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PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | ISSN: 2175-6015 | 11 (1) | Jan - Jul | 2021

ISSN: 2175-6015

> Indexadores: CAPES, DOAJ, Latindex, Sumários, Diadorim


> Foco temático: Antropologia e Arte
> Periodicidade: Semestral

> Missão
Fomentar o diálogo entre as artes e as ciências sociais, dando espaço a contribuições nacionais e internacionais, no formato de resenhas, artigos,
relatos de experiências, traduções, entrevistas, debates e exposições virtuais, incentivando a interdisciplinaridade e abrigando expressões artísti-
cas e reflexões de diversas naturezas – da música à literatura, passando pelo cinema, pela fotografia, pelas artes indígenas e pela representação
museológica, entre outras.

> Forma de revisão


Os textos recebidos são inicialmente avaliados por pareceristas anônimos, doutores e especialistas no tema da contribuição, além de externos ao
Comitê e ao Conselho Editorial. Em caso de um parecer ser favorável à publicação e o outro contrário, a contribuição é submetida à avaliação de
um terceiro parecerista externo nos mesmos termos dos dois primeiros.

> Linha editorial


A PROA publica trabalhos nas áreas de Antropologia e Sociologia da Arte, Antropologia Visual, Etnomusicologia, Etnoestética, História da Arte,
Patrimônio Cultural, Políticas Culturais, Práticas Artísticas Contemporâneas, Performances e Rituais.

> Apoio institucional


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) e Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
> Coordenação editorial do volume:
Giovanna Paccillo dos Santos e Brume Dezembro Iazzetti

> Editoração do dossiê:


Luiza Serber

> Revisão de textos:


Gabriela Limao e Inácio Saldanha

> Revisão final:


Luiza Serber

> Imagem da capa frontal:


Thomaz Pedro

> Diagramação da capa frontal:


Luiza Serber

> Imagens das capas internas:


Lucas Coelho Pereira

> Diagramação das capas internas:


Brunela Succi

> Diagramação do volume:


Brunela Succi e Júlia Vargas
>>> Comitê Editorial
> Brume Dezembro Iazzetti (PPGAS-Unicamp)
Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas e graduada em Ciências Sociais pela mesma instituição. É pesquisa-
dora discente do Núcleo de Estudos de Gênero - PAGU e atualmente desenvolve o projeto de pesquisa “Existe ‘universidade’ em pajubá?” sobre
o acesso e permanência de pessoas trans no ensino superior público. Entre as áreas de interesse, destacam-se: estudos interseccionais, pós/
decolonialidade, movimentos sociais, antropologia e educação, antropologia da ciência e epistemologias feministas.

> Brunela Succi (PPGAS-Unicamp / IEALC-UBA-Conicet)


Graduada em História (Universidade de São Paulo). Mestra em Estudos Interdisciplinares Latino Americanos (Freie Universität Berlin). Douto-
randa em Antropologia Social (Universidade Estadual de Campinas)/ Ciências Sociais (Universidad de Buenos Aires). Bolsista latinoamericana
Conicet. Pesquisadora do Instituto de Estudios de América Latina y del Caribe (IEALC/UBA), do Grupo de Estudios de Teatro (GETEA/UBA), do
Pagu - Núcleo de Estudos de gênero (Unicamp) e do Ateliê de produção simbólica e Antropologia (APSA/Unicamp). Áreas de atuação: Estudos
de Gênero e Sexualidades, Antropologias do Corpo e da Performance, Antropologia da Arte e da produção simbólica, História Social da Cultura e
da Arte, Estudos Teatrais, Arte e Política, Memória e Ditaduras no Cone Sul.

> Gabriela Costa Limão (PPGAS-Unicamp)


Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), realizou sua pesquisa sobre a trajetória da Editora Corrupio,
na qual desenvolveu temáticas sobre o mercado editorial brasileiro, produção cultural e cidades. Durante a graduação em Ciências Sociais, con-
cluída na mesma instituição, além de desenvolver uma pesquisa sobre trajetórias de outras editoras, também trabalhou no Arquivo Edgard Leuen-
roth (AEL/IFCH-UNICAMP), com o Acervo Roberto Cardoso de Oliveira. É pesquisadora do Ateliê de Produção Simbólica e Antropologia (APSA).
> Giovanna Paccillo dos Santos (PPGAS-Unicamp)
Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde também concluiu sua graduação. É membro do
Laboratório de Antropologia da Religião (LAR), tendo desenvolvido, ao longo da graduação, pesquisas relacionadas ao ativismo feminista da ONG
Católicas pelo Direito de Decidir. Atualmente desenvolve pesquisa de mestrado intitulada Diagnóstico, tratamento e cura do Transtorno de Pânico
em um ambulatório de espiritualidade, como parte do projeto Espiritualidade Institucionalizada. Entre os focos de interesse destacam-se: espiri-
tualidade, Antropologia do corpo, Antropologia da ciência, e as áreas de estudos de gênero e religião.

> Isabela Cassis Augusto (PPGAS-Unicamp)


Mestranda em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde também concluiu sua graduação (2019). É pesqui-
sadora discente do Centro de Estudos de Migração Internacional (CEMI), tendo desenvolvido, ao longo da graduação, pesquisas relacionadas à
masculinidades e branquitude no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Atualmente desenvolve sua pesquisa de mestrado sobre o romance “A
Ultima Tragédia” de Abdulai Sila e a potência de seu imaginário libertador contra a biblioteca colonial. Áreas de interesse e atuação: Antropologia
e literatura, Etnografia documental, Estudos interseccionais, memória e Pós/decolonialidade, Antropologia da Arte e da produção simbólica, His-
tória Social da Cultura e da Arte.

> Jinx Vilhas (PPGAS-Unicamp)


Licenciade em Ciências Sociais na Universidade Federal de Viçosa (UFV) com período de mobilidade acadêmica em Antropologia na Universi-
dade de Coimbra (UC), atualmente faz Mestrado em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com bolsa CNPq.
É pesquisadore discente do Núcleo de Estudos de Gênero - PAGU, em que atualmente desenvolve pesquisa sobre pessoas trans, representação
e política. Áreas de interesse e atuação: Antropologia da Política; Movimentos Sociais; Conservadorismo; Estudos de Gênero; Violência; Teoria
Queer.
> Luiza Serber (PPGAS-Unicamp)
Doutoranda em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas e Mestra em Antropologia Social pela mesma instituição (2018),
desenvolveu pesquisa sobre a produção e circulação imagética no Território Indígena do Xingu. Foi pesquisadora visitante na Western Sydney
University (2017). Graduou-se em Ciências Sociais na Unicamp (2014), período no qual desenvolveu pesquisa de Iniciação Científica na área de
Antropologia e Imagem. Atualmente é pesquisadora associada do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI-Unicamp). Temas de interes-
se: etnologia indígena; cinema indígena; antropologia e imagem.

> Natalia Negretti (PPG Ciências Sociais-Unicamp)


Doutoranda em Ciências Sociais, na área de Estudos de Gênero, pela Universidade Estadual de Campinas. Realizou estágio doutoral na Univer-
sidade de Buenos Aires pela Red de Macro Universidades de América Latina y el Caribe (2019) na área de Fotografia e Ciências Sociais. Pós-gra-
duada em Gerontologia pela FECS/HAOC (2020) e mestra em Ciências Sociais pela PUC-SP (2015). Áreas de interesse e atuação: Antropologia
e Estudos de Gênero com foco nos temas Curso da Vida, Velhice, Instituições, Gestão de Populações, Memória, Paisagem, Imagem e Trajetórias
de Vida.

> Ramón Del Pino (PPGM-Unicamp)


Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Unicamp. Mestre (2018) e licenciado (2013) em Música pela mesma universidade.
Formou-se pelo Conservatório Dramático e Musical Dr. Carlos de Campos de Tatuí (2008) no curso de MPB/Jazz. Atua como contrabaixista e é
membro pesquisador discente no Grupo de Pesquisa Improvisação Contemporânea, Processos Criativos e Cognição Musical. Colaborador exter-
no nos projetos de extensão: (Conversa Instrumental) e (LABORIS), ambos da EMAC/UFG. Tem interesse e experiência, com trabalhos publicados
nas áreas de: performance musical; música instrumental brasileira; Escola Jabour; improvisação; processos interacionais e decolonialidade.
>>> Editorial
Pensado e costurado em tempos adversos, que impuseram reconfigurações nos mais variados âmbitos de nossas vidas, este novo volume da
PROA é fruto do esforço e da persistência de um grupo de discentes, pós-graduandxs em antropologia e outras áreas, por manter vivo um espaço
voltado aos diálogos contemporâneos entre as Artes e a Antropologia, difundindo gratuitamente o trabalho de tantos pesquisadores. Esse esforço
é também um ato de resistência, uma vez que se insere em um cenário no qual assistimos cotidianamente ao desmonte sistemático das políticas
públicas e das instituições que amparam nossa atuação, sejam elas as instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão; sejam aquelas ligadas
ao fomento e à manutenção do setor cultural; sejam aquelas das áreas da saúde e ambiental, que impactam tão profundamente nossas vidas, hoje
e amanhã. As Artes e a Antropologia, confrontadas também com essa complexa e desafiadora conjuntura, não apenas sofrem seus impactos, mas
também respondem a ela por meio de expressões potentes e singulares.

É a partir deste pano de fundo que o comitê editorial da PROA apresenta o dossiê temático “Cinema Indígena: presente, passado e futuro”,
organizado por Amália Córdova (Smithsonian Institution), Renato Athias (LAV/UFPE) e Rodrigo Lacerda (CRIA/NOVA FCSH). Conforme apontam
os organizadores em sua apresentação do dossiê,

[...] o cinema constitui-se enquanto uma arena importante de reflexão e reivindicação, incluindo a nível de questões fundiárias, ambientais e de des-
colonização, mas é, acima de tudo, um meio de dar voz e corpo aos povos indígenas, por um lado, como instrumento de autorrepresentação e de
soberania audiovisual, lutando contra o racismo e questionando estereótipos exotizantes e romantizados e, por outro lado, como forma de talk back,
shoot back e contraplano às imagens produzidas por não indígenas para a sociedade colonial.

Desdobrando este tema em suas mais diversas facetas, o dossiê compõe-se por 11 artigos e por um ensaio visual, que ilustra também a capa deste
volume, formando um conjunto de trabalhos cuidadosamente selecionados e costurados pelos organizadores.

Submetido em fluxo contínuo, mas conectado também à temática do dossiê, esta edição da Proa apresenta, na seção Relatos e Experiências, o
relato “Mokõi Kovoe, por trás das câmeras da Associação Cultural de Realizadores Indígenas (Ascuri)”, por Luiza Serber e Eliel Benites. O
relato narra, em palavras e imagens, uma experiência de produção audiovisual realizada por um coletivo indígena de cinema que centra-se em
uma história da cosmologia Kaiowá. A realização do curta-metragem aponta para o caráter comunitário desse processo de produção fílmica,
bem como para a relação entre este processo e o “mundo espiritual”. Compondo esta mesma seção, temos também o relato “Mirando Mundos
Possíveis: uma experiência videográfica virtual para (Re)Existir e Curar”, de autoria de membros da Rede CineFlecha. Através do relato, co-
nhecemos a experiência de construção de uma plataforma virtual que reúne produções audiovisuais realizadas por povos indígenas durante o pe-
ríodo da pandemia. A partir do “mosaico de vídeos” reunidos na plataforma, os autores apontam para a multiplicidade de perspectivas e práticas
mobilizadas pelos diferentes povos.

Fechando o conjunto de contribuições da PROA ao campo do Cinema Indígena, apresentamos a Resenha “SGaawaay K‘uuna: Edge of the
Knife, Indigenous Language Revitalization”, de Michelle Hurtubise, que trata deste que é o primeiro longa-metragem em língua Haida (falada
pelo povo Haida, habitantes da região hoje conhecida como Colúmbia Britânica). Em sua análise, a autora aponta para a estreita relação que se
estabelece entre a produção do filme e a preservação da ameaçada língua nativa.

Diversificando tematicamente a publicação, contamos na seção Artigos com o trabalho “Devoradores de deuses: fotografia, artes negras e
mira imperial”, onde, a partir da fotografia de uma máscara elmo iorubá, Rafael Gonzaga de Macedo propõe o deslocamento do lugar da foto-
grafia como mera ferramenta de olhar da realidade à sua posicionalidade como produtora de suas imagens - e, portanto, longe de ser isenta ou
neutra dessa realidade observada, insere a fotografia como um elemento ativo de sua composição. Já em “Carlito Carvalhosa: uma experiência
em equipe”, Gabriel Cardoso Gonzaga traz uma discussão sobre histórias de vida a partir de diálogos do autor com o artista Carlito Carvalhosa,
explorando as articulações entre experiência, produção e inscrição em campo, perpassando em seu plano de fundo as últimas décadas da arte
visual brasileira. No artigo “Culturas Indígenas no Mato Grosso do Sul: outros saberes, outras perspectivas, espaços políticos e de resistên-
cia”, Nilva Heimbach apresenta um debate sobre o ensino de Arte e o reconhecimento de expressões artísticas dos povos indígenas a partir de
bases epistemológicas dos Estudos Culturais e do Grupo Modernidade/Colonialidade. O artigo traz uma importante contribuição a esse número
ao apresentar descrições de fazeres artísticos de diversos povos indígenas e experiências de ensino que são potencializadas por esses saberes.

Este número conta ainda com o Ensaio Visual “A escrita no isolamento: quando o desenho vira parte constituinte da etnografia”, em que Ana
Clara Damasio faz uma sensível reflexão sobre o processo de escrita em meio à pandemia. Confrontando-se, ao mesmo tempo, com a escrita e
com a morte diária de mais de mil pessoas pelo novo coronavírus, a autora nos traz seus desenhos - das vezes em que desenhar se tornou a única
possibilidade de capturar o que sentia. Potente, o ensaio é também o reconhecimento de que desenho, escrita e história são parte da construção
de si, de suas relações em campo, e de sua etnografia.

Por fim, consolidando mais uma vez a parceria inaugurada em 2017 entre a Revista PROA e as Jornadas de Antropologia John Monteiro, a seção
Galeria é composta pelas obras vencedoras do Prêmio Mariza Corrêa de 2020. Selecionados por uma comissão formada por membros deste
comitê editorial e da organização das Jornadas de 2020, as duas obras premiadas não somente dialogam com maestria com os debates teórico-
-metodológicos propostos nesta edição do Prêmio, como ainda se configuram como excelentes exemplares do compromisso ético e político e da
enorme criatividade com os quais antropólogues vêm respondendo ao conturbado momento que atravessamos. Convidamos leitoras e leitores a
visitarem nesta seção o Ensaio Visual intitulado Carnaubal, de Lucas Coelho Pereira, e o Ensaio Audiovisual, O Colégio Estadual Dr. Raimundo
Alves Torres, na perspectiva de seus agentes - Breves notas sobre o fazer antropológico, de Mateus Rodrigues Jorge e Amanda Rocha - dis-
ponível no canal da PROA no Youtube.

Comitê Editorial
> proa | dossiê
cinema indígena: passado,
presente e futuro
> Dossiê: Cinema indígena: passado, presente e futuro
Organizadores:

Amália Córdova
Smithsonian Institution

Renato Athias
Univerisdade Federal de Pernambuco

Rodrigo Lacerda
Univerisdade NOVA de Lisboa

O objetivo deste dossiê é tomar o pulso dos debates contemporâneos sobre cinema indígena. Apesar de existirem mais artigos sobre esta pro-
dução no Brasil, incluímos também textos oriundos de outras geografias, predominantemente da América Latina, ou Abya Yala, com o intuito de
catalisar comparações, contrastes e diálogos entre diversas experiências. O dossiê demonstra que o cinema indígena e as reflexões sobre este
são heterogéneas, dando assim conta das múltiplas línguas, lógicas e perspectivas disciplinares de onde se está analisando este corpus e que são
desafiadas pelas diversas práticas e processos que constituem esta produção.

Uma primeira questão, bem aberta, que este dossiê apresenta, é a produção de filmes do que estamos categorizando de “cinema indígena” que,
em um momento, foi chamado “vídeo indígena” em América Latina, e que tem a ver com o tempo em que estas narrativas foram criadas e colecio-
nadas, permitindo, assim, mostrar à sociedade nacional, em um determinado tempo, a sua relação com a sociedade indígena. Este tipo de produ-
ção cria, de fato, uma representação que incorpora elementos de uma história já vivida, mais presente ainda nas narrativas indígenas. Este fazer
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audiovisual, que é engajado, leva a um amplo debate sobre as representações e o cinema em primeira pessoa e os textos deste dossie buscam
ampliar essa discussão, também instalada no interior dos próprios coletivos indígenas de cinema. Os artigos permitem, ainda, elucidar algumas
questões fundamentais para um debate atual e amplo, quando se trata de filmes com cineastas indígenas e/ou sobre os povos indígenas.

Nesta apresentação, gostaríamos de destacar três aspetos: 1) a importância do cinema como instrumento político; 2) a produção e exibição de fil-
mes para além da concepção Ocidental hegemónica de política e que colocam em causa as divisões entre natureza / cultura, humanos / não-hu-
manos, mente / matéria e privado / público; e 3) alguns desafios presentes do futuro do cinema indígena, com especial destaque para o arquivo
enquanto lugar de memória e de reapropriações e que precisa de ser alvo urgente de políticas públicas de conservação e, em algumas situações,
de restituição às comunidades de origem.

O cinema indígena emergiu nos anos 1960 e consolidou-se nas décadas seguintes devido a desenvolvimentos tecnológicos (16 mm, vídeo), a
explorações da antropologia visual, que tentou ser mais dialógica e colaborativa, e, principalmente, à expansão do movimento indígena em vários
países e arenas internacionais. Atualmente, o cinema indígena é uma realidade global muito diversa, presente em todo o continente americano,
Austrália, Nova Zelândia, norte da Europa e em outros contextos geográficos em que o termo indígena começa a ser apropriado por diversos

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movimentos de resistência. De fato, é sempre importante não esquecer que a categoria indígena tem origem colonial e que a sua utilização pelos
coletivos deve ser entendida como uma identidade secundária que une uma pluralidade de povos que experienciaram e experienciam o colonialis-
mo e a colonialidade. Apesar do termo ter sido reapropriado e reimaginado pelos próprios, existem coletivos que preferem outras denominações,
como Povos Originários e First Nations (Primeiras Nações), e que privilegiam a relação com a sua cultura e identidade. Nesse sentido, o cinema
indígena deve não ser só pensado enquanto multiplicidade, mas também como uma categoria que muitos preferem ultrapassar para afirmar o seu
cinema Guarani, Qom, Mapuche, entre outros.

A definição de cinema também deve ser equacionada e utilizada com cuidado. O cinema está associado a uma história predominantemente
Ocidental que enfatiza a arte ou a estética enquanto campo autônomo. Por um lado, este conceito de cinema possui uma carácter de distinção
(BOURDIEU, 2006) que é importante para a afirmação identitária dos coletivos perante o Estado e a sociedade não indígena. Por outro lado, al-

Dossiê
guns autores contradizem aquela posição e preferem sublinhar a impureza ontológica do cinema (BAZIN, 2005; ver também NAGIB e JERSLEV,
2014), isto é, a sua capacidade porosa à influência de outras artes e da vida que atravessam o campo a partir do extracampo e do antecampo, tal
como encontramos em alguns filmes indígenas (BRASIL, 2012; CAIXETA DE QUERIROZ e OTTO, 2018). Por fim, alguns coletivos indígenas desta-
cam a ideia de comunicação do audiovisual e apresentam-se como comunicadores em vez de cineastas, construindo um mediascape que inclui,
entre outros, também a rádio e a internet. 13
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Tendo em conta este enquadramento, o cinema constitui-se enquanto uma arena importante de reflexão e reivindicação, incluindo a nível de
questões fundiárias, ambientais e de descolonização, mas é, acima de tudo, um meio de dar voz e corpo aos povos indígenas, por um lado, como
instrumento de autorrepresentação e de soberania audiovisual, lutando contra o racismo e questionando estereótipos exotizantes e romantiza-
dos, e, por outro lado, como forma de talk back, shoot back e contraplano às imagens produzidas por não indígenas para a sociedade colonial.
Contudo, um aspecto menos discutido, que alguns artigos neste dossiê mencionam, é a influência das políticas públicas no desenvolvimento do
cinema indígena. Esta questão torna os povos indígenas mais uma vez dependentes da inconstância dos Estados e revela, como um dos artigos
neste dossiê sublinha, o “eterno retorno do encontro” (KRENAK 2007, pp. 163-164), isto é, a relação unidirecional, violenta e naturalizada do Estado
com os povos indígenas que os obriga a adaptar e a traduzir o seu modo de vida à linguagem e pensamento Ocidental burocrático. Se o dilema
faustiano (GINSBURG, 1991) parece ultrapassado, é importante agora estar atento à possibilidade do apoio público ao cinema indígena surgir
como uma forma de governabilidade baseada na colonialidade.

De fato, nas entrelinhas destes artigos, não podemos deixar de comentar que foram produzidos em um tempo, pelo menos aqui no Brasil, de
políticas profundamente anti-indígenas, que estão florescendo desde a instalação do atual governo. Este está buscando acabar com os progra-
mas de apoio para os povos indígenas nos setores da educação, saúde, desenvolvimento econômico e cultura com o claro intuito de negar os

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direitos dos povos originários. Do outro lado, no legislativo, o Congresso Nacional Brasileiro está dominado por interesses do agronegócio e da
mineração e está prestes a votar novas leis que permitirão mais invasões de terras indígenas e a destruição de seus caminhos de vida e territórios,
especialmente na Amazônia. O ponto central destes projetos de lei é a aplicação à questão da demarcação de territórios indígenas da ideia sem
sustentação do “marco temporal”. Essa teoria jurídica marginal advoga que os povos indígenas do Brasil só têm direito às terras que ocupavam na
época da promulgação da Constituição brasileira de 1988, ocultando as políticas coloniais de genocídio, assimilação e perseguição que produzi-
ram o presente, nomeadamente naquele ano. A este contexto, acresce a atual situação pandêmica que, melhor do que muitos Estados, diversos
coletivos indígenas se empenharam em enfrentar, perdendo, contudo, muitos parentes e, com eles, conhecimentos ancestrais. No entanto, como
nunca, têm surgido fortes coletivos indígenas de cinema e de produção audiovisual no Brasil. Os artigos aqui neste dossiê apresentam um pouco
desta realidade que os povos indígenas estão vivenciando e sobretudo mostrando através de inúmeras produções audiovisuais que aparecem na

Dossiê
atualidade e que nos convidam a pensar um futuro com raízes neste longo caminho.

O dossiê abre com o artigo “Reflexões de um cineasta indígena sobre o cinema indígena contemporâneo”, de Ítalo Mongconann, que foi
despoletado pela conversa com outros dois cineastas indígenas, Graciela Guarani (Graci) e Alexandre Pankararu, durante uma mostra de filmes
indígenas online. O autor sublinha a importância do cinema como ferramenta de luta contra o racismo, estereótipos e marginalização dos indíge-
nas pelo governo e parte da sociedade civil que perdura até hoje e enquanto instrumento para afirmar o reconhecimento e o respeito dos mundos 14
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indígenas. Tendo em conta estas preocupações, Mongconann argumenta que o cinema indígena no Brasil deve explorar outros géneros para além
do documentário, como a ficção e a animação, no sentido de alcançar um público cada vez mais amplo e diverso. Do mesmo modo, o artigo de-
fende que, depois da produção indígena ter conquistado uma audiência aliada importante em circuitos alternativos nas últimas décadas, como em
centros culturais, cineclubes e universidades, é importante agora pensar a divulgação de modo a agregar outros públicos e inserir as produções
em todos os circuitos de exibição possíveis. Por fim, o cineasta questiona um ponto pouco discutido nesta área: a empregabilidade dos indígenas
no sector cinematográfico e a consequente viabilidade de uma carreira neste meio. Este depoimento abre o dossiê e também, esperamos, uma
cada vez maior presença de vozes indígenas na pesquisa e reflexão sobre a produção fílmica indígena.

O artigo “Cinema de mutirão: os caminhos entre um cinema hierárquico e um cinema horizontal”, de Maria Cláudia Gorges, reflete sobre
algumas das questões anteriormente enunciadas através do percurso original da Associação Cultural de Realizadores Indígenas (ASCURI), com-
posta por Terena, Guarani e Kaiowá. Após a sua fundação, em 2008, por Gilmar Galache e Eliel Benites, a ASCURI tem organizado oficinas de
cinema e produzido diversos filmes com o objetivo de “desenvolver estratégias de formação, resistência e fortalecimento do jeito de ser indígena
tradicional” (ASCURI: https://ascuri.org/nosso-jeito). Os trabalhos incorporam elementos da memória presentes nas realidades indígenas atuais,
com perspectiva dos povos indígenas destes coletivos que hoje produzem seus filmes. Este projeto tem questionado a abordagem hierárquica do

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cinema e apostado num ethos horizontal de mutirão, mais apropriado ao modo de ser dos povos que constituem o coletivo, nomeadamente atra-
vés da rotatividade das funções assumidas durante o processo de produção e pela opção por uma autoria coletiva. Tal como o artigo anterior, este
texto reflete sobre as políticas públicas relacionadas com a cultura no Brasil e a sua influência na produção cinematográfica de ASCURI. Quando
o coletivo começou, existiam diversos editais que apoiavam a produção cinematográfica indígena. Este cenário inverteu-se com o impeachment
da Presidenta Dilma Rousseff que originou um desmonte e esvaziamento das políticas públicas e a consequente retomada das três tradições das
políticas culturais nacionais: ausência, autoritarismo e instabilidade. De qualquer modo, o artigo não deixa de apontar críticas às políticas públi-
cas do período anterior, nomeadamente a divulgação de editais genéricos para indígenas que não reconhecem a pluralidade de experiências e
modos de ser destes e os constrangimentos burocráticos provocados pela constituição de uma associação que, em última instância, é moldada
pelas leis e normas do Estado.

Dossiê
O artigo “Transmitindo a palavra por imagem, um projeto Mbya para o cinema”, de Aline Moschen de Andrade, é exemplar na demonstração
desta problemática. A autora produz um relato etnográfico sensível de um grupo de jovens Mbya-Guarani que concorreu a um edital promovido
pela Secretaria da Cultura do Estado do Espírito Santo para realizar um filme sobre o seu modo de vida. O texto demonstra como este processo
caminha “entre demandas e recusas” (p. 54). Ecoando o famoso episódio narrado por Sol Worth e John Adair (1972), em que um velho Navajo per-
gunta aos pesquisadores para que serve o cinema, uma antiga benzedeira Mbya questiona os jovens: “Por que estão fazendo projetos de vídeo? 15
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Por que acham que o vídeo é importante? O projeto precisa ser feito aqui é a construção da Opy [casa de reza].” (pag. 53). Contudo, as principais
dificuldades são exógenas e o artigo sublinha como a produção cinematográfica não pode ser isolada do contexto, não só cultural, mas também
da relação ambígua dos não indígenas com os Mbya. Nesse sentido, a autora propõe um deslocamento da questão e indaga quais são os interes-
ses dos não indígenas na promoção destes editais quando os mesmos desconhecem e não procuram saber quais são as demandas destas popu-
lações. Tal como o artigo anterior, a autora descreve a dificuldade dos Mbya em traduzir as palavras e conceitos do seu mundo para a linguagem
do Estado, mas também relata um episódio elucidativo de resistência. Quando um dos Mbya é ultimado a ir prestar contas perante a Secretaria
por causa do edital, ele finge que não fala português, tornando visível que, mesmos nos projetos com boas intenções multiculturais (POVINELLI,
2002), o Estado continua a ter o poder de determinar as condições do diálogo, não formando, por exemplo, os funcionários no idioma Guarani ou
não contratando tradutores.

O artigo “Cine-recolección: apropriación y (re)invención del cine por una familia qom”, de Carolina Soler, também analisa o processo de
produção (rodagem, montagem e distribuição) de um filme indígena sobre a sua cultura, com especial enfoque nos conhecimentos de medicina
deste povo, mas destaca a questão de como o cinema indígena é um processo de constante criação e reinvenção que agrega diferentes agentes
e catalisa novas formas de autorreflexão e resistência através da interação das dimensões políticas e afetivas. Se, por um lado, o filme conjuga as

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imagens de um modo que corporaliza a melancolia por aqueles que já partiram e pelos modos de vida perdidos, por outro lado, os momentos de
humor que pontuam o filme constituem uma forma de resistência autorreflexiva.

O artigo “‘Filming Back’ in Siberian Indigenous Cinema: Cinematographic Re-appropriation Strategies in the Work of Anastasia Lapsui and
Markku Lehmuskallio”, de Caroline Damiens, transporta-nos para outra geografia e é o único texto incluído no dossiê que não se refere à Améri-
ca Latina. O artigo analisa como os filmes da cineasta Nenet, Anastasia Lapsui, e do cineasta finlandês Markku Lehmuskallio, dão voz aos povos
indígenas na Sibéria e reexamina criticamente o discurso soviético sobre igualdade, integração e progresso. Em vez de uma pesquisa etnográfi-
ca, o artigo recorre à análise fílmica para advogar que a forma pode ser tão política como o conteúdo. Nesse sentido, a autora propõe que, para
além dos conceitos de talk back e shoot back, que estariam mais associados ao processo de produção dos filmes, é necessário incluir a ideia de

Dossiê
filming back, relativa a questões predominantemente estéticas e fílmicas: “adding the concept of ‘filming back’ enables to move beyond the strict
issues of text content and point of view to concentrate more on style and aesthetics within the larger framework of an intertextual dialogue with
outsider cinema” (p. 125). Nota-se ainda uma relação do recurso ao testemunho no cinema indígena nas Americas, como nos filmes de Lapsui e
Lehmuskallio através do qual apresentam a pluralidade de pontos de vista de vários povos do Ártico.

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Entrelaçado com a emergência do cinema indígena, surgiram meios de divulgação desta produção, incluindo festivais dedicados a esta temática
e, mais recentemente, plataformas online. Nos últimos anos, começaram a aparecer cada vez mais pesquisas sobre esta dimensão tão importante
para completar a relação dialógica de shoot back. Nesse sentido, as mostras de cinema indígena são uma arena significativa para a continuação
do ciclo de vida da produção cinematográfica, através da exibição dos filmes, mas também através da catalisação de encontros entre parentes
e entre estes e não indígenas, gerando novos públicos por meio das narrativas indígenas. Vários artigos no dossiê incluem reflexões sobre esta
questão e dois focam-se exclusivamente em festivais de cinema indígena.

O artigo “Luzes acesas: encontros, traduções e agências na Mostra de Cinema Tela Indígena”, de Ana Letícia Schweig, Eduardo Santos
Shaan, Geórgia de Macedo Garcia e Marcus Wittmann, traz-nos uma reflexão redigida a várias mãos por não indígenas sobre a experiência de
organização de quatro edições de um festival de cinema e artes indígenas em Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, no Brasil. Os autores
partilham a sua experiência de construir um festival como um território de “cosmocinepolítica” (CAIXETA DE QUEIROZ e OTTO, 2018) em que
uma sessão de cinema não se limita ao filme, mas traz vários outros elementos das artes indígenas através do corpo, adornos, dança e discursos,
imbuídos em uma estética relacional ameríndia que constrói conexões entre humanos e entre estes e não-humanos. Estas relações não originam
o unívoco porque assentam frequentemente em equívocos (VIVEIROS DE CASTRO, 2004) que, como Stengers (2018) sublinha na sua proposta

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de cosmopolítca, devem desacelerar o pensamento e tornar visível as diversas premissas que constroem diferentes mundos e a impossibilidade
de abarcar um mundo feito de vários mundos (DE LA CADENA e BLASER, 2018). Resistir, neste caso, também é recusar a unicidade e demonstrar
os limites da explicação e da tradução.

O artigo “The Jumara Festival of Panama: Cinema and Body in Motion”, de Gabriel Izard Martínez, aporta uma olhada sobre os festivais de ci-
nema indígena atuais e uma reflexão da primeira edição, em 2018, do Jumara Festival Internacional de Cine Indígena de Panamá, organizado por
um cineasta Embera, Iván Jaripio, e realizado na aldeia Emberá Piriatí. O autor propõe distinguir e relacionar os processos de etnicidade produzi-
dos pelo cinema indígena no écran e durante a exibição, enfatizando como esta arena promove outros debates, performances e agencialidades
corporais, catalisa novas formas de solidariedade, identidade e comunidade e viabiliza a construção de um movimento panindígena. Este ensaio

Dossiê
contribui ao crescente reconhecimento do trabalho dos festivais do cinema indígena.

O ensaio visual “Telas e reflexos na aldeia Aiha”, de Thomaz Pedro, permite-nos entrever outras formas de circulação de imagens na aldeia, nes-
te caso kalapalo, situada no Território Indígena do Xingu. O autor demonstra como as imagens encontram ressonâncias e estimulam o sistema de
trocas do conjunto multi-comunitário e multilíngue do Alto Xingu. Esta produção é muito diversa e inclui registros de rituais, discursos de chefes,
documentários sobre os modos de vida, curta-metragens de ficção, entre outros. Estas novas imagens reproduzem relações e novas apropriações, 17
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criando novas socialidades através da mediação de processos de parentesco, de transmissão de conhecimentos e de participação de diferentes
atores na esfera pública.

Apesar destas aproximações ao cinema indígena serem importantes, a definição de política neste contexto é controversa e inclui outros aspec-
tos que os cineastas frequentemente traduzem por espiritualidade. Estas cosmovisões questionam as dicotomias rígidas da modernidade entre
cultura e natureza, mente e matéria, visível e invisível e público e privado. Alguns artigos reunidos neste dossiê ecoam esta questão a dois níveis:
1) defendendo, como já vimos, uma “cosmocinepolítica” (CAIXETA DE QUEIROZ e OTTO, 2018), que reconhece a agência de não-humanos; e 2)
sublinhando a relevância do relacional, do cotidiano e do inefável na construção da pessoa e do social (indivíduos e os não-humanos). Neste sen-
tido, o cinema indígena evoca não só a importância da afirmação de indivíduos e de identidades (construídas através de processos histórico-cos-
mológicos), mas também a defesa dos mundos aos quais aqueles individuos e não-humanos pertencem e que se encontram ameaçados pelas
políticas assimilacionistas e de etnocídio, epistemicídio e ecocídio dos Estados-nação e do neoliberalismo extrativista (DE LA CADENA, 2020).
Trata-se, portanto, de um cinema de urgência (CESAR, 2017) – um cinema “para adiar o fim do mundo” (KRENAK, 2019; ver também KOPENAWA
e ALBERT, 2015) – que não só reflete e sublima a ferida colonial (VASQUEZ e MIGNOLO, 2013), mas, principalmente, a ferida ontológica (que inclui
a anterior), uma espécie de punctum (BARTHES, 2012) do cosmo, que permite (pres)sentir, mais do que representar, o ser e o devir dos mundos

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indígenas em imanente atualização, reconstrução e rexistência (VIVEIROS DE CASTRO, 2017).

A ênfase no social relacional advém da importância da socialidade ou convivialidade, especialmente no contexto das terras baixas da América
do Sul (OVERING 1991; OVERING e PASSES 2000), das críticas ao conceito juralista de sociedade (STRATHERN, 1988) e dos debates feministas
que criticam a divisão entre o público e o privado e, portanto, entre o político e o não político, originando o grito de ordem: “O pessoal é político”,
como relembra Sophia Pinheiro no artigo “Gerações em cena, filmar com mulheres Mbyá-Guarani: o filme-processo Pará Reté”. Neste texto,
a autora recorre ao conceito de “filme-processo” (ALVARENGA, 2017) para refletir sobre o filme inacabado Pará Reté, da cineasta Mbya-Guarani
Patrícia Ferreira Pará Yxapy, que une quatro gerações de mulheres: a cineasta e a sua mãe, avó e filha. A pesquisa de Pinheiro sobre cinema indí-
gena realizado por mulheres partiu de um questionamento que, mais do que a procura de uma resposta definitiva, é uma linha de fuga: “com qual

Dossiê
finalidade e de que modo as mulheres indígenas utilizam a imagem?” (p. 212). A autora recorre ao trabalho da antropóloga, professora e curadora
Guarani Nhandewa Sandra Benites sobre Nhandesy‘Ete (Nossa Mãe Verdadeira), divindade complementar a Nhanderu’Ete (Nosso Pai Verdadei-
ro), que determina os preceitos do Mbya reko específico das mulheres e que é essencial para o bem viver da comunidade. Nesse sentido, a autora
argumenta que o processo de filmagem de Patrícia Ferreira participa nesta caminhada de transmissão de conhecimentos que parte “de dentro
para fora, no sentido do cotidiano – o particular – que leva ao maior – o coletivo (...), borrando as fronteiras entre o público e o privado, a história e
a memória, o íntimo e o êxtimo, o pessoal e o político” (p. 196). 18
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O artigo “A Eternidade de Wiñaypacha como imagem do pensamento andino”, de Indira Nahomi Viana Caballero, realiza uma análise fílmica do
primeiro longa-metragem peruano integralmente falado em língua aimará, e que obteve um sucesso considerável a nível nacional e internacional.
O fato de a narrativa ser totalmente nesta língua provoca uma ação da audiência bem clara. O filme realizado por Óscar Catacora, jovem cineasta
peruano de origem aimará, conta a história de um casal idoso, Willka e Phaxsi (em aimará, Sol e Lua), que vive isolado no altiplano e que espera o
retorno do seu filho Antuko (Estrela que não brilha mais). O artigo demonstra como a cinematografia, incluindo o roteiro minimal, a câmara estática
e a montagem lenta, corporalizam elementos do pensamento andino, como não-humanos líticos que se transformam em humanos e vice-versa, a
complementaridade dual e, especialmente, a temporalidade cíclica e a ideia de eternidade (conceito que dá nome ao filme).

