje como mais uma
coreografia assistida por várias pessoas de diferentes lugares. De
diversas formas a cultura do índio foi transvalorada, os valores que
essa cultura tem está sendo transformada num outro valor, o valor
comercial.
Diante dos fatos apresentados podemos perceber que a
questão cultural indígena é tão delicada quanto a sua condição e
suas lutas sociais. Os conflitos existentes surgem dentro do próprio
grupo, re-configurando a imagem do índio para o homem branco,
precisam ser repensados por todos. A Festa do “Pau do Bastião”
está passando por uma transformação que vai muito além de
questões estruturais; a cada modificação introduzida consciente ou
inconscientemente em decorrência da influencia branca ou da
interferência dos turistas altera seu significado cultural e religioso.
Daí percebe-se a importância do registro e preservação dos rituais e
sua difusão em diferentes mídias.
367 Ir para o sumário >>


3.5. O ANTIGAMENTE E O HOJE EM DIA (NOTAS INÉDITAS DE 1988/89)

Bernhard F. Bierbaum

Durante uma pesquisa de campo realizada em 1988/89, visitei oito


aldeias dos Pataxó (Mata Medonha/MM, Coroa Vermelha/CV,
Imbiriba, Trevo do Parque, Boca da Mata/BdM, Meio da Mata, Barra
Velha/BV e Águas Belas) e também outras aldeias e vilas com forte
população indígena como Itaporanga, Santa Cruz de Cabralia,
Cumuruxatiba etc. Nas conversas e entrevistas com os informantes
Pataxó foi revelado uma visão do mundo particular. Mostrei alguns
aspetos desta cosmologia na minha tese de mestrado (“A corrida do
Caranguejo – Mudanças do modo de viver e da orientação dos
Pataxó”, Universidade de Múnich, 1989), enquanto a maioria destes
dados não foram publicados.
Esta seleção de depoimentos mostra aspetos do passado Pataxó,
mas também reflete a precária situação sociocultural e as profundas
mudanças socioeconômicas dos anos 1988/89. Corresponde
horizontalmente com um espaço limitado por mar e mata e
verticalmente de um tempo inverso de experiências e lembrança,
cada vez mais escondido num subsolo consciente. Existem rupturas,
buracos e até Índios embaixo da terra. Do “Hoje em Dia”, o modelo
temporal Pataxó segue ao “Antigamente - o tempo dos Velhos” e ao
“Antigamente – o tempo dos Índios Bravos”.

• “Hoje em Dia (1988/89)”

Questão de Terra
368 Ir para o sumário >>

A gente tem que botar duro. Somos os donos da terra (Pedro, pai do
Arapati, CV)
À causa de falta do meio ambiente para pescar e caçar, o Índio tem
que trabalhar na roça e entrar na competição no mercado regional
para se sustentar (Manuel Santana, BdM)
O ultimo recurso do que o Índio tem que fazer -si continua assim
com a mata- é que ele
tem que ir pra maré. Lá ninguém é dono, lá não tem direito de pegar
caranguejo pra comer e pra pegar marisco. Na hora de chegar de
novo na praia o Índio vai saber o que é fome, porque não tem mais
terra. Por isso nos queremos lutar por essa terra. (Manil Pacheco,
MM)

Natureza e Desmatamento

O Tupan deixava (as frutas) lá na mata. Por isso a gente não quer
deixar acabar a floresta. (Shoré, BV).
A mata serve como saúde pra gente (“Doutor”, BV)
Si a gente não agüentava, fugia pela mata (Manil Pacheco MM)
Índio passa fome. Por isso a gente tem que queimar a mata para
bota roça. (Manil Pacheco, MM)
Aqui a gente precisa de terra para sobreviver. A gente tem que
queimar as roças, porque também tudo aqui é a nossa terra (Manuel
Santana, BdM)

Trabalho e Artesanato

Uma parte dos Pataxó trabalha com (plantas) de tudo, cereais, outro
com artesanato. (Manil Pacheco, MM)
Antigamente a gente foi pra trabalhar nas fazendas, hoje tem o
artesanato. Gente está mais com isso. (Velhos de BV)
369 Ir para o sumário >>

O artesanato é o banco do Índio (Cacique de Trevo do Parque)


depois eu vou vender
pego kaiam’bá
vou comprar tupi’sai
pra depois vou hamiar
(canção de Shoré, Barra Velha)

No verão já tem cabelo no braço porque tem coisa pra vender. No


inverno, quando tudo mundo tira caranguejo, entrando com os
braços nos buracos, o cabelo no braço sai (Shoré, BV)
Trabalho mais na minha cultura, porque não tenho outras condições,
não sei da leitura, essas coisas (Saturninho, Jeriquara)
Índio que não sabe fazer mais artesanato, não e mais Índio. (Doutor,
Shoré, BV)
Não vou mais contar a historia. Todo tempo vem gente perguntando.
Estou cansado de contar.
Eu acho que vou até fazer uma placa enfrente da minha cabana
dizendo que não vou relatar mais nada. (Itambé, CV)

Ser Ìndio

Espero em Deus, que a vida aqui vai melhorar (Mirinha, CV)


O Índio gosta de mudar muito (Damião, MM)
Não trabalho fora. Tenho a minha liberdade aqui, ando por aqui, por
aí, pesco no rio – posso fazer o que quero fazer (Manil Pacheco,
MM)
‘Ta acabando com os Índios. Ta enfraquecendo com a mistura.
Os Índios já não discriminam mais os pretos, porque também já ta
tudo misturado.
A gente gosta casar com Índia, porque acham bonita e também
porque elas não são tão ricas e porque conhecem o sofrimento
melhor (Manoel Santana, BdM)
O povo esta se acabando, o meu povo. (mãe do Domingo Brito, MM)
370 Ir para o sumário >>

Hoje puro (de sangue) não tem, acabou o segredo do Índio, porque
o Índio era segredo (Manil Pacheco, MM).
O índio tinha medo de qualquer obra do Branco. Ele nem quis falar
com o Branco. Índio não sabia comprar nem vender. Mas ele tinha
que aprender quando foi reconhecido. (Manil Pacheco, MM)
O Branco faz tudo como o Índio. Índio tem que preservar os
segredos do Índio. Si não, o Branco aprende tudo. Hoje, tudo Branco
já anda nu na praia, fica com as pernas no chão e bebe kaiboka.
Mas o Índio também já faz como o Branco fez antes, tem roupa do
Branco e na cidade só quer beber cerveja ou guaraná bem gelada.
(Manil Pacheco, MM).
Muita gente aqui vem de fora, cresciam lá fora, nas fazendas,
cidades. Tem outra formação e muitos já não querem aprender as
coisas do Índio. Tem outros que procuram aprender de novo
(Manoel Santana, Boca da Mata)
Antes eu não sabia de nada de fora. Hoje eu já sei de tanta coisa de
fora (Manil Pacheco, MM)
A gente…se juntavam pra fazer … a terra (Baiara, MM)
Não tem separação, Tudo mundo é uma coisa só (Rafael de
Imbiriba)
Eu gosto de ser Pataxó. Quero ser Pataxó. Acho a vida como Pataxó
melhor. (Arapati, CV)

“O Antigamente - o tempo do Velhos”

O contato

Saiam muita gente aqui de Barra Velha para assistir a primeira


missa. (Shoré, BV)
Quando Barra Velha já existia, a gente ouviu falar da chegada dos
Portugueses. Muita gente daqui de Barra Velha foram pra Coroa
Vermelha ver a primeira missa. Quando os Pataxó juntavam na cruz,
Pedro Alves falou a eles. Mas antigamente os Índios estavam com
371 Ir para o sumário >>

medo por causa dos Brancos. Sempre fugiam pra cima na mata.
Mas sempre voltavam, pra assistir a primeira missa.
(Shoré, “Doutor”, Tururim e os velhos de BV)

Cumuruxatiba e Cabralia for acabada porque o Branco chegava,


matava. Corria pro outro canto o Índio. (Domingo Brito, MM)
O Índio achava que o Branco é bicho. O Branco achava que o Índio
é bicho. (Domingues Brito, MM)
Índio corria do Branco, mas Branco também corria do Índio. Hoje
não (Manil Pacheco, MM)
Antigamente tinha o portador da língua que falou com os estranhos
fora da aldeia. Hoje em dia falamos todos a língua dos Brancos.
(Manil Pacheco, MM)
Você não pode imaginar a confusão aqui dentro, quando a gente
ouviu falar pela primeira vez, que existe a Bahia (Manuel Santana,
BdM)

O tempo dos velhos

Naquela época a barriga enchia. Naquela época plantar tudo dava.


(...), o negocio era muito bom. O Índio da primeira já era rico. Tudo
esta se acabando (Domingo Brito MM)
Nos vimos da praia a mata, agora nos estamos voltando (Manil
Pacheco, MM)
Os Pataxó sempre gostava da praia. Foi o ritmo deles. Eles, os
velhos, não podiam parar num lugar só. Não como os Índios mansos
de hoje (Shoré, „Doutor“, BV)
Antes teve muita caça, você só pegava caça com as mãos, tinha
muito – e hoje os meus filhos já não reconhecem mais os animais da
mata; ele lá nem viu um porco da mata na vida dele
(Manil Pacheco, MM)
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Os velhos queimavam os mortos para eles não virar animais, bruxa


ou onça pelada. Hoje em dia enterramos os mortos, porque são
batizados. (Shoré, BV)
Antigamente não tinha toré. (mãe de Domingo Brito, MM)
Nos vimos da praia pra mata – agora nos estamos voltando. (Manil
Pacheco, MM)
Começou de Barra Velha, Trancoso, Vale Verde, Imbiriba, Cabralia.
Todos são Pataxó (Manil Pacheco, MM)
A gente só vivia de fruta, caranguejo, batata, coco da praia, “a planta
dos Índios”. A roupa do Índio era feito das pentes dos passarinhos.
Minha avó, bisavó contava isso para nós (Manil Pacheco, MM)
Os pescadores cortavam o pau do mauí e jogavam lá nos recifes. Os
peixe pegava água e morreu. Assim os pescadores, os velhos, o
meu pai, ainda pegava assim. Índio é como caranguejo, corre
sempre de um lado ao outro, sempre do mar a mata e da mata ao
mar. (Luciana, Cumuruxatiba)
Xoxó (“nome dos Índios, do primeiro”)
saia da minha aldeia muntando no meu cavalo
Uma espora e uma espada de lado
Quando ele sai minha mãe lhe besonava (beijava)
(roda das meninas em MM)
Me lembro das rezas a causa dos sonhos (Manoel Santana, Boca da
Mata)
Os velhos queimavam os mortos para que eles não se virar animais,
bruxa ou onça pelada.
Ate a chegada do Zé Correia, a gente na aldeia já esqueciam de
tudo (da sua cultura) (Itaciara e o filho dela, Bemtivi, Imbiriba)
Antigamente não tinha essa musica indígena. Só começou quando o
meu pai (Tururim) nos ensinou ou com o professor na escola
(“Doutor”, BV)
Aqui era mata brava. Era melhor (Domingo Brito, MM)
Antigamente tudo Índio sempre andava atrás do outro, nunca assim
como os Brancos, andando um ao lado do outro. Ainda hoje os avos
373 Ir para o sumário >>

andam como os velhos, atrás do outro, sempre pisando nas pegadas


do outro. (Shoré , BV)
Na época os Índios andavam de lá pra cá: foram da mata pra praia e
da praia pra mata. Sempre andando. Aí aconteceu um dia, que um
Índio atirou a flecha de lá do Monte Pascoal ao céu. Foi lá pra cima.
Caiu perto do mar. Todos os Índios foram pra lá, criando a aldeia. E
ainda hoje tem o céu na aldeia.: tem um lugar lá, chamado céu.
(Manuel Santana, Boca da Mata)

“O Antigamente – o tempo dos Índios Bravos”

Antigamente tinha tudo Índio Bravo aqui, de Cumuruxatiba até


Cabralia. Cada um tinha os seus tribo, mas os Pataxó sempre
andando. (Shoré, BV)
Em Juacema, aonde hoje tem os dois buracos grandes de terra,
antigamente existia uma grande cidade rica, como Bahia. Um dia um
filho de Índio, um Pataxó, pegou o Bem-ti-vi. Um filho do branco
chegou e batia nele e roubou o Bem-ti-vi. Quando chegou o pai do
menino Índio pegar o pássaro, o pai do filho Branco xingava ele. O
Índio pai não gostou, dava ouvidos na terra (aos buracos de
Juacema) como telefone e chamava os Baquira, os Índios Bravos,
que moram embaixo do Monte Pascoal.
Os Baquira andavam com armas num túnel, saíam dos buracos e
matavam os Brancos. Alguns Brancos jogavam seu oro na lagoa.
Ainda da pra ver ouro lá. Mas é uma lagoa estranha, a Lagoa Tola,
porque a água dela não vai ao mar, mas corre pra cima as
montanhas. Mesmo no verão com muito calor, a lagoa sempre esta
cheio de água.
Hoje, si pessoa passa lá (Juacema, de noite) tem muita coisa la. Só
pessoa que não sabe pode ver. Turista vê mas não fica com susto.
Quem não tem medo dos mortos pode tirar (o ouro da Lagoa Tola)
(Shoré, “Doutor”, Tururim e os velhos de BV)
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O Tupão fez século. Ele criou tudo. O ultimo século começou com o
Arco do Noé. Quando não volta o Tupão, que mora no céu, não vai
ter mais séculos (Domingo Brito, Santa Cruz de Cabralia)
A estrela corrente (estrela cadente) corre de um lado ao outro; é
causa do vento e tempo. Corre pra ficar longe do sol, da lua, da
chuva. Depois fica no lugar.
Si a estrela d’Alva fica perto da lua, um casal, homem e mulher, tem
que morrer. Depois, a estrela pode se afastar da lua. A posição das
“cente águas” depende do vento e do tempo. (Domingo Brito, indo
de barco de Santa Cruz de Cabralia a Mata Medonha).
Cada um, os bravos e os mansos tem as suas línguas. Eles não
entendem a gente (os velhos de BV)
Os Índios Bravos botavam fogo longe daqui. O fogo correu de lá pra
baixo na praia, queimando toda mata e puxando todos os bichos lá
pra praia onde morreu na água. Os Índios matava e comia. (Luciana,
Cumuruxatiba)
Os Baquira, os Índios Bravos, que comem gente, moram no pé do
monte (Pascoal), são bichos eles, que moram na terra (Tururim e os
velhos de BV)
375 Ir para o sumário >>


4 ETNOECOLOGIA: VISÃO E DI-VISÃO DE MUNDO

4.1 CONDICIONAMENTOS ECOLÓGICOS E INTERÉTNICOS DA LOCALIZAÇÃO DOS


121
PATAXÓ DE BARRA VELHA

Pedro Manuel Agostinho da Silva

INTRODUÇÃO

O grupo indígena que se autodenomina Pataxó localiza-se na


Aldeia de Barra Velha/adjacências, aproximadamente a 16.º
50’45’’lat. S e 49.º 9’ long. W. Barra Velha ou Bom Jardim, fica em
terras do Parque Nacional de Monte Pascoal, que adjacente ao mar
entre os rios Caraíva e Corumbáu, está situado nos limites
meridionais do município de Porto Seguro, Estado da Bahia, Brasil.
Esse Município faz parte da microrregião litorânea do Extremo Sul
da Bahia, que, na classificação de Eduardo Galvão (1967: 202-203),
é incluída na Área Cultural XI – Nordeste.
Ignorado na literatura especializada, foi objeto de um trabalho
122
exploratório levado a cabo entre 8 e 13 de dezembro de 1971 ,

121Publicado originalmente em “Homenagem a Agostinho da Silva”, Tulane Studies in Romance Lenguage and Literature, n.º 10 , p. 125-148.

1981. New Orleans.

122 Trabalho realizado em quatro etapas, assinaladas aqui por um número de código: seminário preparatório sobre aculturação e fricção

interétcnica (1); pesquisa de campo (2); análise de dados (3); preparação do manuscrito final (4); Teve os seguintes colaboradores: Prof.

Johannes Augel (2,4); Iracema Pinto Brandão (3, 4); Ângela Maria Borges de Carvalho (1, 2, 3, 4); Maria Rosário Gonçalves de Carvalho (1, 2,

3, 4); Yandê Candeal (1); Antonio Sérgio Guimarães (2, 3, 4); Lucia Maria Tavares Hasselman (1, 3); Maria Stella F. Gomes Lobo (1, 3, 4);

Gerson Oliveira e Oliveira (2); Prof. Cap. Alberto Salles Paraíso (2, 4); Maria Hilda Baqueiro Paraíso (1, 2); Sérgio Elísio Araújo Alves (1, 3);
376 Ir para o sumário >>

cujo resultado apresentamos aqui parcialmente. No curto espaço de


tempo que restrições diversas impunham à equipe de pesquisa,
essa foi dividida para recolher os dados necessários à elaboração de
um Projeto de Pesquisa sobre as mudanças sócio-culturais sofridas
pelo grupo e sobre suas relações com o segmento regional da
sociedade Nacional. Assim, fez-se o recenseamento da população,
levantaram-se informações gerais sobre ecologia e tipos de
habitação, obtiveram-se relatos de tradição oral (sobretudo históricos
e de escassa profundidade cronológica), gravaram-se algumas
123
canções, e aplicaram-se questionários lingüísticos .
A identificação étnica do grupo foi o primeiro problema a
colocar-se e não se apresentou como fácil (Silva, 1974).
Reconhecendo-se e sendo reconhecido como Pataxó, ele encontra-
se atualmente no que foi também a área histórica de distribuição
daqueles índios. Entretanto, as fontes históricas examinadas não
registram a existência até 1951, de qualquer núcleo indígena em
Barra Velha, e muito menos a que etnia pertencia.
Provisoriamente, estabelecemos como termos post-quem e
ante-quem para o surgimento de Barra Velha à passagem de Wied-
Neuwied pelo local em julho e novembro de 1816, e as noticias dos
jornais a partir de 25 de maio de 1951, quando ocorreram conflitos
124
com os regionais . Admintindo-se, por outro lado, um grau menor
de segurança, pode-se avançar o termo post-quem para 26 de junho

José Pereira de Queiroz (1, 2); Neuza Maria de Salles Ribeiro (1, 2); Fernando Antono Fonseca Sobral (1, 2); Lúcia Leão Mascarenhas de Souza

(1, 2, 3, 4); Marinaldo dos Santos Teixeira (2); Graça Maria Rocha Torres (1, 2, 3); Dulce Dias Tourinho (1, 2, 3); Hildete da Costa Dória e

Célia dos Santos Costa fizeram levantamento da documentação histórica e manuscrita. Desse trabalho resultou o manuscrito inédito, Identidade

e situação dos Pataxó de Barra Velha, Bahia, do qual foi extraído o presente artigo.

123 De dois tipos: um, o questionário padrão do Museu Nacional para estudos comparativos preliminares de línguas indígenas brasileiras; o

outro, de cunho dialectológico, destinado a verificar as características atuais do português falado pelos índios.

124 V. A Tarde, de Salvador, Bahia: 25/05/1951, 28/05/1951, 29/05/1951, 30/05/1951, 01/06/1951, 02/06/1951, 07/06/1951, 08/05/1951,

11/05/1951.
377 Ir para o sumário >>

de 1861, data de um documento que fala de planos para o


125
estabelecimento de um aldeamento às margens do rio Corumbáu.
Constando-se que a foz do rio Corumbáu parece ter sofrido
considerável deslocamento para o sul, o que pode ser feito
comparando a carta n.º 1200 da Diretoria de Hidrografia e
Navegação, publicada em 1943 e corrigida em 1963, com a mesma
carta corrigida em 1971, é possível levantar a hipótese de que o
próprio nome da Aldeia se justifique pelo deslocamento da foz. Tal
hipótese é apoiada pela carta cuja correção vai até 1963, na qual o
rio Corumbáu deságua muito próximo do sítio hoje ocupado pela
povoação, levando isso a concluir ser ela o resultado dos planos
traçados em 1861.
O material lingüístico obtido em campo – um vocabulário com o
total de 120 formas – foi apenas sumariamente examinado em suas
formas lexicais comparáveis e facilmente identificáveis quando
cognatas. Primeiro ele foi cotejado com os vocabulários Pataxó de
Wied-Neuwied e Azevedo126 e também com a lista de palavras
botocudo de Wied-Neuwied, enquanto no segundo tipo de
comparação, exploram-se as possibilidades do melhor informante
127
lingüístico no reconhecimento e tradução das formas arroladas
nos vocabulários pataxó, maxacalí, e malalí coletados pelo príncipe
de Wied-Neuwied (1958: pp. 500-512).
As percentagens de cognatos encontrados, aceitando-se os
limites estabelecidos por Swadesh e adotados por Rodrigues (1964:
p. 101), pareciam indicar que estaríamos diante de línguas diversas,
mas filiadas ao mesmo tronco (Silva, 1974), Aryon dall’Igna
Rodrigues, porém, a quem foram submetidos cópias das listas de

125 V. Fontes utilizadas – Documentos inédito:1861/abril – 25.

126 Lista de 71 palavras dos índios Pataxó Hãhãhã cedida pelo Cel. Antonio Medeiros de Azevedo e por ele obtida quando no comando da

tropa que, em 1936, submeteu o Posto Paraguaçu por ocasião de conflitos ali ocorridos.

127 Rufino Vicente Ferreira (“Tururim”). Pataxó que é capitão da Aldeia, conhecendo Brasília, Belo Horizonte e Salvador, por onde viajou

procurando captar benefícios em favor do grupo.


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Azevedo, dos questionários-padrão aplicados e da fita magnética


gravada, concluiu e comunicou, através de informação de caráter
pessoal, que se tratava de língua maxacalí.

QUADRO GERAL: O SUL DA BAHIA

Embora a investigação esteja apenas em seus inícios


parece-nos que a presente existência de um grupo indígena (pelo
menos nominalmente Pataxó) no litoral do extremo sul da Bahia
deve ser entendida como expressão local de processo e situação
mais amplos, intimamente relacionados ao quadro geográfico e à
história de seu povoamento. É que, para tanto, têm de se tomar
unidade de análise toda a área que, do sul de Valença, se estende
paralela à costa até aos limites meridionais do Estado e mesmo ao
norte de Espírito Santo, por um lado, e, por outro, do mar até onde
finda a floresta latifoliada tropical, a ocidente. Isto obriga a
considerar não somente a Micro-Região Cacaueira e as terras que, a
oeste, lhes são adjacentes e correspondem à encosta do planalto.
Geológica e geomorfologicamente, a área delimitada divide-
se em três faixas grosseiramente paralelas e de largura variável,
dispostas de norte a sul e cortadas perpendicularmente por vales
largos e de fundo chato dos baixos cursos. Seus rios, a montante,
são interrompidos por rápidos e cachoeiras. Das três faixas, a
primeira é a mais estreita, compondo-se dos sedimentos
quaternários das praias, mangues e restingas paralelas,
entremeadas de depressões úmidas ou mesmo alagadas.
Afastando-se do mar, surgem os sedimentos terciários da Série
Barreiras, cujos tabuleiros chegam frequentemente à praia e aí se
apresentam como falésias avermelhadas, ativas umas, outras
mortas. Regra geral, os tabuleiros recobrem o embasamento
cristalino e só lhe sedem lugar – sob a forma de colinas
arredondadas – a distâncias variáveis para o interior. Entretanto,
entre o Rio de Contas e o Uma, o cristalino alcança a costa, na qual
379 Ir para o sumário >>

está a cidade de Ilhéus, graças à remoção do capeamento


sedimentar por uma ação erosiva mais intensa. As rias oriundas da
transgressão pós-pleistocênica desapareceram devido à forte
deposição, ainda hoje responsável pelo continuado assoreamento
das nozes dos rios no litoral sul.
Os tipos climáticos dispõem-se também como duas faixas
paralelas no sentido dos meridianos, caracterizados por
temperaturas médias elevadas (21º a 24,5º C) e precipitações
superiores a 2000 mm, anuais, cujo máximo é atingido exatamente
onde o cristalino fica exposto até o mar. Tais precipitações se devem
à transição entre dois regimes pluviométricos diferentes, o de chuva
de primavera e verão que do interior chega ao oceano na altura da
foz do S. Mateus, e o de chuvas de inverno que prevalece no
Recôncavo. Na área que nos interessa e se estende entre esses
dois limites, o clima Af, com médias térmicas altas e sem estação
seca, abrange a costa do Rio de Contas ao Rio Mucuri e dá
progressivamente lugar, para oeste e sul, ao de tipo Am, que
compensa sua pouca acentuada estação seca com a precipitação
total elevada. Os limites setentrionais e meridionais deste tipo
climático são o Rio de Contas e o de S. Mateus, enquanto os
ocidentais são estabelecidos pela linha sinuosa que, de um rio a
outro, marca o aparecimento do clima Aw característico do planalto.
A cobertura vegetal adapta-se, por sua vez, aos fatores
ambientais que acabamos de esboçar, com seus aspectos e
edáficos ou climáticos controlando a fitofisionomia da região. A das
praias, restingas, depressões úmidas e mangues está condicionada
pelo solo com seu variável teor de salinidade e pela profundidade do
nível freático, desenvolvendo-se, uniformemente, esta vegetação do
ecossistema do litoral sob um clima do tipo Af. Pelo contrário, a
fisionomia das florestas depende sobretudo do fator climático. A
floresta latifoliada tropical perene recobre indistintamente os
tabuleiros sedimentares e as colinas do cristalino, enquanto
prevalece o clima Af, mas, quando se instala o tipo Am, cede lugar à
380 Ir para o sumário >>

floresta tropical subcaducifólia. Entretanto, e para além desta


distinção maior, cabe notar a densidade da mata, o número de suas
espécies e a altura dos indivíduos são menores nos tabuleiros da
série Barreiras, aumentando em sua encostas e mais sobre o
cristalino. Nos primeiros e no segundo, respectivamente, as árvores
atingem em média as 15 e os 30 metros de altura.
Da combinação das características físicas e fitogeográficas
descritas geram-se diversos ambientes, com potencialidades
diversas para a ocupação e exploração econômica pelas frentes de
expansão da sociedade nacional. Devido as exigências da planta
que é seu cultivo básico, a frente cacaueira ficou quase por completo
restrita a região que alia, aos solos profundos do cristalino, ricos em
sais minerais e blocos de rocha que ajudam a reter a umidade, as
temperaturas médias e o regime pluviométrico do clima Af. A floresta
tropical perene contribui também para a retenção da unidade,
protege o solo e fornece a sombra necessária aos cacaueiros,
sobretudo de Ilhéus para o sul, onde, segundo tudo indica, a
escassez de mão-de-obra leva a adoção da técnica de brocar a
mata. Apesar de recoberto por esse tipo de floresta, o latossolo com
baixo teor de ferro, geneticamente ligado aos sedimentos da serie
Barreiras, impõe um obstáculo eficiente à expansão do cacau para o
mar, exceto naquele breve trecho em que os tabuleiros se
interrompem, nas imediações de Ilhéus. Aí, como aliás em toda a
região, os sedimentos quaternários do litoral são totalmente
inadequados à vida do cacaueiro. Na direção oposta, sobre o
cristalino e a oeste dos sedimentos terciários, vão desaparecendo as
condições favoráveis a planta, com a gradativa transição para o
clima de estação seca pouco acentuada (Am) e para uma topografia
cada vez mais movimentada, estabelecendo-se assim os imprecisos
limites ocidentais da distribuição do cacau na Bahia.
A possibilidade de exercer a monocultura, segue-se a
necessidade de a substituir pela combinação de pastagens artificiais
(semeadas após a extração das madeiras de lei) e de roças de
381 Ir para o sumário >>

cacau. Estas diminuem até à desaparição total e, se ao clima Af


correspondem as fazendas monoculturas, ao de tipo Am
correspondem as fazendas mistas de gado e cacau, assim como ao
Aw as dedicadas à pecuária extensiva do sertão.
Sobre os sedimentos da série Barreiras, pode-se fazer e
faz-se uma agricultura de subsistência, que inclui mandioca e café, e
exercem-se também várias formas de atividades extrativistas:
destas, as mais importantes são o corte de madeiras e a exploração
do dendê e da piaçava, que dominam a vegetação arbustiva
secundária que sucede ao avanço devastador dos madeireiros. O
dendê, economicamente, só conta de Ilhéus para o norte, mas a
piaçava mantém sua relativa importância em toda a faixa extrativista,
na qual se encontra, ainda, alguma criação extensiva. Por fim, nos
areais da beira-mar existem plantios de côco-da-Bahia, carentes de
qualquer cuidado racional.
O sul da Bahia define-se, portanto, pela existência de uma
subárea nuclear agrícola monocultura, que atingiu os limites
ecológicos de suas possibilidades de expansão, envolvido por outras
subáreas, nas quais se combinam formas diversas de
aproveitamento da terra. A oeste, fica o extrativismo de madeiras e a
criação de gado associada a reduzida lavoura de cacau e a leste, sul
e sudoeste, um extrativismo vegetal mais complexo, com agricultura
d subsistência e uma pecuária de importância variável. Esta última
subárea, aliás, está parcialmente em vias de ser ocupado por frentes
de expansão da sociedade nacional, com os madeireiros
desfechando um último ataque ao que resta da floresta, vindos de
Porto Seguro para sul, do Espírito Santo para norte e de Minas
Gerais para leste. De Minas, também, uma frente pastoril alcança e
penetra a Micro-Região Interiorana do Extremo Sul.
A distinção de subáreas definidas em termos ecológicos e
de utilização econômica reencontra-se ao nível da densidade da
população etnicamente brasileira, que é maior na subárea nuclear
cacaueira e menor nas que lhe são periféricas. E reencontra-se,
382 Ir para o sumário >>

igualmente, na distribuição geográfica do que resta e se conhece


das etnias tribais que outrora ocupavam o sul da Bahia, onde
sobrevivem apenas, ao que parece, os Pataxós-Hãhãhãi e outros
índios de Itaju do Colônia, os Pataxó de Barra Velha e, embora
duvidosos os dados disponíveis, os descendentes de índios que hoje
vivem em Olivença, perto de Ilhéus. Nimuendaju (1939: 277)
acreditava-os da origem Tupiniquim, enquanto Kietzman (1967: 50)
informa que seriam Botocudo (Gueren) totalmente assimilados. A
esses, acrescentam-se as famílias e pequenos grupos dispersos nos
municípios do Prado e Porto Seguro. É significativo verificar que tal
distribuição coincide com a ocorrência do regime de chuvas Aw,
impróprio para o cacau (Pataxó-Hãhãhãi), com a faixa arenosa das
praias e restingas (índios de Olivença) e com os sedimentos da série
Barreiras (Pataxó de Barra Velha, índios de Porto Seguro e Prado).
Ou seja: coincide exatamente com as áreas que envolvem a do
caçai com suas densidades demográficas inferiores. Tanto quanto
sabemos, os Pataxó de Barra Velha representam a maior população
indígena que no sul da Bahia foi capaz de manter relativa coesão
grupal, e não parece obra do acaso que ela se situa exatamente na
2
Micro-Região que, com 10,57 hab/km , é a de mais baixa densidade
demográfica no litoral baiano e na vasta área que, inicialmente,
definimos como nossa unidade de análise (Brasil – I.B.G.E., 1971:
18, 89).
Esses dados permitem-nos constatar o interrelacionamento,
nessa ordem das condições ecológicas com o potencial econômico e
suas formas de efetiva utilização e, destas, com a densidade
demográfica da etnia nacional brasileira e o tamanho, estado e
distribuição dos grupos ou remanescentes indígenas. Aos índios só
foi dado sobreviver na periferia da subárea na qual a frente de
expansão e a zona pioneira se apresentaram, dependentes do
mercado internacional, dotados de mais poderosa dinâmica.
Esgotadas as possibilidades ecológicas de expansão desse
segmento da sociedade nacional, outras frentes se lhe substituíram,
383 Ir para o sumário >>

exercendo, com menos ímpeto talvez, sobre os indígenas toda a


sorte de compulsões, num processo que não se esgotou e apresenta
perspectivas bem pouco promissoras, no que a eles se refere.
Para apreciar a atual situação de Barra Velha, deste quadro
que se quis geral assumem particular importância, numa escala de
prioridade crescente, as microrregiões homogêneas Interiorana e
Litorânea do Extremo Sul da Bahia e ainda, da última, o município
de Porto Seguro. À primeira correspondem a extração madeireira e a
pecuária extensiva, e à segunda, o mesmo tipo de pecuária, cultivo
de cocos, a coleta de piaçava e, importante embora não tão intenso
como na outra, também o corte de madeiras. Ocorrem, ainda, roças
de caçai nos terrenos mais ricos, como os aluviões e as manchas do
cristalino que afloram nas proximidades do Monte Pascal, e a pesca
é praticada nas povoações marítimas.
Nas duas microrregiões, a ocupação deu-se desde tempo
coloniais ao longo do mar, a única via de comunicação entre as vilas
e aldeolas, que, nesta costa retilínea e pouco articulada,
concentraram o povoamento junto às dificilmente praticáveis barras
dos rios. O fraco valor econômico dos tabuleiros e as dificuldades de
exportação não propiciaram maior crescimento dos modestos
núcleos urbanos como, por exemplo, Porto Seguro, Prado e Santa
Cruz Cabrália. Para o interior e até época muito próxima, o
povoamento apresentou-se mais ou menos disperso, com grandes
fazendas e pequenas roças perdidas na mata. Mais recentemente,
com o aperfeiçoamento do eixo rodoviário norte-sul a partir de 1950,
a população foi atraída pela nova via de comunicação (Alencar,
1970: 102-104). Assim, e à semelhança do que ocorrera antes, em
relação à Itabuna e Ilhéus, os entroncamentos da estrada principal
com as de sentido leste-oeste viram desenvolver-se cidades de
importância e dinamismo crescentes. Eunápolis, é um exemplo,
suplantou rapidamente Porto Seguro, e, enquanto o tráfego marítimo
diminuiu, aumentou sempre o efetuado por rodovia. Mas, esta nova
atração para o interior e tendência dos transportes depara-se com
384 Ir para o sumário >>

uma rede viária ainda deficiente. A BR101 está asfaltada, mas há


poucas estradas que lhe sejam perpendiculares e transitáveis
durante todo o ano, em quaisquer condições e tipo de veículo. É
assim que entre Porto Seguro e Barra Velha as ligações dependem,
principalmente para os núcleos costeiros – Ajuda, Trancoso,
Itaquena e Carpiva – de irregulares viagens, por rio, no primeiro dos
casos, e por mar nos restantes. Entre Monte Pascoal e Caraíva
existe, entretanto, precário caminho carroçável.
Não obstante a persistência das vilas e cidades marítimas e
o novo surto urbano nos entroncamentos rodoviários, em ambas as
microrregiões predomina a população rural, acentuando-se isso na
Microrregião Litorânea do Extremo Sul. Tomada em conta a
população residente em 1970 (Brasil – IBGE, 1971), essa
microrregião apresentava-se com 14,81% no quadro urbano, ao
passo que a Interiorana contava com 26,41% no mesmo quadro. Ao
mesmo tempo e, respectivamente, a densidade demográfica de cada
uma era de 10,57 e 19,81 hab/km2. A isto deve-se acrescentar que
Porto Seguro é, dos 7 municípios compreendidos em sua
microrregião, o penúltimo numa escala decrescente de densidade
2
demográfica: com 9,46 hab/km , é íntima a distância que o separa
do de Mucuri, que tem 9,45 hab/km2. Ao nível interno da
microrregião, volta a observar-se o que a comparação entre
microrregiões antes revelara: que os grupos indígenas tendem a
sobreviver onde mais rarefeita é a população pertencente à
sociedade nacional, pois Barra Velha fica exatamente no município
de Porto Seguro. E que, portanto, essa sobrevivência depende tanto
da dinâmica e estrutura da frente da expansão, quanto de fatores
ecológicos e demográficos bastante bem definidos, que caracterizam
a ocupação do território pelos segmentos regionais da sociedade
nacional.
Seria argumento contrário ao que vê nesses fatores
ecológicos e demográficos elemento de explicação da sobrevivência
dos Pataxó e da localização de sua aldeia, o fato de que um exame
385 Ir para o sumário >>

sumário do foto-índice da cobertura aérea entre Porto Seguro e


Corumbau (que penetra um máximo aproximado de 37 km para o
interior) mostra mais fortes indícios de ocupação por roças
exatamente nas proximidades do Monte Pascoal e do Rio Caraíva,
isto é, nas proximidades imediatas do local habitado pelos índios. No
entanto, exame mais atento mostrará que, ao ser feito em 1957 o
levantamento, a maior quantidade de clareiras estava em torno do
Monte Pascoal – ou seja, dos afloramentos mais orientais do
cristalino – e ao longo do vale do Caraíva. A aldeia, a uns 5 km ao
sul do rio, era cercada de menos indícios de ocupação, que não
possível decidir se seriam devidos à ação de seus habitantes ou à
dos regionais. Mas o que se pode, isso sim, é supor com bastante
fundamento que esses mais fracos indícios de atividade humana
deveriam da menor procura do local, em função de seu menos
atraente potencial agrícola, que manteria, até certo ponto, afastada a
presença da sociedade regional: com isto, ficaria refutado o
argumento contrário e reforçada a explicação que se propôs. Cabe,
entretanto, não esquecer, também, que para a sobrevivência dos
Pataxó deve ter contribuído – de um modo e até um ponto ainda
ignorados – o acidente histórico de terem sido envolvidos pelos
limites do Parque Nacional: que, se lhes criou graves problemas, por
outro lado parece ter detido desde a década de sessenta o avanço
da frente de expansão.
De fato, os dados disponíveis indicam a intensidade desse
processo expansionista. Quando Oliveira (1972a) estabeleceu
categorias demográficas econômicas para o estudo da sociedade
nacional nas situações de fricção interétnica, a Zona Fisiográfica do
Extremo Sul da Bahia apresentava-se como submetida a uma de
suas frentes de expansão. Com uma densidade baixa e um
incremento demográfico alto para um baixo índice de produção
industrial, enquadrava-se na categoria VII, a das Zonas Fisiográficas
que em maior número possuíam populações indígenas e à qual
pertenciam, em 1960, 48% das zonas com índios.
386 Ir para o sumário >>

A nova divisão territorial adotada no censo de 1970


desdobrou a antiga Zona Fisiográfica do Extremo Sul da Bahia, em
duas microrregiões geoeconômicas homogêneas, que, somadas,
praticamente lhe são equivalentes: a Interiorana e a do Extremo Sul
da Bahia. Houve, entretanto, pequena e quase insignificante perda
de terras a favor da Microrregião da Encosta do Planalto de
Conquista. Faltam-nos, por enquanto, elementos para estabelecer
os índices de produção industrial naquelas duas microrregiões
(exigidos para aplicação do modelo de Oliveira, 1972a) e a
apreciação da densidade e do incremento demográfico ressente-se
da necessidade de empregar dados algo dispares, derivado da
própria apresentação da sinopse do censo de 1970. Nele as
densidades são obtidas a partir da população residente, mas o
incremento tem de ser calculado sobre a população recenseada em
1960 e 1970, respectivamente. No entanto, há bastante pequena
diferença da população recenseada e residente em 1970 permite
considerar os resultados aceitavelmente próximos da realidade.
Essa reclassificação territorial faz sobressair imediatamente
uma distinção fundamental entre as duas microrregiões. Aplicando-
se as categorias estabelecidas para 1950 para 1960, em 1970 a
Interiorana apresentava-se com densidade alta (19,81 hab/km2) e
incremento médio (34,79%), o que a situava na categoria I de
Oliveira, correspondente as zonas pioneiras em desenvolvimento ou
com condições demográficas para tanto. Já a Litorânea, no mesmo
ano, enquadrava-se na categoria VII, a das zonas “em crescimento
estável... por onde passam atualmente, as frentes de expansão
nacional”, com densidade média (10,57 hab/km2) incremento alto
(45,63%) (v. Oliveira, 1962a:115-117, 103-105). A isto podemos
acrescentar, na carência de dados quantitativos, que os qualitativos
permitem supor baixo índice da produção industrial, em ambas as
microrregiões. Depõe a favor desta suposição o baixo índice que em
1960 ocorria na vizinha Zona Fisiográfica do Mucuri, em Minas
Gerais (Oliveira, 1972a: 122), pois ainda hoje é de Minas que em
387 Ir para o sumário >>

grande parte vem o estímulo e para Minas que se orienta a


economia da microrregião Interiorana da Região do Extremo Sul.
Diante dos fatos expostos, parece poder concluir-se que,
agora como em 1960, a microrregião habitada pelos Pataxó se inclui
na categoria VII-B, que corresponde, com densidade baixa.
Incremento alto e índice baixo de produção industrial, a frentes em
expansão, e à maior existência de grupos indígenas. Os quais, em
decorrência mesmo da presença das frentes, tem sua sobrevivência
mais seriamente ameaçada. Marcando com maior vigor a situação, o
município de Porto Seguro, que na escala das densidades
demográficas ocupa na microrregião quase o extremo inferior (9,46
2
hab/km ), na dos incrementos salta para o lado oposto, com 54,04%
entre 1960 e 1970.

QUADRO LOCAL: BARRA VELHA

Da ponta de Corumbau, (16°53’45” lat. S) à que, seu nome


nos mapas, lhe fica ao norte e imediatamente à Sul da foz do Rio do
Frade, abre-se na Costa Ampla reentrância onde vem desaguar os
rios Corumbau e Caraíva, sendo este o mais importante dos dois.
Sua barra fica no ponto aproximadamente eqüidistante das pontas
que limitam o Golfo, e o baixo curso do rio desenvolve-se num amplo
vale de fundo chato encostas abruptas. O litoral, do Caraíva a ponta
de Corumbau, foi construído e retificado sucessivos cordões
litorâneos, apoiados em recifes de arenito (e coral?), que a espaços
afloram na altura da rebentação. Delfronte do portinho da barra
velha, outra linha de recifes emerge a pouca distancia da praia que
se estende ininterrupta, protegendo-a e formando um abrigo natural.
Daí para o interior, encontram-se de saída a restinga, e, separando-
a do vale do Caraíva ou da falésia morta do tabuleiro, extensos
areais, lagoas rasas e de caprichoso contorno, e depósitos vasosos
submetidos a ação das marés. Estes aspectos da paisagem ocupam
larguras variáveis de leste para oeste, e, se considerados de norte
388 Ir para o sumário >>

para sul dividem a área e em três setores bastante bem definidos.


Ate uns três quilômetros e meio para os sul do Caraíva domina o
areal, que invade o próprio vale do rio e é coberto, como a restinga,
de características vegetação psamófila. Desse ponto e por outro
cinco quilômetros seguem-se as lagoas intercomunicantes, que, sem
o tocar, abraçam por nordeste e leste o sopé do tabuleiro. Este, a
partir daqui, aproxima-se muito do mar e alcança quase a restinga,
estando o dela separado pelas águas e vegetações das lagoas,
entre as quais o tabuleiro existe, quase sempre, estreita faixa
arenosa. E sobre esta que se instalou a aldeia da barra velha,
espremida assim entre a falésia morta e a lagoa.
Ao trecho lacustre, e por ela penetrados, substituem-se na
direção sul novamente os areais, que logo cedem, ou os que
combinam com os depósitos vasosos da Ponta de Corumbáu.
Quase no extremo dessa projeção e de seu lado norte, deságua o
pequeno rio do mesmo nome, que recebe pela margem esquerda e
pouco antes da foz um afluente de reduzidas proporções. Este
drena, paralelo a praia, uma depressão entre cordões litorâneos,
onde o mangue se instalou. A sul do Corumbáu e ainda nessa ponta,
há uma quantidade de canais anastomosados que pertencem a seu
sistema, e o mangue que os acompanha é menos denso e contínuo
que o daquele tributário da margem norte. Completando a paisagem,
ao mangue e à vegetação da restinga juntam-se aglomerados de
coqueiros sobre as areias.
Baixa e triangular, a ponta de Corumbáu rompe, num ângulo
aproximado de 135º, com a reta quase perfeita da praia que lhe fica
ao norte, enquanto a falésia se mantém inalterada e paralela ao mar,
até á interrupção que lhe impõe o vale daquele rio. Limitado assim
pelos dois vales – esse o e de Caraíva -, o tabuleiro penetra
profundamente adentro, só alterado pelos afloramentos cristalinos
do monte pascoal e dos outros prolongamentos orientais da serra
dos aimorés. Sua drenagem dirige-se para ambos os rios e para o
trecho lacustre do litoral, deixando-lhe as bordas entalhadas por
389 Ir para o sumário >>

ravinas mais ou menos profundas. Na topografia suave do tabuleiro


esses ribeiros e regatos tendem encaixar-se, acentuando-se isto em
relação aos que fazem parte das duas bacias principais – do Caraíva
e da do Corumbáu.
Sobre esses sedimentos da série Barreiras, a vegetação
apresentava-se em 1957 como complicado mosaico de capoeiras,
restos de matas, campos com variável densidade de gramíneas,
arbustos e árvores esparsas, e ainda grandes piaçavais, cuja a
importância aumentava gradativamente para o interior. Há uma
concordância entre a distribuição dos elementos desse mosaico, a
rede fluvial e a topografia. Restos de matas e capoeiras tendiam a
concentrar-se nas depressões úmidas dos pequenos vales, mas
persistiam por vezes nos solos mais secos dos interflúvios. Nos
declives abruptos que dominam os vales do Corumbáu e do Caraíva,
a cobertura florestal era mais densa e as árvores mais altas, mas
para os lados do mar ela fora quase completamente arrasada: por
vezes, entretanto, conseguia acompanhar os regatos pelos ravinas e
chegar perto das lagoas. Às áreas recobertas de vegetação arbórea
contínua sucediam-se, nas encostas dos vales do platô e no seu
doce declive oriental, campos com as gramíneas recobrindo
integralmente o solo: o que não acontecia nos interflúvios mais
elevados, onde ele frequentemente recobre-se de mata intermitente,
como se pode depreender da análise das fotografias aéreas. Quanto
à piaçava, ocorria abundante nos campos e capoeiras. E as roças
atacavam as áreas florestas, a partir das bordas dos campos ou
acompanhando o curso dos rios: para isto, na verdade, parece notar-
se certa tendência. Que as beneficiaria com melhores condições de
solo e umidade.
O aspecto, em 1957dessa cobertura vegetal dos tabuleiros,
parece resultado da intensa degradação pela atividade humana da
floresta latifoliada tropical perene. A numerosa presença de roças,
proliferação das piaçavas, recorte por vezes anguloso e arbitrário da
límbria das matas e capoeiras, são testemunhos a essa hipótese
390 Ir para o sumário >>

favoráveis corroborados talvez pelo depoimento histórico de wied-


neuwied (1958:216,219). Embora hoje o povoamento ai se reduza a
aldeia indígena a vila de Caraíva cumpre lembrar que houve, alem
dos índios bom numero de posseiros nas terras do Parque Nacional
até depois de sua demarcação por volta de 1960 e que seria essa
anterior fase de ocupação a responsável pela situação de 1957.
Não podemos realizar um conhecimento amplo do tabuleiro em
1971, nem dispor de fotos áreas anteriores a 1957. Mas os informes
dos índios indicam que se modificou apenas no sentido de um
aumento da importância das capoeiras e piaçavas. Entretanto o
ritmo do processamento viu-se com certeza diminuindo quando,
instalado o parque, forma indenizada e afastada os posseiros e os
índios proibidos a fazer qualquer plantação. Agora, achamos a
proibição suspensa na pratica e de 1971 a 1978 têm os habitantes
podido plantar novamente nas capoeiras. Dada a população
relativamente reduzida, suas necessidades devem resultar numa
devastação de ritmo e proporções muito inferiores aos que antes se
deu. Este é problema,alias,para cuja correta analise faltam os
necessários cálculos e dados históricos.
Diante do sistema adaptativo e das limitações econômicas e
financeiras do grupo pataxó, os diversos setores do ambiente
descrito adquirem valor diferente e desigual. A restinga, a praia e as
alagoas não são aproveitadas pela agricultura a não ser por alguns
coqueiros apesar de as margens das ultimas se terem mostrado
favoráveis ao arroz: aqui o fator limitante não e o desconhecimento
de técnicas mas a falta de capital para a aquisição de sementes. Por
vezes, a praia serve para pescar à linha, mas a mesma falta de
capital impede que disponham de rede capazes de tornar rendosa a
pesca de beira-mar.
Assim, e excetuado o local da aldeia, onde há coqueiros,
bananeiras e outros arvorem de fruto, galinhas e alguns porcos,
ficam os índios reduzidos à exploração do tabuleiro, do mangue e do
recife. Nos campos do primeiro fazem pastar os asnos, que
391 Ir para o sumário >>

possuem um numero considerável e nas manchas de capoeira a


agricultura de roças foi reiniciada por volta de 1971, a razoável
distancia da aldeia: toda ela e dirigida a substancias não havendo
ainda excedentes comerciáveis. Ao contrario dessas atividades
produtivas, a coleta de piaçava, estritamente predatória, e que lhes
facultava a mercadoria indispensável a seu acesso, precário
embora, a economia de mercado da sociedade envolvente e a seus
produtos manufaturados. Por outro lado, enquanto das roças provem
os carboidratos sob a forma da principal planta cultivada - a
mandioca - é também da coleta, no mangue e nos recifes, que vem
o suprimento de proteína animal. No mangue há caranguejos e
moluscos, no recife moluscos e ouriços-do-mar comestíveis. A
pesca, alem da que referimos, é a depender da posse de pequenas
redes adequadas, feitas nos rios do mangue, e parece relativamente
desprezível. Mais uma vez a ausência de capital não permitir investir
em redes de arrasto ou de emalhar para a pesca costeira, cujas
técnicas conhecem através de sua participação nas pescarias
regionais. A experiência recente e de iniciativa do antigo
encarregado do posto indígena de pescar a linha em alto mar,
redundou em desastre. A falta de tradição de aptidão técnica e o
mau tempo combinaram se num naufrago que custou oito vidas,
traumatizando ao menos essa parte do ambiente a utilização
econômica.
Por cerca de dez anos e enquanto estiveram impedidos de
plantar roças, segundo suas próprias informações, os Pataxó
sobreviveram graças ao mangue, completando a dieta pela troca,
com os membros da sociedade regional de farinha por excedentes
de caranguejos. E mesmo destes por bens industrializados. Por
duas razoes e esse um fato importante e que não deve ser
subestimado. Primeiro, porque mostra a persistência de uma técnica
com profundas raízes no tempo; antes de Corumbá e depois de
Caraíva, são constantes na viagem de Wied-Neuwied as referências
a “índios mansos” mariscando pela praia: ao que tudo indica de
392 Ir para o sumário >>

ascendência tupi, poderiam ter transmitido seus conhecimentos aos


Pataxó, mas pode-se supor também que estes já antes do contato e
sendetarizaçao viessem coletar mariscos na costa. Os Xókleng de
santa Catarina como os Pataxó caçadores e coletores da floresta
iam periodicamente ate o mar provavelmente em busca de alimento
(Ribeiro,1970:319). E segunda razão, porque parece demonstrar o
valor adaptativo dessa forma de exploração do ambiente mesmo
numa situação de contato com uma economia de mercado e uma
economia de subsistência em mudança. Foram,cumpre lembrar, os
mangues e bancos e moluscos que oferecem a primeira base para
as sedentarizaçao das populações pré-históricas litorâneas da
América do sul (Meggers, 1970:6-11), e foram também eles que,
combinamos a agricultura no leste do continente , permitiram os
elevados montante demográficos das aldeias Tupinambá de que nos
falam os cronistas , assim o que a primeira vista pareceria u regime
de fome se medido pelos nossos padrões – sendo-o, sob outros
aspectos -, é no que respeita a seu conteúdo de proteína animal,
possivelmente mais rico que o das áreas rurais do interior brasileiro,
ou das classes pobres da zona urbana.Esta,evidentemente, é uma
hipótese carente de verificação pelo trabalho de campo e pelo
estudo em laboratório dos componentes da dieta pataxó
Por fim, avaliar sumariamente a importância relativa de cada
um dos setores em que se pode dividir, sob a perspectiva de seu
aproveitamento econômico o ambiente natural do pataxó, resta
constatar que a localização da aldeia corresponde a uma posição
estratégica a meio caminho entre o mangue e as roças no tabuleiro,
e perto do riacho que, dele descendo , o separa da povoação e a
esta fornece água. Não quer dizer, entretanto, que se deva por
enquanto reconhecer nisso uma relação causal, que só os
testemunhos históricos que se venham a descobrir poderão negar
ou confirmar.
393 Ir para o sumário >>


4.2. OS PATAXÓ MERIDIONAIS (PORTO SEGURO, BAHIA): CONSIDERAÇÕES SOBRE

A DEMARCAÇÃO REALIZADA EM 1980

Maria Rosário Gonçalves de Carvalho

O presente parecer é relativo aos Índios Pataxó que se


localizam na área do Parque Nacional do Monte Pascoal e sítios
adjacentes, neste último caso especialmente por força da exiguidade
do território demarcado em 1980, que, crescentemente, tem agido
no sentido de dispersar a população originária da Aldeia de Barra
Velha para outros núcleos, no próprio interior do PNMP e exterior a
ele.
Ao tomarmos conhecimento da apreciação, por parte do grupo
Interministerial, da referida demarcação em reunião próxima,
consideramos necessário emitir breve parecer que focalizasse certas
repercussões, mais determinantes, desse ato jurídico-administrativo
sobre as condições de produção e reprodução dos denominados
índios Pataxó Meridionais; apreciasse os efeitos disruptivos
causados, e por causar; e apresentasse um pequeno conjunto de
recomendações, dispostas em ordem de prioridade.
Optamos por um texto sintético, que contivesse informações
básicas sobre a localização geográfica, notícia histórica, organização
dos atuais agrupamentos Pataxó, conclusões e recomendações; e
permitisse, de uma só leitura, atestar a extrema gravidade do caso
em questão, e a necessidade de adoção de prontas medidas que
possam corrigir os prejuízos provocados e criar condições mínimas
de sedentarização e sociabilidade para os diretamente interessados.

• Notícia Histórica
394 Ir para o sumário >>

Indicamos, aqui, apenas aquelas fontes históricas


consideradas mais importantes para atestar a ocupação imemorial
dos Pataó na área de estabelecimento do PNMP. Para uma análise
mais completa e detida deste aspecto, recomendamos a leitura de
Carvalho (1977).
Ofício do governador Francisco da Cunha Menezes para o
Visconde de Anadia, em 1805, declara haver encarregado o capitão-
mor da capitania de Porto Seguro da exploração das barras e rios
desta capitania. Em janeiro do ano referido, relatório encaminhado
ao governador menciona, aproximadamente no local da atual aldeia
Barra Velha, a presença de índios aldeados que teriam sido
removidos pelo Ministro José Xavier para a Vila do Prado (Castro e
Almeida 1918:241).
Em 1809, em viagem terrestre da Bahia ao Rio de Janeiro, o
desembargador Luiz Thomaz de Navarro registra a decadência da
Vila do Prado, em razão de supostos ataques de Índios Pataxó e
Botocudo (Jornal Instituto Histórico e Geográfico Brazileiro
1846:449).
O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, em viagem no
período compreendido entre 1815 a 1817, observa que a margem
norte do rio – São Mateus (ou Cricaré) é freqüentada pelos “Pataxós,
Cunamachós, Machacalis e outras tribos, até Porto Seguro”
(1958:1970), e a margem sul, pelos Botocudos. Das informações do
Príncipe, pode-se admitir grande dispersão dos bandos Pataxó que
se deslocariam do Rio São Mateus a Porto Seguro, no caso dos
Pataxó meridionais, e do rio de Contas ao Pardo, no que concerne
aos Pataxó setentrionais.
Em 1861, o Presidente da Província Antônio da Costa Pinto
trata da criação de uma aldeia de índios no rio Corumbau, para onde
deveriam ser deslocados os índios do Prado (Pinto 1861:36). Segue-
se ofício do diretor geral dos índios ao Presidente da Província,
concordando com a fundação da mencionada aldeia.
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As evidências permitem afirmar que a aldeia proposta para ser


estabelecida às margens do rio Corumbau é a atual Aldeia de Barra
Velha (V. Carvalho 1977: 82-3), que deve seu nome ao fato da foz
do citado rio ter sofrido considerável deslocamento para o sul. Em
1892, trinta e um anos após a data da sua provável criação,
portanto, há uma referência explícita à Barra Velha, do que se
conclui já atender a aldeia pelo nome atual, em razão do
deslocamento da sua foz. Vianna cita os “Arraiais de Itaquema,
Caraivamemuan (...) e Barra Velha, perto de Caraivamemuan
(1892:556).
Complementarmente, os dados disponíveis atestam a
existência de vários bandos Pataxó, como já assinalado, que teriam
sido contatados em períodos históricos diferentes pelas frentes de
expansão da sociedade nacional. Os quatro limites básicos
espaciais desses bandos seriam do Rio de Contas ao Pardo, e do rio
de Stª Cruz de Cabrália ao São Mateus, como vimos anteriormente.
Os denominados Pataxó meridionais teriam sido primeiramente
alcançados, igualmente em épocas distintas. O início do século XIX
parece ser, pelo menos explicitamente, a data dos primeiros
contatos.
Os grupos locais de Barra Velha, Boca da Mata, Trevo do
Parque e Coroa Vermelha compõem um sistema do qual são partes
independentes, em que pese a distância geográfica que separa esse
último dos primeiros.
A aldeia de Barra Velha, ou Bom Jardim, está situada no
Parque Nacional do Monte Pascoal. Este fica fronteiro ao mar, entre
os rios Caraíva e Corumbau, nos limites meridionais de Porto
Seguro, Estado da Bahia, município pertencente à Micro-Região
Litorânea do Extremo Sul. As unidades menos abrangentes nas
quais se localizam os Pataxó são as Micro-Regiões Interiorana e a
referida Litorânea do Extremo Sul, em grande parte áreas de
penetração recente, até a segunda metade do século XX, quando a
sua exploração se limitava à costa e às pequenas cidades litorâneas
396 Ir para o sumário >>

pouco desenvolvidas, até então cercadas por área de floresta que se


estendia até as fronteiras de Minas Gerais. Com o desbravamento
das terras interiores, instalou-se a pecuária e, simultaneamente, se
expandiu o cultivo de cacau, procedente do norte.
Localizada sobre a faixa arenosa entre a praia e o tabuleiro,
Barra Velha fica entre dois povoados que recebem os nomes dos
rios que desembocam nas suas proximidades: Caraíva e Corumbau
“ (...) Uma linha de recifes, frente à praia, serve de proteção a esta,
constituindo uma barreira natural, que se presta também à utilização
econômica pelo grupo. Para norte e sul de Barra Velha, quer se
caminhe em direção a Caraíva ou Corumbau, são atravessadas
grandes extensões de areias, cobertas pela vegetação psamófita
característica. Para o norte, o areal invade o vale do rio Caraíva e é
acompanhado por brejos e lagoas que se interligam, enquanto mais
para o sul se instala o mangue numa longa extensão, na ponta que
começa ao norte e continua para o sul do rio Corumbau. Resultado,
em parte do trabalho do pequeno rio de Barra Velha, afluente da
margem esquerda do Corumbau, o mangue que se inicia perto da
Aldeia é mais denso e mais aproveitado economicamente do que o
que se desenvolve ao sul do Corumbau” (Carvalho 1977:59).
O Parque Nacional do Monte Pascoal foi criado pelo Decreto-
lei nº 12.729 de 19 de abril de 1943 (Diário Oficial 19/04/1943) mas,
só em 1960, mediante doação de 22.500 hectares por parte da
União ao Estado da Bahia, dá-se a sua efetivação.
Os Índios, fixados na porção com menor potencial econômico –
entre a linha de praia e o tabuleiro -- foram incluídos na área
demarcada, tal como a população habitante da Vila de Caraíva.
O tabuleiro ocorre em toda a extensão interior do PNMP, salvo
próximo ao Monte Pascoal, onde há afloramentos do cristalino. A
vegetação apresenta-se variada. Na faixa arenosa, distingue-se a
restinga com vegetação psamófita. O mangue, com grande
salinidade e constantemente encharcado, constitui fundamenta fonte
de proteína animal (caranguejos e moluscos). Areias estendem-se
397 Ir para o sumário >>

por toda a linha de praia. O tabuleiro, ademais, acerca-se do mar


separado da restinga pelas águas das lagoas. Sobre ele ocorrem
restos de mata, trechos de capoeira, campos com areia e vegetação
baixa e esparsa e, mais para o interior, nas pontas de menor
umidade, campos de sapé com piaçava.
A área de campo é extensa, ligeiramente inferior às áreas de
mata e capoeira no âmbito do território ocupado pelos Pataxó. Além
de determinado limite (em 1977, o limite de ação econômica dos
índios), a mata atlântica predomina.