O artigo “Hombres murciélagos de la Sierra Nevada de Santa Marta. Masculinidades indígenas y repatriación de imágenes”, de Sebastián
Gómez Ruíz, foca-se na formação e posterior fragmentação do coletivo de comunicação Zhigoneshi, na região norte da Colômbia. O autor analisa
como as mídias indígenas constituem redes nacionais e transnacionais cosmopolíticas assentes em questões sobre identidade, território e cultura,
mas também como aquele movimento configurou masculinidades indígenas que estão associadas à imagem mítica do morcego. Assim como os
antigos morcegos, os mamos da Sierra Nevada de Santa Marta atravessam um período longo de preparação para adquirirem a capacidade de
viajar entre mundos, transmitindo o seu conhecimento espiritual. Do mesmo modo, os comunicadores audiovisuais funcionam como tradutores do

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saber dos mamos e, através dos media, também adquirem o poder da onipresença e de viajar entre a luz e as sombras. Além disso, a imagem do
morcego é igualmente um presságio que, num movimento cosmopolítico, liga as agendas políticas e espirituais do entanglement entre humanos
e não-humanos que constitui a Serra Nevada.

Por fim, os textos deste dossiê levantam ainda uma questão fundamental, que se trata da urgência da conservação e preservação desses acervos
fílmicos, coletados por instituições museais, e o acesso a eles pelas comunidades de origem. Temos, de um lado, sua devida restituição para os
povos indígenas, como parte de sua memória histórica, e de outro, a necessidade da preservação desses acervos, onde muitos encontram-se em
estado de conservação que carecem de intervenção direta. Os arquivos fílmicos, fotográficos e os áudios com narrativas que foram coletadas em
um determinado tempo, além de se encontrarem em acervos etnográficos em instituições fora das áreas indígenas, apresentam uma certa difi-

Dossiê
culdade de acesso, seja por não se encontrarem digitalizados ou pela pouca prioridade dada às demandas dos povos indígenas por parte dessas
instituições. Alguns desses acervos carecem realmente de um interesse maior em fazer com que esses arquivos fílmicos e sonoros sejam, de fato,
repatriados, em forma de documentos digitais para os povos indígenas em suas respectivas áreas, como assinalado anteriormente (Cf. ATHIAS,
2016).

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Dois artigos deste dossiê apresentam um o esforço de se buscar a utilização destes arquivos fílmicos nas produções audiovisuais mais recentes:
“Hombres murciélagos de la Sierra Nevada de Santa Marta. Masculinidades indígenas y repatriación de imágenes” e “Reflexões de um cineasta
indígena sobre o cinema indígena contemporâneo”, ambos mostram essa reflexividade inserida e engajada.. Aqui fechamos com a questão que
estamos chamando de repatriação virtual das imagens que foram retiradas em um tempo específico e agora fazem parte de uma reflexividade
indígena contextualizada. Os textos todos deste dossiê levam a dar mais sentidos às atuais representações imagéticas produzidas em primeira
pessoa. E os filmes dos cineastas indígenas nos colocam diante destas questões que fazem parte das ações engajadas do cinema indígena.

REFERÊNCIAS

ALVARENGA, Clarisse. Da cena do contato ao inacabamento da história: Os últimos isolados (1967-1999), Corumbiara (1986-2009) e Os Arara (1980-).
Salvador, Edufba, 2017.

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ATHIAS, Renato. Objetos indígenas vivos em museus: Temas e problemas sobre a patrimonialização. In: ATHIAS, R.; LIMA FILHO, M.; ABREU, R. Museus e
Atores Sociais: Perspectivas Antropológicas. Recife: Editora da UFPE/ABA Publicações, 2016. p. 189-211.

BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: Edições 70, 2012.

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Dossiê
(Dossiê Olhares Cruzados). GIS - Gesto, Imagem E Som - Revista de antropologia, vol. 3, no. 1. p. 63-105, 2018.

CESAR, Amaranta. Cinema como ato de engajamento: documentário, militância e contextos de urgência. C-Legenda, no. 35, p. 11-23, 2017.

DE LA CADENA, Marisol. Cosmopolítica indígena nos Andes: reflexões conceituais para além da “política”. Maloca: Revista de Estudos Indígenas, vol. 2, p.
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DE LA CADENA, Marisol; BLASER, Mario (eds.). A World of Many Worlds. Durham: Duke University Press, 2018.
20
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 12-21 | Jan - Jul | 2021

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WORTH, Sol; ADAIR, John. Through Navajo eyes: An exploration in film communication and anthropology. Bloomington: Indiana University Press, 1972.

Dossiê
21
> Reflexões de um cineasta indígena sobre
o cinema indígena contemporâneo
Resumo > Ítalo Mongconãnn
O presente texto é uma reflexão sobre as inquietações de um Bacharel em Cinema e em
cineasta indígena sobre os dias atuais, que teve como ponto Comunicação Social
de partida a conversa com os realizadores indígenas Graciela
Guarani e Alexandre Pankararu por meio de uma Live reali- Universidade Federal de Santa
zada pela Fundação Cultural Badesc de Florianópolis, SC. Ao Catarina
longo deste diálogo vários pontos foram abordados, como
propor outras linguagens e gêneros de produção, ver o cine-
ma indígena como área de emprego, pensar sobre a distri-
buição e o público dessas produções. Independentemente de
todos os aspectos levantados, o cinema indígena é e sempre
será uma forma de resistência e enfrentamento.
Palavras-Chave >
Cinema Indígena; Gêneros cinematográficos; Emprega-
bilidade; Distribuição.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 22-30 | Jan - Jul | 2021

> Reflexões de um cineasta indígena sobre o cinema indí-


gena contemporâneo
Ítalo Mongconãnn
> italomongconann@gmail.com
Universidade Federal de Santa Catarina

Esse texto surgiu do encontro da conversa que tive com os parentes e realizadores indígenas Graciela Guarani (Graci) e Alexandre Pankararu, na
noite do dia 23 de julho de 2020. Talvez não seja um texto com um rigor teórico que você, caro leitor, espera, mas pretendo apontar nele, a partir

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das minhas reflexões, algumas questões sobre o Cinema Indígena nos dias atuais e trazer a minha experiência enquanto cineasta indígena.

No final de junho de 2020 fui procurado pela curadora da Fundação Cultural Badesc de Florianópolis, Vanessa Sandre, para auxiliar na constru-
ção de uma sessão sobre Cinema Indígena. Tudo de forma remota (online) devido aos decretos de isolamento social que estamos submetidos,
como forma de controlar a propagação da pandemia do Coronavírus (Covid-19). A proposta de Sandre era pensar e trazer para essa sessão outras
formas estéticas cinematográficas, especialmente no que diz respeito às produções de realizadores e realizadoras indígenas. Pois no início do
ano, havia sido construído uma mostra de Cinema Indígena produzido por mulheres indígenas, em que durante uma semana inteira iriam ocorrer
exibições com diversos filmes seguidos de debates, mas infelizmente a mesma teve de ser suspensa devido ao avanço da pandemia. Considerei
pertinente a instituição retornar à proposta nesse momento, mesmo que de forma reduzida.

Dossiê
Quando Sandre me falou sobre a sua proposta, de trazer uma estética diferente para a sessão e o debate, fiquei um tanto perdido, pois não sabia
no meio de tantas produções o que propor. Então, lembrei de nomes de vários realizadores e realizadoras indígenas como Alberto Alvares, Eliezer
Antunes, Patrícia Yxapy, Ariel Ortega, Graciela Guarani e pensei ainda em colocar na sessão o recente curta-metragem produzido e lançado pela
Associação Cultural de Realizadores Indígenas – Ascuri, o “Kipaexoti” (Ascuri: 15 mim, 2020)1, que trata sobre um ritual do povo Terena.
23
1 Disponível em: https://youtu.be/e7h7fjQVDaE. Acesso em junho de 2020.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 22-30 | Jan - Jul | 2021

E em meio a tantas trocas de mensagens, com diversas propostas de títulos de filmes de vários parentes realizadores e realizadoras indígenas,
para propormos a sessão, dois títulos sugeridos nos chamaram bastante a atenção, claro, por suas propostas. O primeiro foi o curta-metragem “Jo-
vem Guarani” (Elizer Antunes: 4 min, 2019), que é um documentário ficção sobre o cotidiano dos jovens indígenas Guarani dentro da Aldeia Tekoa,
no município de Palhoça, Santa Catarina. E o segundo foi “Minha Alma não tem cor” (Graciela Guarani e Alexandre Pankararu: 22 min, 2019), que
aborda o racismo contra os povos indígenas em diferentes instâncias, questão que é muito pouco falada.

Aqui abro um parágrafo para apontar meu entendimento pelos quais o racismo e o preconceito para com as populações indígenas em sua maioria
são negligenciados. Sabemos que boa parte da sociedade sempre negou ou deixou de lado a história de resistência e luta dos povos indígenas
no Brasil. Por anos e quase sempre com muitos embates tivemos algumas conquistas em diversas frentes de luta. Muitas vezes nossas lideran-
ças e ancestrais buscavam pelo o mínimo, o reconhecimento e o respeito da nossa cultura, história e sobrevivência. Esse negacionismo perdura
até os dias hoje, onde governo, governantes e parte da sociedade civil nos veem a margem, isso faz criar uma ausência de referência sobre as
populações indígenas. Essa falta de conhecimento e respeito para com nossas histórias, relacionam-se diretamente com os ataques de racismo
e preconceito contra nós nos dias de hoje, e faz reforçar, de que todo indígena veste tanga, vive somente da caça e da pesca, não sabe falar o

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português e tantos outros apontamentos estereotipados como já presenciei e inclusive já ouvi: “Está sendo muito difícil para você usar roupas?”.
Talvez por isso, pouco se fala dos muitos ataques referindo-se a nós todos os dias. Porém, aos poucos, alguns lugares importantes de fala estão
sendo ocupados, onde nossas vozes estão ecoando e vibrando fortemente, fazendo quebrar esses paradigmas e instigando as pessoas a refleti-
rem sobre esses e outros aspectos referente as populações indígenas no Brasil.

Voltando para a sessão. Pois, não sabíamos se caberia disponibilizar os dois ou focar em apenas um. Mas nesse período, estávamos vivendo um
momento de diversos ataques de racismo, preconceito e violência para com nossos colegas, amigos, irmãos e ancestrais negros. Tudo começou
nos Estados Unidos com o assassinato de George Floyd, onde uma onda de protestos e revolta contra a ação covarde pela morte de Floyd se
formou pelo mundo com o chamado – Black Lives Matter (Vidas Negras Importam)2. Com isso, penso que não preciso nem responder que filme

Dossiê
optamos por passar na sessão. Então, eu e Sandre tivemos uma breve troca de ideias sobre o racismo contra os povos indígenas, uma vez que
este era o tema central da média-metragem. Pois, há quem esqueça, que nós populações indígenas, para além da discriminação que sofremos
diariamente devido à invasão de nossas terras, retirada de direitos, negligência na saúde indígena, busca por emprego e tantas outras, também
somos alvos de algo muito pouco falado, o racismo. Só lembrando que faço um breve apontamento no quinto paragrafo desse texto, sobre minha
percepção de porque não se fala muito sobre o racismo e preconceito indígena. Consideramos, então, trazer essa questão para a sessão. Assim,
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2 Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-us-canada-52861726. Acesso em julho de 2020.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 22-30 | Jan - Jul | 2021

foi disponibilizado o link do filme uma semana antes e realizamos um bate-papo por uma plataforma de streaming, e que foi transmitido pelo canal
da Fundação Badesc no YouTube.

O filme “Minha alma não tem cor” é uma obra singular, traz uma força intensa em sua narrativa e uma proposta muito pertinente, o racismo. O
mesmo foi gravado em Salvador (BA), durante o evento “Racismo e Anti-Racismo no Brasil: O Caso dos Povos Indígenas”, que contou com a par-
ticipação de grandes lideranças indígenas como Sônia Guajajara, Ailton Krenak, Célia Xakriabá, Eunice Kerexu Yxapyry, Daiara Tukano e tantos
outros intelectuais, lideranças e militantes indígenas. E para tornar a sessão e o bate-papo um pouco mais caloroso, tivemos a participação dos
realizadores do filme (Graci e Pankararu), onde juntos falamos sobre as nossas produções, o nosso pensar, os nossos anseios, os diversos desa-
fios que enfrentamos, as várias faces e formas do cinema indígena, e também, sobre o racismo.

Menciono a partir de agora, alguns pontos que foram discutidos durante o bate-papo que reverberaram em mim após a conversa e me instigaram
a escrever esse texto. Muitas vezes o cinema indígena é logo associado às etnografias, às produções documentais e quase sempre o projeto Vídeo
nas Aldeias (VNA) é lembrado. Mas o cinema indígena possui uma complexidade muito maior do que esse vago recorte sempre incrustado nele.

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Cabe destacar que o VNA foi um projeto pioneiro no Brasil por trabalhar com cinema junto aos povos indígenas, e com certeza, foi uma grande
escola de como pensar e fazer cinema para muitos parentes indígenas realizadores e realizadoras que hoje estão atuando no mercado de forma
independente. Inclusive a partir do VNA se criaram alguns coletivos de Cinema Indígena, como o Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema3 e, inspirado
no projeto (VNA), a Associação Cultural de Realizadores Indígenas (ASCURI)4, que, com mais de 10 anos de existência, traz várias produções sig-
nificativas sobre os povos indígenas, em especial, sobre as populações do Mato Grosso do Sul, como os Terena e os Guarani Kaiowá.

Sabemos que hoje existem diversas produções sendo feitas por realizadores e realizadoras indígenas pelo mundo a fora, os quais utilizam de
várias linguagens e gêneros cinematográficos para produzirem suas narrativas, o que tornam os seus trabalhos mais plurais, diversos e de certa
forma mais ricos em formas, conteúdos e público. No entanto, vejo que aqui no Brasil essa proposta de diversificar o gênero cinematográfico nas

Dossiê
produções dos realizadores e realizadoras indígenas está começando a ser pensado, mas muito timidamente, pois ainda se vê forte e predominan-
te na maioria dessas produções o gênero documentário. Não que utilizar o gênero documental seja ruim, cada realizador ou realizadora propõe o
gênero e a linguagem que quiser para comunicar sua proposta narrativa, mas vejo que propor com outros gêneros, outras linguagens e diversificar
as nossas produções, tornaria as nossas narrativas mais acessíveis a diferentes públicos, como crianças, adolescentes e tantos outros.

3 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Coletivo_Mbyá-Guarani_de_Cinema. Acesso em julho de 2020. E em: https://www.facebook.com/coletivombyacinema/. Acesso em julho de 2020. 25
4 Disponível em: https://www.ascuri.org. Acesso em julho de 2020.
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Claro, não desconsidero aqui todo o acervo e produções que temos sobre o cinema indígena em diferentes povos nesse gênero cinematográfico,
de quem participou, fez e se propôs em nos apresentar o cinema, porque certamente foram anos de trabalho para consolidar projetos, produções
e a temática Cinema Indígena. E o que falo não se refere a parar de produzir esse gênero, o documentário, mas existem tantas outras possibi-
lidades com as quais podemos explorar com nossas narrativas, mitos e ancestralidades. Penso que talvez seja o momento de arriscarmos e ex-
plorarmos mais as nossas propostas de produções em diversos gêneros e linguagens que o cinema nos oferece. E para melhor entender, trago
exemplos das possíveis produções: como pensar em narrar nossos mitos na linguagem de animação, pensar uma proposta seriada a partir das
narrativas dos anciões, pensar uma ficção partindo de um conto da aldeia, um filme de terror baseado na oralidade indígena, um filme de gênero
fantástico e quem sabe tantos outros possíveis. Entendo que tudo isso requer um preparo, tempo e recursos financeiros..., mas por que não?

Nós realizadores e realizadoras indígenas vemos o cinema como uma nova ferramenta de luta, pois não somente o cinema, mas outras formas
de expressões artísticas como a música, as artes plásticas, a fotografia, a literatura e tantas outras, onde existem parentes indígenas de diversas
etnias atuando. Porém, talvez aqui eu seja um pouco crítico, mas me preocupa hoje, e até fico me perguntando enquanto profissional, que é sobre
a empregabilidade de nós indígenas no setor cinematográfico? Considero um ponto muito importe, e que é pouco falado. Sabemos que é muito
difícil para qualquer indígena ter acesso ao mercado trabalho. Uma das poucas áreas que nos abrem as portas e nos incentiva é a academia (do-

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cência), que é uma área que precisa ser valorizada, reconhecida, mas a mesma é intensa e exige uma árdua trajetória para nós indígenas, porque a
universidade não foi feita e pensada para nós, porém, é um espaço no qual nós estamos demarcando aos poucos. Mas os convido para refletirmos
juntos.

Não quero aqui criar polêmicas, mas falo com base em experiências vivenciadas ao longo da minha trajetória e de trocas com outros parentes de
diversas etnias, os quais possuem uma formação e lutam diariamente para se inserirem no mercado trabalho em diferentes áreas. Mas o que vale
a reflexão nesse ponto é: qual o lugar de um profissional indígena numa sociedade estruturalmente racista? Aí voltamos para a questão abordada
no filme “Nossa alma não tem cor”: o racismo contra as populações indígenas.

Pensar a empregabilidade no setor cinematográfico do país, envolve uma série de questões, até porque um profissional indígena do cinema pode

Dossiê
trabalhar na edição, na montagem, no som, na direção de arte, na fotografia, na produção, no figurino, na maquiagem e em outras áreas que o
cinema oferece, em filmes indígenas e não-indígenas. Eu mesmo poderia trabalhar com um diretor não-indígena num roteiro, por exemplo, ou na
produção de algum outro produto. Enfim, reforço que essa “empregabilidade” é mais complexa do que imaginamos. Mas considero que precisa-
mos nos inserir em novos contextos, atuar em outras frentes para sermos vistos como profissionais. E parar de ficar somente sendo contratados
como consultores, isso quando não nos convidam para trabalhar, “fazer a consultoria ou a pesquisa” de graça, como já aconteceu comigo algumas 26
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vezes, inclusive para fazer cinema sobre as populações indígenas em Santa Catarina, e que nem sei se meu nome apareceu nos créditos do filme!
Ainda, você ouve: “Terás experiência!”. Mais uma vez, sei que é um assunto polêmico e que muitas questões pairam no ar, mas também acredito
que são questões que precisamos pontuar nos dias atuais.

Outro ponto que cabe em destaque e que surgiu dessa conversa, é sobre a distribuição do Cinema Indígena, isto é, o acesso (ou falta dele) aos
filmes. Vejo enquanto cineasta indígena e distribuidor na área do cinema, que nós realizadores e realizadoras indígenas temos um desafio muito
grande pela frente quando pensamos em distribuição e em público, pois há ainda uma cartela de espaço de exibição e de (tele)espectadores
muito pequena e fechada. Na maioria das vezes, as produções indígenas são exibidas em circuitos alternativos como centros culturais, cineclubes
e em universidades, o que é maravilhoso. E o que me alegra muito, é ver que hoje nossas produções estão ganhando espaços em circuitos de
festivais tanto nacionais quanto internacionais, para além dos festivais já dedicados somente a produções indígenas. Já o público se cerca aos
que simpatizam pelas questões indígenas, onde a maioria são pesquisadores, professores e pessoas que tem uma proximidade com o tema. Isso é
ruim? Não, muito pelo contrário. Até porque podemos considerar que já temos um público consagrado que mais cedo ou mais tarde irá assistir às
nossas produções. Porém, mais uma vez considero que precisamos de agregar outros públicos e inserir nossas produções em todos os circuitos

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de exibições possíveis.

A ideia aqui é não é sair dos espaços de exibições ou dos públicos “alternativos”, os mesmos devem ser mantidos, e temos sim que trabalhar com
eles. Falo em expandir e difundir nossas produções. É o que nos desafia. Acredito que devemos pensar em uma formação de público ampla sen-
do a partir de diversos gêneros cinematográficos, para assim, termos mais visibilidade e sermos vistos como parte da produção cinematográfica
brasileira, pois é algo que nos entristece, ou melhor, me entristece. De fato, as nossas produções já circulam por mais de 25 anos no território
brasileiro e, quando pesquisado em críticas, jornais e matérias, quase nada é mencionado sobre as produções dos realizadores e realizadoras
indígenas em circuito profissional. Mas como comentou Alexandre Pankararu no dia 23, “temos sim críticos e informantes, nossos parentes!”, e
segundo o cineasta indígena boliviano Ivan Molina, “realizadores e realizadoras indígenas fazem cinema para os povos originários”.

Dossiê
Cabe destacar que em tempos de pandemia, a Internet foi uma grande janela para difusão dos trabalhos dos realizadores e realizadoras indíge-
nas, e também para outros parentes que atuam com diversas outras linguagens artísticas. A janela virtual possibilitou a proliferação de diversas
produções, como lançamentos de curtas, produções experimentais, exibição de filmes, e com direito a muitas lives. Até eu entrei nessa! E vejo
as plataformas digitais sendo uma grande aliada na distribuição e escoamento dessas produções. Com isso, considero que temos aí uma grande
rede a explorar e até mesmo a demarcar. E é o que vem acontecendo. 27
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Em minhas reflexões sobre o Cinema Indígena, partindo de uma troca com a realizadora Graciela Guarani e o realizador Alexandre Pankararu na
noite do dia 23 de junho, a qual ficou reverberando questões como os gêneros cinematográficos, empregabilidade no setor, distribuição e públi-
co, considero que temos ainda uma longa estrada para caminhar e diversos desafios para enfrentarmos em várias esferas, e toda ajuda é muito
bem-vinda para que o vento possa levar nossas produções aos quatro cantos do mundo.

E sabe, concordo com uma fala de Graciela:

Muito se fala que grande parte das narrativas apresentadas pelas produções indígenas, principalmente no gênero documentário, trazem narrativas
fortes, chocantes e com uma carga emocional vividas por nós, enquanto produzimos o filme, e também, de nossos personagens os que contam a
narrativa (GRACIELA, 2020).

De fato, acontece, e é difícil de descrever. Mas, em dias atuais, nós realizadores e realizadoras indígenas precisamos diversificar a forma como
contamos nossas histórias e apresentamos as nossas narrativas, precisamos agregar e fortalecer dentro das nossas produções outros gêneros,
como a ficção, as narrativas experimentais, a linguagem da animação, narrativas seriadas (sendo documental ou não) e tantas outras possíveis.
Isso me faz lembrar de uma outra conversa que tive com o parente Guarani Eliezer Antunes, estudante de cinema da Universidade Federal de

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Santa Catarina, sobre as diversas linguagens e gêneros que nós, realizadores e realizadoras indígenas podemos trabalhar, mesmo com nossas
narrativas. Pois, em 2019, quando Eliezer propôs o curta-metragem “Jovens Guarani”, o mesmo realizou o filme em uma linguagem ficcional, e
construiu uma narrativa partindo da sua experiência. E ele mesmo comentou em uma conversa, de que tem muita vontade e pretende seguir tra-
balhando com filmes de ficção e outras linguagens abordando a questão indígena.

Considerando sobre a nossa empregabilidade no setor cinematográfico brasileiro, acredito que muitas discussões e ações precisam ser construí-
das junto aos realizadores e realizadoras indígenas e a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Talvez nem seja preciso ser a nível nacional, mas
articular com os sindicatos locais ou regionais para que nós possamos nos inserir em diversas produções e funções dentro da área. E um outro
ponto em que me questiono é sobre os editais ou formas de captação de recursos para realizar nossos trabalhos. Existem vários, mas em sua

Dossiê
maioria os mesmos são excludentes por suas formas rigorosas de processo de seleção. Este é um outro ponto que precisa ser melhorado pelo
setor cinematográfico brasileiro, o de terem uma melhor divulgação e melhorar o acesso desses recursos também para os realizadores e realiza-
doras indígenas. Não somente para produzirmos cinema, mas também como forma de incentivos de distribuição (exibição e público).

Sobre os espaços de exibições, acredito que precisamos melhorar em vários aspectos, não só para o cinema indígena, mas como um todo, pois
o setor precisa pensar sobre o número de salas existentes, acessibilidade, valores de ingressos, deslocamentos e por aí vai. É um desafio a ser 28
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 22-30 | Jan - Jul | 2021

enfrentando nos dias de hoje, mas, enquanto isso, acredito ser importantíssimo ficarmos nos espaços alternativos que nos dão voz e visibilidade,
assim podemos contar com o nosso público fiel. Porém, projetando outras possibilidades.

E para fechar os apontamentos, quando menciono no parágrafo oito de que o cinema indígena tem uma complexidade muito maior, estou refle-
tindo, e considero importante aqui ressaltar, que as produções cinematográficas dos realizadores e realizadoras indígenas estão ganhando uma
dimensão para além de um único recorte que foi pensado, o do registro documental ou vídeo de trocas. Hoje várias linguagens e gêneros estão
sendo pensadas e produzidas por nós. Considero sim que o projeto VNA foi o grande incentivador disso tudo, e espero que Vincent Carelli esteja
orgulhoso com as várias sementes que ele espalhou, vendo germinar, crescer e proliferar essas múltiplas produções. E, pensando nessa comple-
xidade, percebo enquanto cineasta indígena de que o fazer cinema na aldeia tem uma própria forma, por que o mesmo é realizado e pensando em
outro tempo (no tempo da aldeia), ouvimos e trazemos outros sons (o som do silêncio, o som da noite e até o cair das folhas), seguimos um outro
ritmo (o da aldeia e de nossos personagens) e tantos outros aspectos que esse lugar, a aldeia, nos coloca e nos desafia quando estamos em ação.

Por fim, o que trago nessa reflexão não é para deixarmos de fazer filmes de gênero documentário ou sair da linha etnográfica, muito pelo contrá-
rio, precisamos continuar a trabalhar e propor esse gênero e linguagem (sou muito fã delas). O que trago nessas reflexões são possibilidades de

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diversificar nossas histórias, locais de exibição, público e pensarmos em uma forma outra de agregarmos renda, ou seja, é tudo uma soma. Do
mesmo modo que pensar e produzir outros gêneros, linguagens, ter outros espaços e públicos ainda continuarão sendo formas de resistência e
fortalecimento dentro da luta, do movimento e da arte indígena.  E, como comentou Graciela Guarani quando falava durante o bate-papo do dia
23, “nossa área, o Cinema Indígena, não é nem reconhecida pelo próprio setor”. Pois considero que temos muito a batalhar para o reconhecimento,
protagonismo e crescimento dos profissionais indígenas dentro do cinema brasileiro.

Não quero parecer arrogante, contraditório e crítico (talvez) com essas colocações, mas enquanto indígena e profissional do cinema, essas re-
flexões são inquietações que reverberaram partindo de uma conversa junto de outros realizadores indígenas em meio a uma pandemia mundial,
que considerei aqui um espaço pertinente para compartilhar. Pode ser que amanhã irei (re)ler esse texto e dizer: “Nossa! Eu escrevi isso!?” Mas
como pensar é um processo de amadurecimento do ser humano, e nesse caso, como profissional, acredito fazer parte. Assim, termino com uma

Dossiê
provocação aos parentes realizadores e realizadoras indígenas, e também, a todos e todas que queiram acrescentar nessa reflexão: Que cinema
indígena queremos mostrar nesses dias contemporâneos? Acredito que diversas propostas virão (ou não)! U tá tẽ5.

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5 “Obrigado” na língua Laklãnõ/Xokleng.
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Reflections of an indigenous filmmaker on contemporary indigenous cinema

Abstract: This text reflects concerns of an indigenous filmmaker about current days, which had as a starting point a talk with the
indigenous filmmakers Graciela Guarani and Alexandre Pankararu through a live stream held by Fundação Cultural Badesc from Flo-
rianópolis, SC. Throughout this discussion, several points were addressed, such as: proposing other languages and genres of produc-
tion, viewing indigenous cinema as employment, and thinking about these productions’ distribution and audience. Irrespective of all the
aspects raised, indigenous cinema is and will always be resistance and confrontation

Keywords: Indigenous cinema; Cinematographic genres; Distribution.

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Recebido em 5 de agosto de 2020

Aprovado em 31 de março de 2021

Dossiê
30
> Cinema de mutirão: os caminhos
entre um cinema hierárquico e um
cinema horizontal
Resumo >
A ASCURI é uma Associação Cultural de Realizadores Indíge-
Maria Gorges
nas em Mato Grosso do Sul, composta por indígenas Terena, Mestre em Filosofia
Guarani e Kaiowá. Ela foi criada em 2008 e desde então vem
realizando filmes e oficinas de formação em audiovisual em Universidade Tecnológica Federal do
aldeias indígenas. A proposta deste artigo consiste em refle- Paraná
tir sobre as oficinas de formação em que os integrantes da
ASCURI participaram em seu período de constituição (2008-
2010). Caminho que traz uma problematização sobre as políti-
cas culturais vigentes neste período, ao lado de uma discussão
sobre a proposta de horizontalidade no processo de produção,
a qual é defendida pela ASCURI como um modo de ensinar e Palavras-Chave >
produzir filmes. ASCURI; Horizontalidade; Autonomia; Políticas Cultu-
rais.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 31-50 | Jan - Jul | 2021

> Cinema de mutirão: os caminhos entre um cinema


hierárquico e um cinema horizontal
Maria Gorges
> mariaclaudiagorges@gmail.com
Universidade Tecnológica Federal do Paraná

Introdução

Nos últimos anos, muitos povos indígenas vêm utilizando o audiovisual para além das oficinas de formação realizadas por não indígenas. A Asso-

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ciação Cultural dos Realizadores Indígenas (ASCURI) em Mato Grosso do Sul é um exemplo desse processo. Ela é composta por integrantes das
etnias Guarani, Kaiowá e Terena e foi idealizada em 2008 por Gilmar Galache e Eliel Benites1. Desde então, vem realizando oficinas de formação
em audiovisual, produzindo filmes e adquirindo equipamentos de produção fílmica para as aldeias, buscando “[...] desenvolver estratégias de for-
mação, resistência e fortalecimento do jeito de ser indígena tradicional2” (ASCURI) 3. Hoje, a ASCURI conta com um canal no Youtube, uma página
no Facebook, no Instagram e um site, onde disponibiliza a maioria de seus materiais produzidos4.
1 Gilmar Martins Marcos Galache é um indígena Terena, idealizador e integrante da ASCURI, que viveu grande parte da sua infância na aldeia Lalima, localizada a 45km de Miranda, em Mato
Grosso do Sul. Aos 15 anos, foi estudar no internato da Fundação Bradesco, em Serra da Bodoquena. Mais tarde seus pais se mudaram para a capital Campo Grande, para que ele continuasse
os estudos. Na capital, estudou em um colégio evangélico no centro da cidade. Em 2005, iniciou o curso de Design Gráfico na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), e, em 2017, concluiu o
mestrado profissional em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UNB) (GALACHE, 2017, p.9-15). Eliel Benites, idealizador e integrante da ASCURI, nasceu na Terra Indígena

Dossiê
Te’ýikue, no município de Caarapó, em Mato Grosso do Sul. Iniciou sua trajetória como professor tradutor, em 1996. Em 1997, começou a lecionar como professor indígena. Formou-se na licen-
ciatura indígena Teko Arandu, na área de ciências da natureza. Em 2014, concluiu o mestrado no Programa de Pós-Graduação e Doutorado da UCDB. É membro do movimento e comissão dos
professores indígenas Guarani Kaiowá de Mato Grosso do Sul. Desde julho de 2013 atua como professor efetivo no Curso da Licenciatura Intercultural Teko Arandu da Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD) e, em 2017, iniciou o doutorado em Geografia pela UFGD, aprofundando sobre a temática: Territorialidade Guarani Kaiowá (BENITES, 2014, p. 13-33).
2 Indicamos, desde já, que neste texto não recorreremos à oposição tradicional/moderno, pois, conforme Lasmar (2005, p. 41), essa oposição se mostra desvantajosa no contexto de estudos
sobre sistemas onde a transformação é constante. O termo tradicional, no entanto, é incorporado ao texto, porque os próprios integrantes da ASCURI o utilizam, entretanto, como veremos adiante,
essa noção de tradicional não é inerte, isenta de transformações.
3 ASCURI. Nosso Jeito. Disponível em: <https://ascuri.org/nosso-jeito>. Acesso em 20 jun. 2020. 32
4 Disponível em: <https://www.youtube.com/channel/UC_EvIOBMTbte94t3YtJWT_Q>; <https://www.facebook.com/ascuri.brasil/>; <https://www.instagram.com/ascuri.ms/?hl=pt>;
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 31-50 | Jan - Jul | 2021

Nossa proposta, neste texto, consiste em refletir sobre os anos iniciais da ASCURI, abordando as experiências com oficinas de formação que seus
integrantes vivenciaram e que nos possibilita problematizar algumas diretrizes que orientam suas práticas de formação. Nosso percurso foi reali-
zado através de um cruzamento de dados que envolve entrevistas, produções fílmicas e acadêmicas dos membros da ASCURI sobre sua trajetória.

Dessa forma, o primeiro passo para acessarmos as práticas desenvolvidas pela ASCURI é voltado para o encontro entre seus dois idealizadores,
em 2008, em uma oficina de cinema, o Cine Sin Fronteras, realizada em uma aldeia Aymara, na Bolívia. Isso porque, além de ser o espaço de en-
contro entre seus idealizadores, o Cine Sin Fronteras tem um papel fundamental para a estruturação da ASCURI, pois, conforme Gilmar Galache
(2017, p.13), muitos de seus eixos norteadores, como a horizontalidade no processo de produção, estão relacionados a ensinamentos apreendidos
nela, os quais foram aprimorados e adaptados nas oficinas de formação aqui no Brasil.

Em seguida, problematizaremos o contexto cultural no qual a ASCURI se constituiu enquanto associação de realizadores indígenas. Trata-se de
pensar as políticas públicas relacionadas à cultura no Brasil, neste período, e os projetos que fazem parte deste contexto, isto é, o Vídeo Índio
Brasil (VIB) (2008 - 2014) e o Ava Marandu – Os Guarani Convidam (2010), que foram importantes para que a ideia gestada por Eliel e Gilmar

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pudesse se efetivar, já que esses projetos trouxeram equipamentos e custearam oficinas. Ao mesmo tempo, também carregavam contradições
que, em certo sentido, orientaram as práticas da ASCURI, na medida em que ela evitou reproduzir essas contradições. O que está em jogo aqui,
principalmente, é a relevância de uma autonomia no processo de capitalização e produção, para que as dinâmicas desenvolvidas pela ASCURI
em suas práticas de formação e produção audiovisual, como a horizontalidade, possam ter continuidade.

1 Taller Cine Sin Fronteras

O Cine Sin Fronteras, realizado em 2008, ocorreu por meio de uma iniciativa da Escuela de Cine y Arte de La Paz (ECA/Bolívia), o centro Saphi
Aru, a Universidade Federal de Goiás e o Museu das Culturas Dom Bosco e reuniu, durante 45 dias, seis indígenas e vinte não indígenas, entre

Dossiê
brasileiros e bolivianos (GALACHE, 2017, p. 55). Dentre as atividades realizadas nesta oficina, estavam fóruns de cinema, exposição e intercâmbio
dos materiais produzidos, atividades de interação com a comunidade e a realização de curtas-metragens (ESCOBAR, FLORES, 2008, p. 7). Sua
principal característica, segundo Escobar e Flores (2008, p. 5), foi a construção de um conhecimento a partir de uma metodologia que envolve
teoria, prática e reflexão coletiva, na interação com sindicatos, povos indígenas, grupos de jovens, de mulheres, dentre outros.
33
< https://ascuri.org/>. Acesso em: 03 mar. 2020.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 31-50 | Jan - Jul | 2021

A primeira semana do curso, de acordo com Gilmar Galache (2017, p. 59-61), estava voltada para as aulas mais teóricas, quando ocorreram peque-
nas explicações relacionadas à produção audiovisual. A cada explicação, testavam o que aprendiam, exibiam em sala e os professores apontavam
os erros. A partir da segunda semana, conforme Gilmar Galache (2017, p. 60-61), as aulas práticas passaram a predominar. Neste período, os alu-
nos foram divididos em grupos de no máximo cinco pessoas, com uma divisão que deveria ser rotativa, para que todos os integrantes pudessem
passar pela câmera, produção, áudio, fotografia e iluminação. Havia uma preocupação, por parte dos professores, em como os integrantes das
oficinas deveriam abordar as pessoas envolvidas na filmagem, respeitando sempre os protocolos da aldeia em que se encontravam. Os exercícios
realizados por cada equipe eram exibidos em sala de aula e ali eram apontados os erros que deveriam ser corrigidos.

Por fim, cada equipe produziu um curta-metragem. Além disso, durante todo o curso, ocorria o Cine Fórum, depois do jantar, quando realizavam
exibições de filmes relacionados com a produção autônoma do audiovisual indígena e temáticas relacionadas ao contexto indígena. Seis filmes
foram produzidos nesta edição, os quais foram exibidos no auditório do Museo Nacional Etnografia y Folklore (MUSEF), em La Paz5 (GALACHE,
2017, p. 60-61).

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Uma das críticas que Gilmar realiza à sua primeira experiência no Cine Sin Fronteras6, refere-se à exibição dos filmes, pois na realização do cur-
ta-metragem El Camino de Roger (2008), incomodou-lhe o fato de não ter conseguido dar o retorno do material produzido para quem eles grava-
ram, “[...] depois de uma reflexão aprofundada, avalio que não contemplamos um ciclo final de maneira adequada, pois Roger e sua família nunca
tiveram a chance de ver o filme pronto” (GALACHE, 2017, p. 63).

Uma das figuras centrais a frente do Cine Sin Fronteras é Juan Ivan Molina Velásquez7, mais conhecido como Ivan Molina, cuja concepção de
cinema indígena traz fortes críticas ao modelo de cinema convencional, que desconsidera os diferentes olhares sobre a vida, trazendo uma visão
homogênea, branca, colonizadora e que é orientada pelo lucro. Ao defender um cinema indígena, Ivan Molina defende uma representatividade
indígena e a ampliação dos olhares sobre o mundo:

Dossiê
não fazemos o cinema para nós mesmos, nem para críticos de cinema e nem para festivais. O cinema é feito para apaixonar o público, contar que a
vida é bela e que vale a pena viver. O público sempre espera sonhar em uma sala de cinema. Quando as pessoas dizem que vão assistir a um filme
comercial está tudo bem, porque também é sonhar. Mas e os outros sonhos onde estão? Eles também são importantes. Penso que o cinema tem

5 Os curtas produzidos nesta oficina foram: Agua de Pozo, Anécdota de una Pasión, Cuando Volverán, El camino de Roger, Mujeres del Agua e Una mirada a Luruta.
6 A realização do último Cine Sin Fronteras ocorreu em 2017, no Rio de Janeiro, contando com a participação de membros da ASCURI como oficineiros.
7 Ivan Molina é um cineasta boliviano da etnia quéchua, formado pela Escola Internacional de Cinema e Televisão de Cuba (EICTV), realizador independente, professor da Escuela de Cine y Arte 34
Audiovisuales de La Paz e ativista no movimento pela luta cocaleira, pela valorização da ancestralidade andina (GALACHE, 2017, p.57-58).
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essa dimensão de construir no nosso imaginário uma sociedade diferente e, enquanto possamos ter várias orientações para buscar esta vida, está
tudo bem. Mas não só com um olhar. Se olharmos um jornal, vamos ver vários filmes de Hollywood ou de cinema comercial. E pensamos: e o outro
olhar onde está? É como se somente uma pessoa tivesse telescópio e todos tivéssemos que olhar por ele. Mas estamos em um mundo com múltiplos
olhares e temos que encontrá-los. Todos os olhares são válidos (MOLINA, 2017).

Neste sentido, nos termos de Ivan Molina, tal como se busca uma soberania alimentar, é preciso buscar uma soberania também no campo do
cinema:

falamos da soberania alimentar e hoje de manhã escutei que é muito importante a diversidade da gastronomia para uma alimentação melhor e é
muito bom a produção agroecológica, faz bem ao corpo. A produção de um cinema mais diverso faz bem também ao espírito, o mais importante e
muito difícil de encontrar (MOLINA, 2019).

Durante sua fala no CIPIAL (2019), Ivan Molina trouxe como exemplo da falta de acessibilidade para fazer um cinema diferente em toda a América,
uma comparação entre duas situações. Em uma delas ele cita um cineasta convencional brasileiro, com quem conversou em um encontro de ci-
nema na Bolívia, o qual relatou que tinha um projeto para realizar doze filmes sobre diferentes povos indígenas com um orçamento muito grande.

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Enquanto isso, ao conversar sobre orçamento com a ASCURI, no CIPIAL, constatou que eles não tinham mais orçamento para fazer filmes. Gilmar
Galache, em entrevista, também relatou as inúmeras dificuldades que a ASCURI vem enfrentando para se manter enquanto associação, em um
contexto em que as políticas públicas voltadas para a cultura estão sendo dizimadas.

Na medida em que os cinemas ainda privilegiam um único olhar sobre o mundo a concepção de Ivan Molina ao refletir sobre o cinema indígena
se aproxima da crítica que a socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui (2010, p. 58) realiza sobre o conceito de multiculturalismo, que ela vê
como a “teatralização da condição ‘originária’, ancorada no passado e incapaz de conduzir seu próprio destino”. Mesmo quando os filmes trazem a
temática indígena, costumam representar o indígena a partir do olhar do não indígena, enquanto culturas estáticas e isoladas. Essa limitação de
narrativas plurais se efetiva ainda mais com as restrições à produção e divulgação dos filmes produzidos por realizadores indígenas.

Dossiê
A participação de Gilmar Galache e Eliel Benites no Cine Sin Fronteras teve um papel importante para a estruturação da ASCURI porque trouxe
eixos norteadores que são partilhados por ela, ligados ao jeito de ser indígena de seus integrantes. Um desses eixos corresponde à horizontalida-
de no processo de produção, ou seja, à rotatividade no processo de produção fílmica, em que todos os integrantes compartilham suas funções e
se afastam de um modelo de produção hierárquico: 35
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a ASCURI tem atuado de forma horizontal e buscando sempre a coletividade, acreditando que é possível ser quem sempre fomos, e lembrando que
esse trabalho é apenas uma parte de todo o processo, que jamais se faz sozinho, a ASCURI traz uma metodologia que foi desenvolvida de maneira
conjunta por indígenas, sempre conduzida pelo nosso jeito de ser, onde sozinhos não somos nada (GALACHE, 2017, p. 15).

Essa característica é defendida pela ASCURI nas práticas de suas oficinas e em produções fílmicas e também está relacionada ao modo como os
Kaiowá concebem o processo educacional e, dentro dele, o caminho para se tornar um rezador – Ñanderu:

[...] Mas a gente busca muito a coisa da horizontalidade, não é? [...] a gente tenta fazer o máximo para o outro aprender; quanto mais o outro apren-
der, menos você vai fazer; então, mais gente para te ajudar a multiplicar e menos preocupação com uma pessoa só fazendo [...] A gente também
busca não fazer pressão sobre o grupo: “você vai ser o da câmera, você vai ser o editor!”. A pessoa vai se envolvendo naturalmente, que é a maneira
tradicional de educação também, porque, o rezador não diz: “você vai ser o futuro rezador!”, você vai mostrando quem ele é, o cara vai mostrando a
sua potencialidade, e vai potencializando o que ele tem de bom, o perfil do cara, então cada um tem o seu perfil, não é? Sai naturalmente, você vai
só apoiando aquilo, é a metodologia. (BENITES, In. CORRÊA, 2017, p.133).

Gilmar Galache também compreende este processo de associar a prática desenvolvida nas oficinas de formação com o jeito de ser indígena,

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através da prática do mutirão que se realiza nas aldeias:

então quando a gente vai dar aula é como se fosse fazer um mutirão para fazer uma casa, um mutirão para fazer uma roça. Não tem muito assim as
figuras principais. Você é o arquiteto e fica só na sombra mandando, você é o mestre de obras, ou você é o cabeçante da roça, essas coisas que têm
quando a gente lida com as coisas do meio urbano e rural também. Você vai trabalhar na roça e tem lá o cabeçante, vai fazer uma casa no mato,
tem essa figura que não faz nada e tem os peões que ficam no sol. Então quando a gente vai fazer entre nós mesmos, assim, roda, às vezes um está
servindo tereré, outro está cavando buraco, outro está cortando madeira, outro está pescando para comer, ou está matando uma vaca para fazer
um churrasco, está acendendo o fogo, e o mutirão vai acontecendo, e um pouco é o nosso jeito de fazer cinema também. A gente vai rodando, uma
hora pega a câmera, outra hora pega o som, outra hora o cara tem que ir lá não sei onde buscar uma saia de pena e faz produção, e vai rodando.
Então na produção do filme e nas oficinas de audiovisual a dinâmica é mais ou menos essa, que, na verdade, é um jeito que a gente faz as coisas. Vai
fazer uma coisa na casa de reza na aldeia, a dinâmica é essa. E você vai fazer um açude, a dinâmica é mais ou menos essa (GALACHE, In. GORGES,

Dossiê
QUELUZ, 2019, p. 42).

Essa proposta de horizontalidade também pode ser percebida nos créditos dos filmes produzidos pela ASCURI, os quais apresentam uma dire-
ção coletiva. Nem sempre, entretanto, isso ocorre, pois, conforme Gilmar Galache (2017, p. 97), diante de sistemas que estabelecem parâmetros
de produção de forma individual, tal como a Plataforma Lattes, para que muitos de seus integrantes consigam pontuar em seus currículos, faz-se
necessário trazer o nome de uma pessoa apenas na direção destes filmes.
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2 Políticas Públicas Culturais: Vídeo Índio Brasil e Ava Marandu – Os Guarani Convidam

No período de 2008, em que Eliel Benites e Gilmar Galache retornaram ao Brasil com a ideia de constituir a ASCURI, havia muitos editais. Desde
2003, com o início do governo de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), o Ministério da Cultura (MINC)8, conforme Rubim
(2008, p. 186), adotou uma proposta de atuação que ampliava o papel do Estado no campo da cultura para além das leis de incentivo (Lei Rouanet
e do Audiovisual). Essas ações tiveram uma continuidade durante o Governo Dilma (2011-2016), porém, não de maneira tão intensa quanto antes.
Gilberto Gil, em seu discurso de posse, como Ministro da Cultura enfatizava essa orientação de fortalecer o papel do Estado no campo da cultura:

[...] o Estado não deve deixar de agir. Não deve optar pela omissão. Não deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade pela formulação e exe-
cução de políticas públicas, apostando todas as suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultural aos ventos, aos sabores e
aos caprichos do deus-mercado. É claro que as leis e os mecanismos de incentivos fiscais são da maior importância. Mas o mercado não é tudo. Não
será nunca. Sabemos muito bem que em matéria de cultura, assim como em saúde e educação, é preciso examinar e corrigir distorções inerentes à
lógica do mercado que é sempre regida, em última análise, pela lei do mais forte (GIL, 2003).

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As ações propostas por essa gestão tinham por base um conceito mais abrangente de cultura que articulava três dimensões vitais: cultura como
expressão simbólica, cultura como direito e cidadania de todos os brasileiros e cultura como economia e produção de desenvolvimento (MINIS-
TÉRIO DA CULTURA, 2006, p. 13):

a dimensão simbólica é aquela do “cultivo” (na raiz da palavra cultura) das infinitas possibilidades de criação expressas nas práticas sociais, nos
modos de vida e nas visões do mundo. [...] A dimensão cidadã consiste no reconhecimento do acesso à cultura como um direito, bem como da sua
importância para a qualidade de vida e a autoestima de cada um. [...] Na dimensão econômica, inscreve-se o potencial da cultura como vetor de
desenvolvimento. Trata-se de dar asas a uma importante fonte geradora de trabalho e renda, que tem muito a contribuir para o crescimento da eco-
nomia brasileira (CABRALE, 2014, p.22).

Dossiê
Por meio dessa compreensão de cultura houve algumas ações inaugurais do MINC, como a extensão das políticas culturais aos povos indígenas.
As modificações sugeridas por essa nova gestão do MINC enfrentaram os desafios colocados pelas três tradições das políticas culturais nacio-
nais no Brasil, isto é: 1. Ausência (tal como a ausência de políticas públicas e o menosprezo por culturas indígenas e africanas); 2. O autoritarismo
(como censuras, exclusão, o controle); 3. A instabilidade das políticas públicas, bem como em relação a própria manutenção do MINC (RUBIM,
2008, p. 185-192).
37
8 O Ministério da Cultura tinha a frente de sua gestão o cantor e compositor Gilberto Gil (2003-2008) e, posteriormente, o sociólogo Jucá Ferreira (2008/2010).
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 31-50 | Jan - Jul | 2021

As ações propostas neste viés, seguindo Paula Reis (2014, pp. 86-87) e Lia Cabrale (2014, p. 143-150), correspondem a uma reforma administrati-
va, com a criação de novas Secretarias, como a Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural, a transferência da Agência Nacional de Cinema
(ANCINE) para o MINC, a ampliação do debate e da participação social, a produção e sistematização de informações sobre o campo da cultura e
a construção do Plano Nacional de Cultura (PNC), isto é, o documento base que pautaria, em dez anos, o direcionamento das ações públicas de
cultura, aprovado em dezembro de 2010. Além disso, os esforços para a construção do Sistema Nacional da Cultura (SNC), aprovado em 2012,
buscava criar uma estrutura institucional mínima para fomentar a consolidação de políticas culturais.

Dentre as políticas culturais propostas pelo MINC, a que adquiriu uma dimensão destacada e possibilitou o acesso da ASCURI a mecanismos
de fomento, foi o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, criado em 2004, sendo a primeira política nacional criada
após a institucionalização do SNC. O programa Cultura Viva tem como objetivos “[...] ampliar e garantir acesso aos meios de fruição, produção
e difusão cultural; potencializar energias sociais e culturais, dando vazão à dinâmica própria das comunidades, entre outros” (CABRALE, 2014, p.
150), tendo como base os pontos de cultura, que se tornaram política de Estado a partir da Lei nº 13.018 de 22 de julho de 2014. Os recursos para
os pontos de cultura, cujo financiamento e administração são compartilhados com estados e municípios, são destinados às instituições que já

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desenvolvem ações culturais e sociais e, conforme Paula Reis (2014, p. 91), é uma das mais importantes iniciativas que contribuíram para promover
a descentralização das políticas culturais no âmbito territorial e temático.

É preciso ressaltar, ainda, a criação do Plano Setorial para as Culturas Indígenas, publicado em 2012. O plano é resultado da continuidade das
ações da Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural (SID), bem como da produção do documento Diretrizes para a formulação de uma política
cultural referente aos Povos Indígenas, durante o Fórum Cultural Mundial, em 2004, construído junto com representantes indígenas (MINISTÉRIO
DA CULTURA, 2012, p. 92-93). A proposta do Plano Setorial, também formulada junto com representantes dos povos indígenas, tinha como ob-
jetivo implementar programas e ações voltadas para a proteção, promoção, fortalecimento e a valorização das culturas dos povos indígenas no
Brasil (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2012, p. 29). Inclusive, estava atrelada à concepção que, para além de valorizar manifestações culturais em

Dossiê
suas dimensões artística e comunicacional, permitia pensar cultura enquanto o jeito de ser indígena (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2012, p.17):

hoje a cultura indígena é vista como uma questão de minoria, mas quando falamos de cultura indígena se trata da vida das pessoas e não simples-
mente de manifestações culturais. É diferente da cultura não-indígena, pois para o indígena a cultura é nosso modo de ser, nossa vida. Isto tem
que ficar bem claro no Plano, é preciso deixar claro do que está se tratando: o que é cultura para os não-indígenas e o que é cultura para os povos
indígenas. [...] Lá na minha região, por exemplo, as prefeituras, às vezes, têm ideias bem diferentes do que é a cultura indígena. Para eles a cultura é
futebol, fogueira de São João. E aí destinam dinheiro para financiar estas ações voltadas para a cultura. É complicada as formas como as pessoas se 38
apropriam deste termo. Vale a pena ser analisado. [...] Em aldeias onde há financiamento de futebol, fogueira, coisas que são identificadas pelo não-
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-indígena como “cultura”, podem causar confusão com relação ao termo e terminar por desvalorizar a nossa própria cultura. Precisamos esclarecer
com os gestores o que é cultura do ponto de vista dele e o que é cultura do nosso ponto de vista. [...] (BENITES. In. MINISTÉRIO DA CULTURA, 2012,
p. 17-18).

Dentre as atividades apoiadas pela SID e citadas no Plano estão os projetos VIB e Ava Marandu – Os Guarani Convidam. Estes projetos permeiam
o processo de constituição da ASCURI, ambos ligados ao Pontão de Cultura Guaicuru, criado em 2008, em parceria com a FUNAI e o Cine Cul-
tura, um cinema alternativo, em Mato Grosso do Sul, que já não existe mais e era ligado à Associação dos Amigos do Cine Cultura (AACIC)9, que
também atuava como captador de recursos a partir de editais governamentais e privados (GALACHE, 2017, p.64).

Este contexto das políticas públicas em relação à cultura, no qual a ASCURI se constituiu, não corresponde mais ao cenário atual. Com a mudança
de governo, após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e a ascensão de seu vice Michel Temer, do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB), teve início o desmonte e esvaziamento das políticas públicas culturais nacionais. Neste novo cenário vemos um acirramento das três tris-
tes tradições das políticas culturais nacionais no Brasil, tal como apontadas por Rubim (2008, p. 183), isto é, ausência, autoritarismo e instabilidade.

No início do governo Temer, o Ministério da Cultura foi extinto com a Medida Provisória nº 726, passando a ser um braço do Ministério da

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Educação (MEC). Depois de muitas pressões sociais e protestos, retomou-se o Ministério. Todavia, já no início do governo Bolsonaro, em 2018,
com o pretexto de que a cultura estava, nos governos anteriores, aparelhada pela esquerda, o MINC foi novamente extinto, sendo incorporado
como Secretaria Especial da Cultura ao Ministério da Cidadania (MANSQUE, 2019).

Em 2018 houve a transferência da Secretaria Especial da Cultura para o Ministério do Turismo, marcada por uma instabilidade em relação aos
nomes que ficariam a frente desta pasta. Em 2019, passaram por ela três secretários. É interessante refletirmos aqui sobre a concepção de cultura
presente nessa transferência da Secretaria da Cultura ao Ministério do Turismo, uma concepção carregada de essencialismo, se pensarmos, por
exemplo, na imagem do indígena vendida em algumas agências de turismo. Percebe-se, também, um processo autoritário, na medida em que
ocorre, por exemplo, a suspensão de um edital de chamamento de projetos para emissoras de televisão que contemplavam séries de temática

Dossiê
LGBTQ+, atrelado a discursos que defendem o uso de “filtros” nos programas de incentivo à cultura (OLIVEIRA, 2019). Isso está presente, ainda,
nas demissões e pressões que ocorreram na ANCINE, na Fundação Casa de Rui Barbosa e que transparece na fala de Bolsonaro, afirmando que

9 A AACIC foi criada em 2007 por um grupo de profissionais ligados a cultura, tendo como responsável Nilson Rodrigues. Nilson Rodrigues é produtor cultural nas áreas de teatro, televisão e
cinema. Foi coordenador de várias mostras e festivais. Produziu alguns documentários, entre eles O caminho das onças (1997), de Sérgio Sanz, e Por Um Mundo Sem Fome (2004), de Tânia Qua-
resma. Foi produtor associado do filme Tainá 3 – A origem (2012), de Rosane Svartman e em 2002 iniciou sua atividade como exibidor ao fundar o Cine Cultura em Campo Grande/MS. Cf. Quem 39
é quem no cinema. Disponível em: <http://www.filmeb.com.br/quem-e-quem/distribuidor-exibidor-produtor/nilson-rodrigues>. Acesso em: 13 mar. 2020.
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o presidente ideal para presidir a ANCINE “[...] deveria ser um evangélico que conseguisse recitar de cor 200 versículos bíblicos, que tivesse os
joelhos machucados de tanto ajoelhar e que andasse com a Bíblia debaixo do braço” (OLIVEIRA, 2019).

Este acirramento das características de ausência, instabilidade e autoritarismo, refletem uma visão das políticas culturais e da própria noção de
cultura que exclui o diferente (quando o reconhece é a partir da sua visão sobre ele), que está restrita a um único olhar, a uma perspectiva unilate-
ral de nação, família e religiosidade. Verificamos esse olhar homogêneo na fala do Secretário da Cultura, Roberto Alvim, que ocupou o cargo entre
novembro de 2019 até o começo de 2020:

a cultura é a base da Pátria. Quando a cultura adoece, o povo adoece junto. E é por isso que queremos uma cultura dinâmica e, ao mesmo tempo,
enraizada na nobreza de nossos mitos fundantes. A Pátria, a família, a coragem do povo e sua profunda ligação com Deus, amparam nossas ações
na criação de políticas públicas. As virtudes da fé, da lealdade, do autossacrifício e da luta contra o mal, serão alçadas ao território sagrado das obras
de arte (ALVIM, In. Secretário da Cultura, Roberto Alvim cita ministro nazista em pronunciamento, 2020, 31’-1’10’’).

Reconhecendo a importância e a necessidade das políticas públicas culturais nesse contexto de desmonte e descaso, precisamos refletir, tam-
bém, sobre algumas contradições que elas carregam. É relevante e urgente repensar essas políticas a partir dos questionamentos levantados

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pelos povos indígenas que passaram por essas experiências.

Comecemos pelo VIB, o primeiro festival de cinema indígena realizado em Mato Grosso do Sul, em 2008 e organizado pela (AACIC), o qual trouxe,
em sua grade de exibição, filmes produzidos por indígenas e não indígenas. O VIB contou com o apoio do MINC para sua realização, por meio da
Secretaria de Diversidade Cultural, com recursos do Fundo Nacional da Cultura (FNC) e do Programa Cultura Viva, além de contar como apoio da
FUNAI e do Ministério do Turismo.10

Durante o VIB ocorreram seminários, debates, exposições e oficinas de formação audiovisual com os indígenas, as quais se realizaram por três
anos (GALACHE, 2017, p. 66). Paralelamente ao festival do primeiro VIB, conforme Gilmar Galache (2017, p. 65), ocorreu uma oficina de formação

Dossiê
de produtores indígenas, da qual participaram Eliel e Gilmar, mas, no entanto, tiveram pouca oportunidade de conversar e se conhecer. Essas
aulas foram ministradas pelo professor de jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Hélio Augusto Godoy de Souza11,
10 Vídeo Índio Brasil, 2009. Disponível em: <http://thacker.diraol.eng.br/mirrors/www.cultura.gov.br/site/2009/08/10/video-indio-brasil/>. Acesso em: 20 jun. 2020.
11 “Pesquisador e Professor Titular Aposentado, da Graduação em Jornalismo, e do Mestrado em Comunicação da Faculdade de Artes, Letras e Comunicação da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, onde lecionou Fotografia, Vídeo, Documentário e Semiótica. Ainda desenvolve pesquisa sobre Tecnologia, Linguagem e Fenomenologia dos Filmes Documentários 3D
Estereoscópicos. [...] É autor do livro “Documentário, Realidade e Semiose: os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento” (2017). Como realizador cinematográfico, produziu as seguin- 40
tes obras: “Cubatão Meu Amor” (1991); “Piraputanga” (1993); “Bacia do Córrego Bandeira” (1994); “Arqueologia do Gasoduto Bolívia - Brasil” (2001); “Projeto Corumbá” (2004); “A Poeira” (2007),
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sendo predominantemente teóricas. A primeira edição do evento, conforme Foscaches (2015, p. 177-178), contou com a presença de dez mil pes-
soas e os filmes foram expostos em universidades, ONG’s e em associações de Campo Grande e Dourados.

Em 2009, os filmes também foram exibidos nas aldeias urbanas Marçal de Souza e Água Bonita. Devido ao êxito da edição de 2008, em 2009, além
de Campo Grande, Corumbá e Dourados, mais quatro cidades de Mato Grosso do Sul foram contempladas: Sidrolândia, Caarapó, Bonito e Coxim
(FOSCACHES, 2015, p. 178). Nesta segunda edição, as oficinas de formação em audiovisual foram coordenadas por Ivan Molina, pelo cineasta Joel
Pizzini12, o cineasta Paulinho Kadojeba13, Bororo, e o cineasta Divino Tserewahú14, Xavante (FOSCACHES, 2015, p. 179).

Na edição de 2010 do VIB, a mostra contemplou cidades de todos os estados brasileiros, alcançando mais de cem cidades.15 Nesta edição, Gilmar
Galache assumiu a coordenação das oficinas junto com Ivan Molina, Divino Tserewahú e Paulinho Kadojeba. A oficina foi realizada na Universida-
de Católica Dom Bosco e no Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indígenas (NEPPI) (FOSCACHES, 2015 p. 189). De acordo com Gil-
mar Galache (2017, pp. 66-67), nessa edição, as oficinas não mais se limitaram a serem realizadas apenas na cidade. A oficina tinha uma duração
de sete dias, sendo dois dias com atividades práticas e teóricas na cidade, três dias de rodagem nas aldeias ou na cidade e dois dias de edição e
pós-produção, na cidade. Os grupos contavam com no máximo cinco pessoas e iam para as aldeias aqueles grupos em que algum dos integrantes

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tivesse boas relações na comunidade (GALACHE, 2017, p. 66-67).

A partir da edição de 2011, o VIB começa a se enfraquecer, sendo que as oficinas de formação audiovisual deixam de ser realizadas e passam a
somente exibir filmes, incluindo os que foram produzidos nas edições anteriores (FOSCACHES, URQUIZA, 2015, p. 270). Sua última edição foi em
2014, em Brasília16.
“Arqueologia de Mato Grosso do Sul” (2008); “O Lago 3D” (2009), “Hidrochoeruspaedia 3D” (2013) e “No Quintal, pássaros: Todirostrum cinereum” (2018)”. Cf. LATTES.
12 Antes de realizar seus primeiros filmes foi assistente de direção de Silvio Back em Guerra do Brasil (1986). Dirigiu diversos documentários de curta e longa-metragem, um deles foi o longa 500
almas (2004), que aborda a trajetória do povo Guató para ser reconhecido. Cf. Quem é quem no cinema. Disponível em:< http://www.filmeb.com.br/quem-e-quem/diretor-roteirista/joel-pizzini>.
Acesso em: 13 mar. 2020.
13 Paulinho Ecerae Kadojeba pertence à etnia Bororo e vive na aldeia Meruri, em Mato Grosso. Hoje trabalha como agente sanitário em sua aldeia. Ele aprendeu a filmar na relação que tinha

Dossiê
com o Museu das Culturas Dom Bosco (MS). Um de seus principais filmes foi o curta Boe Erro Kurireu – A Grande Tradição Bororo (2007) (GALACHE, 2017, p. 65).
14 “Divino é um cineasta [Xavante, morador da aldeia Sangradouro, em Mato Grosso] bastante conhecido nos circuitos de cinema etnográfico e indígena. É notável a posição que ele e suas
produções vêm ocupando nesse cenário dentro e fora do Brasil. Além disso, tem o maior número de filmes premiados e o maior número de filmes como diretor durante seu tempo de trabalho na
Organização Não Governamental Vídeo nas Aldeias (VNA), iniciado em 1996” (SILVA, 2016, p.123).
15 Cachoeira: festival Vídeo Índio Brasil será realizado nos dias de 31 de julho a 7 de agosto de 2010. Disponível em: < https://www.jornalgrandebahia.com.br/2010/07/cachoeira-festival-video-
-indio-brasil-sera-realizado-nos-dias-de-31-de-julho-a-7-de-agosto/>. Acesso em: 20 mar. 2020.
16 Os curtas produzidos durante o Vídeo Índio Brasil, os quais constam na Filmografia da ASCURI durante o período de 2008 a 2017, organizada por Gilmar Galache (2017, p. 103-123), são: Ipuné
Kopenoti Terenoe, Cerâmica Terena, (2010), Teko Mbarete Guarani/Kaiowa. Educação Tradicional (2011), Kagui (2010), Puíty vai ao Cinema (2010), O Difusor da Sua Cultura, (2010), Uma Aldeia na 41
Cidade (2010),
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A origem deste festival remonta a um desdobramento da mostra O Cinema e o Índio no Brasil, a qual ocorreu durante a quarta edição do Festival
de Cinema de Campo Grande, em 2007 17. Seu objetivo, tal como coloca Foscaches (2015, p. 12-13), consistia em dar visibilidade à cultura indígena
através da produção audiovisual, buscando uma inclusão digital dos povos indígenas, procurando divulgar a representação e a autorrepresenta-
ção desses povos no cinema e na imprensa:

é notória a situação difícil dos indígenas no país e nós, enquanto produtores culturais, temos compromisso com as minorias brasileiras. O projeto, por
meio do audiovisual, busca devolver a identidade aos índios e difundir as culturas destes povos para fazer do Brasil uma nação. [...] A capacidade da
elite brasileira em se indignar com essas questões é pequena. Nós temos uma grande missão pela frente (RODRIGUES, 2010).18

Em 2010, outro projeto também possibilitou a continuidade da realização das oficinas de formação em audiovisual promovidas pela ASCURI, o
Ava Marandu – Os Guarani Convidam. Esse projeto foi resultado de uma ação do Governo Federal brasileiro, que, em 2005, para fazer frente ao
alto índice de desnutrição entre crianças Kaiowá e Guarani, criou o Comitê Gestor de Política Indigenistas do Cone Sul de Mato Grosso do Sul,
que mantinha um diálogo permanente com as famílias indígenas e os diversos setores envolvidos na questão indígena, surgindo daí a demanda
por uma ação cultural dirigida aos Guarani e executada pelo Pontão de Cultura Guaikuru (FOSCACHES, 2015, p. 183-184). O projeto Ava Marandu

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foi criado visando a defesa dos direitos humanos e da sustentabilidade dos povos indígenas, buscando sensibilizar a população para as violações
dos direitos humanos que afligem os Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2010, p. 1). Podemos perceber essa
proposta na fala do fotógrafo Leonardo Prado, que trabalhou como professor no projeto:

Penso na fotografia como algo que possa contribuir com algumas mudanças muito importantes para o país. Quero que as imagens que faço sirvam
pra trazer reflexões sobre temas importantes. Temos quinhentos anos de história de uma estrutura fundiária excludente, de desrespeito à pluralidade
étnica e cultural. O país ignora a questão indígena e os problemas vindos da concentração fundiária. As informações nos são negadas pelas “gran-
des” empresas de comunicação e pelas escolas. Essa formação etnocêntrica que temos é cruel porque gera uma ignorância sobre temas urgentes e
acaba por permitir massacres silenciosos. Acho que a fotografia me permite trabalhar nesse sentido (PRADO, 2011).19

Dossiê
O Ava Marandu foi realizado durante o mês de janeiro de 2010. O projeto todo teve duração de seis meses, mas as oficinas foram realizadas apenas
em um mês, tendo como sede a cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Este evento contou com cerca de quinze mil participantes diretos

17 Inscrições abertas para Vídeo Índio Brasil 2008 que acontece em maio no MS. Disponível em: <http://www.opantaneiro.com.br/eventos/inscricoes-abertas-para-video-indio-brasil-2008-que-
-acontece-em-maio-n/69986/>. Acesso em: 13 mar. 2020.
18 Vídeo Índio Brasil está com data marcada para 2011. Disponível em: <https://terrasindigenas.org.br/pt-br/noticia/89927>. Acesso em: 13 mar. 2020. 42
19 Ava Marandu – Os Guarani Convidam. Disponível em: <https://www.brasilcultura.com.br/menu-de-navegacao/antropologia/ava-marandu-os-guarani-convidam/ >. Acesso em: 20 mar. 2020.
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e sessenta mil participantes indiretos e foi um projeto desenvolvido pelo Pontão de Cultura Guaicuru. Foi coordenado pela atriz Andréa Freire20 e
seu marido Belchior Cabral21, com o apoio do MINC, por meio da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID/MinC) (FOSCACHES,
2015, p. 183-187). O Secretário da SID/MINC, Américo Córdula, ao realizar uma fala no evento, no momento da chegada dos Guarani e Kaiowá ao
Museu Dom Bosco, pontuou que:

[...] nós temos que afirmar e reafirmar todos os dias da importância de vocês aqui na nossa nação, na nossa identidade. Quando a gente desenhou
esse projeto a gente queria que esse protagonismo dos povos Guarani fosse de fato levado a cabo [...] (CÓRDULA. In. AVA MARANDU, 2010, 3’14 -
3’35’’).

No decorrer do Ava Marandu foram realizadas seis oficinas de audiovisual em aldeias indígenas, entre fevereiro e abril de 2010. Três dessas ofi-
cinas tiveram como coordenadores Ivan Molina e Gilmar Galache (GALACHE, 2017, p. 69). Ocorreram, ainda, oficinas de fotografias, concursos
sobre cultura e direitos humanos dos Guarani e sobre a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos dos Povos Indígenas, ações
culturais nas escolas, mostra de cinema Guarani, exposições, seminários, manifestações e shows, como a apresentação do grupo de rap indígena
Brô MC’s22 e de Milton Nascimento, em defesa da cultura e dos direitos do povo Guarani.23

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Na fala de Ismael Morel, professor de Educação Física na aldeia Amambaí, no documentário que registra as atividades desenvolvidas no Ava Ma-
randu, percebemos a expectativa dos indígenas da região em relação ao projeto:

este projeto vem de encontro com os anseios da juventude indígena que vem querendo em eras de globalização divulgar a cultura Guarani Kaiowá,
divulgar para o Brasil, para o mundo, até para as pessoas do próprio município que não conhecem a realidade, julgam, mas não participam, não sa-
bem como é a realidade. Então eu espero que a gente possa estar divulgando até na nossa comunidade a verdadeira face e toda a riqueza da cultura
Guarani Kaiowá. (MOREL, In. Projeto AVA MARANDU- Oficina Amambaí, 2010, 46’ - 1’28’’).

Dossiê
20 “Atriz, diretora, professora teatral e produtora cultural. Idealizou, coordenou e produziu mais de 50 projetos culturais de 1986 a 2020. Graduada em Interpretação Teatral pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO - 1989), pós-graduada em O Cômico e o Moderno pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ - 1992)” Cf. Marruá Arte e Cultura. Disponível
em: <http://www.marruaarteecultura.com.br/produtora>. Acesso em: 20 mar. 2020.
21 “Produtor e administrador cultural, diretor de produção. Idealiza, desenvolve e coordena projetos de teatro, música e cinema desde 1980. Foi assessor da diretoria da ANCINE/RJ (2008/ 2009),
consultor pleno do FAC/DF (2011/ 2013), secretário de cultura de Uruaçu/GO (2013/ 2015) e parecerista do Fundo de Arte e Cultura de Goiás (2019)”. Cf. Marruá Arte e Cultura. Disponível em:
<http://www.marruaarteecultura.com.br/produtora>. Acesso em: 20 mar. 2020.
22 O Brô MC’s é, conforme Corrêa (2017, p. 109-110), o primeiro grupo de rap indígena do Brasil, com letras que mesclam o português e o guarani. O grupo é composto por Bruno Veron, Clemerson
Batista, Kelvin Peixoto e Charles Peixoto, todos da Terra Indígena de Dourados, Mato Grosso do Sul. 43
23 Ava Marandu: Espetáculo reúne hip hop guarani e Milton Nascimento. <https://terrasindigenas.org.br/noticia/84942 > Acesso em 14 mar. 2020.
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Entretanto, o projeto não teve continuidade, pois, como apontam Foscaches e Urquiza (2015, p. 271), o crescimento dos partidos que defendem o
agronegócio em Mato Grosso do Sul tornou-se um impedimento para a realização de projetos em defesa dos direitos dos povos indígenas, fican-
do cada vez mais difícil a liberação de verbas para a realização desses eventos.24

3 Cinema Horizontal e autonomia

No começo de 2011, com a mudança de governo, a maneira de pensar a cultura no plano nacional já começou a se modificar e os projetos culturais
passaram a ficar escassos. Porém, ao mesmo tempo, foi um período de autorreflexão da ASCURI sobre os caminhos trilhados e os que viriam. As
experiências com o VIB e com o Ava Marandu e outras oficinas menores, trazem alguns questionamentos sobre a maneira como estavam sendo
desenvolvidas as oficinas de formação em audiovisual. Principalmente porque, como coloca Gilmar Galache (2017, p. 70), essas oficinas se reali-
zavam de modo provisório, em curtos períodos de tempo, sem oferecer o suporte necessário para a continuação das atividades nas aldeias.