* Localização Geográfica e Organização dos Grupos Locais


Grupo Local Área Geral Município
Barra Velha PNMP Porto Seguro
Boca da Mata PNMP Porto Seguro
Trevo do Parque BR101/PNMP Porto Seguro
Embiriba Foz do Rio do Prado Porto Seguro
Mata Medonha Rio Stº Antônio Stª Cruz de Cabrália
Coroa Vermelha Coroa Vermelha/Baía Stª Cruz de Cabrália
Cabrália
Águas Belas Rio Cahy/Foz do Corumbau Prado
(Fonte: Medidas Prioritárias para os Povos Indígenas da Bahia –
Fev. 1987)

Vejamos, agora, os outros grupos locais. “Boca da Mata”


surgiu como conseqüência lógica da pressão demográfica
combinada à exigüidade da área demarcada e à pobreza dos solos.
Tais condições propiciaram tensões, disputas e conflitos internos
(mortes, inclusive) que culminaram na transferência de um
contingente composto por 50 (cinqüenta) famílias para a região do
fundo da reserva, onde é então estabelecida a Aldeia da Boca da
398 Ir para o sumário >>

Mata. Isso tem lugar três anos após a demarcação de 1980. Os


problemas têm se avolumado desde então, as queixas são
constantes e a solução deste, como dos outros grupos,
necessariamente encontra-se na dependência da retificação dessa
demarcação.
Informações recentes dão conta da conjugação de certos
fatores desagregadores, gerados pelas precárias condições
materiais de reprodução, que agem no sentido de expelir a
população. Assim é que das 170 famílias anteriormente assentadas
na “Boca da Mata”, o número foi reduzido para 140 (julho, 1987).
“Trevo do Parque/BR101” é um agrupamento recente,
formado por famílias parcialmente oriundas da “Boca da Mata”. A
sua situação é vulnerável face à dependência do fluxo turístico, do
seu impacto sobre a comercialização do artesanato produzido, e à
ausência de apoio educacional-médico-sanitário. Em julho de 1987
havia pouco mais de 30 (trinta) famílias nesse assentamento, que
dista aproximadamente 50 a 100 metros da BR.
“Embiriba”, às margens do rio do Prado, possuía, em 1976,
uma população de 132 habitantes que vivia da plantação de
mandioca, café, cacau, além de outros cultivos de subsistência,
numa área alvo de disputas com não-índios. Atualmente a sua
população é de cerca de 120 a 130 indivíduos, o que aponta para
uma razoável taxa de estabilidade demográfica, que merece análise.
A área foi delimitada pela FUNAI em 1986, após grande resistência
das facções locais. As tensões prevalecem.
“Mata Medonha” abriga uma população de 180 indivíduos que
se encontra relativamente dispersa numa área de mata atlântica, e
se auto indentifica como “Índios de Caraíva”.
“Coroa Vermelha”, no município de Santa Cruz de Cabrália, é
um sítio de importância histórica por ser o local da primeira missa
celebrada no Brasil pela expedição de Cabral. Um conjunto de 300 a
400 indivíduos está aí assentado em terrenos da Marinha. Este
número pode aumentar em função dos problemas surgidos nos
399 Ir para o sumário >>

outros grupos, principalmente “Boca da Mata” e “Barra Velha”. A


produção e a venda de artesanato constituem as atividades
econômicas predominantes, e quase exclusivas, exercidas conforme
as variações do turismo. Os índios aí residentes reivindicam a
delimitação de uma área contínua da Ponta do Mutá, ao sul, até o
córrego que desemboca na Coroa Vermelha. Trata-se de uma área
limitada pela estrada e o mar. No seu interior, encontra-se o
loteamento do mesmo nome, construído e incidente sobre a maior
parte da área pretendida.
“Águas Belas”, no município de Prado, reúne
aproximadamente 100 indivíduos que compulsoriamente se dedicam
ao artesanato, uma vez que inexiste área de mata para a agricultura.
Essa aldeia foi criada, em 1951, por dois irmão, Edson e Manuel
Braz, que em seguida passaram a congregar o resto da família.
Vale observar que 1971 é a data de um movimento de
sublevação no qual se viram envolvidos os pataxó da Aldeia de
Barra Velha e que ficou conhecido, mediante o noticiário da
imprensa, como “a revolta dos caboclos de Porto Seguro” (A Tarde,
30.5.1951). Doentes e famintos, os índios foram reprimidos
violentamente pela polícia militar, que prendeu o “capitão” à época,
Honório, e mais dez índios, homens e mulheres. E matou os dois
líderes não-índios que teriam insurgido os Pataxó contra os
regionais vizinhos, sob o pretexto de que estavam encarregados,
pelo Governo, de proceder à medição das suas terras. Face à
violência do fato, a população se dispersa e aqueles irmãos
resolvem constituir uma aldeia em separado, “Águas Belas”.

• Conclusões

O Parque Nacional do Monte Pascoal se sobrepôs aos índios,


desrespeitando os seus direitos históricos. É, portanto,
inconstitucional, criado que foi durante a vigência da Constituição
de 1946 que garantia aos índios a posse do território imemorial.
400 Ir para o sumário >>

A imemoriabilidade do território Pataxó é inquestionável, o que


implica em ter o próprio Governo Federal inobservado o diploma
legal.
A demarcação efetuada em 1980 foi eivada de erros. Feita à revelia
da vontade da maioria dos índios, ampliou os danos a que já tinham
sido submetidos com a implantação do PNMP, limitando-os à
ocupação de uma área insuficiente em extensão e potencial agrícola
(solos pobres), dominada por trechos arenosos, ou alagadiços, e
cuja faixa da mata, a oeste, comparativamente muito menor do que
esses trechos, tem baixo aproveitamento agrícola. E excluindo da
porção demarcada área de manguezais do rio Corumbau, fonte por
excelência de proteína animal.
Em razão da demarcação, houve um sensível rebaixamento dos
custos de reprodução biológica e social Pataxó, e um agravamento
da convivência social. Os índios têm acusado o órgão oficial de
aliciamento das lideranças, assim obtendo a sua aquiescência. Tais
acusações serviram como especial mecanismo de faccionalismo,
debilitando, profundamente, as relações internas, e criando sérios
obstáculos à articulação externa.
O baixo potencial agrícola do território demarcado em 1980 tem
suscitado a emergência de um número elevado de agrupamentos
externos à Barra Velha, dificultando a sociabilidade entre os Pataxó
constrangidos à dispersão, e submetendo-os a um regime de
penúria alimentar.
O artesanato, única alternativa que se afigura no presente
economicamente viável em função do desenvolvimento do turismo
na região, não constitui, aparentemnte, uma atividade capaz de
promover melhores condições de vida, e a médio prazo pode
contribuir para agravar o precário quadro local, depauperando-os
ainda mais.
A situação geral pode se tornar mais crítica se tiver fundamento a
informação de que a FUNAI teria emitido certidão negativa da
presença de índios na Coroa Vermelha. Trata-se de um dado que
401 Ir para o sumário >>

deve ser prontamente examinado para apuração das


responsabilidades e resguardo do interesse dos Pataxó ali
estabelecidos.

• Recomendações

 Anulação da demarcação de 1980;


 Levantamento da situação prevalecente nos vários grupos locais;
 Definição de um novo território que garanta ao povo Pataxó um
mínimo necessário à subsistência agrícola, mínimo entendido
enquanto perfeitamente capaz de preencher as efetivas
necessidades de ordem biológica e social e, consequentemente,
de garantir a higidez da população considerada na sua
totalidade;
 Esse território deve abranger área para obtenção de proteína
animal mediante a coleta de crustáceos e caranguejos no
mangue;
 A criação de excedentes para comercialização deve estar
orientada para atividades complementares não-agrícolas, como a
extração da piaçava e do dendê, por exemplo;
 Igualmente deverá ser contemplada a necessidade de uma
porção de terra que contenha matéria-prima indispensável à
produção artesanal, responsável, hoje, por apreciável ingresso
econômico;
 Plano de ocupação, utilização e manejo do PNMP, com a
participação dos Índios;
 Exame da criação de um Parque Indígena que busque a
interação equilibrada das populações, humana e não humana,
mediante um plano cuidadoso de ocupação e utilização com
seleção de determinadas áreas livres de ocupação humana.

Referências
402 Ir para o sumário >>

CARVALHO, Mª Rosário G. de. 1977 Os Pataxó de Barra Velha: seu


subsistema econômico. Pós-Graduação em Ciências Humanas da
UFBA, Salvador, Bahia.
CASTRO E ALMEIDA, Eduardo de (Org.). 1918. Inventário dos
Documentos relativos ao Brasil existentes no Archivo da Marinha e
Ultramar de Lisboa – V. Bahia – 1801-1807. Rio de Janeiro: Officinas
Graphicas da Biblioteca Nacional.
JORNAL DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO
BRAZILEIRO. 1846. Itinerário da viagem que fez por terras da Bahia
ao Rio de Janeiro, por ordem do Príncipe Regente, em 1808, o
Desembargador Luiz Thomaz de Navarro (manuscrito inédito, e
oferecido ao Instituto pelo seu sócio correspondente Francisco
Adolpho de Vernhagen).
PINTO, Antônio da Costa.1861. Falla recitada na abertura da
Assembléia Legislativa da Bahia pelo Presidente da Província no dia
19 de março de 1861. Bahia, Tipographya de Antonio Olavo de
França Guerra.
VIANNA, Francisco Vicente. 1892. Memória sobre o Estado da
Bahia SNT. Tipografia do Estado da Bahia.
WIED-NEUWIED, Maximiliano, Príncipe de. 1958. Viagem ao Brasil.
São Paulo: CIA Ed. Nacional.
403 Ir para o sumário >>


4.3. ASPECTOS ECOLÓGICOS DA PESCA EM ALDEIAS PATAXÓ, EXTREMO
128
SUL/BAHIA

Cláudia Santana Santos


José Luís Caetano da Silva

Introdução

Os peixes e outros recursos aquáticos nos servem como fonte


de alimento, comércio e recreação desde os tempos antigos. No
Brasil, a atividade pesqueira desenvolveu-se, ao longo de sua
história, de maneira lenta e calçada em moldes artesanais, havendo
sempre predominância da pesca extrativista. A pesca artesanal se
destaca como uma grande fornecedora de proteína de ótima
qualidade para as populações locais, é multiespecífica, utiliza uma
grande variedade de aparelhos e, em geral, a maioria das
embarcações não são motorizadas. O pescador artesanal exerce
sua atividade de maneira individual, em pares ou em pequenos
grupos de quatro a seis indivíduos e está sob o efeito de pressões
econômicas que governam sua estratégia de pesca selecionando os
peixes de maior valor. Sua relação com o mercado é caracterizada
pela presença de intermediários (Bayley & Petrere , 1989; Petrere,
1989; Fischer et al., 1992; Diegues, 1993).
Desde que a presença de povos com o etnônimo Pataxó, no
extremo sul da Bahia apareceu em relatos de cronistas percorriam a
costa do Extremo Sul Baiano, bem como, nestas aparições trocavam

128 Texto baseado em projeto de mestrado aprovado no Programa de Pós-Graduação em Zoologia Aplicada da Universidade Estadual de Santa

Cruz
404 Ir para o sumário >>

com os habitantes da costa cera e outras coisas da mata por


129
produtos manufaturados .
Entre 1971 e 1976 (Carvalho, 1977) as principais atividades
econômicas entre os Pataxó de Barra Velha eram a agricultura e a
pescaria, o que lhes possibilitava uma dieta de carboidratos e
proteínas, alguns poucos possuíam trabalho assalariado, outros se
empregavam esporadicamente na colheita, em mercados e
padarias; alguns poucos se dedicavam ao comércio na própria
aldeia. Entre os chefes de família foi registrado apenas um artesão
(Carvalho 1977: 145). Nos anos oitenta a economia se polarizaria
entre a agricultura e o artesanato, tornando a pescaria residual
(Bierbaum 1990). No entanto, o redirecionamento para o turismo não
impediu a permanência da agricultura de subsistência como
característica econômica determinante formando junto com a pesca
e a mariscagem a base da segurança alimentar nas comunidades
Pataxó.
Em 2003 foram feitas entrevistas diretivas com
representantes de trinta famílias Pataxó moradoras das áreas
Pequiatã, Cahy, Tiba, Boca da Barra do Corumbau, Craveiro,
Corumbauzinho e Tauã entre o distrito de Cumuruxatiba e o
povoado de Corumbau – Prado/Ba. Apesar da urbanização
crescente provocada pelo turismo intenso nas duas áreas o trabalho
rural foi afirmado como central para a reprodução de 21% das
famílias que responderam a consulta. A pesca foi afirmada como
atividade central para 32 % . 18 % dedicam-se ao artesanato, além
de 29 % no setor de serviços. Percebe-se, no entanto, que quase
metade das famílias já se dedica a atividades ligadas ao incremento
do turismo e da urbanização. Evidentemente em áreas mais para o

129 Esporadicamente já são citados desde o século XVI. No entanto, foram descritos de forma mais pormenorizada no século XIX por Wied-

Neuwied (1958: 222 apud Carvalho, Sampaio 1992: 4) que os registrou “...em toda a faixa entre o Mucuri e o Rio de Cabrália...”. Ainda,

segundo o mesmo autor, toda a costa, desde o Rio do Prado [possivelmente o Jucuruçu], era temida pela presença de selvagens que,

“...vagueiam pelas matas e as suas hordas surgem alternadamente, em alcobaça, no Prado, em Comechatiba, Trancoso...”.
405 Ir para o sumário >>

interior como Corumbauzinho, Águas Belas, Craveiro e mesmo as


que recentemente ocuparam o Parque Nacional do Descobrimento –
PND, a relação com o turismo é residual, sendo a pesca, a
agricultura e a criação de animais a base de sua segurança
alimentar.
Ainda hoje a pesca/mariscagem é central para a segurança
alimentar de diversas áreas Pataxó meridionais: três agrupamentos
de famílias Pataxó, os quais estão situados na área do Parque
nacional do Monte Pascoal, gravitando em torno de Barra Velha,
chamada Aldeia Mãe; as aldeias na proximidade do distrito de
Cumuruxatiba, Cai, Pequiatã e Tiba e as aldeias que margeiam o
Corumbau no lado sul, Boca da Barra do Curumbau, Craveiro e
Corumbauzinho e Águas Belas, a pesca de subsistência ainda é
uma atividade bastante praticada pelos seus moradores.
Segundo Carvalho (1977: 295-338), e conforme foi possível
confirmar em entrevistas nas viagens de campo de janeiro de 2007 e
janeiro de 2008 a pesca entre os Pataxó se divide em: pesca
marítima, que se subdivide em (pesca de verão – peixe de “lama” –
e de inverno – peixe de “pedra”) e pesca em rios, lagos e no
mangue.
A partir de outubro tem início a pesca de verão, encerrando-
se em março, período durante o qual se procura tirar o maior
proveito possível, pois o inverno que se segue é sempre de
incerteza. A tainheira e a caçoeira são as redes então utilizadas,
enquanto a raieira permanece inativa, pois não é própria para o
verão. O pescador despende menos esforço, não tendo que
percorrer a distância costumeira da praia até os recifes afastados,
uma vez que os peixes dão mais perto e as redes são lançadas mais
próximas, nos recifes fronteiros à praia. A vigia, contudo, tem que
ser feita duas vezes ao dia, devido a maior abundancia de peixes.
No verão são encontrados peixes como samucanga, pescada,
curuvina, bagre, bagre-vela, bagre-cagão, arraia, roncador, calafete,
xaréu, sorococa, galo, muquaxo, pexima, anchova, paru, gueba,
406 Ir para o sumário >>

samucanga-chata, cabeça de coco, sauara, joana-doida ou


sametara, perna-de-moça, griama, cangauatá, boca torta, caratinga,
capado, espada, garapau, sardinha, viola, mouriço, escamuda,
pescada-goiva, samucanga-itê (Carvalho, 1977, f 324-325). Utiliza-
se a caçoeira, a raieira e com a grosseira, duas bóias que sustentam
uma corda com várias linhas com anzóis que são esticadas em
lugares profundos “nos duros” como dizem os Pataxó. Esses lugares
duros têm o fundo revestido de pedra, assim é que são definidos os
peixes desse período “peixe de pedra, peixe que come mais fora”,
para distinguir dos peixes de verão, peixes de “lama”.
Os peixes de inverno são: o ariacó, binquara, guaricema,
melro, canapu, guaiúba, perajira, frade, sargo, bonito, avacora,
cação, sendo a guaiuba e o ariacó mais valorizados como de
primeira pelo seu sabor. Tartarugas também são comuns nessa
época: geralmente pequenas de quatro a seis quilos, e de diversos
tipos, como tartaruga-branca, tartaruga-preta, jabuti e tartaruga de
pente. Estas últimas consideradas de pouco valor comestível,
amargas, eram devolvidas ao mar quando caiam nas redes. Na
época de fartura de tartaruga toda a comunidade ganhava, trocava
ou comprava uma porção para consumo próprio (Carvalho, 1977, f
325-329).
A pesca em rios, lagos e no mangue é geralmente feita por mulheres
e crianças. As espécies de peixes são: trairas, corrós, jundiá, corro,
traira, robalo e patibu. Praticada, mormente por indivíduos que tem
nessa prática uma fonte de complementação na dieta alimentar e é
pouco praticada pelos pescadores marítimos (Carvalho, 1977, f 329-
335).
Se fazem necessários estudos mais aprofundados da presença e
importância das espécies utilizadas para consumo provenientes da
pesca/mariscagem, bem como de um plano de manejo fulcrado em
estudos, também aprofundados, da etologia e ecologia nos PARNAS
e RESEX do Extremo Sul da Bahia.
407 Ir para o sumário >>

Referências

BEYLEY, P. B.; PETRERE, M. (1989). Amazon fisheries:


assessment methods, current status and management options.
Can. Spec. Publ, Fish. Aquat. Sci. 106; 385-398.
BIERBAUM, Bernhard F. 1989. Der lauf des krebses:
Verãnderungen in lebensweise und Orientarung der Pataxó
Brasiliens, München, Universitãt, München
CARVALHO, M.ª Rosário Gonçalves de. 1977. Os Pataxó de
Barra Velha: seu sistema econômico, Dissertação de Mestrado,
apresentada ao PPGCH/UFBA, Salvador, Bahia.
______, SAMPAIO, José Augusto Laranjeiras. 1992a.
Parecer Sobre o Estatuto Histórico-Legal das Áreas Indígenas
Pataxó do Extremo Sul da Bahia. (mimeo).
DIEGUES, A . C. S. (1993). Realidades e falácias sobre
pescadores artesanais. In: Documentos e relatórios de pesquisa nº
7. Centro de Culturas Marinhas – USP.
FISCHER C. F. A .; CHAGAS A . L. G. A . ; CHAGAS L. D.
(1992). Pesca de águas interiores. IBAMA.
PETRERE, M. (1989a). River fisheries in Brazil; a review.
Regulated rivers: Research and Management.. Vol. 4, 1-16.
408 Ir para o sumário >>


4.4 ETNOCONHECIMENTO DOS ÍNDIOS PATAXÓ NO MONTE PASCOAL, BAHIA:
CONHECENDO OS MAMÍFEROS ATRAVÉS DE PEGADAS

Thayara Nunes Novaes do Carmo


Joaquim Perfeito da Silva

Os Pataxó, no Monte Pascoal, configura-se em um povo


indígena que apesar da sua longa história de contato com a
sociedade brasileira ainda preserva muitas características próprias
de sua origem étnica, entre elas é conspícua a presença de práticas
de contato harmonioso com a fauna local, mesmo com mamíferos
silvestres brasileiros que, de maneira generalizada, são de difícil
observação devido ao fato desses animais possuírem hábitos
discretos e em grande parte noturnos. A Etnoecologia é uma ciência
que auxilia no estudo das relações do homem com o meio em que
vive. Pensa-se aqui que os conhecimentos ecológicos e etológicos
dos Pataxó podem dar uma importante contribuição para esta
relação.
Este estudo teve como objetivo analisar os conhecimentos
sobre dos mamíferos silvestres do local e se os índios Pataxó seriam
capazes de identificá-los através de pegadas. Foram visitadas as
aldeias: Alegria Nova, Tibá, Maturembá, Coroa Vermelha, Mata
Medonha, Pique e Águas Belas, entre os dias 07/01 á 21/01 de
2007, estando todas localizadas no extremo sul da Bahia. Utilizou-se
um questionário semi-estruturado, aplicado a 31 indivíduos de
ambos os sexos de forma aleatória, com idades que variavam de 16
a 77 anos, com o intuito de coletar o maior número possível de
409 Ir para o sumário >>

nomes de mamíferos que os Pataxó mais conheciam, foram feitas


visitas domiciliares.
As respostas foram registradas em um caderno de campo,
e/ou em gravadores, bem como foram usadas câmeras fotográficas
e filmadoras para registrar as pegadas e suas representações. Para
verificar a presença e a atividade desses mamíferos foram
consideradas as pegadas, pois além de comuns e de interpretação
confiável, vêm sendo frequentemente utilizadas por biólogos com a
finalidade de estudar a vida de animais que raramente são vistos
livres na mata. Todos os entrevistados conheciam muitos animais
silvestres e, afirmaram ser muito fácil identificar uma pegada em
uma trilha, principalmente, para os integrantes mais velhos e para
aqueles que tinham um maior contato com a mata. Segundo
depoentes, as pegadas de mamíferos, frequentemente encontradas
são: tatu, cutia, saruê, cachorro-do-mato, raposa, quati e onça.
410 Ir para o sumário >>

Representação visual de pegadas de mamíferos. Desenhos de


1 a 8 feitos por Gilson Lapa, aldeia Mata Medonha. Desenhos de 8 a
10 feitos por José Cerqueira, aldeia Mata Medonha: 1) cachorro; 2)
guaxinim; 3) raposa; 4) macaco; 5) cachorro do mato; 6) paca; 7)
quati; 8) onça; 9) corça (veado); 10) caititu.
Os índios Pataxós, alem de buscarem conhecer a mata que os
cercam atuam no sentido de que, os conhecimentos etnoecológicos
que facilitam a relação homem e natureza sejam transferidos de
geração em geração e são postos em prática em cada aldeia de
forma particular.

Referências consultadas

BECKER, M.; DALPONTE, C.J. Rastros de Mamíferos Silvestres


Brasileiros. 2ª ed. Brasília: Ed. UnB; Ed. IBAMA, 1999.
MODERCIN, I. F. Etnoecologia Pankararé das Abelhas Sem Ferrão,
Raso da Catarina. Disponível em: http://www.biologia.ufba.br
/Monografia_2005/etnoecologia_pankarare_2005_2.pdf Acesso em:
21 fev. 2007
POSEY, D. A. 1987. Etnobiologia: teoria e prática. Suma
Etnobiológica Brasileira, vol. 1. Vozes, Petrópolis. pp. 15-25
411 Ir para o sumário >>


4.5. CONHECIMENTO SOBRE PLANTAS MEDICINAIS DOS INDÍGENAS PATAXÓ

Tiago Carvalho Lima

A utilização de plantas com fins medicinais, para tratamento, cura e


prevenção de doenças, é uma das mais antigas formas de prática
medicinal da humanidade. No início da década de 1990, a
Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgou que 65-80% da
população dos países em desenvolvimento dependiam das plantas
medicinais como única forma de acesso aos cuidados básicos de
saúde (Veiga et al., 2005).
O conhecimento e o uso de plantas medicinais simbolizam muitas
vezes o único recurso terapêutico de muitas comunidades e grupos
étnicos (Maciel et al., 2002).
O emprego de plantas medicinais na cura de enfermidades tem sido
difundido ao longo dos tempos desde as formas mais simples de
tratamento local, provavelmente utilizada pelo homem das cavernas
até as formas tecnologicamente sofisticadas da fabricação industrial
utilizada pelo homem moderno (Matos, 2002). Atualmente, grande
parte da comercialização de plantas medicinais é feita em farmácias
e lojas de produtos naturais, onde preparações vegetais são
comercializadas com rotulação industrializada.
Em geral, essas preparações não possuem certificado de qualidade
e são produzidas a partir de plantas cultivadas, o que descaracteriza
a medicina tradicional que utiliza, quase sempre, plantas da flora
nativa (Veiga et al.,2005).
O levantamento foi feito nas comunidades Indígenas dos Pataxó no
Sul do Estado da Bahia; observando quais, como e para que fins as
412 Ir para o sumário >>

espécies nativas de plantas da Mata Atlântica, dentre outras, são por


eles utilizadas na medicina popular a partir de seus conhecimentos
sobre plantas medicinais.

Referências consultadas:

MATOS, F.J DE Abreu.2002. FARMÁCIAS VIVAS: sistema de


utilização de plantas medicinais projetado para pequenas
comunidades. Editora UFC. 4 ed. 267 p.
MACIEL, Maria Aparecida M. et al. Medicinal plants: the need for
multidisciplinary scientific studies. Quím. Nova. São Paulo, v. 25, n.
3, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php. Acesso em:
22 Novembro 2007.
VEIGA JUNIOR, Valdir F.; PINTO, Angelo C.; MACIEL, Maria
Aparecida M.. Medicinal plants: safe cure?. Quím. Nova., São Paulo,
v. 28, n. 3, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php.
Acesso em: 22 Novembro 2007.
Tabela. Utilização de plantas da Mata Atlântica, dentre outras, para
fins medicinais nas aldeias indígenas dos Índios Pataxó no Monte
Pascoal, Bahia.

Ervas Indicações
medicinais

Angico adstringente,afecções respi-


ratórias,contusões,
cortes,diarréia e expectoran-
te.
Aroeira antiinflamatório,diurética,ciá-
tica,furúnculos,
contusões e icterícia.
413 Ir para o sumário >>

Arruda flores/folhas:dores intestinais


e abortiva(infusão).

Artemísia antiespasmódica,calmante,c
ólicas menstruais,
digestivo,tônico para circula-
ção.
Bicuíba asma,perda de memória e
problemas de
estômago.
Boldo tônico amargo,distúrbios in-
testinais e hepáticos.
Capim santo tônico nervoso para a exaus-
tão e cansaço,
anti-depressivo, combate
stress e ansiedade.
Cana de brejo diurético,bom para rins e su-
dorífero.
Catuaba queda de nervos,frigidez e
impotência.
Carqueja inflamação da garganta,fíga-
do,icterícia,afecções
urinárias,feridas,distúrbios na
circulação,diabetes.

Confrei folhas:cicatrizante (compres-


sas).
Copaíba (óleo) catarro vesical e
pulmonar,desinteiras,bron-
quites,
dermatoses variadas,sinusi-
tes,amigdalites,anti-
séptico das urinárias,gastri-
tes,reumatismo,
inflamação de útero e
ovário,blenorragia e
414 Ir para o sumário >>

leucorréia,vesícula.
Cardo santo febrífugo, coqueluche, asma,
bronquite e estomacal.

Cajueiro diabetes, colesterol, triglicéri-


des e depurativo.
Espinheira vesícula,gastrite,ulcera gás-
santa trica,azia,dores
estomacais,insônia,mal funci-
onamento do
pâncreas,sífilis,reumatismo,t
osse e catarro.
Graviola Mordida de cobra (folhas),co-
lesterol,diabetes,

depurativo e triglicérides.
Jatobá casca:anemia,balsâmico,bro
nquite e laringite.
Mastruço fortalecedor pulmonar, gastri-
te e cicatrizante.
Salsa Caroba sífilis,reumatismo,falta de
Janaúba apetite,inflamação
do fígado,estreitamento das
vias urinárias,
inflamação de rins e
bexiga,asma.
Saúde inflamação do útero,corri-
Feminina mento,ardor vaginal,
menopausa,regulador do sis-
tema urinário,
útero baixo,menstruações di-
fíceis,dolorosas e
irregulares,gonorréia.
Tônico anemia,falta de apetite,fra-
Forte queza geral,insônia,
415 Ir para o sumário >>

emagrecimento,fortificante,es
gotamento físico,
impotência,dores nas
pernas,reumatismo,
câimbras,estômago.
416 Ir para o sumário >>


4.6. A CURA DE DOENÇAS ATRAVÉS DO CONHECIMENTO ETNOZOOLÓGICO

Thayara Nunes Novaes do Carmo

Nas aldeias indígenas pataxós, no Monte Pascoal, é evidente a


relação harmoniosa entre homem e fauna. O valor simbólico do
animal sempre esteve presente na vida do homem independente de
sua cultura (Vasquez, 2001). A etnozoologia estuda os
conhecimentos do homem sobre os animais em uma determinada
localidade (MENDES-ROCHA, 2005).
Estudos etnozoológicos têm sido estudados com freqüência no
Brasil, principalmente nas populações indígenas. Aspectos cruciais
que contribuem para revelação dos saberes indígenas a respeito dos
animais que conhecem são entre outros a descrição do tamanho,
cor, forma, hábitat e utilidade (Vasquez, 2001). Adquirem-se maiores
informações sobre certo animal pesquisado, se este, fazer parte dos
hábitos alimentares da população estudada (CARPANETO; GERM1,
1989).
Os animais também são fontes de cura (Costa Neto, 2006). São
atribuídos a eles propriedades que não se encontram em remédios
farmacêuticos e nem nas plantas (Vasquez, 2001). Registros
indicam o uso de remédios elaborados a partir de partes do corpo de
animais de produtos de seu metabolismo ou de materiais
construídos por eles (Costa Neto, 2000). (Tabela 01)
Segundo Costa Neto (2005), a utilização de animais com fins
medicinais é um fenômeno antigo e transcultural. Os remédios
indígenas são empregados de vários modos: sob a forma de bebida,
inalação, vapor, banho, defumação, esfregamento de pastas
417 Ir para o sumário >>

resinosas, de pós e de cinzas aplicados em partes do corpo (Cabixi,


1992).
Estudar os costumes e o modo de vida dos Pataxó foi um desafio a
ser cumprido, pois, estudar a cultura de um povo em particular é
muito difícil. As tradições dos índios pataxós são fascinantes! É com
muito respeito e amor que eles tratam à flora e fauna local. Como diz
muitos pataxós: “A natureza é nosso lar e os animais nossos
irmãos”.

Referências consultadas:

CARPANETO, G. M.; GERMI, F. P. The Mammals In The Zoological


Culture Of The Mbuti Pygmies In North-Eastern Zaire (*) I Mammiferi
Nella Cultura Zoologica Dei Pigmei Mbuti Nello Zaire Nord-Orientale
(*).Hystrix, (n.s.) l(1989): 1-83. Disponível em:
http://biocenosi.dipbsf.uninsubria.it/atit/PDF/Volume1(1989)/1(1989)_
1.pdf .Acesso em: 20 fev. 07.
CABIXI, D. M. As Tecnologias dos Povos Indígenas na Preservação
do Meio Ambiente. Disponível em:
http://paginas.terra.com.br/educacao/Ludimila/prog.htm Acesso em:
16 jul. 07
COSTA NETO, E. M. Conhecimento e usos tradicionais de recursos
faunísticos por uma comunidade afro-brasileira. Resultados
preliminares. Interciencia, diciembre, año/ vol.25 , numero 009.
Asociación Interciencia. Caracas, Venezuela, pp. 423-431, 2000.
COSTA NETO, E. M. 2005. Animal-based medicines: biological
prospection and the sustainable use of zootherapeutic resources.
Anais da Academia Brasileira de Ciências, 77 (1): 33-43.
COSTA NETO, E. M. Os moluscos na zooterapia: medicina
tradicional e importância clínico-farmacológica. Biotemas, 19 (3): 71-
78, setembro de 2006.
MENDES-ROCHA, F.; MIKICH, S.B.; BIANCONI, G.V.; PEDRO,
W.A. Mamíferos do Município de Fênix, Paraná, Brasil: etnozoologia
418 Ir para o sumário >>

e conservação. Revista Brasileira de Zoologia 22 (4): 991- 1002,


dezembro 2005.
VASQUEZ,L.A.A. ETNOZOOLOGIA DEL RESGUARDO INDÍGENA
DE CAÑAMOMO Y LOMAPRIETA: SUPÍA CALDAS. Manizales,
2001-08-30 (Rev. 2002-10-18). Disponível em :
http://lunazul.ucaldas.edu.co/downloads/Revista17_2.pdf acesso em:
20 fev. 07
Tabela 01. O uso de partes de animais na cura de doenças nas
aldeias indígenas do Índios Pataxó no Monte Pascoal, Bahia.
419 Ir para o sumário >>

Grupo Espécie Nome Parte Finalidade Modo de


Animal local usada uso

Aves Tinamus Macucu película descanso Comer a


solitarius da muela.
muela
Mamíferos Hydrochoerus Capivara osso alívio de Preparar
hydrochoeris dor na um
coluna pisado e
passar no
local

Agouti paca paca cabelo derrame Passar no


local

Agouti paca paca Fel retirar pau Passar no


ou espinhos local
do pé

Agouti paca paca Fel diabetes Preparar


um
"suco" e
beber

Agouti paca paca fel alívio de Passar no


dor local

Eupharactus tatu rabo parar de Faz um


sexcinctus beber "suco" e
bebe

Eupharactus tatu rabo dor de Passar o


sexcinctus ouvido rabo no
local

Tamandua tamanduá bucho descanso Comer o


tetradactyla bucho
420 Ir para o sumário >>


4.7. O PLANTIO DE EUCALIPTO PRODUÇÃO DE CELULOSE:
E A NOTAS SOBRE O

IMPACTO AMBIENTAL E SOCIAL ENTRE OS PATAXÓ MERIDIONAIS

José Luís Caetano da Silva


Cláudia Santana Santos

No Extremo Sul da Bahia a introdução da cultura do eucalipto vem


trazendo sérios riscos para os recursos hídricos, o solo, a fauna e a
flora locais, contribuindo também para a inviabilidade da agricultura
familiar na região, ocupando todas as terras agricultáveis, inclusive
em áreas que seriam destinadas a reforma agrária, terras indígenas
e no entorno de Unidades de Conservação com importantes
reservas de Mata Atlântica.
Concomitantemente as fábricas de celulose promovem um uso
abusivo de água potável, além de lançar resíduos nos rios da região.
Nesta comunicação se estará analisando o uso que este
empreendimento vem fazendo dos recursos do Extremo Sul e o
quanto este impacta o solo, a água, a fauna, a flora e o cotidiano das
comunidades tradicionais locais.
O paradigma ecológico será seguido a partir da matriz disciplinar das
ciências antropológicas e biológicas. Na antropologia a discussão
ecológica está presente de Bateson a Ingold (Velho, 2002), mas se
pode encontra-la de forma mais difusa vinculada as classificações e
representações primitivas (Durkheim/Mauss), as funções sociais
(Malinowski) e as estruturas políticas (Evans-Pritchard). Nas ciências
biológicas a ecologia é um dos quatro paradigmas através dos quais
se difunde o conhecimento científico nesta área, além de ter sido
escolhido como o paradigma norteador do ensino de ciências
421 Ir para o sumário >>

biológicas nos níveis Médio e Fundamental no Brasil (Brasil, 1998,


Weissman, 1998).
Os demais são os paradigmas: molecular, celular e evolutivo
(Weissman, 1998). Segundo Fritjof Capra (1987) uma visão
ecológica, ou, orgânica se impôs às ciências naturais após a ruptura
na própria física das concepções mecanicistas do universo.
A contigüidade e as sobreposições entre Unidades de Conservação
UCs e territórios ocupados e utilizados por comunidades tradicionais
têm gerado um acúmulo de debates sobre os direitos inerentes a
estas comunidades e o direito ambiental, envolvendo juristas,
cientistas sociais, ambientalistas, especialistas em meio-ambiente de
áreas diversas e lideranças das próprias comunidades tradicionais.
Toma-se aqui como suposto que se o paradigma ecológico foi
escolhido para a difusão de valores preservacionistas e
ambientalmente sustentáveis, entre a população brasileira ele deve
estar na base das relações entre a gestão de UCs e as comunidades
que lhes são contíguas ou sobrepostas. Isto implica, no caso do
eucalipto no Extremo Sul baiano, a proteção das UCs e territórios
das comunidades tradicionais de um complexo agro-exportador
lesivo aos recursos naturais e ao modo de vida das comunidades.

•O Impacto do Eucalipto e da Celulose Sobre os Recursos


Naturais no Extremo Sul/Ba
Neste tópico se estará tratando do impacto da introdução do
eucalipto sobre o solo, os recursos hídricos, a flora e a fauna do
Extremo Sul baiano. Para tal ele será contextualizado no quadro
nordestino de susceptibilidade a desertificação, o que torna mais
perigosa a introdução da monocultura de árvores de crescimento
rápido.
O solo e a desertificação
As áreas susceptíveis a desertificação no Brasil estão localizadas na
região Nordeste e no Norte de Minas Gerais (mapa 1) por
características geográficas da região, tal susceptibilidade pode
422 Ir para o sumário >>

recrudescer e mesmo ampliar seu nível de degradação por


inadequação dos sistemas produtivos e de manejo da terra (mapa
2). O desenvolvimento de atividades de combate à desertificação
deve levar em consideração estes dois níveis de ocorrência do
fenômeno que requerem ações de naturezas diferentes (MMA,
2003).
A Região Nordeste, em face das suas variadas condições
ambientais, apresenta um quadro bastante diversificado de recursos
naturais. De um total de 1.662.000 Km², cerca de 60% são de terras
semi-áridas e 40% de áreas úmidas costeiras, chapadas altas e pré-
amazônica maranhense. No que se refere aos recursos naturais do
semi-árido, cabe observar a fragilidade de seus ecossistemas
(Barreto, Silva, 2000).
O processo de desertificação se manifesta de duas maneiras
diferentes: a) difusa no território, abrangendo diferentes níveis de
degradação dos solos, da vegetação e dos recursos hídricos; b)
concentrada em pequenas porções do território, porém com intensa
degradação dos recursos da terra (MMA, 2003).
Os estudos disponíveis indicam que a área afetada de forma Muito
Grave é de 98.595 Km², 10% do semi-árido e as áreas afetadas de
forma Grave atingem 81.870 Km², 8% do território. Deve-se
acrescentar que as demais áreas sujeitas ao antropismo, 393.897
Km², sofrem degradação Moderada (MMA, 2003).
O Extremo Sul baiano possui um relevo plano e ondulado com um
clima quente e úmido, com 1 a 2 meses secos. A temperatura média
anual é entre 22 a 24ºC, e as temperaturas absolutas, máxima e
mínima, chegam a 38 e 8ºC, respectivamente. O solo varia entre
latossolo amarelo distrófico e vermelho-amarelo distrófico e a
pluviosidade anual, entre 1.500 e 1.750mm.
Por estar entre as áreas úmidas costeiras tal microrregião seria
pouco suscetível à desertificação. Tal susceptibilidade vem sendo
modificada pelo antropismo nas ações de madeireiros e carvoeiros
sobre a cobertura vegetal seguidas pela criação extensiva de gado.
423 Ir para o sumário >>

No Extremo Sul, como nas demais áreas úmidas costeiras do


Nordeste, são encontrados solos pouco profundos e de baixa
fertilidade. Percebe-se assim que o esgotamento do húmus e a
desertificação são possibilidades bastante plausíveis e que já se
verificam em áreas do Espírito Santo onde a monocultura do
eucalipto é já antiga.
Outro impacto direto sobre o solo se dá pelo uso intensivo de
agrotóxicos, fato
preocupante no entorno de proteção de Unidades de Conservação,
ou próximas a unidades de pequenos produtores familiares, pois,
com as chuvas, tais produtos podem contaminar o solo vizinho;
inviabilizando, por exemplo, experiências em agricultura familiar
orgânica.
Como reserva de terras agricultáveis na o Extremo Sul da Bahia não
poderia estar sendo usado para monocultura de árvores de
crescimento rápido, quando poderia estar produzindo alimentos para
garantir a segurança alimentar dos seus habitantes, especialmente
os que moram e trabalham no meio rural.

A. O uso dos recursos hídricos

Outra característica do Nordeste, além da susceptibilidade a


desertificação, é a insuficiência dos recursos hídricos em grande
parte da sua área. A bacia hidrográfica do Extremo Sul da Bahia
novamente representa uma exceção a regra por sediar partes de
rios perenes que representam recursos hídricos importantes. Estes
dependem da contribuição de inúmeros córregos e riachos e das
águas das chuvas que se infiltram pelo solo.
Já no plantio do eucalipto se inicia o uso dos recursos hídricos com
a irrigação e lavagem do maquinário de plantio e colheita que se
aproxima da mecanização plena. A contaminação do solo pelo uso
intensivo de agrotóxicos se transfere para córregos, riachos e rios,
passando pelos mangues costeiros e desaguando em bocas e
424 Ir para o sumário >>

barras da costa do Extremo Sul. Todas estas áreas, incluindo os


arrecifes costeiros são consideradas áreas essenciais para a
preservação da sustentabilidade ecológica local.
A árvore em si depende, para seu desenvolvimento acelerado de
quantidades de água que provocam o secamento do solo,
diminuindo os mananciais. Novamente aqui se coloca a
possibilidade de desertificação como resultado do plantio de árvores
de crescimento acelerado. A expansão da monocultura do eucalipto
para produção de celulose e carvão vegetal construiu um complexo
agroindustrial exportador, que ao longo das últimas quatro décadas
no Sudeste vem impactando os rios dessa região que foram
degradados pela contaminação por uso intensivo de agrotóxicos e
por um processo de secamento relacionado ao plantio em larga
escala, comprometendo a pesca e a qualidade e quantidade da água
potável. A empresa Aracruz Celulose desviou o Rio Doce para
garantir o consumo abusivo de 248.000 metros cúbicos diários,
inclusive gratuitos, das suas três fábricas de celulose (FASE, 2003).
A fabricação de celulose produz resíduos que lançados nos rios
contribuem para a contaminação do lençol freático. A mais recente
fábrica a ser inaugurada no Nordeste localiza-se no território do
município de Eunápolis, próximo a sede do município de Itapebi e
estará utilizando a água do Jequitinhonha, a água do Santo Antônio
será utilizada para abastecer a vila operária da fábrica e não estará
livre de riscos de poluição, já que a população em sua cabeceira,
junto à fábrica, deverá aumentar. Os efluentes do processamento da
celulose serão despejados no rio Jequitinhonha, pouco mais ao
norte, pois, o Santo Antônio não tem vazão suficiente para dar conta
dos dejetos, e o movimento ambientalista teme e denuncia que o
Jequitinhonha também não o tenha (Sampaio, 2003). A nova fábrica
será construída com um sistema próprio de geração de energia, que
a tornará auto-suficiente e possibilitará a venda da eletricidade
excedente. (Agência Brasil, 2003).
425 Ir para o sumário >>

Este não é o único impacto no rio Jequitinhonha. Um outro já está


em curso com a construção e funcionamento da Usina Hidrelétrica
de Itapebi. A licitação para a construção e exploração da Usina
Hidrelétrica de Itapebi, no Rio Jequitinhonha, foi vencida por um
consórcio formado pela Coelba e sua controladora, a Guaraniana,
cuja sociedade é formada pela Iberdrola Energia, Previ e Banco do
Brasil (Atlanticanews, 2003a). Alem de permitir a implantação de
indústrias de grande porte no extremo sul do estado, fornecerá para
as já existentes, especialmente indústrias de beneficiamento de
eucalipto e produção de celulose como a Veracel e a Bahia Sul
Celulose. Como vantagem para os demais consumidores a obra
também vai eliminar as quedas de energia elétrica na região
Ao todo, são 62km de superfície inundada, abrangendo parte dos
municípios de Itapebi, Itagimirim e Itarantim, na Bahia, e Salto da
Divisa, em Minas Gerais. Após enfrentar obstáculos, devido a
questões ambientais, a empresa chegou a um acordo com o
Ibama130, promotores públicos e os autores de uma ação civil
pública. Agora, a Itapebi espera apenas encher os reservatórios para
colocar a hidrelétrica em operação. Chegou-se a um parecer que
apesar do grande porte do empreendimento, a usina seria
considerada de baixo impacto ambiental. A área inundada que
2
chegará a 62km de superfície inundada, abrangendo parte dos
municípios de Itapebi, Itagimirim e Itarantim, na Bahia, e Salto da
Divisa, em Minas Gerais foi considerada baixa dentro dos padrões
do setor elétrico do país (Atlanticanews, 2003a, 2003b).
Evidentemente a comparação não deveria ser feita entre os km do
espelho da Usina e os espelhos de outras como Itaipu ou Tucurui
(que estão entre as maiores do mundo). Seu impacto deveria ser

130 Para conseguir a aprovação do projeto a empresa teve realizou 16 projetos ambientais com a aprovação dos órgãos reguladores e

providenciou a transferência de 80 famílias do município de Salto da Divisa (MG). Elas estão morando em um novo bairro construído com uma

infra-estrutura mais completa do que a antiga área ocupada (Atlanticanews, 2003b).


426 Ir para o sumário >>

medido dentro dos padrões de fluxo do Jequitinhonha. Há dúvidas


se o rio suportará a usina e a fábrica.

• A convivência da Mata Atlântica com as fazendas de Eucalipto

A Mata Atlântica, ultimamente, tem recebido especial atenção devido


a sua grande biodiversidde e ao seu acelerado grau de degradação.
A biodiversidade da Mata Atlântica se deve a fatores geográficos,
como uma extensão de 38º em latitude; às variações em altitude, ao
clima tropical e a um histórico de eventos evolutivos na região.
De acordo com o Decreto Federal 750/93, que rege a utilização dos
recursos naturais e o desmatamento da região, considera-se Mata
Atlântica as formações florestais e ecossistemas associados,
inseridos no domínio Mata Atlântica, com as respectivas
delimitações estabelecidas pelo Mapa de Vegetação do Brasil, IBGE
1988: Floresta Ombrófila Densa Atlântica, Floresta Ombrófila Mista,
Floresta Ombrófila Aberta, Floresta Estacional Semidecidual,
Floresta Estacional Decidual, manguezais, restingas, campos de
altitude, brejos interioranos e encraves florestais do Nordeste. O tipo
vegetacional dominante é a Floresta Ombrófila Densa, ocorrendo
também vegetação litorânea, como restinga e mangue.
As arvores de crescimento acelerado passam a concorrer com a
própria cobertura vegetal do Extremo Sul, só a construção da nova
fábrica da Veracel exigirá a ampliação das plantações financiadas
por esta empresa em trinta por cento. Tal ampliação, somada ao
crescimento exigido pelas outras fábricas ligadas a Aracruz e Bahia
Sul certamente atingirá o entorno das Unidades de Conservação da
região que possui as maiores áreas de Mata Atlântica, os
manguezais mais preservados em área de Mata Atlântica e as
restingas. Põe-se em risco com estas atividades importantes
reservas de floresta ombrófila densa, além de Rizophora que
abrigam, dentre outras, várias espécies das famílias orquidáceas e
bromeliáceas.
427 Ir para o sumário >>

O município de Prado possui o maior remanescente de Mata


Atlântica do Nordeste. A Lei Orgânica dispõe que “é dever do
Município preservar a faixa da mata Atlântica, permitindo o plantio de
maciços florestais, a exemplo de eucaliptos e pinheiros nas demais
regiões de seu entorno”. Note-se que até 1999 a Lei Orgânica
Municipal proibia o plantio destas árvores em função do território
municipal ser um enclave entre áreas de Mata Atlântica, mangues,
restingas e recifes. Atualmente as áreas de mata encontram-se, em
sua maior parte, no Parque Nacional do Descobrimento, em alguns
trechos pode ser encontrada vegetação secundária em regeneração.
No restante do Município, existe o predomínio da cobertura vegetal
formada por pastagens e o plantio comercial de eucalipto foi liberado
a partir da distorção da lei que passou a considerar tal ação
preservacionista, seguindo padrões ecológicos impostos pelos
programas ambientais da Veracel. Este plantio estende-se até a
proximidade do litoral como no Distrito de Cumuruxatiba, área que
deveria, segundo a mesma Lei Orgânica que estabelece o regime de
preservação permanente nas restingas na faixa de 300m, a partir da
preamar máxima (Weigand, 2003).
Só o projeto da Veracel no Extremo sul envolve uma área total de
terras de 147 mil hectares, sendo que apenas 70 mil hectares serão
cultivados com eucalipto. A empresa afirma que o restante será
destinado, em sua quase totalidade, à conservação e recuperação
131
de remanescentes de Mata Atlântica (Agecom, 2003) .

- A Fauna e o Eucalipto

O certo e que a ampliação da área plantada com eucalipto


modificará as condições para todas as formas de vida da região. O
impacto se inicia pela mirmecofauna com a proliferação das pragas
típicas do eucalipto, especialmente saúvas cortadeiras e

131A proposta do setor é ampliar suas plantações de 5 milhões de hectares para 11 milhões nos próximos 10 anos (FASE et al. 2003)
428 Ir para o sumário >>

desfolhadeiras do eucalipto (Oliveira et al., 1991, Zanuncio et al,


1991, Santana, Anjos, 1989, Santana, Couto, 1990). Apesar do
eufemismo da noção de “fomento florestal” o plantio do eucalipto
destina-se ao corte. Quando o eucalipto for colhido para onde irão
suas pragas?
A degradação no solo, nos recursos hídricos e na flora para
inviabilizar a vida de vertebrados e invertebrados nos rios e
mangues, como as comunidades pesqueiras e de marisqueiros que
são abundantes na região. Afetando também os ribeirões que
servem como bebedouros, impactando toda a fauna das áreas de
mata ao seu redor.
A colheita mecanizada coloca em risco pássaros que fazem seus
ninhos nos galhos das árvores de eucalipto, assim como pequenos
animais que possam estar entre os seus troncos. Todas as
plantações só são autorizadas após assinaturas de compromissos
acerca da coleta destes animais antes das ações de colheita, porém,
a fiscalização das áreas que produzem eucalipto no Extremo Sul é
difícil, tanto para o IBAMA, quanto para as secretarias de meio
ambiente dos municípios da região.
Assim se coloca em risco uma rica fauna local, onde se pode
encontrar muitas espécies de aves como o papagaio chauã, jandaias
e pica-paus vermelhos e mamíferos como a onça pintada, antas,
pacas, macaco-prego, raposas e veados. Como contrapartida a
Veracel empresa mantém funcionando um centro de triagem de
animais silvestres apreendidos pelo IBAMA, na maior área de
preservação privada da região e que segundo o site da empresa é
referência para o Programa Mata Atlântica,

- Os Impactos Sociais

Neste tópico se estará pensando os impactos sociais da


produção de eucalipto, especialmente sobre a agricultura familiar
de subsistência. Por fim se estará pensando as contrapartidas
429 Ir para o sumário >>

oferecidas pelas empresas de celulose e a validade delas


quando comparadas aos prejuízos por elas causados.

* Agricultura familiar

O impacto desta produção sobre as terras agricultáveis, recursos


hídricos, fauna e flora vem provocando a inviabilidade da agricultura
familiar. As comunidades tradicionais campesinas Pataxó e
Tupinambá, sem-terra e pescadores estão tendo seus modos de
vida inviabilizados pela ação deste complexo agro-exportador que
mantém a inadequação do uso dos recursos naturais no mesmo
paradigma de desenvolvimento hegemônico nos quinhentos anos de
exploração do Brasil. É sempre uma monocultura produtora de
desertos que deixa para traz áreas destruídas em busca de novos
espaços para explorar, imagem usada por Euclides da Cunha para
descrever os sertões e válida ainda no século XXI em meio aos
discursos ecopacifistas.
Na região da Barra do Cahy, Ponto Zero do Descobrimento do Brasil
segundo Decreto Presidencial de FHC e terra Pataxó segundo eles
próprios, a empresa Veracel planta eucaliptos, através do fomento
florestal, prática de aluguel de áreas de terceiros para plantar
eucalipto. A Frente de Resistência e Luta Pataxó calcula em uns
trinta mil hectares de terra que eles reivindicam e que atualmente
encontra-se coberto pelo eucalipto. As terras encontram-se em
estudo e a lei não permite que plantios de eucaliptos sejam feitos a
menos de dez quilômetros da terra indígena ou área de preservação.
Mas essa lei não é respeitada. “Será que o eucalipto vai invadir a
nossa região? Será que os pequenos agricultores não vão resistir?
Será que as autoridades ambientais e indigenistas não vão tomar
posição em nossa defesa?” Na aldeia Guaxuma, parte leste da área,
que está nas mãos da empresa, os índios relatam que os homens da
Veracel estão destruindo plantas nativas, coqueirais, mudando o
relevo da terra e atingindo as fontes de água. Em Barra Velha,
430 Ir para o sumário >>

próxima à praia, os índios embargaram voluntariamente alguns


plantios, mas não resistem às pressões da empresa que mantém o
seu ritmo, semeando eucalipto e veneno na terra. Frutos destas
ações, muitos rios e lagos foram atingidos pelo veneno aplicado pela
Veracel, matando peixes de diversos tipos (FRLP 2003).
Em Prado, último município da região a se introduzir o eucalipto, em
cinco anos ele ocasionou que grande parte do contingente
populacional migrasse para a zona urbana, devido à ação das
grandes empresas de celulose adquirindo ou “fomentando” o
reflorestamento de áreas com plantio de eucalipto. (AST, 2002).
Esta análise se confirmou durante Seminário para discussões sobre
o Plano Diretor Urbano PDU de Prado quando o plantio de eucalipto
foi citado como um dos problemas centrais, especialmente pela
migração do campo para a cidade. O eucalipto e as fábricas de
celulose foram vistas por alguns partícipes como uma ameaça
externa ao município que agora o atingia. Parte dos grupos, inclusive
com representantes de ONGs ambientalistas participando, tratavam
o eucalipto como algo inexorável, uma questão de regulação e
fiscalização.
Um dos atos do MST nas recentes ocupações de terra foi, em Porto
Seguro o corte de 100 pés de eucalipto de uma das fazendas da
Veracel. No lugar das árvores foi plantado feijão. O simbolismo deste
ato sintetiza, em alguma medida, a oposição exclusiva entre o
complexo agro-exportador e a agricultura de subsistência.

* Eucalipto e Unidades de Conservação

A sustentabilidade das plantações de eucalipto no Extremo Sul vem


sendo objeto de intensas discussões que envolvem agentes e
instituições municipais, regionais, estaduais, nacionais e
internacionais.
Na Carta de Porto Seguro (FASE et al., 2003) representantes de
ONGs e movimentos sociais repudiaram o plantio comercial de
431 Ir para o sumário >>

eucalipto, os investimentos para produção de celulose e mesmo os


pretensos Mecanismos de Desenvolvimento Limpo MDLs. Todas
estas práticas desviam investimentos e ocupam terras que poderiam
estar sendo utilizadas pela agricultura familiar. Além dos riscos que
causam aos remanescentes de Mata Atlântica da região
Em Prado, ainda em 2003 um Seminário sobre Meio Ambiente
contou com a participação de diversas entidades ambientais
preocupadas com a situação do Extremo Sul baiano. Suas principais
conclusões dizem respeito à ampliação das áreas do PND e do
Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal englobando áreas de
mata atlântica no seu entorno132 que hoje fazem parte de
propriedades privadas e encontram-se ameaçadas, especialmente
pelas queimadas. Apontou-se a necessidade de um maior controle
sobre as plantações de eucalipto no município. Apesar de ter
reiterado proposições que podem ser encontradas na já citada Carta
de Porto Seguro o Seminário de Prado marcou posições menos
radicais que as da Carta no que diz respeito ao eucalipto,
especialmente em Prado e na proximidade de outras áreas de Mata
Atlântica como o PNHMP e o Parque Nacional Pau Brasil. Nela não
se fala em controle se explicita a necessidade de paralisação do
plantio.
O enfrentamento do complexo agro-exportador do eucalipto em
sua relação com o entorno de Unidades de Conservação
preenchido por fazendas de eucalipto coloca a questão de se
uma cerca de arame pode separar uma área de preservação de
outra explorada intensivamente.

* As Contrapartidas

132 Novamente aqui o padrão é o do projeto Corredores Ecológicos da Veracel, prática questionada em outros fóruns pelo seu vínculo ao

fomento florestal com árvores de rápido crescimento.