No curta-metragem Jepea`yta - A Lenha Principal (2012), produzido neste período, com direção de Gilmar Galache e Nataly Foscaches25, depara-

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mo-nos com membros da ASCURI que refletem sobre a relação com esses projetos e o caminho a ser construído para a continuidade da ASCURI,
a partir de um olhar crítico e por meio da comparação com a busca pela lenha principal Kaiowá.

Para os Kaiowá, como Eliel Benites coloca, no filme Jepea’yta – A lenha principal (2012, 21’14’’- 21’26’’ ), há uma lenha considerada principal, a le-
nha grossa, isto é, a que continua mesmo depois que o fogo apaga, e a lenha fina, que ao acabar o fogo, já acaba a brasa. A busca por essa lenha
grossa tem sido cada vez mais difícil, em um território devastado pelo agronegócio, processo que ocorre de forma similar no campo da produção
audiovisual. Isso porque, as políticas públicas culturais voltadas para o fortalecimento do jeito de ser indígena estão desaparecendo. Os próprios
projetos que a ASCURI já participou são considerados lenha fraca, que em muito breve se apaga, apresentando algumas contradições que pre-
cisam ser superadas.

Dossiê
24 Os curta-metragens produzidos durante o Ava Marandu são: Kunumy Pepy (2010), Jerosy Puku (2010), Kaiowa Kuñatai (2010), Brô Mc`s (2010), Guerreiro Guarani (2010), Chamiri Jegua (2010),
Guapo’y, a árvore viajante (2010), Jakaira (2010), Jaguapiré na luta (2010) e Porahey (2010).
25 Doutora com título internacional em Estudos Latinoamericanos, com especialidade em antropologia, pela Universidad de Salamanca (2016), onde realizou pesquisa de campo em território
Guarani e Kaiowá, acompanhando a ASCURI e é neste contexto que participa da produção do curta Jepea`yta - A Lenha Principal (2012). Possui Mestrado em Estudos Latino-americanos com 44
especialidade em antropologia pela Universidad de Salamanca (2010) e graduação em jornalismo pela Universidade Católica Dom Bosco- UCDB (2007). Cf. LATTES, 2019.
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Uma dessas contradições consiste em seu caráter provisório, ligado à instabilidade que as políticas culturais carregam:

todos esses projetos que vêm eles só acendem uma luz para a gente, e é uma luz que só acende e se apaga, por que? Porque ele só dá um início, só
dá uma empolgação e depois frustra a gente. Ele ensina a gente a gostar, a gente a querer mais, a gente fica com vontade, para quê? Para depois a
gente ficar frustrado com tudo isso. [...] Que vontade a gente tem, a gente tem muita disposição, a gente já teve várias oficinas básicas, que ensinou
para a gente o que é básico. Então a gente já tem tudo isso, a gente não quer mais continuar nesse básico, lógico que a gente vai tentar disseminar
esse conhecimento que a gente já tem, mas a gente precisa levar isso a diante (ALCÂNTARA – realizadora Terena, In. Jepea`yta - A Lenha Principal,
2012, 13’01 - 13’24; 17’10’’- 17’31’’)

Outro aspecto está relacionado a uma visão genérica do indígena, que não reconhece nem considera as inúmeras diferenças existentes entre eles:

você coloca um projeto, mas não levando em consideração a especificidade, porque se lança um edital de projeto, por exemplo, lança para todas né e
o indígena tem que se adaptar a esse edital, muitas vezes não faz parte da sua realidade algumas exigências e fica difícil para a comunidade indígena
pegar esses projetos e fazer a sua realidade (BENITES, In. Jepea`yta - A Lenha Principal, 2012, 19’39’ - 20’10’’).

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Mas o que seria essa lenha? Como data deste mesmo período o processo de registro da ASCURI como associação (GALACHE, 2017, p. 74), po-
deríamos cogitar que sua lenha principal seria sua autonomia, a sua constituição enquanto associação para acessar de forma independente os
mecanismos de fomento e poder conduzir à sua maneira os seus projetos, na medida em que esses mecanismos geralmente chegam até eles
através de intermediários. Conforme Gilmar Galache (2019), quando são os não indígenas a frente deste processo, nem sempre o jeito de ser indí-
gena é respeitado no momento da produção e a divisão do trabalho, a hierarquia presente no cinema convencional acaba por se sobrepor:

quando o não indígena traz a ideia, parece que automaticamente a galera se posiciona numa situação que é acostumada, que é a de hierarquia, de
ter as figuras. Às vezes não é imposto, mas às vezes a galera já vai colocando, principalmente quando ele tem dinheiro. Geralmente o não indígena
quando chega com dinheiro num projeto grande, ele faz e acontece, tem tudo o que ele quiser. Então ele coloca quem ele quiser na sombra, quem ele
quiser no sol, ele é o dono da bola. Mas aí quando a gente chega com as oficinas do Ivan, com essa metodologia toda, entra o não indígena e entra

Dossiê
por outro caminho, ele começa a perceber, começa a trocar mais (GORGES, QUELUZ, 2019, p. 42).

Contudo, as adaptações que ela precisa realizar nessa busca pela consolidação de uma aliança com os modos de operação das tecnologias não
indígenas, muitas vezes acabam engessando suas práticas fílmicas. Uma dessas limitações se encontra em sua estrutura enquanto associação:

uma associação parece assim, na cidade, que ela foi feita para representar as pessoas juridicamente, e para dar assistência médica, parece que é só 45
isso. Porque quando você a pega e transforma numa associação de audiovisual, ela não tem mobilidade nenhuma, é extremamente amarrada, uma
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burocracia feia e tudo isso vai engessando essas possibilidades. Você vai fazer o FIDA, mas aí vai conseguir o dinheiro para a alimentação, ele tem
que passar pela ASCURI, e a conta da ASCURI é muito complicado para você tirar o dinheiro de lá, e acaba que que você olha e fala, não, não tem
como. Ainda a gente está buscando um jeito de transpor isso, de enquadrar outros caminhos para conseguir trabalhar melhor, porque qualquer coisa
que a gente faz via ASCURI é extremamente amarrado. Você tem que pagar nota, tem que ir no contador, é horrível. Não é legal, é triste. E a gente não
tinha tanta burocracia, éramos só uma associação com o CNPJ, mas depois tivemos que abrir uma conta. A gente tem um site que paga trezentos
reais por ano e é horrível, acaba que você vai se definhando nesse meio burocrático e não anima para fazer outras coisas. Isso era uma coisa que a
gente tinha no começo. A gente não tinha isso. A gente era tudo doido. A gente ia, tinha vontade, mas a coisa ficou tão amarrada (GORGES, QUELUZ,
2019, p. 45).

Pensando esse processo a partir das reflexões de Eliane Potiguara, escritora, ativista e professora indígena, podemos compreendê-lo, ainda, den-
tro do marco de “dar voz” aos povos indígenas:

a sociedade segregadora ainda insiste em querer “DAR VOZ” aos povos indígenas com suas boas intenções, como se dessem espelhinhos colo-
nizadores, nos seus projetos culturais. Nós, indígenas conquistamos com luta e resistência as NOSSAS VOZES. A realização de projetos feitos por
intelectuais não indígenas é louvável, mas parem de querer continuar a dar-nos coisas, filosofias, conceitos, frases montadas como se foramos [sic]
menores de idade, com atitudes paternalizadoras que é uma forma de racismo escamoteado. A nossa voz, ninguém pode dar. Nós a conquistamos,

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nós a arrancamos do povo opressor com o sangue e luta de nossos ancestrais (POTIGUARA, 2017).26

Em certo sentido, o que presenciamos neste processo é o que Ailton Krenak (2007, p. 163-164) denomina de “eterno retorno do encontro”, pois ele
se mostra como um constante esforço de comunicação com a sociedade não indígena que a ASCURI vem realizando por meio de suas produ-
ções, dentro de um movimento que já vem se desenhando há mais de quinhentos anos. É um esforço realizado, com mais ênfase, apenas por um
dos lados, pois as políticas culturais, apesar de abrirem espaço para os povos indígenas começarem a ocupar as telas com o seu olhar, ainda se
comportam, muitas vezes a partir de uma visão genérica do indígena, desvelando os limites da própria noção de cultura partilhada pelos órgãos
estatais.

Dossiê
Considerações Finais

A partir das experiências da ASCURI com o VIB e o Ava Marandu verificamos como ela reconhece a importância das políticas culturais, suas con-
tribuições para o seu processo de constituição, ao mesmo tempo em que realiza uma crítica a elas ao revelar suas contradições. Isso porque, a
46
26 Disponível em: < https://m.facebook.com/elianepotiguaraescritora/posts/2432958733468866 >. Acesso em: 20 mar. 2020.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 31-50 | Jan - Jul | 2021

proposta de produção fílmica da ASCURI que se constrói a partir de suas experiências com o Cine Sin Fronteras, que a instiga a fazer um cinema
ligado ao jeito de ser indígena, fortalecendo modos de fazer que se pautam na horizontalidade, na prática do mutirão, não consegue se efetivar
por completo na medida em que é limitado pela lógica dessas políticas culturais. Neste sentido, vemos como a proposta de trazer para o campo
do cinema narrativas plurais demanda uma autonomia que precisa começar a ser repensada na estrutura desses editais para que superem esse
modelo de DAR voz aos povos indígenas.

Enquanto isso, no contexto atual, com a inexistência ainda maior de mecanismos de fomento para a continuidade das oficinas de formação, a
ASCURI novamente passa por um processo de autorreflexão e reconstituição em que novos caminhos vêm sendo traçados, como a busca por
acessar novos mecanismos de fomento, como o crowdfunding (GORGES, QUELUZ, 2019, p. 38) para além da dependência das políticas públicas
culturais. Quem sabe esteja ocorrendo uma nova busca pela lenha principal, tendo em vista que o caminho percorrido por ela para se tornar
uma Associação e acessar os mecanismo de fomento não foi suficiente para alcançar sua autonomia financeira, para organizar suas oficinas de
formação a partir de sua própria visão de mundo, escapando de uma divisão do trabalho, de uma limitação pelo tempo e lucro, para que possa
desenvolver suas práticas a partir de seu próprio jeito de ensinar.

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so em: 13 mar. 2020.

Mutirão cinema: the paths between a hierarchical cinema and a horizontal cinema
Abstract: ASCURI is a Cultural Association of Indigenous Videomakers in Mato Grosso do Sul, composed of Terena, Guarani and
Kaiowá indigenous. It was founded in 2008 and since then it has been making films and audiovisual training workshops in indigenous
villages. The purpose of this article is to discuss on the training workshops in which ASCURI members participated in their constitution
period (2008-2010). In this way, a problematization of cultural policies will be carried out, alongside a discussion about the proposal of
horizontality in the production process, which is defended by ASCURI as a way of teaching and producing films.

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Keywords: ASCURI; Horizontality; Autonomy; Cultural Politics.

Recebido em 29 de julho de 2020

Aprovado em 31 de março de 2021

Dossiê
50
> Transmitindo a palavra por imagem:
um projeto Mbya para o cinema
Resumo >
Neste artigo objetivo aprofundar a noção de cinema como re-
Aline Moschen
curso político e categoria indígena entre jovens do povo Gua- Doutoranda em Antropologia Social
rani Mbya que estão situados em Aracruz, no estado do Espí-
rito Santo, no Brasil. A experiência etnográfica que dá origem Universidade Federal do Rio de
ao tema ocorreu durante a elaboração de um projeto de cine- Janeiro
ma indígena, idealizado por um grupo de moradores da aldeia
Boa Esperança, a quem auxiliei na escrita e nas relações com
a Secretaria da Cultura do Estado do Espírito Santo. A pes-
quisa trata do cinema como ferramenta de articulação entre
indígenas e não-indígenas, compreendendo a atual estratégia
de visibilidade Mbya no que diz respeito ao engajamento de
jovens lideranças indígenas na direção cinematográfica. Palavras-Chave >
Cinema Indígena; Cinema Guarani Mbya; Projeto Indí-
gena.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 51-73 | Jan - Jul | 2021

> Transmitindo a palavra por imagem: Um projeto Mbya


para o cinema
Aline Moschen
> ama.moschen@gmail.com
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Introdução

Em 2017, estávamos eu e alguns dos jovens que, à época, integravam o grupo Ayvú Baraeté em sua fase inicial, percorrendo a aldeia Boa Espe-

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rança1 que está situada nas terras Guarani de Aracruz, no litoral norte do Espírito Santo. O objetivo era coletar a assinatura dos moradores, em
declaração de anuência a um projeto de cinema indígena no local.

A proposta que nos movia até as portas das casas era produzir vídeos de entrevistas com os txamõi, categoria guarani utilizada para designar os
homens mais velhos, termo que está relacionado à concepção de “avô” ou ainda a uma posição hierárquica em um grupo de parentesco. A temá-
tica foi eleita pelos jovens e, de um modo geral, buscava produzir registros sobre o nhande reko, o que os integrantes do grupo traduziram a mim
como “a nossa forma de ser”.

A declaração que buscávamos preencher exigia um número mínimo de vinte assinaturas de moradores acompanhadas dos dados de RG e CPF,

Dossiê
como condição de inscrição do projeto no “Edital 012/2017 Diversidade Cultural Capixaba”, destinado para povos indígenas, comunidades tradi-
cionais, pessoas negras e pessoas LGBTQ+. Trata-se de um edital promovido pela Secretaria da Cultura do Estado do Espírito Santo, ao qual se
pleiteava a captação de recursos para a realização do projeto de cinema.

1 Boa Esperança é a mais antiga das seis aldeias guarani que são compartilhadas entre os subgrupos Mbya e Nhandeva no município de Aracruz, onde as aldeias guarani estão geograficamente 52
próximas das aldeias do povo Tupinikim.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 51-73 | Jan - Jul | 2021

No documento era preciso declarar que os proponentes eram parte da comunidade, reconhecidos como membros da aldeia e que os demais
estavam de acordo com a realização do projeto em Boa Esperança. À parte a dificuldade de alguns moradores mais velhos em encontrar os seus
documentos de RG e CPF, e da desconfiança sobre a obrigatoriedade de “ter de assinar papéis”, não houve problemas em conseguir o número de
assinaturas e de apoiadores necessários.

Exceto uma senhora, muito respeitada e reconhecida por ser uma antiga benzedeira, que se irritou com a proposta, recusando-se a assinar o
documento. Quando abordada pelo grupo de jovens, disse rispidamente algumas palavras no idioma guarani e, depois, dirigiu-se a mim em
português para questionar: “Por que estão fazendo projetos de vídeo? Por que acham que o vídeo é importante? O projeto que precisa ser feito
aqui é a construção da Opy”. A Opy é uma estrutura central nas aldeias Guarani. Frequentemente traduzida como “casa de reza” em etnografias
clássicas, é um lugar onde os moradores se reúnem todas as noites para vocalizar as canções espirituais, onde circulam as palavras de conselhos
dos mais velhos, onde são explícitas as diferenças de gênero por meio de rituais xamânicos e onde são realizados eventos que reúnem membros
de outras aldeias, articulando redes de parentesco dentro e fora do território. É constituída pela participação exclusiva de indígenas, salvo em
casos excepcionais da presença de aliados não-indígenas e de pesquisadores autorizados. Karai Mirim, à época com vinte e um anos de idade, e

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representante do grupo Ayvú Baraeté, explicou à benzedeira que uma coisa não excluía a outra. O projeto da Opy poderia ser inscrito mais tarde, o
que realmente veio a ser cumprido no ano seguinte. Ela então concordou em assinar o documento. Esse encontro e os questionamentos lançados
pela senhora que, de primeiro não aderiu à ideia do projeto, chamaram a minha atenção para as diferenças geracionais dentro das terras guarani,
especialmente no que diz respeito às demandas, interesses e eleição de prioridades.

Em vez de reforçar hierarquias nas prioridades de jovens e adultos, o que por vezes é praticado no senso comum, foram os interlocutores com
quem eu dialoguei que mostraram, com as suas demandas, outras análises possíveis para além dos discursos que destinam aos jovens o lugar de
“não engajamento” em suas comunidades. Eu pude então romper com as frequentes acusações de “desinteresse” pelo interesse dos mais velhos,
referidas às novas gerações indígenas.

Dossiê
Ao acompanhar as dinâmicas da produção de vídeos entre o grupo Ayvú Baraeté, eu pude perceber que a reinvindicação da benzedeira sobre a
construção da Opy frente à demanda de um projeto idealizado por jovens é um ponto crucial em minha experiência etnográfica, revelador de sen-
tidos para o cinema como categoria indígena. Se houve nítidas disparidades nas prioridades colocadas, nem sempre os objetivos apresentaram
incontornáveis distâncias. Não demorei muito para entender que, assim como na Opy, os vídeos também estavam centrados na circulação da
palavra e dos conselhos, articulando redes de parentesco e afinidade dentro e fora das aldeias. 53
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Este artigo é, portanto, uma reflexão sobre as atuais formas de engajamento de jovens indígenas na aldeia Boa Esperança pela via da direção
cinematográfica. Nele, eu objetivo explicitar a estratégia política construída na incorporação de uma tecnologia não-indígena, em relação com os
espaços internos e externos à aldeia.

Refiro-me aos espaços internos como os lugares que compreendem as relações entre os moradores e aos espaços externos como os locais onde
se estabelecem as relações com não-indígenas e indígenas de outros territórios, no que excedem os limites geográficos dessa terra. Considero
também como externos os espaços virtuais mediados pela produção de visibilidade indígena por imagens em vídeo. De um modo geral, o que eu
chamo de espaços internos está ligado à vida privada e de espaços externos à vida pública dos moradores.

O intuito não é abordar as concepções de imagem no pensamento indígena, como muito bem fez Peter Gow (1995), e como eu tentei fazer em
texto anterior sobre a produção de imagens e memória Guarani Mbya. Nas páginas seguintes pretendo descrever brevemente como esse tema
despontou em campo e tornou possível este artigo. Irei apresentar o histórico das relações que introduzem a produção de cinema indígena em
Boa Esperança, para tratar da incorporação dessa tecnologia como recurso político entre os jovens e relacioná-la com a centralidade da fala na
transmissão de saberes - o que se apresentou como a principal característica dos vídeos produzidos pelos jovens do grupo Ayvú Baraeté.

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1 Caminhando entre demandas e recusas

Durante a minha entrada em campo na aldeia Boa Esperança o diálogo sobre o projeto de cinema com os moradores mais jovens dessa aldeia
abriu a possibilidade para o aprofundamento das relações, que tem como premissas os movimentos de reciprocidade e produção de vínculos
de confiança. Esses princípios foram ensinados a mim pelos moradores, que de início me questionavam sempre sobre as minhas intenções e o
legado que eu deixaria para a comunidade.

A negociação sobre o que seria um legado do interesse indígena não foi explícita. Construiu-se silenciosamente, nos momentos em que eu tateava

Dossiê
como poderia ser útil a eles e mapeava as possíveis demandas. Mais tarde entendi que o caminho que eu trilhei entre as demandas e recusas de
uma comunidade majoritariamente mbya não é incomum, conforme encontrei dinâmicas semelhantes sobre métodos para estreitar relações nos
relatos de etnógrafos que trabalharam com os Mbya em diferentes locais. Assim como Elizabeth Pissolato (2007) no estado do Rio de Janeiro, e
Lucas Keese dos Santos (2017) em São Paulo, grupos com os quais os moradores de Boa Esperança afirmaram ter uma relação direta de paren-
tesco.
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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 51-73 | Jan - Jul | 2021

Estive mais próxima dos jovens que se identificavam como Mbya, e quando me propus a auxiliá-los na escrita do projeto de cinema assumi o papel
de mitigar dificuldades com problemas burocráticos, em um exercício voluntário. Voluntário quando considero que a iniciativa de ceder disponibi-
lidade para atuar sobre essa demanda esteve ligada ao que eu poderia oferecer, de acordo com as minhas aptidões pessoais como antropóloga
e também produtora cultural.

Utilizo o termo voluntário noutro sentido do que fazem os trabalhos de ajuda missionária, que agem sem a necessária correspondência com as
demandas locais e o protagonismo das ações indígenas, sendo frequentemente recusados pelos Mbya, ainda que de modo não explícito. Logo
nos meses iniciais em campo uma das primeiras coisas que chamou a minha atenção foi a habilidade dos Mbya em dispensar os missionários.
Mesmo que não os hostilizassem, nunca atendiam aos interesses dos insistentes visitantes.

A despeito da existência da rodovia que corta as terras guarani interligando-as ao centro urbano de Aracruz, a recusa ao universo não-indígena
que se oferece “voluntariamente” aos moradores das aldeias é uma característica acentuada. A limitação do aprofundamento das relações com
não-indígenas é uma característica Mbya, e a expressão máxima desse limite consiste na proibição do casamento com os juruá, termo utilizado
para designar os não-indígenas.

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No entanto, os modos de recusa geralmente não adotam formas tão objetivas quanto no caso da proibição do casamento com os juruá, o que
também não é sempre adotado por todos os membros das aldeias, sendo um tema de frequente discordância entre eles. Percebendo que as dinâ-
micas da recusa estavam no comportamento e não na fala dos moradores, que permitiam a estadia de estranhos sem incluí-los na vida cotidiana,
o aprofundamento da pesquisa que eu pretendia fazer ocorreu a partir da demonstração do interesse indígena em uma demanda que foi por eles
evocada, a direção cinematográfica.

Rita Segato (2013) define o mapeamento das demandas em campo como “escuta etnográfica”, o que ela defende como um método de análise. Na
concepção da autora, uma antropologia que ocorre por demanda é ao mesmo tempo um procedimento em campo e uma posição política a ser
adotada por quem pesquisa. O que não se traduz, grosso modo, como “atender a todas as demandas”, mas em entender a demanda como reflexão

Dossiê
sobre a experiência concreta da realidade de quem seria, noutra abordagem, o “objeto” de estudo.

Adotando esse método de análise, eu entendi que a principal demanda colocada pelos interlocutores junto de quem trabalhei não consiste no
projeto de cinema indígena que aqui descrevo em si. Mas sim em um projeto indígena para o cinema, como uma reflexão dos moradores de Boa
Esperança sobre as estratégias de relações políticas na atualidade. E de uma inflexão que fizeram sobre a produção cinematográfica introduzida
por não-indígenas em seu território, sendo este o cerne da questão sobre a qual eu dedico o meu interesse.
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As categorias de demanda e recusa mobilizadas neste artigo não se apresentam como oposição e nem mesmo como posições fixas, mas como
movimentos políticos que constantemente desestabilizam um ao outro entre os Mbya, na demarcação dos limites de participação dos não-
indígenas na vida interna das aldeias, ora cedendo e ora restringindo espaços a eles. O mesmo também acontece no âmbito do cinema, tornando
necessária maior atenção sobre as escolhas de incorporação e subversão das técnicas, ferramentas e alianças com não-indígenas para a produ-
ção cinematográfica.

Lucas Keese dos Santos (2017) usa o termo “esquiva” para descrever um modo abrangente de ação política entre os Mbya, em analogia a um
movimento de defesa presente na dança do xondaro, o guerreiro guarani. Como movimento, a esquiva não é completamente o ataque e nem a
evitação do mesmo, o que coloco em paralelo com os movimentos de demanda e recusa, como um modo de cambiar diferentes posições em
equilíbrio. A esquiva como ação política é uma forma de agir que examina a ação do Outro, nesse caso um adversário, onde se absorve parte do
movimento alheio para que seja subvertido.

No mesmo sentido, a concepção de cinema que aqui se apresenta como recurso político adotado pelos Mbya é uma estratégia de incorporação
de uma tecnologia não-indígena por meio da qual se torna possível absorver parcialmente as técnicas alheias para subverte-las, cambiando a

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demanda e a recusa simultaneamente.

A subversão emerge nos limites da incorporação, como um exercício de elaboração da alteridade e da fabricação de uma interpretação própria
da linguagem do cinema. Ou, ainda como na esquiva, “como um modo de incorporação da alteridade diferenciando-se dela, uma incorporação
através da reconfiguração das distâncias-diferenças” (KEESE DOS SANTOS, 2017, p. 29).

2 Os projetos dos juruá

Quando eu cheguei às terras Guarani em Aracruz fiquei inicialmente hospedada na Aldeia Três Palmeiras, o que é um roteiro comum para estran-

Dossiê
geiros. Só depois pude entender a dinâmica da circulação dos não-indígenas no território, de acordo com os espaços que se reservam ou não.

No período em que estive em Três Palmeiras existiam alguns lugares reservados aos juruá, conforme indicava a existência de um pequeno centro
cultural com a exposição de fotografias e artesanatos disponíveis para a venda. Em Boa Esperança os limites de circulação dos não-indígenas
estavam restritos à uma área próxima da entrada da aldeia, onde os artesanatos eram comercializados em uma das margens da rodovia ES-010.
Apresentando o interesse em fazer a pesquisa, com o passar do tempo eu pude não ser mais confundida com uma turista e passei a circular pelas 56
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aldeias no entorno de Três Palmeiras, movendo o meu foco para Boa Esperança. Nas primeiras conversas que tive com os moradores mais antigos
eu ouvi principalmente sobre o conflito2 ocorrido aproximadamente doze anos antes, no período dos anos 2005 e 2006.

O conflito ocorreu durante a remoção dos moradores com uso da força policial, no local que posteriormente foi constituído como Aldeia Olho
D’água. Todos os relatos que ouvi referiam-se ao uso de armas e de tratores cedidos à Polícia Federal pela empresa Aracruz Celulose para a des-
truição das cabanas3 de habitação. Wherá, atualmente cacique da Aldeia Olho D’água, mostrou-me a fotografia de uma cabana desmanchada na
data de 20 de janeiro de 2006.

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Fotografia 1 - Cabana de palha de naia, desmanchada durante o conflito na Aldeia Olho D’água. (Acervo de Wherá, 2006).

2 Uma nota emitida pelo CIMI (2005) publicou relatos dos moradores das terras guarani em Aracruz, informando que o conflito ocorreu porque eles reivindicavam a retomada dos hectares su-
primidos em 1988, sob a ameaça da perda integral das terras durante o processo de demarcação. Inicialmente, a justiça concedeu a posse das terras em disputa à empresa Aracruz Celulose, hoje
denominada FIBRIA. Após a repercussão do conflito, o processo foi revisado.
3 Embora não tenha sido encontrado em outras literaturas, “cabana” é um termo que os moradores das terras guarani em Aracruz utilizam para designar, ao mesmo tempo, as casas e os espaços 57
cobertos com telhados de palha de naia e piaçava nas aldeias.
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A divulgação do conflito gerou grande repercussão nacional, e trouxe muitos efeitos como consequência. De um lado, parte das terras foi reinte-
grada à Aldeia Olho D’água e, de outro, as aldeias do território passaram a ser alvo da realização de projetos coordenados por não-indígenas. Os
moradores encontravam então “outro tipo de brancos”, que dessa vez se apresentavam como pessoas preocupadas em garantir os direitos indí-
genas. O interesse da população jovem pelo cinema ocorreu a partir do contato com esses projetos não-indígenas. Os meninos mais novos das
aldeias, com idades entre sete a dezessete anos, foram os que me apresentaram ao mundo do cinema indígena, tornando-se as pessoas com
quem eu conversei por mais tempo. Com frequência, eles me convidavam a participar de sessões onde eu pude assistir filmes como “Tava, a casa
de pedra” (2012), dirigido por Vincent Carelli, Patrícia Ferreira, Ariel Duarte Ortega e Ernesto Ignacio de Carvalho, a respeito das interpretações
míticas dos Mbya contemporâneos sobre as missões jesuíticas. Aparentemente era esse o filme favorito da maioria, dadas às inúmeras vezes que
assistimos.

O contato deles com a produção cinematográfica já havia se iniciado há algum tempo antes da minha chegada, principalmente pelo media-me-
tragem “Quando a noite apareceu” (2010) de Alexandre Perim e pelo curta-metragem “Reikwaapa” (2013) dirigido por Ricardo Sá em parceria
com Werá Djekupé. A seguir, eu apresentarei as formas de participação dos moradores nesses dois filmes, para falar do processo introdutório da
produção cinematográfica no território guarani em Aracruz.

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Figura 2 - Sessão de cinema na aldeia Três Palmeiras (MOSCHEN, Aline, 2017). 58
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“Quando a noite apareceu” parte de uma proposta de direção não-indígena e elege como protagonista uma atriz também não-indígena em re-
presentação de uma mulher Mbya. Para a eleição do papel masculino de protagonista e dos coadjuvantes, a equipe de produção do filme adotou
o método do teste de elenco. Trata-se de uma ficção em representação de um mito. Contudo, esse filme integra um projeto mais amplo de inter-
venção no território, conforme destaca uma matéria publicada no jornal “A Gazeta”:

A produtora também ressalta o legado cultural deixado para a região. “A aldeia temática criada para o filme [Quando a noite apareceu], a Tekoa Mi-
rim, foi preservada. Agora, atua como centro de referência para o turismo étnico”, comemora. O local está sendo usado para a venda de artesanatos,
apresentações típicas e outras atividades que contribuam para a preservação da cultura indígena (CURTA CAPIXABA SERÁ EXIBIDO EM CANNES.
A Gazeta, Vitória, 29/04/2011).

A expressão “legado cultural” aparece na fala publicada pelo jornal desassociada de qualquer reflexão sobre os possíveis impactos da constru-
ção de uma aldeia cenográfica em território indígena. Sendo uma aldeia fictícia que foi construída para o filme “Quando a noite apareceu”, com
cabanas em material de piaçava, ela remonta um tempo e um modo de habitação diferente do atual, em que a maior parte das casas das aldeias
do território é feita de pau-a-pique.

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Nomeada como Tekoá Mirim, a aldeia cenográfica é anexa à Aldeia Piraqueaçú (uma das seis aldeias das terras guarani em Aracruz), e tem um
cacique exclusivamente designado para a manutenção e o controle de visitas. Há um plano de visitação no site da Prefeitura Municipal de Aracruz,
que há alguns anos fomenta o “turismo étnico” nas terras guarani. Atualmente, ela é utilizada para receber turistas desejosos em aprender sobre
a cultura de outrem e celebrar eventos festivos do calendário não-indígena, tal como “o dia do índio”. Nesses eventos é possível que os indígenas
realizem a venda de artesanatos para a garantia de renda.

É necessário ponderar que se a estrutura cenográfica permaneceu após a finalização do filme foi pela concessão e o interesse indígena. Positivas
ou não, as avaliações dos moradores das terras guarani não são consensuais a esse respeito. Certa vez, em uma avaliação positiva do espaço, ouvi
de um morador que era bom ter a aldeia cenográfica destacada do conjunto das outras, pois mantinha os juruá sem que circulassem por entre as

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suas casas.

A construção de cabanas cenográficas para a realização de um filme após cerca de quatro anos da derrubada das cabanas tradicionais de habita-
ção durante o conflito na aldeia vizinha demonstra a ambiguidade na qual os Guarani estão inseridos em Aracruz, na proximidade territorial com
os não-indígenas. Assim, os movimentos cambiantes que operam entre a demanda e a recusa não podem ser pensados como um modo de ação
política isolada do contexto. 59
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Afinal, os não-indígenas também operam movimentos cambiantes e, por vezes, dissonantes no que diz respeito aos indígenas, ora reconhecendo
os seus direitos e ora agindo de modo prejudicial a eles, mesmo quando as ações partem de aliados. Por muito tempo, quase em unanimidade, os
projetos pensados por não-indígenas para os indígenas, apesar de os incluírem, nunca lhes concederam lugar central na tomada das decisões.
Considerado isso, a problemática consiste na pergunta: de quem parte a demanda?

O que proponho com essa pergunta é um deslocamento. Não é o espaço da aldeia cenográfica que deve ser o centro dessa análise, o que deve
ser questionado e colocado como equívoco são os interesses dos não-indígenas em “conhecer” ou “preservar” modos de vida indígenas, quando
primeiro não tomam conhecimento das demandas dessas populações. À parte os questionamentos sobre a sua permanência, a aldeia cenográ-
fica remanescente de “Quando a noite apareceu” continuou a ser utilizada para a gravação de outros filmes.“Reikwaapa” é o segundo filme sobre
o qual os interlocutores me falaram que foi gravado no local e o primeiro sobre o qual eu tive a informação da participação dos moradores do
território indígena na direção cinematográfica.

É um curta-metragem de direção compartilhada, que se divide em cenas ficcionais (marcando a direção indígena) e documentais (marcando a di-
reção não-indígena). Traduzido como “Ritos de Passagem Guarani” na legenda de subtítulo, versa sobre os rituais pelos quais meninos e meninas

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precisam passar quando atingem a puberdade.

Na primeira cena de “Reikwaapa” a personagem de um xamã realiza o ritual de furação do lábio de um jovem. Diz a ele que “esta sabedoria sempre
foi transmitida, você deve escutar os mais velhos para ser um bom jovem” (00:47 - 00:49), e explica “você furou o beiço para falar menos e escutar
mais” (01:01 – 01:03). Após perfurar a boca e cobrir o corpo dele com pintura de jenipapo, completa “para se tornar um caçador, é que você passou
por esse ritual” (02:05 – 02:10).

Noutra cena, uma reunião entre mulheres acontece dentro da Opy onde uma anciã fala às jovens que “para nós, mulheres guarani, esse rito de
passagem é muito mais difícil do que para os homens. Muitas coisas más nos observam nesse momento” (03:27 – 03:40), depois exemplifica “são
espíritos da floresta, estes que assobiam por aí” (03:40 -03:44).

Dossiê
Em seguida, o ritual da primeira menstruação é encenado. Dentro de uma cabana, uma jovem escuta a sua mãe e a avó sobre os cuidados com o
corpo e os seus fluídos. Enquanto ajudam a menina a se lavar do sangue, as mulheres mais velhas explicam os procedimentos que devem ser ado-
tados no rito, que são o corte do cabelo e a reclusão por trinta dias sob uma tarimba4. Elas também orientam a jovem sobre os cuidados com a casa
e com o futuro marido. O plano migra para um quadro documental, onde a família de uma jovem mbya é entrevistada. Respondendo ao diretor, o
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4 A tarimba é um estrado de madeira suspenso, utilizado para repouso.
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pai da menina diz que “algumas meninas já não contam mais quando ficam menstruadas. Antigamente ficavam um mês na tarimba, hoje não ficam
mais” (06:50 – 07:02), e a mãe complementa “por causa da escola. Quem está estudando na escola já não fica mais esse tempo” (07:03 - 07:09).

Nas entrevistas seguintes que são direcionadas aos mais novos o diretor pergunta se eles acham importante manter as tradições. Sem pesar,
uma menina responde que “as coisas já não são mais como antigamente” (08:32 - 08:34) e, cabisbaixo, um menino diz que “a cidade chegou
perto demais da aldeia, mudando o pensamento dos jovens indígenas” (09:00 - 09:09). Nesse ponto, as diferentes expressões de gênero sobre as
perspectivas temporais e as transformações nas tradições Mbya chamam a atenção.

3 Direção Indígena no Cinema

Numa conferência online mediada por Vincent Carelli e Patrícia Monte-Mór na data de 17 de junho de 2020, Alberto Alvares do povo Guarani
Nhandeva, falou sobre o seu primeiro contato com o cinema pela atuação em “Quando a noite apareceu”, no tempo em que ele morou na aldeia
Boa Esperança. Ao interpretar a personagem Abarayra, ele afirma que a experiência como ator despertou o seu interesse pela direção cinemato-

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gráfica, tornando-se depois um cineasta reconhecido, de carreira autodidata.

Na conferência, Alberto se refere à direção de imagens cinematográficas como uma atividade de caça. “Filmar é ser um caçador da nossa própria
história. O que a gente precisa caçar para colocar no filme? Eu faço filmes com ou sem recurso, porque se vejo o meu equipamento parado é como
se o meu cachorro estivesse doente, sem caçar” (fala em conferência online, 2020).

A fala dele fez com que eu retomasse os meus diários de campo, onde eu escrevi que “os Guarani são tradicionalmente caçadores, mas em Ara-
cruz estão inseridos em contexto industrial, cercados por um deserto verde de eucaliptos. Diante da não soberania alimentar, a maioria dos mo-
radores das aldeias recorre ao Programa Bolsa Família” (fragmento de diário de campo, 2017).

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A revisitação a esse registro me levou a pensar que a câmera como “um cão de caça” pode ser entendida nesse contexto como um instrumento
de predação metafórica em um ambiente depredado, para além das interpretações possíveis já levantadas por outros cineastas indígenas5 que
apresentaram mais imagens e analogias sobre o equipamento.

5 A exemplo de outras interpretações sobre a câmera, no filme “Os seres da mata e sua vida como pessoas (Nhandé va’e kue meme’)” (2020) de Rafael Devos, Vhera Poty compara a câmera a 61
uma criança, já que ela está em posição análoga a de quem escuta os mais velhos.
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À exceção da regra na aldeia Boa Esperança, no que eu acompanhei da produção de vídeos entre os interlocutores com quem eu continuei a
manter o contato, apenas uma jovem do gênero feminino participou das atividades de direção das filmagens no projeto de cinema indígena que
foi desenvolvido pelo grupo Ayvú Baraeté - o que é um número reduzido, em comparação à quantidade de membros do gênero masculino que o
compuseram.

Tratei dessa informação como um dado etnográfico ainda a ser aprofundado, cabendo refletir sobre as diferenças de gênero nos espaços que as
mulheres e os homens ocupavam na aldeia Boa Esperança, naquele período. Em contraponto, eu ressalto que essa aldeia foi fundada pela lide-
rança feminina de Tatatin Ywá Reté e que, após a sua morte, até aquele ano somente os seus descendentes do gênero masculino ocupavam os
lugares de liderança nessa e nas aldeias vizinhas que integram o território guarani em Aracruz.

No filme “Reikwaapa” vê-se o retrato dos tempos antigos em que a tradição da designação feminina era ligada à vida privada na cena em que a
jovem que menstruou pela primeira vez é orientada sobre os cuidados com o corpo, o marido e a casa, o que integra a dimensão do que eu chamei
de “espaços internos” da aldeia, noutro item. Na direção oposta, como metáfora da caça, a direção cinematográfica está relacionada aos espaços

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externos à esfera doméstica e, como recurso político, aos espaços externos da aldeia.

Todavia, parafraseando a jovem estudante que foi entrevistada no mesmo filme, “as coisas já não são mais como antigamente”, e fazem com que
os dados sobre a participação das mulheres indígenas na direção cinematográfica precisem ser verificados periodicamente. Eu considero ainda o
fato de que em outros territórios guarani existe uma presença expressiva de mulheres indígenas6 na direção cinematográfica e que, apesar dessa
não ter sido uma realidade prevalecente na terra indígena que eu estou me referindo, provavelmente irá mudar.

Eu pretendo aprofundar o argumento da relação entre a iniciação nas filmagens e a iniciação nas articulações políticas entre os jovens Mbya nou-
tro tópico deste artigo, em que eu tratarei do tema da formação de lideranças indígenas por meio da direção cinematográfica. Voltando aos dois
filmes que introduziram a produção de cinema em Boa Esperança, lembro-me de que foram apresentados a mim pelos moradores mais jovens

Dossiê
com o mesmo orgulho. Eles sempre estavam em êxtase quando falavam sobre o assunto, em reconhecimento do trabalho dos seus parentes nas
filmagens. Foi por meio dessas conversas que se revelaram os desejos de ter uma ilha de edição.

6 Patrícia Ferreira Pará Yxapy (Mbya-Guarani), Graciela Guarani (Guarani Kaiowá) e Michely Fernandes (Guarani Kaiowá) são mulheres apontadas por Sophia Pinheiro (2020) como grandes 62
representantes do povo Guarani na direção cinematográfica, no artigo “A imagem como arma – o cinema feito por mulheres indígenas”.
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Diante da demanda pelo protagonismo na direção e edição das imagens, eu mencionei a existência do edital público e destinado às populações
indígenas na Secretaria da Cultura do Estado. Interessados, perguntaram-me como fazer. Disse que eu poderia imprimir os formulários disponíveis
no site e levar até eles.

Alguns perderam o interesse ao longo do caminho, e outros permanecem vinculados ao projeto até o presente. O grupo Ayvú Baraeté foi criação
de Karai Mirim, que assumiu a liderança articulando a participação de outros moradores, nem sempre os mesmos. Por vezes a formação do grupo
contou com parentes de outras aldeias que passavam períodos por lá. Não posso falar então de um grupo fixo, mas com inúmeras variações e
diferentes níveis de participação, vindo a mais tarde envolver membros das aldeias Tupinikim, vizinhas no território indígena de Aracruz.

4 Pensando em guarani, escrevendo em português. Notas de tradução para a língua do Estado

Sempre que eu me reuni com o grupo para a escrita do projeto levava comigo os formulários impressos do edital, que nós líamos em conjunto. O
exercício de tradução dos termos do Estado foi necessário. Por exemplo, o que significava a pergunta “qual o efeito multiplicador do projeto?”, eu

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pude responder com base no que tinha aprendido com as minhas experiências em produção cultural.

Na escrita também foi notável a dificuldade do grupo em chegar a um consenso sobre a grafia das palavras em guarani já que, apesar da existên-
cia de inúmeras versões de dicionários do idioma, “não há norma ortográfica para o guarani mbya. Cada região, ou até aldeia, determina a sua”
(KEESE DOS SANTOS, 2017, p. 29).

Muitas eram as questões na elaboração do projeto. O grupo precisava debater sobre a ortografia a ser adotada, sobre a tradução dos termos para
o português e, finalmente, sobre o conteúdo da proposta. Ditavam para que eu transcrevesse a resposta de cada item do formulário, o que foi uma
rica oportunidade para compreender as estratégias na escrita dos textos que seriam entregues à Secretaria da Cultura.

Dossiê
O assunto dos limites dos espaços internos e externos da aldeia novamente se apresentou nessa etapa, dessa vez por meio da seleção de palavras
para o projeto. O que podia ser escrito era, em geral, palavra de uso corriqueiro e público. No entanto, buscava-se conservar a dimensão privada
das palavras de uso ritual (palavras sagradas), que eram traduzidas com modulações para que os juruá, os brancos, as entendessem.

As barreiras de tradução se estendiam a mim - os integrantes do grupo simplificavam as explicações ou mesmo me avisavam de quando se tra-
tava de um termo genérico, que só poderia ser traduzido de determinada forma. Algumas vezes, que eu interpretei como os avanços das nossas 63
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relações, eles confiaram em me dizer o sentido de termos privados para me perguntar como poderiam traduzir, diante do impasse de não saber
como “tornar compreensível aos brancos”.

Fiz o que eu pude, tentando me certificar com eles de que a tradução era aceitável, o que por vezes me exigiu apagar e refazer, apagar e refa-
zer, apagar e refazer. Não sei se é possível pensar na minha coautoria na escrita do projeto, nesse caso. Ou talvez só seja possível falar de uma
coautoria com os pontos cegos que eu herdei dos limites da tradução Mbya. Registrei em meus diários de campo os pontos de impasse, as astú-
cias e as dificuldades desse exercício. Mas afinal, o que é tornar compreensível aos brancos?

É possível entender que as traduções Mbya sobre as falas sagradas encontram barreiras, já que se trata de uma linguagem constituída por me-
táforas que não encontram correspondência fora do pensamento atrelado a ela, conforme apontou Pierre Clastres (1990) ao analisar os mitos e
cantos sagrados Guarani que ele registrou, em paralelo com os da célebre obra de Léon Cadogan (1959) sobre os fundamentos da palavra dos
Guarani Mbya do Guairá.

Posto isso, eu penso que a tradução realizada pelos jovens que escreveram o projeto junto comigo não se resumiu apenas em ocultar significados

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e preservar (dos brancos) as palavras sagradas, mas que se tratou de um exercício de transbordamento dos sentidos da literalidade e de reflexão
dialógica das categorias alheias, o que eu aproximei da intenção de “tornar compreensível aos brancos”, afirmada por eles.

Mais tarde, por meio dos materiais da gramática guarani, eu pude pesquisar sobre o nome escolhido para o projeto. Encontrei a grafia ayvú como
forma correspondente de ayu, e não pude identificar o termo boatxaa. Então eu me lembrei de que essa palavra sofreu inúmeras alterações pelos
membros do grupo, que tentavam organizá-la durante a escrita. Recorri a eles para perguntar o significado das palavras ayu e boatxaa em sepa-
rado. Disseram-me que ayu siginifca “palavra” e que boatxaa quer dizer “passar algo, que pode ser material ou não”. Quiseram estar certos de que
eu havia compreendido o sentido de boatxaa e me questionaram se a tradução foi suficiente. Então eu perguntei “É como transmitir?”, “Sim, você
entendeu”, disseram.

Dossiê
“Palavra transmitida” seria a tradução adequada ao nome do projeto? Traduzido pelos membros do grupo como “Meio de Contato” na língua
portuguesa, o título adotado no projeto possuía significado completamente distinto dos termos que eu supus, em Guarani. Essas duas marcações
me fizeram entender sobre a bifurcação de público para o qual o formato de vídeo que o grupo produziu foi pensado, atingindo ao menos dois
circuitos distintos. 64
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Os vídeos do projeto Ayu Boatxaa apresentaram um padrão estético, onde uma pessoa Guarani falava de frente para a câmera sobre o seu modo
de ser. A maioria das imagens era estática, revelando a centralidade da fala na concepção dessa direção cinematográfica. Assim que o projeto foi
aprovado, eles inauguraram um canal de transmissão no YouTube e depois no Facebook, lugar de interlocução aberto a indígenas e não-indígenas.

Quando os vídeos assumiram a função de transmitir as falas dos moradores de Boa Esperança nos espaços externos da aldeia tornou-se notável
uma mudança nas estratégias indígenas, que conferiram a visibilidade de alguns saberes antes compartilhados apenas dentro da comunidade
também aos juruá. Ainda que haja modulações na tradução das falas em vídeo e que o controle das palavras se dê na seleção das legendas de
tradução, esse é um dos principais pontos que deve ser observado.

Considerando esse formato de vídeo aliado às plataformas online, a classificação “cinema” pareceu-me insuficiente aos vídeos produzidos pelo
grupo, porque excede o conceito de cinema não-indígena. Vinculados em meios independentes de distribuição, os vídeos do grupo Ayvú Baraeté
se apresentaram conectados a um emaranhado de relações, redes virtuais de parentesco e canais indígenas com os quais se tinha correspon-
dência, demonstrando que os vídeos não eram pensados como conteúdos isolados, mas em articulação com outras terras e interlocutores indí-

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genas.

Percebendo a lacuna de classificação sobre esse tipo de produção, Idjahure Kadiwel (2017) adotou o termo “etnomídia”. Na concepção do autor,
essa categoria engloba formas indígenas de articulação política que são, entre vários outros possíveis, meios para “civilizar os brancos” na atua-
lidade.

Ao ser perguntado (conversa pessoal, 2020) se a etnomídia é uma categoria analítica, ele diz que o termo foi cunhado por Anápuàka Tupinambá e
destaca a visão de Renata Machado Tupinambá, que afirma que o cinema indígena pode ou não ser considerado uma etnomídia, a depender das
escolhas dos diretores.

Dossiê
O conceito de etnomídia está vinculado, em geral, às produções digitais realizadas por pessoas indígenas, no intuito de adotar estratégias de
visibilidade para combater equívocos e preconceitos dos não-indígenas sobre os seus modos de existência. Nesse sentido, além de atualizar a
transmissão de saberes entre os membros da aldeia Boa Esperança, os vídeos produzidos no projeto Ayu Boatxaa fizeram parte de uma estratégia
aliada a inúmeros outros povos indígenas no Brasil, voltada à transformação da subjetividade não-indígena acerca das imagens construídas dos
indígenas. 65
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5 Uma metáfora inusitada

É de praxe que os projetos aprovados pela Secretaria da Cultura do Estado do Espírito Santo (SECULT/ES) sejam convocados na metade do
período de realização para a primeira prestação de contas. Está nos termos do edital que a premiação é dividida em duas parcelas, e que a segun-
da só é repassada mediante a primeira etapa, feita pela apresentação de relatórios técnicos do andamento do projeto em reuniões com gestores
públicos.

Quando convocado pela SECULT/ES à reunião inaugural de prestação de contas sobre o projeto Ayu Boatxaa, Karai Mirim me ligou e perguntou
se eu poderia acompanhá-lo. “Sim”, foi o que eu respondi. Imaginei que ele precisasse de alguma ajuda para localizar o departamento público na
capital, Vitória, onde eu morava. Supus também alguma inexperiência com reuniões de prestação de contas ao Estado.

Assim que chegamos à Secretaria, fui interrompida pela servidora responsável pela reunião, que me reconheceu. Eu havia recém me tornado
servidora pública, na Secretaria de Estado de Direitos Humanos. Ela me questionou o que eu fazia ali, e tive que me apresentar novamente, dessa
vez apenas como acompanhante a pedido de um amigo. Situação embaraçosa. O que eu poderia dizer? Uma outsider no Estado? Imagino que

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também na antropologia.

Quando a reunião começou, eu escutei as perguntas dirigidas a Karai na expectativa de que ele as respondesse. Silêncio absoluto. Eram per-
guntas protocolares, sobre os prazos estimados e os documentos de comprovação da execução do projeto. Quando falou, ele se recusou a usar
o português e agiu como se não tivesse entendido nada dos questionamentos, apesar de ser fluente no idioma e de ter levado os documentos
requeridos consigo.

A mulher me olhava impassível enquanto ele falava, e me perguntava se ele não entendia a língua portuguesa, dessa vez com desconfiança sobre
mim, de que eu pudesse tê-lo agenciado para assinar o projeto. Até o momento eu não havia vivenciado a desconfiança das minhas intenções
fora das aldeias, entre os espaços do Estado, que era o meu local formal de trabalho. Desde então passei a percebê-lo também como “a outra

Dossiê
margem” do campo que eu fazia.

Uma vez que o projeto assumiu realizar o contato com não-indígenas, a Secretaria da Cultura assumiu a representação imediata desse plano so-
cial. Não por acaso estávamos ali, utilizando dos recursos públicos. Embora, à minha impressão, a imagem da instituição provedora colocada nos
termos do edital era completamente descolada da função que Karai atribuiu a ela, esquivando-se de todas as derivações tutelares dessa recente 66
relação. Tratava-a como uma espécie de mediador falho em termos de tradução, como intérprete de qualidades decepadas de um lado, incapaz
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de entender a sua língua. Quando fomos embora, não conseguindo conter a minha inquietação, eu perguntei a Karai por que o tinha feito e ele riu,
somente. Tive que rir também, passado o constrangimento.

Devo reconhecer a genialidade do gesto de Karai, apesar de quase me custar o emprego. Mesmo me conhecendo antes como pesquisadora, ele
sabia que agora eu também era uma representante do Estado, munindo-se do meu testemunho. Equivoquei-me quando supus o desconhecimen-
to dele sobre o funcionamento da estrutura pública. Do contrário, foi ele quem me mostrou o que estava em jogo.

A performance silenciosa de Karai em uma atividade de prestação de contas deixou claro o entendimento da burocracia como uma língua estran-
geira, incompatível com a sua. Outra interpretação possível sobre esse evento pode partir da resistência negativa ao poder estatal como forma de
ação política entre os Guarani, destacada por Pierre Clastres (1978) em sua mais conhecida obra sobre as sociedades sem Estado.

Tempos depois eu fui chamada à SECULT/ES para “prestar contas” da minha participação no evento passado. Posso dizer que foi, no mínimo,
curioso me reconhecer no lugar de “fazer traduções para a língua do Estado”. O fiz munida de barreiras, conforme eu pude aprender um pouco
com os Mbya.

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6 Palavras-pedra e palavras-saberes na formação de lideranças

A maior dificuldade na execução do projeto aprovado foi a obrigação de cumpri-lo estritamente como escrito no formulário de inscrição. A lógica
que opera um documento sob a avaliação de uma Secretaria de Estado, para o qual as palavras são como pedras, imóveis por princípios burocrá-
ticos, parecia sempre e cada vez mais incompatível com a mobilidade do grupo Ayvú Bareté.

O desafio da adaptação à imobilidade do que foi escrito foi constantemente tensionado nas dinâmicas coletivas da gestão do grupo e dos re-
correntes movimentos de incorporação e dispersão das pessoas no projeto, o que de certa forma integra a concepção de mobilidade da pessoa

Dossiê
Mbya, no sentido da transitoriedade territorial que foi destacado por Elizabeth Pissolato (2007), como uma condição da socialidade Guarani – que
é movida por tantos significados já etnografados que não me cabe repetir, se não referenciá-los7.

7 Infindáveis são as bibliografias sobre a territorialidade mbya, que se traduz principalmente pela noção de mobilidade da pessoa em relação com a concepção guarani do território-mundo,
atualizada nas caminhadas em busca daTerra Sem Mal. A Terra Sem Mal foi por vezes significadas como um princípio espiritual em oposição ao mundo material da “terra imperfeita”, como na
obra de Hélène Clastres (1978). Mas também pode ser interpretada como uma orientação para a socialidade guarani. Principalmente nos casos de dispersão para a evitação dos conflitos entre 67
os membros de uma mesma aldeia, como entendeu Elizabeth Pissolato (2007).
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A possibilidade da permanência do grupo Ayvú Baraeté esteve em questão por diversas vezes, devido aos deslocamentos territoriais dos inte-
grantes que, nesse caso, ocorreram principalmente em razão dos longos períodos de visitas aos parentes de aldeias distantes, praticados com
frequência para a atualização das relações de parentesco.

Findas as duas etapas da prestação de contas e das obrigações com o Estado, os vídeos continuaram a ser publicados no canal Ayu Boatxaa
mesmo após o cronograma estabelecido, ampliando cada vez mais as pessoas filmadas e as tipologias de imagens produzidas, que incluíram
também outros que não somente os txamõi, entrevistados inicialmente. Interessados em aprender melhores recursos de edição e captação de
áudio, primeiras fragilidades percebidas pelo grupo Ayvú Baraeté durante as filmagens, esses jovens buscaram se aliar aos jovens Tupinikim para
aprender o domínio das tecnologias não-indígenas de cinema. A intensificação da articulação entre os jovens dos dois povos é um nítido efeito
das trocas entre as técnicas da produção de vídeos, que vieram a fortalecer as relações de aliança e reciprocidade nos mecanismos de uma eco-
nomia simbólica, para utilizar dos termos de Marcel Mauss (1950).

Ambos são povos de contato de longa duração com a sociedade não-indígena. No entanto, as formas de elaboração desse contato se diferem
e tem efeitos particulares em cada um. Entre os Tupinikim, um dos principais efeitos é a evangelização pentecostal e drástica diminuição dos

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falantes da língua, ao ponto que o idioma materno é considerado em desaparecimento. Por outro lado, eles apresentam um histórico maior de
experiências com tecnologias não-indígenas, o que lhes garantia nessa época um maior domínio das técnicas do cinema do que os Guarani em
geral, por exemplo.

O cinema vem sendo apontado pelos jovens Tupinikim e Guarani de Aracruz como uma das principais ferramentas para ir de encontro às reivin-
dicações da retomada da língua Tupinikim e do interesse Guarani em alcançar as novas gerações com a transmissão oral de saberes, respectiva-
mente. Pode-se dizer que a produção de vídeos se apresentou entre os dois povos como estratégia suplementar às demandas por investimento
na educação escolar indígena e na educação indígena, que acontece entre os membros de uma comunidade.

A exposição ao ambiente escolar não-indígena durante extenso calendário pedagógico no período da infância foi apontada pelos jovens Guarani

Dossiê
e Tupinikim como a principal dificuldade vivida para a transmissão dos saberes tradicionais e da língua materna. E, considerando que até o início
do ano de 2020 não havia a continuidade da educação formal e pluridocente após o nível fundamental nas terras indígenas de Aracruz, a iniciativa
dos jovens de dirigir os vídeos e registrar os saberes transmitidos integraram uma autorreflexão sobre a condição em que se encontravam.

Há, portanto, vários interesses em comum sobre a direção cinematográfica no que ela aproxima as demandas entre os jovens desses dois povos.
No entanto, diferente dos Tupinikim, o acesso dos jovens Mbya às políticas culturais que ampliam o acesso às tecnologias não-indígenas é muito
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recente. Antes deles, os projetos culturais coordenados por indígenas em suas comunidades se deram por adultos que tiveram contato com ins-
tituições de ensino como Universidades públicas, de pesquisa como o Museu do Índio e de órgãos governamentais como a FUNAI.

A produção do projeto de cinema aqui tratado partia das primeiras experiências dos interlocutores com quem eu trabalhei, em amplo diálogo com
instituições não-indígenas, como parte do processo de tornar-se adulto e como lançamento das capacidades de liderança deles ao mundo.

Em consonância com o que eu observei, Elizabeth Pissolato (2007) afirma que o domínio da fala é uma das principais características denotadas
pelos Mbya como fator de desenvolvimento e de maturidade dos jovens. A conquista da autoridade da fala está diretamente relacionada à posição
hierárquica a ser assumida na fase adulta, em relação aos outros membros da aldeia.

Nesse sentido, os vídeos são recursos que abrem o campo de disputa pela autoridade entre os membros jovens de uma mesma aldeia, por meio
dos quais eles experimentam a habilidade da fala, negociam interesses com os jovens do território vizinho e instituições não-indígenas, formam-se
como lideranças no aprendizado de mediar a fala e a escuta na direção cinematográfica.

Pissolato (2007) também indica que a concepção de liderança entre os Mbya está ligada ao saber falar e ao saber ouvir, no que se apresenta a

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necessidade de saber distribuir a fala, isto é, fazê-la circular entre as pessoas – o que é também a função de um diretor de cinema, especialmente
nas produções de entrevistas e depoimentos adotados como escolha central no formato audiovisual entre os jovens com quem eu trabalhei.

Noutra perspectiva, ao se referir ao cinema indígena, Tatiana Bacal (2009) ressalta a metalinguagem presente nas narrativas reflexivas de si para
o Outro que é, nesse caso, o branco. No caso dos vídeos produzidos pelo grupo Ayvú Baraeté, no formato da etnomídia, a transmissão de palavras
por imagens pode ser entendida por esse ponto e também para além dele. Mais do que a metalinguagem como objetivação da cultura, durante a
experiência na escrita de projetos e na filmagem dos vídeos, eu senti que estava sendo convocada pelos jovens cineastas a pensar nos múltiplos
significados das palavras e das suas possíveis traduções como forma de fazer política.

Dossiê
Diferentes das palavras-pedra da Secretaria da Cultura do Estado, os saberes transmitidos nos vídeos eram objetos metamórficos. Sempre tinham
o poder de ganhar novos sentidos no encontro com o Outro. Buscavam se aproximar dos não-indígenas tornando-se compreensíveis ao dialogar
com o pensamento alheio, pela aposta no efeito que podem exercer sobre ele.

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Destaco que a dimensão metafísica8 da palavra - tão cara aos Mbya - é central na produção dessas imagens, que servem de veículo de transmis-
são das falas com o advento audiovisual. Metafísica porque na concepção Mbya “não só a palavra é um conceito peculiar, como também a ideia
de som nela embutida em que está ligada a uma concepção corpórea e xamânica, que inclui os sentidos de sopro, (auto)criação, transformação”
(RATTES, 2014, p.99).

Para além da possibilidade de exercer efeito sobre os brancos com as suas falas, muitas das vezes os jovens que dirigiam as câmeras me conta-
ram sobre as expectativas que nutriam de alcançar as novas gerações com as suas palavras e as dos seus entrevistados mais velhos, de ensinar
as crianças sobre a “forma de ser” Guarani. Algo parecido com os conselhos dos txamõi9 transmitidos na Opy, que orientam sobre o modo de falar
e o modo de agir. O que, como é endossado na obra de Pissolato (2007), propõe a transmissão de uma ética pela fala que, quando somada às
imagens, adquire o poder de “mostrar como eram aqueles que vieram antes” (fragmento de diálogo anotado em diário de campo, 2017).

A transmissão do que não é material pela palavra – uma das traduções indicada pelos jovens do grupo Ayvú Baraeté para boatxaa – amplia as
interpretações sobre o cinema Guarani Mbya como um veículo de saberes transgeracionais em um campo de forças e memórias espraiadas em
imagem e som.

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Breves reflexões

Mesmo sendo vasto o campo de etnografias sobre as relações dos Guarani Mbya entre os membros das suas aldeias, com principal incidência
teórica sobre o xamanismo, ainda são poucos os estudos centrados nas estratégias de relações deles com os brancos no presente. Por esse mo-
tivo, este artigo dedicou principal atenção à incorporação da tecnologia do cinema, considerando-a como um recurso político em um contexto de
expansão industrial sobre o território indígena de Aracruz.

A aproximação com os juruá, colocada como sempre perigosa pelos membros mais velhos da aldeia Boa Esperança, fez dos interlocutores com

Dossiê
quem eu trabalhei excelentes desenvolvedores de tecnologias de controle do contato. Há metáforas que nos ajudam a entender esse domínio,
como o exemplo do diafragma de uma câmera que controla a entrada de luminosidade. Podemos falar sobre seleção, tempo de exposição, con-
tornos. Em suma, a câmera é por excelência uma tecnologia de produção de imagens que opera movimentos de fechamento e abertura, o que eu
transportei para a dimensão política e traduzi nesse artigo como movimentos de “demanda e recusa”.

8 O conceito da dimensão metafísica da palavra está presente na obra de Pierre Clastres (1990) e de Kleyton Rattes (2014), ambas inspiradas no trabalho de Léon Cadogan (1959), como dito antes. 70
9 Relembrar a definição de txamõi no sentido exposto no segundo parágrafo deste artigo.
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A dinâmica de predação metafórica presente na narrativa do cineasta guarani Alberto Alvares ilustra também as posições assumidas na caça
e na filmagem. Estar “por trás da câmera”, na direção de imagens, parte do princípio de não ser capturado. Filmar, como uma atividade de caça,
ocorre por assumir a posição sobre o seu próprio ponto de vista. A demonstração de um ponto de vista por meio da fala transmitida por imagem
pareceu ser o grande objetivo do grupo Ayvú Baraeté, ressoando com outros movimentos indígenas que podem ser abarcados pela classificação
de etnomídia na atualidade.

Finalmente, o cinema é um recurso de mediação política na incorporação indígena porque não se trata apenas de uma técnica externa absorvida.
No caso do grupo Ayvú Baraeté, o fortalecimento interno entre os membros jovens da aldeia Boa Esperança se projeta por meio dele na formação
de novas lideranças.

Eu insisti no termo “recurso” ao longo dessa exposição porque o meu trabalho etnográfico demonstrou que, apesar da mudança de estratégia ado-
tada pelas jovens lideranças ao optarem pela visibilidade e extensão dos seus saberes aos não-indígenas, o cinema é um meio de atualização de
formas de ação políticas tradicionais. Entre as quais, a transmissão das palavras como portadoras de uma conduta guarani mbya continua sendo
a principal delas. Uma possível resposta para a pergunta “Por que acham que o vídeo é importante?” feita pela velha benzedeira talvez consista

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nisso.

REFERÊNCIAS

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BACAL, Tatiana. Como criar uma cultura? Índios, brancos e imagens no “Vídeo nas Aldeias”. In: GONÇALVES, M; HEAD, S. (Orgs.) Devires Imagéticos: a et-

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Último acesso em 20/04/2021 às 21:27h.
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TAVA, a casa de pedra. Direção de Vicent Carelli, Patrícia Ferreira, Ariel Duarte Ortega, Ernesto Ignacio de Carvalho. Olinda: Vídeo nas Aldeias,
2012. 1 DVD (78 minutos).
QUANDO a noite apareceu. Direção de Alexandre Perim. Vitória: Intrépida Produções, 2010. 1 DVD (50 minutos).

Dossiê
REIKWAAPA. Direção de Werá Djekupé e Ricardo Sá. Vila Velha: Pai Grande Filmes, 2013. Streaming (13 minutos). Link: https://vimeo.com/262414985
Último acesso em 19/04/2021 às 17:00h.
SEGATO, Rita Laura. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos: y una antropología por demanda. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2013.
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Tansmitting the word by image: A Mbya project for the cinema

Abstract: The objective of this article is to deepen the notion of cinema as a political resource and indigenous category among the
young Guarani Mbya who are located in Aracruz, in the state of Espírito Santo, Brazil. The ethnographic experience that gives rise to
the theme occurred during the elaboration of an indigenous film project, idealized by a group of residents of the Boa Esperança village,
whom I helped in the writing and in the relations with the Secretariat of Culture of the state of Espírito Santo. The research deals with
cinema as an articulating tool between indigenous and non-indigenous people, understanding the current strategie of mbya visibility in
what concerns the engagement of young indigenous leaders in the film direction.

Keywords: Indigenous Cinema; Guarani Mbya Cinema; Indigenous Project.

Recebido em 6 de setembro de 2020

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Aprovado em 31 de março de 2021

Dossiê
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> Cine-recolección: apropiación y (re)
invención del cine por una familia qom
Resumen >
A partir de su participación en una película realizada por una
Carolina Soler
familia qom de Resistencia (Chaco argentino), la autora pro- Doctora en Antropología
pone abordar el cine indígena como un proceso en constante
reinvención que posibilita la emergencia de nuevas formas de Universidad de Buenos Aires
percepción, autoconocimiento, resistencia y autoestima, y que
pone de manifiesto mundos políticos y afectivos. El artículo
indaga en las afectaciones mutuas de todos los participantes
y muestra la flexibilidad de los roles constituidos a partir de
los vínculos que se establecen. El análisis se estructura en tres
etapas: rodaje, montaje y distribución, y pone de manifiesto la
construcción afectiva del filme en los usos del humor y la mel-
ancolía. Finalmente, se detiene en la visibilización que tiene la
película en las redes políticas y sociales en las que se inserta Palabras clave >
al ser proyectada y en la singularidad con que es valorada por Cine Indígena; qom (tobas); Chaco argentino.
las distintas personas que la produjeron.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 74-99 | Jan - Jul | 2021

> Cine-recolección. Apropiación y (re)invención del cine


por una familia qom
Carolina Soler
> carolinasolerc@gmail.com
Universidad de Buenos Aires

Introducción

A pesar de que era invierno, la tarde se mostraba calurosa en el barrio Mapic; en el Chaco, el calor puede sobrevenir en cualquier momento del

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año. Caminábamos con Mabel en silencio, resonaba música evangélica en alguna radio encendida y el aire olía a agua estancada (después de
la lluvia, los charcos tardan varios días en secarse porque el barrio se asienta en la antigua cuenca inundable del río Negro). Nos detuvimos para
charlar de cine con un vecino qom y nos contó de sus problemas: esperaba que le dieran una vivienda y el Estado no respondía; militaba su
causa cortando con una casilla de chapas, bolsas y cartones el avance de la construcción de una ruta. “Los aborígenes siempre somos los pos-
tergados”, nos dijo. Fantaseamos con hacer una película con todos los qom del barrio, levantar al barrio, convocar a mucha gente, encender una
fogata inmensa, utilizar como locación el descampado que estaba enfrente, pero recordamos que era privado y que llegarían las fuerzas del orden
a corrernos. Decidimos organizar algunas proyecciones de cine indígena para llamar la atención de los posibles interesados, pegamos afiches
con invitaciones, llovió y lo postergamos, volvió a llover, volvimos a suspenderlo, se inundó todo una vez más. Reevaluamos nuestros limitados
recursos y la dificultad de articular con más personas, y Mabel me propuso filmar a Cristina, su madre, para hacer una película sobre las mujeres

Dossiê
recolectoras qom que mostrara sus conocimientos sobre medicina: “La medicina qompi (de los qom), no la roqshepi (de los blancos)” — me sub-
rayaría la propia Cristina —, “la que va a seguir estando cuando los gobernantes no hagan las cosas bien” y mientras no talen el último monte, nos
explicaría más tarde.

Como si se tratara del montaje de los fragmentos de un filme, este primer párrafo condensa lo transcurrido a lo largo de tres meses —desde abril 75
hasta julio de 2015—, un proceso que, siguiendo los manuales de etnografía, podría denominarse “entrada al campo”; pero que, en un lenguaje
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menos científico, podría describirse como el nacimiento de vínculos afectivos que permiten una convivencia e intercambio entre personas, una
amistad duradera con sucesivos y renovados proyectos.

Llegué al barrio Mapic, un barrio de población qom1 y criolla ubicado a ocho kilómetros al noroeste de la ciudad de Resistencia (capital de la
provincia del Chaco, Argentina). Si fuera posible escindir mis trabajos como antropóloga y como cineasta, podría decir que, en cuanto al cine,
buscaba profundizar el recorrido trazado por algunos activistas chaqueños (indígenas y criollos) que desde hacía algunos años venían promo-
viendo espacios estatales para facilitar a las poblaciones indígenas el acceso a las herramientas audiovisuales (cf. SOLER, 2017). En cuanto a la
antropología, estaba llevando a cabo mi investigación doctoral sobre el cine qom de la región del Chaco argentino2, y el trabajo en el barrio Mapic
formaba parte de la etnografía.

A partir del año 2008, distintos agentes vinculados al Estado provincial del Chaco crearon iniciativas de enseñanza y difusión del cine entre sus po-
blaciones indígenas y, consecuentemente, se creó un espacio específico dentro del recién fundado Instituto de Cultura del Chaco, en el marco del
Departamento de Cine y Espacio Audiovisual (DeCEA3). Se ofreció formación audiovisual a distintas comunidades y se organizó un festival anual
de este cine, al que asistí por primera vez en 2010. Allí tuve la oportunidad de dimensionar la gran efervescencia de las producciones latinoame-

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ricanas, conocer los trabajos realizados desde el Centro de Formación y Realización Cinematográfica de Bolivia (CEFREC), el proyecto brasileño
Vídeo nas Aldeias, la tarea llevada adelante por el Consejo Regional Indígena del Cauca (CRIC) y el trabajo de la Coordinadora Latinoamericana de
Cine y Comunicación de los Pueblos Indígenas (CLACPI). Algunas de estas organizaciones trabajaban desde finales de los años 1980 para brindar
formación sobre el uso de las herramientas audiovisuales a poblaciones indígenas. A partir de 2015, durante dos años, trabajé dando talleres de
cine a través del Área de Cine Indígena del DeCEA, dirigida en ese momento por el referente qom Juan Chico, y —también— a partir de los vínculos
personales con diferentes personas qom que me proponían distintos proyectos en sus comunidades. En los talleres y convivencias en el campo
de ese periodo se fundó mi tesis doctoral (SOLER, 2019).
1 Los qom o tobas son un grupo étnico que históricamente han habitado la región del Gran Chaco y actualmente viven también en otras regiones. Pertenecen a la familia lingüística guaycurú junto
con otros indígenas, como los pilagás, los tobas pilagás, los moqoit (mocovíes) y los caduveo. Los guaycurúes han sido considerados una cadena étnica dado que sus variantes dialectales son

Dossiê
mutuamente inteligibles y comparten ciertos rasgos culturales, cosmologías y formas de vincularse (Braunstein 2003). El término toba proviene del guaraní y significa “frentones”, hace referencia
a la antigua costumbre de depilarse las cejas y es el gentilicio más difundido para designar a este grupo étnico, aunque, en el presente, muchas personas prefieren ser llamados qom. En este
artículo privilegio el uso del término qom, escrito en cursiva por tratarse de una palabra no adaptada al castellano.
2 Porción territorial argentina de la región sudamericana del Gran Chaco, que abarca una llanura semiárida delimitada por los ríos Paraná y Paraguay al este, la precordillera de los Andes al oeste,
el Mato Grosso y los llanos de Chiquitos (Bolivia) al norte y el río Salado al sur. En el actual mapa geopolítico, este territorio integra fracciones político-territoriales de cuatro naciones: parte del
norte de Argentina, del este de Bolivia, del oeste de Paraguay y del sur de Brasil. El Chaco argentino es el territorio comprendido por las provincias de Formosa y Chaco, la región noreste de Salta
y el norte de Santiago del Estero y de Santa Fe.
3 Esta institución ha ido cambiando de nombre a lo largo de los años, actualmente se denomina Departamento de Cine Audiovisuales y Artes Digitales (DCAAD). Para más información ver Soler 76
(2017).
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La experiencia de cine del barrio Mapic se originó a partir del pedido de un profesor de la escuela del barrio, quien propuso al DeCEA dar con-
tinuidad a la tarea de realización audiovisual que había iniciado junto con un grupo de alumnos en 2014. Por distintas circunstancias, la escuela no
fue el espacio propicio para responder a una propuesta de trabajo sostenido, pero, en el intercambio con instituciones, docentes y pobladores del
barrio, conocí a Mabel Filimón, una maestra qom que enseñaba qom laqtac [idioma qom; lit.: “la palabra qom”] en esa institución y que se acercó
a transmitirme sus ideas sobre la realización de filmes. Durante el invierno de 2015 iniciamos el trabajo de la escritura de algunos guiones y, dadas
las frustradas iniciativas de ampliar la convocatoria con otros vecinos, decidimos continuar con los recursos humanos con los que contábamos:
Mabel, su familia extensa y yo. Este artículo analiza el proceso de realización de la película denominada Pa’iquera na aviac (Más allá del monte),
en el que esta familia inventó su manera de hacer cine y que propongo denominar cine-recolección. Me interesa indagar en la experiencia cine-
matográfica como un acto de creación afectado por la presencia de los distintos agentes puestos en juego en las diferentes etapas de realización,
y pensar las características del cine indígena en ese acto de creación que está dirigido y guiado por personas cuya trayectoria histórica proviene
de cosmologías diferentes y en diálogo con distintos tipos existentes, a la vez que atravesadas por procesos históricos y políticos de imposición,
violencia e intercambio con el mundo no indígena. Por otro lado, propongo que el rol de una película indígena se comprende recién al entender
la problemática de su puesta en circulación y los espacios en los que se elige presentarla o no hacerlo, cuando se ponen en juego las tensiones
sociales y políticas que genera su difusión, tensiones con las que no esperaría enfrentarse un realizador no indígena.