432 Ir para o sumário >>

A contrapartida destes das empresas, beneficiadas por


investimentos do BNDES, vem como investimentos, financiados
também pelo BNDES, em setores do social, onde o Estado não se
faz presente; cumprindo mesmo o papel que caberia ao Estado o
que termina por facilitar o estabelecimento de relações clientelistas
entre estas empresas setores da sociedade civil organizada e do
poder público da região. O benefício representado pelo apoio destas
empresas a ONGs de fachada, ou, a ações localizadas do poder
público é bem menor que os lucros que auferem. E certamente bem
menor, que o prejuízo representado pela imposição dos interesses
delas a sociedade como um todo.
A puerilidade destes projetos pode ser vista na parceria da
VERACEL com a Secretaria de Educação e Cultura de Itapebi, cuja
Sede fica próxima a Fábrica que esta sendo construída. O Projeto
Sementinha atende crianças de 4 a 6 anos e o Ser Criança para
aquelas de 7 a 14. Afirma-se que o objetivo do projeto é melhorar a
formação social das crianças atendendo-as em turno oposto a pré-
escola ou ao Fundamental. O atendimento é na rua e a merenda é
feita cada dia na casa de uma das mães, numa tentativa de integrar
a família a sociedade. Os critérios de seleção das crianças para
participar do projeto são as condições sociais da família, o desejo da
mesma em que seu filho participe e o desempenho escolar fraco por
falta de suporte na família. Segundo informações do Secretário a
procura e grande e a fila de famílias querendo participar do projeto.
A contrapartida da VERACEL é apenas uma psicóloga que ela
mantém atuando no projeto
As condições de miséria em que vive a população municipal são
evidentes, basta ver o número de unidades sanitárias construídas
recentemente 120, mais 300 unidades foram requisitadas para todo
o município, podendo este número ser ampliado para 1000, num
município com pouco mais de dez mil habitantes 1000 unidades
sanitárias significam 1000 famílias vivendo atualmente sem
banheiro. Além disso, o Município conta com 2150 famílias que
433 Ir para o sumário >>

cumprem requisitos dos programas bolsa escola e alimentação. É


um número alto de famílias abaixo da renda mínima o que torna o
IDH do município baixíssimo 0,3.
A vinda de trabalhadores para a construção da Usina hidrelétrica e
para a fábrica tem como ponto mais negativo, na visão da assistente
social o crescimento da prostituição. O promotor público tem feito
rondas nas pousadas e boates, para coibir esta pratica, porém a
situação ainda é crítica, comenta-se inclusive de uma adolescente
de 12 anos que agencia outras menores em encontros para se
prostituírem.
A principal justificativa para os investimentos governamentais na
ordem de mais de 500 milhões de reais, além do peso favorável na
balança comercial que esta fábrica representará com suas 900 mil
toneladas de celulose fibra curta, que serão exportadas anualmente,
é a possibilidade geradora de empregos. Os números tratam de
2000 empregos diretos e entre 8 a 10 mil indiretos.
O plantio do eucalipto, em si, não tem trazido empregabilidade para
as regiões onde é implementado. Num grupo focal com diversos
cidadãos de um bairro popular de Prado. Obteve-se a descrição do
funcionamento das máquinas que plantam, colhem, beneficiam
(cortam galhos e folhas, os trituram misturando ao solo e “toreiam”
os troncos em pedaços de cinco metros), além de carregarem os
caminhões que transportarão as toras do eucalipto. O espanto
demonstrado pelo lenhador ante as máquinas é da mesma ordem
que aquele causado pelo machado de metal quando introduzido
entre os povos indígenas isolados no Brasil. As máquinas
substituem com vantagens o trabalho de 200 trabalhadores. Com a
crescente mecanização é de se duvidar da quantidade de empregos
gerados pelo eucalipto. Mesmo os operadores das máquinas
dificilmente serão encontrados entre a população local. Exigindo
mão-de-obra especializada
No entanto os Plano Diretores Urbanos que vem sendo elaborados
nos municípios do Extremo Sul tem considerado como uma
434 Ir para o sumário >>

importante atividade econômica importante e estratégica o


reflorestamento das áreas de pastagem com baixa produtividade.
Pensa-se tal prática como uma ação que vem diversificando a base
econômica e a margem de emprego rural, através da prática do
plantio de mudas de eucalipto, manejo nos primeiros anos e corte.
Ainda segundo exata visão o município se beneficia indiretamente
com a implantação das industriais na Região (Bahia Sul Celulose,
Aracruz Celulose, Veracel), uma vez que o fluxo de renda gerado
por estas indústrias se rebateria na demanda de mão-de-obra
regional, na geração de renda e demandas de serviços em geral.
Ademais, são atividades complementares à base produtiva da
Região (Rose, 2003). Apesar de tais análises este rebatimento na
mão-de-obra local não vem se confirmando.
Outra prática tem sido considerar investimentos das empresas em
estradas que ajudarão a escoar a sua produção como uma
contrapartida. Apesar de que as estradas construídas não
compensam nem o número de estradas que são destruídas por
caminhões excessivamente carregados de troncos de eucalipto, o
que atinge a maioria das estradas da região.

• Considerações Finais

Pensa-se que a posição mais acertada é a assumida pela Carta de


Porto Seguro que afirma existirem contradições entre os
investimentos no complexo agroindustrial do eucalipto e da celulose
e programas governamentais como o Fome Zero do Governo
Federal. De um lado, volumosos investimentos continuam
privilegiando uma monocultura que é destinada à produção para
exportação aos países ricos, gerando pouquíssimos empregos,
legitimando o latifúndio, impedindo a reforma agrária e aumentando
mais ainda o êxodo rural e o desespero de milhares de famílias que
ficarão sem terra e sem sustento. De outro lado, o governo
apresenta um Programa Fome Zero que busca estimular a produção
435 Ir para o sumário >>

de alimentos, enquanto as melhores terras agricultáveis continuam


sendo ocupadas por plantações de árvores. As metas da política
macroeconômica não podem ser obtidas com o sacrifício das
condições de vida, saúde, trabalho e modos de vida das
comunidades tradicionais que habitam o Extremo Sul da Bahia.
É preciso que se discuta o presente modelo, propondo e
desenvolvendo experiências novas no campo da produção,
valorizando a biodiversidade e os conhecimentos locais, construindo
assim uma outra relação com o ambiente.

Referências

AGECOM – Agencia de Comunicação. Últimas Noticias. Disponível


no site :
<<http://www.bahiainvest.com.br/port/noticias/ultimas.asp?cd_noticia
=217>> 2003. Consultado em 2004
ASSIS, Dani, ROCHA, Daniella. Rio seco, discurso vazio. Revista
Conexão ano II nº11 julho de 2001 Fundaçao Joaquim Nabuco
AST. Proposta Técnica para o Plano Diretor Urbano de Prado.
2002
______. Cenário Preliminar PDU Prado 2003.
ATLANTICANEWS. Grupo Guaraniana vai inaugurar oficialmente
a Usina Hidrelétrica de Itapebi. Disponível no site
<<http://www.atlanticanews.com.br>>. 2003. Acesso em 2004.
______. Itapebi: hidrelétrica entra em operação. Disponível no
site <<http://www.atlanticanews.com.br>>. 2003. Acesso em 2004.
BARRETO, Fernando, SILVA, Rodrigues. Recursos naturais do
nordeste brasileiro. Brasília: EMBRAPA. Disponível no site <<
http://www.embrapa.br:8080/aplic/rumos.nsf>>, 2000, acesso em
2003.
436 Ir para o sumário >>

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros


curriculares nacionais: Ciências Naturais. Brasília: MEC/ SEF,
1998, 138 p.
Frente de Resistência e Luta Pataxó. Frente de Resistência
denuncia: “Veracel e Aracruz Celulose são invasoras de terra Pataxó
no extremo sul da Bahia” Monte Pascoal (BA), 26 de maio de 2003.
Fundação das Assistências Sociais Eclesiásticas – FASE et alli.
Carta de Porto Seguro. 2003.
Ministério do Meio Ambiente – MMA, 2003. A Desertificação no
Brasil. Brasiília: disponível no site
<<http://www.mma.gov.br/port/redesert/desertbr.html>>. Acesso em
2003.
OLIVEIRA, M.A. de et al. Desenvolvimento inicial de sauveiros de
Atta sexdens rubropilosa Forel, 1908 (Hymenoptera, Formicidae) em
laboratórios e no campo. Revista Arvore.Vicosa, v.15, n.2, p.189-
98, maio/ago.1991
SAMPAIO, José Augusto. Efeitos da fábrica nova da Veracel e da
ampliação em 30% da área plantada com eucalipto no Extremo
Sul da Bahia para as comunidades indígenas locais. Salvador: e-
mail enviado pela rede da Associação Nacional de Ação Indigenista
– ANAIND <<anaind@yahoogrupos.com.br>>. 2004
SANTANA, D.L.Q.; ANJOS, N. dos. Resistencia de Eucalyptus spp.
(Myrtaceae) a Atta sexdens rubropilosa e Atta laevigata
(Hymenoptera: Formicidae). Revista Arvore. Vicosa, v.13, n.2,
p.174-81, jul./dez.1989
SANTANA, D.L.Q.; COUTO, L. Resistencia intra-especifica de
eucaliptos a formigas-cortadeiras. Boletim de Pesquisa Florestal.
Curitiba, n.20, p.13-21, jun.1990.
Vera Maria Weigand Campo Temático: Político-Jurídico-Institucional.
Complementação do Cenário Preliminar/Inventário e Análise de
Documentos/ Levantamentos Impressionistas
437 Ir para o sumário >>

VERACEL. Estação Veracruz. Disponível no site:


<<http://www.veracel.com.br/programa_ambiental/programa_ambien
tal.htm>>2003. Consultado em 2004
Velho, Otavio Guilherme. O paradigma Ecológico de Bateson a
Ingold. Mana estudos em Antropologia Social, 8/1. 2002.
WEISSMANN, Hilda. Didática das ciências naturais: contribuições
e reflexões/ organizado por Hilda Weissmann; trad . Affonso Neves –
Porto Alegre: ArtMed, 1998.
ZANUNCIO, J.C. et al. Aspectos biológicos de Blera varana
(Lepidoptera: Notodontidae), desfolhador de eucalipto. Anais da
Sociedade Entomologica do Brasil. Vicosa, v.20, n.1, p.35-43, 1991
438 Ir para o sumário >>


5 EXPRESSIVIDADE PATAXÓ MERIDIONAL

133
5.1. A Língua dos Patachos

Chestmír Loukotka

Entre as línguas indígenas do território brasileiro, ao norte do


Rio de Janeiro, a da tribo Patacho é a menos conhecida. Enquanto
em relação às outras, extintas ou ainda existentes naquelas bandas
temos à disposição duas ou mais listas de palavras, se bem que
muitas vezes curtas, da dos Patachos temos apenas uma. O fato é
tanto mais extraordinário quanto não se ignora que mais de uma vez
entraram os Patachos em contato com os conquistadores e os
colonos brancos. Três viajantes europeus tiveram com eles relações
amistosas, donde a possibilidade de coligirem informações sobre a
sua vida e língua.
O príncipe Maximiliano Wied de Neuwied encontrou-se com
um grupo de Patachos na Vila do Prado (5a t. I. p. 284-287, 5b t. II p.
27-30), onde haviam chegado esses primitivos, vindos das margens
do rio Sucurucú, para negociar com os brancos. Outros grupos
viviam, então, também ao redor de Alcobaça, Comechatiba e
Trancoso. Martius, conhecido e célebre explorador alemão, os
localizou ao pé dos mananciais dos rios de Porto Seguro, rio
Sucurucú, e entre rio do Prado e Rio das Contas (3, t. I. p. 309)
Douville (4. p. 284-286) entrou em contato com eles no rio das
Contas. Foi o único a presentear-nos com vários dados particulares
sobre a vida deles. Infelizmente as notas que deixou não são
133 Publicado originalmente na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo em 1936.
439 Ir para o sumário >>

completas, faltando principalmente um grande vocabulário da língua


Patacho, composto por ele.
Resta-nos, pois, um único documento sobre a língua dos
Patachos, um curto índice de noventa palavras, editado pelo príncipe
de Wied (5a t. II. p. 319, 5b, t. III. P. 170-171, 5c, p. 320 321) e que
foi depois mais ou menos bem copiado pelos outros viajantes e
lingüistas. Quero referir-me sobretudo ao vocabulário impresso em
apêndice ao livro de Guimarães (1, apêndice p. 20-21) o qual esta
cheio desses erros e é evidentemente copiado (e muito mal copiado)
do vocabulário de Wied. Martius, na sua conhecida obra sobre as
línguas brasileiras (3, t. II. p. 172-173) imprime também uma parte
(60 palavras) do vocabulário de Wied. É quase porem que ele
organizou um vocabulário próprio, o qual, infelizmente, por razões
desconhecidas não foi editado e se perdeu, provavelmente. No
vocabulário impresso em sua obra estão acrescentadas somente
duas palavras que não existem no vocabulário de Wied. Em
conseqüência, nossos conhecimentos dessa língua são muito
pobres. O número total de palavras que temos à nossa disposição
atinge 95: 90 palavras colhidas por Wied, 2 por Martius e 3 obtidas
através de uma análise científica. Com toda probabilidade a tribo e a
língua dos Patachos já se acham extintas. Meu amigo brasileiro,
Prof. José Oiticica, sustenta, em verdade, que em certas regiões do
Espírito Santo vivem ainda índios chamados Patachos, mas essa
informação não foi comprovada. Carece especialmente de uma
exata indicação do lugar. Mas, admitindo-se que vivam realmente
nessas regiões alguns Patachos, será, talvez, inteiramente
impossível obter qualquer material lingüístico deles. Provavelmente
estarão desnacionalizados.
É bem compreensível, portanto, que com material assim
limitado, não seja possível conseguir informações sobre a gramática
da língua dos Patachos. Não dispomos sequer de uma única frase
completa e as palavras, por mais compreensíveis que sejam no
vocabulário, não oferecem a possibilidade duma análise gramatical.
440 Ir para o sumário >>

Muitas vezes o prefixo nio significa “meu”, mas isso não é certo. O
sentido da partícula nhip, niip é variável e pode significar “grande”.
No vocabulário abaixo figuram todas as palavras até agora
conhecidas da língua dos Patachos. Na medida do possível foram
incluídas comparações com palavras análogas de outros idiomas
sul-americanos. A ortografia das palavras indígenas é a checa,
adotada, com algumas modificações pelo “Instituto d’Etnologie de
Paris”.

Português Pataso Outros


idiomas sul-
americanos
água tiäng Masacará:
tzyin
Monoso:
tiaíne
Koropo: tein
Catino: tia
aldeia kanan-patasi muitas-gentes
amigo itioy Masacará:
ciaüu

anta amaxü Malali:


amayö
Capokura:
ümui
Kitemoka:
imuhi
441 Ir para o sumário >>

anzol kutiam Mongoyo:


kediahaie
arco poitang
arvore mnio-mpti-kayo;
raiz: ip Boróro: ipo
Sipaya: ipá
Kuruaya: ib
Maué: imuhi
Arikém: éba
assoprar ekepoho Botocudo:
akú
barriga etö Karaho: itu
Kayapó: itu
Kóto: ötabwi
Aponezicran:
gitú
beijaflor peté-kéton (erro: talvez
signifique: dedo mínimo)

boi yuktan Sikriabá:


Kupta-kú
bom nomaisom (isso é bom)
braço añip-katon
brilhar nion-ñiciná
cabaça totsá Koropó:
tucay
Camikuro:
dzodli
Muiname:
doto
cabeça atpatoy Maconi:
442 Ir para o sumário >>

epotoi
Monoso: toi
Koropó: pitáo
cabelo epotoy
cama mip-cap
canoa mib-koy
cantar Sumniatá

cão kokö Muiname:


höku
Uitoto: höko
Okáina: óko
carne uniin Mekubengok
rä: iñi
Krenzé: iní
Krao: in
Simaku: eniú
cavalo amasep (=anta)
colo May

comer ok-nike-nag
raiz: ik Iate: di-iká
Masubi: iko
Guama: eikia
Caima: ake
Makiritaré:
eke
Kadurukré:
ikim
443 Ir para o sumário >>

Enimaga: iki
Guaná: ni-ige
Karif: ná-iga
Kumanagota:
ako
Koian: águia
corno nio-cokapcoi
correr dopa-kanei Botocudo:
anei
coxa cakep-queton Iaté: iso-
kotane
curto nioñam-keton
dedo nip-ketó
dedo polegar niip-ketó (=dedo grande)
deus niamissum
doente akcopetam Camikuro:
ixcapián
dormir somnay-mohon Masakali:
monon
espingarda kehehui Mongoyo:
kiakó
espinho mihiam
faca amanay Yaruro: ku-
ananiá
Feder Niung-hasingua

Fígado Akicp-kanay
Filha Nakta-nanian Koropó: ektó-
bom
Filho Nio-akcum Uro: uksa
Flexa Pohoy Mura:
apoahái
444 Ir para o sumário >>

Pirabá:
apoaháy
Guanibo:
puya
Huari: pái
Omurana:
pai
Piaroá: poi
Fogo Köa Botocudo: ké
Monoso: kö
Makoni: kö
Savante: kö
Piokcbzé: kó
Krao: kó
Masakali: kó
Karaho: kó
Usikrin: kõã
Kaposo: ka
Cangena:
heu
Muiname:
köxögai
Bora:
köxögua
Mekubengok
rä: kuö
Frio Nupca-aptangmang Opaie: heco-
áta

Galinha Cuktakako Makasali:


445 Ir para o sumário >>

tsukakahan
Makoni:
tiukakan
Malali:
sukaka
Gente Patasi
Grande Niip, ñip, nioketoiná
Graxa Tomaisom Makasali:
tomanin
= fome
Homem Nio-naktim Tora: nakón
Pozitxa:
nagá
Inimigo Nio-naikipepá
Irmã Ehö Trumai:
axeat
Irmão Eketãnoy Koropo:
esatai
Opaie: eg-
ñdn = irmão
mais velho
Isto é bom Nomaison
Isto não é bom Mayogená
Lançar Cahá
Longo Mip-toy Kaingán: téie
Aweikoma:
téie
Machado kaxö Ikito: kaxí
Záparo: káxic
Muiname:
kö-gaxe
Mura: taxi
446 Ir para o sumário >>

Koropó:
kifuing
Mãe Atön Kandosi:
atáata
Camakoko:
otáie
Opaie: ci-ó-
téye
Piokobzé:
atõn = irmã
Mandioca Kchom Makcni: koon
Kaposo: kón
Malali: kuniä
Koropó: kón
Mayoruna:
kono
Sabela: kána
Tariána: kani
Wapisána:
kania
(todos ex
raix: kana =
milho em
línguas
Arawak)
Menino Cauaum
Meu Nio Kamakan:
uñio = eu
tenho
Milho Pascon Kaingán: pisi
= milho
moído
447 Ir para o sumário >>

Monte Eñetopne
Morder Kaag-caha Apinazé:
kcóuntha
Morrer Nokcoom Zeikó: non-
eró
Muito Kanan
Não Tapetapokpay
Nariz Insikap
Negro Tomeninñá
Noite Temeniey-petam Coroados:
tamari-poñan
Savante:
toman-mara
Olho Anguá Casakali:
ingué
Monoso:
íngua
Awelkoma:
akaná-ma
Pioxe:
nyákoa
Kóto: ñakoa
Yupúa:
yãkõá
Ovo Petetiöng
Paciência Niaistó
Paca capá Boróc: apo
Pedro Mikay
Peito Eköp Krâo: ikó,
hikó
Kayapó: i-kó
= mamma
448 Ir para o sumário >>

Kradaho: iko
= mamma
Mekubengikr
ã: iko =
mamma
Peixe Maham Makasali:
maam
Makoni: mam
Omurana:
mámá
Matanawí:
mami
Bribri: má
Pena Potoitan Makoni:
poteñenang
Pequeno Kenet-ketó
(v. dedo, beija-flor.
Erro sign. “dedo mínimo”)

Perna Pata Makoni: ing-


patá = pié
Makasali:
patá = pié
Kaposo: pata
= pié
Kumanaso:
id-patá = pié
Passe: se-
pate = pié
449 Ir para o sumário >>

Remkokame
nkran: patä =
pié
Guahibo:
petauto =
perna
Pintar Noytaneo

Porco Saöm Malali:


yauem
Preguiça Ñeöy
Preguiçosos Noktiok-petam
Rã Mauá
Rio Keketá
Sangue Enghöm Opaie: e-xé
Sim Hã Makcni: he
Malali: hoó
Iaté: an-han
Piaroa: áha
Guahibo: xáh
Kandosi: a
Opaie: ehé
Kaingán: há
Sol Maycn Borun:
manué
Cinantko:
mañui
Terra Aham Masakali:
ahan-ham
Makoni: aam
Kaposo: aam
Malali: am
450 Ir para o sumário >>

Um Apetiönam Makoni:
epoxanan
Unha Nion-menã
Velho Hitap
Venha! Nano Botocudo:
nin
Vermelho eoató Ñambikwára:
ñangan

É evidente o seguinte parentesco:

as palavras da língua Makoni são incluídas 11 vezes


“ “ “ “ Masakali “ “ 8 “
“ “ “ “ Koropó “ “ 7 “
“ “ “ “ Malali “ “ 6 “
“ “ “ “ Opaie “ “ 5 “
“ “ “ “ Monosco “ “ 4 “
“ “ “ “ Kaposo “ “ 4 “
“ “ “ “ Botocudo “ “ 4 “
“ “ “ “ Iaté “ “ 3 “
“ “ “ “ Kaingán “ “ 3 “
“ “ “ “ Guahibo “ “ 3 “
“ “ “ “ Krao “ “ 3 “
“ “ “ “ Mekubengokrã “ “ 3 “ et
c.

Na língua dos Patachos vêm-se incluídas as palavras das


línguas da família:

Masakali : 16 vezes
Zé : 10 “
Coroado : 8 “
451 Ir para o sumário >>

Botocudo : 6 “
Kamakan : 5 “
Kaingán : 5 “
Opaie : 5 “
Bora : 4 “
Iaté : 3 “
Mura : 3 “
Aruak : 3 “
(Camikuro)
Guahibo : 3 “
Copokura : 2 “
Boróro : 2 “
Tukano : 2 “
Omurana : 2 “
Piárca : 2 “
Kandosi : 2 “
Cibca : 2 “ etc.

Donde a classificação final, segundo as regras, estabelecidas


na minha obra “Classificación de las lenguas sudamericanas” (2, p.
4):
A língua Pataso forma um grupo independente das línguas
sul-americanas, mas com vestígios de Masakali e Zé.

Referências

GUIMARÃES, JOÃO JOAQUIM DA SILVA. Dicionário da língua ge-


ral dos Índios do Brasil, reimpresso e aumentado com diversos voca-
bulários. Baía 1859.
LOUKOTKA, CHESTMÍR. Classificación de las lenguas sudamerica-
nas. Praha 1935.
452 Ir para o sumário >>

MARITUS, DR. CARL FRIEDR. PHILL, VON. Beiträge zur


Ethnographie Amerikas, zumal Brasiliens, Leipzig 1867.
METRAUX, DR. ALFRED. Les Indiens Kamakan, Pataso et Kutaso
d’asprès le journal de route inédit de Pexplorateur français J. B. Dou-
ville, en Revista del instituto de etnologia, t. I. p. 239-294. tucumán
1930.
WIED DE NEUWIED, MAXIMILIAN, PRINZ VON, Reise nach
Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817 en: Museum der neuesten ind
interessantesten Reisebeschreibungen, Band 7 bis 9. Wien 1825-
1826.
WIED DE NEUWIED, MAXIMILIAN, PRINZ VON, Voyage au Brésil
dans les années 1815-1817, traduit de l’allemand par J. B. Eyriés.
Paris 1822.


453 Ir para o sumário >>

5.2 FAZER A FLECHA CHEGAR AO CÉU NOVAMENTE: OS PATAXÓ NO EXTREMO


134
SUL DA BAHIA

Bernhard F. Bierbaum

"Na época os índios andavam de lá pra cá: foram da


mata pela praia e da praia pela mata. Sempre andando. Aí
aconteceu um dia, que um índio atirou uma flecha de lá do
Monte Pascoal ao céu. Foi lá pra cima. Caiu perto do mar.
Todos os índios foram pra lá, criando a aldeia. E ainda hoje
tem o céu na aldeia: Tem um lugar lá, chamado céu.”

Essa parte da mitologia Pataxó refere-se a um dos momentos


decisivos de sua história: o estabelecimento da aldeia de Barra
Velha, “a mãe de todas as aldeias”. Hoje os Pataxó enfrentam novos
perigos. Precisam tomar decisões importantes sobre seu futuro;
outro momento decisivo da sua história.
Só que hoje a flecha do grupo já não chega mais perto do céu
(a não ser que alguém leve uma peça de artesanato no avião). A
flecha é feita de pau de coco, que os índios compram nas fazendas,
decoram com penas de galinha em cores da moda e vendem ao
turista. As flechas hoje "caem" especialmente nas zonas residenciais
das metrópoles nacionais e internacionais.
Referindo-se a uma análise simbólica do mito, hoje também há
uma falta de índios que consigam relacionar a sua flecha com o céu.
Será que os Pataxó perderam já toda força para poder sair do
mundo "profano"? Ainda existe um futuro de independência e auto-
valorização? Um futuro humano?
Antes de discutir as chances de um futuro é necessário que se
conheça a sua história e a situação atual em que os Pataxó
meridionais vivem.
134 Resumo em português da dissertação defendida em 1989 “Der lauf des krebses: Verãnderungen in lebensweise und Orientarung der Pataxó

Brasiliens. München: Universitãt München


454 Ir para o sumário >>

Nos dados seguintes refiro-me principalmente à minha


pesquisa de campo, feita entre Dezembro 1988 e Abril 1989.
Pesquisas e publicações de outros etnólogos (principalmente as de
Pedro Agostinho, Maria Rosário de Carvalho e também Omar da
Rocha Jr.) contribuem para uma análise mais profunda.

• História

Já mencionados em 1557 (Carvalho, 1977:414) e 1662


(Vasconcellos, 1666:55), os primeiros relatos históricos que
informavam sobre a maneira de viver do grupo datam das primeiras
décadas século XIX, quando três europeus passaram em suas
expedições pela então capitânia de Porto Seguro. O primeiro deles
foi o Wilhelm C. Feldner, engenheiro civi1, que encontra no interior
de Prado com um grupo de Maxacali em 1813 (seus relatos ainda
não foram mencionados na literatura etnográfica da tribo). Ele
consegue obter dados através de informantes Maxacali. Eles
relatam a comunicação dos Pataxó através de "cartas" que tratam
dos seus ritos de enterramento, da sua maneira de viver. Também
"expressam muito medo através destes índios hostis”. (Feldner,
1828, 2:121). Três anos mais tarde, quando o Príncipe
Maximiliam de Wied encontra os Pataxó, este grupo já mantinha
alianças com os próprios Maxacali. Da descrição de Wied pode-se
deduzir a situação de contato do grupo: conflitos nas áreas de alta
expansão econômica e demográfica, também nas zonas de
destruição ecológica. Contatos mais freqüentes e mais pacíficos
onde o colonialismo é menos forte (e onde a geografia física é
menos favorável para exploração) (Wied, 1821-22:285-287f;
Bierbaum, 1989:31-41). Finalmente o viajante Pohl descreve alguns
elementos da mitologia Pataxó em 1817-21.
Nos documentos dos europeus já é ostentável a ameaça à vida
dos grupos indígenas da região com a colonização do extremo sul
da Bahia. É provável que em 1861 os índios, já aculturados, tenham
455 Ir para o sumário >>

sido mandados pelo governo local para uma área de pouco interesse
ao colonizador da época, o sítio de Barra Velha (Agostinho 1974,
Carvalho 1976). Esquecidos, estes índios teriam pouquíssimos
contatos com o mundo durante quase um século. Em 1939, quando
um piloto aterriza na área e se depara com os índios tem um choque
ao ver que "estes índios sujos e abandonados nem conhecem a
bandeira nacional." (Castro 1940: 55f). Um ano mais tarde seria
criado o Parque Nacional de Monte Pascoal (PNMP), situado em
território indígena, sem a consulta dos próprios índios. Em 1951,
com o “Fogo”, os Pataxó de Barra Velha entram em sua última fase
de contato interétnico: forças estaduais invadem a área, matando,
violentando, enfim incendiando as casas da aldeia. (As "razões" não
precisam ser elaboradas, pois não existe razão para um ato tão
violento.) Dos que conseguiram fugir, alguns voltariam, outros
dispersariam-se pelas fazendas ou povoados da região, marcando
assim a perda de coesão do grupo e o começo de integração e
aculturação forçada. (Nesse contexto verdadeiros eufemismos). Isso
é só o começo dos conflitos com o PNMP. Sem terra, a emigração
prevalece, o subsistema econômico muda, novas dependências e
assimetrias surgem.

• Demografia

Hoje os Pataxó vivem em oito aldeias no Extremo Sul da Bahia.


No começo de 1989 a população nas aldeias é o seguinte:

• Barra Velha: 814 indivíduos.


• Boca da Mata: 349 indivíduos (os índios de "Meio da Mata” distri-
buem-se aos números totais de Barra Velha e de Boca da Mata).
• Águas Belas (Marie Emilia): 66 indivíduos.
456 Ir para o sumário >>

• Imbiriba: 137 indivíduos.


• Mata Medonha: 124 indivíduos.
• Coroa Vermelha: aprox. entre 200 e 350 indivíduos (inverno
e verão respectivamente).
• Trevo do Parque: 91 indivíduos.
• Corumbauzinho (aldeia ainda não mencionada, fundada em
1951 nas margens do Rio Corumbau, a uma légua de
Águas Belas): 55 indivíduos.

Há também muitas famílias indígenas na região que mantém


contato com as aldeias e mostram desejo de voltar, uma vez que a
vida aí oferece condições econômicas suficientes.
Comparando-se os dados dos autores, podemos verificar
certas tendências. Pedro Agostinho registraria em 1971 o número de
273 índios na área do Parque Nacional (hoje Barra Velha e Boca da
Mata), Carvalho calculou que em 1976 já seriam 599 indivíduos, e
em 1977 aumentaria ainda para 666 Pataxó. Diante destas cifras,
Pedro Agostinho calculou que a população total dentro da área
aumentaria em 23 anos de 666 para 1598 indivíduos.
Mas em 1989, aproximadamente a “metade” do tempo da
previsão de Agostinho, o recenseamento feito no nosso trabalho de
campo apontou que o número de indivíduos que ocupam a área do
parque era de 1163. A comparação destes dados mostra que o
cálculo de Pedro Agostinho, feito em 1977 para a evolução do
espaço de terra necessário para a sobrevivência do grupo na
próxima geração foi otimista demais, embasada em um aumento
linear a realidade de 1989 não corresponderam à previsão.
No total vivem hoje cerca de 1850 Pataxó nas aldeias
menciona-das. A razão desse aumento anual de 17.8% se encontra
na contínua reorganização (imigração de índios morando fora das
aldeias) e na alta taxa de natalidade.

• Mobilidade espacial
457 Ir para o sumário >>

Pressões econômicas, conflitos sócio-políticos nas aldeias, a


atração por outros estilos de vida, etc., causam duas direções
principais da mobilidade espacial:

a) a migração da região para a aldeia indígena


b) a migração da aldeia indígena com base agrícola para a
aldeia indígena com base econômica de artesanato

A migração da aldeia indígena para a região é limitada. Falta


aqui o espaço para mostrar a extensão dessa mobilidade espacial.
Entretanto, podemos concluir que continua altíssima; fato, que
poderia ser exemplificado em comparações com dados de Carvalho
(1977) ou em análises de genealogias de algumas aldeias indígenas
(Bierbaum, 1989). Os efeitos dessa mobilidade espacial têm grande
importância para a vida do grupo.

• Economia

A comparação do modo de subsistência do grupo entre 1976 e


1989 reflete certas mudanças no subsistema econômico:

Em % 1971 B.V. 1976B.V. 1989B.V. 1989Tot.


Agricultura 78 82 84 72
Pescaria 6 12 2 2
Trabalho 6 - - -
assalariado
Artesanato - 1 9 22
Outras 10 5 5 4
(colheita,
comércio)
(Dados de 1971 e 1976 de Carvalho 1976:146f, 384)
458 Ir para o sumário >>

Entre outros pontos podemos concluir que:


1. A importância de agricultura aumentou um pouco em Barra Ve-
lha, mas diminuiu em outras aldeias;
2. O sustento de vida com a produção do artesanato aumentou mui-
to mais nas outras aldeias que em Barra Velha;
3. A variedade do sistema econômico se polarizou na agricultura e
na venda de artesanato;
4. A produção do artesanato é um substituto de outras profissões;
5. A dependência do meio ambiente natural decresce, enquanto
que a do meio ambiente social brasileiro aumenta.
6. O artesanato é muito mais forte ainda como profissão comple-
mentar na economia do grupo;
7. A pescaria quase já não tem mais importância (menos em Mata
Medonha e Coroa Vermelha).

• Organização social

Na etnia, vários grupos de descendência, famílias e indivíduos


contribuem para a comunidade. Com a situação do contato se articu-
lando distintamente para cada um dos índios Pataxó hoje, também a
diversidade de visões de mundo, de idéias e de opiniões muda. A
sociedade tradicional, que enfrenta esse processo de
individualização, reage também diferentemente, dependendo da sua
própria constituição.
Podemos notar que a afiliação a uma família de descendência
é muito importante para cada indivíduo nas aldeias indígenas. A
divisão entre essas famílias de parentesco não existe só na própria
geografia da aldeia (Barra Velha), mas também na organização
social. Frequentemente as tensões nas aldeias articulam-se nas
divisões do parentesco. Talvez esses conflitos no grupo já
existissem antes. Mas hoje vemos especialmente duas razões para
seu surgimento, fora os problemas econômicos:
459 Ir para o sumário >>

1. a historia legislativa na fundação de aldeias novas


2. a re-valorização da posição do cacique.

Com a situação econômica em Barra Velha piorando cada vez


mais, os índios começaram a apresentar certo desejo de emigrar dali
para outros destinos. Alguns, com bens materiais ou com o espírito
necessário, saiam para abrir novas terras (Assim aconteceu com
Mata Medonha, Águas Belas, Trevo do Parque, Coroa Vermelha e
outras). Muitas vezes entram em conflitos com os regionais. Para
segurar os seus direitos chamam índios das aldeias. A FUNAI toma
posição como órgão titular. A posição sócio-política dos "primeiros
índios" enfraquece. Surgem hostilidades.
Outro fator agrava essa situação: Com as interações dos índios
com os brasileiros intensificando-se cada vez mais, a posição do
Cacique ganha mais prestígio e poder. É ele que representa a aldeia
nos contatos interculturais. A política da FUNAI contribui para o seu
poder. Mesmo que o cacique dependa da comunidade, na verdade
ele depende mais do seu grupo de parentesco. E exatamente este
grupo maior de parentesco que vai ganhar a força política total,
conseguindo o cargo de Cacique para um deles. Com isso os outros
grupos sentem-se pouco representados.
As hostilidades nas aldeias, às vezes fatais, contribuem para o
enfraquecimento da comunidade Pataxó e da sua força e
independência. Conflitos no contato com a sociedade envolvente
impedem a função eficiente do sistema sócio-político.

• A situação do contato

O contato é motivado por interações econômicas, políticas,


religiosas, de parentesco ou de amizades. No contato interétnico, as
interações motivadas pela produção e venda do artesanato e
também por causa de parentesco, representam os laços mais fortes.
460 Ir para o sumário >>

Festas, muitas vezes acompanhados de torneios de futebol entre os


times das aldeias, ou visitas às Lambaterias são estímulos de
integração. Interetnicamente estes contatos têm grande importância:
grupos de jovens percebem a sua identidade social e cultural
negativamente (pois não só tem competição de futebol, mas também
de bens materiais, sucesso com as meninas, etc.). Mesmo se os
índios ganham o jogo eles sempre perderão de certa maneira. Como
reação a coesão emocional do grupo indígena cresce fora das suas
aldeias, pois a integração é impossível, os índios enfrentam a
necessidade de corresponder com a imagem do índio também em
outras situações de contato, p.ex. na produção e venda do
artesanato como também em relacionamentos políticos com a FUNAI
e outras órgãos.
Ultimamente o isolamento do grupo agrava-se também por
causa das mudanças profundas na região. Com o surgimento do
turismo, a expansão da infra-estrutura e com o aumento demográfico
enorme, o Extremo Sul da Bahia também passa por uma certa
"aculturação" numa escala nacional. A população regional, até
pouco tempo atrás com alguns aspectos sociais e culturais
parecidos aos índios, passa a funcionar mais e mais como "reserva
socioeconômica". Sem essa reserva, os índios vão ter que enfrentar
qualquer impulso de fora como grupo isolado.
Os efeitos já são notáveis hoje. Por exemplo, a tendência a um
surgimento de um folclorismo, também a criação de uma nova
identidade dos índios ("os primeiros índios descobertos"). E também
o surgimento de certa mitologização do seu passado. Lembramos da
parte mitológica introduzindo este artigo. Sabemos já, que na
verdade a aldeia de Barra Velha foi criada por mandamento oficial.
Provavelmente o índio com a flecha foi realmente um oficial com
uma pistola.

• Conclusão
461 Ir para o sumário >>

Depois desta análise, podemos constatar como a pressão


histórica e também a forma do contato atual ameaçam a vida dos
Pataxó. Hoje em muitos aspectos os índios só conseguem ficar
reagindo. Eles se encontram em várias dependências, como por
exemplo, as do turismo ou também a da FUNAI. Pouquíssimas
pessoas mostram interesse em oferecer outras alternativas de
sobrevivência para eles, fora os conceitos obsoletos como a “total
assimilação" ou "modernização".
No passado a sobrevivência do grupo foi sempre garantida
pela variedade e pluralidade das atividades e idéias. Hoje, um futuro
humano para os Pataxó só parece possível, se eles não se deixarem
sufocar pelas dependências autoritárias e se a criatividade tiver
novamente o seu espaço, seja no aspecto político, social,
econômico ou ideológico.

Referências

AGOSTINHO, Pedro. 1980. "Bases para o Estabelecimento da


Reserva Pataxó". Revista de Antropologia; 23: 19-29. São Paulo.
AGOSTINHO, Pedro. 1988 (1981). "Condicionamentos Ecológicos e
Interétnicos da Localização dos Pataxó da Barra Velha, Bahia". Em
Agostinho, Pedro (Org.): "O Índio na Bahia". Cultura; 1(1): 71-77.
Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia.
BIERBAUM, Bernhard F. 1989. Vida e Morte n(d)a Mata. In: Boletim
da ANAÍ n.º 3 (set/dez). Salvador/Ba: ANAÍ.
______.1989b. Der lauf des krebses: Verãnderungen in
lebensweise und Orientarung der Pataxó Brasiliens. München:
Universitãt München.
CARVALHO, Maria R. G. de. 1977. Os Pataxó de Barra Velha: seu
subsistema econômico; dissertação de mestrado apresentada à
462 Ir para o sumário >>

UFBA. Salvador, ms.


SAMPAIO, José A. L. 1990. Relatório de viagem a aldeias Pataxó
meridionais no Extremo Sul Salvador, ANAIms.
ROCHA JR., Omar. 1987. Yes, nós também temos índios. Cadernos
do CEAS, 111. Salvador/Ba, 1987. p. 21-33.
ROCHA JR., Omar. A Arte de Ser Índio: os Pataxó e os Turistas
na Coroa Vermelha. Projeto de pesquisa, apresentado ao
Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporâneas.
Salvador/Ba: UFBA, 1990.


5.3. EXPRESSIVIDADE PATAXÓ MERIDIONAL: CARACTERÍSTICAS ÉTNICAS E O CICLO

DE PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO CULTURAL E SOCIAL


463 Ir para o sumário >>

Adla Viana Lima


Orientador: José Luís Caetano da Silva

O texto a seguir faz uma análise descritiva do que se pode chamar


de equipamento Expressivo Pataxó Meridional. São descritos alguns
eventos, formas de interação e relação interétnica, bem como as
características que se podem apreender do convívio com os Pataxó
Meridionais, com o objetivo de esboçar essa expressividade
indígena na sua vida cotidiana. Pretende-se aqui, ancorar a análise
em uma perspectiva antropológica da interação social de Goffman.
O poder simbólico e as trocas simbólicas, levando em conta a
educação diferenciada indígena não apenas institucional, mas
principalmente aquela aprendida habitualmente, o “sistema de
educação”, expressão retomada por Bourdieu quando da colocação
de sua definição tradicional, “como o conjunto dos mecanismos
institucionais ou habituais pelos quais se encontra assegurada,
segundo a expressão de Durkheim, 'a conservação de uma cultura
herdada do passado', ou seja, a transmissão entre gerações da
informação acumulada” (BOURDIEU, 2005). A produção e
reprodução social das tradições étnicas Pataxó, e suas nuances
mais complexas, empreendidas em contextos de significado político
e politizador, constituem o foco principal do texto, na medida em que
influências de diversos campos sociais incidem sobre essa
expressividade e refratam (não seria conveniente dizer refletem,
uma vez que no processo de refração existe absorção) para os
mesmo campos num ciclo rítmico de trocas.
O Monte Pascoal, situado em Porto Seguro, na Bahia, reúne em seu
entorno formas de expressividade Pataxó, que são influenciados por
diversos fatores, alguns deles retratam as questões político-
territoriais importantes na construção do próprio modo de viver e se
expressar do Pataxó enquanto conhecedor do contexto ao qual suas
decisões estão atreladas, cabe notar que mesmo em situações
464 Ir para o sumário >>

extremas de falta de infra-estrutura, alimentação, renda, e educação


formal e institucional, é comum encontrar no discurso de crianças,
adultos e velhos, o conhecimento de sua realidade sócio-política. Eis
a fala de um Pataxó em relação à questão conflituosa de ter que
abandonar aquilo que aprendeu com seus avós e bisavós devido às
regras introduzidas a partir da interação dos índios com os fiscais
dos órgãos do antigo IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis, hoje Instituto Chico Mendes.

“Eu pisei na folha seca eu vim fazer chuá chuá. Sabe o que me
traz a recordação, o índio vive na folha seca. Nós não temos
direito mais de pegar um Tatu, o índio foi privado de comer um
tatu, o tatu era a minha carne, a paca era a minha carne,
estamos perdendo uma liberdade que deus tinha nos dados”
(Pataxó da aldeia Tibá, 2003).

Abaixo, Diana, de 31 anos, faz declaração quando conversava com


entrevistador sobre a festa de são Sebastião, festa muito importante
para os Pataxó, no dia 31 de Dezembro à meia-noite o mastro que
foi colocado no ano anterior é retirado em uma grande festa onde
dançam o awê, e no dia 19 de Fevereiro o novo mastro que é
retirado da mata e pintado, é colocado no mesmo local. Todos os
anos acontecem as festas e os rituais em Cumuruxatiba e em Barra
Velha:

“Hoje é dia de festa meus filho tão passando sem roupa nova,
descalço. Os parentes entregam ele, se ele faz uma caçada os
parente entrega, esses dias ele foi pra mata caçar e os
parentes(...). Hoje a festa de São Sebastião. Meu marido tá
sentido de não poder comprar as coisas pro filho. O cacique só
consegue as coisa pra ele. A comunidade quando chega as
coisas é tudo do cacique. Táva decidido, hoje era pra ter a
reunião. Vai ter a reunião segunda-feira Disse que vai mudar o
cacique, mas maioria não quer tirar ele de cacique, porque aqui
465 Ir para o sumário >>

não tem outro pra ser cacique como ele, ele é meu primo,
primo e compadre. Tem outros parentes aqui que não adianta
botar de cacique.”

Outros desses fatores, de forma bastante consistente, remontam as


tradições culturais que há muito, estão intrínsecos tanto à vida dos
índios como também dos não-índios, ou dos que se classificam
como tal, e se espalham pelo Extremo Sul e Sul da Bahia se
levarmos em consideração inferências que nos demonstram nossa
descendência indígena enquanto brasileiros. Goffman (1985)
descreve o ator social, e instaura a idéia de que todo indivíduo o é, e
além disso tem uma “fachada pessoal”, compreensão que torna
pertinente a caracterização da expressividade, sempre levando em
consideração que o indivíduo emprega quando se encontra em
presença contínua diante de um grupo de observadores, seja em
ocasiões formais ou numa conversa com amigos. “Aparência” e
“maneira” a determina, aquela revela o status social, enxergando
também o que é expresso através da forma física, enquanto esta
indica o comportamento que ele pretende desempenhar ao longo da
interação - uma das possíveis análises que se pode fazer ao estar
em campo convivendo com um grupo considerado etnicamente
diferenciado, é que existem características que estão tão
incorporadas no indivíduo, que em contextos nos quais ele não é
cobrado a acionar elementos que “comprovem” sua condição étnica
- como, por exemplo, ao se relacionar com a FUNAI e FUNASA, ao
responder perguntas de turistas ou mesmo antropólogos e outros
pesquisadores, que fazem perguntas do tipo “você é índio mesmo?”,
“Índio precisa de terras para que, se eles vendem artesanato?” -
essas externações ainda são mantidas no caso de uma observação
atenta. O aprendizado dos saberes tradicionais pelos Pataxó e suas
características étnicas, mas principalmente aqueles cotidianos, que
estão engendrados no modus vivendi Pataxó, em aldeias mais
distantes e isoladas como Alegria Nova ou Mata Medonha e as
466 Ir para o sumário >>

urbanas, como o caso de Coroa Vermelha, estão no mesmo patamar


para o sentido que está sendo discutido aqui, o que serve de apoio à
idéia do quão intensa é a manutenção do processo identitário étnico
indígena de tal grupo. Nesse contexto, a apreensão, reprodução,
transvaloração e produção desses saberes mantém as relações
étnicas e inter-étnicas, tensionam e modificam tais relações, que se
constroem no quadro social no qual se encontram, quando trata-se
do fato de “ser Pataxó”. Nas 26 aldeias que existem nesse espaço –
número que pode mudar em curto espaço de tempo se levados em
consideração as formações, desintegrações de aldeias e o
faccionalismo – coexistem diversas contribuições étnicas pataxó que
varia de aldeia para aldeia, mas integram um todo, sendo
denominado aqui de expressividade Pataxó.
O trabalho de campo desenvolvido durante todo o mês de janeiro de
2007, em pesquisa para o Projeto “Tradições Étnicas entre os
Pataxó no Monte Pascoal: subsídios para uma educação
diferenciada e práticas sustentáveis”, financiado pelo Programa
Petrobrás Cultural, permitiu que uma equipe multidisciplinar visitasse
cerca de 14 aldeias – aquelas que não tinham sido registradas em
trabalhos de campo anteriores por um dos núcleos apoiadores do
projeto, O NECCSos UESB135 - o que possibilitou o registro e uma
observação bastante sistemática de como vivem e como interagem
com os diferentes atores que passam por ali, incluindo estudantes e
pesquisadores que mais comumente do que se pode imaginar,
visitam aquela região. Levando em consideração a não
segmentação do conhecimento tradicional e o entendimento dos
seus saberes como um todo que envolve sempre todas as partes,
observação de toda nossa equipe, fizemos um trabalho em conjunto
para analisar os diversos dados de diversos campos temáticos e
fazer as possíveis relações.

135 O NECCSos – UESB, Núcleo de Estudos em Comunicação Culturas e Sociedades, registrado no CNPq, e foi um dos núcleos que apiou o

projeto juntamente com o PINEB – UFBA Programa de Estudos dos Povos Indígens do Nordeste Brasileiro
467 Ir para o sumário >>

A aldeia indígena na qual nos alocamos é urbanizada e recebe


turistas de todo o mundo que vão para lá em busca do divulgado
“paraíso tropical quase inexplorado”. Nesse contexto, é descrito a
seguir exemplos de histórias de pessoas, de um modo geral, que
encontramos na cidade e nas aldeias visitadas para chegar a um
posicionamento flexível diante daquilo que se pode chamar de
equipamento expressivo Pataxó.
Um rapaz, fazendo um passeio com amigos na turística cidade de
Cumuruxatiba emite a seguinte frase, no momento em que vê uma
índia Pataxó que considera bonita: “Rubalinho, lisinho, maciosinho”.
O rapaz em questão, cujo nome é Rodrigo, 23 anos na época, é
Pataxó, se auto-identifica como tal e é da mesma família de uma
importante liderança, mulher, a índia mais idosa da região. Muito
lúcida, tem muitos filhos, netos, sobrinhos e exerce uma influência
significativa nas tomadas de posições dos índios dali. No início de
2007, esse rapaz, juntamente com outros índios Pataxó da mesma
faixa etária, organizou uma retomada de uma área que fica nas
proximidades da zona urbana de Cumuruxatiba, que estava
visivelmente abandonada, onde seria construído posteriormente um
espaço destinado a abrigar o artesanato de alguns Pataxó que
produzem e comercializam artesanato. Rodrigo usa adornos e
enfeites, porém são muito diferentes dos que são vendidos, o colar
que usa é feito de dentes de animais que ele mesmo caçou. O grupo
de relações sociais deste rapaz, forma entre si uma relação de
parentesco e agrega uma permanente construção de estruturas
(não)conscientes que pré-determinam, a partir de uma perspectiva
micro, uma rede de conhecimento acerca do contexto conflituoso
que os cercam, que influenciam de forma consistente o sistema de
macro-estruturas que distinguem os diferentes momentos da noção
de “ser um pataxó”.
O processo de retomada empreendido por esse grupo de jovens da
aldeia Tibá de faixa etária de 20 a 30 anos, de um pequeno lote de
terra em área urbana de Cumuruxatiba enquanto representação,
468 Ir para o sumário >>

pelas características do evento, não se trata apriorísticamente de


uma invasão ou ocupação pura e simples de um espaço territorial
para aproveitamento, ou um ação política contra quem quer que
seja. Na sua execução, demonstra que características identitárias
pataxó são intrínsecas à sua pessoa, e dificilmente esvairar-se-ão,
como é explicitado nas descrições seguintes. A retomada aconteceu
depois de encontros casuais para decidir o local e a função de tal
ação, que foi num dia sem chuvas e, por questões estratégicas, à
noite. Reuniram-se alguns jovens, compraram comes e bebes e
foram capinar e limpar o lugar. Os elementos étnicos e culturais
Pataxó durante aquela ação se revelaram durante todo o processo
de retomada, um dos rapazes, de nome indígena Cavalo, cortou
folhas de palmeiras e confeccionou artigos de enfeites para o corpo
e adornos para a cabeça, para serem usados por todos ali, esses
bem diferentes daqueles que são vendidos para os turistas que
visitam a região. Estavam pintados com uma tinta feita, com extrato
de jenipapo, que fica no corpo, mesmo que seja lavado, por 10 a 15
dias. Tomemos a pintura então, fator importante no que diz respeito
à demonstração das características étnicas e da expressividade
Pataxó. A posteriori, em todos esses dias que a tinta permanece no
corpo, ela continua revelando que aquele indivíduo participou de
algum ritual, ou brincadeira, ou luta, da tradição.
Nós temos no Acervo do NECCSos uma foto do Ano de 2003 na
qual dona Maria, da aldeia Cahy figura sendo pintada com tinta à
base de jenipapo. Quando as imagens do acervo foram mostradas
em viagem de campo de 2008, para reuniões do projeto Tradições
Étnicas entre os Pataxó no Monte Pascoal, Ariri, líder indígena da
aldeia Tibá, e Sadraqui, professor indígena coordenador dos
professores indígena do Extremo Sul da Bahia, relataram que essa
senhora raramente se pintava diante de estranhos, e nem se
deixava fotografar.
Pode-se relacionar a essa discussão para reforçar a idéia dos efeitos
e refração da expressividade um depoimento interessante que, ao
469 Ir para o sumário >>

realizar trabalho de decoupagens das imagens do acervo do


NECCSos, filmadas em viagens de campo dos anos de 2003 e
2004, encontrei feito por um outro pataxó, de 13 anos à época, da
aldeia Alegria Nova que dizia que quando ia para escola a própria
professora recriminava-o devido ao fato de estar pintado, e dizia que
ele “nem parecia ser gente”. Na retomada da terra supra
mencionada, em determinado momento, alguém da equipe de
estudantes perguntou como uma brincadeira quem ali era o cacique.
Um dos rapazes disse categoricamente, “o cacique aqui é o povo”.
Apesar de jovens, pela análise das falas todos ali demonstravam ter
consciência do poder simbólico que aquele processo representava,
uma vez que trazem em suas lembranças as histórias contadas por
seus pais e avós de episódios de luta, enfrentamentos com a polícia,
com o MST – Movimento dos Sem Terra, com donos de pousadas,
fazendeiros da região (CAETANO DA SILVA, 2006), “lutas”
simbólicas com pesquisadores do Brasil e de todo o mundo que
visitam periodicamente a região e também histórias que
aconteceram com eles próprios, a idéia de luta também é uma
constante nas falas de muitos dos depoentes, tanto para discutirem
conflitos territoriais, quanto para tratar de questões não tão
complexas, ou até mesmo quando perguntado sobre sua vida por
parentes em situações informais, cuja resposta de muitos é “a nossa
luta é essa mesmo”, discurso que se encontra também nos cantos
do awê. “Senhor presidente libera a nossa terra, senhor presidente,
libera a nossa terra oh libera oh libera, nós estamos em pé de
guerra” (Canto do awê apresentado e cantado na Festa do Pau do
São Sebastião em Cumuruxatiba, 2007).
Uma das histórias que ouvimos sobre conflitos vividos por aqueles
jovens, e não por seus pais, avós ou antepassados, trata-se da
derrubada de uma cerca, que um proprietário de uma barraca de
praia havia construído com o intuito de não permitir a entrada dos
pataxó, o que o próprio me confirmou, tomando como medida para
tal, cobrar a entrada naquele espaço; um outro episódio foi a
470 Ir para o sumário >>

derrubada de um muro que impedia a passagem entre uma praia e


outra, construído a mando de uma dona de pousada do local,
histórias essas contadas pelos mesmos informantes. No processo
de retomada que fizeram, com muita praticidade, ascenderam uma
fogueira e depois de enfeitados e pintados, dançaram e cantaram o
awê em português e em língua indígena, dando voltas em torno do
fogo e batendo firmemente o pé, alguns descalços, na terra. Aquele
ritual representava para eles, ao mesmo tempo ali, a brincadeira –
todos ali se divertiam muito, como em uma festa de amigos – a luta,
identificada pela própria função para a qual aquele espaço viria a ser
destinado, um ponto de apoio para ajudar no trabalho e no sustento
de pessoas da aldeia – e a guerra, uma vez que a qualquer
momento poderia surgir conflito com o suposto dono daquele lote,
que poderia acionar as forças armadas do estado, ou contratar
pessoas para tirá-los dali a força ou amedrontá-los, como
posteriormente foi relatado algum caso desse tipo em outros
processos de retomada.
Retrata-se então a maneira que se poderia entender a
expressividade da composição metafórica de frases emitidas pelos
pataxó, quando se referia a pessoas dessa forma relacioná-la à sua
etnicidade. O peixe, Robalo, para os pescadores, é valioso, é objeto
de desejo. O emissor de tal frase, além de outras coisas, aprendeu
com seus familiares a pescar, e leva isso consigo, mesmo não tendo
esse afazer como única atividade. Adquiriu de seu pai, o
etnoconhecimento sobre a pesca pataxó, e manteve isso inserido na
sua expressividade, trata-se de um princípio racional, mesmo não
sendo racionalmente concebido. Esse fato pode ser analisado a
partir da idéia levistroussiana de arbitragem, características de uma
relação não objetivável com o outrem (LEVI-STRAUSS,1976) e
aquilo que apreendeu em seu contexto social, que permeia as
diversas culturas e que quando acionadas revelam a etnicidade
Pataxó.
471 Ir para o sumário >>

A partir da discussão de alguns exemplos da externação da


etnicidade indígena Pataxó fazendo referências à alguns Pataxó,
suas ações, suas expressividades, e à elementos de sua vida
cotidiana, sua interação no conturbado contexto em que vivem, é
possível de alguma forma demonstrar como a diferenciação étnica
determina e influencia as posições e tomadas de posições
(BOURDIEU, 2005) empreendidas pelos Pataxó do entorno do
Monte Pascoal, ao se relacionar nos mais diversos contextos.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. Ed.


Perspectiva, São Paulo, 2005
BOURDIEU, Pierre. Razões Práicas.
CAETANO DA SILVA, José Luís. Noção nativa da posse da terra
entre os Pataxó no Monte Pascoal. VIII Congresso Luso-Afro-
Brasileiro. Encontrado em :
http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel11/JoseLuisCaetan
todaSilva.pdf
GOFFMAN, Ervin. A Representação do Eu na vida Cotidiana.
Petrópolis: Vozes, 1985.
PIERCE,Charles Sanders. Semiótica. 2ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 1990
LEVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do
Parentesco.Vozes. 1976


136
5.4. Etnicidade e Adesão Pessoal: a escolha do nome indígena

136 Texto baseado em parte do capítulo 2 da tese do autor.


472 Ir para o sumário >>

José Luís Caetano da Silva

Para a análise de como os Pataxó apresentam a si mesmos usando


o nome português ou de registro, o nome indígena, o nome de sua
família, facção e aldeia, tomar-se-á como base Goffman (1985: 29-
31) na sua discussão sobre a crença do indivíduo no papel que está
representando, na qual opõe dois extremos: atores compenetrados
de seu número e outros que podem não estar completamente
compenetrados de sua prática. A crença, ou a ausência dela não
exerce influência forte sobre a “fachada”, ou, nas palavras do autor:

“...o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou


inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua
representação [...] Se tomarmos o termo “cenário” como
referente às partes cênicas de equipamento expressivo,
podemos tomar o termo “fachada pessoal” como relativo aos
outros itens de equipamento expressivo, aqueles que de modo
mais íntimo identificamos com o próprio ator, e que
naturalmente esperamos que o sigam onde quer que vá”.

Seja se relacionando com os não-pataxó no Extremo Sul, com seu


boné disfarçando sua condição Pataxó, seja transformado em sua
pessoa ritual, nas festividades e nas demais ocasiões públicas onde
representa sua condição Pataxó ele carrega consigo seu nome
português que é a um só tempo pessoal e familiar (ao qual algumas
vezes complementam com o sobrenome que aponta para um
parentesco real e/ou putativo geral Pataxó) e o seu nome indígena
que é a um só tempo uma representação do seu eu e a
representação deste eu enquanto um eu-étnico; como se pode
depreender dos significados que atribuem a estes nomes.
Os nomes foram registrados a partir do trabalho de campo no
doutorado de início assistematicamente. Alguns Pataxó
473 Ir para o sumário >>

apresentavam o que diziam ser um nome indígena e o diferenciavam


do seu nome de batismo, ou nome português, concomitantemente a
literatura etnográfica lida analisa esta prática como uma
característica da identidade Pataxó, ainda que uma tradição
inventada em meio a situação turística que passaram a vivenciar nas
três últimas décadas (Grünewald, 2001), ou em meio a reconstrução
de uma língua Pataxó (Valle, 2003).
Na última visita ao campo o levantamento passou a ser feito de
forma mais sistemática e se perguntou, tanto aos Pataxó
entrevistados, como a outros que apenas estavam próximos a eles,
ou ainda, perguntamos pelo nome indígena de maridos, filhos,
irmãos, etc. Entre os levantamentos anteriores e o da última viagem
reunimos um quadro de sessenta agentes que se apresentaram
espontaneamente com nome indígena, ou responderam afirmativa
ou negativamente quando perguntados se possuíam nome indígena.
Evidentemente o quadro da pesquisa é mais amplo. Muitos agentes
foram entrevistados sem que se estivesse focado neste sentido e
foram deixados de fora desta análise inicial, assim como, trinta
famílias nas quais foram aplicadas entrevistas diretivas por meus
alunos. A análise aqui esboçada diz respeito a entrevistas feitas
pessoalmente. Para ampliar o quadro de análise dos nomes na
compreensão de seus significados se perguntou aos entrevistados
sobre nomes indígenas de parentes próximos. Perguntou-se,
também mais sistematicamente na última viagem, sobre a forma e a
razão de sua escolha, assim como, sobre o seu uso. Foram
utilizadas, ainda, informações sobre o nome com o qual os Pataxó
são registrados, nome português, relacionado tanto ao nome
indígena, quanto ao etnônimo Pataxó. Por fim, os nomes de aldeias,
de localidades onde moram famílias extensas, ou, os das próprias.
Eidheim (1969 apud Poutignat, Streiff-Fenart, 1997 [1995]: 17)
combina a problemática barthiana das fronteiras étnicas e uma
abordagem goffmaniana da apresentação de si. Quando a
identidade étnica é um estigma social o domínio da impressão
474 Ir para o sumário >>

impõe-se como uma preocupação constante dos atores. A vida


cotidiana parece consistir assim numa incessante redefinição das
situações como derivando da cena pública ou da cena étnica íntima,
cada uma delas governando a escolha das interações, da língua e
da apresentação de si. Esta manipulação contínua do tempo e do
espaço faz parte das técnicas que permitem, ao mesmo tempo,
ocultar e tornar suportável uma inferioridade a qual não se pode fugir
(Poutignat, Streiff-Fenart 1997 [1995]: 117-118).
O Uso do nome parece seguir uma lógica paradoxal. Na cena étnica
mais íntima ele parece estar mais ligado as relações familiares na
unidade doméstica, ou seja, é o elemento mais íntimo, usado por
avós, país e irmãos e nem sempre conhecido pelo restante da
aldeia, mesmo o cônjuge. Chauane disse que “pai e a mãe a
chamam assim, alguns da aldeia também, outros não”. Ela não
soube dizer se o marido tinha nome indígena, uma outra
entrevistada, não possui nome indígena, mas seus filhos sim, já seu
marido – quem escolheu os nomes – ela não sabia dizer. “É como
minha avó me chamava” disse Harimõ, o cacique João Brás Pataxó
de Águas Belas.
Na cena pública englobante ele é utilizado quando o agente empírico
deseja expressar de forma inequívoca a condição étnica de um eu
que representa a si e ao seu ethnos para um público. “No dia a dia
me chamam de Ana, quando eu saio chamam mais de Jandaia”,
Lourisvaldo diz que “quando tive na Coroa Vermelha me chamavam
de Maui”, já Sebastião, o Ramon “não tinha escolheu porque tem
que sair e dar nome índio lá fora e na aldeia também”, infere-se
desta última parte da sua fala que a aldeia tem também seus
momentos públicos onde se exige a identificação étnica e não o
nome português.
Na análise do uso do léxico diferenciado e do nome indígena pelos
Pataxó, estar-se-á assumindo, em alguma medida, a ‘ingenuidade
essencial’ do etnólogo que aceita a identificação que as pessoas
escolheram
475 Ir para o sumário >>

“...sem que se esqueça a natureza circunstancial da escolha de


uma identificação étnica em meio a outras escolhas de
identificação possíveis. Nesta medida as categorias étnicas não
são auto-explicáveis, mas devem ser elas mesmas explicadas”
(Poutignat, Streiff-Fenart 1997 [1995]: 64).

Tal nome á a um só tempo seu signo mais íntimo e mais público. A


expressão de como ele se vê e de como deseja que seja visto. O
processo mesmo de nomeação reflete esta ambigüidade entre a
reflexividade e a expressividade, a representação do eu e o eu que
lhe é atribuído pelos demais. Dos nomes acima, por exemplo,
Chauane escolheu este nome por achar este tipo de papagaio uma
ave bonita, da mesma forma que Jandaia. Maui tinha ido para Coroa
137
Vermelha “vender artesanato pra comprar mangutsi e tupsai ”,
quando passaram a lhe chamar pelo nome da frutinha que possuía
as sementes usadas para fazer o artesanato. Nestes dois casos a
nomeação segue o padrão apontado por Grünewald (2001) do nome
indígena utilizado para se representar como índio para turistas aos
quais deseja vender artesanato, no entanto, já se apresenta o
elemento da escolha pessoal de um nome por ser uma ave bonita e
outro que é dado por uma coletividade e ligado a uma atividade
econômica.
Nas três aldeias Pataxó visitadas na última viagem (Aldeia
Nova/Juíza/Pires, Terra Indígena Trevo do Parque e Terra Indígena
Águas Belas) pessoas perguntadas sobre a escolha do nome
indígena comentaram que ela é realizada aos quatro anos, duas
disseram ter escolhido seu nome aos quatro anos. Não é um
ritual138, perguntei se havia algum ligado especificamente à escolha
do nome e responderam sempre que não. A descrição mais

137 Comida e roupa no léxico. A Jandaia usou a mesma frase para explicar porque veio para a trevo do Parque vender artesanato.

138 Boltanski chama a atenção para esta obsessão dos antropólogos de ver ritual em tudo (Becker, Boltanski, Claverie, 1995)
476 Ir para o sumário >>

completa me foi dada por Tucsai, que escolheu seu próprio nome e
indicou que já há alguma ritualização envolvida na escolha.

“Quem escolhe o nome indígena e o pai ou a mãe, mas aos


quatro anos já tem o livre arbítrio para escolher outro nome.
Através da natureza, conhecendo melhor ela, escolhe um nome
para si. Às vezes de acordo com o nome em Português”

Do quadro de 70 nomes escolhidos (Apêndice) para esta análise


sobre sete dos entrevistados não temos certeza se tem ou não
“nome indígena”, pois a pergunta não foi feita, nem eles
expressaram espontaneamente, nove afirmaram não tê-lo, dois os
pais afirmaram que vão escolher, quando chegar a idade de quatro
anos e cinqüenta e dois apresentaram nomes indígenas, o que
mostra ser uma prática bem difundida.
Nem sempre foi assim, um morador de Águas Belas, sem nome
indígena, afirmou: “no meu tempo ninguém escolhia nome indígena.
De um tempo pra cá o pessoal estudou e apareceu esse negócio de
nome indígena”; o que parece confirmar-se na experiência dos seus
filhos. Sua filha Mangutxai [estrela] escolheu seu nome indígena aos
14 anos, após tê-lo encontrado num livro de quinta serie. Seu irmão
Jacunarrã escolheu através de um professor que dava aula de
cultura indígena e chamou um bocado de rapaz para escolher o
nome e ele escolheu misturar o nome de um pássaro Jacunã
(espécie de jacu) com rã. O professor aprendeu na Jaqueira em
Coroa Vermelha. O próprio Tucsai, que descreveu a ritualização da
escolha, parece ter escolhido seu nome ao conhecer, como
segurança do IBAMA um pássaro em extinção que achou belo.
A importância que a educação, especialmente as experiências em
educação diferenciada que vem sendo implementadas, tem tido na
difusão dos valores e tradições Pataxó, incluso a escolha do “nome
indígena” é conspícua. Não se pode afirmar, no entanto, que o nome
indígena seja recente. Foi possível encontra-lo em Pataxó com mais
477 Ir para o sumário >>

de 50 anos, mesmo entre os que nasceram “feito caça”


abandonados no mato isolados em suas unidades familiares
extensas. Não se pode esquecer que o cacique de Águas Belas teve
a escolha do nome ligada a como a avó (elo direto com Barra Velha)
lhe chamava. A mãe do cacique do Cai Timborana, Dona Bernarda,
apesar de não ter nome indígena citou antigos parentes já falecidos,
enterrados no seu quintal, alguns; que possuíam nome indígena. Se,
em alguns casos, estes antigos nomes indígenas parecem se
confundir com alcunhas, nelas não se esgotam nelas, pois, até hoje
é comum quem possua um apelido e um nome indígena. No mínimo
são apelidos de índio. Viu-se que em alguns casos o processo de
nomeação e o mesmo do apelido, como os demais chamam a
alguém que termina por responder ao chamado, consolida-se cada
vez mais, no entanto, o nome indígena como uma escolha reflexiva,
quando a pessoa já se distingue como um individuo, como um self;
especialmente como um self Pataxo.
Esta plasticidade esta presente nos nomes indígenas Pataxó já na
escolha e na permanência deste nome. Durante a vida um Pataxó
pode mudar o seu nome indígena, aos quatro anos se não gostar, ou
quando mais velho ao se conhecer melhor ou a natureza que o
cerca. Às vezes a mudança é mais fortuita. Uma Pataxó entrevistada
esqueceu o nome indígena do filho mais velho, porque era
complicado explicou. Decidiu muda-lo ali na hora seu marido propôs
Sai, porque é um pássaro verdinho, disse. O filho e a esposa
aprovaram e este nome foi apresentado na entrevista como o nome
indígena dele daí por diante.
A plasticidade também esta nas possibilidades de escolha de nomes
com os mais diferentes significados (V. Apêndice)todos, porém,
vinculados a sua condição étnica. Alguns nomes estão ligados a
certos vegetais: cinco tipos de madeira, duas variedades da mesma
espécie de pé de coco que serve para fazer arco, um coco, uma
palmeira que dá pequenos cocos negros usados em colares e mais
uma semente de fazer colar; outro a animais: quinze pássaros ou
478 Ir para o sumário >>

aves, sete animais selvagens, dois felinos, mais um que é o rosnar


de um deles, um animal doméstico, dois invertebrados e um
construído combinando o nome de dois animais; alem de cinco
nomes construídos a partir de palavras consideradas como
indígenas ou do léxico Pataxó que são traduzidas como elementos
da natureza características pessoais, expressões em diálogos ou
fenótipos típicos entre os Pataxó. Três nomes foram encontrados
mais de uma vez: Jandaia, Tije e Jitai, outros são derivados da
mesma raiz como Pati/Patiburi, Oiti/Oitiguaçu, Tucano/Tucsai,
Pequi/Pequiatã.

“For in order to have an ethnic identity, one must first be


human. Humanness implies a capacity to be unique, for
individuation is more characteristic of man than the amoeba.
But a uniqueness of A is a consequence of the exceptional
range of his potential behavioral repertoire, which is at the root
of his extreme plasticity. This quality is relevant for the student
of ethnic identity in two ways: it permits A to assume an ethnic
identity and to maintain it operationally under highly variable
conditions; and it permits A to change his ethnic identity, when
necessary (Devereux, 1996 [1975]: 386).
Reitera-se que muitos dos nomes estão relacionados pelo som ao
nome português da pessoa (ex. Silane / Siul), outros se relacionam
ao fenótipo, ou ao modo de subsistência que escolheram, em
especial ao artesanato. Ao mesmo tempo, que são categóricos, os
tornam únicos. “An individual’s absolute uniqueness is defined by an
induplicable accumulation of imprecise determinations (Devereux,
1996 [1975]: 386).
A identidade de alguém pode ser determinada sem ambigüidades
sem que para tal seja preciso enumerar todas as categorias a que
ele pertence, alguns poucos elementos bastam para identifica-lo
(ibid: 386-7). Há freqüentemente uma tendência para exagerar, com
479 Ir para o sumário >>

respeito a estrangeiros, uma característica da identidade étnica que


é menos óbvia em relações intra-étnicas (op cit: 397)

" Na análise e talvez no desenvolvimento histórico do senso de


identidade étnica, a declaração, ' UM não é um não X (eles ")',
vem antes da ' UM é um X (nós )'. As especificações podem
incluir, inicialmente, só certa realidade concebivelmente (racial,
cultural, personalidade) características do grupo. Mas é quase
inevitável que estas características distintivas adquirirão
eventualmente também conotações evaluative" (loc cit).

Muitas vezes itens vinculados à cultura e a raça, originalmente sem


relação provável com a identidade étnica, mas que adquirem esta
qualidade quando começam a ser usados com significado de
diferenciação (ibid: 398). Muitos traços se desenvolvem como
oposição a traços de povos vizinhos (Ibid: 399) o que o autor chama
de ‘antagonistic acculturation’ (ibid: 400) que envolve a tomada de
empréstimo dos significados do ‘outro’ para ter maior segurança de
alcançar seus objetivos e proteger sua identidade étnica, algumas
vezes isto toma a forma do que Kroeber (1952) chamou ‘stimulus
diffusion’, como o alfabeto Cherokee que surge em competição ao
inglês (apud ibid: 401).

“I note, in fine, that a change in one’s ethnic self-definition is at


made possible by an undeviating adherence to one ethnic
identity traits [...] Ethnic identity is sometimes maximally
implemented by those who, by ordinary standards, would not be
expected to possess it” (ibid: 401-402)

No limite uma pessoa importante para uma etnicidade pode passar a


ser reconhecido como se a tivesse, muitas vezes se tornando mais
caracteristicamente étnico que os nativos, assim como, um traço
cultural estrangeiro pode ser experimentado como expressivo da
etnicidade (loc cit).
480 Ir para o sumário >>

Apesar de únicos, cada um deles professa ser pataxó “Eu tenho


orgulho de ser Pataxó”, orgulho que se mostra repulsa por aqueles
que não tem este orgulho, ou, ao menos, não demonstram ter:

“Uns índios pior de que eu [passa a mão pelo próprio rosto].


Meus sobrinhos, mas só faltam botar Dedé Galão [o fazendeiro
que expulsou seu pai das terras] no colo. Brás coloca troncos
no caminho onde vou passar com os meus animal, uma
estrada de uso geral. São índios pior do que eu, mas não
considero Pataxó não”

Refletir-se como um eu étnico, ou, ter um self étnico atribuído


envolve, assim, a adesão a uma identidade grupal. Tomar parte num
enquadramento que é coletivo e que pode apagar certas
distintividades entre os agentes, assim como, vinculando suas
ações, reações e posições, aos desejos e motivações coletivas.

“Marcel Mauss (1950) has shown that even tough every person
is aware of his own identity (‘selfhood’) many primitives
societies do not implement his distinctiveness socially.
Sometimes the individual is in some respects functionally
interchangeable with other individuals, and he may freely
acknowledge this fact (Devereux, 1942)” (apud Devereux, 1996
[1975]: 405).

Os nomes, por exemplo, relacionam repartindo os indivíduos por


clãs, classes matrimoniais, geração. Alem, das funções religiosas
desta repartição ela definia também a posição do individuo ante seus
direitos, seu lugar na tribo e nos ritos (Mauss 1974[1938]: 222)
Cabe lembrar que o evangelista quando foi interrogado pelo capataz
do fazendeiro o foi pela sua família. Evidentemente, tal podia ser
denunciada nos seus sobrenomes Brás e Conceição, comuns aos
demais Pataxó. Seu nome indígena, no entanto, Quati, já trás a
marca da sua família de origem, cujo líder e seu filho (tio e primo
481 Ir para o sumário >>

dele) foram mortos na sua adolescência e que lhe motivam pra luta e
anima para participar dela e das tradições indígenas como o Toré.
Esta unidade familiar extensa, segundo um outro entrevistado, era
conhecida como os Quati.
Diversas unidades de família extensa tem seu nome ultrapassando
esta função e passando a nomear a própria área onde o grupo
habita. Assim foi com os Brás, os Pires, mesmo uma aldeia Águas
Belas já foi conhecida como os Emílio, numa masculinização do
nome da matriarca da unidade de parentesco extenso que lhe deu
origem: Maria Emília. Outros nomes de facções, aldeias e áreas
onde habitam unidades familiares se devem a acidentes naturais:
Barra Velha, Boca da Barra, Barra do Cai, Corumbauzinho, Veleiro,
Tauá, Riacho Grande. Alguns demarcam sua localização em relação
a mata: Boca da Mata, Meio da Mata, ou ao meio ambiente que lhe
cerca: Bom Jardim, Águas Belas, Mata Medonha, Mato Grosso, ou a
espécimes vegetais ali plantados: Jaqueira, Craveiro, Imbiriba e
Pequi. Esta última aponta para mais uma semelhança entre a
escolha de um nome de aldeia e um nome indígena pessoal.
Quando composta por famílias que moravam na mata de
Cumuruxatiba a aldeia foi nomeada como Pequi [madeira]: ao
receber parentes que tinham migrado a muito para Mata Medonha e
retomarem uma área no Parque Nacional do Descobrimento se
renomearam como Pequiatã [uma outra variedade de Pequi, assim
como os citados nomes indígenas que são variedades de uma so
espécie: Pati / Patiburi, Oiti / Oitiguaçu]. O certo é que da mesma
forma que se assumir enquanto um Pataxó é assumir um nome
indígena, assumir-se coletivamente enquanto aldeia é nomear a
mesma.
Devereux (op cit: 406-407) discute a teoria de Parsons (1939) sobre
a implementação da individualidade a partir de tipos de relações
funcionalmente específicas onde tudo que não é explicitamente
incluído é excluído (ex: comprador/vendedor); difusas onde tudo que
não é explicitamente excluído é julgado como incluso (ex:
482 Ir para o sumário >>

esposo/esposa) e cumulativas (ex: patrão-amante/secretaria-


amante). Devereux aponta que este último tipo envolve relações
conflituosas e que o esquema de Parsons omite o tipo de relações
que predomina nas sociedades primitivas, cuja funcionalidade e
múltipla (ex. alguém que é a um só tempo chefe, general, sacerdote
e pater familias e que não pode ser nenhuma destas coisa sem que
seja todas as outras concomitantemente).
A predominância deste último tipo em algumas sociedades primitivas
não significa necessariamente uma implementação social extensiva
da singularidade pessoal, um atributo singular pode permitir a
atribuição a uma pessoa consentir um status em que suas relações
são funcionalmente múltiplas. É por isto que do topo ao fundo da
escala social as pessoas são funcionalmente mais intercambiáveis e
ao mesmo tempo possuem, ao menos em princípio, um alto grau de
liberdade para selecionar do quadro comportamental potencial os
aspectos que deseja atualizar a cada momento. Evidentemente a
implementação e o reconhecimento social da identidade pessoal
resulta da desintegração das relações funcionalmente múltiplas em
seus componentes, acompanhando especialmente o que Durkheim
chamou polissegmentação social, que permite a uma mulher ser a
um só tempo esposa de A, amante de B e cozinheira de C. Histórica
e socialmente implementada identidade de A emerge do
reconhecimento de que a pessoa pode ter simultaneamente classes
de identidades plurais com respeito a B e que estas classes só
podem ser relevantes em relação a diferentes pessoas e/ou
diferentes contextos. Mas o reconhecimento social das múltiplas
classes associadas a A também pode requerer o reconhecimento
que ele pertence a uma classe recortada por linhas étnicas
(Devereux, 1996 [1975]: 407)
Se ao selecionar apenas alguns aspectos do repertorio total a
identidade étnica parece teoricamente empobrecer e constringir ao
ser humano; tal é compensado pela maior a mais satisfatória
especialidade nos aspectos escolhidos para desenvolver (Devereux,
483 Ir para o sumário >>

1970, Cp 2 apud Devereux, 1996 [1975]) Esta seletividade tem


conseqüências sociais e psicológicas valiosas. Linton (1938) já
tratou a muitos anos da flexibilidade dos instintos humanos que o
capacita a organizar e permitir a predição do seu comportamento e
da sua personalidade o suficiente para tornar possível a vida em
sociedade. Para tornar sua personalidade predizível o homem ter
que prover para si uma armadura de hábitos e costumes a seleção
de certos aspectos para uma expressão comportamental consistente
vincula por nomeação A a uma série inteira de classes societárias,
uma série de identidades categóricas (grifos dele), uma das quais é
sua identidade étnica.
A, no entanto, pode ser único pelas identidades categóricas que
enumera, reunindo um induplicável acúmulo de imprecisas
informações sobre si ele se torna único, assim como, criativo e
espontâneo. Pela sua distinta seleção de certos aspectos do
repertorio potencial, não duplicada por nenhum outro, vista como a
self-ascription de uma série de identidades de classe, a identidade
única de A pode ser determinada pela enumeração de suas
identidades de classe, ou ao menos de um número suficiente que
torne impossível outra pessoa ter todas estas classes. Quando um
indivíduo possui um número suficientemente variado de identidades
categóricas, cada uma delas torna-se uma ferramenta numa ‘caixa
de ferramentas’ que é seu modelo único de personalidade. No
entanto, quando uma das identidades de classe de A torna-se
hypercathected ao ponto de conflitar severamente ou subordinar as
demais identidades de classe de A, manifestações de identidade de
classe singularmente disfuncionais começam a aparecer. O conflito
pode aparecer quando a identidade de classe principal se torna
menos efetiva que outras identidades em certas circunstancias (ibid:
409). Nestes momentos a identidade étnica, por exemplo, pode
deixar de ser uma ferramenta para tornar-se uma ‘jaqueta apertada’,
levando inclusive a uma obliteração da distintividade individual. Ela
pode levar a uma redução das várias identidades de classe que
484 Ir para o sumário >>

alguém possua, incluindo a aniquilação da identidade individual real


(ex. judeus na Alemanha nazi) (ibid: 410).

“...ethnic identity can be functional only if its scope is


substantially expanded and if it is appreciably decathected. It
must not be permitted to engulf, nor to become parasitical upon,
one’s other class identities, whose unduplicable accumulation
is, as pointed out earlier, the very basis of an authentic identity”
(Ibid:: 411-412)

Nesse sentido o autor pontua que uma expressão como ‘black is


beatiful’ só pode ser funcional e verdadeira, caso se subsuma que
‘branco também é lindo’. Para ele, qualquer ethnos incapaz de
reconhecer este fato tenderá a aniquilar as diferentes escolhas
individuais e a reduzir-se a uma unidimensionalidade. (Ibid:411-12)

“Na overriding emphasis on one of a person’s several ‘class’


identities, such as ethnic identity, simple seeks to shore up a
flawed self and an uncertain awareness of one’s identity as a
person. The current tendency to stress one’s ethnic or class
identity, its use as a crutch, is prima facie evidence of the
impeding collapse of the only valid sense of identity: one’s
differentness, which is replaced by the most archaic pseudo-
identity imaginable. I do not think that the ‘identity crisis’ of our
age can be resolved by recourse to the artificial props of
collective identities: of ethnic, class, religious, occupational or
any other ‘assistant identity’. I have said elsewhere that this can
lead only to a renunciation of identity, in order to fend off what is
apprehended as a danger of total annihilation” (Devereux,
1996 [1975]: 412).

É tênue a linha que separa uma escolha de um cacique, um


personagem político-ritual que representará a aldeia, a partir de
aspectos fenotípicos dele, de sua mulher e filhos, o que garantirá
485 Ir para o sumário >>

uma continuidade futura na representação da aldeia e propostas


ouvidas de membros masculinos e lideranças (incluindo um
cacique), para eles uma medida justa seria impedir as mulheres
Pataxó de terem filhos com não-Pataxó, pois, estes acabam por vir
morar na aldeia aumentando a mistura e a possibilidade de outsider
acusarem o grupo de não-Pataxó. Felizmente são propostas
isoladas e muitas feitas em tom de brincadeira, a prática geral
Pataxó é de que todos são aceitos e um filho de Pataxó, mesmo
com não-Pataxó e também Pataxó. Cabe notar que não foi
registrada a presença de homens não Pataxó nas aldeias visitadas,
ao contrário várias mulheres foram encontradas. Estas não possuem
nome indígena, nem usam os símbolos, ou participam do Toré.
Percebe-se, assim, a etnicidade como um fenômeno social
organizacional que drawing boundaries entre grupos, combinando
critérios de identificação e sinais diacríticos para canalisar a vida
social (Hannerz, op cit: 418). Ocorre tanto diversidade dentro de
grupos étnicos como semelhança entre os diferentes grupos
“Thus is why many recent studies de ethnic groups may tell us
little about ethnicity. It is not made the cultural forms described
as ethnic markers, and the studies tend to deal internal group
organization without explicity attention to the ways in which the
contrast with nongroup members is recognized as a facet of life
within the group” (loc cit).

Existe uma variedade de definição de limites, mas acostumamo-nos


a pensar uma situação onde todos concordam com as fronteiras de
forma estável e sem ambigüidades e é fácil identificar etnicamente
um indivíduo. Onde a comunicação entre os grupos no que concerne
a que sinais diacríticos serão considerados comportamento distintivo
será escolhido como marca o que for fácil para não-membros
reconhecerem como fruto de herança cultural (Ibid: 420). Há,
também, a possibilidade de uso de identidades alternativas em
pessoas de multiethnic background (421). Estas cruzam limites
486 Ir para o sumário >>

sociais “...aos quais [segundo BARTH, 1997 [1969]: 195-196]


devemos consagrar nossa atenção” por dependerem de um contínuo
processo de recrutamento e validação da pertença de indivíduos,
canalizando a vida social para formas complexas de organização
das relações sociais e comportamentais que implicam, não só a
manutenção contínua dos “...sinais de identificação, mas igualmente
uma estruturação da interação que permite a persistência das
diferenças culturais”.
Como aponta Cohen (1996 [1974]: 371-374), a descrição objetiva
dos “mapas cognitivos” que diferenciam os grupos étnicos é um
ponto de partida, sendo necessário verificar, também, como os
indivíduos manipulam estes símbolos que, por serem
representações coletivas, coagem e pressionam esta manipulação.
Nessa leitura a identificação étnica é vista como possuidora de um
caráter único, imputado ao amplo repertório de comportamento
potencial, que lhe dá uma plasticidade extrema (DEVEREUX, 1996
[1975]: 386) e a sua capacidade de englobar indivíduos que
compartilham heranças históricas, para além do status social e
econômico, distinguindo-os dos demais grupos sociais e fornecendo-
lhes o direito de determinar seu próprio futuro (HANNERZ, 1996
[1976]: 416).
Para Hallowell (1967 [1955]: 81)

“...the self has often been referred to as, also, a “social


product.” It might be more accurately characterized as, also, a
cultural product (grifo dele). For the acquisition and use of a
particular language, the specific content that is given to an
articulated world of objects that is built up pari passu with self-
awareness.”

A sociedade humana seria inconcebível sem a self-awareness


reforçada e constituída pelas crenças tradicionais sobre a natureza
do self, a um só tempo uma ordem social e moral que implica
487 Ir para o sumário >>

escolha entre padrões e valores e linhas de conduta, o controle da


vontade no seu comportamento enfim sem o desenvolvimento da
autoconsciência como parte intrínseca da socialização não se teria
uma parte essencial para o funcionamento da sociedade humana
(Ibid: 82-83)
Como na já citada teoria das orientações básicas de Hallowell, a
linguagem joga um papel básico na self-orientation e entre as
diferentes linguagens o fenômeno universal dos nomes pessoais,
relacionados não só a auto-identificação e para uma inequívoca
identificação do self por outros. Hallowell (1967 [1955]: 96) aponta
ainda para a necessidade de se estudar o papel do nome pessoal na
definição da orientação sexual, os nomes possuem vínculos sexuais.
Quando perguntados Pataxó homens e mulheres139 responderam
que existiam nomes de homem madeiras e caças como Pacu, Tatu e
nomes de mulher pássaros, aves como: Jandaia, Zabelê. Os nomes
ligados a aves e pássaros são principalmente femininos, a exceção
daqueles com sonoridade masculina nos padrões de gênero do
português como Tije, Sai, Sanhaço. Da mesma forma arvores e
palmeiras são especialmente ligados a masculinidade, menos
aquelas com sonoridade feminina nos padrões de gênero do
português como Jussara. No entanto, apesar de encontrarmos
nomes repetidos entre as aldeias e mesmo pela distancia das
aldeias o nome que é considerado feminino o é em todos os lugares,
assim como o são os nomes considerados masculinos. Ou sejam, já
identificam o self enquanto possuidor de um gênero (Apêndice).
Hallowell (1967 [1955]) destaca que na construção do self as
experiências de sonho tomadas como experiências pessoais. No
caso Pataxó a nomeação pessoal, seja a nomeação das aldeias que

139 Foram listados no quadro de análise 26 mulheres e 44 homens (a diferença explica-se pelo horário das entrevistas, no qual as mulheres

estavam trabalhando e foram menos entrevistadas). 42% das mulheres não possuem ou não falaram o seu nome indígena (11), 23 por cento dos

homens fizeram o mesmo (10). Parece que o costume é mais difundido entre os homens. Note-se que entre os Pataxó com mais de 50 anos

apenas em homens foram registrados nomes indígenas.


488 Ir para o sumário >>

lhe é similar, são experiências de contato com o passado, com os


antepassados vivos ou quase vivos, mortos e já quase mortos, o que
pode envolver a interação com estes em sonhos ou em possessões,
ou mesmo lembranças de interações estabelecidas enquanto tais
antepassados eram vivos.
Cada um dos nomes é um antepassado reencarnado
perpetuamente. Todos estes nomes e heranças de personalidade
são determinados por revelações, cujos limites, por indicação da sua
avó ou dos anciães, o beneficiário conhece previamente, aspecto
generalizado na América (Mauss 1974[1938]: 221). Apesar de toda a
modernidade envolvida nos self Pataxó o nome do cacique de Águas
Belas, Harimõ foi escolhido pela sua avó e expressa um modo como
ela lhe chamava desde a infância, usando o léxico Pataxó e cujo
significado declarado pelo possuidor do nome é “Venha logo”. Não
bastasse: os próprios nomes de registro se repetem e os nomes
utilizados agora por Pataxó são nomes de antigos líderes de
unidades domésticas de parentesco extenso já falecidos, repetem-se
não só no tempo como nas diferentes aldeias, onde todos são
parentes, todos assinam como último sobrenome o etnônimo
Pataxó.

Referências

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FRONTEIRAS”. IN: JOCELYNE STREIFF-FENART, PHILIPPE POUTIGNAT
(ORG.). TEORIAS DA ETNICIDADE. SÃO PAULO: UNESP, P. 185-228.
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JANEIRO/RJ: EDITORA RELUME DUMARÁ/PROGRAMA DE PÓS-
GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL – PPGAS, P. 177-190.
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HOUNDMILLS, BASINGSTOKE, HAMPSHIRE AND LONDON: MACMILLAN


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DEVEREUX, GEORGE.1996 [1975] “ETHNIC IDENTITY: ITS LOGICAL
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1996. THEORIES OF ETHNICITY. A CLASSICAL READER. HOUNDMILLS,
BASINGSTOKE, HAMPSHIRE AND LONDON: MACMILLAN PRESS LTD, P.
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GOFFMAN, ERVING. A REPRESENTAÇÃO DO EU NA VIDA COTIDIANA.
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GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo. 2001. Os índios do descobrimento: tradição
e turismo. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.
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HANNERZ, Ulf. 1996 [1976] “Some Comments on the Anthropology of Ethnicity in
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pessoa e a noção de eu”. In: LEVI-STRAUSS, Claude (Org.) Sociologia e
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etnicidade. São Paulo/SP: UNESP. 230 p.
VALLE, Cláudia Netto do. 2003. A questão da língua entre os Pataxó. Anais
da VIII Reunião da Associação Brasileira de Antropologia do Norte e Nordeste –
ABANNE. São Luís do Maranhão: UFMA, p. 148
Apêndice
1.Quadro geral de entrevistado
490 Ir para o sumário >>

S
Signific Aldei e Significa
Sexo N Índio Nasceu N Índio Aldeia Nasceu
ado a x do
o

H Coru Corumba M Jandaia Ave A N/J Não falou


mbau u

H Coru AB M Jussara Palmeira Corumba Corumbau


mbau comfrutas u
zinho pretas

H Coru Corumba M mangut Estrela AB AB


mbau uzinho xai
zinho

H Anambur Um coco AB AB M Não Cai/Tiba Cai/Tiba


i. falou

H Arimirin não TVP TVP M Não AB AB


falou tem

H Ariri Nãofalo Cai Cai M Não AB AB


u tem

H Bacurau Filhote AB Caveira M Não AB AB


de porco tem

H Bakira um BV BV M Não AB AB
fenótipo tem

H Caboclo Gato do Cai/T Cumurux M Não AB AB


jacutinga mato iba atiba tem

H Cabocoli passarin AN AB M Não AB AB


no ho tem

H Caititu caça Prad BV M Nilane - Não sabe AB AB


o Nil

H Canduru Madeira TVP TVP M Ramon Onça AB AB


rosnando

H Escorpiã inseto Cai Cai M Siul Não sabe AB AB


o

H Imbé Madeira Cai/T Cai/Tiba M Vai AB AB


iba escolhe
r
491 Ir para o sumário >>

H Jabuti Caça AB AB M Vai AB AB


escolhe
r

H Jacunarr Jacunã AB AB M Jandaia Ave A N/J Não falou


ã + rã

H Jitai madeira Cai/T Cai/Tiba M Jussara Palmeira Corumba Corumbau


iba comfrutas u
pretas

H Jitai madeira TVP TVP M mangut Estrela AB AB


xai

H João caça Cai Cai M Não Cai/Tiba Cai/Tiba


Tatu falou

H Maui Frutinha AB Boca da M Não AB AB


de fazer Mata tem
colar

H não falou AN Não falou M Não AB AB


tem

H Não tem AB AB M Não AB AB


tem

H Não tem AB Corumba M Não AB AB


u/BV tem

H Não tem Crav AB M Não AB AB


eiro tem

H Pati Pe de AN AN M Não AB AB
coco tem

H Paturi AB AB M Nilane - Não sabe AB AB


Nil

H Patyburi Pé de TVP TVP M Ramon Onça AB AB


coco rosnando

H Pituã espécie Cai/T Cai/Tiba M Siul Não sabe AB AB


de pitu iba

H Purrui Arco A N/J BV M Vai AB AB


Largo escolhe
r

H Quati Caça Cai/T Cai/Tiba M Vai AB AB


492 Ir para o sumário >>

iba escolhe
r

H Ranimõ Venha AB AB H Borosn Não falou Pequiatã MM


Logo a

H Saí Pássaro AB AB H Oitigua Madeira Pequiatã MM


çu

H Sanhaço Pássaro AB AB H Jiru Não falou Pequiatã MM

H Tamand caça AB Craveiro H Sabiá Pássaro Cai Cai


Sexo N Índio Significa Aldei Nasceu H Não Craveiro BV


do a em tem

H Tije Pássaro AB AB M Arapon Ave AB AB


ga

H Tije Passaro AB AB M Arapon Ave A N/J BV


ga

H Timbora Madeira Cai Cai M Assuria Onça TVP BV


na na

H Tucsai Espécie TVP TVP M Beija- Passarin AB AB


de Flor ho
tucano

M Cotijara Passarin AB AB M Caiçara Não falou TVP BV


ho

M Chauane Papagai AB AB M Inaturie Menina TVP TVP


o bonita +
natureza

M Gaturam Passarin A N/J Não falou M Jandaia Ave TVP BV


a ho

2.Glossário de Nomes e Significados Atribuídos

Nome Indígena Significado Nome Indígena Significado

Anamburi. Um coco palmeira com


pequenas frutas
Jussara pretas de fazer
colar

Araponga Ave mangutxai Estrela


493 Ir para o sumário >>
Arimirin Não falou Maui Frutinha de fazer
colar

Ariri Nãofalou Nilane - Nil Não sabe

Assuriana Onça Oitiguaçu Madeira

Bacurau Filhote de porco Pati Pe de coco

Bakira Um fenótipo Paturi Pato d’água

Borosna Não falou Patyburi Pé de coco

Beija-Flor Passarinho Pituã Espécie de pitu

Caboclo Gato do mato Purrui Arco Largo


Jacutinga

Cabocolino Passarinho Quati Caça

Caiçara Não falou Ramon Onça rosnando

Caititu Caça Ranimõ Venha Logo

Canduru Madeira Sai Pássaro

Chauane Papagaio Sabia Pássaro

Cotijara Passarinho Sanhaço Pássaro

Escorpião Inseto Siul Não sabe

Gaturama Passarinho Tamanduá Caça

Imbé Madeira Tije Pássaro

Inaturie Menina bonita + Timborana Madeira


natureza

Jacunarrã Espécie de Jacu + rã Tucsai Espécie de tucano

Jandaia Ave Jitai Madeira

Jiru Não falou Jitai Madeira

João Tatu Caça

3.Nomes de Homem e Nomes de Mulher


494 Ir para o sumário >>

H Arimirin H Oitigua H Saí M Inaturie


çu

H Ariri H Jiru H Sanhaço M Jandaia

H Bacurau H Sabiá H Tamanduá M Jussara

H Bakira M Araponga H Tije M Mangutxai

H Caboclo M Araponga H Tije M Nilane -


j0acuting Nil
a

H Cabocolin M Assuria H Timboran M Ramon


o na a

H Caititu M Beija- H Tucsai H Patyburi


Flor

H Canduru M Caiçara H Borosna H Pituã

H Escorpião M Cotijara M Chauane H Purrui

H Imbé H Maui M Gaturama H Quati

H Harimõ H Pati M Jitai M Siul

H Jabuti H Paturi H João H Jitai


Tatu

H Jacunarrã
495 Ir para o sumário >>


5.5. As Múltiplas Facetas da Festa do Mastro de São Sebastião. A
Máquina de Ascese do Poder Religioso140

Maria Geovanda Batista

Quem promove as novenas, prepara a celebração e deflagra o ciclo


da festa são os católicos; mas, quem comanda o espetáculo, ou
seja, a festa pública de rua, é um ou dois festeiros escolhidos entre
os que se candidatam para exercerem esta função de animador
popular, um ano antes (depois da procissão final no mesmo dia da
festa).
A Festa do Mastro de São Sebastião pode ser compreendida, pelo
menos, a partir de três versões, três pontos de vista e três ritornelos
diferentes:

• O ritornelo religioso (católico) - começa com a


realização de novenas e barraquinhas, uma semana
antes do dia “D”, dia dedicado a São Sebastião (20
de janeiro). Neste dia a programação começa com
uma missa pela manhã e termina com a procissão e
o hasteamento do mastro com a bandeira, na porta
da Igreja de Santo Antônio, ao final do dia, podendo
continuar noite adentro, na residência do festeiro
(para lembrarmos de um costume mais antigo, muito
praticado no passado entre os “iguais”). A festa foi
preservada, os seus territórios é que migraram para

140 Parte da dissertação da autora.


496 Ir para o sumário >>

as zonas comercias: os bares, barracas, restaurantes


e pousadas da cidade.

• O ritornelo indígena Pataxó ou “Brincar-de-Índio” - é o


mais extenso de todos e começa muito antes. Ele
inclui as atividades preparatórias, a pragmática do
Auê e os ensaios que precisam começar quatro
meses antes. Começar a tempo de se poder ir à
mata e aos arredores para se fazer a coleta dos
frutos e das sementes que enfeitarão os colares, os
brincos e pulseiras - no tempo certo, no momento em
que estiverem maduras, prontas para serem
perfuradas. Por sua vez, os canto precisam ser
organizados, reciclados, readaptados, inspirados e
dançados. O maracá precisa ser confeccionado e as
cabaças bem selecionadas; o cauim tem de ser
minuciosamente preparado; o urucum e o Jenipapo
não esperam para que deles sejam extraídas as
melhores tintas. Arcos, flechas e bordunas precisam
ser renovados, enfim. É deste modo, que a uma
semana da festa em si, os Pataxó e as suas moradas
se tornam o alvo das atenções, dos curiosos de
plantão, dos turistas que já incluíram em seus
roteiros de viagem esta data e, de outros não-índios,
com quem fizeram amizade.

• O ritornelo da “Festa do Pau do Bastião” – por ser


considerada uma versão ‘profana’, se insere entre os
dois, o católico e o indígena Pataxó. É o mais prático,
o mais fácil e o mais rápido para ser preparado.
Basta apenas que haja gente animada, um batuque,
o mastro e alguma bebida; de preferência, o
497 Ir para o sumário >>

“matarrindo” - bebida especialmente preparada para


a ocasião, por uma de suas figuras mais expressivas
e animadas, Dona Sizaltina, ou melhor, Dona Siza,
uma professora aposentada co-criadora deste
ritornelo na década de oitenta, quando chegou à
Cumuruxatiba. Por causa do “matarrindo” muitos
Caboclos Aymoré, vndos do Prado, especialmente
para substituírem o antigo “cordão Pataxó” ( a convite
de seus organizadores, já tombaram, como também
tombaram muitos Pataxó, Tupinikim e mestiços de
toda ordem, que seduzidos por seu sabor contagiante
não se contêm em seus apetites alcoólicos. Se, por
um lado o “matarrindo” funciona como um
componente “feiticeiro” na festa, por outro lado, o
canto e a dança do brincar-de-Índio também têm os
seus próprios “devires-bruxo” , sua face “anômala”,
observe o que diz esta chula cantada pelo grupo-
pesquisador: <“Bahia terra de coco e de azeite de
dendê, a água de coco é doce eu também quero
beber. Vamos dançar e rebolar o cachimbo, quero
ver meu inimigo enrolado com cipó”.>

A Alegoria da Festa

Devo ressaltar que as produções populares e as qualidades


expressivas que tomam parte da Festa do Mastro de São Sebastião
em Cumuruxatiba não podem ser interpretadas como uma analogia
em relação às dramatizações que costumam representar a luta entre
Mouros e Cristãos ou dos autos que foram difundidas pelos padres
jesuítas na catequese, a exemplo do modo como o dia deste Santo é
festejado em outros povoados e municípios da região (Prado,
Helvécia, Caravelas, Porto Seguro, etc). Quero deixar claro que esta
498 Ir para o sumário >>

festa é uma produção muito singular, mesmo que consideremos que


no seu nível molar, ela seja determinada por decisões vinculadas às
forças religiosas da tradição católica, apostólica romana. Sua
singularidade está no fato de que quem cria e produz o seu texto, os
enunciados e a performance alegórica individual e coletiva, são as
tribos com seus próprios atores; entre as quais, destacamos a tribo
Pataxó e ainda, os católicos e os “foliões da massa”. Essa
modalidade de jogo dramático-religioso que procura embutir numa
festa maior, componente de culto ao lado de figuras poéticas, de
elementos lúdicos e profanos, parece mesmo ter sido herdada dos
autos jesuíticos, cujas alegorias foram programadas e desenvolvidas
como uma forma de poder-disciplinar posto a serviço da catequese
dos “pagãos” nas missões que sucederam ao longo desta e de toda
a costa brasileira, junto aos povos praianos ou “Caiçaras”.
É verdade que a alegoria seduz, e seduz porque a combinação de
formas simples e potencialmente polissêmicas, já trazem consigo um
terrível poder de contagiar os diferentes processos de singularização
dos devires, de aglutinar as “diferenças” e, até mesmo, os
antagonismos molares, através da persuasão, da facilidade de
acesso, da simplicidade das imagens e da uniformização da leitura
coletiva.
Ao se referenciar à alegoria, no pensamento de Lukács e Benjamim,
Alfredo Bosi (1995: 80) foi contundente em afirmar que alegoria faz
calar o outro que ouve, observa e assiste induzindo-o a entrar no
discurso de quem fala, por isso, quando analisou a obra da
catequese e os autos de Anchieta na dramaturgia jesuítica conclui:
“A velha alegoria, determinada por uma transcendência religiosa,
tinha a missão de humilhar a realidade terrena, contrapondo-a a
ultramundana ou celeste, até a sua plena nulidade”.
O singular desta modalidade poética e sociocultural do brincar está
muito aquém das alegorias; embora, os pontos, os contrapontos e as
circunstâncias sejam dados, a relação com os impulsos e com os
blocos de devires não são dados, a priori. Daí porque as relações
499 Ir para o sumário >>

que estabelece e produz se tornam sempre criativas e singulares,


neste contexto. Bem menos ousados e criativos do que os jesuítas
estes católicos contemporâneos que protagonizam a Festa do
Mastro de São Sebastião, em Cumuruxatiba não criaram nada de
novo em termos de arte; tampouco, repetem ou reproduzem na
íntegra as velhas alegorias do passado. Simplesmente terceirizam o
auto da festa para poder melhor disciplinar e quebrar a espinha
dorsal do imaginário e do devir-Índio dos Pataxó que teimam invadir
‘a sua praia’ ou este tal território religioso secular. E invadem, não
porque foram assimilados, integrados ou coisa parecida; tampouco,
para imitar ou encenar um enredo proposto por seus algozes, mas,
para imprimir intensidades às suas matérias de expressão ou
qualidades expressivas e liberar os processos de singularização dos
seus sonhos, de seus blocos de devires: devir-Índio, devir-criança,
devir-mulher, devir-animal, devir-pássaro, devir-planta, devir-água,
devir-terra, devir-fogo, etc.
O fazem assim, desenvolvendo simultaneamente e exibindo seu
próprio jogo alegórico, o seu próprio ritornelo, com autonomia e total
liberação da subjetividade.
Bem, mas o que fazem os “donos da festa” para dobrar os devires
que teimam em se incorporar nos brincantes? É simples e todos nós
(brasileiras e brasileiros) conhecemos este dispositivo, como já disse
antes, eles escolhem um ou dois festeiros de “fora”.
Para ser festeiro não é preciso ser ‘religiosamente’ um católico
praticante, nem ser um morador do povoado. Seguindo a regra dos
últimos quinze anos, o que o festeiro não pode ser é Índio Pataxó.
Em tempos passados os católicos, os nativos e os Pataxó eram
quase as mesmas pessoas. Segundo relatam a gestão da festa, por
muitos anos, foi coordenada por Dona Corina, aquela senhora
(cafuza) ‘afro-indu-brasileira’, dona do primeiro Cartório que compôs
o Hino dos Pataxó de Cumuruxatiba (1940-1945) e primeira
professora dos indígenas do lugar. Uma situação ideal, visto que não
havia nenhum obstáculo ou situação embaraçosa com censuras,
500 Ir para o sumário >>

casos de intolerâncias ou de incongruências religiosas ou


educativas, do tipo católico X pagão. Essa situação de poder e de
comando “ideal”, só durou até a passagem da década de oitenta
para a década de noventa do século último passado. A Dona Corina
“se encantou”, morreu e após os nativos terem perdido esta
hegemonia, as antigas práticas de jogo foram alteradas no povoado,
e suas regras, modificadas. Se antes o antigo capitão de bandeira
tinha prestígio, se era ele quem balizava a procissão, colocando em
relação de simbiose a sua Fé judaico-cristã com suas práticas
xamânicas, nos dias atuais, não é sequer percebida sua existência;
suas práticas singulares passaram a ser folclorizadas e diabolizadas.
Se o festeiro era alguém que animava, congregava e tinha o poder
de influenciar toda a comunidade em torno de seu exemplo, hoje em
dia este critério passou a ser mais relativo. O que passou a dominar
nos últimos anos foi a passagem desta função para uma hegemonia
de moradores e não-moradores, geralmente migrantes, inclusive,
alguns veranistas mais assíduos e entusiasmados com o lugar ou
com a festa, em si mesma, (de algumas posses) que não sejam
moradores. Esta prerrogativa que exclui o Índio para privilegiar o
“estranho” só tem contribuído para acentuar ainda mais, os conflitos
pluriculturais já existentes e gerar outros novos, afirmam os
pesquisandos.
O estranho, o visitante ou o morador migrante - seja ele quem for, ao
desconhecer a historicidade da Festa e a sua natureza plural acaba
sendo induzido a reproduzir o preconceito sem saber que o está
praticando.
Brandão (1984: 22-24), em “Casa de Escola”, ao analisar a Folia em
Minas Gerais e em Goiás afirmou que este tipo de jogo refere-se ao
que foi redefinido pelos agentes religiosos da colonização como
“formas marginais de crenças e cultos profanadores do saber e do
trabalho religioso exercido pela igreja, através dos seus agentes
oficiais”. É bom lembrar que as formas de cultos produzidas pelos
501 Ir para o sumário >>

nativos, pelos Pataxó, até bem pouco tempo, em Cumuruxatiba não


eram profanas, mas legítimas, agora, sim.
Os migrantes, recém chegados ao distrito, depois de se apropriarem
dos sistemas locais, do repertório de crenças, dos ritos e ou do culto
católico ensinados pela Igreja local, através das confrarias, das
irmandades de leigos devotos que se formaram após o advento de
sua chegada a partir do final da década de oitenta, no século
passado, acabaram comandando os espaços-tempos existenciais e
simbólicos, onde se realiza a pragmática religiosa.
Longe do pároco e das demais autoridades instituídas pela
hierarquia eclesiástica, o poder de autonomia destes fiéis ‘não-
índios’ cresceu. E cresceu incorporando e ou cooptando os nativos,
à medida que alguns deles foram abandonando suas antigas
filiações e vínculos ancestrais com as práticas que foram
classificadas como “pagãs”. Desligada das práticas e das crenças
anteriores, essa nova tribo judaico-cristã, passou a ignorar o
conteúdo do aprendizado deixado por seus antepassados, ensinado
por seus parentes e por toda a comunidade a qual pertenciam
integralmente, praticando assim, o que os “outros”, já faziam:
condenar, diabolizar, até finalmente, “proclamar sua ilegitimidade” e
co-laborar para varrer seus ritornelos e sua poética sociocultural das
imediações do templo, por considerarem como a parte ‘podre’ e
‘não-séria’ da devoção a São Sebastião.
Embora, muitos dos ‘estrangeiros’ que passaram a proibir tais
práticas possam igualmente ser chamados de populares brasileiros,
eles não sabem que o imaginário e a ‘inteligência coletiva’ dos povos
indígenas criam e recriam o aprendizado produzido através do
trabalho e da economia do desejo, transformando-o no ‘corpus
religioso ‘de seus sistemas comunitários, como já definiram muitos
antropólogos. Ignoram estes atores sociais que a ruptura com essas
pragmáticas e seus elementos existenciais, costuma gerar o
desequilíbrio social e cultural entre as famílias e os membros da
502 Ir para o sumário >>

comunidade, além da violência, do vício, da esquizofrenia e da


loucura.
Neste caso, os mestiços nacionais migrantes (não-índios) cercearam
justamente a parte mais cara e mais preciosa que foi herdada e
preservada da tradição dos Pataxó, o seu hãmiya, a prática do
brincar-de-índio, os dispositivos que dispunham para produzirem as
relações de alteridade de que mais precisavam. Afastados das
aldeias, desmotivados, em posição de desvantagem jogo de caça-
caçador que foi imposto, também colocaram em estado de repouso
em relação às suas práticas, o Auê.
Ao que tudo indica, entre os diferentes que constitui a diversidade
nativa, os Pataxó foram os que menos cederam neste aspecto. Por
isso, muitos acabaram abandonando a igreja católica. Uns ficaram
sem religião oficial, outros migraram para os templos pentecostais;
de modo que poucos, bem poucos, resistiram e passaram a
acompanhar de longe a festa, solitariamente vestidos e pintados
como faziam no passado muito próximo (até 1990), enquanto
esperavam que a prática fosse novamente reconquistada,
reinventada e ou restaurada (a partir de 2001). Foi graças aos
poucos que resistiram que se tornou possível e relevante a
realização deste estudo.
Os demais nativos, embora alinhados ao catolicismo, acabaram
contrariando sua orientação. Ironicamente, muitos foram parar do
outro lado, passando a engrossar de forma singular, a parte da festa
que é considerada pelos católicos, a mais profana de todas: “a Festa
do Pau do Bastião”. E passaram a participar dela porque lhes faltou
alternativa. Começaram então a tecer aliança com os migrantes (os
outros moradores não-índios) e com os turistas da temporada do
verão. E fizeram assim, porque também queriam se sentir à vontade
e livres para participarem dos três ritornelos e se relacionarem com
“todo mundo”. São estes nativos transculturais que atualmente vêm
503 Ir para o sumário >>

exercendo a ‘perigosa’ e contraditória função de mediadores entre


estas modalidades festeiras e seus protagonistas.
Embora, a nossa ênfase aqui neste estudo, seja o Brincar-de-Índio,
do ponto de vista do grupo-pesquisador Pataxó, pude acompanhar
os três segmentos que produzem a Festa no povoado, nos últimos
três anos. Testemunhei exatamente o momento em que a tradição
passou a ser reinventada, recriada e restaurada por seus próprios
autores e através da participação decisiva do grupo-pesquisador, da
Rizomática e da Sociopoética. Ao transformarmos o real para
conhecê-lo não sabíamos que neste gesto sutil, estávamos nos
conectando com os antepassados, os ancestrais e os encantados
dos Pataxó em vias de se reterritorializarem.

De como São Sebastião O Caboclo da Mata e Oxossi vieram


Cantar e Dançar na mesma Festa

“São Sebastião vem cá vem ver, a nossa batalha temos que vencer”
(Chula Pataxó).

Os Pataxó de Cumuruxatiba aprenderam com seus antepassados


que se recusaram a serem catequizados, que é o nome do Santo
que lhes assegura o consentimento para “Brincar-de-Índio” e saírem
com o seu cordão no dia 20 de janeiro (dia em que se realiza a
Festa do Mastro de São Sebastião). Os Pataxó consideram que não
é a autoridade eclesiástica que tem o poder de autorizá-los ou de
proibi-los de participar deste jogo-ritual.
Eles desconhecem estas hierarquias institucionalizadas pela
Religião e preferem acreditar que é o “anômalo” São Sebastião
quem lhes confere a licença e oficializa o convite ao Caboclo da
Mata - o guerreiro caçador que os anima, os encoraja e os ensina os
segredos das matas, de seus habitantes, da cura e da luta pela vida
– para participar diretamente desta festa, cantando e dançando com
504 Ir para o sumário >>

sua tribo encantada: <“Caboclo da Mata eu conheço você, sou


caboclo de Aruanda sou Caboclo Aruandê”.>
Brincar-de-Índio, do ponto de vista socioantropológico é mais um
desses jogos tradicionais ou mais uma Folia. Do ponto de vista
rizomático é mais um desses ritornelos, cujas qualidades
expressivas constituem no território pontos para adotar como
contrapontos na relação direta que estabelecem entre a
intencionalidade, o devir e as circunstâncias do meio exterior. Trata-
se de mais uma âncora manejada pelos próprios Pataxó para se
indianizarem como desejam. Ou seja, é uma multiplicidade de
expressões criativas, inventadas pelo ‘imaginário popular indígena’
do Brasil, que tomam a forma poética e sociocultural do brincar
como um jogo dramático tradicional enraizado. Um ritornelo que na
década passada tornou-se proibido e boicotado pela Igreja, que foi
‘renovada’ após a chegada de seus novos adeptos. Entre estes,
alguns neocolonialistas, muito atuais. Tão atuais que no apagar das
luzes do segundo milênio, quase 500 anos depois do Brasil ter sido
colonizado, a exemplo do que fizeram seus antecessores na
catequese jesuítica, não mediram esforços para expulsá-los,
varrendo do ‘templo sagrado’ judaico-cristão tudo que fazia lembrar
a ‘indigesta tradição indígena (Pataxó)’: o jogo-ritual em homenagem
e louvor à Natureza, às forças do Mar e da Mata, aos encantados e
aos guerreiros que lhes dão guarda e proteção: o Caboclo da Mata,
São Sebastião, Oxossi e Janaína.
São Sebastião é um santo católico muito popular, principalmente no
litoral brasileiro, que remonta os tempos coloniais das missões
jesuíticas. Um santo guerreiro que invoca as potências da guerra e
da luta pela justiça dos mais “fracos”. Seja sob a forma do Caboclo
da Mata, de Oxossi ou de São Sebastião, o fato é que Nele estamos
em contato direto com aquelas nossas qualidades mais combativas
e criativas: da sabedoria, da coragem, da bravura, da
implacabilidade, da paciência, da sensibilidade e porque não, da
505 Ir para o sumário >>

doçura e da cura. Quando Maria José Rodrigues Moreira, filha do


empreendedor Júlio Rodrigues chegou com sua família em ‘1931’,
foi movida por esta crença no milagre da cura, através do Santo (“Eu
estive bem mal. No dia 20 de janeiro na subida do mastro em honra
141
de São Sebastião , mamãe pediu a Ele que restituísse a minha
saúde” . ).

O Devir-Guerreiro

“Oxossi quando eu saí da minha aldeia / montado no meu cavalo


com a espada de um lado. Enquanto eu saía a minha mãe me
abençoava” (Chula Pataxó).
Nesta chula, por exemplo, é possível identificar a presença afro-
brasileira de Oxossi, possivelmente trazido pelos negros
escravizados da primeira Fazenda implantada pelo inglês Charles
Fraser (1807), já citada. Também, a figura feminina da “Mãe” que
todos protege e abençoa. Esta dupla presença do Feminino e do
Masculino que surge permeando o clima da Festa do Mastro de São
Sebastião conquista uma maior expressividade através das cores:
“Vermelho” - forças masculinas, energias guerreiras, forças
caçadoras, devires-animais vindos das matas - e “Azul” - ligado às
forças femininas que vêm do elemento Água; ao cuidado; à
proteção; ao culto, à disciplina e à flexibilidade). Essas cores são as
cores expressas nas bandeiras que os Pataxó empunham e
carregam firme à sua frente, como mostra a figura anterior.