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1 Hacer cine, (re)inventarlo

Las películas realizadas por indígenas han cautivado a distintos tipos de público; algunas de ellas confirman que se puede presentar al indígena
sin la exotización que caracteriza a muchas películas etnográficas. A su vez, el cine indígena introduce un nuevo tipo de intimidad entre quien filma
y quien es filmado, y —en ocasiones— propone una especie de danza entre los movimientos de quien guía la filmación al ser registrado y quien
sostiene la cámara. Ruben Caixeta Queiroz (2008) revisa las apreciaciones y los reparos de algunos cineastas y críticos brasileños sobre este tipo
cine. Éstos llaman la atención sobre la falta de explicitación de un mayor contexto de realización y denominan filmes “descontextualizados” (p. 110)

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a estas películas; exigen que la obra misma eche luz sobre el marco en el que fue realizada y sobre la participación de las personas no indígenas
involucradas en el proceso. Encuentro infructuoso este planteo; ya de por sí, el filme es un objeto muy limitado para demostrar su propio contexto
de realización, por lo que pedirle al cine indígena que sea autorreflexivo y que exponga su precampo4 y sus condiciones de realización sería darle

4 La noción de precampo usada en el cine indígena y documental es abordada por André Brasil (2013). El término castellano precampo se corresponde con el término portugués antecampo, 77
concepto tomado de L’oeil interminable, de Jacques Aumont (1991).
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la razón a algunas voces que, por los años 19905, descreían de que hacer películas pudiera “hacer bien a las ovejas” —parafraseando el ya clásico
diálogo entre Sol Worth, John Aidar y Sam Yassie—, y a aquellos investigadores que argumentaban que los cineastas indígenas no se unirían a
la aldea global como iguales, sino estando situados de antemano por Occidente, “lo que les brindaría poco espacio para ser algo más de lo que
Occidente les permitiera”6 (FARIS, 1992, p. 176). Teniendo en cuenta que las producciones audiovisuales indígenas muchas veces son concebidas
únicamente para su circulación intracomunitaria o entre comunidades cercanas, y se escapan así del lugar que les atribuiría Occidente, encuen-
tro aún más infructuoso escindir lo “indígena” de lo “no indígena” en un filme, escisión que puede conducirnos peligrosamente a los caminos sin
salida de la esencialización de la mirada de los otros o, incluso, a la suposición de una mirada idílicamente “virgen”, como aquella que esperaban
encontrar Worth y Adair (1997 [1972]) en sus experiencias con los diné (navajos), tan criticadas y revisadas a lo largo de los años por diferentes
especialistas (cf. CHALFEN, 1997; GINSBURG, 1991; DUBIN, 1998). También podríamos preguntarnos —como lo hizo David MacDugall en 1991—
cuánto la narrativa indígena se apropia de las películas etnográficas, cuánto de lo que se registra en un filme documental está concedido por la
profilmia7 que generan quienes están delante de la cámara, por su voluntad de narrar unos relatos y otros no, de guiar el rodaje de un filme; por
más que el director no indígena tenga el poder de manipular las secuencias y el orden narrativo, igualmente siempre cabrá la duda, el interrogante,
sobre “de quién es la historia” (ibid.).

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A partir de mi experiencia en la enseñanza de herramientas cinematográficas a comunidades indígenas, considero que cuanta más información se
transmite, más opciones se ofrecen y mayor es el intercambio entre los indígenas y los no indígenas, más se posibilita el desarrollo de un producto
audiovisual singular, inescindible del intercambio intercultural que le dio origen y de la apropiación cultural mutua. Este cine no sólo está mediado
por los facilitadores de las herramientas audiovisuales, sino también por el conocimiento que tienen las poblaciones indígenas de los medios de
comunicación audiovisual y del universo no indígena envolvente. Transitar estas experiencias cinematográficas es también habilitar nuevas me-
diaciones intracomunitarias y autorreflexivas, es un vehículo que posibilita la emergencia de nuevas formas de percepción, de autoconocimiento,
resistencia y autoestima en pueblos tantas veces maltratados (cf. BESSIRE, 2017); es un cine inacabado, en continuo proceso de reinvención.

En este artículo busco explorar el quehacer cinematográfico como una forma que permite abrir un juego de experimentación creativa y de reflex-

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ividad entre los involucrados en la realización de los filmes, más allá del rol más o menos específico que cumplan. Esta forma de concebir el cine

5 Sobre esta discusión, ver James C. Faris (1992, 1993) y James F. Weiner (1997) y algunas respuestas recibidas por Terence Turner (1997) y Faye Ginsburg (1995).
6 La traducción es de la autora, así como otras provenientes de fuentes bibliográficas que no están en castellano.
7 Concepto acuñado por Etienne Souriau (1953), luego desarrollado y difundido por Claudine de France (1989), que hace referencia no sólo a los elementos del entorno elegidos y dispuestos
intencionalmente por el director de un filme, sino también por las formas espontáneas —más o menos conscientes— de comportamiento o auto-mise en scène de los sujetos filmados, generadas 78
ante la presencia de una cámara que los está filmando.
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puede hallar algunas resonancias en el trabajo del antropólogo y cineasta francés Jean Rouch (2003 [1978], p. 44), quien, al proponer la noción de
“reciprocidad audiovisual”, plantea un diálogo performativo basado en la colaboración y la transformación recíproca, que llevaba a la producción
de conocimiento entre personas de diferentes culturas8. Esta perspectiva ha motivado a distintos autores, como por ejemplo a Faye Ginsburg
(1991), a considerar a Rouch como un pionero en acercarse a la noción de “medios etnográficos”, concepción que abarcaba y reflexionaba tanto
sobre las producciones audiovisuales indígenas como sobre las etnográficas. En Essai sur les avatars de la personne du possédé, du magicien, du
sorcier, du cinéaste et de l’etnographe (1971), Rouch analiza cómo el cineasta etnográfico, al registrar la posesión, la magia y la hechicería, las afecta
y se modifica a sí mismo. Jugar el rol de observador lo lleva a analizar los vínculos del etnógrafo sobre el terreno, porque el observador ya no es
el mismo: “etno-observa”, “etno-piensa”, y quienes están frente a la cámara se modifican a su vez: “etno-muestran”, “etno-hablan” (ROUCH, 2009
[1971], p. 153). Estas nociones roucheanas no son estrictamente parangonables con los trabajos contemporáneos de cine indígena9 e intercultural,
pero nos brindan algunas claves para concebir el proceso de realización que queremos analizar, al que propongo denominar “cine-recolección”,
transformando el “etno” roucheano en “cine”.

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2 Los qom del barrio Mapic

Los qom, con anterioridad a la conquista militar de su territorio, que comenzó en el siglo XVI, practicaban una economía nómade o seminómade;
basaban su subsistencia en la marisca (caza, meleo, recolección y pesca) y, en menor medida, en la agricultura a pequeña escala. La banda matri-
local y exógama10 —constituida por un grupo local de familias extensas— ha sido considerada la unidad básica de la organización social de los
grupos indígenas del Chaco. Estas bandas se vinculaban formando tribus regionales, que representaban la mayor extensión de los lazos parental-
es (cf. BRAUNSTEIN, 1983; BRAUNSTEIN y MILLER, 1999). Durante los últimos tres siglos, las poblaciones indígenas del actual Chaco argentino
8 En la versión en inglés de este texto de 1974, publicada en Principles of Visual Anthropology, figura la expresión “audiovisual counter-gitf” (Rouch 2003 [1974]: 96); en otra versión en inglés, de

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2003, citada por Ferrarini (2017), aparece la traducción “audiovisual reciprocity” (en Ciné-Ethnography, traducida por Steven Feld). En una edición en castellano (Ardèvol y Tollón, 1995) se lo tra-
duce como “contrapeso” audiovisual; y, finalmente, en la versión en francés compilada por Claudine de France (1979) figura “contre-don audio-visuel”, equivalente a “counter-gift”. Entiendo que la
expresión “contra-don” puede referirse a las nociones maussianas de intercambios de dones y reciprocidad (1950 [2004]), por lo que retomo aquí la traducción propuesta por Steven Feld y utilizo
el término “reciprocidad” en castellano, y hago estas aclaraciones para no perder sus raíces maussianas.
9 Por más que lo sugirió en sus escritos, Jean Rouch nunca compartió la autoría cinematográfica con sus interlocutores. En adición, el adjetivo “indígena” aplicado al cine tiene un caracter político
que pone el énfasis en la reversibilidad de los roles cinematográficos y la apropiación de la voz y mirada de quienes históricamente estuvieron enfrentados al lente cinematográfico como sujetos
mudos a los que se les imponía todo tipo de discursos. Considero que las experiencias de cine indígena son, en su mayoría, un furctífiero intercambio interculural.
10 Tola (2014), a través de sus estudios de parentesco y consanguineidad entre los qom, puso en discusión las tesis establecidas sobre exogamia en estos grupos. Demostró la existencia de un 79
repliegue matrimonial endogámico al analizar las redes conyugales y las relaciones clandestinas entre amantes consanguíneos.
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fueron objeto de distintas estrategias colonizadoras para su sometimiento: masacres, usurpación de territorios, trabajo esclavo en la industria
agrícola-forestal, reducciones cristianas. Alternaron períodos de paz y de guerra, primero con los españoles y después con el Ejército Argentino y
los ciudadanos europeos, criollos o paraguayos que avanzaban para poblar y su territorio. En 1872 tuvo lugar una campaña militar de “pacificación”
de los indios chaqueños, denominada “Conquista del Desierto”, y desde entonces, la Argentina se tomó el control militar de la región, que se sos-
tuvo con la organización de expediciones punitivas, el establecimiento de líneas de fortines, la instalación de misiones religiosas y la atribución de
parcelas a colonos para la fundación de poblaciones en los nuevos territorios incorporados al mapa geopolítico nacional.

En la actualidad, Argentina, tras haber vivido en reservas y trabajado en torno a las industrias algodonera, azucarera y maderera como mano de
obra barata (cf. CORDEU y SIFFREDI, 1971; GORDILLO, 2010), los qom habitan en zonas rurales, urbanas y semiurbanas de la región del Chaco,
así como —en menor medida— en el oeste de Salta y en las provincias de la región pampeana. Subsisten en territorios muy restringidos y en
condiciones medioambientales sumamente deterioradas, por lo que se ven forzados a volcar su economía a trabajos temporales e informales
denominados “changas” y a la producción y venta de artesanías; a su vez, algunos son alcanzados por planes de asistencia social y pensiones
otorgadas por gobiernos nacionales y provinciales, otros trabajan en el Estado en el marco de instituciones de educación bilingüe y en la salud,
o son empleados de los municipios locales; finalmente, y en contados casos, obtienen trabajos estables dentro de la estructura política estatal.

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Quienes habitan en zonas rurales conservan prácticas de subsistencia como el marisqueo y la agricultura a pequeña escala.

Según los relatos de los habitantes qom del barrio Mapic, antes de su establecimiento, la zona era un área de monte nativo11 con abundantes al-
garrobos12, árboles cuyo fruto ha sido un alimento fundamental para la población nativa. A mediados del siglo XX, la provincia del Chaco sufrió una
fuerte crisis agrícola-forestal que, junto con la mecanización de algunas tareas agrícolas y la falta de demanda internacional de ciertos productos,
provocó un fuerte receso económico y el cierre de varias industrias, situación que forzó el desplazamiento de poblaciones indígenas y campesinas
a la periferia de las ciudades; en este marco, Resistencia fue una de las ciudades de mayor afluencia migratoria, como polo económico y joven
capital provincial13 (GUARINO, 2006). A comienzos de los años 1960 llegaron a la zona del barrio Mapic las primeras familias indígenas. Esta pri-
mera oleada no se estableció de forma definitiva, sino que recién a partir de los años 1970, con la llegada de nuevas familias qom provenientes de

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la región de Las Palmas, desplazadas ante el progresivo proceso de quiebra del ingenio azucarero Las Palmas del Chaco Austral (cf. BECK, 1998;
BERGALLO, 2009), la población se asentó de manera estable. En la actualidad, en el barrio Mapic residen noventa y siete familias qom y cincuen-
ta y una criollas; es una zona semiurbana con baja densidad poblacional y cercada por algunas lagunas (cf. GUARINO, 2006; MEDINA, 2015, p.
11 Se denomina monte a los bosques secos del Gran Chaco, caracterizados por su vegetación xerófila (cactus, bromeliáceas), árboles de madera dura como los quebrachos colorados y el algar-
robo, y también yuchanes, lapachos y palmares, entre otras especies.
12 .Mapic significa algarrobo en el idioma qom. 80
13 La provincialización del Chaco tuvo lugar en 1951, a la vez que se declaró a Resistencia su cuidad capital. Esta ciudad había sido fundada en 1878.
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26-35). En las cuatro últimas décadas, el paisaje ha sido modificado; el monte aledaño fue talado en gran parte para el loteo de campos y para la
creación de nuevos barrios, que serían ocupados principalmente por población criolla.

3 Cine-recolección. El rodaje

Según distintas etnografías de mediados y principios de siglo XX, en la organización social de los grupos indígenas chaqueños, las mujeres eran
las responsables de la recolección de diversos frutos y plantas silvestres (cf. CORDEU y SIFFREDI, 1961; KARSTEN, 1932; MÉTRAUX, 1937, 1978;
MILLER, 1979). Según Alfred Métraux (1937), el aporte de los hombres se limitaba a los productos de caza y de pesca, que eran el complemento
de una alimentación a base de vegetales. Las mujeres, además de proveer los alimentos recolectados, eran las principales responsables de la
crianza y el cuidado de los niños. Aunque las prácticas de subsistencia de las poblaciones qom hayan cambiado, la generación de mujeres que ac-
tualmente tienen cincuenta años o más han aprendido a recolectar durante su juventud y aún hoy lo continúan haciendo. Ir a recolectar al monte,
según sugiere Mariana Gómez (2016, p. 364), es un elemento que conecta el tiempo de los antiguos14 con el presente. En el caso de las genera-
ciones intermedias, como la de Mabel, la recolección está asociada a prácticas vinculadas con la niñez, en un tiempo en el que las madres conjug-

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aban esta tarea con el cuidado de los niños. En la actualidad resulta menos frecuente que las nuevas generaciones se interesen en esta actividad.

Las mujeres qom nunca van solas al monte; lo hacen en grupos de cuatro o cinco, y hacía algún tiempo que los familiares y amigas de Cristina no
estaban disponibles para acompañarla. Mabel, como una de las realizadoras de la película, planificó cuidadosamente la presencia de Victoria (su
hija de 13 años) para mostrar la transmisión del conocimiento de una generación a otra. El 9 de julio, día feriado en Argentina, gran parte de la fa-
milia de Mabel podía rodar y nos trasladamos a un monte, a unos seis kilómetros del barrio, para filmar a Cristina durante la recolección de hierbas
medicinales. José (marido de Mabel) nos llevó en su pequeña furgoneta y el equipo quedó conformado por la propia Mabel, su madre Cristina, su
marido y tres de sus hijos: Agustín, de 17 años; César, de 10 años, y la ya nombrada Victoria; yo era la única persona no indígena del grupo.

Como era habitual, Cristina era acompañada en la recolección por su hija y su nieta, pero esta vez Agustín ingresó también al monte con las

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mujeres y lo hizo para ocuparse de la cámara; mi rol era el de asistirlo en el manejo del equipo, además de ocuparme de la grabación del sonido.
Cristina se mostró contenta con toda la comitiva y lo expresó en la película: “Voy a aprovechar mientras tengo acompañantes, porque cuando
estoy sola no puedo entrar en el monte”.

14 La oposición entre los nuevos y los antiguos está muy extendida entre los qom de Chaco y Formosa. Marca la diferenciación entre distintos grupos generacionales que han llevado a cabo 81
formas de vida diferentes, en relación con los cambios ocurridos tras la conquista y la colonización de los territorios.
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A diferencia de las recolectoras qom del Chaco central, de la zona del río Pilcomayo, que recolectan alimentos —frutos y tubérculos—, lianas y
cortezas para colorear sus artesanías (cf. GÓMEZ, 2008, 2016), las mujeres del barrio Mapic, ubicado en la región del Chaco austral, actualmente
recogen hierbas medicinales para uso familiar y para la venta.

La película realizada se titula Pa’iquera na aviac (Más allá del monte) y dura veintidós minutos, logrados tras varios meses de edición con Mabel y
algunos de sus familiares. El filme, hablado en qom laqtac, respeta la cronología de los eventos registrados, a los que se les agregó una introduc-
ción con la voz en off de Cristina y un epílogo con su canto, en ambos casos, con imágenes de los paisajes locales.

La primera escena presenta a Cristina caminando y pidiendo a los seres no-humanos que habitan el monte que nos dejen ingresar. Los qom piden
permiso antes de ingresar al espacio superpoblado que es el monte, porque la cosmología qom contempla una amplia variedad de existentes en
su universo, habitado también por seres no-humanos dotados de agencia sobre los hombres y de distintos grados de poder (TOLA, 2009; TOLA
y SUÁREZ, 2013). Estos seres que habitan el monte deben ser respetados porque son considerados dueños (madres o padres en la lengua qom)
de los espacios geográficos, los fenómenos atmosféricos y los animales (CORDEU, 1969-1970; MÉTRAUX, 1937; PALAVECINO, 1961; TOLA, 2010;
WRIGHT, 1997), y tienen la capacidad de afectar a los hombres y las mujeres por diversos medios. Las enfermedades, por ejemplo, pueden en-

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tenderse como castigos impuestos como consecuencia de una falta cometida hacia un dueño al no respetar las prescripciones y las obligaciones
— pedidos de permiso — que rigen las actividades de la caza, la pesca y la recolección. Este pedido implica una actitud de respeto, un tipo de
rogativa — discurso persuasivo — en forma de súplica para recibir protección y compasión ante la toma de recursos que están bajo su dominio⁠.
Los vínculos que se generan entre humanos y no-humanos son ambivalentes; al ser detentores de un menor poder y depender de los recursos que
están bajo el dominio de los dueños, los humanos deben manejar esta ambivalencia si no desean ser castigados. El dueño del monte se denomina
Nowet (o Nouet) y es considerado generalmente uno de los más poderosos (CORDEU, 1969-1970). En el marco del filme, el énfasis de ese pedido
estuvo puesto en presentarme a mí como a una “persona que habla otro idioma”, una extranjera. Es un pedido que se dirige al monte y sus seres,
pero también se le implora a “Dios”15. En el filme, el acto de pedir permiso actualiza estas presencias no humanas; es un acto imprescindible para
ingresar al lugar.

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A lo largo del filme, Cristina avanza muy hábilmente por el monte diciendo qa’iqa (no hay) cuando no encuentra las plantas que busca. Podem-
os reconocer esta habilidad en la recolección (orientarse, memorizar las sendas, tomar las plantas, distinguir los distintos tipos de recursos, los

15 Como refiere Reyburn (1954, p. 45) los qom, así como otros grupos indígenas de la región chaqueña, conocieron el evangelio en las ciudades y lo llevaron a sus comunidades, en las que se
generó un singular proceso de apropiación cultural del simbolismo pentecostal (CERIANI CERNADAS y CITRO, 2005, p. 122). Diversos son los autores que han abordado la apropiación del evan-
gelismo entre los indígenas chaqueños (cf. BARABAS, 1994; BRAUNSTEIN, 1990, 2003; CORDEU y SIFFREDI, 1971; CORDEU, 1984; IDOYAGA MOLINA, 1994, 1996; METRAUX, 1933; MILLER, 1979; 82
VUOTO y WRIGHT, 1991; WRIGHT, 1983, 1990, 1992, 1994, 2002).
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peligros) y entenderla como un saber que sobrevive incorporado al cuerpo, nunca por separado. Siguiendo a Pierre Bourdieu (1991), se trata de un
saber que “sólo puede ser restituido al precio de una especie de gimnasia destinada a evocarlo, mímesis que —Platón ya lo apuntó— precisa de
una inversión/inmersión absoluta, una profunda identificación emocional” (BOURDIEU, 1991 [2007], p. 124, en GÓMEZ, 2016, p. 364; cf. GÓMEZ,
2008). Este saber queda plasmado en la primera parte del filme, cuando Cristina se desplaza buscando las plantas de su interés, mira los pequeños
brotes y realiza su selección. Su nieto la acompaña con la cámara y observa como cuando era niño, manteniendo una distancia y a su vez teniendo
una gran intimidad y sabiendo cuándo acercarse, cuándo meterse con ella entre las ramas y los arbustos.

El ritmo del rodaje fue manejado por Cristina, por sus movimientos. Ella se detuvo o siguió camino cuando lo creyó necesario, habló cuando con-
sideró que era importante, hizo chistes, se mostró alegre o concentrada en su actividad, miró el camino, las plantas, miró a la cámara, miró a su
hija, le dio consejos. Todas estas decisiones fueron tomadas por ella en una auto-puesta en escena (auto-mise en scène), concepto creado por
Claudine de France (1989) y que Jean-Louis Comolli (2007) desglosó en dos movimientos: “Uno, que viene del habitus y que pasa por el cuerpo
(el inconsciente) del agente, en tanto que representante de uno o de varios campos sociales”; ese habitus de la recolección en la que Cristina
está inmersa es el habitus como “tejido cerrado, trama de gestos aprendidos, de reflejos adquiridos, de posturas asimiladas, al punto de haberse

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tornado inconsciente” (ibid., p. 169). El segundo movimiento, en relación con la profilmia, que conduce a que el sujeto filmado “se destine al filme,
consciente e inconscientemente, se convenza de él, se ajuste a la operación de cinematografía, pone allí en juego su propia puesta en escena, en
el sentido de emplazamiento del cuerpo bajo la mirada, del juego del cuerpo en el espacio y tiempo definidos por la mirada del otro (la escena)
(ibid., p. 169, énfasis en el original). En esa puesta en escena, Cristina interactuaba principalmente con Mabel, a quien le mostraba las plantas, le
pedía ayuda, le explicaba la historia de la familia. Victoria acompañaba y observaba, al igual que Agustín detrás de la cámara, que ya conocía la
escena, ya la había observado numerosas veces.

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Imagen 1 - Fotograma del filme, Cristina se muestra alegre recolectando congorosa.

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Durante el rodaje, Cristina encontró distintas plantas y explicó sus usos. Recolectó, cronológicamente, “milhombres” (Aristolochia triangulari) —uti-
lizada para afecciones de los huesos—, “uña de gato” (Uncaria tomentosa) y llantén (Plantago major); tomó un puñado de troloquic (en qom laqtac)
o, en castellano, molle o moradillo (Schinus fasciculatus) para hacer “quemadilla para la garganta”; luego señaló el ñangapirí (Eugenia uniflora) y,
más tarde, recolectó congorosa (Maytenus ilicifolia) y cocú “para limpiar el hígado” (Allophyllus edulis). A partir de allí comenzó a predominar su
relato sobre la búsqueda de nuevas plantas y narró la historia de su familia en relación con la subsistencia. Luego encontró zarzaparrilla (Smilax
aspera), utilizada para trastornos renales, que desenterró para aprovechar su raíz.
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A lo largo de su filme, Cristina pone el acento en la importancia de los saberes transmitidos por sus parientes ya fallecidos y señala su valor en el
presente. Explica que en el pasado no había médicos criollos, no había salas de salud; sólo tenían los remedios del monte y eso era suficiente para
sanarse. Remarca la importancia de la transmisión de este conocimiento a las nuevas generaciones porque los remedios seguirán estando en el
monte para quien aprenda a reconocerlos y utilizarlos. Por otro lado, en distintos momentos del video, hace alusión a que las medicinas que recol-
ecta también le “dan de comer”. Ella las vende, las reparte casa por casa, porque tiene sus “clientes que confían en ella”; este tipo de comercio le
da autonomía. Se detiene y le cuenta a su hija: “Esta es la planta [congorosa], es lo que me da de comer cada día Mabel; cuando la vendo compro
el pan, compro un pedacito de carne”. Luego explica cómo concibe las medicinas y a sus clientes:

Cuando ocupes un remedio tenés que tener mucha confianza en cómo te vas a sanar, porque llevo muchos años vendiendo estas medicinas natu-
rales y las personas a quienes se las ofrezco me aprecian mucho. Cuando llevo a los que me compran, cuando no conozco los nombres de los reme-
dios les digo la verdad. Lo que yo conozco, eso es lo que estoy vendiendo; lo que no conozco no lo vendo. Cuando vendo un remedio y a la persona
le va bien y se siente saludable, me vuelven a pedir.

La creación de un tipo singular de narración se basa en cómo construye su auto-puesta en escena vinculando el campo, el fuera de campo y el

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precampo. Al poner de manifiesto su comercio de medicinas se corre de la posición de mostrar sus saberes como en una película didáctica en la
que se haría una puesta en escena de los conocimientos que se quieren comunicar, y se lanza a mostrar las condiciones de producción del filme;
deja en claro que su motivación pasa por la película en sí misma, pero también por la venta de las medicinas que está recolectando. Le habla a la
cámara, conduce a su nieto camarógrafo, le habla a su hija, me habla a mí; expone mi presencia y mi rol de antropóloga a través de un monólogo
final que ejecuta mirándola a Mabel (ubicada a la izquierda del cuadro) mientras sostiene la zarzaparrilla que acaba de recolectar:

hace muchos años, mis compañeras se fueron y no puedo venir sola [a recolectar]. Hoy vinimos con una hermana criolla que estudia la vida y el
sufrimiento de la gente qom, nosotros, los qom. Ahora, [Mabel], tendrás mi aprendizaje; no directamente de tus abuelos, sino de lo que aprendí de
ellos. Tus abuelos sobrevivieron a través de la venta de esteras y redes de pesca. Cuando la hambruna llegó en el tiempo de tus abuelos y los líderes
que administraron el Estado hicieron las cosas mal, los lugares para trabajar se cerraron y no pudimos sobrevivir; tuvimos que hacer esteras y redes.

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Nuestros abuelos nos enseñaron cómo hacerlo para que no nos muriéramos de hambre; gracias a estas redes, nuestros padres sobrevivieron. Ahora
debes mantener tu trabajo. Estás acompañada por esta mujer blanca, que está en el suelo, pisando el barro y el agua. Porque tú, mi hija, estás bus-
cando algo. Ella también está buscando algo y yo también estoy buscando algo. Tal vez algo sucederá. Espero que todos nosotros encontremos lo
que hemos venido a buscar gracias a estas hierbas que acabo de recolectar.

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Imagen 2 - Fotograma del monólogo final que Cristina realiza sosteniendo zarzaparrilla en su mano.

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Cristina utiliza el filme como medio para registrar los saberes que ella recibió de sus antepasados y los ofrece a su hija en un acto de investidura
que es el propio filme. Esta noción de investidura en la narración indígena dentro de un filme fue identificada por David MacDougall (1991) el filme
dirigido por él mismo Familiar Places (1980), película que narra el viaje de una familia de aborígenes australianos junto con el antropólogo Peter
Sutton; la finalidad de este viaje era mapear determinados lugares del país tradicional de sus clanes. Por más que a primera vista la voz narrativa
en el filme es la de Sutton — como argumenta MacDougall —, no se trata de “la voz del filme” (p. 8), ya que hay una construcción narrativa mucho
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más compleja y plurivocal. Desde la perspectiva de los aborígenes participantes, “mostrar” en la película tiene alcances narrativos divergentes
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con respecto a los nuestros con consecuencias culturales amplias, y son los que van a transforman al filme en un objeto de significación totémica
(el tótem como emblema está íntimamente ligado a la idea de un relato o una narración). Los protagonistas, al introducir a los niños por primera
vez en su país, producen un acto de investidura, “una confirmación formal de sus derechos sobre el país. El mostrar y el ver cumplen la función de
lo que podríamos considerar una declaración formal o delimitación de derechos” (Ibid. p. 8). En la película de Cristina, mostrar su recolección se
transforma en un legado de ella — y de sus antepasados a través suyo — a Mabel y, a través de ésta, a sus hijos y, a través de mi rol como antro-
póloga que está estudiando “el sufrimiento de la gente qom”, hacia el mundo no indígena; su legado se sintetiza en las hierbas recolectadas. Con
gran lucidez Cristina exhibe el precampo: las condiciones de realización de la película motivada por las búsquedas distintas que nos movilizan a
las tres mujeres a realizar ese filme y que son diferentes pero que confluyen en las hierbas que ella sostiene en su mano. Este cine-recolección
que busco definir se construye a partir de las distintas voluntades que confluyen en la realización de una película indígena, las cosmologías por
las que ésta está atravesada, las trayectorias y los deseos de sus participantes y las divergentes interpretaciones narrativas.

La idea de que la película es un legado se refuerza en distintos momentos. En una de las primeras escenas, antes de inclinarse a recoger “mil-
hombres”, Cristina mira a Mabel y le dice: “Mirá bien el trabajo que hacemos para que vos el día de mañana, cuando no estemos nosotros, puedas

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hacerlo y tener para comer”. El filme, como registro, permite que Mabel, sus hijos y sus nietos puedan seguir observando la práctica de la recolec-
ción a lo largo del tiempo, más allá de la presencia física de Cristina.

Por otra parte, para la introducción —que fue montada al final de la edición—, Cristina grabó una voz en off en qom laqtac en la que dice: “Nosotros
les enseñamos a nuestros hijos, a nuestros nietos, porque son nuevos, no saben de dónde vienen, de dónde vienen las personas; los viejos han
visto, ya tienen su experiencia”. Con estas palabras se atribuye un saber que la ubica por sobre el resto del equipo de realización, se adjudica el rol
de ser la transmisora de ese saber y la constructora, también, del relato fílmico. Cristina hizo su recolección a fin de conseguir plantas medicinales
para sí misma y para vender, pero también para poner en valor su conocimiento y mostrar la importancia de transmitirlo a su hija, su nieta y, a
través del video, a un público más amplio. La cámara afectaba a Cristina, pero no en un sentido de inhibirla o de llevarla a que se saliera de su tarea

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de recolección —en ningún momento nos preguntó qué tenía que hacer ni se detuvo a comentar algo fuera de cámara—; el dispositivo audiovisual
catalizó un tipo singular de recolección y de reflexiones, que no hubiera tenido lugar en condiciones distintas. Cristina —frente a la cámara— es-
taba “cine-hablando”, “cine-aconsejando”, “cine-pensando”, “cine-recolectando”. Por más que nunca hubiera realizado una película anteriormente,
nos estaba sugiriendo un tipo de montaje; disolvía los roles tradicionales del cine y nos proponía un guion y un tipo de filme muy particulares16.
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16 En su trabajo de caracterización de la noción de soberanía visual, Michelle Raheja (2010) alude a esta característica del cine indígena de desdibujar los roles habituales del cine de industria.
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4 Humor y melancolía. El montaje

Aquí me interesa reconstruir cómo, más allá del rodaje, se construyó la trama afectiva de la película, que condujo a Mabel a apropiarse del legado
de su madre y a construir el filme como un “tesoro”, término atribuido por los diné a las películas restituidas del Navajo Film Proyect (cf. Peterson,
2013). El montaje comenzó con la traducción de las palabras de Cristina al castellano. Durante dos semanas, entre julio y agosto de 2015, trabaja-
mos con José, el esposo de Mabel, que provenía de Laguna Patos —un pequeño paraje en la zona de Las Palmas donde sólo se hablaba en qom
laqtac—; su vocabulario era muy amplio, más amplio que el de Mabel, que se había criado en el barrio Mapic. Nuestra intención era presentar un
primer corte en Resistencia, durante el Festival de Cine Indígena que tendría lugar del 13 al 16 de agosto de ese año, pero no llegamos. La edición
se prolongó y pudimos mostrar sólo un breve avance.

La edición de un filme, generalmente, es una tarea ardua; si no se está entrenado, es difícil sostenerla durante muchas horas sin caer en el cansan-
cio y la falta de atención. En el caso de Pa’iquera na aviac había dos horas de material para visionar y la tarea se volvió muy lenta y, por momentos,
tediosa. El hecho de que el material fuera tan homogéneo (¡Cristina recolectando una y otra vez!) también dificultaba la tarea; al ser los clips de

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video tan parecidos unos de otros, se volvían difíciles de clasificar si no se reparaba debidamente en ellos. Fue necesario reconocer los grandes
temas, distinguir los momentos de la recolección y diferenciar los consejos de Cristina para poder organizar una línea narrativa. Para alivianar la
tarea organicé el material en solitario; lo conversé con la familia y me pidieron que propusiera las ideas de montaje y ellos las modificarían sobre
la marcha. Sus opiniones y los cambios que introdujeron fueron sustanciales. Dejaron en claro qué partes eran importantes, qué guiños debían
mostrarse y decidieron no cortar las imágenes en las que las personas que no recolectábamos aparecíamos frente a cámara — Victoria y Mabel
como aprendices y yo, encargada del micrófono, teníamos que estar en la película —; esas escenas permiten mostrar el proceso de aprendizaje y
de intercambio de conocimientos. También se decidió respetar el orden cronológico del rodaje: Cristina durante la recolección lleva un gran bolso
colgado al hombro, que gradualmente se llena de hierbas; con ello confirma a los espectadores que el proceso de recolección tuvo lugar en el

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orden en que se lo muestra. No recortamos ninguna de las palabras de Cristina y todo lo que dijo quedó registrado; cuando sugerí posibles elipsis
o hacer alguna síntesis sobre su discurso, me miraron con enojo: los qom no interrumpen a las personas mayores cuando hablan. La película se
terminó de editar en septiembre de 2016 durante una estancia mía en el barrio con la familia.

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Imagen 3 - Fotograma de la película, Cristina regresando con su bolso cargado de hierbas.

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Por el tiempo en que se realizó el rodaje, Cristina transitaba una etapa de tristeza. La apenaban el haber perdido a varios de sus parientes, el
abandono de algunas costumbres de subsistencia y la reducción de su capacidad de desplazarse, que hacía menos frecuente su asistencia a las
reuniones familiares. Asimismo, había comenzado a envejecer y no podía soportar la idea de su falta de autonomía, de tener que quedarse en su
casa ociosamente y no poder bastarse por sí misma. Más allá de que este ánimo se pueda vislumbrar en el filme, ella se muestra alegre a lo largo
de la filmación; la película, como ya vimos, más allá de ser un legado para su familia, fue una excusa para llevar a cabo la tarea empírica de la re-
colección, algo que disfrutaba.
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En distintas partes del filme podemos encontrar algunas notas de humor, un humor basado en dejar entrar en cámara elementos que rompen
con la narrativa principal y generan reflexividad al develar el precampo y el dispositivo cinematográfico. Como propone Josep M. Català (2009) —
siguiendo las reflexiones de Jean Paul Richter vertidas en su clásica Introducción a la estética (1900)—, el humor puede ser construido a través de
la destrucción de lo sublime, no al punto de derrumbar ese edificio y dejarlo en ruinas, sino en una operación delicada que socava sus cimientos
sin llegar a derrumbarlo. Lo sublime se construye aquí como el saber de los antiguos, el legado que le deja una madre a su hija, la transmisión de
saberes que han ayudado a sobrevivir a un pueblo en tiempos de hambre y violencia.

En una escena, Cristina, mientras recolecta ramas frondosas de congorosa, dice contenta y riendo: “En mis últimas palabras en el video voy a
agradecer porque voy a tener mucho para vender”, y en la escena siguiente —un plano general— toma un ramillete de nuevas hierbas y lo mueve
mirando a cámara sonriente. Ese plano fue elegido por Mabel para incluir en el montaje; le resultaba divertido el gesto de alegría de su madre por
la recolección. Tuvimos que ralentizarlo un poco para que el gesto se entendiera claramente. Cristina, con su alegría y espontaneidad, nos da la
pauta de que su actitud no es una puesta en escena, que la hierbas que recoleta son realmente su sustento a través de la venta.