Devir-Mulher: Devir-Molecular

A sexualidade passa pelo devir-mulher do homem e pelo devir-


animal do humano (...). As moças as crianças não extraem

141 Grifo nosso


506 Ir para o sumário >>

suas forças do molar que as doma, nem do organismo e da


subjetividade que recebem: elas extraem todas as suas forças
do devir-molecular que elas fazem passar entre os sexos e as
idades, devir-criança do adulto como da criança, devir-mulher
do homem como da mulher (DELEUZE e GUATTARI, 1997b:
70) .
É verdade que todos os devires são moleculares, que não nascemos
Mulher, mas nos tornamos Mulher num sentido molar através da
máquina dual do aprendizado sociocultural, que nos coloca em
contraste e na maioria das vezes, em oposição ao Homem. A
Mulher, a Menina ou a Moça, não podem fazer a Si mesmas.
Ninguém, nenhum homem, nenhuma de nós, poderemos nos tornar
mulher, moça ou criança sem vivenciarmos esta forma de Devir. Os
guerreiros antes de entrar num devir-guerreiro, assim como, o
músico, o adulto, a criança e todo outro, para incorporar os seus
devires singulares, para entrar em conexão com os seus sonhos e
desejos, precisam antes de tudo, devir-mulher (DELEUZE e
GUATTARI, 1997b: 66-69). Em seu ritornelo de partida (de
desterritorialização) na chula anterior, eles fazem a invocação a este
devir-mulher, devir-molecular: < “Enquanto eu saía a minha mãe me
abençoava”.>
Os filmes de guerra, de aventura e de ação estão repletos destes
exemplos em que seus protagonistas estabelecem esta relação com
a mocinha, a dama, a heroína, a informante, a amada, a feiticeira, ‘a
maldita’, etc.
Quando na chula, os Pataxó afirmam que “enquanto eu saía a
minha mãe me abençoava”, estão fazendo esta primeira invocação
de sua Mulher molecular para que ela possa guiá-los em todos os
seus passos, nos outros devires que sucederão formando blocos,
conglomerados de multiplicidades, as mais diversas e as mais
surpreendentes.
Percebe-se que devir, devir-mulher, não significa imitar, nem
assumir uma forma feminina ou transexual. Os brincantes do grupo-
507 Ir para o sumário >>

pesquisador cantam assim para que possam lançar partículas


capazes de (com) penetrarem numa relação de movimento e
repouso ou numa região de aproximação com uma microfeminilidade
que seja capaz de produzir em seus corpos lúdicos uma mulher
molecular, de criar em Si a mulher molecular para se liberarem e se
fazerem criativos em seus outros devires.
Daí porque não podemos explicar este ritornelo reduzindo as nossas
análises à explicação pura e simples da alegoria, do jogo tradicional,
nem das formas transcendentes de sincretismo religioso. Trata-se
de uma luta democrática que se vale da arte, das intensidades
guerreiras, do devir-caçador, da potência maior que vem das matas,
das águas e de seus mistérios inter e trans-subjetivos. Um espaço-
tempo outro, mais “coletivo e muito mais transicional”, visto que é
imanente e passageiro, ‘transitório’. Porém, com potência suficiente
para reunir em seu fluxo elementos heterogêneos incorporando com
rigor as diferenças, entre a ilusão e a realidade.
Onde também se faz possível retornar à Grande-Mãe, àquela
Mulher-Sábia e dadivosa que se revela ora como Bruxa, ora como
Fada; ora como Caapora – Mãe da Mata; Janaína; Iemanjá - Mãe
D’Água ou sob todas as demais formas de aparição da Nossa
Senhora (Maria, Conceição, D’Ajuda, Fátima, Guadalupe, Aparecida,
etc).
Através de Deleuze e Guattari (1997b: 92) já sabemos que o devir
não é um ponto, mas “um movimento pelo qual a linha libera-se do
ponto para tornar os pontos indiscerníveis: rizoma (...) uma
antimemória”.
Devo ressaltar que esta experiência do “Brincar-de-Índio” não se
prendeu apenas à participação no Dia “D”. Ou seja, no dia da
apresentação do “produto Pataxó” - do efeito de um prazeroso e
invisível processo de ensino-aprendizado; de produções de
alteridades múltiplas; de interculturalidades diversas; de trabalho
pesado e de Auê animado.
508 Ir para o sumário >>

Pelo contrário acompanhamos tudo de setembro a janeiro, durante


os três últimos anos, o suficiente para testemunhar este processo
em que os Pataxó vêm retomando, pouco a pouco, os ritornelos de
seus Caboclos; rompendo com uma década de abstinência e de
silêncio em torno de Si e de sua poética sociocultural no “brincar-de-
Índio” no dia consagrado a São Sebastião/ Caboclo da Mata/
Oxossi. Como já dissemos, começamos muito antes (a quatro
meses do evento), um tempo bastante razoável para que pudesse
também, aprender a dança, o canto que anima a prática do Auê;
freqüentar os ensaios, participar da fabricação dos artefatos; da
coleta de materiais a longas distâncias, em ambientes considerados
“proibidos” por entre as muitas idas à mata, às barreiras onde
brotam muitas plantas com sementes coloridas (próprias para a
confecção de bijuterias), etc.
Ocorre que no dia da festa, espaço-tempo de nossa reflexão neste
trabalho, os afetos, as intensidades aglutinadas nos blocos de
devires oscilaram entre dois momentos. Um momento ótimo onde o
grupo preparou, trabalhou por quatro meses, ensaiou e, finalmente,
se apresentou na porta da Igreja Católica que no primeiro ano não
lhes cabia, e, um momento péssimo, em que o “Mastro” lhes fugiu às
mãos e fica cativo nas mãos da turma do Pau do Bastião, que saiu
atrás. Há um misto de “união-desunião” em torno do Mastro que
institui e regula a cooperação e a competição.
A união, a cooperação é maquinada pelo tamanho e pela espessura
sempre agigantados do mastro - que é rigorosamente escolhido na
última lua minguante do ano. Ninguém sozinho tem força suficiente
para levantá-lo. É verdade, “a união faz a força!” E, fazer força não
os impede a alegria, quando esta pode ser feita por uma tribo com
seus pares. Doze homens fortes o suspendem para acomodá-lo
sobre seus ombros musculosos, forrados por almofadas
improvisadas na última hora. A desunião surge quando há grupos
rivais e ou rivalidades e incompreensões que impedem que o mastro
seja compartilhado pela pluralidade brincante, impossibilitando todo
509 Ir para o sumário >>

e qualquer entendimento em torno dele. Quando, por exemplo, a


tribo Pataxó se encontra com os brancos, os mestiços nacionais
desejosos de lhes tomarem o mastro para produzirem sua festa
igualmente singular: “a Festa do Pau do Bastião”.
A descrição a seguir, retrata este momento em que os Pataxó
perdem o domínio sobre o mastro e conseqüentemente, sobre todo
o resto da programação da festa. 142
“Eles se cansam. Afoitos, muitos não-índios se oferecem para
carregar o ‘Mastro’, que logo é aceita e bem recebida a ajuda que
alivia o esforço. É nesta hora que termina o primeiro momento, que
poderíamos considerar encerrado o primeiro ato. Segue-se o
momento, onde há o declínio de sua alegria ,de sua motivação e
entusiasmo com a festa. É quando os não-índios e turistas tomam o
seu controle, interferindo e transgredindo às regras do jogo ritual,
impondo outras. Ë quando a Festa do Mastro de São Sebastião se
transforma na Festa do ‘Pau do Bastião’. Agora, não é mais o
católico que determina o seu repouso ou silêncio público pela
humilhação de seus “encantados” e seres sagrados; também não é
mais os ‘caboclos do Prado’ quem lhes substitui caricaturando-os
como folclore, muito menos, uma variação de seu brincar, mas a sua
vergonha. Ao lado dos cultos ‘profanos’ daqueles que sem tradição,
ou razões religiosas para lembrá-las e reatualizá-las, se fixam
apenas ao gozo e ao prazer como produto do ‘folclore’. Poderíamos
afirmar que se trata de uma celebração onde alguns momentos
rituais ocorrem por justaposição de territorialidades móveis que vão
compondo um mosaico nômade, indicando uma miríade de
possibilidades igualmente polêmicas, polissêmicas e polarizadas,
que parecem coexistirem no exercício da (in) tolerância possível e
da (in) diferença controlada que os autoriza aproximarem-se e
afastarem-se no momento oportuno. Desta vez, o grupo-pesquisador
é forçado a se afastar para darem lugar a vazão libidinosa que

142 Caderno de Itinerância . 20 de janeiro/2001


510 Ir para o sumário >>

alguns moradores não-índios, vindos de outros lugares promovem


juntamente com vários turistas, que bastante entusiasmados se
esfregam no ‘Pau do Bastião’, seguidos de alguns jovens ‘nativos’ .
Na erótica do jogo e no jogo da erótica dos ‘brancos’, dançar com o
pau entre as pernas, sentar-se nele, pegar, tocar, montar, roçar dão
sorte e virilidade no sexo. Quase todos entram na “brincadeira’ ,
misturam-se por entre crianças, mulheres, jovens adultos, velhos;
alguns alcoolizados que parecem gozar no movimento do êxtase.
Verdadeiras coreografias se formam sobre o pau entre as pernas de
dezenas de brincantes Outros. Não resta dúvida que este ‘cordão’
dos brancos é diferente do cordão dos caboclos do Prado, que por
sua vez é diferente do ‘cordão Pataxó’ dos ‘nativos’. Assim como, é
diferente do cordão que se forma com a procissão religiosa dos
católicos. As crianças se retraem entre ares de interrogação, de
estranhamento, de graça, outros de raiva, por estarem estragando a
brincadeira, transgredindo as suas regras . Muitos constrangimentos
se passam, até que finalmente se retiram e vão embora. Após se
envolverem num conflito com um “nativo” que bebia em uma barraca
na beira da praia. Trajeto imprevisto por eles, decidido pelos
‘Outros’. Agora regia as regras da ‘ Festa do Pau do Bastião’. Já era
tarde... , já era outro jogo”. Conflitos como este pude testemunhar
nas três festas que participei com objetivo de estudá-las (2001-2002
e 2003).

NOS RIZOMAS DA ALEGRIA VAMOS TODOS HÃMIYA!

Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem


genealógica. Devir não é certamente imitar, nem identificar-se;
nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações
correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir
por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele
não se reduz, ele não nos conduz a "parecer", nem "ser", nem
511 Ir para o sumário >>

“equivaler”, nem “produzir”. (DELEUZE e GUATTARI, 1997b:


19)

Já é chegada a hora de esclarecer o título do presente trabalho


afinal, nomear uma tese, atribuir sentido ao nome que escolhemos
para nomear as coisas, os seres e o mundo é como nomear um
brinquedo, uma estrela recém descoberta, também tem os seus
próprios segredos e mistérios escondidos. À revelia do que pensam,
do que digam a respeito, Hãmiya não é uma árvore, hãmiya é um
rizoma. O retorno sempre renovado às raízes sempre implica em
rizomatizar em tecer o conhecimento, em articulá-lo em rede para
que possa crescer, significa multiplicar-se em todas as direções. Por
onde começar? Começando pelo meio: entre “os condicionamentos
do passado e as incertezas do ‘como será o amanhã’”. O Presente é
o que importa. E ele é tão somente, a certeza de um Tempo real de
uma existência, corporal, espiritual, afetiva, perceptiva e racional.
O termo rizoma além de ter sido influenciado pela opção teórica que
fizemos, a Filosofia do Devir ou rizomática, vem do grego -
143
rhízoma , refere-se à qualidade do imperceptível, do inaudível, do
impalpável da vida embrionária que habita a matriz (raiz). O
impensável, o ‘indeterminado’, o anômalo para ser gerado, para
germinar, vir à luz ou emergir, precisa do vazio que se abre com os
sulcos por onde flui e escorre as águas da emoção. Uma cantiga de
ninar, uma palavra, uma idéia, um conceito é afeto e os afetos sãos
devires. Os devires, por serem linhas de fuga formam rizomas.
Também precisam das cavidades, do côncavo que são valas
específicas ou simplesmente: “o vazio”. Haverá sempre o risco de se
cair nas ‘valas comuns’, ser ignorado, ocultado, iludido ou
esquecido. Winnicott (1982) definiu este espaço-tempo do “vazio”
que se forma entre a mãe e a criança, como “espaço-transicional” , o
143 É um termo utilizado pela Botânica que o define como um caule radiciforme e armazenador das monocotiledôneas. Caracteriza-se não só

pelas reservas, mas também pela presença de escamas e de gemas, com terminal bem desenvolvido. Geralmente, em sua formação apresenta

nós, e na época da floração exibe um escapo florífero. Em pteridófitos tropicais há rizomas aéreos. O gengibre e o bambu têm rizoma.
512 Ir para o sumário >>

objeto que preenche este ínterim de ‘objeto transicional’ (suporte de


brincar). Os Pataxó definiram este espaço-tempo do vazio que se
forma entre o Homem, a Mulher, a criança e os outros seres da
Natureza como Auê e hãmiya. Os biólogos chamaram de útero a
cavidade que abriga, nutre e protege o embrião, que é a “mãe-do-
corpo” para o senso-comum. De modo que o rizoma é algo que
sempre nos remete a um Natal, a um território, “ao lugar onde
nascestes”, “ao ventre que te embalou”.

A Primavera dos Devires

“O saber deve ser uma força revigorante e vitalizadora. Isso só é


possível quando há um intercâmbio estimulante com amigos afins,
em cuja companhia se possa debater e procurar aplicar as verdades
da vida”.
(I Ching, hexagrama 58: Alegria -Lago) 144

A Alegria têm muitas faces, muitos estados de ânimo. Todas as suas


faces são belas e sedutoras, portanto, positivas e contagiosas. Há
uma alegria constante que é tecida pelo ato de aprender, de
“descobrir o novo às avessas”, que se realiza no desenvolvimento do
processo do aprendizado, que se expressa no “produto do
improdutivo” que ele apresenta. Há uma outra alegria, a alegria da
“diversão”, do entretenimento, dos ‘objetos e dos espaços
transicionais’ feitos para disfarçar o vazio, a perda, a falta. Que por
ser inconstante se transforma numa experiência de alegria fugaz,
numa euforia desenfreada. Em contrapartida a alegria da partilha
nunca se esgota, não acaba nunca. Como nunca acaba a alegria do
sentir-se saciado, de saber-se farto, no momento em que todo
desejo se aquieta e todo apetite sente-se satisfeito. Se, penso na

144 WILHEM, Richard. IChing O Livro das Mutações. São Paulo: Editora Pensamento. 1995: 177 , 178.
513 Ir para o sumário >>

“Fome” dos que tendo fome por não terem o que comer, também
penso no desperdício daqueles e daquelas que tendo mais do
precisam para viver, não sonham e nem encontram razão para
dividir, nem motivação para viver. É diante deste paradoxo que o
devir se torna uma força rizomática. Sejam elas, forças do ar, da
água, da terra ou do fogo. Neste sentido é o nosso próprio corpo que
é um rizoma. Os povos Tupi-Guarany por saberem bem disso, nos
ajudam a fazer esta passagem, entre o corporal, o oral e o
conceitual escrito, porque, conforme dizem:
145
O nosso corpo é uma flauta que é feita da urdidura de quatro
angás-mirins ou espíritos-criança (pequenas almas): Terra, Água,
Fogo e Ar. Eles precisam estar afinados para melhor expressar a
porção-luz que sustenta o Corpo-Ser, o Fogo Sagrado que move os
guerreiros, dando-lhes vitalidade, capacidade criativa e realizadora
(JECUPÉ,. 1998).
Na cosmovisão dos povos Tupy-Guarany e na sua Tradição, o corpo
ocupa o centro vital onde emanam os movimentos da vida orgânica
e inorgânca. Este culto ao corpo significa cuidar do corpo,
proporcionar-lhe prazer, dor, desafio, resistência, dureza e
flexibilidade máxima. Nele, se articulas e se acumulam os saberes
que lhes são inerentes. O corpo é também, potência de conhecer,
que pode vir a ser valorizada e desenvolvida pelas instituições ou, o
oposto disso, ser fechada, limitada, impedida, silenciada.
No imaginário grupo-pesquisador Pataxó, esta potência refere-se à
sustentação do corpus criativo, à vitalidade e à capacidade
realizadora que produz o Ser-Tribo, o sábio do Caraíba (pajé ou
xamã),o Caçador e o Guerreiro.
Do ponto de vista da Botânica, os rizomas podem ser terrestres,
aéreos, aquáticos e porque não, do Fogo. No processo de produção
das informações e da experimentação do brincar, vimos rizomas de
fogo sob a forma de violência, mas também, sob a forma do “corpo-

145 Segundo o dicionário Aurélio , é o conjunto de fios disposto no tear , e por entre os quais passa os fios da trama.
514 Ir para o sumário >>

luz” que faz a afirmação do Ser nos ‘cantos e encantos’ que


contagiam e se proliferam por todo lado. Num rizoma há sempre
algo que foge, que escapa-nos o controle da situação. É o inverso
dos que crescem e que “constroem” seu aprendizado de forma
orientada, vertical e ou linear, como ocorre com o desenvolvimento
dos eucaliptos, dos pinheiros, com os modelos da arborescência
estrutural. Um rizoma não tem um começo nem um fim, origem ou
destinação específica. Como definiram Deleuze e Guattari (1995:
p.32) ele é:

“Oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto de


pontos e posições, por correlações binárias entre esses pontos
e relações biunívocas entre estas posições, o rizoma é feito
somente de linhas: linhas de segmentaridade. De
estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou
de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual
ao segui-la, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de
natureza”.
Portanto, nos rizomas da alegria está inscrito o Afeto que ficaria no
interior esquecido, se a trilha formada pela vala de seus sulcos, não
fosse revisitada, cultivada, ou seja, “ramiada”. Se as materialidades,
os cantos, as situações imaginárias, os sonhos, enfim, toda essa
parafernália não tivesse sido documentada, não tivesse encontrado
uma significação um lugar e um tratamento adequado para ela.
É que as feridas abertas, as cicatrizes sobre a pele e as muitas
marcas do prazer espalhado hermeticamente pelo corpo que viveu a
experiência de uma vida verdadeira, funcionam como uma espécie
de ‘proteção’ do imaginário do Mal que ronda o perigo. Foi Espinoza
que afirmou que:
Os homens se alegram todas as vezes que se recordam de um mal
passado, e têm prazer em narrar os perigos de que foram liberados.
Pois mal imaginam a algum perigo, consideram-no como ainda
futuro e são determinados a temê-lo; mas essa determinação é de
515 Ir para o sumário >>

novo reduzida pela idéia de liberdade que eles uniram com a idéia
desse perigo, quando foram liberados dele, o que os torna
novamente seguros, e por isso se alegram novamente (Apud:
NEGRI, 1993: 207).
Para nos iniciarmos não ‘abdicamos’ da erótica e do prazer que
engravida; sem que soframos para (re) nascer, sem
experimentarmos a alegria do florir, do frutificar, do doer para
amadurecer.
O filósofo Rubem Alves costuma dizer que é “o prazer que
engravida, mas que só a dor faz parir”. É bom que se diga que os
povos nativos desta terra, não são os infantes da humanidade como
fez crer a Antropologia inventada por nossos colonizadores. É o
oposto disso. Já se passaram 500 anos e todos nós já estamos
bastante crescidinhos para fazermos interpretações ao pé da letra a
respeito do que dizem as “histórias da carochinha” ou cairmos no
146
“conto do vigário”. Nossos pesquisandos, possivelmente, ‘menos
sabidos’, porém, muito mais sábios do que aqueles engenhosos
147
“caraíbas” que os espiaram (e que ainda os espiam) em suas
aldeias para “pesquisá-los”, demonstraram que a “maturidade” para
148
eles é a maturidade de Espinoza . Amadurecer para os Pataxó
significa raspar o mínimo de resíduo de diferença ontológica.
Inclusive, se liberar do próprio conceito de produtividade ontológica,
quando desejam se manterem articulados em tribo, formando um
enorme corpo coletivo em que o Ser individualizado dá lugar ao ‘Ser-
Tribo’. Anteriormente, interpretado como “bando”, “bárbaro” e
“selvagem” pelos etnólogos que não conseguiram vê-los separados
da multiplicidade nativa (donos da terra colonizada) que os qualifica

146 Expressões populares para se referirem às ilusões, o engodo e as mentiras que são contadas.

147 PRÉZIA (1999), historiador e assessor do CIMI define este termo que vem do Tupy-Guarany como uma nomeação utilizada pelos povos

nativos para se referir aos pajés ambulantes, os intelectuais, os feiticeiros interculturais das aldeias. Expressão que também serviu para nomear

de forma equivalente os jesuítas e os sabidos portugueses que aqui chegaram.

148 Apud: NEGRI (Op.cit)


516 Ir para o sumário >>

como “exóticos” inimigos. Tais adjetivos ou classificações, diante da


experiência vivida aqui, no presente estudo com os Pataxó em
Cumuruxatiba, perdem todo o seu sentido e validade na
contemporaneidade. Ao não ser que sejam tomados apenas como
referência. Uma grande parcela dos povos indígenas que vivem
atualmente no Brasil, particularmente, nesta região, já não vivem
mais isolados, eles vivem no meio de nós. Vivem de um modo bem
diferente do modo como, por exemplo, o príncipe Maximiliano de
Wied-Neuwied (1970: p.207) os encontrou no início do século XIX
(1815-1817): “Apareceu na vila (do Prado) um bando de selvagens
que eu tanto queria conhecer. Eram da tríbu dos ‘Patachós’, dos
quais não vira nenhum até então, e tinham vindo a poucos dias das
florestas para as plantações”.
Repare que a palavra “tribo” herdada do no grego antigo, se refere
ao que foi 'esfregado'; 'friccionado'; 'triturado', 'esmagado' numa
149
multiplicidade.
Sob este ponto de vista, a iniciação das gerações mais jovens ou
qualquer que seja ela, não pode ser tomada como a marca de um
reconhecimento meramente biológico de uma criança ou de um ser
individualizado e transcendente, mas de um Ser polifônico: Ser-
Tribo. De modo que amadurecer não significa morrer para a infância,
150
como pensou CLASTRES (1982: p.80) , após fazer a analogia
estrutural entre os ritos ligados ao nascimento e os ritos de
151
passagem da menina e do menino para a idade adulta. Até
porque, este tal conceito de infância é muito impreciso para eles.
149 Do ponto de vista antropológico este termo é considerado muito vago, pouco preciso. Geralmente o encontramos aplicado sem nenhum

rigor para identificar grupos totalmente diferentes entre si. Razão pela qual tem sido atualmente evitado pelos antropólogos. Embora, grupos

anteriormente identificados como tribais continuem sendo qualificados como "tribais". Assim como, vêm sendo qualificados outros que vêm

emergindo na contemporaneidade. O fato é que a força da expressão parece ser muito mais poderosa que as forças que tentam vergá-la.

150CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violência: ensaio de antropologia política. São Paulo: Brasiliense, 1982.

151 “Tornar-se adulto é morrer para a infância e nascer para a vida social , pois desde então rapazes e moças podem deixar sua sexualidade

expandir-se livremente.” (Op.cit)


517 Ir para o sumário >>

Como é impreciso para a Filosofia Social de Foucault que concluiu


que “a infância não existe” ou do ponto de vista de
LARROSSA(1998) que afirma que “a infância sempre nos escapa”.
O que é real de fato é que para os Pataxó, o devir-criança é o que
importa. E este, não pode ser barrado, vigiado ou punido, deve ser
‘cuidado’ e incentivado por toda coletividade, responsável por ela. E
foi acompanhados de sua criança imaginária, dos espíritos do canto,
da festa e da alegria que muito aprendemos e ensinamos, como
ensinaram os mais velhos às gerações mais jovens, os seus
ritornelos existenciais entendidos como hãmiya.
O Hãmiya

“Minha jurema, ô minha jurema, eu quero ver o caboclo hãmiya.


Minha jurema, ô minha jurema, eu quero ver o caboclo hãmiya. É no
ré do remor de Tupã, é no ré do remor de Tupã.”

Quando em seus jogos tradicionais – nas rodas do jogo-ritual em


que se dança a dança sagrada do Auê, nas rodas brincantes mais
variadas inventadas pelas crianças, os Pataxó cantam o canto da
jurema, eles estão nos dando pistas dos sentidos que produzem em
torno da pragmática do “hãmiya”: o programa lúdico da iniciação das
152
gerações mais jovens aos jogos-rituais de sua tradição.

O Devir-Planta do Ato de Ensinar-Aprender e Pensar

Ao que tudo indica o processo do aprendizado, da produção do


conhecimento não se realiza fora de um devir-planta, da renovação

152 Segundo o Dicionário Aurélio (2000), a palavra jurema vem do Tupi-Guarany e serve para nomear um arbusto ou arvoreta armada de

espinhos, da família das leguminosas (Pithecolobium tortum), muito difundida no litoral brasileiro e nas regiões de Caatinga. Seus ramos em

ziguezague são muito duros e suas folhas com numerosos folíolos pequenos, flores alvacentas ou esverdeadas, agregadas em pequenos

glomérulos, legume recurvado como alça intestinal, grosso e rígido, sendo a madeira dura, pouco utilizável. Mas, são das raízes, da casca e dos

frutos dessa planta, que se produz uma bebida muito forte, com propriedades alucinógenas.
518 Ir para o sumário >>

de nossas “cascas” envelhecidas, a exemplo do que ocorre com os


vegetais que se renovam.
Em diferentes modelizações do pensamento fala-se muito em árvore
da vida, em árvore do conhecimento do bem e do mal (Gênesis
judaico-cristão), em ciências que se dividem em ramos disciplinares,
etc.
No imaginário Pataxó, a jurema (Pithecolobium tortum) é uma planta
sagrada que é compartilhada entre as mais variadas etnias nativas
do Brasil.
Da palavra jurema vem o verbo juremar que significar se introduzir
no rito de iniciação da jurema como se iniciam os xamãs, os pajés, o
feiticeiro da tribo. Do ponto de vista popular juremar significa se
“iniciar ao catimbó”153, às práticas do sonhar, aos processos de cura,
das plantas mágicas, dos múltiplos processos de singularização dos
devires. Não se trata de uma concepção egóica ou hedonista, mas
da crença que sendo imanente, o desejo, o sonho, os devires
precisam ser educados, lapidados. E é preciso que seja assim
porque crêem que é preciso ensinar-aprender “a querer” tanto
quanto a “não-querer”.
É no Auê, a rizosfera virtual dos troncos velhos da jurema (árvore
sagrada onde habitam seus encantados) que os mais velhos
ensinam os mais jovens a hãmiya, ou seja: a cantar, festar, dançar,
se alegrar, cultuar, conhecer, pensar, sonhar. Uma pragmática
ritualísitica, cíclica do aprendizado que começa com a retirada de
Tupã, o iniciador anscestral dos povos Tupi-Guarany, que todos os
anos vem visitar os humanos, rever o seu povo e fazer amor com a
terra e instituir o ciclo das chuvas, dos raios trovões e tempestades.
Sua presença já anuncia a todos que é chegado o tempo de cultivar
a terra e plantar. É o “cio da terra” tomado como sua “erótica”. Por
isso que em seus ritornelos cantam, dançam louvam, e celebram a

153 Uma forma popular de nomeação dos cultos tipicamente brasileiros, relacionados às práticas de magia que podem se apresentar associados

a elementos negros, ameríndios, espíritas e cristãos.


519 Ir para o sumário >>

chegada de um tempo em que o que foi plantado começa a


germinar. É tempo de cuidar. Parece curioso que o momento dos
Pataxó praticarem seus rituais, de se prepararem para se apresentar
na Festa do Mastro de São Sebastião, quatro meses antes, coincida
justamente com o espaço-tempo em que acaba o inverno e que é
chegada à primavera, que todos se ajuntam, se reúnem em torno do
processo de iniciação que (re) começa (ou não) em função das
festividades em janeiro. “É no ré do remor de Tupã” que as
tempestades, os raios, as trovoada e os ventos dão marcha-ré, que
se retiram, vão embora, deixando a vida latente no solo e no ciclo da
estação de seu hãmiya. É verdade, o cantor Milton Nascimento
expressa muito bem o que isso representa quando canta em sua
música “Coração de Estudante”: “Há de se cuidar do broto para que
a vida nos dê flor e fruto”. É neste sentido iniciático que nos rizomas
da alegria vamos todos ramiando.
Na rizosfera de nossa Ciência, nós também ramiamos, isso não
podemos esquecer. É sobre os troncos velhos do “Hades” (nossas
bibliotecas) que é co-produzido nosso pensamento e o nosso
imaginário científico. É lá, no coração de onde moram os nossos
mortos-vivos, nossos teóricos encantados, muitos saudosos e
queridos. Da configuração cultural diante da qual nos posicionamos,
sem nos conectarmos com seu legado, não haveria tradição
científica, nem esta Ciência que ora cultivamos para sustentar,
tampouco, esta comunidade científica para nos iniciar em sua
cultura. E deste ponto de vista que o jogo desta pesquisa demarca o
encontro de pelo menos duas tradições culturais completamente
diferentes, se olharmos para o seu ponto de partida. Mas, que não
chega a ser tão diferente assim, quando examinamos o seu ponto de
chegada.
520 Ir para o sumário >>

Na rizosfera154 deste texto o que procuramos traçar foi uma escrita


rizomática e começamos pelo meio, como começam pelo meio os
brotos rizomáticos, com suas ramas e folhagens, contornando,
ordenando e cartografando o tema-problema na experiência e no
processo de sua tradução. Como fazem as crianças ao
decidirem demarcar os espaços-tempo privilegiados de suas
composições criadoras para atribuir significados ao real. A
rizomática foi a nossa gramática no pensamento, a partir dela nos
negamos a servir de emblema ao monoculturalismo e ao
evolucionismo cultural. Ela se afirmou nesta diversidade porque foi
capaz de reconhecer o pleno direito ao pluralismo das idéias, à
“diferença” e ao devir.
O nosso devir-histórico é apenas uma forma de se abordar a
realidade e o imaginário entre os muitos modos de se experimentar
e de se validar as diversas passagens possíveis entre o popular e o
científico, o pensamento crítico e o pensamento pré-filosófico. Uma
forma de conferir maior racionalidade ao que é considerado estético-
expressivo, sonho ou arte, desafiando-nos a produzir análises de
suas potencialidades epistemológicas com intuito de restabelecer as
energias emancipatórias que a escolástica, o tecnicismo pedagógico
e a modernidade ocidental transformou em “hubris regulatória” nos
155
dois últimos séculos. Como pode ser percebido, a Filosofia da
“Diferença” e do “Devir” ou Rizomática se aproveita sempre das
militâncias nômades, nutre-se invariavelmente das ‘linhas de fuga’

154 Trata-se dos modos de agenciamento e de aliança que produzimos neste estudo. Esta expressão foi utilizada por Deleuze e Guattari (1997:

p.19) para definir a formação dos blocos de devir. Um termo derivado de rizoma para se referir aos modos através do qual a natureza opera suas

alianças por contágio, aproximando e gramando formas de vida heterogêneas. Muito presente no fenômeno natural que consorcia determinadas

raízes jovens e certos microorganismos em torno das matérias orgânicas sintetizadas nas folhas que operam esta aliança. No plano complexo da

rede dos conhecimentos que foram tecidos nesta pragmática, descreve as alianças interdisciplinares que foram realizadas epistemologicamente e

metodologicamente.

155In: SANTOS (2000: p.78).


521 Ir para o sumário >>

dinamizadoras dos espaços-tempos da vida como produção de


agenciamentos revolucionários, capazes de ignorar, minar e ou
destruir os aparelhos de Estado, as organizações autoritárias,
inimigas da vida, os maquinismos redutores da potência de ação e
de auto-organização, que vêm gerando em nós, os humanos das
sociedades modernas, muita tristeza, escravidão e solidão.
Por outro lado, a Sociopoética se revelou como um instrumento
eficaz no processo de reinvenção dos ritornelos da tradição Pataxó.
O emprego do método do grupo-pesquisador e o emprego de
dispositivos abertos aos múltiplos processos de singularização dos
devires e de manifestação do imaginário sociocultural, fizeram não
só avançar o nosso ideal de participação, como também possibilitou
que os próprios pesquisandos pudessem co-laborar e autogerir os
processos de produção compartilhada das informações e interpretar
com autonomia os próprios dados e enunciados.
Seguindo este caminho no pesquisar foi possível aprender que na
zona das experiências pluriculturais há pontes, há ligações, túneis,
brechas e passagens que podem facilitar ou dificultar o acesso de
quem pretende chegar à área das experiências interculturais,
interpessoais, até atingir o nível transcultural. Quando se consegue
esta façanha de saber-fazer a passagem, há de se preparar para a
emergência da comunicação ‘pra lá de’ dialógica. De um tipo de
entendimento que costuma se configurar para anunciar que estamos
passando para um outro plano, o plano transcultural e trans-
subjetivo. Neste plano não basta o “troca-troca”, “o toma lá, dá cá”,
ele não se satisfaz nem se realiza no nível das trocas e das
interações de reciprocidade que se tece entre as partes ou entre os
membros do grupo-pesquisador. Muito além das trocas e dos
valores de mercado, o que entra em jogo e ganha evidência no
plano das experiências transculturais e transsubjetivas é o transe e a
transa que rola e se desenrola, no interior de uma multiplicidade
muito maior e mais complexa. Simplesmente porque, a esta altura
522 Ir para o sumário >>

da experimentação do conjunto de relações tecidas entre os


diferentes, já se fez possível do alcançar um grau superior de
simbiose, de co-evolução no sistema, de senso de interdependência,
de co-existência e de compreensão entre as partes e as dimensões
em relação à multiplicidade (o todo) e da multiplicidade (o todo) em
relação às suas partes e dimensões. É o momento em sentimos que
nós fazemos parte da Terra e que a Terra faz parte de nós, que dela
podemos nos deslocar, nos afastar ma, sempre voltar. Se você
conseguir entrar e sair inteiro de um transe alegre, prazeroso,
coletivo, transcultural e transpessoal, certamente, terá se
aproximado e até mesmo encontrado o sentido da vida. É que não
há sentido nenhum para a vida que se contenta com a estreiteza do
Ser aprisionado às identidades intransitivas, ao medo do risco, à
mudança e às formas culturais transcendentes.

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6 Noções Pataxó: processo identitário, luta e posse da terra
531 Ir para o sumário >>
156
6.1 Pataxó Meridionais: um sobrevôo histórico-analítico

Sheila Brasileiro

As referências históricas à ocupação indígena na região onde


se localiza a Terra Indígena Barra Velha remontam a 1816
(Agostinho, 1988:71), quando da passagem do viajante Wied-
Neuwied pela área. A instituição da aldeia de Barra Velha, por ordem
do Presidente da Província da Bahia, em 1861, reuniu bandos de
pataxós, maxacalis, botocudos e kamakãs que aí viveram
praticamente isolados até meados do século XX (Cf. Carvalho,
1977), quando da criação do Parque Nacional de Monte Pascoal -
PNMP (Decreto nº 12.729, de 29 de abril de 1943).
Malgradas as ingerências dos índios ali concentrados —
doravante referidos unicamente pelo etnônimo pataxó — junto ao
então Serviço de Proteção ao Índio (SPI), para assegurar os seus
direitos à terra, o PNMP foi, em 1960, fisicamente implantado. Os
critérios que nortearam a sua delimitação ressaltaram a necessidade
de

“proteção do sítio histórico do Monte Pascoal e da


preservação de uma faixa quase intocada da Mata
Atlântica que se estende desde as bases da famosa
montanha até a costa, onde se encontram, igualmente
dignos de preservação, alguns dos mais extensos e ricos
manguezais de todo aquele litoral” (Sampaio, 1996:10).

Conseqüência imediata da instalação do PNMP, a restrição das


atividades produtivas dos Pataxó, proibidas nas áreas de ocupação

156 Texto produzido originalmente como parte do trabalho da autora como Técnica Pericial em Antropologia do Ministério Público

Federal/Bahia.
532 Ir para o sumário >>

tradicional a partir de então inseridas no perímetro do Parque,


provocou o êxodo de muitas famílias indígenas para outras áreas.
Com a criação da Funai, tal proibição seria, mediante acordo
informal com o então Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal (IBDF), relativizada e algumas áreas de capoeira seriam
“liberadas” para o uso pataxó (Ib:10-11). Essa alternativa, contudo,
não equacionou as demandas produtivas desses índios,
constrangidos a se engajar periodicamente em atividades
econômicas recentemente implantadas na região, a partir da
construção da BR-101, em 1973, ou migrar para outros locais,
origem de diversos núcleos de ocupação pataxó mais recentes no
entorno, tais como Mata Medonha, Imbiriba, Coroa Vermelha,
Corumbauzinho e Trevo do Parque.
Em 1977, face às constantes reivindicações dos Pataxó, o
Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia
celebrou convênio com a FUNAI, no âmbito do Programa de
Pesquisa Povos Indígenas na Bahia, para promover estudos de
identificação do território tradicionalmente ocupado pelos Pataxó de
Barra Velha. Os relatórios resultantes desses estudos (Agostinho,
1981 e Carvalho, 1977) reconheceram a existência, em consonância
com a memória social do grupo e as referências históricas
disponíveis, de limites bem definidos daquele território: os cursos
dos rios Caraíva e Corumbau, a norte e sul, respectivamente, e a
costa, a leste, e o Monte Pascoal, a oeste. Segundo estimou
Sampaio (Ib:14),

“uma real reconstituição do território dos Pataxó que


lhes permitisse retomar seus tradicionais processos
produtivos, isto é, aqueles vigentes até 1960, implicaria
em subtrair ao Parque cerca de 14.000 a 16.000 dos seus
22.500 hectares, reduzindo-o apenas às áreas
imediatamente em torno e a oeste do Monte Pascoal,
possibilidade explicitamente colocada como inaceitável
533 Ir para o sumário >>

pelo IBDF, tanto pela redução drástica da área sob sua


administração, quanto pela perda da faixa costeira do
Parque, valorizada pela presença do que seria o único
ecossistema de manguezais associados à Mata Atlântica
incluído em uma área de preservação no país”.

A magnitude das implicações de se subtrair áreas de recifes e


mangues do território de ocupação tradicional do povo pataxó,
encontra-se evidenciada, sob diversos ângulos, em Agostinho
(1981), que analisa a importância das atividade de coleta
historicamente ali praticadas por esses índios, segundo “seus usos
costumes e tradições”. Conforme assinala, quando da instalação do
parque, “por cerca de dez anos, e enquanto estiveram impedidos de
plantar suas roças, os Pataxó sobreviveram graças ao mangue,
completando a dieta pela troca, com os membros da sociedade
regional, de farinha por excedentes de caranguejo e mesmo destes
por bens industrializados” (1981:75), o que demonstra “a
persistência de uma técnica com profundas raízes no tempo: antes
de Corumbáu e depois de Caraíva, são constantes na viagem de
Wied-Neuwied as referências a “índios mansos” mariscando pela
praia” (Ib), assim como o “valor adaptativo dessa forma de
exploração do ambiente, mesmo numa situação de contato entre
uma economia de mercado e uma economia de subsistência em
mudança (...). Continua Agostinho (Ib: 74-5) “Enquanto das roças
provêm os carboidratos sob a forma da principal planta cultivada - a
mandioca -, é da coleta, no mangue e nos recifes - que vem o
suprimento de proteína animal. No mangue há caranguejos e
moluscos, no recife moluscos e ouriços-do-mar comestíveis”.

Fazendo tabula rasa das reivindicações dos Pataxó sobre a


área ora constituída como Parque, a Funai optou, em 1980, pela
realização de um acordo com o IBDF no qual este último “cedeu” o
correspondente à metade norte da área identificada pelos
534 Ir para o sumário >>

pesquisadores da UFBA como território de ocupação tradicional


pataxó, “junto ao rio Caraíva, estendendo-se para oeste apenas até
as proximidades da base do Monte Pascoal”, com a extensão de
8.627 hectares. Os manguezais, localizados junto ao estuário do rio
Corumbau, permaneceram incorporados ao domínio do Parque,
restando aos pataxó o usufruto apenas “dos pobres brejos arenosos
junto ao estuário do Caraíva” (Sampaio, Ib:15). A área assim
constituída — os 8.627 hectares supra — seria identificada em 1982,
homologada em 1991( Decreto nº 396, de 24.12.91 157) e registrada
no C.R.I. em 1992 (Santos, 1997).
O processo de identificação dos limites da TI Barra Velha e sua
homologação por decreto presidencial não se basearam em
qualquer estudo ou parecer técnico — laudo ou parecer
antropológico —, tendo se orientado apenas pelo mencionado
acordo firmado entre a Funai e o IBDF em 1980. Tanto a criação do
PNMP, quanto os termos do dito “acordo”, contrariam frontalmente o
texto constitucional então vigente. O Decreto nº 242, de 29 de
novembro de 1961, que instituiu o PNMP vai de encontro à
Constituição Federal de 1934, em seu Artigo 129, que determina que
“será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem
permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado
aliená-las”, como ressalta Santos (1997) em Informação Técnica
DID/FUNAI encaminhada ao Ministério Público Federal.
Relativamente ao “acordo”, haveria que se reconhecer a sua
nulidade plena, pois, segundo o exposto no § 1º do Artigo 198 da
Emenda Constitucional Nº 1, de 1969: “ficam declaradas a nulidade
e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza que tenham
por objeto o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas
pelos silvícolas”.

157 Para uma descrição sucinta das fases do processo de regularização da TI Barra Velha, vide Sampaio 1996 e Santos, 1997 (DID/FUNAI,

Informação nº 15)
535 Ir para o sumário >>

A regularização da dita Terra Indígena, nos moldes acima


relatados, não se verificou, entretanto, sem contestações. Como
relata Sampaio, "Informação Técnica" do Ministério da Reforma e
Desenvolvimento Agrários (MIRAD), elaborada pela antropóloga e
então assessora desse Ministério, Lígia Simonian (1986), denuncia
as irregularidades evidenciadas em todo o processo. Essa
Informação, contudo, não seria incorporada, nem mesmo
questionada, pelo Grupo de Trabalho Interministerial criado pelo
decreto nº 94.945/87 — do qual o MIRAD era membro —, na
Resolução nº 02, de 20.07.1988 que reconheceu a área como “de
posse imemorial indígena”, recomendando a sua regularização como
“Colônia Indígena Barra Velha”. Também um outro membro do
Grupo, o Instituto de Terras da Bahia (Interba), recusou-se a firmar a
citada Resolução (Ib:15).
Tais irregularidades, que presidiram, historicamente, a
conformação de todo o processo de regularização da Terra Indígena
Barra Velha, se perpetuaram, inclusive, na sua situação jurídica
atual, ao que tudo indica caracterizada por uma superposição de
limites com o PNMP, como atenta Sampaio:

“o Decreto de homologação, embora mencione, em


sua descrição de limites, o Parque Nacional de Monte
Pascoal como confrontante da Terra Indígena, não faz
qualquer referência à alteração de limites deste, para dele
excluir a dita Terra, ou a eventuais dispositivos legais que
tivessem, eventualmente, reformulado aqueles adotados
quando da sua criação ou delimitação. Isto parece
configurar uma situação de superposição de territórios da
União e, de resto, muitos dos encarregados da
administração regional do atual IBAMA costumam afirmar,
em discussões públicas -e em aparente desconhecimento
do referido Decreto de Homologação-, que a área em
questão permanece integrante do Parque, condição não
536 Ir para o sumário >>

descaracterizada pelo mero "acordo administrativo" de


1980”(Ib:16).

Desentendimentos diversos entre os Pataxó de Barra Velha e


os agentes do IBAMA responsáveis pela fiscalização do Parque
Nacional do Monte Pascoal se reproduziram ao longo das últimas
duas décadas. Os funcionários do órgão ambiental repetidamente
lançavam acusações de que os índios estavam intermediando a
retirada de madeira do Parque (Sampaio, Ib:19). Despojados das
porções mais férteis do seu território tradicional, os Pataxó de Barra
Velha sobreviveram até fins dos anos noventa de forma
extremamente precária, ora engajando-se em subempregos
temporários na região, ora auferindo alguma renda da venda de
artesanato, em períodos de alta estação.
Em 22 de abril de 1996, o Governo Federal, editou o Decreto nº
1.874 (D.O.U de 23.04.96), incluindo o Parque Nacional de Monte
Pascoal na área objeto do Museu Aberto do Descobrimento (MADE).
O MADE foi um dos projetos componentes das intervenções
governamentais que deveriam subsidiar as comemorações dos
quinhentos anos de descobrimento do Brasil. A partir de então, as
atenções do poder público se concentrariam na chamada Costa do
158
Descobrimento .
Em 18 de agosto de 1999, atendendo à recomendação legal
expedida pelo Ministério Público Federal em Ilhéus, às reiteradas
reivindicações dos Pataxó e das entidades indigenistas que atuam
na região, a FUNAI constituiu um grupo técnico para revisar o
processo de identificação e de delimitação da TI Barra Velha. Vinte e
quatro horas depois, os Pataxó ocuparam o Parque Nacional do
Monte Pascoal, ponta de lança de uma série de ocupações
subseqüentes – que visavam a recomposição do território tradicional

158 A Costa do Descobrimento compreende um trecho da Mata Atlântica que vai do município de Una, litoral sul da Bahia, até Linhares, no

norte do Espírito Santo.


537 Ir para o sumário >>

daquele povo indígena – , dali expulsando os funcionários do


IBAMA. Em 02 de setembro, o órgão ambiental ajuizou na Justiça
Federal uma ação de reintegração de posse do PNMP (nº
1999.33.01.000945-1), iniciando, pari passu, gestões administrativas
junto a alguns líderes Pataxó centradas em uma proposta de “acordo
de cooperação” que, como ficaria evidenciado posteriormente, se
resumia, em síntese, a doação de recursos governamentais em
troca da desocupação da área do PNMP. Consoante declarou Inah
Sinometti, diretora do Programa Nacional de Áreas Protegidas do
MMA, em entrevista ao Jornal A Tarde (16.03.2001) estava prevista
a liberação de mais de um milhão de reais a serem aplicados em
“ações de capacitação e no desenvolvimento de projetos de
sustentabilidade econômica das comunidades pataxó na unidade”.
A Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAI) e o
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) alertaram, em diversas
notas públicas, assim como em correspondências encaminhadas ao
Ministério Público Federal, para a flagrante ilegalidade de um
eventual acordo envolvendo o território indígena do Monte Pascoal.
A Comissão Indígena constituída durante a Conferência Indígena
realizada na TI Coroa Vermelha em abril de 2000, divulgou um
“Manifesto de Repúdio às Tentativas de Negociação do Monte
Pascoal” (de 10 de outubro de 2000), se posicionando
contrariamente a “todo e qualquer acordo que coloque em risco a
redução do território pataxó e a demarcação do Monte Pascoal
como território indígena”. A essas manifestações se seguiram muitas
outras, dentre as quais cumpre destacar a do professor Raimundo
Laranjeira (em 29.10.2000), autoridade em Direito Agrário no Brasil,
dirigida ao Ministério Público Federal (com cópia para a ANAI), na
qual lamenta “as distorções que os governantes, amiúde, vão
querendo imprimir à ordem constitucional estabelecida”, a exemplo
da “ameaça que recai sobre os Pataxó em vista da propalada notícia
de que o Monte Pascoal, integrante das terras tradicionalmente
ocupadas por aquele povo índio, está sendo objeto de negociação
538 Ir para o sumário >>

entre e a FUNAI e o IBAMA, a fim de que sua área deixe de ser o


que, na verdade, é há 500 anos: uma unidade fundiária indígena”.
Finalmente, também a Associação Brasileira de Antropologia,
divulgou, em novembro de 2000, uma moção de apoio à campanha
de regularização da Terra Indígena Barra Velha, deflagrada pela
ANAI, avaliando como prematuras as intervenções do MMA no
Monte Pascoal, desde que até o presente não restam claros os
limites da área tradicionalmente ocupada pelo Pataxó:

“sem que sequer se conheça a extensão e a


delimitação do território tradicionalmente ocupado pelos
Pataxó no Monte Pascoal, nos termos do Artigo 231 da
Constituição, não pode haver qualquer base de
informação capaz de subsidiar convenientemente projetos
de sustentação para as aldeias indígenas”.

A moção da ABA sublinhou, ainda, as conseqüências nefastas


decorrentes dessas intervenções prematuras, salientando ser

“plenamente compreensível que as propostas de


investimento do Ministério do Meio Ambiente tenham tido,
antes, o efeito de causar perturbação, tensões,
desconfianças e, pior, conflitos internos à sociedade
pataxó, conforme evidente em artigos de imprensa e em
manifestações dos próprios índios, do que o de poder vir
a contribuir convenientemente, neste momento, para com
as bases de sustentação dessa sociedade”.

Malgrados os alertas e críticas de amplos setores do campo


indigenista e do prudente afastamento do Ministério Público Federal
da questão, a FUNAI, uma vez mais, reeditou a opção dos
“acordos”, cedendo às pressões do IBAMA e do MMA. O termo de
cooperação técnica relativo ao Monte Pascoal foi firmado entre o
539 Ir para o sumário >>

Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Justiça, Funai e Ibama,


em 28 de fevereiro de 2002, curiosamente sem a assinatura de
nenhum índio pataxó. Essa foi a “solução” encontrada em face dos
temores, tensões e discordâncias que caracterizaram as infindáveis
e pouco frutíferas discussões sobre o referido Termo nas
comunidades pataxó. A despeito desse fato, já na sua cláusula
Primeira – do Objeto, o acordo prevê a
“construção e implementação de um modelo de
Gestão Ambiental participativa do Parque Nacional Monte
Pascoal, integrada com as Comunidades Indígenas
Pataxó, em suas terras, e respectivas áreas envoltórias,
abrangendo as aldeias Trevo do Parque, Guaxuma, Pé do
Monte, Boca da Mata, Meio da Mata, Barra Velha, Aldeia
Nova, Corumbauzinho, Águas Belas”.

Resta esclarecer qual seria o referente dessa “participação”: a


FUNAI, o Ministério da Justiça? Pois, sabe-se à larga que em
nenhuma das “comunidades” supra ditas foi obtido um consenso
quanto à conveniência, ou aos “benefícios” do dito Termo. Como
pode uma parceria preexistir ao consentimento do parceiro?
Outra questão digna de nota é que o “acordo” não menciona,
em nenhuma de suas cláusulas, o procedimento administrativo
instaurado pela FUNAI para fins de revisão dos limites da Terra
Indígena Barra Velha (Grupo Técnico de Identificação e Delimitação
Territorial da Terra Indígena Corumbauzinho e de Revisão dos
Limites da Terra Indígena Barra Velha, instituído pela Portaria 685,
de 18/08/99). Além disso, é de se estranhar que o órgão tutelar, ao
tempo em que realiza estudos de identificação como Terra Indígena
da área hoje regularizada como Parque Nacional, se comprometa a
“conferir a máxima proteção aos seus limites enquanto Unidade de
Conservação”, como expresso na Cláusula Terceira do Termo de
Cooperação em apreço. Ademais, praticamente todas as cláusulas
do Termo ressaltam a área do PNMP como claramente dissociada
540 Ir para o sumário >>

do conjunto de aldeias Pataxó, inclusive das que constituem a Terra


Indígena Barra Velha, classificadas como se situadas no entorno da
Unidade de Conservação.

• Situação atual
Até o presente, os resultados dos trabalhos do Grupo Técnico
de Identificação e Delimitação Territorial da Terra Indígena
Corumbauzinho e de Revisão dos Limites da Terra Indígena Barra
Velha não foram publicados. E os propalados recursos advindos do
termo de cooperação técnica têm sido liberados a conta-gotas, e
administrados, segundo informações de líderes pataxó, de forma
pouco transparente pela atual “gerente” do Parque, Milene Maia, que
se encontra baseada em um escritório do Ibama, localizado na
cidade de Itamaraju, a doze quilômetros de distância.
A idéia inicial do Ibama de estabelecer uma sede no interior do
PNMP foi inviabilizada face à recusa dos índios pataxó de
permanecer abrigando estruturas desse órgão em suas terras, fato
que evidencia não se haver estabelecido, até então, uma relação de
confiança entre ambos os “parceiros”. Dentre as intervenções do
IBAMA na área, destacam-se a realização esporádica de cursos de
gestão ambiental e de treinamento de “fiscais do Parque”, uma
estratégia de cooptação individual que vem surtindo efeitos, gerando
intrigas, aprofundando as dissenções e disputas tradicionalmente
existentes entre grupos familiares pataxó. Os “fiscais” pataxó, após
formados, passam a receber um salário mensal de trezentos reais e
são incumbidos de coibir e denunciar a existência de quaisquer
159
atividades extrativistas no interior da UC . Eles constituem uma
espécie de “milícia de elite” do IBAMA na área e suas ações acabam
por questionar e, em muitos casos, por em xeque, os pressupostos

159 Essas informações têm sido amplamente divulgadas por representantes da Frente de Resistência e Luta Pataxó e pela Equipe do

CIMI/Leste baseada em Eunápolis-BA.


541 Ir para o sumário >>

da autoridade e da representatividade dos líderes tradicionais


pataxó.
Finalmente, vale indagar em que medida as ações supra vêm
contribuindo para o “desenvolvimento econômico” das comunidades
pataxó do Monte Pascoal, como esboçado na Cláusula Primeira- do
Objeto, do Acordo de Cooperação Técnica. Como ressaltou Ricardo
Verdum,

“o respeito às formas de organização social e às


características culturais das populações locais, a
valorização dos conhecimentos locais sobre formas de
manejo sustentável dos ecossistemas e o repasse de
novos conhecimentos e técnicas passíveis de serem
aplicadas a partir de insumos localmente disponíveis são
aspectos fundamentais para programas socioambientais
de fortalecimento da capacidade local (2002:95)

Ao impor um modelo de organização estranho ao povo pataxó, com


a implantação de um sistema de poder que passa a atuar nos
interstícios dos canais tradicionais, deslegitimando-os, o Estado
brasileiro está, uma vez mais, negando a esses índios o direito à
autodeterminação, à autonomia, enfim, a uma organização social
segundo seus “costumes, línguas, crenças e tradições”, como
assegurado no nosso texto constitucional. Paradoxalmente, como
bem observa Arruda (2002), é justamente essa condição
“diferenciada” dos povos indígenas localizados no Brasil e no resto
do mundo que vem ensejando a sua subordinação pelo Estado:

“são, porém, suas características singulares em


relação à corrente civilizatória predominante que têm
permitido sua utilização emblemática como povos
“tradicionais” e “ecológicos”, subordinados cada vez mais
à ação indigenista do Estado e à lógica das políticas de
542 Ir para o sumário >>

conservação do meio ambiente. (...) Por conseguinte,


tendendo a novamente impor limites ao exercício do
controle territorial indígena e à sua autonomia como povo
com capacidade de autogoverno (p. 149).

Portanto, na perspectiva do Estado, no escopo das políticas públicas


160
direcionadas à conservação da “Costa do Descobrimento” , os
Pataxó são naturalizados, transfigurados em um item a mais desse
imenso mosaico reconhecido pela UNESCO como Sítio do
Patrimônio Mundial Natural.

Referências

AGOSTINHO, Pedro. 1981. "Condicionamentos ecológicos e interét-


nicos da localização dos Pataxó de Barra Velha". BRUNETTI, Almir
C. (Org). “Homenagem a Agostinho da Silva”, Tulane Studies in
Romanics Languages and Literature, 10. New Orleans.
ARRUDA, Rinaldo. “Territórios Indígenas no Brasil: aspectos
jurídicos e socioculturais”. SOUZA LIMA, A. C. & BARROSO
HOFFMANN, M. (Org.) Etnodesenvolvimento e políticas públicas:
bases para uma nova política indigenista. Rio de Janeiro, Contra
Capa Livraria/LACED, 2002.
CARVALHO, Maria R. G. de. Os Pataxó de Barra Velha: seu
subsistema econômico; dissertação de mestrado apresentada à
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Salvador,
1977, dat.
CIMI EUNÁPOLIS. “Do jeito que o Ibama quer?” Eunápolis, 2003,
dat.

160 Consolidadas no Programa de ação Ambiental Conjunta da Costa do Descobrimento, lançado pelo Ministério do Meio Ambiente em

parceria com os Estados da Bahia e do Espírito Santo.


543 Ir para o sumário >>

SAMPAIO, José A. L. Breve História da Presença Indígena no


Extremo Sul Baiano e a Questão do Território Pataxó do Monte
Pascoal. Salvador, 1996, dat.
SANTOS, Carlos Alexandre B. P.Informação Nº 15 - DID/FUNAI -
Terra Indígena Barra Velha. Brasília, 1997
VERDUM, Ricardo. “Etnodesenvolvimento e mecanismos de
fomento do desenvolvimento dos povos indígenas: a contribuição do
Subprograma Projetos Demonstrativos (PDA)”. SOUZA LIMA, A. C.
& BARROSO HOFFMANN, M. Op.Cit.
WIED-NEUWIED, Príncipe Maximiliano.1958 [1815-17]. Viagem ao
Brasil. São Paulo: Melhoramentos.


161
6.2. Diversidade cultural e Diversidade biológica no Monte Pascoal

Corina Carmen Gayer

O Monte Pascoal é um ícone local das discussões travadas


entre ambientalistas e defensores dos direitos indígenas no âmbito
internacional. Aqui como no resto do mundo, a fonte das
divergências teóricas e concretas reside no fato de que ambas as
partes concorrem pelo mesmo território. Opõe-se o direito ambiental
e a necessidade de preservação da diversidade biológica ao direito à

161 Texto extraído do relatório de trabalho da autora no Brasil para a Human Dignity and Humiliation Studies
544 Ir para o sumário >>

manutenção da diversidade cultural como direito essencial ao ser


humano. A tensão entre a preservação do meio ambiente e a
proteção dos direitos indígenas vem contribuindo para o
agravamento do conflito sobre o uso da terra no Monte Pascoal.
Mais precisamente, trata-se da definição do status do Parque
Nacional (reserva ambiental ou terra indígena) e também da
resposta ao dilema apresentado pela (in)compatibilidade da
presença humana, dentro ou nas imediações da unidade de
conservação, com a preservação da biodiversidade.
Os ambientalistas, por um lado, lutam pela proteção de
ecossistemas extraordinariamente ricos em biodiversidade,
baseados no consenso internacional produzido nas várias
conferências sobre o meio ambiente das últimas décadas
(Notadamente, a Conferência de Estocolmo de 1972, a Rio 92 e o
encontro de Johannesburgo de 2002). O Brasil, sendo privilegiado
162
como um dos maiores detentores da biodiversidade terrestre , tem
a responsabilidade de estabelecer meios eficazes para a
preservação dessa riqueza. A premência da questão da
preservação da Mata Atlântica deve-se, também, ao fato de o bioma
estar gravemente ameaçado, restando apenas cerca 7% dele e
sendo que a Mata Atlântica é um dos 25 Hotspots de biodiversidade
do planeta.
Os defensores dos direitos indígenas, por outro lado,
fundamentam suas reivindicações na Convenção 169 da
Organização Internacional de Trabalho (OIT), a qual, por sua vez,
baseia-se na Convenção Internacional de Direitos Humanos de
1948. Mais uma vez o assunto ganha peculiaridade por ser o Brasil
o oitavo colocado na lista dos países com maior diversidade cultural
no mundo. Como no caso brasileiro, os países de maior diversidade

162 Os de Megadiversidade são os 17 países mais ricos em diversidade biológica do mundo, concentrando mais de 70% das espécies

conhecidas (Conservation International Brazil) Fonte: [http: //wwwconservation.org/web/fielact/megadiv/HOTSPOTS/priority.htm] (15/05/04)

[
545 Ir para o sumário >>

cultural muito freqüentemente coincidem com os países de


megadiversidade biológica. Essa coincidência faz com que os
instrumentos e limites da proteção, tanto da diversidade biológica,
quanto da diversidade cultural, adquiram fundamental importância. A
urgência de uma aproximação dos dois lados manifesta-se
concretamente no caso do Monte Pascoal, onde um Parque
Nacional foi implementado em 1961 nos limites de um território
tradicionalmente habitado pelos índios Pataxó.
No nível institucional, a posição dos ambientalistas é
representada pelo IBAMA/MMA, que fundamenta sua argumentação
no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza
163
(SNUC 2002) , criada para atender a Constituição Federal, que
define, que o meio ambiente ecologicamente equilibrado como
direito de todos. O SNUC determina que os Parques Nacionais
fazem parte do grupo das Unidades de Proteção Integral,
representadas por “ecossistemas livres de alterações causadas por
interferência humana, admitindo apenas o uso indireto dos seus
atributos naturais” (SNUC 2002; Cap. I, Art 2°, VI), sendo que o uso
indireto não permite qualquer atividade de consumo, coleta, dano ou
destruição dos recursos naturais (SNUC 2002; Cap. I, Art 2°, IX).
Das 256 Unidades de Conservação estabelecidas no Brasil, 111 são
164
de proteção integral e as restantes 145 de uso sustentável .
A posição dos indigenistas no nível institucional é
representada pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI que é ligada
ao Ministério da Justiça - MJ, que, por sua vez, se apóia na
Constituição de 1988. Dita Constituição dedica, pela primeira vez na
historia do Brasil, um capitulo (cap. VIII) inteiro à proteção dos
direitos indígenas. O Art. 231 determina que “são reconhecidos aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e

163 Ministério do Meio Ambiente 2002: SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservação da natureza; Lei N° 9.985, de 18 de julho de

2000; Decreto N° 4.340, de 22 de agosto de 2002. Brasília: Centro de Informação e Documentação Luis Eduardo Magalhães.