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Otras dos escenas humorísticas ocurren más tarde. Una es cuando Cristina se inclina a recoger nuevas plantas y se le caen las monedas del bolsil-
lo; lejos de disimular, dice: “¡Ay, mis monedas!” y las guarda nuevamente riendo. Más adelante, tras organizar y guardar las hierbas recolectadas en
su bolso, agrega una botellita de agua de plástico y comenta: “Estoy llevando mi agua”. Esos elementos ponen en contraste la práctica de un saber
aprendido de los antiguos —la recolección como diacrítico del ser indígena— con las costumbres de los nuevos, del mundo en el que es necesario
el dinero para subsistir y el agua se bebe de botellas de plástico y no de los ríos y las fuentes de agua naturales.

En otros dos momentos del filme podemos observar este mismo tipo de humor. En uno de ellos, Cristina empieza a hablar distraídamente en cas-
tellano y Mabel la corrige: “en qom, mamá17”, develando el precampo, su rol de directora de la película y su intención de usar el video como herra-
mienta política en la que el idioma es una herramienta de distinción como indígenas y, a su vez, da un marco de legitimidad a los conocimientos

Dossiê
presentados por su madre. Y sobre el final, Cristina recuerda que José y Ramiro nos estarían esperando en la furgoneta y dice: “Volvamos a casa”.
En el camino de regreso se detiene a recoger cola de gama (Heliotropium), la guarda y toma por una calle de tierra; a lo lejos se ve un basural,
señal de que en esa dirección nos acercamos a la zona urbanizada. Al recolectar esta planta, me la muestra —yo estaba ubicada a la derecha de
la cámara— y me dice en castellano: “No sé cómo se dice en qom”, se ríe y se va caminando. Mostrando también el vínculo con una antropóloga,
dando el tipo de explicaciones que esperaría de alguien proveniente de esta disciplina, siempre dispuesto a aprender la lengua indígena.
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17 Esta frase no se subtitula, por lo que es entendible sólo para los que comprenden qom laqtac.
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Mabel supo manejar las notas de humor en el montaje. En la escena en la que Cristina excava buscando la zarzaparrilla habíamos incluido un pla-
no en el que aparecían las manos de Mabel intentando ayudarla. Mabel tenía las uñas pintadas de color rosado y cada vez que veíamos la escena
nos resultaba graciosa; entendíamos la tensión que provocaban las uñas pintadas, como las usan las criollas, en las manos de una recolectora
qom. Con las reiteradas revisiones del material, esta escena empezó a incomodar y Mabel propuso sacarla por el temor de que ese elemento pu-
diera demoler el edificio de lo sublime, construido con tanto esmero.

En contraste — y complementariamente — con este humor, la película se construye sobre un hilo de melancolía. Más allá de las reiteradas refer-
encias a los antepasados que ya no están, podemos encontrar otros recursos que sirvieron para reforzar esa sensación. Mabel sugirió incluir un
epílogo que, en un principio, iba a estar acompañado por música qom ejecutada con un violín de lata (nvique), ya que un hermano de Cristina —al
que se hace brevemente referencia en la película— tocaba ese instrumento. Como no logramos encontrar grabaciones adecuadas ni músicos en
la zona que pudieran ejecutar esa música, Cristina decidió cantar ella una canción con la siguiente letra:

Pa’iquera añe nala’ / Más allá del sol

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pa’iquera añe nala’ / más allá del sol

Uo’o ye ima’ / Yo tengo un hogar

pa’iquera añe nala’ / más allá del sol

onagaic ye ima’/ hogar de mi hogar

pa’iquera añe nala’/ más allá del sol

Dossiê
La canción se repite en qom y en castellano. Las imágenes muestran el paisaje chaqueño teñido por la luz del atardecer y la cámara se balancea
mostrando los detalles de las ramas de un aromo; sus flores y sus hojas entran y salen de foco con el movimiento, veladas por esa luz. Esta con-
junción de imágenes y sonidos logran provocar cierta melancolía al detenerse en la contemplación de lo sutil de la naturaleza, de lo efímero. La
letra encarna la ilusión de “hogar” para aceptar la ausencia de los que ya no están y los modos de vida perdidos; hay una obligada referencia a la
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vejez de Cristina y al vacío que dejaría su partida.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 74-99 | Jan - Jul | 2021

Durante el montaje de esta parte del filme era imposible no quebrarse; tuvimos que detener el trabajo para recomponernos. Lo mismo ocurrió en
cada proyección: cuando se encendía la luz de la sala, la encontraba a Mabel secándose las lágrimas. El sentimiento de pérdida y melancolía se
profundizan con el paso del tiempo, asociado a las cualidades del registro cinematográfico que, siguiendo a Roland Barthes (1980 [2003]), la foto-
grafía y el cine comparten al fijar el “esto-ha-sido” (124-125), esto fue real y ha pasado. La película de Mabel y su familia opera como la fotografía
barthesiana: el registro de la imagen familiar va a mostrarnos el paso del tiempo que, a su vez, devela la fragilidad del tiempo presente; al revivir
esos momentos de aprendizaje con la madre, inevitablemente, las imágenes se pueblan de melancolía. El monte donde recolectamos ya fue talado
y es imposible volver a recolectar en ese mismo sitio; José, el marido de Mabel, falleció en octubre de 2017, Victoria ya es una joven mujer y Agustín
migró de su casa al sur del país. El tiempo ha pasado, el cine como dispositivo, nos recuerda lo que ha sido y no volverá a ser.

5 Circulación y negociaciones políticas. La difusión

El video fue presentado en algunos espacios y fue incluido en el Festival de Cine Indígena de 2016, en la ciudad de Resistencia, con Mabel como
presentadora en la mayoría de los casos. Cada vez que mostraba el video, el público se conmovía y Mabel, en algunas ocasiones, aprovechaba

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para vender hierbas recolectadas por su madre al final de la proyección. Por mi parte, no le di circulación porque sabía que para Mabel se trataba
de un material sensible y que ponía sumo cuidado al escoger los espacios para su difusión.

En una ocasión, un comunicador qom formado en los primeros tiempos del cine indígena chaqueño en el Departamento de Cine Indígena de la
DCEA, cuando el CEFREC de Bolivia brindó talleres (cf. SOLER, 2017), me escribió para proyectar la película en el Impenetrable chaqueño. Le con-
testé que me parecía una excelente idea, que seguramente no habría ningún inconveniente, pero que lo consultaría. Le envié un mensaje a Mabel
esperando su autorización y no me respondió. Al día siguiente insistí y me dijo que su falta de respuesta había sido intencionada, que le indignaba
el pedido. Me explicó que nosotras habíamos hecho ese video desinteresadamente, que su madre no había recibido una paga por mostrar sus sa-
beres, que ella había puesto mucho esfuerzo en ese trabajo y que no quería que otros se lo apropiaran para sacar beneficio propio. Quedé atónita

Dossiê
y tuve la sensación de que mi mirada sobre la circulación de las películas y la universalización de los saberes pecaba de naïve. El video era una
herramienta que nos pertenecía a las tres, a Mabel, a su madre y a mí, y hacerlo circular libremente ponía en riesgo la autonomía y el poder que él
nos brindaba. Mabel sabía bien que los comunicadores indígenas, muchas veces, reciben beneficios económicos no tanto por sus trabajos comu-
nitarios, sino por su capacidad de tejer redes políticas en el entramado del indigenismo internacional, las ONG y los organismos que financian su
tarea; ella estaba por fuera de esos circuitos y no quería entregar el material libremente para que otros sacaran provecho. El video permite también
una agencia política que debe ser capitalizada. Finalmente, Mabel logró viajar ella misma y proyectar la película en el Impenetrable. 92
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La importancia de la imagen de su madre y de sus consejos han llevado a Mabel a poner extremo cuidado con respecto a los espacios donde
compartir ese legado. En una ocasión, durante el Festival de Cine Indígena de 2017, yo coordiné las proyecciones en los barrios indígenas de Re-
sistencia. En el barrio Mapic, la sede fue la escuela en la que Mabel era profesora de qom laqtac. La proyección se enmarcó en un acto que había
organizado la escuela con otros fines y la pantalla era muy pequeña para el gran patio techado, en el que el sonido rebotaba y se mezclaba con
otros sonidos. Tras diez minutos de proyección, el público no prestaba gran atención y había un murmullo constante; Mabel, sin dudarlo y sin con-
sultarle a los organizadores, avanzó hacia la computadora detuvo el video y cerró la venta del reproductor sin dejar ninguna huella de su madre en
la pantalla. Me pidió que retiráramos los equipos argumentando que la gente no estaba entendiendo, que lo que ella estaba mostrando eran los
consejos de su madre y que no estaba dispuesta a que no se le prestara la correspondiente atención; desmontamos los discos y nos fuimos. Ahí
entendí que, por más que yo sea la codirectora de la película, no sería cauto ni respetuoso de mi parte dar circulación al filme, y esto es algo sobre
lo que no se había ocurrido pensar durante el rodaje y el montaje; los regímenes de circulación y difusión están inmersos en un campo afectivo y
político en el que soy una activa aprendiz.

Epílogo

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Pai’quera na aviac es un filme que continúa construyéndose y completándose cada vez que se proyecta, con la venta de hierbas medicinales al
final de cada función, con el paso del tiempo, que lo transforma y nos pone de cara a la muerte y al esto-ha-sido —de forma literal—, pero que
también nos sitúa frente a nuevos proyectos para complementarlo.

Una de las luchas en las que Mabel milita —como muchas otras personas en Chaco— es el freno a la avanzada agrícolo-ganadera y al desmonte
desmedido de los bosques nativos; Mabel está preocupada por estos temas, que la persiguen violentamente y que padece en el cotidiano cuando
a su madre y otras vecinas les resulta cada vez más difícil ir a recolectar. La película tomó un rol importante en la militancia en defensa del monte
chaqueño y decidimos pedir financiamiento para continuar trabajando en un nuevo rodaje con más mujeres recolectoras qom, tarea que no tiene

Dossiê
visibilidad en la sociedad chaqueña ni en las luchas de las organizaciones ecologistas. Los qom del barrio Mapic se ven fuertemente afectados
por la instalación de nuevos barrios aledaños al suyo, la falta de gestión de residuos y de cuidados medioambientales y las dificultades cada vez
más grandes para acceder a los espacios de recolección y marisca por la eliminación del monte, su flora y fauna. Este proceso ya ha sido visto
en otros barrios indígenas como el Barrio Toba de Resistencia, donde en el marco de la llamada crisis antropocénica, las promesas estatales de
reivindicación e integración del indígena suenan como los ecos de un pasado utópico que reverbera en un presente distópico (SOLER, 2020). 93
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 74-99 | Jan - Jul | 2021

En febrero de 2020 rodamos con un grupo de cinco recolectoras y ampliamos el equipo no indígena — Ladys Gonzalez y María Eugenia Mora,
cineastas y artistas con las que colaboro desde hace unos años, se sumaron al proyecto —. Convivimos con la familia de Mabel en el barrio Mapic
para construir la historia de las recolectoras, contribuimos a estrechar los contactos entre algunas de ellas y profundizamos en nuestro conoci-
miento sobre sus trayectorias. El rodaje se vio detenido por la pandemia del coronavirus y seguramente tenga giros inesperados cuando lo reto-
memos. Pensamos que esta película gozará de vías de difusión más amplias y provocará la emergencia de nuevas imágenes y nuevas formas de
conocimiento indígenas, nuevas afectaciones que nos trasformarán a cada una de las participantes, inmersas en un cine-recolección siempre en
proceso de reinvención.

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Cine-recoleção. Apropriação e (re)invenção do cinema por uma família qom

Resumo: Através de sua participação em um filme realizado por uma família qom de Resistencia (Chaco argentino), a autora propõe

Dossiê
abordar o cinema indígena como um processo em constante reinvenção. Este processo torna possível a emergência de novas formas
de percepção, autoconhecimento, resistência e autoestima, ao mesmo tempo em que põe de manifesto mundos políticos e afetivos. O
artigo indaga nas mútuas afetações de todos os participantes e revela a flexibilidade dos papeis constituídos a partir dos vínculos que
se estabelecem. A análise se organiza em três etapas: filmagem, montagem e distribuição, mostrando a construção afetiva do filme em
seus usos humorísticos e melancólicos. Por último, o artigo se detém na visualização do filme dentro das redes políticas e sociais nas 98
quais se insere na fase de projeção e na singularidade da sua valorização pelas diferentes pessoas que o produziram.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 74-99 | Jan - Jul | 2021

Palavras-chave: Cinema Indígena; qom (tobas); Chaco argentino.

Film-gathering. Appropriating and (re)inventing cinema by a Qom family

Abstract: Based on her participation in a film made by a Qom family from Resistencia (Argentine Chaco), the author proposes ap-
proaching indigenous cinema as a process of constant reinvention enabling the emergence of new forms of perception, self-knowl-
edge, resistance and self-esteem, and that reveals political and affective worlds. The article investigates the mutual affectations of all
the participants and shows the flexibility of the roles constructed from the links that are established. The analysis is structured in three
stages: filming, editing and distribution, and highlights the affective construction of the film when resorting to humor and melancholy.
Finally, the article scrutinizes the film›s visibility in the political and social networks where it is screened and the uniqueness with which
it is valued by the different people who produced it.

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Keywords: Indigenous Cinema; Qom (Toba) Peoples; Argentinian Chaco.

Recebido em 6 de setembro de 2020

Aprovado em 31 de março de 2021

Dossiê
99
> “Filming Back” in Siberian Indigenous Ci-
nema: Cinematographic Re-appropriation
Strategies in the Work of Anastasia Lapsui
and Markku Lehmuskallio
Abstract >
This paper examines the Siberian films by Anastasia Lapsui
Caroline Damiens
and Markku Lehmuskallio. It focuses on filmic means em- Associate professor in Film Studies
ployed in order to “film back” to outsider cinema. Applying film
analysis as a method, it demonstrates how film form can be as Université Paris Nanterre, France
political as content when used to give voice to Siberia indige-
nous peoples and re-view earlier Soviet discourse of equality,
integration and progress. It highlights two aesthetic strategies
used by the filmmakers to “film back:” the re-appropriation of
archival footage to rework the past and recredit indigenous in-
dividuals; and the creation of a plural pseudo-autobiographical
voice to break the Soviet monologue and embody the shared
Keywords >
indigenous experience. Finally, it argues that looking at formal Siberian Indigenous Cinema; Filmic Re-Appropriation;
aspects helps to rethink our understanding of such notions as Film Aesthetics; Anastasia Lapsui; Markku Lehmuskallio.
“talking back” and “shooting back,” often used indifferently,
with the addition of the “filming back” concept, reserved to
filmic issues.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 100-129 | Jan - Jul | 2021

> “Filming Back” in Siberian Indigenous Cinema:


Cinematographic Re-appropriation Strategies in the Work
of Anastasia Lapsui and Markku Lehmuskallio

Caroline Damiens
> caroline.damiens@parisnanterre.fr
Université Paris Nanterre, France

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Introduction

This paper examines the Siberian films by Nenets Anastasia Lapsui and Finn Markku Lehmuskallio. Although their collaborative productions are
often identified and classified either as Finnish or Nenets, their films of a transnational nationality are paradoxically deeply rooted in a clearly iden-
tified space-time: the world of the indigenous peoples of the Arctic and more specifically of Soviet and post-Soviet era Siberia. This topic is still
little studied as well as the growing body of Siberian indigenous cinemas. While Lapsui and Lehmuskallio’s films have received international critical
acclaim in both major and more local film festivals (BEUMERS, 2017; TOULOUZE, n. d.), they have surprisingly attracted few scholarly attention

Dossiê
so far, with the notable exception of the book-length study by Finnish film critic Sakari Toiviainen (2009), unfortunately not yet translated in En-
glish. Authors who wrote on the duo’s work have mostly focused on their content, particularly on the vital question of representations (OSGOOD,
2012). Their films have been discussed from a political point of view (WOOD, 2008, p. 142-145) or analysed as ecological ethnographic documents
(KÄÄPÄ, 2014, p. 175-178). Although these questions are central to the issue of indigenous cinema, in this essay, I intend to draw the focus on the
lesser-studied case of the film form, more specifically on Lapsui and Lehmuskallio’s cinematographic strategies of self-image re-appropriation.
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Beyond the narratives and the strict issue of representations, Lapsui and Lehmuskallio’s cinema uses more specifically filmic means for the pur-
pose of “talking back” to outsider representations. I have renamed this practice “filming back”1 ” in the sense that not only are the stories narrated
in the filme concerned, but also the filmic material or peculiar cinematic narrative strategies. I therefore seek to circumscribe formal filmic aspects
that are located beyond “talking back” and “shooting back,” two notions rarely distinguished or used synonymously. With the analysis of “filming
back,” I look at some aesthetic factors and cinematographic strategies in order to examine the “purely” filmic ways in which Lapsui and Lehmus-
kallio’s films engage with outsider cinema focusing on Siberia indigenous people and create an original case for self-representation. By so doing, I
do not imply that these strategies are (or should be) common to all indigenous filmmakers. On the contrary, scholarly literature from the film studies
field has widely demonstrated that indigenous cinemas are diverse both in style and content, and that there is no such thing as a rigid and unified
definition of indigenous cinema (WOOD, 2008; WILSON and STEWART, 2008; Gergaud and Herrmann, 2019). As a Western film scholar with no
indigenous background, I am well aware of the risks and difficulties that come with writing about these issues (such as cultural appropriation).
Therefore, in this essay, I will engage with aesthetics issues, thus re-inscribing indigenous films in the field of cinema art, yet without erasing its
crucial political dimension. I will not examine issues such as reworking traditional forms or redeploying traditional narratives. But I will not either go
as far as to mobilise auteur theory, which often has a tendency to depoliticise and de-contextualise film texts. The aim of this paper is to highlight
the specific cinematographic ways Lapsui and Lehmuskallio have developed to “film back.” Being limited to that issue, it certainly does not seek

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to discuss all the dimensions of their cinema.

To achieve this goal, I will focus on a few films of the couple, mainly their most easily accessible work, and use film analysis as a method in order
to demonstrate how film form can be as political as content. Before going in depth into the aesthetic issue, in order to situate the films analysed in
the scope of indigenous cinema and because their work is still little studied, I will begin with a presentation of Lapsui and Lehmuskallio’s careers
in the context of indigenous cinema and briefly outline a few traits of Nenets misrepresentations in Soviet outsider cinema. Then, I will give some
examples of how their films talk back to these earlier narratives and engage with Soviet history. In a second phase, I will focus on questions of cin-
ematic style and examine two different filmic strategies used by the filmmakers to “film back:” the re-appropriation and reinterpretation of archival
footage of Siberia indigenous peoples, and the use of a pseudo-autobiographical plural voice so as to highlight a shared indigenous experience.

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1 Marlena Teitge (2011) has already used the concept of “filming back,” although in a slightly different manner, in her film studies Master’s thesis, which focused on transculturation patterns under- 102
lying contemporary “cinéma beur” and German-Turkish cinema.
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1 A collaborative Siberian “Fourth Cinema”

Anastasia Timofeevna Lapsui was born in the Soviet Union in 1944 to a nomadic Nenets reindeer herding family in the Northern region of Yamal. As
a child, she was forced to attend the Soviet residential school although she did not speak Russian. The event was so traumatic that she temporarily
became blind (WOOD, 2008, p. 143). Back on the tundra, she spent these blind years listening to her grandmother’s stories. She later rendered
these indigenous tales on the air as a radio journalist and used some of the material in her films. After she completed her studies at the Salekhard
Pedagogical Institute (1963-1966), Lapsui was the first indigenous radio journalist in Yamal in the 1970s, working for almost twenty years as a pre-
senter (diktor) and as a reporter in the Nenets language (Figure 1). This position enabled her to work on specific topics such as traditional medi-
cine or the biographies of the heroes of her people, as well as more classical news topics. She became famous at a local scale and even attracted
the attention of the Soviet central radio and television magazine, Sovetskoe radio i televidenie (ARUTIUNOVA, 1970)2. It has to be noted that such
an indigenous radio broadcast was an exception in Siberia during the Soviet era: only the North-East region of Chukotka also had an indigenous
television and radio station before the 1990s, which mark the beginning of indigenous medias in Siberia (DIATCHKOVA, 2008).

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Figure 1 - Anastasia Lapsui working as a local radio diktor in Yamal. Sovetskoe radio i televidenie, n. 12, 1970. Russian State Library. 103
2 Although the Sovetskoe radio i televidenie article introduces Taisia Lapsui, this is indeed Anastasia.
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In 1989, Lapsui met Markku Lehmuskallio, a documentary filmmaker who had come from Finland to shoot a film in the Soviet Arctic. Born in 1938,
Lehmuskallio’s debuts in cinema were peculiar: working as a regional forester, he started to make instructional films in the 1970s to show farmers
how to set out pine seedlings (OSGOOD, 2012, p. 72). He continued doing films with an ecological focus and developed an interest for indigenous
people world-views, which took him across the Arctic (Scandinavia, Canada). The Glasnost politics allowed him to go and film the Arctic regions
of the Soviet Union. There, he met Lapsui in the Yamal tundra. This encounter marked the beginning of an artistic collaboration and the union of
their two destinies: they are now married and still make films together to this day.

Lehmuskallio introduced Lapsui to film editing with his films I am (MINÄ OLEN, 1992) and Like a reindeer in the heavenly vault (Poron hahmossa
pitkin taivaankaarta, 1993). She co-wrote the script, worked as a sound engineer and performed her own songs in the latter (SAMSON, 2017). Al-
though their work encompasses several nationalities and ethnicities, such as Sami, Inuit, and even Belgian-Flemish (The Shepherd [Paimen], 2001),
the majority of their films focus on the topic of the indigenous peoples of Northern Russia: the Nenets of course, but also the Chukchi, the Nga-
nasan, or the Selkup. As Markku Lehmuskallio has stated in an interview: “We made almost all our films about the indigenous peoples of Siberia.
We take the point of view of the people we film. It is possible thanks to Anastasia, who comes from a nomadic Nenets family and knows well the
world that we were able to film.” (DELAFONTAINE, 2013) Lapsui is therefore pivotal in their artistic collaboration, as one of their main objectives

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is to transmit Nenets and other indigenous cultures of the North to the rest of the world through the medium of film. Film is re-appropriated in the
same way that radio broadcast was re-appropriated in the 1970s, when Lapsui used the medium to contribute to the preservation of her culture
under the Soviet regime. Hudi, a Nenets born on the Yamal tundra in the 1960s, recalls in an interview: “Every morning, Anastasia’s voice woke us
up speaking the language of our parents, telling stories related to Nenets culture. Without her broadcasts, we would have gradually forgotten our
culture as we moved to the city.” (EHRET, 2010) In the same manner, Lapsui, collaboratively with Lehmuskallio, uses cinema as a conduit for cultural
revitalisation. For example, in the behind-the-scenes film The Voice of the Tundra (La voix de la toundra, EHRET, 2013) made during the shooting
of Pudana, last of the line (Sukunsa viimeinen, 2010), the Nenets non-professional actor Grigori Anagurichi recalls how he realized that he had lost
the faculty to express himself freely in his mother tongue when he had to play in Nenets language for the film. The shooting of the film helps revive
the use of language. More broadly, the shooting of the film enables Nenets to re-take possession of some traditional gestures such as beating the

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shamanic drum, tanning a skin with traditional instruments or drying fish, that are rediscovered and transmitted both on-screen and off-screen.

Made collaboratively with already experienced filmmaker Lehmuskallio, Lapsui therefore “shoots back” (GINSBURG, 2004): she reverses the
imperial gaze3 and uses the film medium to revitalise her indigenous culture. Her whole filmic work constitutes a re-appropriation of cinema te-
3 The imperial gaze refers to one of the symptoms of colonial neurosis, according to Franz Fanon: “the incapacity of the colonizer to identify with the colonized” (PONZANESI and WALLER, 2012,
p. 5). My use of the expression emphasises the question of the point of view, of who is filming, as expressed in this quote by Ella Shohat (1997, p. 52): “Reproducing Western historiography, First 104
World cinema narrates European penetration into the Third World through the figure of the ‘discoverer’. In most Western films about the colonies [...] we accompany, quite literally, the explorer’s
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chnology to express her insider point of view. As a matter of fact, the pair’s films have been viewed by many, who often put Lapsui’s character at
the forefront, as an integral part of the growing indigenous cinema corpus (DOWELL, 2006; WOOD, 2008), bringing together a variety of films
seeking to give voice to indigenous peoples points of view. New Zealand filmmaker of Maori descent Barry Barclay (2003) labelled this new trend
“Fourth Cinema”. In its minimal definition, a Fourth Cinema film must have at least one indigenous person (who self-identifies as such) at one of
the key creative positions: director, screenwriter or producer4. These criteria also shed light on one important aspect of indigenous cinema: the
films classified in this category are rarely made by indigenous people only. They often are the result of artistic collaboration with non-indigenous
people, but always give a key position in the creative process to indigenous individuals. On that matter, Lapsui and Mehmuskallio fit well in the
definition. The denomination “Fourth Cinema” comes from Barclay’s division of world cinema into four main categories: the First Cinema, which
designates Hollywood as a global hegemonic production; the Second Cinema, which corresponds to European art cinema; the Third Cinema as
Third World cinema (Barclay re-uses the “Third Cinema” category that has emerged in the 1960s); and finally the Fourth Cinema, the cinema of
indigenous peoples.

Not rigorous on a strictly cinema history point of view, Barclay’s division does not take into account Soviet cinema as a dominant discourse and
should, at first sight, be discarded when examining Siberian indigenous cinema. However, Fourth Cinema concept is useful as it is an insider

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category, which draws on Third Cinema with its cultural decolonisation project, and most of all, because it relies upon the broader concept of the
Fourth World, which refers to colonialism and the legacy of empire (Wilson and Stewart, 2008). Fourth Cinema must therefore be envisaged first
and foremost in the activist process of controlling one’s own image (GLOWCZEWSKI, 2007) and considered within the broader dialogue with out-
sider (i.e. non-indigenous) cinemas. Fourth Cinema’s birth opened a dialogue that broke the too long monologue of outsider film tradition. Many
scholars have argued that indigenous cinema can be seen as a filmic reply to earlier misrepresentations and silencing of indigenous peoples, com-
ing from marginalised groups who “talk back” to the dominant colonial culture and the imperial centre (SCHWENINGER, 2013) in order to achieve
“visual sovereignty” (RAHEJA, 2010).

The Arctic zone is one of the privileged sites of Fourth Cinema. Among the most outstanding examples are The Pathfinder (Ofelaš, 1987, Norway)

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by Sami director Nils Gaup or the internationally successful Atanarjuat, The Fast Runner (2001, Canada) by Inuk Zacharias Kunuk, the first feature
film written, directed and performed entirely in Inuktitut. Siberia has also become an important location for indigenous cinema in the 2000s, partly
because of the demise of the Soviet Union and the increasing availability of digital filmmaking. Several single-handed film directors or regional
perspective. A simple shift in focalization to that of the ‘natives’ [...], where the camera is placed on land with the ‘natives’ rather than on ship with the Europeans, reveals the illusory and intrusive
nature of the ‘discovery.’”
4 This minimum definition is often required to be selected in the growing number of indigenous film festivals, the most important being Toronto ImagineNative Film Festival. Available at: <http:// 105
www.imaginenative.org>. Accessed on: July 20, 2021.
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cinema industries have appeared in the different ethno-territorial entities of the Russian Federation: Buryatia, Khakassia, Tuva, Tatarstan, Bash-
kortostan, Altai, Chukotka or Chuvashia (DAMIENS, 2014; DOBRYNIN, 2015; ANASHKIN, 2019; SARKISOVA, 2019). Within the Siberian space,
the Sakha Republic (Yakutia) certainly has the most developed cinema industry characterized by an enthusiastic “domestic” Sakha audience
(DAMIENS, 2015; ANASHKIN, SAVVINA and PARK, 2017). Within this ensemble, Lapsui and Lehmuskallio occupy a peculiar place. They produce
all their films in Finland, while most of their work focus on Nenets and other Siberia Northern indigenous cultures. Consequently, their films must
be apprehended as part of the Siberian indigenous cinemas talking back to earlier outsider representations.

2 Talking back to earlier representations

When Lapsui and Lehmuskallio began their film work in the 1990s, there already existed a long tradition of filming and representing Nenets and
other Northern indigenous peoples in the cinema, as well as there was a history of Finnish filmmakers filming the Russian North and its inhabi-
tants. From the earliest days of cinema, the North has always constituted an exotic and popular destination, both for film operators and Western
audiences. Several films featuring “Samoyeds” (as the Nenets were called at the time)5 or other Northern peoples of Siberia were made during the

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silent film era, using an ethnographic and/or exploratory pattern, such as On the coast of deserted waves (Na beregu pustynnykh voln), a Pathé
production of 1913, Novaya Zemlya and its inhabitants (Novaia zemlia i ee obitateli), another 1913 production by Gaumont, or Life of the North (Zhizn’
severa), a 1914 production by Khanjonkov. On the Finnish side, the archaeologist and anthropologist Sakari Pälsi shot film footage to complement
his ethnographic observations during a long trip in North-East Siberia, up to the Bering Strait, in the Anadyr and Kamchatka between 1917 and
1919, at a time when Finland gained independence from the Russian empire6. All these more or less scientific films were the continuation of pho-
tographic expeditions sponsored by scientific institutions, such as Geographical Societies, from the end of the 19th century (see ANDERSON and
CAMPBELL, 2009). More broadly, they were part of a longer tradition that goes back to the 18th century early exhibitions of Siberian natives to
satisfy the curiosity of the Russian nobility in the St-Petersburg court (Mémoires, 1725, p. 33-38).

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During the Soviet era, filmmakers continued this long tradition of “ethnographic spectacle” (Rony, 1996), adopting either fictional, documentary, or
propaganda styles. During a two-year expedition in 1929-1931, the couple of ethnographers Grigori and Ekaterina Prokofiev filmed Nenets in an
early visual anthropological intention (ARZYUTOV, 2016)7. In a different fashion, Nenets were one of the many ethnicities staged in The Sixth Part

5 In Russian, the term Samoyed has an anthropophagic and negative dimension, roughly meaning “self-eater”. It is rejected by Nenets and no longer used. The origin of the word is more probably
the Sami word saam-edne, meaning “land of the people” (GOLOVNEV and OSHERENKO, 1999, p. 2).
6 Film director Kira Jääskeläinen returned on Pälsi’s footsteps a hundred years after. Her film Northern Travelogues (Pohjankävijäin merkintöjä, 2019) combines Pälsi’s footage with new one. 106
7 Following the discovery in 2014 of the Prokofiev footage in the archives of the Museum of Anthropology in St-Petersburg (Kunstkamera), anthropologist Dmitri Arzytov decided to edit it and
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of the World (Shestaia chast mira, 1926) by avant-garde director Dziga Vertov. The result of several cinema expeditions through the newly formed
Soviet Union, Vertov’s film takes the form of a catalogue of Soviet ethnic diversity and focuses on geographical and cultural contrasts. To represent
the Nenets, the film adapts a famous scene from Nanook of the North (Robert Flaherty, 1922), where Nanook (played by Inuk Allakariallak) is sup-
posed to discover the modern technology brought by the white man in the form of a gramophone (Figure 2). The juxtaposition of the technological
object to the indigenous character was used to demonstrate the otherness and backwardness assigned to indigenous peoples (RONY, 1996). In
the Soviet case, what is at stake is not so much the supposed astonishment of the natives in front of technology for the purpose of opposing the
“civilised” to the “primitive.” On the contrary, the technology motif is used to incorporate the indigenous peoples into the socialist project in accor-
dance with the nationalities policy of the new State, which proclaims the equality between the different national components of the large Soviet
family.

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Figure 2 - The Sixth Part of the World (1926). Screenshot.
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made the film Samoyedic Diary (Samodiiskii dnevnik [in Russian]; Samoed’ida’ padar’ [in Nenets], 2016).
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More broadly, Soviet film narratives including Nenets (and more generally the Northern indigenous peoples) stage the struggle of (Soviet) “pro-
gress” against (indigenous) “tradition”, the latter being always depicted as rigid and frozen in the past, as a way to celebrate Soviet modernity. This
is the case in the animation short Samoyed Boy (Samoedskii mal’chik, Nikolai Khodataev et al., 1928). The cartoon depicts the destiny of a Nenets
boy who reveals the tricks the mean shaman uses to impress and fool the people. After this deed, he is chased away by the shaman and leaves
the tundra to study in Leningrad at the Workers’ University. There, now an educated proletarian (Figure 3), he returns to the North to enlighten
his people. Focusing on the issue of school, Samoyed Boy creates a contrast between rational modern knowledge (in the way of the school) and
indigenous traditional knowledge (in the way of the trickster shaman), a knowledge that has been discarded by the authorities as “backward”.

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Figure 3. Samoyed Boy (1928). Screenshot.
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Looking at this genealogy of cinematic representations of the Nenets makes it possible to see how Lapsui and Lehmuskallio “talk back” to the
dominant narratives from the imperial centre. This is particularly true for the central theme of Soviet school that is found in several of their films. Re-
sidential schools were developed by the Bolshevik government from 1924 onwards to enable minority children, whose parents lived far from urban
centres, to remain on their traditional lands8. These residential schools, however, were one of the most controversial elements of Soviet policy in
the North (GRAY, 2010; BLOCH, 2005; LIARSKAYA, 2013). Children were taken away from their parents at a very young age and brought to school.
They returned to their communities at 15 or 17 years old without any traditional knowledge left. They sometimes could no longer master their own
language and often lost both self-respect and respect for their culture. As a result, parents frequently refused to send their children, and some hid
them when Soviet officials came to take them away. Indigenous memories of the residential school experience are often negative, describing shock
and misunderstanding. Lapsui described her first day at the residential school as follows:

I was taken to the residential school. I don’t understand Russian. It is the first time I have been in a wooden house. I’m suffocating there. Children are
running around. Their noise resonates in the walls. I have the feeling that these walls will soon collapse under this din. Little ones my age are next to
me. All the girls are wearing the same dress, the boys are dressed like twins. We’re lining up to be shorn. So that we don’t get lice, our little heads must
be free of hair. The line gets shorter and shorter. I don’t recognize those who have been shaved before me, who is a boy, who is a girl. [...] I am very
afraid of being hairless. What will I tell mom? She won’t recognize me among all these baldheads (LAPSUI, 2010, p. 127-128).

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The quotation expresses well the fear of identity loss in front of the homogenizing Soviet power. For Lapsui, seeing her hair braids cut is particularly
devastating, because part of Nenets women dignity lies in their braids. Following this traumatic event, she lost her eyesight and stayed blind for
several years.

In Soviet cinema, the schooling of indigenous children was shown from a completely different point of view: that of the Soviet “civilizer”. As discus-
sed above, the cartoon Samoyed Boy celebrated school rational knowledge against indigenous tradition. The Romantics (Romantiki, 1941) by Mark
Donskoi is another example. The film narrates the opening of a school in the North (in Chukotka). It attempts to depict the difficulties of getting
children into school (it shows the long discussions to convince indigenous parents to send their children to school, the removal of children from

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school after the death of a pupil). But these Soviet momentary failures are counterbalanced by the deep desire of Chukchi children to go to school.
Once they have been removed from the residential school, children “play school” in their Arctic settlement: they build a geographical globe and
an abacus with ice cubes (Figure 4). As a result, The Romantics portrays indigenous children who want to go to the residential school and Soviet
8 Thirteen alphabets were created for work in residential schools and other institutions to teach Northern indigenous languages, but they were discarded in the mid-1930s and switched to Cy-
rillic alphabet before complete Russification after World War II. In the 1950s, all other educational systems (nomadic schools, etc.) disappeared, leaving Northern indigenous schoolchildren with
no alternative, but residential schools. From the 1950s to the 1980s, residential schools were compulsory for all school-age children of the nationalities of the North, while indigenous languages 109
disappeared from the curricula.
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power that only fulfills their wishes. By so doing, the film depicts reality not as it is, but as it should be, following the principles of Socialist Realism,
the official doctrine for the arts in Stalinist Soviet Union.

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Figure 4 - The Romantics (1941). Screenshot.