164 As unidades de conservação de uso sustentável permitem o uso direto dos seus recursos, sob certas condições.
546 Ir para o sumário >>

tradições, e os direitos originários sobre as terras que


tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens” (Magalhães 2002: 25). No § 1.°
explicita-se que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para
suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundos seus usos, costumes e
tradições” (Magalhães 2002: 25).
Como pode ser observado, existem dois órgãos com
destinações diferentes sobre os mesmos territórios165, estabelecidas
por uma única instancia federal. Isso por si não seria um problema,
se esses órgãos não competissem entre si e se comunicassem com
maior freqüência (Santilli 1999).
É provável que as imagens estereotipadas sobre os índios
dificultem a elaboração de alternativas para a solução dos conflitos
entre ambientalistas e indigenistas. Ao longo do tempo, imagens do
“bom e do mau índio” foram criadas pela política oficial, reforçadas
por setores da sociedade civil e reproduzidas pela mídia. Essas
imagens prevalecem ate hoje e podem ser divididas em duas
vertentes: Uma vertente que segue a visão romântica do bom e
nobre índio, em perfeita sintonia com a natureza, contanto que seja
deixado em paz e longe das influencias nocivas da civilização
166
ocidental. A outra vertente, define “o índio” como selvagem bruto,
agressivo167, destruidor da natureza, sem civilização nem educação
(Pasca, 2004; Santilli, 2000).
Imagens sobre os índios são utilizadas de acordo com
interesses privados ou objetivos políticos, sem que se ouça a

165 E que competem muitas vezes com uma terceira, o INCRA, responsável para a situação fundiária do pais.

166 A utilização da expressão “o índio” foi escolhida para reforçar a idéia de uma imagem estereotipada sobre os índios do Brasil, enquanto a

expressão “os índios” apenas se refere ao grupo étnico.

167 Santilli da o exemplo da deglutição do bispo Sardinha (Santilli, 2000).


547 Ir para o sumário >>

historia, a experiência e os pontos de vista dos próprios índios. Seja


no debate internacional, seja na disputa entre o IBAMA e a FUNAI,
os pontos de vista encontram-se arraigados em concepções
produzidos externamente que não correspondem às realidades
vividas pelos povos indígenas da região.
O presente texto iniciará abordando a importância da Mata
Atlântica e do Parque Nacional do Monte Pascoal para a diversidade
biológica do pais e do mundo. Mostra-se a extrema urgência em
preservar os fragmentos dos 7% de remanescentes da Mata
Atlântica. Segundo o conceito dos corredores ecológicos, a
conservação desses fragmentos depende da incorporação das
populações tradicionais no planejamento e na realização do replantio
de árvores nativas e na implantação de áreas agro-florestais. Isso
poderia ser uma possível solução para manter a biodiversidade
dentro do Parque Nacional do Monte Pascoal, sem excluir a
população indígena.
Para um melhor entendimento dos conflitos entre os órgãos
ambiental e indigenista com e a respeito da população indígena do
PARNA Monte Pascoal, pretende-se reconstruir a história dos índios
Pataxó, desde o primeiro contato direto com órgãos governamentais.
A historia dos Pataxó é marcada por uma situação socioeconômica
de penúria, caracterizada pela escassez de serviços básicos e de
inúmeros momentos e variadas formas de opressão pelos órgãos
estaduais. A situação atual e as possíveis propostas de solução do
conflito não podem ser analisadas sem o conhecimento do passado
dessa comunidade.
Após o que se enfocará as reivindicações dos anos 90 e dará
uma visão geral sobre os assuntos conflituosos. É importante
ressaltar que, além da sobreposição da unidade de conservação
com a terra indígena, existe uma série de outras sobreposições (de
interesses político e socioeconômicos), especialmente no que se
refere à terra indígena a ser delimitada. Esse território, se
demarcado segundo os limites da “terra tradicionalmente ocupada”
548 Ir para o sumário >>

pelos índios, será bem maior que a área do atual Parque Nacional e
da Terra Indígena de Barra Velha. A terra incluiria as atuais
propriedades de centenas de fazendeiros, áreas de plantio de
eucalipto, cidades com consideráveis empreendimentos turísticos e
territórios atualmente ocupados por assentamentos do MST.
Enquanto a sociedade brasileira parecia ter chegado a algo que
quero chamar de “pseudo-concordância”168, os conflitos sobre o
direito à terra continuam no Monta Pascoal. Logo depois, o enfoque
voltará para a população indígena, as aldeias que atualmente
existem e suas atividades econômicas. Pelo fato de o atual território
dos Pataxó ser insuficiente para sua reprodução física e cultural, as
aldeias começaram a se organizar politicamente e realizam ações
pontuais para despertar a atenção pública para sua situação.
No ultimo tópico serão expostos os principais argumentos
ortodoxos contra a presença indígena dentro e no entorno do Monte
169
Pascoal . A tentativa de aproximar os defensores dos direitos
ambientais e aqueles que advogam os direitos indígenas, no caso
concreto do Monte Pascoal, concluirá o presente estudo.

• A biodiversidade na Mata Atlântica e no Parque Nacional do


Monte Pascoal

− Pequeno histórico da Mata Atlântica

Nos dias da chegada de Pedro Álvares Cabral, a Mata Atlântica


cobria 1,3 milhões km², mas supostamente nunca formou um tapete
uniforme. O Pau Brasil (caesalpinia echinata) tornou-se uma das
168 Chamo aqui de Pseudo-concordância a prática da sociedade brasileira de aceitar e estar a favor dos direitos indígenas à terra, sendo isso

uma condição de ser “politicamente correto”, na maioria das vezes coincidindo com uma visão romântica sobre “os índios da selva”. Essa

concordância porém, encontra-se mais nas regiões e entre as partes da sociedade que não costumam ter contato direto com as populações

indígenas. Nas áreas de contato, de disputa concreta sobre a terra, a visão muda, volta-se à imagem do índio mau e agressivo. Essa imagem

ainda prevalece nos meios de comunicação dominantes do pais.

169 Esses argumentos serão contestados no percorrer do texto, assim que podem ser vistos antes o depois de começar a leitura dos capítulos.
549 Ir para o sumário >>

madeiras mais demandadas na Europa no século XVI e já no século


XVII quase tinha desaparecido da floresta atlântica. Durante os dois
séculos seguintes, a floresta foi desmatada em grande escala para o
plantio de cana-de-açúcar e a criação de gado. Os incêndios
provocados tiveram o objetivo de criar espaço para os plantios e
para deslocar as populações nativas.
A partir do século XIX, as grandes plantações de café tomaram o
lugar das florestas, as quais sofreram cada vez mais por causa da
crescente demanda de carvão e madeira para combustão nas
grandes cidades. Um século depois, a industria do aço de Minas
Gerais queimou a metade das suas florestas em apenas 20 anos, de
1920 a 1940. A área cortada não foi replantada com árvores nativas,
se não com monoculturas de eucalipto170. Dos 1,3 milhões km² da
floresta originária, restam apenas de 92,000 a 99,000 km², incluindo
os 10.000 km² no Paraguai e os 3.600 km² na Argentina
(Bright/Matton 2001) (veja mapa abaixo).
A Mata Atlântica abriga 1.361 espécies da fauna brasileira,
sendo que 567 espécies só ocorrem nesse bioma. Essas espécies
são divididas em 261 espécies de mamíferos, dos quais dois terços
só ocorrem aqui; 620 de aves, das quais 52 são endêmicas; 200 de
répteis e 280 de anfíbios. Possui, ainda, cerca de 20 mil espécies de
plantas vasculares, das quais 8 mil delas também só ocorrem na
Mata Atlântica (MMA 2002).
Além disso, no sul da Bahia, foi identificada recentemente a
maior diversidade botânica do mundo para plantas lenhosas, ou
seja, foram registradas 476 espécies de árvores em um único
hectare de Mata Atlântica. Quase três quartos de todas as espécies
oficialmente reconhecidas como ameaçadas no Brasil tem seu
habitat na Mata Atlântica (Bright/Matton 2001).
Em vista desses dados, não surpreende que a Mata Atlântica
seja considerada um dos hotspots do mundo. Segundo a ONG

170 O eucalipto é uma arvore da Austrália com a característica de crescer muito rápido.
550 Ir para o sumário >>

Conservation International, os Hotspots são as 25 regiões que juntas


abrigam mais de 60% das espécies terrestres de plantas e animais
do planeta em apenas 1,4% da superfície da Terra. Essas áreas
estão altamente ameaçadas, tendo perdido mais de 70% da sua
vegetação original. O Brasil tem dois hotspots, a Mata Atlântica e o
171
Cerrado . Dos 25 hotspots, 15 são florestas tropicais. A Mata
Atlântica geralmente é o quarto ou quinto colocado na lista dos
hotspots.

- A diversidade biológica no Parque Nacional do Monte Pascoal


A área do PARNA Monte Pascoal constitui um dos sete
últimos fragmentos maiores de Mata Atlântica no Sul da Bahia e no
Norte do Espírito Santo, fazendo parte dos 7% que restaram da
Mata originária. O parque contém mais de 5.000 ha de Floresta
Ombrófila Densa, além de vários ecossistemas de transição para
ecossistemas costeiros, tratando-se da única unidade de
conservação na região que inclui todos os estágios dessa transição
ecológica, desde a floresta até o mar.
As restingas compreendem faixa de solos arenosos, de
largura variável, ao longo do litoral, coberta por vegetação
característica, cuja fisionomia varia de arbórea a herbácea, de
acordo com a distância do mar. Os manguezais se desenvolvem nos
estuários dos rios, nas áreas sob influência das oscilações das
marés, normalmente sobre solos de várzeas (IBAMA 1995).
Faltam levantamentos sobre a biodiversidade da área. Entre
as espécies raras e ameaçadas da flora, encontram-se a arruda
(Swartzia eulixophora), endêmica da região, o jacarandá da Bahia
(Dalbergia nigra), a juerana vermelha (Parksia pendula), o arapati
(Arapatiella psillophilla), o paraju (Manikara longifolia), entre muitos
outros.

171 [http: //www.conservation.org/web/fielact/megadiv/HOTSPOTS/priority.htm] (15/05/04)


551 Ir para o sumário >>

Foram também observadas espécies raras de orquídeas e


aráceas, entre as quais se destacam a rara Cattleya schilleriana, a
Laelia tenebrosa e a Laelia grandis, e uma espécie nova e
endêmica de bromélia (Neoregelia pascoalina L. B.Smith). Nas
partes mais úmidas da mata, é freqüente a ocorrência de palmito
(Euterpe edulis) e nas partes mais secas, próximo à orla marítima,
ocorre a piaçava (Attalea funifera).
Encontram-se ainda animais raros ou em perigo de extinção
como: a ariranha (Ptenoura brasiliensis), o veado campeiro
(Ozotoceros bezoarticus), o bicho-preguiça (Bradypus torquatus), a
onça pintada (Panthera onça), a suçuarana (Felis concolor), o urubu
rei (Sarcoramphus papa), a harpia (Harpia harpija) e o anambé de
asa branca (Xipholena artropurpurea), entre outros (Oliveira, Fabio
2001).

- Os Corredores Ecológicos na Mata Atlântica

Um pouco mais que um terço das remanescentes da Mata


Atlântica estão sendo protegidos, de forma fragmentada nos 170
parques e reservas existentes. Essas áreas de conservação, muitas
vezes, tem se mostrado insuficientes para garantir a sua proteção,
freqüentemente por falta de recursos financeiros para um manejo
adequado, ou simplesmente, porque existiam como “parques de
papel” e foram, de fato, abandonados. As áreas de conservação
que imitam o modelo do parque Yellowstone e criam ilhas biológicas
sofrem do uso predatório dos seus recursos e das atividades
econômicas nos seus arredores. A população tradicional, que
encarava as áreas de conservação como obstáculos ao
desenvolvimento econômico, por sua vez é vista como ameaça a
esses ecossistemas.
Alem disso, a fragmentação da Mata Atlântica já constitui um
problema em si para sua conservação: se uma porção de uma
floresta é dividida em varias partes pequenas, uma proporção
552 Ir para o sumário >>

elevada da mata estará exposta no limite externo da floresta. O


ambiente desse limite é diferente daquele do interior das florestas,
pois geralmente é mais quente, seco e ventoso que a floresta
interior. Uma vez criado um novo limite, as plantas e animais da
floresta densa serão expostos a condições para as quais não estão
preparados. Com o tempo, essas populações serão substituídas por
espécies que são mais adaptadas ao ambiente que caracterize as
bordas da floresta. Além disso, os limites artificiais tem um raio de
influência muito grande: influenciam intensamente as populações
dentro de uma distância de 100 a 300 metros e, de maneira mais
branda, numa distância de até 1 quilometro.
Muitas áreas de floresta cortada são secas ou quentes
demais para poder regenerar-se naturalmente. Assim, os limites da
mata começam a movimentar-se em direção ao seu interior e
reprimem a fauna florestal do interior. Esse tipo de corrosão
freqüentemente é exacerbado pelas atividades no entorno da
floresta: herbicidas das plantações de cana-de-açúcar ou eucalipto e
incêndios para abertura de áreas de plantio ou para criação de gado.
O plantio de monoculturas isola as áreas vizinhas e aumentam a
degradação dentro das últimas (Bright/Mattoon 2001).
Para os animais dentro dessas áreas fragmentadas, a floresta
se torna uma prisão. Muitos animais nem conseguem atravessar
pequenos campos entre uma parte da floresta e a outra: numerosas
aves da Mata Atlântica não sobrevoarão mais que algumas centenas
de metros de espaço aberto. Outra ameaça às floretas ou áreas de
conservação fragmentadas é a caça para o tráfico ilegal de animais
silvestres172.
Considerando o desmatamento das florestas um tipo de
disfunção entre a terra e as populações, o projeto “corredores
ecológicos” tem como objetivo a redução da fragmentação das
florestas, permitindo (re-) criar as conexões entre as diversos “ilhas”

172 Depois do tráfico de armas e drogas, o trafico com animais silvestres é a terceira industria mais lucrativa no Brasil (Bright/Mattoon 2001).
553 Ir para o sumário >>

florestais e protegê-las através de “buffer zones” e “step stones” de


vegetações restauradas. Através do plantio de árvores nativas
restabelece-se a fauna e flora dos biomas. Para evitar o uso de
agrotóxicos, fortalece-se sistemas orgânicos e policulturais de
plantio. Além disso, a estrutura participativa e descentralizada do
planejamento e da realização do projeto, tem como objetivo
reconstruir a relação entre as populações e a natureza.
O resultado desejado é uma paisagem que ainda contém
bastante atividade humana, mas onde a maioria das plantas e
animais nativos tem espaço suficiente para (sobre-) viver. Como
acima mencionado, umas das ações chave será a cooperação tanto
entre atores públicos, como privados. Isso se torna óbvio na caso da
Mata Atlântica, onde estão sendo planejados dois corredores
ecológicos: O Corredor Central da Mata Atlântica (veja mapa abaixo)
e o Corredor Serra do Mar. O primeiro compreende o Sul da Bahia e
as regiões norte e centro-serrana do Espírito Santo. Essa área,
ainda que englobe vários PARNA como o Parque Nacional do Monte
Pascoal, tem 95% de terras particulares.

• A história da população indígena dos Pataxó no Monte


Pascoal

- A presença indígena na área hoje conhecida como Extremo


Sul da Bahia

O primeiro documento que consta da presença indígena no


litoral do Extremo Sul da Bahia é a carta de Pero Vaz de Caminha
narrando as suas impressões para o Rei Dom Manuel de Portugal
ao chegar no Brasil em 1500 (Vaz de Caminha 1974 [1500]). Vaz de
Caminha descreve as populações indígenas que durante a história
da colônia se tornariam conhecidos como Tupis ou Tupiniquins,
sendo caracterizados como “senhores do litoral” (Sampaio 2000: 1),
554 Ir para o sumário >>

enquanto os seus principais adversários, genericamente designados


como Aimoré, reinaram mais nos territórios interiores. Séculos antes
dos portugueses chegaram no Brasil, os Tupis estabeleceram seu
domínio sobre o litoral e sobre os grupos étnicos afiliados ao tronco
Macro-Jê (Urban 1992). Embora dominassem a região litorânea, os
Tupiniquins sofreram, com freqüência, incursões belicosas dos
povos do interior até o século XVI (Sampaio 2000). Além disso,
foram as populações Tupi no litoral do Extremo Sul da Bahia que
foram rapidamente dizimadas pela colonização portuguesa,
constituindo um alvo fácil com suas aldeias estáveis, notavelmente
grandes, onde viviam de mil a três mil indivíduos.
Ao contrário dos Tupi, que sustentavam-se através da
agricultura e da pesca, os povos indígenas do interior eram
conhecidos como caçadores e coletores e assim organizavam-se em
bandos relativamente pequenos, raras vezes superando uma
centena de pessoas. Os acampamentos temporários facilitava-lhes
uma mobilidade saliente. Desse modo, explica-se porque os Tupi
foram os principais agredidos pela conquista lusitana, seja pela
violência, pela catequese exercida pelos Jesuítas ou pelas
epidemias européias. No final dos século XVI praticamente já não
existiam mais tupiniquins no litoral baiano e estes, por sua vez, eram
conglomerados nos chamados “colonos”, estabelecidos após a
expulsão dos Jesuítas. Durante os séculos XVII e XVIII os colonos
Tupis sofriam ataques agudos dos Aimoré vindos do interior,
destruindo as suas moradias e plantações e desaparecendo
rapidamente para evitar uma reação dos colonos e uma possível
infecção com as doenças européias (Urban 1992). Esse cenário
persistia ainda no século XIX, quando o governo real passa a
interessar-se pela região, planejando rotas terrestres entre a capital,
as minas e o Nordeste e, conseqüentemente, estabelece os
chamados “quartéis” para combater os bandos indígenas selvagens.
A área que corresponde ao atual Extremo Sul da Bahia era
dominada pelos Pataxó, que disputaram seu território com os
555 Ir para o sumário >>

Botocudos mais no Sul do Estado e compartilhavam-no com os


Maxakali, com os quais se aliaram para combater os botocudos
vindos do Sul. É provável que os Maxacalí agruparam-se na área
que seria a atual divisa entre a Bahia e Minas Gerais, enquanto os
Pataxó concentravam-se mais próximo à costa (Sampaio 2000). Os
Pataxó resistiam aos colonizadores até as primeiras décadas do
século 19 quando foram reduzidos a povoações nas imediações das
vilas costeiras (de Santa Cruz de Cabrália a Mucuri) através de
campanhas militares e com a intenção de submetê-los ao trabalho
nas plantações de cacau e café e na construção de vias terrestres
(ibid).
173
Em abril de 1861 , o governador da Província determinou o
agrupamento forçado de toda a população indígena da região, perto
da foz do Rio Corumbau, “em cujas vizinhanças ha centenas de
famílias, [...], sem caráter hostil, é verdade, mas persistentes em
seus costumes selváticos” (Pinto 1861: 1). O principal objetivo da
criação da aldeia era o de remover os índios da Vila do Prado para
abrir espaço para a colonização, de transformá-los em mão-de-obra
sem abrir mão á catequese e “encaminhar para a verdade os
espíritos dessa gente semi-bravia, [...], abrindo-lhes os tesouros da
civilização” (Pinto 1861: 2). Esta foi a origem da Aldeia de Barra
Velha (antigamente também conhecida pela denominação Bom
Jardim), que além dos Pataxó, também abrigava os Maxakali,
Botocudo, Kamakã ou Menian de Belmonte, Tupiniquim de Trancoso
e Tupiniquim de Vila Verde (Carvalho 1977). O nome Pataxó
provavelmente prevaleceu por se tratar do maior contingente e a
173 Carvalho informa que já ha provas de presença indígena na área onde hoje se situa a aldeia Barra Velha num oficio do Governador

Francisco da Cunha Menezes para o Visconde de Anadia em 1805, constando que os índios foram removidas da área e levados para a Vila do

Prado para facilitar sua inserção na sociedade civilizada e sua utilização no mercado de trabalho. Mais adiante, em 1808, o Desembargador Luiz

Thomas de Navarro registrou na sua viagem ao Rio de Janeiro, passando pela Vila do Prado, uma grande decadência da Vila, dada aos ataques

constantes dos Pataxó e Botocudos. O Príncipe alemão Wied-Neuwied, também consta ter encontrado com Pataxós, Cumanxós, Maxacalís e

outras tribos na região. O príncipe encontrou os Pataxó na Vila do Prado, convivendo pacificamente com os habitantes da Vila do Prado desde

1813, provavelmente guiados pelos Maxacalís, que já tinham estabelecido um convivo amigável com os moradores da Vila (Carvalho, 1977).
556 Ir para o sumário >>

aldeia se localizar em território tradicional Pataxó. Na época de 1860


até 1950, os habitantes de Barra Velha reconstruíram seu modo de
vida, caçando, explorando a pesca costeira, a fauna dos manguezais
e campos litorâneos, praticando agricultura tradicional, plantando
milho e mandioca, coletando frutos, mel, lenha, palhas e fibras para
suas habitações e utensílios (Sampaio 2000).

- Inicio dos conflitos entre a UC e a população indígena no


Monte Pascoal

Segundo um documento antigo do Serviço de Proteção aos


Índios – SPI – de 1926, a lei n° 1.916 do 9 de agosto de 1926, Art.
1°, estabelece que “fica o Governo autorizado a reservar 50
174
léguas quadradas de terras em florestas gerais e acatingadas,
compreendidas nos limites fixados pelo decreto do Poder Executivo,
de 9 de março do corrente ano, destinadas à conservação das
essências florestais naturais e ao goze dos índios tupinambás e
patachós, ou outros habitantes”. No mesmo documento fica previsto
um crédito para a fiscalização dos limites da área a ser estabelecida
e outra soma monetária para a catequese dos índios. Por falta de
documentos que constam desse época, não se sabe se foi por
causa desse decreto, que em 1944 chegou um certo Dr. Barros na
aldeia Barra Velha com a missão de demarcar a área. A área
175
demarcada abrangeu 664,55 km² e foram colocados 11 marcos ,
em conjunto com os índios.

- O “fogo de 51”

174 Uma légua equivale a seis quilômetros.

175 Os marcos foram colocados em Bangalô, Marco do Ferrinho, Areia Branca, Zé Bedeu, Farol do Corumbau, Bunda da Nega, Gaturama,

Monte Pascoal, Montinho, Pindoba e Riacho Grande. Os marcos foram quase todos encontrados pelo biólogo Jean-Francois Timmers no

período de 1999 a 2004.


557 Ir para o sumário >>

Essa demarcação e a noticia que os índios teriam que sair da


área, levou ao então líder dos Pataxó, o “capitão” Honório Borges, a
viajar para o Rio de Janeiro para conversar com Marechal Rondon
sobre o direito a suas terras. Em vez de conseguir seu objetivo,
Honório conheceu dois indivíduos, cuja identidade exata é
176
desconhecida . Os dois foram-se a Barra Velha em 1951, com o
pretexto de demarcar a terra dos índios177. Em vez de realizar a
suposta demarcação, os dois homens estimularam os Pataxó a
assaltar um pequeno comércio e uma serraria perto de Corumbau
(Vieira 1985). O incidente desencadeou uma reação violenta por
parte da policia, o que mais tarde seria chamado de “revolta dos
caboclos de Porto Seguro” (Carvalho 1999, baseado no jornal “A
Tarde do 30 de maio de 1951) pela imprensa e de “fogo de 51” pelos
Pataxó. A policia veio para Barra Velha de dois lados: um grupo era
de Itamarajú e o outro grupo de Porto Seguro. Os dois grupos
policiais chegaram na mesma hora em Barra Velha, sem que os
policias de Itamarajú soubessem da presença daqueles de Porto
Seguro e vice versa. O primeiro tiro que foi solto levou a policia a
conclusão que os índios estavam armados e logo começaram a
atirar na população indígena da aldeia (Vieira 1985). Os dois
homens desconhecidos foram mortos, e o capitão Honório e mais
dez índios foram presos na hora (Carvalho 1999). A partir desse

176 Suspeita-se que os dois homens desconhecidos eram membros do partido comunista brasileiro (Sampaio 2000).

177 Segundo entrevistas do Jornal da Bahia de 1969, os dois homens falaram: “Nós somos do Governo. Viemos aqui a mando do Pai Velho

(Presidente da Republica) informar que ele fez uma lei dizendo que vocês de agora em diante são os donos do Brasil. Agora, tudo o que vocês

quiserem podem pegar, e mandar em todo mundo porque o Pai Velho disse que vocês chegaram primeiro que Cabral e por isso são os donos de

tudo, afirmaram os tenentes” (Jornal da Bahia, 12 de julho de 1969).


558 Ir para o sumário >>

momento, a policia iniciou um processo de repressão contra os


178
índios da Barra Velha . Vários índios Pataxó foram mortos a tiro ou
morreram em conseqüência das feridas provocadas pela policia
(Vieira 1985: 26). Algumas famílias tentaram se esconder na mata,
fugindo das opressões. A igreja foi a única construção que não foi
incendiada.
Esse incidente levou à dispersão de toda a população
indígena de Barra Velha para as cidades e fazendas vizinhas.
Apenas uma família teve coragem de voltar e ficar em Barra Velha,
porque não queria abandonar a terra dos seus antepassados. Alem
disso, nao conseguiu achar meios de sobrevivência, tendo que fugir
179
e esconder-se da policia . Ao longo do tempo, essa família
procurou seus familiares e amigos nos locais adjacentes. Muitos,
porém, com medo de novas repressões, não queriam voltar para
Barra Velha. Ou ficaram trabalhando nas fazendas ou construíram
180
novas aldeias nas regiões vizinhas .

- A criação do Parque Nacional do Monte Pascoal

No 19 de abril de 1943 foi decidida a criação do Parque


Monumento Monte Pascoal no governo Getulio Vargas, pelo Decreto

178 Vieira indica que os índios que fugiram para mata e foram encontrados, sofreram intensa repressão: “O pessoal do povoado ia se juntando

para ver as brincadeiras que os soldados organizavam. Obrigaram a Maria Ruiva brigar de cipó com o Antonio Calamba. Quem não batesse com

fúria, apanhava dos soldados. Faziam os índios dançarem em roda e ficavam cantando “chô, chô, peneira” (Vieira 1985: 24). Varias mulheres

foram estupradas: “Os soldados davam-lhes um pedaço de sabonete e obrigavam-nas a se banharem e depois as levavam. Faziam o que queriam

com elas. Depois ainda falavam para os homens. [...] Uma índia muito bonita, chamada Luciana, prima do Manoel Santana, sofreu na mão de

todos. Essa índia ate hoje não teve coragem de voltar a Barra Velha” (Vieira 1985: 25).

179 „Josefa Ferreira havia se agüentado com as crianças no Campo do Boi, durante toda aquela semana. A Estela, o Adolfo e o Airton ainda

estavam pequenos. Para não morrerem de fome, saiam ao entardecer para procurar banana nas capoeiras. Tinham que tombar as bananeiras e

abrir as bananas verdes com um pedaço de pau, porque não tinham nenhuma faca para cortar. [Josefa] Resolveu voltar para a aldeia. Poderia ate

ser morta mas não continuaria mais fugindo (Vieira 1985: 27). Josefa foi uma pessoa chave e uma grande líder na luta para a causa dos Pataxó,

que mais tarde também resistiu às opressões por parte do IBDF.

180 A aldeia indígena „Águas Belas“ foi criada em 1951 pelos irmãos Edson e Manoel Braz (Carvalho 1999).
559 Ir para o sumário >>

n° 12.729, mas somente em 1950 foi iniciada sua demarcação. Além


da demarcação da área, nada mais foi feito, o que contribuiu para
invasões na parte oeste, onde foram implantadas várias culturas,
principalmente de cacau e café (IBAMA 1995). Em abril de 1959, a
4ª Inspetoria Regional da Bahia doou a área do Parque Monumento
à União, para a criação de um parque nacional, com exclusão das
áreas já ocupadas por fazendas, com o argumento que essas já
seriam valorizadas demais para serem indenizadas, reduzindo a
área original de mais da metade. O Parque Nacional do Monte
Pascoal foi então criado no 29 de novembro de 1961 (Decreto
Federal n° 242), com fins de proteger uma faixa remanescente da
Mata Atlântica e sua diversidade biológica. O Parque “limitava-se ao
leste com o oceano Atlântico, ao norte com a margem direita do rio
Caraíva, da sua foz ate o rio Guaxuma, ao oeste da nascente do
Guaxuma ate a do Corumbau, e ao sul da margem esquerda do
Corumbau ate sua foz” (IBAMA 1995: 3). Seus limites medem uma
área de 22.500 ha e um perímetro de aproximadamente 110 km.
Os posseiros que se encontravam dentro dos limites do
Parque foram indenizados e retirados da sua área original num raio
de aproximadamente 50km (entre os rios Corumbau e Cemitério, do
Monte Pascoal ate o Atlântico). A maioria da população indígena nao
aceitou as indenizações e continuou de reivindicar seu território. O
parque “cedeu” aos Pataxó uma área de 210 ha em torno da aldeia
de Barra Velha, com terras consideradas de baixíssima fertilidade
(IBAMA 1995). Com o aumento da população, esta área logo passou
a ser considerada insuficiente para as atividades de subsistência.
Além disso, a área era litorânea arenosa, imprópria para a
agricultura (Sampaio 2000).

- A situação socioeconômica da população indígena nos anos


60 e 70
560 Ir para o sumário >>

O SPI como órgão indigenista oficial nessa época já


181
encontrava-se em crise , assim que os índios morando dentro da
área do Parque Nacional do Monte Pascoal ficaram completamente
sem assistência e apoio. Os índios foram compelidos a receber as
indenizações por suas benfeitorias182 pelo IBDF183, mas a maioria
resistiu aos pagamentos (Sampaio 2000). A partir da instalação do
IBDF no parque, os índios foram proibidos de plantar suas roças, de
extrair piaçava para venda ou de caçar para seu próprio consumo. A
coleta de mariscos e caranguejos no mangue – a única fonte da
proteína animal na alimentação da população indígena - também
passou a ser proibida pelo IBDF184. Por necessidade, eles coletavam
os frutos de mar à noite, única “mercadoria” que eles conseguiram
trocar por farinha ou por um mínimo de produtos necessários como
fósforos, querosene e sal. Além disso, os homens buscaram trabalho
nas fazendas vizinhas para adquirir roupas (Agostinho 1978). As
185
propostas do IBDF de transferir os Pataxó para outras áreas , além
de serem no mínimo legalmente questionáveis, foram consideradas
inviáveis.
No final da década de 70, o quadro de extrema miséria dos
índios Pataxó chamou a atenção pública, iniciado por uma série de
artigos publicados na imprensa. O Jornal da Bahia fez uma série de
cinco grandes reportagens sobre os Pataxó no Monte Pascoal em
julho de 1969, desenhando a situação socioeconômica dessa
181 Por causa de uma série de acusações de corrupção e desvio de dinheiro, o SPI foi abolido em 1967 e no mesmo ano, foi criada a FUNAI.

182 Só indenizava-se as plantações de coco, banana, cana, cacau e café. Os mandiocais tinham que ser abandonados (Vieira 1985).

183 O primeiro chefe do Parque Nacional do Monte Pascoal por parte do IBDF era Miravaldo Siquara.

184 O Jornal da Bahia do 15 de julho de 1969 testemunha essa situação através de entrevistas com os índios Pataxó: “Atrás da casa da velha

Zefa [Josefa – minha explicação] existe um principio de capoeira – mas quando ela começa a plantar alguma coisa chega Siquara e derruba tudo:

ela volta a fazer de novo, ele torna a derrubar. [...] “Um dia ele [Duca] matou um saruê e ficou alegre porque a família ia comer melhorzinho.

Mas, eis que chegam Siquara e Ferrinho e tomam a saruê e a espingarda de Duca”.

185 Em 1971, a proposta era de realocar os Pataxó em Itaquena, foi considerada inviável por causa de 400 posseiros que moravam na região. A

segunda proposta, de 1973, de transferir os Pataxó para uma área contígua ao Parque Nacional, no lado norte da foz do Rio de Caraiva, também

foi desconsiderada.
561 Ir para o sumário >>

comunidade. Segundo esse jornal “[...] a morte por fome ronda as


últimas famílias dos Pataxós, proibidos que estes viverem
condignamente como seres humanos abdicados da tradição,
costumes ou de serem regidos por sues deuses. Pataxós, índios [...],
de índole pacifica e vivedores da caça e da pesca, estão subsistindo
de teimosos – explorados sempre pelos civilizados, vivem uma vida
de Kuké, cachorro da aldeia. [...], mas já estão certos que não
viverão por muitos anos mais, apesar de cercados por uma rica flora
e fauna variadíssima, eles não podem tirar um cipó, nem mesmo
matar uma cobra para comer. [...]. O cardápio melhora, sem variar,
se algum roceiro se dispõe a trocar 200 caranguejos por apenas dois
litros de farinha-de-guerra, que os Pataxós guardam,
cuidadosamente para as crianças e os velhos doentes. [...]. Neide
[...], matou-se em protesto contra a pobreza de toda a tribo [...], o
pequeno cemitério [...] tem recebido principalmente as vitimas da
subnutrição” (Jornal da Bahia, 12 de julho de 1969).
A partir de 1967 a FUNAI passou a ser responsável pelos
índios Pataxó. Fernando Dias, primeiro chefe do Posto indígena e
grande adversário dos guardas do IBDF, tentou solucionar a penúria
econômica dos índios introduzindo-los à pesca em alto mar, mas o
despreparo técnico dos homens índios levou a morte de toda a
tripulação na primeira tentativa (Agostinho 1978). Fernando Dias foi
afastado e seu substituto, Leonardo Machado, tentou lentamente
aproximar-se tanto aos índios, quanto ao IBDF para estabelecer um
acordo informal com o último para que os índios pudessem começar
cautelosamente com uma agricultura de subsistência para diminuir
as mortes causadas pela subnutrição. Além disso, com a construção
da sede do Posto da FUNAI (aparelhado com uma farmácia), um
radio-transmissor e as visitas do grupo médico da FUNAI, a situação
dos Pataxó começou a melhorar um pouco, embora ainda
encontrassem-se em uma situação extremamente precária186.

186 A professora e antropóloga Maria Rosário Gonçalves de Carvalho, que chegou junto com o Professor e Antropólogo na aldeia Barra Velha
562 Ir para o sumário >>

Mesmo assim, o mínimo aumento de segurança na Barra Velha


iniciou um processo de reorganização da comunidade Pataxó, que
depois do fogo de 51 vivia dispersa na região. As imigrações foram a
principal causa para o aumento da população de 273 para 666
indivíduos, nos anos 1971 e 1977, respectivamente (Agostinho
1978).

- A produção do artesanato

Os índios Pataxó sempre foram comerciantes e trocaram seus


produtos (piaçava, cera, peixe salgado, farinha, mel) entre si e nos
mercados vizinhos. O “artesanato” que eles faziam antigamente
eram utensílios para a vida diária: o cesto para carregar mandioca; o
jequià, feito de cipó e o suru, de ripa de juçara, ambos utilizados
para pegar peixe; a esteira para dormir, feita de taboa; arcos e
flechas; bolsas de palha. De madeira, fazia-se as canoas
tradicionais, arco e flecha, bordunas e grandes gamelas para banho.
Os pratos, colheres e pentes foram inventados mais tarde, pois
antigamente os Pataxó comiam em casca de coco ou cuias de
cabaça. Além disso, faziam tangas e enfeitavam seus casquetes
com penas de pássaros coloridos, o que foi interditado
imediatamente pelos guardas do IBDF ao instalar-se no PARNA
Monte Pascoal (Grünewald 2001).
O artesanato em Barra Velha foi introduzido pelo segundo
chefe do Posto da FUNAI, Leonardo Machado, que trouxe peças de
artesanato feitas pelos Xerente e propôs aos índios de iniciar a
produção e comercialização de artesanato. Os Pataxó logo se
identificaram com a produção de artesanato, modificando-o e, em
fim, conectando-o com a própria identidade (Grünewald 2001). O

em meados dos anos 70, testemunha que a situação da população era desesperadora, de miséria e penúria graves. A equipe técnica passou a

deixar na aldeia quase toda sua roupa, sua comida e outros utensílios que tinham levado para Barra Velha, pois segundo a antropóloga, lá não

havia absolutamente nada (Entrevista realizada com M. Rosário G. de Carvalho no 24 de junho de 2004).
563 Ir para o sumário >>

artesanato em Barra Velha era majoritariamente feito de sementes


(veja Diagrama abaixo).

Diagrama: Histórico da participação dos Pataxó no mercado artesanal


P o rc en ta g e m d e g r u p o s d o m estic o s q u e

90% 84%
79%
80%
p ro d u z em ar te sa n a to

70%
60% 55,9%
50%
40%
30%
20%
7,50%
10%
0%
Ba rra Ve lh a Bar ra Ve lh a Ba rra Ve lh a Bo ca da M a t a
(a n t es de 1 9 7 5 ) (1 9 7 5 ) (2 0 0 0 ) (2000 )

Village

Fonte: Dados baseados no levantamento sobre as atividades econômicas dos Pataxó,


realizado por Gustavo Azevedo em 2002.

No Extremo Sul da Bahia, a inauguração da BR-101 em 1973,


influenciou drasticamente o quadro socioeconômico da região. A
expansão desenfreada da indústria madeireira e dos
empreendimentos turísticos, levou à quase total destruição dos
restantes de florestas. No inicio dos anos 80, os índios Pataxó,
principalmente da aldeia Boca da Mata, começaram a produzir
artesanato de madeira de lei para entrar no mercado turístico. Logo
depois começaram a vender a maior parte das madeiras da sua área
para madeireiros e atravessadores não-índios.
Na falta de espaço para plantar roças que conseguissem
abastecer suas famílias com a produção agrícola, muitos índios
viram-se obrigados em aceitar a produção de artesanato de madeira
como modo de gerar renda financeira. Dado o sumiço das florestas
no entorno do parque, por causa das fazendas de gado e
assentamentos do MST, os índios passaram a tirar a madeira
necessitada do interior do Parque Nacional. Para este fim, eles
usam principalmente a arruda (Swartzia euxilophora), o parajú
(Manilkara longifolia), a sucupira (Bowdichia virgilloides), o arapati
(Arapatiella psilophylla), a macanaíba (Zollernia latifolia) e o
putumujú (Centrolobium sclerophylum) (Timmers 2001). Embora não
se saiba a quantidade exata de madeira tirada do Parque Nacional,
564 Ir para o sumário >>

observa-se centenas de gamelas oferecidas a beira das estradas e


nas lojas regionais. Freqüentemente observa-se peças feitas de Pau
Brasil, de Jacarandá da Bahia ou de Arruda, todos elas árvores
ameaçadas e endêmicas.
Segundo informações de um produtor de gamelas da Boca da
Mata, ganha-se entre 1 a 2 Reais por gamela não beneficiada. Os
atravessadores vendem as gamelas semi-acabadas para outros
artesãos indígenas, os quais, por sua vez, ganham 1,50 Reais para
o beneficiamento (polimento e acabamento) das gamelas, que então
são vendidas por 8 a 10 Reais por peça. Nas estações baixas, os
índios chegam a trocar suas gamelas por peixe e comida (Timmers
2001). Assim, os grandes ganhadores desse comércio são os
atravessadores e comerciantes, que exploram tanto a mão de obra
dos índios, quanto os recursos naturais do Parque Nacional.
Não é de se estranhar que o artesanato de madeira tenha se
tornado um dos pontos conflitantes mais enfatizados na discussão
entre ambientalistas e indigenistas. A FUNAI acha que o IBAMA
deveria implementar um sistema de vigilância mais efetivo para
proteger o parque, e o IBAMA, por sua vez, acha que a FUNAI
deveria evitar a retirada das madeiras estabelecendo programas
sociais nas áreas indígenas. Enquanto isso, a situação dos Pataxó é
cada vez mais caracterizada pela extrema pobreza e o Parque
Nacional perde a cada dia mais árvores.

- A demarcação da terra indígena de Barra Velha em 1980

Em 1980, a FUNAI e o IBDF chegaram a um acordo, pelo


qual o IBDF cedeu uma faixa no norte do PARNA Monte Pascoal,
junto ao rio Caraíva, estendendo-se para o oeste até chegar próximo
à base do Monte Pascoal. Essa área compreendeu uma extensão
total de 8.627 hectares e era majoritariamente terra arenosa. Na
costa, o IBDF manteve o domínio sobre os manguezais, fato que
levou muitos índios a desconsiderar esse território. Apesar disso, a
565 Ir para o sumário >>

área foi reconhecida pela FUNAI através da Portaria 1393/E do


primeiro de setembro de 1982 como terra indígena. Em 1987, o
território “identificado” foi submetido ao exame do Grupo de Trabalho
Interministerial criado pelo Decreto 94.945/87. Em 1988, a área foi
regularizada como “Colônia Indígena Barra Velha”. Onze anos apos
dito acordo, a homologação foi efetuada através do Decreto 396 no
24 de dezembro de 1991.
Resumindo, a regularização da Terra indígena de Barra
Velha, não se baseara em nenhum parecer técnico como a lei
indígena o prevê. Muito pelo contrario, o laudo antropológico foi
instrumentalizado para respaldar o acordo informal entre o IBDF e a
187
FUNAI (Sampaio 2000). Dado o fato que o IBAMA nunca
alterou os limites do PARNA Monte Pascoal, para excluir a Terra
Indígena da sua área, do ponto de visto legal, existe de fato uma
situação de sobreposição de ambos territórios da União (veja a
imagem “Contexto Parque Monte Pascoal” abaixo).
O tamanho insuficiente do território definido em 1980 levou a
dispersão da população originária da Aldeia de Barra Velha para
outros lugares, tanto para dentro do próprio Parque Nacional do
Monte Pascoal, como para fora dele (Carvalho 1999).

• A situação atual dos índios Pataxó

- As reivindicações dos anos 90

Em 1997, a FUNAI reconheceu as irregularidades da


demarcação da Terra Indígena Barra Velha e reconheceu o direito
dos Pataxó de terem identificadas suas terras tradicionais. No 18 de
agosto de 1999, a FUNAI constituiu um Grupo Técnico (GT) para

187 Sampaio cita os nomes e as instituições que, por causa da falta de processamento adequado e legal, recusaram-se a assinar a resolução

(Sampaio 2000: 12).


566 Ir para o sumário >>

revisar os limites da Terra Indigna Barra Velha e Corumbauzinho


(Portaria 685, publicado no diária oficial em 20 de agosto de 1999).
A Antropóloga que coordena este GT será responsável por
identificar a terra tradicionalmente ocupada pelos Pataxó e fazer
uma proposta de delimitação da área188. Embora a constituição do
GT já seja uma pequena conquista, os índios Pataxó decidiram lutar
por seus direitos de outra forma: a maior reivindicação dos anos 90,
do ponto de vista indigenista, foi a retomada do Parque Nacional do
Monte Pascoal e a expulsão do IBAMA pelos Pataxó no dia 19 de
agosto de 1999. Esse ato é visto como a expressão de uma
crescente auto-estima e uma nova construção de identidade
indígena por parte dos Pataxó do Monte Pascoal.
O propósito articulado pelos Pataxó era de assumir a gestão
do Parque, garantindo a proteção de suas matas e do patrimônio
cultural do monte189. Dessa forma, as comunidades Pataxó entraram
em discussão com o órgão ambientalista para encontrar meios
concretos de garantir a conservação dos ecossistemas da unidade.
O primeiro passo foi buscar a viabilização dos meios técnicos e
financeiros indispensáveis à preservação em curto prazo da floresta.
No verão de 1.999-2.000, um grupo de Pataxó assumiu
espontaneamente e sem apoio concreto a luta contra o fogo no
parque e nas aldeias. Em novembro de 2000, graças ao empenho
pessoal desses ambientalistas Pataxó e da sede do IBAMA em
Itamarajú, o IBAMA/Prevfogo viabilizou cursos de prevenção e
combate a incêndios florestais. Em três anos, um total de 120
brigadistas Pataxó foi capacitado e equipado, que desde então
combateu com eficácia centenas de focos de incêndios em estágio

188 Esse primeiro Grupo Técnico de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Corumbauzinho e Revisão de Limites da T.I.Barra Velha

inicia seu trabalho em outubro de 1999 e o interrompe um mês depois por falta de recursos. A segunda tentativa de criar o GT foi feita em 2000.

O relatório desse GT deve ser entregue, apos várias prolongações de prazo, no ano 2004.

189 O Monte Pascoal foi incluído na Lista do Patrimônio Cultural como Bem Natural da Humanidade em 1999.
567 Ir para o sumário >>

inicial. Desde 1999, nenhum incêndio de grande porte afetou áreas


de floresta primária do conjunto Parque/aldeias.
Em Março de 2001, a pedido da maioria das lideranças das
aldeias, Milene Maia Oberlaender assumiu a gerência formal do
parque, iniciando-se um processo de gestão compartilhada do Monte
Pascoal. Com isso, recursos financeiros necessários à preservação
do parque foram mobilizados. Em 2002, um convênio entre o
IBAMA/PARNA Monte Pascoal e o MMA permitiu a compra de
veículo tracionado e de rádios transmissores, estabelecendo a
comunicação de todas as aldeias e dos três parques nacionais da
região. Neste ano, conseguiu-se também a organização pelo Ibama
de um curso de capacitação de 29 agentes ambientais voluntários,
permitindo o envolvimento formal dos Pataxó na fiscalização do
parque e entorno.
No 28 de fevereiro de 2002 foi firmado um acordo de
cooperação técnica entre os ministérios da Justiça e do Meio
Ambiente, o IBAMA e a FUNAI dando respaldo legal ao investimento
de recursos diretamente do MMA, no âmbito do Projeto Monte
Pascoal190. No mesmo ano, foi firmado um convênio entre o IBAMA e
a Associação Pataxó de Ecoturismo permitindo a mobilização e
capacitação de 29 agentes multiplicadores ambientais em dez
aldeias, num processo de educação e extensão ambiental, com
apoio técnico da Associação Flora Brasil.
Em março de 2003, iniciou-se o Projeto UTF O47–Subprojeto
03, no âmbito da Diretoria de Áreas Protegidas, da Secretaria de
Biodiversidade e Florestas do MMA. Este Projeto, pautado num
amplo processo de discussão inter-institucional que ocorreu em
1997, e de várias consultas nas aldeias no decorrer de 1999 e nos
anos seguintes, foi elaborado com a participação ativa dos Pataxó.
Ele visa melhorar as condições de vida da população e reduzir
drasticamente o seu uso predatório dos recursos naturais, iniciando
190Processo 08620.001411/2001, publicado no Diário Oficial da União no 47, 11/03/2002.
568 Ir para o sumário >>

um processo de recuperação de áreas degradadas em locais


o
estratégicos do Parque e das aldeias. Priorizou-se no 1 ano a busca
da segurança alimentar e a agricultura sustentável, conforme
principal recomendação da Oficina para Detalhamento do Projeto,
organizada em julho de 2002. O Projeto, com apoio e recursos
auxiliares da Associação Flora Brasil, da Diocese de Teixeira de
Freitas e da Funai, permitiu a abertura de 151 roças alimentares,
somando 346 hectares, entre março de 2003 e julho de 2004, em
áreas degradadas invadidas de sapé, nas dez aldeias do entorno do
Monte Pascoal. Mais de cem grupos de famílias Pataxó receberam
insumos, sementes e equipamentos para plantar feijão, milho,
mandioca, abóbora e melancia. Este trabalho envolveu cerca de 560
das 707 famílias levantadas nas dez aldeias.
Desde Julho de 2003, o MMA, com o apoio da Flora Brasil e
da GTZ, viabilizou a vinda de técnicos para elaborar com os Pataxó
uma proposta de transição dessas ações emergenciais para
sistemas sustentáveis de produção agrícola. Cerca de 30 oficinas e
atividades de capacitação foram realizadas nas aldeias entre
dezembro de 2003 e março de 2004. Experiências piloto de SAFs e
adubação verde foram implementadas.
Resumindo, os avanços mais notáveis dos últimos cinco anos
foram a formação de brigadistas para o combate ao fogo a
implementação de projetos agroecológicos e de agricultura de
subsistência. Isso deve-se em grande parte aos esforços dos
representantes do IBAMA no local e às lideranças indígenas que
conseguiram estabelecer uma relação pelo menos de respeito mútuo
um com o outro. No entanto, a situação socioeconômica da
população indígena continua sendo de extrema miséria, assim que a
implementação e o reforço de projetos socioambientais são
imprescindíveis. Embora a relação concreta entre o órgão
ambientalista na região e a comunidade indígena tenha melhorado
569 Ir para o sumário >>

notavelmente, a disputa dos órgãos federais entre si e com as ONGs


ambientalistas e indigenistas continua viva.
Além dessas disputas, existem outras forças socioeconômicas
e políticas que influenciam tanto na situação da população indígena,
quanto no estado de preservação do remanescente de Mata
Atlântica. Esse emaranhado campo de conflito tem como principais
atores: as empresas nacionais e multinacionais, responsáveis pelos
grandes plantios de eucalipto na região desde os anos 90, os
assentamentos do Movimento Sem Terra (MST), os
empreendimentos turísticos e a força política local dos fazendeiros
no entorno do parque. Este conjunto de atores não-índios191, ou uma
parte dele, teme a perda dos seus territórios, já que a Constituição
vigente estabelece no artigo 231 que “são nulos e extintos, não
produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a
ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este
artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da
União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a
nulidade e a extinção do direito a indenizações ou ações contra a
União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da
ocupação da boa-fé”. Para entender melhor os interesses territoriais
contrapostos aos direitos indígenas, no caso do Monte Pascoal, em
seguida será exposta uma breve panorâmica sobre a situação dos
principais atores.

- Os empreendimentos turísticos

A inauguração da rodovia BR-101 em 1973 e o subseqüente


aumento do setor turístico na região proporcionaram um
desenvolvimento econômico rápido dos municípios de Porto Seguro

191 O termo “não” agrega “pessoas físicas e jurídicas, alheias ou estranhas a um grupo indígena, que exploram terra indígena ou nela moram”

(Almeida/Fachin 1999: 127).


570 Ir para o sumário >>

e Santa Cruz de Cabrália. Com isso, houve um aumento


considerável do turismo em Caraivas, no norte do Parque Nacional.
Dada a falta de infraestrutura, não há um volume de turistas tão
grande como em Porto Seguro (Grünewald 2001). Mais
recentemente, as cidades litorâneas no sul do Monte Pascoal,
Corumbau e Cumuruxatiba, que, teoricamente encontram-se em
território indígena, também promoveram ações para aumentar o
fluxo turístico. Comerciantes e empresários, nacionais e
internacionais, resolveram aplicar seu capital nessas cidades ou
especular na compra de terrenos. Hoje, a especulação imobiliária
contribui de forma decisiva para o desenvolvimento econômico
dessas cidades. A maioria dos lotes na Ponta de Corumbau foi
vendida para empresários estrangeiros.
A promissora infraestrutura hoteleira no local e o grande fluxo
de turistas na alta estação, tem constituído um voraz mercado de
consumidores e estimulado a coleta comercial de mariscos e frutos
do mar. A médio prazo, este mercado pode comprometer seriamente
a preservação do mangue do Parque Nacional (Sampaio 2000).

- As fazendas no entorno do Monte Pascoal

A maioria das fazendas em torno do parque dedicam-se à


criação de gado, plantio de mamão, cacau e café ou disponibilizam
suas propriedades para o plantio de eucalipto. Conflitos entre a
população indígena e os fazendeiros são freqüentes. Segundo
informações dos fazendeiros, a maioria das mais de 400 fazendas
que seriam afetadas pela delimitação da terra, são de pequenos e
médios produtores. O grande interesse pelos territórios pode ser
explicado pelo alto potencial econômico da região, pois possui uma
das melhores terras de produção agrícola e pecuária, caracterizada
por uma boa topografia e bons solos para pecuária, fruticultura e
produção de café e cacau. Os fazendeiros contestam as ações dos
571 Ir para o sumário >>

índios com a contratação de pistoleiros para “proteger suas


propriedades”.
Esse ano, em junho de 2004, os Pataxó ocuparam várias
fazendas no entorno do parque. Desde a retomada da sede do
Parque Nacional em 1999, os Pataxó continuam a reivindicar seu
território com uma série de ocupações de propriedades que se
encontram no território a ser delimitado, com o objetivo de acelerar o
processo de demarcação. A freqüência das ocupações, promovida
pela Frente de Resistência Pataxó, intensificou-se no ano 2002: em
abril de 2002, os Pataxó ocuparam as fazendas Boa Vista, Bela
Vista e Santo Agostinho. Naquela ocasião, houve tiroteios durante
as madrugadas. Em maio de 2002, os índios fizeram quatro
pistoleiros contratados por fazendeiros de reféns. Em agosto de
2002, os Pataxó reclamaram a falta de atendimento por parte da
FUNAI, que admitiu estar passando por uma grave crise na relação
com os índios e prometeu melhoras. No mesmo mês, os índios
foram expulsos à tiro da fazenda Santa Rita, nas margens do Rio
Caí, a qual tinham ocupada um mês antes. Em setembro do mesmo
ano ocuparam a Fazenda Oriente. Em dezembro de 2002, um
pistoleiro, armado com uma escopeta e um punhal, foi encontrado
morto em frente à Fazenda Mirante192.
A disputa sobre a terra na área do Monte Pascoal esta cada
vez mais acompanhada por um clima violento nas localidades. Nem
os fazendeiros, nem os índios Pataxó deveriam ser forçados a se
exporem a tais situações, pois a decisão e a obrigação de atuar é
dos órgãos governamentais.

- A atuação do MST

Nos anos 70, a política do INCRA intensificou, de forma


razoável, o desmatamento da Mata Atlântica: a terra de matas era

192 As informações desse parágrafo baseiam-se principalmente nas publicações do jornal “A Tarde” de Salvador da Bahia.
572 Ir para o sumário >>

classificada como “subutilizada”. Os proprietários que haviam


preservado mais que 20% das floretas nas suas propriedades,
tornaram-se alvos prediletos para desapropriação.
Conseqüentemente, eles começaram a fazer contratos com
negociantes de madeira para não perderem suas terras e ainda
obter benefícios através da venda das madeiras (Dean 1996).
Além das influências ambientais que a política fundiária
provocou nos anos 70, a estratégia de assentamentos do INCRA na
região acabou entrando em choque com as reivindicações dos
índios Pataxó. Situados majoritariamente no sul do Parque Nacional,
os trabalhadores rurais do MST assentaram-se em terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios. Ainda sob estudo, os
Pataxó reclamam essa terra e tentam recuperá-la através de
ocupações ou retomadas das propriedades adjacentes ao Parque
Nacional. Se fossem considerados os limites das terras indígenas do
início da década de 90, de fato os assentamentos seriam regulares.
Entretanto, em 1997, os Pataxó ocuparam o Assentamento Três
Irmãos próximo ao povoado de Corumbau, exigindo uma revisão dos
limites de suas terras. Para aliviar as tensões, o INCRA cedeu parte
da área e reassentou as famílias em outras localidades. Em 1998,
um grupo de 50 Pataxó invadiu o Assentamento Corumbau e
expulsou 25 famílias sem terra do local. Aproximadamente um ano
depois, invadiram o local de novo, expulsando 95 famílias que
ocupavam a Fazenda Corumbau a mais de 11 anos. Naquela
ocasião, o MST culpou o INCRA pelo conflito. Em setembro de 2002,
os Pataxó ocuparam, aparentemente de forma mais violenta, mais
uma vez o Assentamento Corumbau, que tinha sido desapropriado
pelo INCRA em 1997. Os prejuízos para as famílias dos
trabalhadores sem terra foram grandes, embora seja muito
questionável a atitude do INCRA de fazer assentamentos em áreas
em estudo antropológico.
Observa-se o constante problema no qual dois órgãos
federais, dessa vez a FUNAI e o INCRA, não atuam de forma
573 Ir para o sumário >>

articulada para atingir seus objetivos relativos à regularização


fundiária (Coelho 2002) e, dessa forma, criam conflitos graves,
repetidamente, no nível local.

- Aspectos socioeconômicos e ambientais dos plantios de


eucalipto

Atualmente, 10% da área total do Extremo Sul da Bahia são


plantações de eucalipto. Desse forma, o “deserto verde” ocupa 20%
da área agricultável total. Os Pataxó já denunciaram a existência de
aproximadamente 30.000 ha de plantios de eucalipto da Veracel e
Aracruz Celulose nas terras que eles consideram tradicionais
Pataxó. A resolução 013 da Conama estabelece que qualquer
empreendimento no entorno de 10 km de um Parque Nacional,
requer a autorização do IBAMA. Alguns dos plantios de eucalipto
porém, não receberam a autorização do órgão federal e podem ser
consideradas ilegais (Overbeek 2004).
A indústria de celulose é considerada de alto potencial
poluidor. A monocultura de eucalipto, além dos mesmos problemas
de outras monoculturas comerciais (redução de agricultura de
subsistência, perda de biodiversidade e fadiga do solo), reduz
significativamente os leitos de rios, lagos e lençóis subterrâneos.
Inseticidas193 e o dejeto das fábricas de celulose completam o
194
quadro de risco ambiental. A Veracel tem um historico ambiental
conturbado. Em 1993, a empresa, foi autuada pelo corte ilegal de
Mata Atlântica. Por esse motivo, o governo proibiu as atividades da
empresa por dois anos e meio. Hoje, a companhia tem alguns

193 A Veracel usa o inseticida Mirex-S, em quantidades de 1,5 toneladas por km². O Mirex-S é menos tóxico que o Mirex, mas mesmo assim é

tóxico para vértebras e entra na cadeia alimentar.

194 Fundada em 1991 como Veracruz, a empresa mudou seu nome em 1998, apos a obtenção da licença ambiental e da entrada da

multinacional nórdica Stora Enso (Overbeek, 2004).


574 Ir para o sumário >>

programas de apoio à Mata Atlântica195. No entanto, algumas ONGs


ambientalistas tem denunciado a continuação dos cortes. O vasto
território, o reduzido número de fiscais do IBAMA e a retenção de
importantes mapas na empresa dificultam a aferição da presença e
da escala dos cortes da mata primária196.
Em Maio de 2003, a Veracel anunciou num encontro com o
Presidente Lula a construção da maior fábrica de celulose do
197
mundo em Eunápolis, a aproximadamente 80 km de distância do
Parque Nacional do Monte Pascoal. A obra estará pronta no
segundo semestre de 2005. Mais uma vez, várias foram as críticas
relativas ao custo ambiental do empreendimento. A fábrica estará a
apenas alguns quilômetros de um dos últimos remanescentes da
Mata Atlântica e situada nas margens do rio Jequitinhonha, um dos
poucos na região a manter sua biodiversidade.
Os 10.000 empregos criados na construção da fábrica tem
sido questionados pelo alto custo que a criação de cada trabalho
implica. Ademais, desde a instalação da Veracel na região, houve
198
um grande aumento do preço da terra e o conseqüente
199
agravamento da questão fundiária . Já o programa de fomento
florestal, programa social que deveria servir de incentivo à
população local, tem aumentado a dependência das comunidades e
200
ocasionado plantios ilegais nas propriedades privadas .
195 O maior projeto nesse sentido é a reserva particular de 60 km2 de Mata Atlântica chamada “Estação Veracruz” mantida pela empresa.

196 Outra fonte de reclamação é o terminal portuário de Belmonte. Destinado ao escoamento das colheitas de eucalipto, o porto tem causado

inúmeros problemas: perturbação do ambiente de procriação de tartarugas marinhas, a morte de baleias jubarte (o santuário de Abrolhos está

bem próximo da rota das balsas), erosão da praia e efeitos negativos em mangues e bancos de corais.

197 A fábrica implicará custos de 1,250 milhões US$, dos quais 50% serão financiados por investimentos públicos(Overbeek, 2004).

198 Em 1998, um alqueirão custava em média R$ 15.000 e subiu para R$ 80.000 em 2004 (Timmers 2004).

199 O INCRA tem relatado crescente dificuldade em fazer novos assentamentos (Overbeek, 2004). Com o alto valor da terra, é grande o

número de assentados e outros proprietários que preferem vender a terra. Outro problema é o abandono da agricultura de subsistência

(Thuswohl, 2004), em favor do plantio de eucalipto. Com isso aumenta o êxodo rural e o custo de vida na região.

200 O fomento de terras é uma opção econômica de aumentar os plantios sem licenciamento ambiental, envolvendo grandes e médios

proprietários e permite evitar a desapropriação de terras improdutivas para a reforma agrária (Timmers 2004).
575 Ir para o sumário >>

Apesar de tudo, as empresas de celulose são uma força


econômica importante, que se bem direcionada, pode contribuir
muito, tanto para o desenvolvimento socioeconômico da região,
como para a preservação dos remanescentes de Mata Atlântica. Um
exemplo concreto foi a grande ajuda prestada pelas empresas nos
combates aos incêndios no PARNA do Monte Pascoal. Aliás, outra
grande oportunidade de parceria está no projeto corredores
201 202
ecológicos . Os impressionantes lucros obtidos pelo setor trazem
consigo uma grande responsabilidade socioambiental. Por enquanto,
o que parece estar faltando é um maior diálogo com as comunidades
locais e com as ONGs203. Um melhor relacionamento entre setor
privado e sociedade civil é garantia de benefícios para ambas as
partes.

- Os núcleos indígenas dentro e ao redor do PARNA Monte


Pascoal

Como supra mencionado, ao longo do tempo formaram-se


novos núcleos indígenas no Parque Monte Pascoal. Hoje em dia, a
população total é de aproximadamente 5.500 indivíduos.
Infelizmente, até hoje, não existe um levantamento demográfico
204
confiável de toda a população indígena no Monte Pascoal . Os
201 Nesse caso, a concentração de terras pode ser um fator positivo, já que é mais fácil conversar com uma empresa do que com centenas de

fazendeiros.

202 O site da Veracel prevê um faturamento anual de 500 milhões de dólares para a nova fábrica. O lucro líquido da Aracruz em 2003 foi da

ordem de 870 milhões de reais (Thuswhol, 2004).

203 A ONG FASE, do ES, relata que desde a compra de 50 % da Veracel pela Aracruz, o diálogo com a empresa tem se deteriorado. A Aracruz

colecionou muitos conflitos com comunidades indígenas e quilombolas, ONGs e órgãos oficiais nos mais de 30 anos de atuação no Espírito

Santo.

204 Os dados das populações de 1998 foram todas extraídos do texto de Sampaio (2002), que, por sua vez, baseia-se em dados levantados pela

ANAI – Associação Nacional de Ação Indigenista – em 1998. Os números das populações de 2002 baseiam-se em dados da FUNASA. Dados

complementares foram fornecidos de Jean-François Timmers em 2004.


576 Ir para o sumário >>

dados abaixo foram colocados com o intuito de transmitir uma idéia


geral e sucinta sobre os perfis das aldeias indígenas Pataxó na
região.

1. Barra Velha

É considerada a “aldeia mãe”, situada a um quilômetro da praia,


mais ou menos a meio caminho entre os rios Caraiva e Corumbau.
Em 1998 contava com 965 habitantes e em 2002, a população tinha
aumentado para 1,454 indivíduos (dados da FUNASA de 2002).
Desde 1999, revisa-se os limites da terra indígena de Barra Velha.
Atividade econômica principal: agricultura e artesanato
(principalmente artesanato de sementes): 36%; atividade econômica
secundaria: agricultura: 21%.

2. Boca da Mata

Foi criada em 1981 em reação ao acordo entre a FUNAI e o IBDF


em 1980. Situa-se na margem direita do córrego Cemitério. Em
1998, a aldeia tinha 556 e, em 2002, 859 moradores. Em 2004, a
aldeia já contava com 990 pessoas. Atividade econômica principal:
artesanato, 49% (maior fonte de gamelas de madeira de lei da
região); atividade econômica secundaria: agricultura, 21%.

3. Meio da Mata

Um grupo da Boca da Mata foi formar a aldeia Meio da Mata em


1987, que se situa uns seis quilômetros em direção leste da
primeira, na margem do rio Caraiva. Em 1998, contava com uma
população de 162 habitantes. Atividades econômicas principais:
artesanato e agricultura, 84%.
577 Ir para o sumário >>

Essas três aldeias ocupam a área que hoje é regularizada


como terra indígena Barra Velha, sendo que Boca da Mata dividiu-se
em três agrupamentos em julho de 2004.

4. Águas Belas

Criada depois do fogo de 51, contava com 100 pessoas nos anos
setenta, cujo número aumentou para 615 em 2002. A aldeia esta
localizada a seis quilômetros do limite sul do Parque Nacional do
Monte Pascoal e a 30 quilômetros da costa. No dia 8 de setembro de
1998, Águas Belas foi homologada como Terra Indígena pelo
Presidente da República. Atividade econômica principal: artesanato,
57%; atividade econômica secundaria: agricultura, 29%.

5. Corumbauzinho

A aldeia foi recuperada nos anos 90 e só recebeu assistência da


FUNAI a partir de 1998. Nesse ano, Corumbauzinho tinha 120
indivíduos que aumentaram para 214 no ano 2002. A aldeia ocupa a
faixa entre Águas Belas e a margem direita do rio Corumbau, no
limite sul do Parque. Encontram-se em conflitos repetitivos com
assentamentos do MST. A terra indígena foi delimitada com 1.225
ha e encontra-se em estudo de delimitação junto com a terra
indígena de Barra Velha. Atividade econômica principal: plantio de
mandioca e aluguel de pasto.

6. Trevo do Parque e Pé do Monte

Trevo do Parque ocupa uma estreita faixa de 1,5 ha doada por um


fazendeiro em 1988 e encontra-se junto ao entroncamento das
rodovias BR-101 e BR-498, sendo essa última a principal via de
578 Ir para o sumário >>

acesso ao parque. Em 1998, tinha 71 moradores. Com a retomada


do parque em 1999, instalou-se um outro núcleo bem na entrada do
parque, que hoje em dia se chama aldeia do Pé do Monte. Atividade
econômica principal: artesanato, 56%.

8. Aldeia Nova

Esse núcleo fica logo na entrada do parque, territorialmente muito


próximo à aldeia do Pé do Monte, mas se considera uma aldeia
aparte. não há informações sobre a atividade econômica principal,
mas pela proximidade com Trevo do Parque e Pé do Monte
suspeita-se que é também o artesanato.
Além dos núcleos supra mencionados existem outras aldeias
dentro e no entorno do parque, sobre as quais não foi possível
adquirir dados mais específicos: Craveiro, Guaxuma,
Cumuruxatiba e Mirante.

- Atividades econômicas da população Pataxó no Monte


Pascoal

Os principais atividades da maior parte das aldeias no entorno


do Parque Nacional se compõem da seguinte forma:

Atividades produtivas primárias nas aldeias


indigenas* (2000)
*incluindo Barra Velha, Boca da Mata, Meio da Mata, Cumuruxatiba, Corumbauzinho,
Craveiro, Pé do Monte, Guaxuma, Aldeia Nova, Águas Belas e Mirante

Outros trabalhos Aposentadoria Sem Resposta


13% 5% 3%
Agricultura
Trabalho 36%
Asalariado
3%

Comercio
2% Artesanato
Pesca
20%
18%

Fonte: Dados baseados no levantamento sobre as atividades econômicas dos Pataxó,


realizado por Gustavo Azevedo em 2002.
579 Ir para o sumário >>

Assim, as ocupações econômicas dos Pataxó podem ser


dividas em três atividades principais: a agricultura, o artesanato e a
pesca. Os diagramas abaixo mostram a importância dessas
atividades para os grupos domésticos, ou seja, para as famílias, nas
aldeias de Barra Velha e Boca da Mata.

Diagrama: Tipos de Artesanato Produzido pelos Pataxó de Barra


Velha e Boca da Mata

80% 69%
P orcenta gem de grupos domesticos

70% 62%
60% 47%
que produzem

50% Barra Velha


40% 28% 31%
30% 16% Boca da Mata
20%
10%
0%
Artesa na to de Ga mela s e Coxos Artesa na to de
semente ma deira pequeno
(colher, pente,
etc.)
Tipo de Artesa na to

Fonte: Dados baseados no


levantamento sobre as atividades econômicas dos Pataxó, realizado por Gustavo Azevedo
em 2002.

Diagrama: Importancia da pesca para os Pataxó

80%
69% 69%
70%

60%
Porcentagem de grupos domesticos

50%
41% Barra Velha
40%
32% Boca da Mata
30%
21% 22%
20%

10%
0% 0%
0%
pesca pesca marítima

Tipo de Pesca

Fonte: Dados baseados no


levantamento sobre as atividades econômicas dos Pataxó, realizado por Gustavo Azevedo
em 2002.
580 Ir para o sumário >>

Cultivos plantados nas roças Familiare s


120%

Porcentagem de grupos domesticos que plantam


100%

80%

60%

40%

20%

0%
ma ab ab fei me co ban bat ca ca mi ma lar jac fav and feij ur ma qu ou
nd aca óbo jão lan co an ata na fé lho nga anj a a ú ão ucu xix iab tros
ioc xi ra çia a do a de m e o cu
a ce co l tiv
rda os

Cultivo
Barra velha Boca da Mata

Fonte: Dados baseados no levantamento sobre as atividades econômicas dos Pataxó,


realizado por Gustavo Azevedo em 2002.

• Considerações finais

Para repensar a situação da população indígena Pataxó e do


Parque Nacional do Monte Pascoal, em primeiro lugar serão
expostos os principais argumentos de ambientalistas mais
ortodoxos sobre a presença indígena no parque. Em seguida
serão exibidos algumas opiniões do lado indigenista sobre a
situação dos Pataxó no Monte Pascoal. Os argumentos de
ambos lados foram contestados ao longo deste texto e cabe ao
leitor refletir e opinar sobre eles. Não obstante, na terceira e
quarta parte deste tópico, serão elaboradas algumas reflexões
finais e possíveis formas de aproximar os interesses dos
chamados “ambientalistas” e “indigenistas”.

- Argumentos ambientalistas contra a presença dos Pataxó no


Monte Pascoal
581 Ir para o sumário >>

A presença indígena histórica dos Pataxó na região não foi provada


cientificamente (Brant 1999). Os habitantes originários da Costa do
Descobrimento eram os Tupiniquins e não os Pataxó (Olmos 2002).

Os Pataxó perderam sua língua e cultura em 1951 como resultado


da diáspora provocada pelo massacre (Dean 1996). Já que se
encontram no processo de reconstrução da sua identidade, uma
possível realocação não significaria necessariamente a perda dos
seus costumes culturais (Olmos et al 2002).

Com o acordo de 1981, a situação ambiental piorou (Dean 1996):


Na área reservada ao Parque Nacional, os Pataxó se engajaram na
retirada seletiva de madeira e piaçava (Olmos et al 2002). Em 14
anos, 5.000 ha de floresta foi derrubado (Brant 1995).

O Decreto de 1991, que homologou a Terra Indígena de Barra


Velha, é nulo, porque a área do Parque Nacional só pode ser
modificada por lei federal (Brant 1995).

Para os índios existe alternativa, mas para a Mata Atlântica não ha.
A sua preservação é incompatível com a presença humana (Brant
1995).

Enquanto 11% do território nacional é destinado às populações


indígenas, somente 3,5% é destinado às unidades de conservação
de uso indireto. O direito de uma minoria não pode suplantar o
direito de toda a sociedade brasileira e da humanidade. A Mata
Atlântica é patrimônio nacional de acordo com a Constituição de
1988 (Olmos et al 2002).
582 Ir para o sumário >>

A crescente população Pataxó excede os limites de


sustentabilidade do parque: a população que era de 125 índios em
1965 aumentou para 2.100 em 1999 (Brant 1995).

As garantias de imunidade presentes na Constituição Federal de


1988 são um incentivo ao surgimento dos “neo-índios”, que por sua
vez, explica o aumento populacional de 1.500%. (Olmos et al
2002). A preservação da biodiversidade no Parque Nacional do
Monte Pascoal não admite presença humana da escala observada
na região (Dean 1996).

Vários incêndios na área Pataxó adentraram o Parque Nacional.


Foi sugerido que os incêndios foram provocados com o intuito de
fabricar “madeiras mortas”, para as quais os índios poderiam obter
autorização de corte do IBAMA (Olmos et al 2002).

O projeto Corredores Ecológicos só é possível com existência de


unidades de conservação sem extrativismo (Olmos et al 2002).

As experiências do modelo de extrativismo envolvendo populações


tradicionais na Amazônia não podem ser aplicados na Mata
Atlântica diante da sua menor área, do maior risco de extinção e da
menor tolerância à presença humana (Olmos et al 2002).

- Argumentos indigenistas
583 Ir para o sumário >>

A nocao de „direito originario“ orienta a Constituicao Federal


brasileira no tratamento da territorialidade indigena. Isto
significaria, na hermenêutica jurídica, que o direito dos índios às
terras que tradicionalmente ocupam é anterior a qualquer ato do
Estado brasileiro, inclusive a criação de UCs. Conseqüentemente,
nos casos de sobreposição entre UCs e TIs, devem prevalecer as
TIs (Bidermann/Silva 2000)205.

“Há mais de um ano o governo vem propondo acordos, termos de


ajustamento de conduta ou qualquer coisa que faça os Pataxó
desocuparem o Monte Pascoal. Mas nao há discussão sobre a
demarcação. Ao contrário. Em 20 de abril o presidente Fernando
Henrique Cardoso alterou a denominação "Parque Nacional do
Monte Pascoal", para "Parque Nacional e Histórico do Monte
Pascoal". Em 22 de abril de 2000 o Ministro da Cultura, Francisco
Weffort, editou a Portaria no 140 sobre o "tombamento" histórico do
Monte. Uma afronta às reivindicações dos povos indígenas. Mais
uma tentativa de negociacao sobre o Monte Pascoal” (CIMI 2000).

“Estamos informados, e podemos dar testemunho disto, de que o


precioso patrimônio de mata atlântica no Monte Pascoal tem sido
extremamente bem cuidado pelo povo Pataxó nos quatorze meses
em que estes assumiram o controle da área, o que não vinha
sendo feito pelos três insuficientes e ineptos servidores do IBAMA
aí mantidos até então” (Messinha 2000).

205 “A regra que deverá nortear as tarefas dos grupos de trabalho a serem instituídos segundo determina o artigo 57 da Lei do SNUC, é a de

que qualquer unidade de conservação cujos limites se sobreponham, total ou parcialmente, ao perímetro de terra indígenas, deixarão de existir,

onde houver superposição” (Bidermann/Silva 2000: p.170).


584 Ir para o sumário >>

Foi o massacre de 1951 e a seguinte perseguição que resultou na


diáspora dos Pataxó que possibilitou a criação do Parque Nacional.
Desde então, os sobreviventes foram forçados de viver em miséria,
sendo humilhados constantemente (World Rainforest Movement
1999).

“Ao longo dos anos noventa, o IBAMA local dedicava-se a alardear,


pela imprensa regional (...), ter flagrado índios retirando madeira do
Parque. A leitura atenta deste noticiário revela, contudo, que a
apreensão recolheu, basicamente, peças da matéria-prima que os
Pataxó costumam utilizar na confecção de artesanato – pequenos
troncos de arruda – e não nas madeiras de interesse das serrarias
locais que, como é sabido, também “desaparecem” do Parque”
(Sampaio 2000).

“Nas atuais condições de vida dos Pataxó, a comercialização de


artesanato, ainda que dependente de consumidores sazonais,
aparece como uma indispensável via de acesso ao mercado,
mesmo para os índios das comunidades do Monte Pascoal que,
distantes dos principais pontos de comercio, têm que se submeter
a intermediários ou se ausentar dos seus locais de moradia na alta
estação, com prejuízos para o trabalho agrícola. Neste contexto, o
possível esgotamento de suas fontes de matéria-prima
naturalmente não interessa aos Pataxó (...)” (Sampaio 2000).

“È incompreensível para os Pataxó que todos seus antigos vizinhos


tenham enriquecido impunemente com a devastação das matas ao
redor do Parque Nacional e que apenas eles, privados do devido
uso do seu tradicional território, aquele que foi explorado e
conservado por seus pais e avós até 1961, sejam hoje execrados
como “inimigos da natureza”” (Sampaio 2000).
585 Ir para o sumário >>

- Considerações sobre as posturas ortodoxas

O quadro acima é um bom exemplo das injustiças e


imprecisões a que se pode chegar quando os dogmas absolutistas,
emoções e informações incompletas são utilizados como base de
um discurso, ou acadêmico ou político.
Os ambientalistas mais radicais, dotados de justificada
preocupação com o futuro da biodiversidade do parque, defendem a
retirada dos índios. De fato, o corte de madeira e a pouca segurança
no parque não podem continuar. Entretanto, a solução não passa
por retirar os índios. Essa não é uma solução nem possível, nem
desejável. A população indígena tem um direito constitucional e
histórico ao seu território tradicional. Ademais, a idéia de excluir a
presença da comunidade local do parque estabelece um precedente
de conflito que, como já provado, não é benéfico para a preservação
do parque. A visão adotada por alguns indigenistas, de que o índio é
soberano e que, uma vez que o artesanato é feito para garantir a
subsistência, o índio está no direito até de acabar com as árvores do
parque também é questionável.
Ao contrário do que se propôs, a cultura Pataxó não esta
morta. É uma cultura que luta pelo legitimo direito de existir,
tentando de recuperar sua língua e partes dos seus costumes
tradicionais, que perderam-se no contato com a sociedade
dominante. Entretanto, a preservação da natureza é um dever de
todo ser humano, independente de raça, cor ou religião. O índio,
assim como quer seus direitos constitucionais sobre sua terra
tradicional respeitados, também deve respeitar os imperativos da
preservação ambiental também presentes na Constituição de 1988.
A conclusão é a de que a preservação da diversidade biológica e da
diversidade cultural são partes de um só fenômeno, que só se
aperfeiçoa se suas duas metades andarem juntas.

– Conclusões
586 Ir para o sumário >>

Os acordos e as convenções internacionais são importantes


princípios e instrumentos para lidar com a questão indígena.
Entretanto, as realidades vividas pelos índios Pataxó localmente
ainda não correspondem com os progressos no nível internacional.
Isso deve-se em grande parte à paralisia dos órgãos federais, que
prejudica tanto a proteção dos direitos indígenas, quanto do meio
ambiente no Brasil. O pais ratificou tanto a convenção de
diversidade biológica quanto a convenção 169 da OIT e cabe as
instâncias governamentais (legislativo, judiciário, executivo)
possibilitar a sua realização. Vale lembrar que uma vez assegurados
os direitos ambientais e indígenas na Constituição vigente, é
obrigação constitucional do Estado garantir esses direitos e
encontrar medidas para aproximar os dois órgãos responsáveis no
nível nacional.
É obvio que a viabilização de quaisquer medidas depende da
competência das pessoas que representam os órgãos federais. O
SNUC prevê no seu artigo 57 que o IBAMA e a FUNAI deveriam
instituir grupos de trabalho para propor diretrizes com o objetivo de
regulamentar as superposições de terras indígenas e unidades de
conservação. Em 2002, um único grupo foi instituído, que reuniu-se
poucas vezes e não produziu nenhum resultado concreto. Os
participantes adotaram os pontos de vistas ortodoxos das duas
instituições e fizeram a cooperação falir. Até hoje, não se recriou
outro grupo interinstitucional (Leitão 2003).
Como foi mostrado no primeiro capitulo, uma possível solução
para a aparente incompatibilidade entre terras indígenas e unidades
de conservação seria a criação de uma nova figura jurídica que
permitisse conservar os recursos naturais existentes em terras
indígenas. Poderia-se delimitar uma área protegida no contexto do
etno-zonemento dentro da terra indígena, de acordo com a vontade
e a forma de ocupação dos habitantes indígenas (Santilli 1999).
587 Ir para o sumário >>

No caso concreto do Monte Pascoal, isso significaria


reconhecer e demarcar a terra tradicionalmente ocupada pelos
Pataxó, que abarca um território bem maior que a atual área do
Parque Nacional e da Terra Indígena de Barra Velha. Com a
demarcação feita, prossegue-se com os levantamentos fundiários,
dividindo assim os ocupantes não-índios em adquirentes de boa ou
de má fé. Os primeiros receberão indenizações por suas
benfeitorias, ou seja, pelas plantações, casas, poços, criações de
gado, etc. A posse ou propriedade posterior ao reconhecimento e à
demarcação é excluída das indenizações. Com o justificado
aumento do território, os Pataxó terão espaço físico para a produção
agrícola e sua reprodução física e cultural. Dessa maneira, os
Pataxó teriam a possibilidade de exercer atividades econômicas que
não seriam relacionadas com a retirada de madeira do Parque
Nacional. No entanto, não resta dúvida de que todo esse esforço só
faz sentido uma vez que seja disponibilizado o apoio e o
acompanhamento técnico, econômico e social necessário para um
manejo eficiente e sustentado de tais atividades.
O quadro de pobreza absoluta dos índios Pataxó os colocam
numa situação extremamente vulnerável, expostos a qualquer tipo
de exploração. Além disso, a presença de fortes grupos de
interesse, a maioria deles dotado de grande poder econômico
(indústria da celulose, setor turístico, MST, fazendeiros locais,
comerciantes, ambientalistas e indigenistas), inspira ainda mais
cuidado. Nesse contexto, observa-se um perigoso paradoxo: A
desoladora miséria dos Pataxó contrasta com a quase incalculável
riqueza contida nos limites das suas terras tradicionais. Essa riqueza
tem várias facetas: uma exuberante costa com um potencial turístico
ainda não explorado; terras de topografia e composição ideais para
a pecuária ou para a agricultura (eucalipto, cacau e feijão); reservas
naturais de valor inestimável (Mata Atlântica, Manguezais, Fauna e
Flora marinha); marcos do patrimônio histórico nacional (sendo o
mais importante deles o Monte que simboliza o próprio nascimento
588 Ir para o sumário >>

do país) e a própria cultura Pataxó que, ainda que com dificuldade,


sobrevive. Com a demarcação concluída, restará aos Pataxó a difícil
tarefa de administrar uma terra, na qual influenciam interesses
variados e, ao mesmo tempo, encontrar um caminho para a
recuperação e fortalecimento de sua identidade cultural.
O primeiro e mais urgente desafio está na busca de uma
atividade econômica que tire a população indígena do quadro atual e
que permita pelo menos a auto-suficiência alimentar. Num primeiro
momento, a melhor opção parece ser a do estímulo à agricultura de
subsistência, na parcela da eventual terra indígena composta de
fazendas desapropriadas, para consumo próprio e também ao
cultivo comercial para obtenção do dinheiro necessário para o
pagamento de outros bens e serviços básicos. Passado esse
primeiro momento, várias opções econômicas se apresentam:
ecoturismo, exploração do turismo na costa - de maneira planejada e
possivelmente através da cobrança de royalties. Outra possibilidade
seria a pesca através da exploração direta ou através de acordos
com pescadores da região. Poderia fazer-se acordos para o plantio
sustentável de eucalipto e produzir o artesanato com utilização de
materiais sintéticos ou naturais não ameaçados. As possibilidades
são inúmeras. O importante é que, de um jeito ou de outro, o apoio
das instituições oficiais é imprescindível, tal como créditos para
programas sociais, obras de infraestrutura, presença da FUNAI e do
IBAMA. Só será possível preservar os tesouros históricos, culturais e
naturais uma vez que haja uma atividade econômica sustentável que
garanta segurança médica, alimentar e educacional mínimas para a
comunidade.
Uma vez que esse pré-requisito seja cumprido, a
demarcação do território Pataxó também poderá ter efeitos positivos
para o Parque Nacional. Poder-se-ia manter o Parque Nacional
como unidade de conservação integral, gerenciada pela comunidade
em conjunto com o IBAMA e a FUNAI. Com o estabelecimento de
um turismo ecológico no seu interior, haveria uma fonte de ingresso
589 Ir para o sumário >>

financeiro para os indígenas e para o Parque. Pelo visto, essa opção


seria aceita pela população indígena, pela FUNAI e por frações mais
moderadas do IBAMA. A grande maioria da comunidade Pataxó
sabe que a produção de artesanato de madeira não consegue
abastecer suas famílias a meio e longo prazo. Além disso, estão
cientes do impacto ambiental que a degradação da mata causa para
seu ambiente imediato. Jurandir Ferreira de Souza, da aldeia
Guaxuma falou para o jornal “A Tarde”: “Hoje, passamos por
grandes dificuldades, mas minha maior tristeza é a degradação da
mata. Os invasores destruíram tudo! Tenho saudades dos velhos
tempos. Precisamos de recursos para recuperar a floresta e
construir uma represa para a lavoura”, fala, lembrando que na aldeia
Guaxuma são obrigados a beber água enferrujada de um córrego”.
(Jornal “A Tarde”, Salvador da Bahia, 31/07/2002).
Falávamos da carga histórica contrastante de uma eventual
terra indígena Pataxó. Sanado o problema da auto-suficiência
alimentar e do corte de madeira para artesanato, não cessam as
dificuldades. A médio e longo prazo, o maior desafio é o da
administração da riqueza. Se por um lado ela oferece um mar de
oportunidades, por outro ela desperta a cobiça tanto dentro da
comunidade Pataxó, quanto nos grupos de interesse que a cercam.
São dois problemas distintos. Com o demarcação, é possível que o
ritmo de crescimento da população Pataxó aumente ainda mais.
Com uma população maior, detentora do domínio de território tão
rico, é provável que haja também uma intensificação da luta interna
pelo poder. Essas disputas, se muito intensas, podem trazer uma
série de problemas (enfraquecimento da comunidade frente as
entidades publicas parceiras, abertura de espaços para influencia
nociva de terceiros, dificuldades na administração, etc). Já com
relação aos grupos de interesse no entorno da terra indígena, não
ha muita duvida. Surgirá todo tipo de pressão: invasão da área por
parte de contrabandistas de espécies raras, exploração política por
partidos e movimentos sociais, cooptação por parte de fortes grupos
590 Ir para o sumário >>

econômicos, tentativa de imposição de doutrinas por grupos de


interesses (principalmente no confronto entre ambientalistas e
indigenistas).
Para a solução desses dois problemas, existem muitas
medidas específicas e pontuais a serem levadas em consideração.
Entretanto, existe uma solução comum: o fortalecimento da
identidade cultural dos Pataxó e do seu senso de comunidade. Com
uma continuação dos esforços de recuperação da cultura, haveria
um crescente sentimento de auto-estima e de pertencimento à
comunidade. Com isso, as tradições e as regras da comunidade se
tornariam mais presentes, funcionando como um regulador das
tensões internas. Com relação às pressões externas, é essencial
que os Pataxó mantenham um senso cada vez mais firme de coesão
e de responsabilidade socioambiental, oriundo de uma elevada auto-
estima comunitária. Unidos pela cultura renovada, eles seriam um
grupo mais difícil de ser influenciado por pressões econômicas ou
políticas, sendo também mais capaz de impor pontos de vista
genuinamente seus. Fica clara a forte interdependência entre a
preservação da diversidade biológica e a preservação da
diversidade cultural. Nesse caso, a diversidade cultural é
representada pela cultura Pataxó, que é tão ou mais ameaçada que
a Mata Atlântica.
Hoje, não temos uma área demarcada e a gestão do Parque
Nacional do Monte Pascoal continua sendo fonte de muita polêmica.
É dentro do contexto da situação atual e das perspectivas para o
futuro, que o projeto corredores ecológicos se apresenta como boa
oportunidade de criação de pontes e superação de antigas barreiras
existentes entre os vários atores que estão envolvidos na questão do
Parque Nacional do Monte Pascoal, tanto no nível nacional, quanto
local. No âmbito nacional, o projeto corredores, poderia operar um
melhor diálogo entre IBAMA e FUNAI. No âmbito local, o projeto
poderia oferecer uma proposta que tanto responde à necessidade da
comunidade de ingresso de renda, como segue os imperativos da
591 Ir para o sumário >>

gestão do meio ambiente: o estabelecimento de um turismo etno-


ecológico. Envolvendo a comunidade local no esforço da
preservação, uma das principais fontes de conflito seria extinta,
abrindo espaço para a canalização de energia em outras
dificuldades que, com certeza, lá estão.
De qualquer maneira, a conclusão é simples. No final das
contas o que se percebe é que há uma relação intrínseca entre os
fatores econômicos, sociais, culturais, históricos e ambientais. Uma
comunidade Pataxó miserável, sem possibilidades de se sustentar e
sem identidade cultural terá como resultado imediato uma maior,
mais intensa e mais rápida destruição da biodiversidade do PARNA,
além do agravamento da difícil situação social na região. Uma
comunidade Pataxó saudável, com aguçado senso de identidade e
responsabilidade comunitária, ambiental, histórica e cultural, será um
importantíssimo aliado na luta pela preservação da Mata Atlântica.
De tal mod+.o, poderia se tornar exemplo de manejo sustentável de
santuários ecológicos na Mata Atlântica localizados em terras
indígenas.

Referências

Agostinho, Pedro: Fundamentos para o estabelecimento da reserva


Pataxó. Rio de Janeiro: Documento apresentado no Seminário “A
pesquisa etnológica no Brasil” do Museu Nacional, 1978.
Almeida,Tânia Mara Campos/Fachin, Luiz Edson: O índio e o outro:
comentários sobre a ocupação de não-índios em terras indígenas,
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598 Ir para o sumário >>

6.3. Uma Barreira Contra os Perigos do Sertão do Monte Pascoal: a


criação da vila do Prado, os índios Pataxó e a re-significação das
206
relações de contato (1764-1820)

Francisco Cancela

Introdução

A criação da Vila do Prado (extremo-sul do atual estado da Bahia)


tem uma relação direta com os índios Pataxó do Monte Pascoal.
Resultado da política pombalina, a vila foi fundada em 1764, cujo
principal objetivo era proteger a estrada da beira-mar dos inúmeros
índios que se refugiavam no sertão do Monte Pascoal. Segundo os
relatos da época, aquela região estava infestada de índios bravios,
sendo os Pataxó os mais “temidos e perigosos”, que regularmente
se dirigiam à costa do mar, atrapalhando a “comunicação e o
sossego dos viandantes”.
Ao mesmo tempo, vila do Prado também atuaria como um palco de
execução da nova política indigenista. Pautada no assimilacionismo
e no laicismo, a legislação pombalina pretendia inserir forçadamente
os índios na sociedade civil colonial. Para tanto, obrigava o uso da
língua portuguesa, a participação nas Câmaras, a organização da
vila em ruas, a morada em casas unifamiliares, a dedicação ao
trabalho agrícola e o convívio e casamento com os não-índios.
Este capítulo da história dos Pataxó do Monte Pascoal é analisado
no presente texto. Partindo da identificação da função da vila do
Prado, apresentamos um conjunto de reflexões que possibilita
entender a vila de índios como um espaço privilegiado de contato
interétnico. A vila do Prado não se limitou a ser uma barreira contra
os “perigosos” índios Pataxó, pois as relações estabelecidas entre

206 Texto baseado em projeto de Doutorado do autor no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia UFBA.
599 Ir para o sumário >>

índios e não-índios permitiram a ressignificação daquele espaço,


contribuindo para a manutenção e reconfiguração da própria
identidade indígena.

Contextualizando o surgimento das vilas de índios em Porto


Seguro

As vilas de índios foram criadas no reinado de Dom José I (1750-


1777), que teve na figura de Sebastião José de Carvalho e Melo, o
Marquês de Pombal, o representante autêntico da política ilustrada
do despotismo esclarecido (FALCON, 1984). Neste período, um
estado de instabilidade econômica rondava Portugal, cujas causas
estavam na perda da arrecadação tributária nas colônias, no déficit
demográfico metropolitano e na crise da produção agrícola. Além
disso, no cenário político, a questão da delimitação das fronteiras
entre as Américas espanhola e portuguesa criou certa turbulência
institucional. Nestas circunstâncias, mudanças nas estruturas
econômica, administrativa e cultural foram necessárias tanto na
própria metrópole portuguesa, quanto nos seus domínios de além-
mar (ARRUDA, 2001).
Na colônia portuguesa da América, as reformas econômicas mais
relevantes foram o fomento à ampliação do comércio e o estímulo à
máquina tributária. Do ponto de vista comercial, a criação das
Companhias do Pará e Maranhão e de Pernambuco e Paraíba
tentou recuperar o controle luso sobre o comércio de exportação e
também intensificar o intercâmbio entre metrópole e colônia. Do
ponto de vista tributário, a Coroa tentou superar seu déficit,
ampliando a cobrança de impostos e radicalizando no combate ao
contrabando (FALCON, 2001). A metrópole tentou também ampliar
e diversificar a pauta de produção e de exportação, além de
racionalizar as técnicas agrícolas usadas, principalmente a
expansão produtiva pelo processo de derrubada e queima das
600 Ir para o sumário >>

matas, que passou a ser bastante criticado por intelectuais da época


(PÁDUA, 2004).
As medidas mais importantes que integraram as reformas
administrativas sofridas na colônia da América foram: a transferência
da sede do Governo Geral do Estado do Brasil, de Salvador para o
Rio de Janeiro (1763); a extinção do Estado do Grão-Pará e
Maranhão e sua incorporação ao do Brasil (1772) e a incorporação
das antigas Capitanias Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo à da
Bahia (1750). Todavia, o mais importante a ser destacado nesta
reestruturação do Estado foi a tendência de modernizar política e
burocraticamente a administração colonial, entendendo-se como
modernização a construção de uma máquina administrativa
renovada que desse respostas às exigências conjunturais de
Portugal.
A política indigenista não passou incólume a este contexto de crise e
reformas. O Marquês de Pombal re-elaborou a legislação
indigenista, adaptando-a à conjuntura política, social e econômica do
Império Português. Em 6 de junho de 1755, Pombal decretou a
liberdade dos índios do Estado do Grão-Pará e Maranhão e de seus
bens e comércio, além de incentivar o desenvolvimento agrícola e
comercial daquele povo. No dia seguinte, apresentou um Alvará que
determinava uma mudança na forma de administração dos índios,
retirando poderes civis e administrativos dos padres regulares e
determinando que fossem governados por principais, governadores
e pela justiça secular (ALMEIDA, 1997).
Em 3 de maio de 1757, através do diálogo com Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, governador e capitão-geral do Maranhão e irmão
de Pombal, foi publicado o Diretório, que se deve observar nas
Povoações dos índios do Pará e Maranhão enquanto Sua Majestade
não mandar o contrário (FURTADO, 1758). Este documento tinha
como objetivo regulamentar as novas regras de convivência
601 Ir para o sumário >>

interétnicas apresentadas com as leis de 6 e 7 de junho de 1755.


Segundo Mauro Cezar Coelho, a Lei do Diretório

emergiu da necessidade de conciliar dois interesses distintos:


por um lado, o metropolitano, o qual pretendia incorporar os
índios em sua política de ocupação e defesa do território
colonial conquistado aos espanhóis; por outro, o dos colonos,
cuja intenção era manter as populações indígenas submetidas,
cristalizando a sua condição de mão-de-obra preferencial no
Vale Amazônico (COELHO, 2005, p. 246).

Composto por 95 parágrafos, o Diretório apresentava regras de


convivência entre brancos e indígenas no Estado do Grão Pará e
Maranhão. Dentre as medidas mais importantes, destacam-se: a
extensão da vassalagem aos índios; a substituição dos missionários
por párocos; a introdução de administradores temporais; a obrigação
do uso da Língua Portuguesa; a transformação dos indígenas em
pagadores de impostos; o incentivo ao casamento interétnico; a
transformação das chefias indígenas em autoridades coloniais e a
introdução do governador como mediador na distribuição da mão-de-
obra indígena. Todas essas novas experiências se dariam em um
novo espaço, pois o Diretório exigia que as antigas aldeias indígenas
fossem transformadas em Vilas207.
Maria Regina Celestino de Almeida, ao analisar as chamadas
reformas pombalinas e seus impactos na vida das populações
indígenas, destacou aspectos de ruptura e de continuidade no que
tange à política indigenista. A partir da comparação entre o Diretório
dos Índios de 1757 e o Regimento das Missões de 1686, a autora
evidenciou que preocupações como a repartição do trabalho, os
cuidados para com as fugas dos índios, a relação com as lideranças
indígenas e a necessidade de descimentos eram comuns entre uma

207 Segundo o Diccionário da Língua Portuguesa, as Vilas eram unidades urbanas menores que as cidades, mas que contavam com juizes,

câmaras e pelourinho (SILVA, 1798).


602 Ir para o sumário >>

e outra legislação. Entretanto, apontou que a “grande diferença


estava nos parágrafos relativos aos costumes indígenas, que
deveriam ser extirpados, e no forte incentivo à miscigenação e à
presença de brancos nas aldeias” (ALMEIDA, 2003, p. 169).
Com a implantação do Diretório dos Índios no Estado do Grão Pará
e Maranhão, várias transformações políticas, econômicas e sociais
se materializaram no Vale Amazônico. Para Mauro Cezar Coelho, as
transformações mais importantes foram: primeiro, a elevação das
antigas aldeias missionárias a Vilas e Lugares, que passaram a se
constituir na base sócio-econômica da Colônia, pois funcionavam
como espaço de arregimentação de mão-de-obra e, também, de
socialização e civilização de uma nova sociedade mestiça; a
segunda grande transformação foi a de garantir um programa de
inserção das populações indígenas na esfera política da colônia,
através da cooptação de lideranças, da distribuição de cargos e
funções, da nomeação para cargos de chefias e da concessão de
honras e privilégios; a terceira, possibilitou a emergência de novas
relações sociais a partir do convívio entre brancos e índios num
mesmo espaço; por fim, promoveu a emergência de relações
diversas entre índios e brancos, que oscilavam da aliança ao conflito
e da negociação à adaptação (COELHO, 2005, p. 35).
Através do Alvará de 8 de maio de 1758, as leis do Diretório se
estenderam para toda colônia americana. Com esta medida, o
movimento de transformação das aldeias em vilas indígenas se
espalhou para toda América portuguesa, permitindo a construção de
uma administração civil, a formação de um novo contingente de
vassalos indígenas pagadores de impostos e a disponibilidade de
mais mão-de-obra para os serviços do Estado e dos colonos.
Na Capitania de Porto Seguro, as vilas de índios foram criadas em
dois momentos diferentes. O primeiro aconteceu em 1758, quando a
Coroa portuguesa estendeu as Leis de 1755 para o Estado do Brasil.
A partir deste momento, um conjunto de medidas foi tomado pelo
Vice-Reinado para afastar os padres jesuítas da administração dos
603 Ir para o sumário >>

aldeamentos e para transformar aqueles antigos núcleos de


catequização em novas vilas. Neste contexto, os dois únicos
aldeamentos jesuíticos existentes em Porto Seguro, a aldeia São
João Batista dos Índios e a aldeia Espírito Santo dos Índios,
transformaram-se em vilas, recebendo, respectivamente, a
denominação de Vila de Trancoso e Vila Verde (APEB, 603).
O segundo momento começou em 1763, quando o Rei D. José I
publicou um Decreto que criava uma nova Ouvidoria na Capitania de
Porto Seguro, pautada na máxima de que “sem governo civil não
poderão fazer grandes progressos com que desejo beneficiar os
vassalos da mesma capitania” (APEB, 7065). Criada sob as
inspirações do Marquês de Pombal, a Ouvidoria de Porto Seguro se
constituía numa instância jurídico-administrativa mais sofisticada do
que a simples organização das capitanias hereditárias, permitindo
melhores mecanismos de fiscalização e de centralização de poder.
Seus limites geográficos reproduziam a mesma divisão da Capitania,
sendo assim desenhado: ao sul fazia fronteira com o Rio Doce –
limite extremo com o Espírito Santo; ao norte, com o Rio
Jequitinhonha – separando-se de Ilhéus; ao leste, com o Oceano
Atlântico; e, ao oeste, com a Capitania de Minas Gerais.
Em 30 de abril de 1763, o Marquês de Pombal elaborou um
documento composto de 18 instruções que continha as diretrizes
fundamentais para a criação e gestão da nova Ouvidoria. Nos seus
aspectos gerais, os objetivos da Ouvidoria estavam baseados numa
certa representação de uma sociedade ideal, segundo a qual “sem
homens sociáveis e civis não pode[ria] haver Estabelecimento [que
fosse] útil” (RIGHB, 1916, p. 63). Assim, para fazer de Porto Seguro
um território civilizado, seria necessário converter seus moradores
indígenas ao catolicismo, organizá-los política, econômica e
juridicamente de acordo com os modelos europeus, transformando-
os em produtores inseridos no mercado e em súditos geradores de
impostos. Desta forma, entrava em cena o pressuposto da
“civilização dos índios de Porto Seguro”, caracterizado pela
604 Ir para o sumário >>

introdução de uma série de mudanças na forma de organização do


espaço, no funcionamento da política e administração dos índios, na
estrutura e dinâmica da economia e nas regras de convivência
interétnicas.
A instrução de número 17 tratava da necessidade de transformar as
Aldeias em Vilas e, também, de estimular o descimento de novos
contingentes de índios dos sertões para a fundação de novas vilas,
que deveriam adotar nomes de cidades e vilas de Portugal.
3 Ordena também S. Magestade que assim naquellas povoaçoens chamadas
Aldeyas que já estão domesticadas, como nas que de novo se estabelecerem
com índios descidos; logo que estes se descerem no competente numero, se
vão estabelecendo novas Villas e se vão abolindo nellas os bárbaros e
antigos nomes que tiverem; e se lhes vão impondo alguns outros novos de
cidades e villas deste Reino (RIGHB, 1916, p. 63).
Como resultado da ação da nova Ouvidoria foram criadas outras
seis vilas de índios em Porto Seguro: Belmonte (1764), São Mateus
(1764), Prado (1764), Viçosa (1768), Porto Alegre (1769) e Alcobaça
(1772). Nelas, a aplicação dos princípios do Diretório dos índios se
constituía em uma obrigação. Por isso, nas vilas de índios de Porto
Seguro três fenômenos também se tornaram comuns: a introdução
dos índios na administração colonial, a sua transformação em
vassalos e tributários do rei e a utilização pedagógica do trabalho
sistemático como forma de civilização dos índios.

Criando uma vila, estabelecendo uma barreira

Localizada às margens do rio Jucurucu, a Vila do Prado foi uma das


primeiras criadas após a instalação da Ouvidoria de Porto Seguro. A
intenção de povoar aquele território foi denunciada pela primeira vez
na Relação sobre as Vilas e Rios da Capitania de Porto Seguro,
quando o Ouvidor Tomé Couceiro de Abreu, um mês depois de sua
posse, em janeiro de 1764, relatou a fertilidade de suas terras,
informou que dois casais e filhos já moravam na localidade e propôs
“ali fundar uma bela vila”. Para tanto, o Ouvidor indicava a
605 Ir para o sumário >>

necessidade de deslocamento de “alguns moradores pobres desta


Vila (de Porto Seguro)”, além de “alguns índios vadios da Vila de
Trancoso e alguns dos muitos que tem na Bahia” (AHU, doc. 6430).
A região do rio Jucurucu possuía qualidades importantes para a
instalação de uma povoação. De um lado, seu território era
composto de “excelentíssimas terras” que poderiam ser exploradas
para a produção de “farinhas e mais frutos”. Do outro, sua barra era
“mais segura e de menos susto do que a de São Mateus” e
possibilitava exportação tanto para Salvador quanto para o Rio de
Janeiro, uma vez que ficava “quase em meia distância para uma e
outra Cidades” (BNRJ, doc. I-5, 2, 29). Além disso, as matas do
Prado eram riquíssimas em madeiras, em especial o pau-brasil, que
era utilizado para tingir couros (WIED, 1989, p. 213).
Cumprindo as ordens régias, Tomé Couceiro de Abreu começou a
tomar medidas para atrair povoadores ao sítio da Barra do rio
Jucurucu. No dia 29 de novembro de 1764, lançou o Edital para
convocar possíveis moradores da futura vila, que foi publicado “nos
lugares mais públicos” de todo continente. Uma das primeiras
iniciativas foi a solicitação de um padre para realizar os santos
sacramentos, servindo de estratégia tanto para assegurar a
presença de moradores brancos quanto para atrair índios que
buscavam o refúgio do batismo. Por isso, mandou constar no Edital
que no local onde se levantaria a vila “se acha[va] já por vigário o
Reverendo Padre João Álvares Barros, remetido a meu
requerimento e por virtude das ordens de Sua Majestade”. Outra
medida necessária foi a divulgação da nova política indigenista,
pautada na liberdade dos índios e no Diretório dos índios. Desta
forma, no mesmo Edital fez questão de copiar as leis de 4 de abril, 6
de junho e 7 de junho de 1755, afirmando veementemente que a
“piimíssima grandeza de Sua Majestade tem declarado e favorecido
a liberdade dos índios”. E, por fim, intimou todos os moradores da
região a comparecerem no sítio da Barra do Jucurucu no dia 12 de
dezembro para ouvir e aprovar a proposta régia de criação da vila,
606 Ir para o sumário >>

sob “pena de que não executando assim manda[ria] proceder contra


eles com força de justiça” (BNRJ, doc. I-5, 2, 29)
Ao chegar o dia 12, Tomé Couceiro deu início ao “ajuntamento dos
moradores e povo” que formavam uma pequena multidão de
brancos e índios com mais de uma centena de indivíduos.
Cumprindo a formalidade que determinava a legislação, o ouvidor
passou a informar os interesses de Sua Majestade com a fundação
da vila e as conseqüências positivas que os moradores teriam se
fossem habitar aquela povoação. Aos brancos, relatou que nenhuma
das outras vilas da Capitania de Porto Seguro tinha terras produtivas
tão férteis quanto as do rio Jucurucu, possibilitando a transformação
daquela nova povoação em um grande porto comercial. Aos índios,
afirmou que somente a criação da vila garantiria a superação de
suas desgraças, pois
só poderão eles ditos moradores conseguir (a civilidade humana) criando-se neste
sítio uma nova vila com justiça que os governe e dirija, dando-se mestres e
mestras a seus filhos, que os ensinem e doutrinem para que assim por este modo
venham a perder a miserável brutalidade em que até agora tem sido criados e
hajam em poucos anos se verem doutrinados e cristianamente civilizados (BNRJ,
doc. I-5, 2, 29).
Após a explanação, o ouvidor certificou se todos os presentes
acatavam a decisão de Sua Majestade em criar a nova vila e
registrou que “todos em geral e cada um em particular convieram na
dita criação”. Além disso, lembrou que dali por diante “todos os
moradores da nação índia e ainda brancos” tinham que
obrigatoriamente residir “perpetuamente com suas mulheres e filhos
nesta vila nova criada”. E, para finalizar, mandou emitir “muitos vivas
de contentamento” para, em seguida, decretar fundada a Vila do
Prado, no dia 12 de dezembro de 1764 (BNRJ, doc. I-5, 2, 29).
A agilidade e rapidez com que este processo foi encaminhado
impõem determinadas perguntas: Por que, em menos de um ano, a
Coroa portuguesa mobilizou pessoas e burocracia para a criação de
uma vila na barra de um rio que ficava distante 10 léguas da Vila de
Porto Seguro? Qual a importância desta região para o projeto de
607 Ir para o sumário >>

colonização daquela Capitania? Quais os motivos que justificavam a


implantação imediata de uma povoação regular naquele sítio? Qual
era, enfim, a função da Vila do Prado?
Para a política metropolitana, a criação da Vila do Prado tinha dois
objetivos inicialmente declarados. De um lado, a vila seria utilizada
para resolver o problema do abastecimento de gêneros alimentares
dos grandes centros coloniais (Salvador e Rio de Janeiro),
principalmente, no que tange à produção de farinha. Do outro, a vila
iniciaria uma nova atividade econômica baseada na exploração da
riqueza de madeiras, resultando na contrução de uma fábrica para a
construção naval. Entretanto, uma leitura detalhada dos registros
oficiais e dos relatos de viajantes e cronistas nos indica um objetivo
maior e mais importante: a Vila do Prado atuaria como uma barreira
208
contra os perigos do Sertão .
Em um ofício de 16 de junho de 1764, Tomé Couceiro de Abreu
informou ao Ministro de Negócios do Ultramar que a criação de uma
vila no rio Jucurucu era uma necessidade estratégica. A
argumentação estava baseada em informações de que existia, numa
distância de 8 léguas daquela barra, uma serra, chamada de Monte
Pascoal, que era habitada por gentios bravios. Desta forma, a
criação de uma vila serviria para “rebater os insultos do gentio do
Monte Pascoal” (AHU, doc. 6508).
No ato de criação da Vila do Prado, quando todos moradores se
encontravam reunidos, o Ouvidor apresentou a justificativa real para
a fundação de uma Vila naquela localidade. Segundo consta nos
Autos da creação, com a instalação de uma nova vila na margem
esquerda do rio Jucurucu, a Estrada Real da Costa, que era o
principal caminho de comunicação entre as vilas de Porto Seguro e
208 Utilizamos o conceito de sertão como uma categoria criada durante o processo de colonização da América: “De forma simplificada, pode-

se afirmar, portanto, que, “sertão” ou “certão”, usada tanto no singular quanto no plural, constituía no Brasil noção difundida, carregada de

significados. De modo geral, denotava “terras sem fé, lei ou rei”, áreas extensas afastadas do litoral, de natureza ainda indomada, habitadas por

índios “selvagens” e animais bravios, sobre as quais as autoridades portuguesas, leigas ou religiosas, detinham pouca informação e controle

insuficiente” (AMADO, 1995, p. 157).


608 Ir para o sumário >>

da própria capitania com as vizinhas, estaria protegida da


“imensidade de Gentio que se acha[va] aldeada nas fraldas do
Monte Pascoal” (BNRJ, doc. I-5, 2, 29). Sendo assim, o papel dos
moradores do Prado era servir de barreira para os perigos do interior
do continente.
Esta tese da função da vila do Prado como barreira dos perigos do
sertão do Monte Pascoal pode ser confirmada também a partir da
leitura dos relatos de Luís Santos Vilhena, por volta de 1798.
Segundo o autor, a Vila do Prado era “habitada por índios e brancos”
que viviam da lavoura de mandioca e da extração da madeira. Ao
falar da importância da vila para a colonização portuguesa,
destacou:
A conservação e aumento desta vila é digna de muita atenção, não só pela
produção de seu fertilíssimo terreno, como por poder servir de barreira e obstáculo
a 12 aldeias situadas em uma alta serra conhecida por todos pelo Monte Pascoal,
que segundo as notícias e informações é o centro de habitação destes bárbaros,
que infestam toda grande comarca de Porto Seguro, e isto pela parte que deu o
capitão-mor João Domingues Monteiro encarregado deste descobrimento
(VILHENA, 1969, p. 526).
A preocupação em montar uma barreira contra os perigos do sertão
do Monte Pascoal tinha base sólida. Desde a falência da Capitania
de Porto Seguro no século XVII e a posterior proibição de acesso às
regiões das minas pelos rios do litoral sul da Bahia no século XVIII, a
região interiorana de Ilhéus, Porto Seguro e norte do Espírito Santo
se transformou em uma área de refúgio dos grupos indígenas
Macro-Jê, que conseguiram sobreviver relativamente afastados da
sociedade colonial (PARAÍSO, 1992). Por isso, as florestas que
rodeavam as margens do rio Jucurucu eram infestadas de índios
Pataxó e Maxacali (WIED, 1989, p. 214).
Nestas condições, uma povoação à beira-mar, formada por
moradores brancos e índios mansos de várias etnias (incluindo a
Pataxó), serveria decisivamente para barrar as ameaças vindas do
interior. Os Pataxó eram descritos como indiferentes à civilização e
de comportamento traiçoeiro. Segundo Maximiliano Wied (1989, p.
609 Ir para o sumário >>

215), “Os Patachós são, entre todas, os mais desconfiados e


reservados; o olhar é sempre frio e carrancudo, sendo muito raro
permitirem que os filhos se criem entre os brancos, como as outras
tribos o fazem prontamente”. Do ponto de vista dos aspectos físicos,
o viajante apresenta uma interessante descrição etnográfica:
No aspecto externo, os Patachós assemelham-se aos Puris e aos Machacaris,
com a diferença de que são mais altos que os primeiros; como os últimos, não
desfiguram os rostos, usando os cabelos naturalmente soltos, apenas cortados no
pescoço e na testa, embora alguns rapem toda a cabeça e deixem um pequeno
tufo adiante e outro atrás. Há os que furam o lábio inferior e a orelha, metendo um
pequeno pedaço de bambu na abertura (WIED, 1989, p. 214)
Percebemos, portanto, que a principal função da criação da Vila do
Prado era servir de barreira contra os índios do sertão do Monte
Pascoal. Entretanto, é preciso notar que as vilas de índios foram
produtos sociais do processo de colonização, envolvendo colonos,
indígenas e autoridades colônias, que se relacionaram num
conflituoso mundo em formação. Por isso, a instalação e o
funcionamento das vilas integravam e interessavam aos diferentes
grupos sociais na Colônia, gerando uma diversidade de funções e
significados, superando a simples delimitação formal contida nas
ordens metropolitanas.

Ressignificando o espaço colonial por meio do contato


interétnico

A conquista e a colonização da América portuguesa impôs aos


povos indígenas um conjunto de relações caracterizado pela
exploração e opressão. No seio destas relações emergiram contatos
interétnicos que possibilitaram a formação da sociedade colonial,
baseada em desigualdades étnicas, sociais, culturais, econômicas e
políticas. Contudo, os contatos interétnicos também possibilitaram a
610 Ir para o sumário >>

re-significação dos espaços coloniais e a reelaboração de


indenidades culturais.
As vilas de índios se transformaram em espaços privilegiados de
contato interétnicos. Diferentemente dos antigos aldeamentos
jesuíticos, nestas novas povoações a presença do elemento não-
indígena era obrigatória, fazendo que colonos brancos, escravos
africanos e outros tantos grupos sociais (pardos, mulatos e
caboclos) convivessem cotidianamente com os índios por meio das
regras de convivência pautadas na Lei do Diretório dos Índios. Neste
cenário, além da relação de trabalho assalariado, os índios também
foram obrigados a se incorporarem à sociedade civil através da
participação nas Câmaras Municipais, nos Terço de Ordenanças,
nas escolas laicas e no cumprimento de determinados hábitos
europeizantes, tais como habitação unifamiliar, organização do
espaço das vilas em arruamento e falar a língua portuguesa.
Apesar de ter sido criada para cumprir a função de barreira aos
índios do sertão do Monte Pascoal, a Vila do Prado adquiriu vários
significados à medida que as relações de contato interétnico se
materializavam. Tanto os índios moradores da vila quanto os do
sertão construíram experiências que deslizaram da adaptação à
resistência ao projeto de colonização portuguesa. A análise destas
experiências pode servir de ponto de partida para a reflexão sobre a
plasticidade dos espaços coloniais.
Uma primeira experiência que merece destaque foi registrada em
1775 pelo segundo ouvidor de Porto Seguro, José Xavier Machado
Monteiro. Em correspondência para o Rei de Portugal, descreveu as
dificuldades encontradas para impor aos índios o uso exclusivo da
língua portuguesa. Para tanto, utilizou como exemplo o
comportamento inusitado dos moradores indígenas da Vila do
Prado, que, apesar do esforço em transformá-los em falantes do
português, não conseguia “refreá-los no uso em particular da sua
bárbara linguagem, ainda que no público a vão acautelando” (AHU,
doc. 8787).
611 Ir para o sumário >>

Os índios do Prado conseguiram fazer uma leitura própria sobre o


público e o privado. Tiveram a percepção de que o controle e a
opressão se fazem mais presentes nos espaços públicos da vila, ou
seja, nas ruas, praças, mercados e largos. E estão ausentes ou
pouco freqüentes nos espaços privados, ou seja, dentro das casas
ou nas roças. Em decorrência disso, souberam usar o espaço
privado como um reduto de manutenção da sua língua, traduzindo
aquilo que era uma imposição (habitações unifamiliares com formato
predefinido)209 em uma forma de resistência.
Ainda tratando dos índios moradores da Vila do Prado, levantaremos
outra experiência descrita em 1803. Segundo os vereadores brancos
da vila, Prado possuía pouco mais que 70 casais de índios,
principalmente das etnias Pataxó e Maxacali. A Câmara se
esforçava para “extirpar” dos índios os “vícios bárbaros”,
encaminhando à prisão aqueles que insistiam em praticar os
costumes indígenas. Dentre os crimes mais comuns estavam a
realização de “festas”, a “bebida de vinho de mandioca” (cauim) e os
“distúrbios” urbanos (AHU, doc. 26.333).
As instituições coloniais encarregadas pela coerção e controle das
populações indígenas não conseguiram deter a prática regular de
rituais indígenas. A estratégia de inserir índios nas Câmaras como
forma de legitimar suas ações políticas e jurídicas também não surtiu
muito efeito, pois os vereadores índios optavam pelo silêncio ao
invés da denúncia a um semelhante. Desta forma, os índios da Vila
do Prado continuaram a praticar seus costumes, mesmo sabendo
dos perigos decorrentes desta ousadia.
Sobre os índios do sertão do Monte Pascoal encontramos algumas
experiências interessantes. A primeira aconteceu em 1807, quando

209 Segundo o auto de criação da Vila do Prado, as habitações deveriam se organizar da seguinte forma: “cada morada de casa de cada um dos

moradores deve ter de frente 50 palmos, de fundo 35 e que se há de compor de uma sala, com sua porta e duas janelas para a rua, um quarto para

os pais dormirem, outro para os filhos, uma casa de dispensa e outra para cozinha e o quintal há de ter de cumprimento 80 palmos e de largo os

50 de fronteira das casas, os quais todas hão de ter a mesma frente, altura, portas e janelas” (BNRJ, doc. I-5, 2, 29)
612 Ir para o sumário >>

um grupo de “70 e tantos” índios “Macaxan”, liderados pelo Capitão


Tomé, entrou na Vila do Prado à procura do padre Antonio Martins
Lomba. Após longo diálogo, resolveram, no dia 15 de fevereiro,
batizar 26 indivíduos entre adultos e crianças. Segundo relato de
Navarro, o batismo era parte de um “tratado de aliança” entre os
índios Macaxan e os colonizadores (NAVARRO, 1866, p. 436).
Não encontramos na etnologia contemporânea relatos sobre a
existência da etnia Macaxan. O termo, contudo, permite levantarmos
duas hipóteses. Uma é que Macaxan pode ter sido resultado de uma
corruptela da palavra Maxacali. Outra, é que Macaxan pode ter sido
a denominação imposta pelos portugueses a um dos subgrupos dos
próprios Maxacali. Hipóteses à parte, o que mais interessa é que
estes índios reconheceram na Vila do Prado um espaço de
negociação entre os interesses coloniais e os interesses indígenas,
conseguindo sintetizar as políticas indígenas e indigenistas em um
“tratado de aliança”.
A segunda experiência dos índios do sertão que destacamos foi
descrita por Maximiliano, no final da década de 1810. O relato
apresenta a chegada de “um bando selvagem” na Vila do Prado, que
para lá se deslocou com a finalidade de estabelecer trocas
comerciais. O viajante registrou que
Eram da tribo Patachós, da qual eu não tinha visto nenhuma até então, e haviam
chegado poucos dias antes das florestas, para as plantações. Entraram na vila
completamente nus, sopesando armas, e foram imediatamente envolvidos por um
magote de gente. Traziam para vender grandes bolas de ceras, tendo nós
conseguido uma porção de arcos e flechas em troca de lenços vermelhos. (...)
Queriam, sobretudo, facas e machadinhas (WIED, 1989, p. 214)
Ao realizar um confronto de fontes, tanto as do início do século XIX
quanto as do final do XVIII, percebemos que a entrada de índios dos
sertões na Vila do Prado era bastante comum. A orientação que a
Coroa portuguesa dava aos colonos era de tratar os índios com
“brandura”, proibindo o uso da violência e incentivando a realização
de alianças para que os índios deixassem o interior do continente
para habitar na vila. Contudo, muitos colonos já desconfiavam de
613 Ir para o sumário >>

alguns grupos de índios que apareciam na vila, recebiam


alimentação gratuita, realizavam trocas comerciais e prometiam
voltar com mais índios para residir na povoação, porém
desapareciam nos matos e só retornavam após alguns meses
fingindo ser outro grupo. Este fenômeno, portanto, além de ser uma
forma de resistência, pode ser entendido como um momento de
encontro comercial e cultural entre o mundo colonial e o mundo
indígena.
Com a exposição destas experiências, podemos perceber que a Vila
do Prado passou por um processo de re-significação de sua função.
Para além de servir como defesa da Estrada da Costa do mar,
também atuou como espaço de resistência, de acomodação, de
negociação e de troca.

Considerações finais

Se para a Coroa portuguesa a criação da Vila do Prado tinha como


objetivo a defesa contra os índios bravos do sertão do Monte
Pascoal, para os indígenas o significado parece ter sido um pouco
diferente. Para alguns índios, em especial os que se transformaram
em moradores da vila do Prado, esta se constituiu em último refúgio
frente às incertezas existentes no caos do mundo colonial; afinal, no
mínimo, os índios avilados tinham alguns direitos assegurados pela
Lei do Diretório e ainda podiam reinventar formar de manter e
reelaborar sua cultura. Para outros índios, particularmente aqueles
do sertão do Monte Pascoal, a vila do Prado se transformou em um
local de fronteira entre dois mundos, um espaço diferente, mas que
sempre estava aberto para possíveis contatos e trocas.
As vilas de índios foram utilizadas pelos povos indígenas como um
espaço de ressocialização, um local que, além de cristão e de
jurisdição portuguesa, se transformou também em um local dos
índios, onde foi possível a recriação ou a manutenção de suas
614 Ir para o sumário >>

identidades, em um constante movimento de re-significação das


relações sociais que eram vividas no dia-a-dia da colônia.

Referências

Fontes manuscritas
AHU – Projeto Resgate. Ofício do Ouvidor de Porto Seguro Tomé
Couceiro de Abreu (para o Ministro dos Negócios do Ultramar Francisco
Xavier de Mendonça Furtado), no qual transmite muitas e interessantes
informações, sobre as povoações, rios, população e madeiras da sua
Capitania. Coleção Castro e Almeida - Documento nº 6.508.
AHU – Projeto Resgate. Relação sobre as Vilas e Rios da Capitania de
Porto Seguro, pelo Ouvidor Tomé Couceiro de Abreu. Coleção Castro e
Almeida - Documento nº 6.430.
AHU – Projeto Resgate. Carta do Ouvidor de Porto Seguro, José Xavier
Machado Monteiro, dirigida ao Rei, na qual relata o sucessivo
desenvolvimento desta Capitania. Coleção Castro e Almeida – Documento
nº 8787.
BNRJ – Manuscritos. Relação dos autos da creação da Villa Nova do
Prado que mandou fazer o Doutor desembargador Geral desta Comarca e
Capitania de Porto Seguro, Tomé Couceiro de Abreu, doc. I-5, 2, 29.

Fontes impressas

FURTADO, Francisco Xavier de Mendonça. Directório que se deve


observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão enquanto
Sua Majestade não mandar o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel
Rodrigues, 1758.
INSTRUÇÕES dadas pelo Marques de Pombal a Thomé Couceiro
de Abreu, quando mandou por este magistrado criar a Ouvidoria de
Porto Seguro. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Salvador, v. 42, 1916, p. 63-68.
SILVA, Antonio Moraes da. Diccionario da Língua Portuguesa,
composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado e accrescentado
615 Ir para o sumário >>

por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Officina de Simão Thadeo


Ferreira, 1798.
VILHENA, Luis dos Santos. A Bahia no século XVIII. Vol. 2.
Salvador: Editora Itapuã: 1969, p. 526.
WIED MAXIMILIAN, Prinz Von. Viagem ao Brasil. Tradução de
Edgar S. de Mendonça e Flávio P. de Figuereido. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, p. 213, 1989.

Referências

ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses Indígenas: cultura


e identidade nos aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos Índios: um projeto de
civilização no Brasil do século XVIII. – Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 1997.
AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Revista Estudos
Históricos, n. 15, p.157, 1995.
ARRUDA, José Jobson de Andrade. O sentido da Colônia:
revisitando a crise do antigo sistema colonial no Brasil. In:
TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal; revisão técnica
Maria Helena Ribeiro Cunha. – 2. ed., ver. e ampl. – Bauru, SP:
EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PT: Instituto Camões,
2001, pp. 245-263.
COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a
experiência portuguesa na América, a partir da Colônia: o caso do
Diretório dos Índios (1751-1798). São Paulo, tese de Doutorado em
História Social – USP, 2005.
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. São Paulo,
Ática, 1982.
_____. Pombal e o Brasil. In: TENGARRINHA, José (org.). História
de Portugal; revisão técnica Maria Helena Ribeiro Cunha. – 2. ed.,
616 Ir para o sumário >>

ver. e ampl. – Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal,
PT: Instituto Camões, 2001, pp. 227-243.
PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento
político e crítica ambiental no Brasil escravista, 1786-1888. – 2. ed. –
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
PARAÍSO, Maria Hilda. Os Botocudos e sua trajetória histórica. In.:
CUNHA, Manuela (org.). História dos Índios no Brasil. São Paulo:
Cia das Letras, 1992.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios Livres e Índios Escravos:
princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI
a XVIII) In.: CUNHA, Manuela (org.). História dos Índios no Brasil.
São Paulo: Cia das Letras, 1992.


617 Ir para o sumário >>

6.4. Noção Nativa de Posse da Terra entre os Pataxó no Monte


210
Pascoal
José Luís Caetano da Silva

A noção nativa de posse da terra é um dos temas clássicos de


etnografias. Esta comunicação pretende subsidiar a compreensão
da noção Pataxó de posse da terra que se contrapõe no ES da
Bahia a outras noções de posse que se pretendem também
legítimas.
Toma-se como suposto com Malinowski (1972: 297) que os
significados dependem de “rigorosa descrição etnográfica da
sociologia, cultura e tradição” nativas (ibid: 298); ainda que tal
interpretação possa ser feita estruturalmente como na análise de
Bourdieu (1972 [1969]) do espaço na casa Kabila onde o familiar e o
social, o feminino e o masculino, a sombra e a luz, entre outros
pares de oposição, interpenetram-se. É neste espaço social que é
construída sua acepção de habitus percebido exatamente pela
inadequação/discordância entre as práticas econômicas do
camponês e as estruturas da economia e da política impostas pela
colonização cujas regras eles devem apreender para sobreviver a
partir de disposições costumeiras que persistem ao
desaparecimento ou desagregação de suas bases econômicas
(Bourdieu 1963). Ao objetivismo que privilegia as relações que os
signos mantém entre si e que os tornam fatos a serem decifrados
contrapõe a análise de suas funções práticas. Mesmo atividades de
comunicação ou conhecimento: festas, cerimônias, trocas rituais, a
circulação de informação científica, estão sempre orientadas
também para as funções políticas e econômicas. Ou, caso se prefira
seguir malinowsky ([1935] 1965: 376)

210 Texto baseado em parte do Capítulo 3 da tese do autor.


618 Ir para o sumário >>

“...it cannot be emphasised tôo strongly that land tenure is a relation of


human beings, individuals and groups, to the soil which cultivate and use.
This relation, on the hand, transforms the land [...] On the other hand, their
vary relation to the soil makes human beings live in families, work in village
communities, produce in teams, become organised by a common belief
and common of a magic character”
Será importante a análise de Geertz (1991 [1980]: 27) sobre o mito
do centro exemplar como lócus do Estado-teatro balinês e a relação
desa/negara [aldeia/Estado] cujo nó era constituído pelo sistema
perbekel que ligava o aldeão individual ao senhor individual: tal
sistema no sentido ascendente se vinculava ao senhor e, no sentido
descendente aos aldeãos da <<posse>> do senhor (Ib.: 75).
Num primeiro sub-tópico analisar-se-á a posse na perspectiva
Pataxó no Monte Pascoal em seus diferentes espaços de
territorialização nomeados como aldeias. A base principal será
composta de entrevistas em aldeias no entorno sul do Monte
Pascoal visitadas durante trabalho de campo conduzido para tese.
Outras perspectivas serão mapeadas, a de fazendeiros e posseiros
que disputam áreas aos Pataxó, a do patrimônio ambiental que se
sobrepõe ao patrimônio étnico e a posse coletiva pretendida pelo
MST que pretende tornar as áreas terras de trabalho. No embate
destas perspectivas é que será buscado o sentido nativo da posse
da terra.

• DO PÉ DO MONTE A BEIRA MAR: O PATRIMÔNIO PATAXÓ E SUA POSSE

A mobilidade Pataxó nos conduz ao modelo pritchardiano que foca


aos Nuer pelo seu modo de vida e suas instituições políticas,
objetivando compreender e explicar o comportamento dos nativos. A
ordem é obtida via um sistema segmentário em que suas partes
constitutivas, comunidades locais, estão inter-relacionadas através
do princípio de equilíbrio estrutural. Este especifica quais segmentos
devem se opor ou se unir a outros, num processo que o Evans-
619 Ir para o sumário >>

Pritchard chama de “divisão” e “fusão”. (Jakobson 1991). O sistema


político segmentar espelha e expressa ate aos a priori na
compreensão do mundo social suas noções de tempo e espaço que
opõem e equilibram duas estações do ano, vividas em dois espaços
distintos de socialização (Evans-Pritchard 1978 [1940]: 107-149).
Para aplicar este princípio de segmentação a territorialização das
aldeias Pataxó e suas rotas entre o mar e o Monte, entre Barra velha
e as unidades familiares autônomas, entre o turismo e a baixa
estação, entre a pesca/mariscagem e a agricultura; o processo será
visualizado ao modo do conhecimento praxiológico de Bourdieu
(1972) que integra o conhecimento teórico do mundo social
construído na análise das relações objetivas com as relações
dialéticas entre essas estruturas objetivas e as disposições
estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-
las o habitus.
A analogia com interpretações construídos nas monografias
clássicas é possível, também, porque entre os Pataxó se está, como
se estava no arquipélago das Trobriands, no Sudão nilota e em Bali
ante “…uma geografia que contrabalançava para manter o equilíbrio
de poder entre as diferentes regiões [gerando] uma primazia da
micropolítica sobre as relações Inter-regionais” (Geertz op. cit: 33-
35), o que tornava o poder político uma questão de acumulação de
prestígio, não de território (ib.: 38). Mesmo na apropriação
econômica do território o aspecto crucial da <<posse>> era a sua
dispersão (ib.: 86). Os povos etnografados compartilham também a
situação colonial que complexifica sua organização política.
Caso se aplique estes princípios segmentários/faccionais a noção de
posse da terra Pataxó, ao seu patrimônio, como alguns se referem,
perceber-se-á diversos níveis de apossamento, todos simbólicos,
porém, igualmente, todos manipuláveis em estratégias econômicas e
políticas: estas se estendem desde um mítico “o sul da Bahia é todo
Pataxó”, passando pelo Monte Pascoal e seu entorno como território
dos Pataxó denominados Meridionais por Carvalho (1977), Barra
620 Ir para o sumário >>

Velha a aldeia Real e no seu interior, ou atravessando suas


fronteiras norte e sul (os rios Caraiva e Corumbau), áreas de
unidades familiares extensas cujo faccionalismo somado ao
crescimento populacional continuamente origina novos grupos que
se diferenciam e referenciam no centro original. Um agrupamento
destas famílias extensas, assim define o território onde viveram ate o
início dos anos 60 uma área que vai da costa na Barra do rio Cahy
até a mata atlântica no atual Parque Nacional do Desenvolvimento –
PND. Nesta aldeia Cai, afirmam

“…viviam nossos antepassados diretos, pais e avós das


famílias: Machado, Guedes, Neves, Braz, Pires, Maranhão,
Alves, Pereira e Santana. Ainda existem, dispersos na área os
sítios de nossos antepassados, com jaqueiras e coqueiros
como prova desta ocupação. Os mais velhos testemunham
sobre as centenas de parentes que viveram na área e a
localização de um cemitério indígena é conhecida. Esse
cemitério fica na Fazenda Boa Vista, onde viviam Dona
Bernarda seus filhos e outros parentes até o ano de 1961” (Cai
2000).

Tal grupo reside na periferia da área urbana de Cumuruxatiba, onde


já residiam antes de irem para a barra do Cahy. Sua saída se deveu
ao início da exploração de areias monazítica, neste período a
convivência entre a posse Pataxó foi mais tranqüilo, quando
comparada a sua relação com madeireiros, fazendeiros, posseiros e
demais grupos interessados diretamente na terra e no que ela
produz. Como a exploração da areia restringia-se as falésias na
linha costeira os Pataxó puderam explorar com tranqüilidade a mata,
as terras agricultáveis, o mangue, a mariscagem e a pesca em meio
aos recifes. Especialmente a mata, Dona Bernarda afirma que Julio
Góes que controlava a exploração da areia dizia a ela que elas eram
o patrimônio deles. Com o fim da exploração ele teria deixado toda a
621 Ir para o sumário >>

área de Cumuruxatiba aos Pataxó, um de seus netos afirma existir


uma carta de doação onde ele se refere aos Pataxó de
Cumuruxatiba como índios pacatos para quem ele deixava a
fazenda. Uma das donas de pousada conta que a extração da areia,
foi algo bastante fechado, em Prado não se sabia, quando lá foi
morar ainda existia a estrutura do ministério das Minas e Energia,
era um general que tomava conta, depois fizeram um loteamento e
“virou naquilo que está lá boate em frente à pousada, atrás uma
aldeia indígena”
Para entender as posses em jogo é preciso, como na analise de
Geertz (op. Cit.: 160-161) em Bali, abandonar

“...o pressuposto típico do homem de leis, de que a <<posse>>


é uma questão de sim ou não, com uma definição estabelecida
e uniforme e que, embora os proprietários possam ser pessoas,
grupos de pessoas, ou mesmo pessoas colectivas só pode
haver no fim, uma pretensão legítima a um direito concreto
sobre uma propriedade concreta”.

Dito a partir do arquipélago Trobriand a terra é o que a terra dá:


coco, banana, taro, status, prestigio, posição de chefia, possibilidade
de conceder dádivas ou cumprir prestações obrigatórias as mais
diversas, está relacionada ao parentesco e suas obrigações e a
religião, alem de diferenciar produtores e consumidores. (Malinowski
331-333). O que está em questão é a necessidade de distinguir
entre o valor dos bens como objetos utilitários e o valor que é
provido um proprietário de um bem julgado segundo padrões não-
utilitarios (Leach 1966 [1965]: xi-xii)

“No tempo da areia à gente tinha plantação de tudo, roça de


mandioca, criava animal, eu vivia mariscando por ai. Foi Deus
quem deixou pra nós. É um patrimônio indígena [...] antes
nunca se passou necessidade, hoje não se tem de onde tirar;
não foi assim que fomos criados.” (D. Bernarda 2003)
622 Ir para o sumário >>

Em Bali Geertz (op. Cit: 161) encontra varias posses que se


sobrepõem: a dos deuses, a dos reis e a de cada aldeão só é
possível entender estas varias posses porque tal posse não envolvia
o usufruto e a apropriação tinha um papel simbólico; uma posse
simbólica diria. Não só podiam tais posses coexistir, como tinham de
coexistir (grifos dele) de modo a que qualquer uma delas fizesse
sentido semelhante à posse dos jardins de coral na análise de
Malinowski (1966 [1935]).
O trabalho de tradução da fala nativa para Malinowski (1972: 305-
310) depende do “contexto de situação”, sendo impossível sem
referencias a “medidas comuns”, “acordos tácitos”, “atitudes
ritualizadas”, fenômenos que são constituídos socialmente e não
expressão de psicologias individuais Quando tenta dar uma
definição preliminar do “ponto de vista nativo” sobre a posse da terra
Malinowski (1966 [1935]: 318-330) lembra que esta noção não pode
ser encontrada pronta no discurso nativo, ela não está dada, sendo
construída pelo pesquisador a partir da observação das relações dos
indivíduos ou dos grupos com os territórios que ocupam. Para tal
relativiza alguns approachs como os censos e as medições. A busca
do sentido da noção nativa é uma investigação que parte de um
insight geral e se molda no decorrer da observação a novas
evidencias descobertas. Assim, vários níveis de “posse” serão
evidenciados em correspondência a posições hierárquicas
socialmente demarcadas, mas que variam, também, de acordo com
a situação onde a idéia de posse está sendo colocada.
Este approach que toma o primeiro sentido no qual uma idéia é
utilizada por um ator e o estende a novos significados que vão
surgindo teve suas limitações demonstradas por Leach (1969: 123),
ligar a significação de determinado termo a uma relação primária de
socialização onde um indivíduo é afetado e estende-la a relações
mais amplas é esquecer que algumas noções derivam, já em
principio, de relações entre classes de indivíduos são “category
623 Ir para o sumário >>

terms”. Num comentário sobre o autor Leach (1966[1965]: x-xi)


aponta o excesso de faccionalismo presente na hierarquização da
posse proposta por Malinowski, uma análise mais acurada da
etnografia de Malinowski permite ver a organização política nas
Trobriands como um sistema bastante competitivo em relação a
reivindicações de liderança. Para Woortmann (1997: 10-13) “o uso
da linguagem na construção do con(texto) etnográfico precisa
certamente ser examinado criticamente, mesmo porque a
textualidade etnográfica é a maneira pela qual a antropologia
representa a alteridade e a si mesma”. Continua apontando que a
crítica de antropólogos por antropólogos é uma marca da disciplina
que variou no tempo e nas controvérsias que gerou, oscilando entre
o universal e o particular, entre a mente e a cultura, reconstituindo-
se todo o tempo a teoria. O realismo etnográfico monofônico talvez
deva ceder lugar a uma postura mais dialógica e polifônica – muito
embora considere a heteroglossia uma utopia – o “ponto de vista
nativo” deve ceder lugar ao ponto de vista de nativos, no entanto isto
pode levar também do “realismo” a um idealismo do indivíduo,
transformando a antropologia numa espécie de jornalismo
sentimental, sem metáforas de teoria. Marca ainda que estes
ataques à etnografia provêm de estudantes socializados incompleta
ou perversamente num contexto em que se privilegia mais a leitura
de filósofos que de etnografias.
Num tal contexto é preciso reafirmar com Malinowski (1966 [1935]:
317) o estudo da posse da terra como um difícil e interessante
problema de síntese sociológica; seu estudo, registro e
apresentação sendo o processo que melhor revela os aspectos
construtivos e criativos da observação sociológica. A posse da terra,
assim como, os demais princípios da organização sociais têm que
ser construídos pelo observador em meio a uma multidão de
aspectos de significância e relevância variada o que os torna uma
realidade invisível. Ao mesmo tempo a definição da posse da terra
624 Ir para o sumário >>

nativa é uma das principais dificuldades na condução de políticas


publicas junto a estes povos, gerando

“…questions of land, of arbitrary expropriation or unwise


apportionment, of sheer unnecessary chicanery or even of well
meant but revolutionary reform, take a prominent place in racial
and national conflict” (Malinowski 1966 [1935]: 316-317).

Concomitantemente a posse da terra é um sistema que obedece


regras legais (ib.: 317). A posse da terra penetra profundamente em
cada aspecto da vida humana, sua utilização sendo marcada pelos
valores, sentimentos, misticismo e tradição. O uso do solo está
ligado a suas lendas, crenças e valores místicos, assim como a
forma de luta para defender tal território. Todos estes aspectos
relacionam o homem ao solo, não só a sua divisão como a
apropriação que se faz do solo e do que ele produz (ib.: 320-322).
Nas palavras de Joel Brás, líder Pataxo “- “O direito do índio na
Constituição é sem fim. O território do índio não é só onde ele mora,
é o que ele precisa para a sua subsistência”. Sem ela, conforme um
filho de uma das Pataxó que fugiu de Barra Velha após o ataque e
as violências da Policia Militar em 1951, refugiando-se na aldeia Cai.
“- Desde então nos vive como folha seca que o vento joga para um
lado e para o outro, sem pousada, sem lugar”. A terra que era dos
antepassados agora está sobre outras posses.

• PROPRIETÁRIOS E POSSEIROS: OUTRAS POSSES

João Pacheco de Oliveira Filho(1987) chama de funil demarcatório a


não homologação das Terras Indígenas e apenas parte das
questões referentes às formas de adquirir a posse da terra no Brasil
que, segundo Motta (2004) “...ocupam hoje um lugar privilegiado nos
debates sobre a democratização do acesso aos títulos de
propriedade no meio rural”. Para a autora é necessário “...discutir o
625 Ir para o sumário >>

problema da concentração da propriedade nas mãos dos grandes


fazendeiros, o que nos remete a sua busca de auto-preservação e
da continuidade de seu poder econômico e político”. Desde a Lei de
terras de 1850 que “...a dificuldade em descriminar as terras públicas
das privadas se soma a união de interesses dos grandes
fazendeiros para impedir que parte das terras devolutas servissem
para os aldeamentos indígenas conforme estabelecido...”. Forjava-
se a inexistência de terrenos devolutos a cada município, uma ficção
que permitia a fazendeiros e lavradores continuarem a expandir suas
terras pelas portas dos fundos de suas fazendas e sítios (Motta
1997: 84). É assim que os Pataxó na citada aldeia Cai vêem a
expropriação do seu território, “quando foram enganados e expulsos
da terra, sem receberem qualquer tipo de pagamento. Esta prática
de grilagem foi comum neste território, assim como na maior parte
do Brasil”. Tal expropriação atinge, também, aos recursos
necessários a sua subsistência: "... às vezes somos impedidos até
de pegar água para beber nos rios onde viviam nossos
antepassados. Não temos acesso as fontes de alimentos naturais
como os mangues e as matas. Perdemos nosso direito de caçar e
pescar”. “Hoje é os ricos de pousada que controla tudo, nem uma
mangaba pode tirar. Os gringos vão entrando em tudo” (D. Bernarda
2003)
Os fazendeiros que ocupam áreas sob retomada sempre
argumentam de forma jurídica. Todos afirmam ter comprado a terra,
alguns sem a sabe-la indígena, outros apresentam atestados da
FUNAI de não incidência em TI da área da fazenda, tal
argumentação é complementada, comumente, por declarações de
títulos registrados em cartório, títulos do estado e/ou recibos de
compra não cartoriais, alguns com quase cinqüenta anos; mormente
assinado por tio e avós dos Pataxó que agora reivindicam a
retomada de sua área.
No cartório de Prado foi possível registrar alguns destes títulos, ao
menos de como os registros foram construídos. Percebe-se que a
626 Ir para o sumário >>

posse, também lá, não é um fato dado, podendo ser desconstruído e


reconstruído. Em trabalho de campo para elaboração do Plano
Diretor Urbano da cidade fui informado pelo apoio local que o
cartório de registro de imóveis não estava funcionando. Ele tentou
financiar um imóvel pela Caixa Econômica e não o pôde, pois, não
existem casas registradas em Prado daí a Caixa não acatar o
financiamento.
Ainda assim fui até a oficial do cartório e expliquei-lhe que desejava
informações sobre a situação fundiária de Prado, especialmente, as
áreas de Barra do Cahy – Comuruxatiba e Corumbau. Ela mais uma
vez explicou-me sobre a suspensão dos registros e dada a situação
caótica dos registros, mostrando-me pilhas de livros (trinta, pelo que
pude contar), alguns em estado de decomposição (cinco ao menos).
Explicou-me ainda que, para ver os registros, era necessária uma
permissão do juiz, em virtude da suspensão que vigia.
Fomos até o juiz e lhe expliquei sobre a pesquisa e sobre o PDU de
Prado que precisa avaliar a situação fundiária municipal,
especialmente aquelas onde serão feitos maciços investimentos
turísticos. Ele se mostrou interessado na investigação, mostrando-se
disposto a cooperar. Apesar disso duvidou da possibilidade de
alguém realizar tal levantamento por completo, pois, a situação do
registro de imóveis é muito complicada. Sua própria equipe vem
tentando realizar este levantamento desde o juiz anterior, que
suspendeu novos registros até que se organize o quadro atual;
ordem que manteve.
Insisti em tentar olhar os registros pessoalmente. Ele levou-me até a
oficial do cartório que me disse que o melhor caminho seria trazer
nomes de proprietários, números de registro ou localização das
áreas. Com estes dados seria possível localizar toda a sucessão
possessória, um trabalho que seria feito pela equipe do cartório,
quem melhor conhece os livros, mas que exige um certo tempo.
Além disso, não há garantias de localização de todos, pois, o nome
dos donos atuais pode não ser o mesmo que está registrado – as
627 Ir para o sumário >>

vendas vem sendo realizadas sem registro, o que recrudesceu após


a suspensão – muitas propriedades e proprietários simplesmente
não possuem registro algum e as áreas registradas foram acrescidas
por expansão sobre terras devolutas ou por aquisição de novas
propriedades.
Perguntei se eles não poderiam indicar-me um livro onde se
encontrassem registros da sucessão possessória de Corumbau,
Comuruxatiba e Cahy, o juiz e sua oficial de cartório se entreolharam
e a indicação da oficial – “Ele devia ver o livro de 84”, com a qual o
juiz concordou me pareceu uma dica de uma fonte interessante de
exemplos sobre o caos do registro de imóveis em Prado.
Primeiro é preciso descrever o livro para entender o montante de
trabalho. É um livro de atas com 350 folhas (700 páginas) com cerca
de quarenta centímetros de largura por noventa de comprimento. É
interessante notar que apesar deste tamanho e dos seus mais de
cinco quilos de peso. O juiz Roberto fez questão de frisar que eu não
deveria “colocá-lo no bolso” e sair do Fórum, por várias razões. A
primeira delas é que como um documento oficial se eu
desaparecesse com ele seria processado judicialmente e
provavelmente preso. Este, no entanto, não era o ponto central.
Ainda segundo ele, quem estivesse com aquele livro fora do Fórum
teria em suas mãos a prova da propriedade real de áreas no
município de Prado o que o torna valiosíssimo para muitos que
mantém posses ilegais e, bastante arriscada a vida de quem
possuísse tal livro.
Ao ler o livro, finalmente, descobri que 1984 – data do termo de
abertura – era apenas o início de cinco anos de registros de imóveis
que se encerrariam com a vistoria que foi feita no livro em 1989. Até
o horário de fechamento do Fórum só conseguíramos mapear 12
folhas (24 páginas) que compreendiam os anos de 1984 e 1985. O
número de folhas restante, mais de trezentas, indica que nos três
anos seguintes ocorreu um boom de registros e transferências de
imóveis no município e é exatamente a validade desse amontoado
628 Ir para o sumário >>

de registros e o seu rigor que está sendo questionada e que resultou


na suspensão dos mesmos. Nos anos levantados foram encontrados
vinte e sete registros e transferências de imóveis rurais localizados
no município de Prado. Não se encontrou nenhum registro ou
transferência de imóvel urbano no município o que parece confirmar
as palavras do guia local.
A primeira confusão reside na definição das áreas que são medidas
em ares, tarefas, hectares e alqueires. A maior parte tem sua área
definida em hectares e nessas pode-se perceber que os registros
todos envolviam imóveis de pequeno porte. Apenas uma chegava
aos trezentos hectares, quase todos regularizavam a cessão ou
venda de pequenas parcelas de grandes propriedades ou áreas
devolutas, ou ainda de “ocupação primária”. É comum também a
regularização de pequenas áreas que depois são agrupadas e
revendidas já como fazendas legalizadas, num dos casos três áreas
serão registradas pela primeira vez, transferidas para um comprador,
reunidas numa só fazenda e revendidas para um mesmo dono, tudo
isto no dia 27 de dezembro de 1984, dia cheio para o cartório, pois,
outros registros foram feitos neste mesmo dia.
Afirmações retiradas dos registros podem esclarecer melhor. De
uma pequena área se afirma sua “posse mansa e pacífica há mais
de trinta anos da metade da propriedade situada na região do Cahy,
de um total de 20ha presumíveis”, não há nenhum registro anterior
da área nem os vizinhos. Noutra se diz que quem a registra é a
viúva do proprietário, como localização consta apenas seu limite
com o Rio Jucuruçu. Não se informa registro anterior, se ha vizinhos,
ou mesmo o tamanho da área. É comum, também, a cessão de
partes de propriedades rurais. Na analisada não é informado registro
anterior, ou vizinhos, nem mesmo a quem foi cedida esta área de
terra que antes era, há um só tempo, terra devoluta e fazenda. A
maior parte das negociações foi feita sobre terras que são chamadas
de devolutas e mesmo assim, são apropriadas por alguém; é típico o
caso de uma propriedade com. “...77ha cedidos a partir de terras
629 Ir para o sumário >>

devolutas do estado adquiridas por ocupação primária”. Um outro


registro afirma sobre a área em questão que ela tem escritura
registrada nas folhas 3-4 do livro 13-A, no mesmo registra-se,
outrossim, que são terrenos devolutos do estado vizinhos ao Rio
Jucuruçu. Como na maioria não há número de registro anterior, nem
vizinhos. Multiplicam-se os casos de “posse mansa e pacífica” de
terras devolutas do estado, situadas em margens de rios e na praia
–terras devolutas do Estado, vendidas por mulheres que só tem
como sobrenome a sua condição de viuvez, representando maridos
que as adquiriram por “ocupação primária”. Registram até
arrendamentos sem citar área, vizinhos, registro anterior, locadores
e locatários.
Percebe-se que a complexa história das invasões de terra no Brasil
“...onde os principais invasores foram os antepassados daqueles
que hoje se apóiam na lei para reafirmar sua condição de
proprietários de terra”, fato relacionado por Motta (loc. Cit.) a
promulgação da Lei de Terras de 1850, a partir da qual as terras
devolutas só poderiam ser adquiridas por compra, ficando proibido o
mero apossamento como forma legítima de ocupação. Instrumentos
federais como o usucapião, a titulação de terras por governos
estaduais e a doação [ou o eufemismo da concessão de uso] por
governos municipais continuam legitimando apossamentos sobre
terras cujo caráter público, patrimonial coletivo, étnico, ambiental ou
social impedem a legalização da sua posse. Em Prado esta não é
apenas uma questão indígena: é possível encontrar pessoas físicas
e jurídicas ocupando áreas sob estudo em GT da FUNAI, em
Unidades de Conservação federais e em Projetos de Assentamento
do INCRA próximos à costa e com potencial turístico; é preciso
somar estas perspectivas que complexificam o enfrentamento das
intrusões em áreas indígenas conduzidas por posseiros e
fazendeiros. “Diante desta situação que vivemos hoje, tomamos a
decisão de retomar nossas terras, perdidas em negociatas, grilagens
630 Ir para o sumário >>

e expulsão de nossos parentes que não conheciam o direito


Indígena” (Cai 2000).

“...Antes de eu nascer, já tinha meus tios que já labutavam por


esses direitos aqui, [...] quando eles lutaram a gente tinha só
um pedacinho de terra. Agente não tinha uma terra. Hoje nós
temos o espaço que nós temos. Depois a gente, com muita
luta, com muita garra, com os parentes tudo reunido,
conseguimos conquistar esse pedacinho de terra que nós tem
hoje. Mas mesmo essa conquista que nós fizemos, nós temos
outras [...] Pra toda essa região aqui que você ta vendo ai, essa
mata pra frente, essas daí tudo ainda é terra de fazendeiro que
ta em riba do direito da gente. Mas uma época nós já fizemos
retomada nessa terra. Passado um ano que nós estávamos na
retomada eles entraram com uma liminar e tiraram nós de
nossas terras. Mas agente até hoje luta. Aqui essa terra que
estou lhe explicando aqui é do fazendeiro, mas ta em riba do
direito da gente. Eu nem conheço quem é fazendeiro. A gente
conhece ai o empregado” (cacique de Corumbauzinho 2003).

• PATRIMÔNIO ÉTNICO E AMBIENTAL: SOBREPOSIÇÕES E CONTRAPOSIÇÕES DE POSSE

É algo já há muito reconhecido que por sua distribuição no país e


pela sua adaptação a diferenciados biomas “os povos indígenas
detêm um profundo conhecimento sobre seu meio ambiente e,
graças às suas formas tradicionais de utilização dos recursos
naturais, garantem tanto a manutenção de nascentes de rios como
da flora e da fauna" (Oliveira 1987).
Tal não tem impedido, no entanto, as sobreposições e
contraposições entre o direito indígena e o direito ambiental (Santilli
2002) que se expressam em sobreposições de reivindicações de
posse pelo órgão ambiental e populações indígenas. Alem dos
impactos ecológicos gerados por ações públicas e/ou privadas em
631 Ir para o sumário >>

áreas indígenas. Apesar de toda a conscientização ecológica


propalada pela mídia a situação não difere muito do fim do século
XIX quando o Ministério da Agricultura se queixava de não poder
“...impedir, como pretendeu, o abuso da invasão das terras públicas,
as quais continuam a ser assoladas, extraindo madeira de lei de
suas matas para ser vendida como também a ser possuída
ilegalmente e sem estorvo” (Motta 1997:84)
A sobreposição entre a aldeia de Barra Velha e o Parque Nacional
do Monte Pascoal fornece, per si, material para uma tese. A primeira
foi criada por ordem do Presidente da Província da Bahia, em 1861,
reuniu bandos que aí viveram praticamente isolados até meados do
século XX (Carvalho, 1977). O segundo foi formulado em 1943 e
implementado em 1960; segundo critérios norteadores que
ressaltavam a necessidade de proteger o histórico Monte Pascoal,
preservar sua faixa de Mata Atlântica e os ricos manguezais no
litoral (Sampaio, 1996:10)
As atividades produtivas dos Pataxó foram proibidas no perímetro do
Parque. Criada a Funai, tal proibição seria relativizada, mediante
acordo informal com o então Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal (IBDF), sendo liberadas algumas áreas de capoeira para o
uso pataxó (Ib:10-11). Estudos antropológicos evidenciavam que
uma “...reconstituição do território dos Pataxó [...] implicaria em
subtrair ao Parque cerca de 14.000 a 16.000 dos seus 22.500
hectares, reduzindo-o apenas às áreas imediatamente em torno e a
oeste do Monte Pascoal” (loc. Cit.). Em 1980, num acordo o IBDF
cedeu à metade norte da área, com a extensão de 8.627 hectares.
Os manguezais no estuário do rio Corumbau, permaneceram
incorporados ao seu domínio (Ib:15).”A área assim constituída [...]
seria identificada em 1982, homologada em 1991( Decreto nº 396,
de 24.12.91) e registrada no C.R.I. em 1992 (Brasileiro 2003).
Tal processo foi questionado em Informação Técnica DID/FUNAI
encaminhada ao Ministério Público Federal, onde se ressalta sua
inconstitucionalidade caracterizada por uma superposição de limites
632 Ir para o sumário >>

(Brasileiro 2003). Sobre a qual já se posicionara Sampaio ao


analisar o decreto de homologação de Barra Velha que não faz
referência à alteração de limites do Parque, segundo ele “muitos dos
encarregados da administração regional do atual Ibama costumam
afirmar, em discussões públicas [...] que a área em questão
permanece integrante do Parque, condição não descaracterizada
pelo mero "acordo administrativo" de 1980” (Sampaio Ib: 16).
Em 1999 a FUNAI constituiu um grupo técnico para revisar o
processo de identificação e de delimitação da TI Barra Velha, os
Pataxó ocuparam o Parque e expulsaram os funcionários do Ibama;
que ajuizou na Justiça Federal uma ação de reintegração de posse e
iniciou gestões junto a alguns líderes Pataxó em torno de um
“acordo de cooperação” que negocia recursos governamentais em
troca da desocupação da área. Tais investimentos resumem-se a
“...realização esporádica de cursos de gestão ambiental e de
treinamento de “fiscais do Parque”, uma estratégia de cooptação
individual que vem surtindo efeitos, gerando intrigas, aprofundando
as dissensões e disputas tradicionalmente existentes...” (Brasileiro
2003). No informe sobre as duas ultimas oficinas o Ibama (2004a)
reconhece a existência da aldeia de Barra Velha, a Aldeia Nova do
Monte Pascoal, no entanto, é chamada de “...comunidade indígena
que vive próxima à entrada da unidade de conservação...”.
Nesse ínterim duas outras Unidades de Conservação foram
recortadas em meio à paisagem Pataxó: o Parque Nacional do
Desenvolvimento – PND (uma Área de Preservação Ambiental –
APA) e a Reserva Extrativista do Corumbau – RESEX.
O Parque foi criado em 1999 com 21.130 hectares, numa área que
por três décadas esteve sob concessão da Brasil-Holanda S. A.
“Bralanda”, como a chamam os Pataxó que retomaram a área por
considerarem-na parte do patrimônio Pataxó que está sendo revisto
pela FUNAI no laudo de demarcação de Corumbauzinho e revisão
de Barra Velha citado. Até o momento retomaram áreas no PND a
aldeia Cai, que saiu logo depois lá permanecendo uma facção que
633 Ir para o sumário >>

se nomeou aldeia Tiba; a Pequiatã – antiga Pequi – que está


ocupando área no PND, um Km após da aldeia Tiba; cruzando o
PND por cinco quilômetros se encontra a comunidade de Gentil,
composta de Pataxó que abandonaram Cumuruxatiba na época da
Bralanda e foram para Mata Medonha e que agora retornam; alem
de um grupo que veio de Itamaraju nas proximidades com o
Guarany Nova Alegria. “Na terra de fazendeiro eles atiram na gente,
nós queremos paz, plantar raízes, fazer farinha. No Parque é
governo contra governo, não vão nos expulsar a força. A gente
precisa plantar para comer” (Oitiguaçu um dos líderes da aldeia
Pequiatã – 15 anos casado um filho, cursando a sétima serie)”. “O
Ibama me pegou com uns gravetos que eu levava pra fazer fogo em
casa e o fiscal me mandou colocar cada um no lugar que tava [...]
Como é que eu ia saber?” (Caboclo Jacutinga, pai do cacique da
aldeia Tiba). Concomitantemente caçadores atuam no Parque para
donos de restaurantes em Cumuruxatiba e os donos de hotéis e
pousadas de toda a região esvaziam suas fossas com carros pipas
que as transportam até as cabeceiras dos rios na proximidade do
Parque. Em janeiro último foi apreendida madeira do Parque e o
Ibama acusou aos Pataxó. O entorno do Parque de dez quilômetros
que somado ao do Monte Pascoal torna toda a área entre os dois
parque de preservação não tem sido respeitado pelos proprietários
particulares continuando o desmatamento, as vezes com
autorização do órgão, queimadas ilegais e o plantio de eucalipto.
A RESEX foi criada em 2001 unificando terrenos de marinha e áreas
delimitadas sobre o mar. Em 2004 foi firmado um convênio entre
uma ONG local a Associação Pradense de Proteção Ambiental
(APPA) e o Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA). Estão sendo
destinados R$ 798 mil a Reserva, numa ação do Ibama (2004b) que
afirma ter unido seis associações de pescadores: Caraíva, Aldeia
Barra Velha, Ponta do Corumbau, Veleiro, Imbassuaba e
Cumuruxatiba; ONGs ambientalistas: Flora Brasil, Conservação
Internacional do Brasil e Instituto Baleia Jubarte “...com o objetivo de
634 Ir para o sumário >>

proteger os meios de vida e a cultura das populações extrativistas


tradicionais e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais por
pescadores artesanais, em sua maioria descendentes de índios da
etnia Pataxó”, o projeto tem a orientação acadêmica do Laboratório
de Etnoecologia e Ecologia Humana da Universidade Federal de
São Carlos/SP.
Apesar da maioria Pataxó as associações envolvidas são não
Pataxó com exceção de Barra Velha e Veleiro, e mesmo as
localidades com ampla maioria Pataxó como no Corumbau e
Cumuruxatiba/Cahy os coordenadores são descendentes de Pataxó
que não participam das aldeias. Assim, ficam de fora do convênio
lideranças de aldeias como a Barra do Cai já citada, Boca da Barra
do Corumbau, com famílias nas duas margens do rio, Tauá, além de
outras áreas Pataxó como Riacho Grande e Mato Grosso.
Quanto às organizações falta no acordo algumas das mais inseridas
na causa do povo Pataxó como a Associação Nacional de Ação
Indigenista – ANAI, ou o Conselho Indigenista Missionário –
CIMI/Leste, as ONGs envolvidas, locais ou não, possuem pouca ou
nenhuma experiência em lidar com questões indígenas e o
coordenador de uma delas, migrante do Rio de Janeiro, declarou em
entrevista sua aversão ao povo Pataxó. Não vende artesanato deles
na rede de lojas que possui em virtude dos materiais utilizados que
considera anti-ecológicos em Prado e, na capa de um CD ROM
sobre as belezas naturais e culturais do município estampou a foto
de sua filha escurecida digitalmente e vestida com lança, tanga, arco
e flecha e casquete; símbolos Pataxó, quando perguntado porque
não utilizar uma criança indígena respondeu “Não me envolvo com
estas pessoas”.
Ainda que considerando a legitimidade da UFSCAR, é de se
estranhar a ausência do Programa de Terras Indígenas do Norte e
Nordeste Brasileiro – PINEB/UFBA, nascido em uma viagem de aula
de campo aos Pataxó de Barra Velha em 1971, coordenado pela
antropóloga que esta produzindo o citado laudo. Faltam também as
635 Ir para o sumário >>

Universidades Estaduais baianas, especialmente a UESC, batizada


de Universidade do Descobrimento e a UNEB que tem dois campi
na região. Todas estas universidades contam com estudiosos do
povo Pataxó.
Para complexificar a Lei Orgânica de Prado de 2000 cria “como de
preservação ambiental e ecológica a área territorial da Ponta das
Guaratibas à Ponta de Corumbau, com seus bens dominiais,
estendida por 200 metros além das terras de marinha.”. Tal área de
interesse ecológico, sobreposta a RESEX que em alguma medida se
sobrepõe aos dois parques citados tirando deles o mangue e os
recifes, inicia-se em Guaratibas e vai até a ponta do Corumbau;
duas das áreas mais ocupadas por pousadas e hotéis de luxo,
internacionais no caso de Corumbau. Entre elas está
Cumuruxatiba/Cahy, o Distrito com alta concentração de pousadas e
hotéis com presença internacional no período da passagem das
Jubartes e um dos maiores latifúndios do município o hotel fazenda
Capitania dos Descobridores que abriga a Barra do rio Cahy, ponto
Zero do contato entre portugueses e índios decretado por FHC, de
onde foram expulsos a tiros os Pataxó da aldeia Cai. Note-se que há
um projeto de hotel que envolve investimentos na ordem de um
milhão de dólares no Corumbau, a portuguesa na frente do
empreendimento vinculou a implementação do negócio ao controle
da área do recife e dos mangues e a expulsão dos nativos que
impactam o meio ambiente e prejudicam o turismo ecológico.
“Quando eu era novinha vivia mariscando por ai, agora eles é quem
mandam. O Ibama tomou conta do mar e não deixa pescar” (D.
Bernarda 2003).

• “TERRITORIALIZAÇÃO”, “TERRA DE TRABALHO” E EFEITOS DE REAL: FUNÇÃO

SOCIAL, POSSE E CLIVAGEM ÉTNICA DE CLASSE

Uma condição de classe produz habitus, estrutura estruturada


predisposta a funcionar como princípio gerador das práticas e
636 Ir para o sumário >>

representações “reguladas” e “regulares” sem regras, coletivamente


orquestradas, sem a ação organizadora (Bourdieu 1972: 61). Para
entender a sobreposição entre a posse Pataxó e a de Parceleiros
em assentamentos do Incra é preciso, como na análise de
Malinowski (op. Cit.: 323) emergir da crua oposição entre "individual"
e "comunal", pois, quando se afirma que uma coletividade qualquer
é a real dona da terra é preciso esclarecer o sentido de coletividade,
dona e de terra que se esta falando, podem existir diferentes níveis
de posse coletiva, os mais simbólicos sendo gerais, enquanto a
apropriação das terras agricultáveis é mais clânica.
É evidente que povos indígenas e sem terras compartilhem uma
condição de vida e um habitus comum, ao menos enquanto
organizações em luta pela conquista e/ou manutenção de sua terra,
espaço de subsistência coletiva. A teoria de Bourdieu leva em
consideração as classes sociais, enquanto relações, de força,
simbólicas e de classificação, todos subjetivos, o que implica num
rompimento com a teoria marxista na sua tendência para privilegiar
as substâncias em detrimento das relações e ignorar as lutas
simbólicas travadas nos diferentes campos; nestes os agentes são
definidos pela posição ocupada nos diferentes campos e organizam-
se segundo a diferenciação (Bourdieu 1989 [1984]). La distinction foi
assumidamente um dos princípios básicos da sua obra (Bourdieu
1994) “...um percipi, um ser reconhecido (nobilis), que permite impor
um percipere” (Bourdieu 1989 [1984]: 145).
Numa reunião entre a FUNAI, o Incra, o Ministério Público da União,
a Associação de Pequenos Produtores do PA Corumbau e lideres
Pataxó se pode observar estes mecanismos diferenciadores sendo
jogados. Um líder do PA Corumbau tenta demonstrar que poderia
convencer o Incra/Ba (SR-05) a transferir o mesmo para uma outra
área, ante a irredutibilidade de um cacique Pataxó “Somos catorze
irmãos donos daquilo ali. Ocupar o Projeto Corumbau foi uma
decisão da minha comunidade” (João Brás Hanimon Cacique de TI
Águas Belas), “O MST e o INCRA devem começar logo a procurar
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outras áreas para o PA” (Karajá - AB).


Pelo Estado um representante da FUNAI rememora a extrusão de
parte do PA Corumbau da TI Águas Belas, ante o procurador do
MPU que tem que se equilibrar entre fazer respeitar os direitos dos
Pataxó à sua terra tradicional e resguardar os direitos da
comunidade assentada ambas ações previstas em sua Lei que os
torna fiscais do cumprimento dos direitos difusos (o caráter étnico e
social da terra) e coletivos (intrusões em TIs, benfeitorias e imóveis
dos associados ao PA). O Incra afirma que, “...no caso da criação do
PA Corumbau cumpriu todos os trâmites legais quando desapropriou
as Fazendas Reunidas Corumbau (Brasileiro. o que significa que foi
pedido um atestado a FUNAI de que área não incidia em TI, ouviu-
se dos herdeiros que seu pai registrara a fazenda em Caravelas e
pegou cópias de recibos de compra e venda, a área retomada pelos
Pataxó ao PA Corumbau (25 lotes 600ha), por exemplo, pertencia a
seis antigos posseiros que venderam exatos 100ha cada um ao
fazendeiro em 1956, dois deles são da família Brás, a mesma dos
caciques de Águas Belas, Aldeia Nova, Corumbauzinho e Tiba, tios-
avós destes, que já habitavam a margem sul do Corumbau desde
antes do Fogo de 51, quando Maria Emilia e seu marido saíram de
Barra Velha e começaram sua diáspora pelo entorno sul, primeiro
em Corumbau (lado norte), depois na Terra do Meio/Caveira
(deságüe do Córrego Gibura no Corumbau), no Craveiro e viúva,
acompanha seus já 14 filhos que abrem roças chamadas de Águas
Belas, entre o Gibura e o Giburinha, área que era conhecida como
fazenda dos Emílios, pagava imposto e tinha registro no cartório de
prado. Durante a demarcação em 1983 um fazendeiro surgiu com
uma concessão do IBDF onde parte da área era considerada como
uma reserva florestal sob sua responsabilidade, os índios não
aceitam esta intrusão e o processo é paralisado. Ato contínuo o
fazendeiro desmata a ‘reserva’, o Incra o pune severamente
desapropriando para fins de reforma agrária sua fazenda por um
valor acima do que o mercado pagaria (mais de seis milhões de
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cruzeiros) e lá implementando o PA Três Irmãos. Os Pataxó de


Águas Belas prosseguem lutando contra este nova e superposta
intrusão e conseguem em 1999 a retirada dos assentados de parte
da área que consideram seu território tradicional. Os posseiros
retirados foram transferidos para o PA Corumbau que estava sendo
organizado nas proximidades.
Os ocupantes não-indígenas retirados de TIs têm prioridade no
reassentamento fundiário feito pelo INCRA. Alguns segmentos
afirmam que os índios têm "terras demais"; o que confunde a opinião
pública e reforça o conflito com os trabalhadores rurais sem terras
atingidos pela extrema concentração da propriedade fundiária. As
TIs são parte menor do estoque de terras que poderia ser destinado
a programas de colonização e/ou reforma agrária (OLIVEIRA 1987).
Tal confusão assemelhasse ao engano que relaciona Reforma
Agrária e terras devolutas invadidas ao longo dos últimos 150 anos
por fazendeiros (Motta 1997: 81-83)/
O advogado do MST participe da reunião supracitada parece
concordar “Os fazendeiros são os maiores interessados em provocar
essa briga. Quem tem de ser responsabilizado pelo que está
ocorrendo hoje é o governo, é a elite brasileira. Não foram os sem-
terra que tiraram a terra dos índios, foram os fazendeiros”.
Outrossim, um posseiro que vivenciou o processo de extrusão da TI
Águas Belas pelo PA Três Irmãos argumentou que apesar dos
acordos para pagamento das benfeitorias em seis meses com a
Funai, ANAI e Incra presentes “...até hoje a gente está debaixo de
lona”. Reclama também que a área donde foram retirados no Três
Irmãos esta abandonada, os índios não estão produzindo nada lá o
que é um desperdício, visão que compartilham com os agrônomos
do Incra. A relação do índio com a terra não é de trabalho, segue
uma outra racionalidade “ Lá tem antepassados deles enterrados e
índio morre em cima de onde tem um avô dele enterrado” (Advogado
do MST 2002).
Não são estas as únicas superposições de terra entre
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assentamentos e TIs no ES. Na área de Cumuruxatiba, por exemplo,


o Córrego Dourado é uma área próxima à área urbana ocupada pela
aldeia Pequi e que é uma parcela da esposa de seu cacique
(Baiara), concomitantemente a área é reivindicada pela própria
aldeia como território tradicional. Não e uma exceção o caso Pataxó,
diversos outros casos podem ser encontrados na Bahia, no Nordeste
e em todo o Brasil, de assentamentos implementados211 em áreas
indígenas.
Percebe-se que a luta Pataxó na região os coloca numa situação de
enfrentamento a múltiplos oponentes: MST, INCRA, IBAMA,
fazendeiros, posseiros, pistoleiros, policiais e políticos locais. Suas

211 “Para Rondon, os índios eram seres que deveriam ser respeitados, a quem dever-se-ia pedir licença de passagem, porque

justamente a República estava passando por terras deles. Enquanto isso, no sul do Brasil, no Paraná e em Santa Catarina, as

terras do oeste estavam sendo loteadas e doadas a empresas de imigração. Alemães e italianos, desvalidos de suas terras e de

suas condições de vida por força das mudanças econômicas em suas regiões, estavam vindo aos milhares para o mundo novo do

Brasil. Uma América tropical! E os empresários iam se livrando dos índios que lá viviam, ou escondidos e arredios, ou já

estabelecidos em aldeias. Os bugreiros, caçadores profissionais de índios, matavam muitos à bala, envenenando suas aguadas,

deixando brindes de cobertores contaminados por vírus de varíola e tuberculose. Será que os índios, brasileiros natos, não

mereceriam alguma proteção e assistência, já que o governo vinha gastando tantos recursos há tanto tempo em prol de

imigrantes para se estabelecerem em suas terras? Os incipientes centros de debates e divulgação de ciência brasileiros da

época, muitos com afiliação positivista, diversos jornais e alguns políticos, certamente formando algo que poderia ser chamado de

opinião pública, e junto, em seus boletins, o Apostolado Positivista Brasileiro, levaram a República a tomar uma atitude: criar um

órgão para cuidar da questão. E imediatamente convocaram o coronel Cândido Rondon, de quem já se ouvira falar por suas

palestras sobre seu trabalho no Mato Grosso, para vir ao Rio de Janeiro e levar essa nova tarefa a cabo. O Serviço de Proteção

aos Índios -- foi instituído no Dia da Pátria de 1910 com a sigla SPILTN -- Serviço de Proteção aos Índios e Localização de

Trabalhadores Nacionais. Índios e trabalhadores sem terra eram a preocupação dos nacionalistas republicanos de então, ainda

sem ideologia de esquerda ou direita, apenas seguindo uma visão positivista da história. Os nacionalistas, ou patriotas, talvez um

termo mais adequada à época, protestavam contra o descaso do governo com os homens sem terra que, ou viviam perambulando

pelo país, sem ficarem nas cidades porque os empregos eram poucos e tomados pelos imigrantes estrangeiros, ou estavam

sendo expulsos das fazendas por mudanças tecnológicas. [...] Alguns críticos de Rondon, anos depois, consideraram que ele

aceitou dirigir o SPILTN porque queria ver o índio virar um brasileiro pobre e que demarcar terra para índio e localizar (assentar)

trabalhadores sem terra eram a mesma coisa. Não, sete anos depois, os trabalhadores sem terra haviam saído do SPI e movidos

para outra seção do Ministério da Agricultura, e ficaram, como demonstrou o desenrolar dos tempos, ao deus-dará, até serem de

novo percebidos pelo movimento dos camponeses na década de 1950” (GOMES 2008) .
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retomadas entre a montanha e o mar seguem trilhas, rotas


construídas coletivamente, marcas indeléveis deixadas num território
determinado e do qual depende a manutenção de sua diferenciação
étnica. Sua territorialização e, assim, a base para a sua
reintegração/reestruturação política/econômica, vinculando o
artesanato, a agricultura de queima e ‘coivara’, a mariscagem e a
pesca fluvial e costeira na construção de uma “autonomia/utopia”
(Bierbaum 1990) Pataxó que mantenha sua etnicidade, no multi-
étnico ES da Bahia.

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