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Several films by Lapsui and Lehmuskallio re-examine the issue of school: Anna (1997), Seven Songs from the Tundra (Seitsemän laulua tundralta,
1999) and, above all, Pudana, last of the line. This latter film narrates the first days of Neko, a Nenets girl, at the residential school. Neko is immedi-
ately renamed with the Russian name Nadia, because the (Russian) teacher thinks hers is “not pretty.” The film then shows how Neko has to sleep
like the Russians (i.e. taking off her clothes), must eat like the Russians (porridge instead of fish as she is used to), must learn to count without
anything to count (whereas her father had taught her to count with fish). Those different moments of the film address the painful issue of “Russi-
fication”. In Soviet ethnic politics, everyone had to keep their national gloss over one Soviet citizenship. Soviet policies, where citizenship and na-
tionality (i.e. ethnicity) are never confused, officially allowed all nationalities to express themselves in their own ways only to the extent that it does
not infringe upon communist ideology (according to the Stalinist slogan “National by the form, communist/proletarian by the content”). In reality,
the situation was less ideal: national cultures of non-Russian peoples were being promoted while at the same time a programme of modernization,
acculturation, and integration was supposed to homogenize the Soviet nation through socialism (SUNY, 2012).

All the above examples show the ways in which Lapsui and Lehmuskallio’s narratives talk back to outsider cinema misrepresentations. Sovi-
et “progress” is depicted from an indigenous point of view that reassesses Soviet modernity narratives. But it has to be noted that Lapsui and
Lehmuskallio do not give an idealized image of Nenets society. On the opposite, disturbing situations can be portrayed, as is the case in Seven

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Songs from the Tundra. The first feature-length film by the duo in 1999 consists of seven short films (the seven “songs”) with independent narra-
tives. The song No. 2, “The Bride,” depicts the miserable destiny of a Nenets woman rejected by her family for having followed her love inclination
against her mother’s wishes. The man she finally marries despises her and abuses her. He ends up selling her to a Russian man as a servant.
Although harsh stories like this one can be staged in their films, a large part of Lapsui and Lehmuskallio’s cinema re-examines Soviet earlier narra-
tives, most particularly about the painful issue of Soviet residential schools, in line with the Fourth Cinema trend of re-appropriation of indigenous
peoples history and self-image.

3 Filmic archive re-appropriation and reinterpretation

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Beyond the strict issues of narratives and representations discussed above, I wish to draw the focus on the ways Lapsui and Lehmuskallio “film
back”, on how they use specifically cinematographic ways to re-appropriate filmic self-expression. One of these “filming back” strategies is the
re-use of outsider footage (of Russian, Soviet or other origin) and the juxtaposition of this footage with new images that adopt, as Lehmuskallio
says, the “point of view of the people filmed”. Re-use of archival footage can be found in several of their films: for example, in Fata Morgana (2004) or
Seven Songs from the Tundra. In the latter, each song opens or closes with a few shots of Soviet archival footage that are positioned in the montage 111
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next to the new footage shot by Lapsui and Lehmuskallio. Through this cinematographic process, the entire film holds the status of a filmic reply
to earlier Soviet images so as to give their side of the story. For example, the song No. 6, “Siako”, begins with a few shots from a Soviet newsreel
showing indigenous children of the North at a residential school while the soundtrack resonates with a lively Soviet children choral song (Figure
5). Following this archival footage, the rest of the “song” shows the reverse side of Soviet schooling. It depicts the Nenets girl Siako praying to the
spirits of her people to make her tent invisible so that the Russians will not find it. Her prayers are not heard as the Russian officials come to her
home and we see how the child is finally torn away from her parents by force to be taken to school (Figure 6).

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Figure 5 - Seven Songs from the Tundra (1999). Screenshot.
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Figure 6 - Seven Songs from the Tundra (1999). Screenshot.

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The filmic response using archival re-appropriation and re-interpretation constitutes the whole argument of the documentary film Anna. The film
begins with a 1954 Soviet documentary footage displaying Nganasan, one of the peoples of Northern Russia, living in the Taimyr Peninsula. After
a very brief introduction depicting Nganasan way of life (in their traditional dwelling), we see cheerful Nganasan kids in their residential school
(they make their beds, do cutting-out in class, brush their teeth), serious Nganasan students with microscopes and a Nganasan reindeer herder 113
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using his lasso, in a Soviet perfect vision of “modernised” indigenous peoples (educated, doing Western-style sciences), yet still able to bear their
traditional traits (catching reindeer with a lasso).

Following this archival footage, the camera takes us to contemporary Taimyr forty-two years after to meet one of the little girls who appeared in
the Soviet film: Anna Alekseevna Mombe. She has never seen the Soviet documentary. The film then shows Anastasia Lapsui showing the footage
to Anna Mombe and her family (Figure 7). Staging indigenous film watching marks the signal of filmic discourse re-appropriation through critical
re-viewing of Soviet footage. Then, the larger part of the film is a long interview of Anna. As a result, Anna constitutes a sort of indigenous mise
en abyme of the Soviet images, which does justice to Anna, the little girl in the Soviet documentary, filmed in a close-up brushing her teeth and
wearing a broad smile but remaining mute (Figure 8). In the new film, she is finally allowed to speak out. It should be pointed out that the fact that
she brushes her teeth is not insignificant considering the importance of Soviet hygienist discourse in the case of indigenous peoples. At the same
time, her mouth being busy with the Soviet sanitary practice, she could not express herself. In Anna, Anna Mombe speaks, and that sole fact is the
object and the title of the film. The film then takes us to the village of Novinki, where Anna Mombe used to work as a local secretary of the Com-
munist Party. She returns to the places where she grew up: the school and the Party building. There, she recalls how she was convinced by Soviet
ideology and realized her mistake only when the USSR collapsed. She tells how indigenous people were deprived of their traditional way of life,

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without having received anything in return. In front of Lapsui and Lehmuskallio’s camera, Anna recounts the dispossession, the loss of meaning,
the waves of suicide affecting the young people of her people. She tells how she got drunk for the first time. The still camera interview device hi-
ghlights her speech, previously silenced in the 1954 film, where a Russian authoritative voice-over narrated the silent images. To the Soviet images
of indigenous children light-heartedly integrated into a new progressive culture, the film Anna responds with the image of the same person (Anna
Momde) disillusioned in the ruins of the half-destroyed building of the local Communist Party (Figure 9).

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Figure 7 - Anna (1997). Screenshot.

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Figure 8 - Anna (1997). Screenshot.

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Figure 9 - Anna (1997). Screenshot.

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Only an extra in the archival footage, a child amongst other indigenous children, Anna is a full first-person subject in the new film. By so doing, the
film “recredits” Anna, who was one of many anonymous Nganasan in the Soviet newsreel (although Anna is briefly named in the 1954 documen-
tary, she is just one name among others). The process of recrediting and footage repatriation is common to many indigenous films, often combining
archival footage and images of Indigenous spectatorship as a way to claim older media images. Identification of unnamed indigenous persons in
outsider footage (be it fictional, documentary or amateur) is crucial in the context of the systemic, historical practices of renaming or refusal to 117
name indigenous individuals in outsider film credits (HEARNE, 2012). Consequently, recrediting is a heavily politicized practice. As Joanna Hearne
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(2012, p. 207) has argued about Native American films: “The recrediting or recaptioning also functions, like film credits, to ascribe aesthetic and
titular rights through the acknowledgement of the origins of the image.” It is therefore both a cinematic way to revise dominant history and to re-
claim film footage. In the recent years, the moving image issue has been at the centre of memory claims: access to film archives, particularly to
ethnographic visual documents preserved in the West, is demanded by indigenous peoples in a multidimensional process: to re-appropriate parts
of their culture, criticize outsider scientific interpretations or prove the continuity of tradition and occupation of the land (BULANE-HOPA, 2011;
PETERSON, 2013).

However, the re-use of archival footage can also be a double-edged process. Using the juxtaposition of archival Soviet footage and newly fictional
images, Seven Songs from the Tundra is entirely shot in grainy black and white, which, it must be stressed, is an exception rather than the rule in
1990s cinema. This aesthetic choice can be read as a way to create “new” historical photographs (WOOD, 2008, p. 143), but also as a way to inte-
grate the Soviet past, in the form of film material, into the present of the indigenous people of the Russian North. In Seven Songs from the Tundra,
the materiality of the black and white archival footage “contaminates” the entire film. As a matter of fact, Lapsui and Lehmuskallio’s work does not
intend to erase the past. On the contrary, it must also be read as a product of Soviet history. This latter aspect is mostly reflected in the narratives,
which often revisit the Soviet historical period and its consequences for indigenous peoples in the present, as noted earlier with the examples of

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Pudana, last of the line and Anna. But it can also be reflected in more formal aspects like the black and white in Seven Songs from the Tundra, or
with the use of the biographical narrative.

4 A hybrid narrative for a plural (pseudo-)autobiographical voice

Like several other indigenous films, Lapsui and Lehmuskallio use first-person narrative as a way to express an insider point of view. The narra-

Dossiê
tives often draw on elements from Anastasia Lapsui’s biography. This choice has implications on their cinematic style, which pays a great deal
of attention to self-expression and (pseudo-)interview device, and therefore blurs the filmic categories of documentary and fiction. Film scholars
and critics have had trouble describing the style of Lapsui and Lehmuskallio. Quite often, their films are classified as documentaries. Even when
they are obvious fictions like Pudana, last of the line or Bride of the Seventh Heaven (Jumalan morsian, 2003), they can be branded “ethnographic
ecodocumentaries” (KÄÄPÄ, 2014, p. 174). This label is a consequence of the close association of the documentary style both with indigenous peo- 118
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ples and the Arctic. Documentary cinema was used in the majority of films made by, in, and about the region, and appears to be one of the most
influential conduits in the construction of an Arctic imaginary (KAGANOVSKY and WESTERSTAHL STENPORT, 2019). Furthermore, in film history,
non-fiction is often seen as the privileged form to record peoples perceived by outsiders as primitive (PIAULT, 2000). Although this idea is incorrect
in view of the history of cinema and the recent rediscovery of indigenous people’s participation to early fiction cinema (RAHEJA, 2010; HEARNE,
2012), it is persistent. As a result, indigenous peoples, perceived as “natural peoples”, are visually imagined according to a cinematic regime that
locks them up into the supposed “natural” genre of film, leaving all the room for fiction to the “cultural peoples”. This reinterpretation of the Western
culturally constructed opposition between Nature and Culture applied to cinema circumscribes and limits the possibility of indigeneity within a
certain restricted semiotic field, often materialised in ethnographic or documentary cinema. Finally, the documentary label also refers to Western-
ers lack of knowledge of indigenous cultures. When watching indigenous films, non-indigenous viewers tend to focus their attention on cultural or
“exotic” aspects to learn information unknown to them, thus seeing documentary images even in clearly established fictions.

In an attempt to move beyond this simplistic duality, another label is even more often used to describe Lapsui and Lehmuskallio’s style: poetic
(OSWOOD, 2012). I my opinion, this label is sometimes too swiftly used precisely to express the impossibility to define their cinematic style and
therefore has to be questioned. Lapsui and Lehmuskallio’s cinematic style definitely dodges the classical narrative form. One of their particular sty-

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le figures is the interview. As discussed above, the interview creates the conditions for first-person narration, an issue that is vital in the historical
context of the silencing of indigenous people in outsider cinema, as in the case of the documentary Anna. By so doing, the interview device is used
according to the classical aesthetic codes of documentary. But a characteristic of Lapsui and Lehmuskallio’s work is that their use of the interview
device is not limited to documentaries, but also integrated to their fictions.

This is the case in Pudana, last of the line, which combines classical fictional narrative aesthetics with pseudo-interviews. To tell the story of Neko,
the narrative goes back and forth between the 1960s, when the little girl is taken to the residential school, and the present, when Neko, now an
adult, looks back on her past. The film, which makes clear reference to Lapsui’s life, constantly oscillates between fiction and documentary aes-
thetics, disrupting filmic categories. The scenes where Neko is an adult are fictional images (with an actress saying her lines), but are filmed in

Dossiê
non-fiction style, reproducing the interview device (the actress impersonating Neko speaking alone to the camera in front of her) (Figure 10). At
first sight, this blurring of the two main cinematographic modes seems to correspond to the two space-times of the narrative: one set in the past
(school time) treated in the fiction mode; and the other set in the present (interviews and life story) in the documentary mode. But it turns out that
the blurring of the two cinematic modes spreads out to the entire film. At some chosen moments, the classic fictional narrative is interrupted and,
without any transition, turns into an interview. This is the case in the sequence where Neko’s mother returns to the tundra after a long absence: in
the middle of the scene, the actress, who was interacting with the other characters, turns to the camera, looks at the spectators straight in the eye 119
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and starts to tell her story (Figure 11). As a result, the narrative switches from classical fiction regime (where the spectator is carefully left outside
the narrative) to a direct address to the spectator. When she has finished, the story resumes as if it has never interrupted and the film goes back
to classical fiction narrative style again. With this narrative strategy, Lapsui and Lehmuskallio emphasize the vital importance to give voice to all
indigenous characters.

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Figure 10. Pudana, last of the line (2010). Screenshot. 120
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Figure 11. Pudana, last of the line (2010). Screenshot.

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While their films blur the fragile frontier between fiction and documentary, other cinematic modes can be added. For example, the film Fata Morga-
na, which focuses on the Chukchi people, combines several types of images in the narrative: documentary images (here again with an interview),
archival footage (in the process of re-viewing earlier cinematic images) and volume animation (to visually create the Chukchi mythical world). By
so doing, Lapsui and Lehmuskallio’s films invent a composite filmic language that can be seen as the reproduction of the communication between
the two of them. When Lapsui and Lehmuskallio started to collaborate, they first had to find a common language. As Lehmuskallio has declared: 121
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“When we met more than 20 years ago, we had no common language, we only had gestures. Anastasia didn’t speak English at all. In the beginning,
we spoke Russian, which I knew a little. Over time, our communication developed in a language that mixes Nenets, Russian, Finnish and English”
(DELAFONTAINE, 2013). In the same way that their collaboration required the invention of a composite language, their films integrate several cin-
ematographic modes that are interwoven with each other with great freedom.

In this composite film language, the transversal use of the interview device is significant. Moving between fiction and non-fiction, the interview
puts indigenous individual speech at the centre of attention. Yet, it has to be noted that, during the Soviet era, this narrative style was one of the key
elements put forward by Soviet power in the creation of an indigenous intelligentsia literature. The autobiographical, pseudo-autobiographical or
para-autobiographical theme, intermingled with the description of revolutionary changes, was an essential part of the nascent Soviet indigenous
literary canons encouraged by the regime (TOULOUZE, 1998). Re-using this autobiographical form, Lapsui and Lehmuskallio’s work demonstrates
a stylistic continuity with Soviet-era stylistic principles. Numerous autobiographical elements from Anastasia Lapsui’s life are scattered throughout
their films. This is the case with the above-discussed theme of school, but other autobiographical elements can be found. For example, Bride of
the Seventh Heaven, the duo’s second feature-length fiction film, tells the story of a blind little Nenets girl who lives with her grandmother. Know-
ing Lapsui’s story and the fact that she lost eyesight as a child, it is easy to trace the origin of the script. Of course, it must be underlined that the

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films, while they adopt some formal aspects of Soviet indigenous literature, differ considerably from these narratives when we look at their con-
tent. Whereas Soviet indigenous texts celebrated the October Revolution and the many changes it implied for indigenous ways of life, Lapsui and
Lehmuskallio use the autobiographical interviews as a means to talk back to the former power from another point of view. As a result, their films
are hybrid narratives. They coalesce documentary and fictional styles with the use of the interview device, but this emphasis on self-expression
can also be seen as the mark of Soviet aesthetics. Interweaving real features from Lapsui’s life to fiction but also the biographies and life stories of
other indigenous individuals, their films create pseudo-autobiographical narratives.

This collective autobiographical film form resonates with the plurality of indigenous voices staged in their films. Of course, the Nenets are at the
centre of many of their films: Seven Songs from the Tundra, Bride of the Seventh Heaven and Pudana, last of the line. But several films address the

Dossiê
cultural worlds and histories of other Northern indigenous peoples. Fata Morgana is based on Chukchi legends. Anna focuses on the Nganasan, a
people who live in the Taimyr Peninsula in Northern Siberia. Sacrifice—a film about a forest (Uhri—elokuva metsästä, 1998) tells the story of a Selkup
clan’s life along the Taz River in Siberia. Sami (Sápmelas – Saamelainen, 2006) is about the Sami, a people living in the North of Scandinavia and
Russia. Lapsui and Lehmuskallio’s plural voice is put at the service of different indigenous peoples. By so doing, their films are a conduit for self-ex-
pression of diverse indigenous peoples who share the common traumatic experience of “disruptions in cultural knowledge, historical memory and
identity between generations due to the tragic but familiar litany of assaults” (GINSBURG, 1991, p. 104). 122
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This plural style must be linked to the concept of “visual sovereignty” created by Michelle Raheja (2010) in relation to indigenous Native American
cinema, and that she defines as the act of self-representation through indigenous media, in a variety of political, economic and cultural contexts,
but where contemporary media practices enter into dialogue with the past and enable indigenous cultural consolidation. Visual sovereignty im-
plies that indigenous people cease to be the “objects” of the film to become “subjects” and therefore use the filmic medium in their own terms in
a first-person self-expression mode. It is important to bear in mind that this first-person expression can be individual, collective, or plural. In the
case studied here, the plural pseudo-autobiographical voice used in Lapsui and Lehmuskallio’s work embodies the ruptures in time and history,
cultural dispossession, traumatic abuses, and loss of identity shared by all Siberia indigenous peoples who have made it through the Soviet period.
In addition, this plural voice counters the soliloquy of Soviet outsider cinema (such as the Russian authoritative voice-over silencing indigenous
individuals in Anna), which tells only one side of history.

Conclusion: Lapsui and Lehmuskallio’s “filming back”

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Anchored in Fourth Cinema, which marks the re-appropriation of the moving image by indigenous peoples, the Siberian films of Anastasia Lapsui
and Markku Lehmuskallio constitute a filmic response to outsider representations. Deeply inscribed in the space of (post-) Soviet Russia, these
films offer specific aesthetic and narrative perspectives that engage with Soviet heritage. As a result, they can be viewed as hybrid objects, both
from the Soviet era and products of the post-Soviet openly asserted refusal to disappear as a culture. They give voice to Siberia indigenous peo-
ples as a means to re-view earlier Soviet discourse of equality, integration, and progress. In terms of formal aspects, the filmmakers use two main
aesthetic strategies. The first one is the re-use of Soviet archival footage that enables to rework the past, reclaim images, and recredit indigenous
individuals who were just one of many anonymous indigenous people in outsider cinema. The second strategy consists in the creation of a plural
voice, echoing the shared experience of the peoples of the North and expressed in a wide variety of cinematic modes. That plural and pseudo-
-autobiographical voice both breaks the long Soviet monologue and opens a dialogue across indigenous communities in a way that does justice

Dossiê
to cultures deprived of their own speech in dominant cinema. Analysing Lapsui and Lehmuskallio’s specific aesthetic and narrative strategies of
re-appropriation makes it possible to demonstrate that formal issues can be as political as content or as the reverse of the gaze can be.

More broadly, looking at formal aspects of indigenous films may help us rethink and refine our understanding of such notions as “talking back”
and “shooting back” that are often used indifferently. Reserving the notion of “filming back” to strictly filmic formal and aesthetic issues gives us 123
the means to propose a division with and between the two former notions. Within that new grid, “talking back” issues, which focus primarily on re-
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presentations and indigenous replies to earlier outsider misrepresentations, and “shooting back” processes, which engages with strategies of film
production and the reverse of the gaze, would have to be differentiated from “filming back” concerns, which concentrate on cinematic strategies
of re-appropriation and re-interpretation in order to invent their own self-expression style. In the case of Lapsui and Lehmuskallio, their films “talk
back” to earlier representations and Soviet discourse in order to give the indigenous side of the story. As a collaborative work, which reverses the
imperial gaze, they are exemplary of “shooting back” strategies of production. Adding the concept of “filming back” enables to move beyond the
strict issues of text content and point of view to concentrate more on style and aesthetics within the larger framework of an intertextual dialogue
with outsider cinema. On that matter, Lapsui and Lehmuskallio’s cinema, with their original-but-difficult-to-describe film style, gives us a powerful
example of what “filming back” could mean.

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“Filmar de volta” no Cinema Indígena da Sibéria: Estratégias de Re-apropriação Cinematográ-
fica no Trabalho de Anastasia Lapsui e Markku Lehmuskallio

Resumo: Este ensaio explora os filmes siberianos de Anastasia Lapsui e Markku Lehmuskallio. Concentra-se nos meios fílmicos em-

Dossiê
pregues para “filmar de volta” (film back) o cinema dominante. Recorrendo ao método da análise fílmica, demonstra como a forma do
filme pode ser tão política quanto os conteúdos que veicula, nomeadamente quando mobilizada para dar voz aos povos autóctones da
Sibéria e para revisitar discursos prévios soviéticos em torno da igualdade, da integração e do progresso. O ensaio chama a atenção
para duas estratégias formais usadas pelos realizadores para “filmar de volta”: a re-apropriação das imagens de arquivo para retra-
balhar o passado e valorar indivíduos indígenas; e a criação duma voz plural pseudo-autobiográfica capaz de romper o monólogo 127
soviético e de encarnar a experiência partilhada indígena. Enfim, o artigo argumenta que considerar aspetos formais nos ajuda a rep-
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 100-129 | Jan - Jul | 2021

ensar noções como talking back e shooting back, tantas vezes usadas de forma indiferente, bem como o conceito de “filmar de volta”
(reservado a questões fílmicas).

Palavras-chave: Cinema Autóctone da Sibéria; Re-apropriação Fílmica; Estética Cinematográfica; Anastasia Lapsui; Markku Lehmus-
kallio.

Recebido em 10 de julho de 2020

Aprovado em 31 de março de 2021

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Dossiê
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> Luzes acesas: encontros, traduções e agên-
cias na Mostra de Cinema Tela Indígena
Resumo > Ana Letícia Meira Schweig
Este artigo debate os cinemas indígenas através de sua recep- Mestra em Antropologia Social
ção e agência frente ao público. Os relatos e análises aqui tra-
tados se baseiam na experiência dos autores de organizar um
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
projeto voltado para os cinemas e as artes de povos originá-
rios no sul do país, a Mostra Tela Indígena. Nas quatro edições
deste projeto, diversos filmes feitos no Brasil e nas Américas
Eduardo Santos Schaan
foram exibidos para um público composto tanto por não indí- Mestre em Antropologia Social
genas quanto por indígenas. Discutimos os cinemas e outras Universidade Federal do Rio Grande do Sul
expressões artísticas na mostra já citada, tratando-os como
uma agência que produz novos contatos e encontros. A cir-
culação dessas obras, junto de seus criadores, mostra como a Geórgia de Macedo Garcia
tela do cinema é um potente espaço de continuidade do fazer Mestra em Antropologia Social
fílmico, de encontros e de realização de uma cosmocinepo-
lítica. Nosso intuito, desse modo, é refletir sobre os espaços Universidade Federal do Rio Grande do Sul
pelos quais os filmes circulam e como eles agenciam novos
discursos, encontros e produções.
Marcus A. S. Wittmann
Palavras-chave > Doutorando em Antropologia Social
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Cinema Indígena; Mostra de Cinema; Cosmocinepolítica; Etnologia
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 129-151 | Jan - Jul | 2021

> Luzes acesas: encontros, traduções e agências na Mostra


de Cinema Tela Indígena
Ana Letícia Meira Schweig
> anameira93@gmail.com
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Eduardo Santos Schaan

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> eduardo.schaan@gmail.com
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Geórgia de Macedo Garcia


> demacedo.georgia@gmail.com
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Dossiê
Marcus A. S. Wittmann
> wittmann.marcus@gmail.com
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Introdução

A sala de cinema da Cinemateca Capitólio é vermelha-escura. O chão, as paredes, as poltronas são igualmente aveludados e avermelhados. A
sala, quando vazia, carrega um vasto silêncio que é observado por uma grande tela branca. Quando o filme começa, esse enorme vazio se torna
som e luz, abraçando o espectador. Nas sessões de cinema das mostras Tela Indígena o espaço não é compartilhado apenas por esses objetos
e espectadores silenciosos, e docilmente educados para manter o silêncio, a etiqueta e a postura supostamente convencionada de uma sala de
cinema. Ao contrário, o espaço é partilhado por crianças indígenas subindo e descendo escadas, brincando, rindo e, também, prestando extrema
atenção nas imagens que dão cor à tela branca.

Nas edições dessa mostra, o espaço do cinema recebe novos ares, novas cores, sons e pessoas. Quem adentra a Cinemateca Capitólio em um dia
de exibição é recebido pelos sons de línguas nativas, por famílias vendendo os artesanatos de seus povos, por crianças correndo e se divertindo,
pela possibilidade de encontro com pessoas indígenas de todo o Brasil e, em algumas oportunidades, pelos sons dos chocalhos, pelas batidas dos
pés no chão, pelo ritmo e canto de danças. Ir em uma sessão da Tela Indígena não é só assistir a um filme indígena, é entrar em outro território,
um território habitado pela diferença, de línguas, culturas, de corpos, de ser e de estar no mundo. A experiência não se restringe nem acaba após

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a exibição do filme, não se finda apenas no audiovisual, é sensória, é corporal, é uma vivência de estranhamento que não inicia com os créditos
iniciais, mas sim, desde que se entra no cinema.

A partir da nossa experiência como organizadores desta mostra de cinema, construímos esse artigo com o objetivo de refletir sobre os cinemas
indígenas em sua diversidade de gêneros, povos e linguagens e sua confluência com outras expressões artísticas e políticas. Falamos aqui de
cinemas e artes indígenas no plural, pois, como argumentado por Lagrou e Van Velthem (2018, p. 143), as estéticas ameríndias são muito diversas,
tendo particularidades cosmológicas, históricas e culturais que impossibilitam uma homogeneização. Do mesmo modo, Brasil (2016, p. 126) apon-
ta que falar de “cinema indígena” é tanto uma abstração do fazer cinema quanto do ser indígena, as especificidades de cada coletivo indígena e

Dossiê
audiovisual devem ser levadas em conta quando se fala de suas produções.

Ao longo do texto, vamos refletir sobre como os festivais e mostras de cinema são espaços de divulgação e circulação de filmes, mas também
de fazer antropológico. Apresentaremos questões em que o papel da produção e a antropologia se articulam, como ações que podem parecer
burocráticas e organizativas são, também, espaços de cosmopolítica. O intuito do texto não é analisar a produção de obras audiovisuais específi-
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cas, assunto esse amplamente analisado em diversos trabalhos1. O olhar etnográfico é voltado para essa experiência de curadoria, organização e
produção de um evento de divulgação e exibição dessas obras.

A produção da Mostra de Cinema Tela Indígena vem nos mostrando algumas das formas que os filmes, após a sua finalização de edição, conti-
nuam criando encontros. Compartilharemos alguns momentos que nos fazem pensar o espaço de exibição de filmes, que é acompanhado de rea-
lizadores, diretores, artistas, lideranças indígenas e outras, como território de continuidade daquilo que inicia com as câmeras nas comunidades.
Filmes que falam por si mesmos, que agenciam e entram em relação com outras produções, pessoas, sonhos e resultam em novos encontros e
criações. Nossa proposta é pensar a mostra de cinema como território de cosmocinepolítica (CAIXETA DE QUEIROZ, 2008), em que as imagens
são continuadas, produzindo efeitos. A proposta é pensar não só os filmes como sensibilização do público, mas também o fazer cinematográfico,
imagens e encontros como potentes formas de lutar por direitos dos povos indígenas.

1 Cinemas indígenas e a região sul

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Festivais e mostras de cinema são um dos principais meios pelos quais uma obra audiovisual pode se fazer vista, além de caracterizarem impor-
tantes canais de difusão de obras de realizadores, especialmente quando há uma diferença de décadas entre o acesso de indígenas e não indíge-
nas ao cinema e à estrutura para produzir filmes. Diversas etnias já contam com seus próprios cineastas e coletivos de cinema2. Mesmo assim, a
arte dessas diversas comunidades no interior do país ainda é pouco divulgada e tem uma vazão pequena para o seu potencial. Festivais e mostras
de cinema são, portanto, importantes realizações para inclusão e divulgação de obras que ainda não se instalam nos circuitos comerciais tradicio-
nais de difusão e comercialização. A Tela Indígena é um dos nove festivais ou mostras no Brasil focados apenas em produções indígenas, sendo
os outros: Aldeia SP, Mostra Paraguaçu de Cinema Indígena, Cine Kurumin, Cine Tekoha, Mostra Amotara, Mostra Indígena de Filmes Etnográficos
do Ceará, Mostra Cine Índio Brasil (FREITAS, 2018) e a Mostra Cine Flecha.

Dossiê
A ideia de fazer uma mostra de cinema e arte surgiu a partir das reuniões do Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), coordenado pelo professor doutor Sergio Baptista da Silva. Desde a graduação,
1 A bibliografia é extensa, apontamos aqui alguns trabalhos mais recentes que abordam especificidades de diferentes povos e coletivos de cinema indígena como: Brasil e
Belisário (2016); Caixeta de Queiroz e Diniz (2018); Demarchi e Dias (2018); Felipe (2019).
2 Para citar alguns, a Tela Indígena já recebeu artistas do Coletivo Beture de cineastas Mebêngôkre (PA), Comunicação Kuery de cineastas Mbya Guarani (RS) e o Coletivo de 132
Cinema Kalapalo (MT), além de ter exibido produções do Coletivo de Cinema Kuikuro (MT) e Coletivo de Cinema Fulni-ô (PE).
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os membros da equipe têm relações diversas com o cinema e povos indígenas. Inspirados por projetos de engajamento de práticas indigenistas,
antropologia e cinema, como o Vídeo nas Aldeias3, nos perguntávamos, enquanto pesquisadores, quais outras ações poderíamos realizar afim de
apoiar o crescente número de estudantes indígenas nos cursos de graduação e pós-graduação. Além de ajudar a construir um ambiente univer-
sitário e acadêmico baseado no estabelecimento de diálogos com lideranças e anciãos indígenas regionais, entendendo-os como aqueles deten-
tores do conhecimento – e não interlocutores para que o conhecimento seja produzido. E, por fim, como ocupar os espaços metropolitanos com
assuntos e temas de extrema importância para a população indígena local. Os filmes e a tela de cinema foram os espaços que pensamos para dar
continuidade àquilo que se inicia do encontro dos realizadores com as câmeras no interior de suas aldeias. Num primeiro momento, percebemos
o quanto o audiovisual estava cada vez mais sendo utilizado para tratar de aquisição de direitos e denúncias de violências, invasões e tantas ou-
tras questões que atravessam as comunidades. Nas nossas trajetórias enquanto pesquisadores e indigenistas, acompanhamos diversos grupos,
e encontramos na sala de cinema um espaço possível para dialogar sobre política, imagem, música, direitos, cosmos.

As edições da mostra ocorreram em dois cinemas diferentes. A Sala Redenção, um cinema universitário da UFRGS, e na Cinemateca Capitólio,
um prédio de 1928 que, na década de 90, foi restaurado e declarado como Patrimônio Histórico do Município de Porto Alegre (em 1995) e do Es-
tado do Rio Grande do Sul (em 2007). Os dois são cinemas públicos de rua. Ambos são importantíssimos para realização de mostras e projetos

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não comerciais. A Sala Redenção exibe filmes de forma gratuita e está localizada dentro da universidade. A Cinemateca Capitólio é um local com
muita visibilidade e tradição no cinema. Realizar uma mostra de cinema gratuita nesse local consiste em ocupar não só a tela, mas também o cen-
tro da capital gaúcha com artistas, artesãos, lideranças, pajés, cineastas e público de diversas aldeias de forma reconhecida. Além da constante
presença das pessoas Mbya Guarani e Kaingang da região Sul, a mostra recebeu artistas e lideranças dos Povos Kalapalo (Xingu- MS), Maxakali
(MG), Mbya Guarani (RS/SP), Guarani Nhandeva (SP), Guarani-Kaiowá (MT), Kaingang (RS), Baniwa (AM), Bororo (MT) e Kayapó (PA). Assim,
esses dois espaços de referência na cena cultural da cidade reuniram mais de três mil pessoas para assistirem mais de 50 filmes de diversos po-
vos indígenas das Américas.

O Rio Grande do Sul é um estado com visões racistas e preconceituosas arraigadas em relação às populações indígenas. No mesmo ano que

Dossiê
iniciamos o projeto, um estudante indígena da UFRGS foi brutalmente espancado em frente à Casa de Estudantes da Universidade4, localizada
próxima ao cinema da universidade que exibia os filmes. Além do mais, ainda existe o senso comum de que no sul do país não há mais indígenas
ou ainda que esses estariam “aculturados”. A visão preponderante é que apenas há populações indígenas na Amazônia, sendo assim, os povos
Guarani, Kaingang, Laklanõ/Xokleng e Charrua, mesmo com seus territórios demarcados perto de centros urbanos, são invisibilizados nas ci-
3 Ver, por exemplo, Gallois e Carelli (1995) e Caixeta de Queiroz (2008).
4 Disponível em: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/03/estudante-indigena-faz-denuncia-pf-apos-ter-sido-espancado-no-rs-video.html (Acesso em 133
28/07/2020)
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dades. Víamos nesse projeto, inspirados pelas lutas indígenas através do cinema e das mídias, um modo de fortalecer as narrativas contra este
pensamento e contribuir na abertura de espaços na cidade para que os povos indígenas do Rio Grande do Sul se expressassem. Isso se deu tanto
pela presença de famílias e lideranças dos territórios da grande Porto Alegre durante os dias da mostra, quanto pela exibição de obras audiovi-
suais Mbya Guarani e Kaingang. Os Mbya Guarani do Rio Grande do Sul têm uma extensa produção de cinema, com filmes documentários, de
ficção e experimentais. Os nomes de Ariel Ortega e Patrícia Ferreira são conhecidos no âmbito audiovisual nacional e internacional, e o Coletivo
de Comunicação Kuery, formado por indígenas Mbya Guarani do estado, cada vez mais, vem ganhando seu espaço. Todavia, nem sempre há uma
divulgação ampla de seus filmes no estado e um respeito a suas trajetórias. Já o cinema produzido pelo povo Kaingang ainda é muito incipiente,
não há ainda um número extenso de filmes e nem coletivos e cineastas mais estabelecidos.

2 Etnografia entre memórias e métodos

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Quando surgiu a vontade de escrever um artigo, nos perguntamos como escreveríamos a oito mãos e sempre virtualmente. Até os encontros que
não se davam pelo arquivo on-line compartilhado eram virtuais. Cada um na sua casa, durante a longa quarentena que o Brasil enfrenta perante
a pandemia da covid-19, conversamos por Whatsapp, pelos comentários do arquivo compartilhado, por vídeo chamadas. O ano de 2020 marcaria
a V Edição da Mostra Tela Indígena, mas devido à pandemia não foi possível realizá-la. Sendo assim, resolvemos refletir sobre o que tínhamos
experienciado e aprendido nos últimos cinco anos organizando uma mostra de cinema indígena.

Nos perguntávamos se a experiência de fazer curadoria, organizar e produzir uma mostra de cinema indígena também poderia ser revisitada
enquanto dado etnográfico. Conforme Ingold (2016), é o ato de voltar o pensamento e a atenção ao que já foi vivido que torna a experiência de
estar junto aos outros, etnografia. A experiência das edições anteriores foi revisitada, por cada um de nós, nas suas casas a partir das nossas
antigas anotações da organização dos eventos, das fotografias que também são estratégia metodológica dentro da prática etnográfica moderna

Dossiê
(GRIMSHAW, 2001) e de muito diálogo virtual entre nós quatro, lembrando das diversas situações que vivemos juntos quando na organização e
produção da Mostra.

Para Goldman (2003), o trabalho de campo é parte do processo de educação do etnólogo. Dizer que a etnografia é um processo de observação
do comportamento seria diminuir a experiência de fazer cultura junto ao outro. Nesse sentido, talvez as mostras de cinema indígena possam ser
vistas como um grande encontro interétnico, com diferentes expressões artísticas e estéticas, com diferentes pontos de vista e concepções de
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cosmo, local onde há uma constante invenção de cultura junto aos outros (WAGNER, 2017). A cultura é a relação. É, mais do que isso, a invenção
do que faço para dar significado ao outro que me interpela (op. cit.).

O cinema, enquanto produção audiovisual, abre portas para que outros públicos entrem em contato com realidades, culturas, corpos e visões de
mundo distintas, formas de pensar o cinema, narrativas e cosmologias. A abertura para diferenças se estende para os espaços de exibição dos
filmes. Um espaço multiétnico habitado por diferentes pessoas, de diferentes lugares e culturas, gera uma relação inventiva não apenas entre
o eu não indígena e indígena, mas também entre povos de localidades e etnias distintas. Como veremos, a ação de tradução agenciada nessas
relações não se restringe apenas ao projetado na tela de cinema, mas vaza também para as relações fora da sala de cinema, para gestos, cantos
e danças.

A Mostra, sendo produzida e organizada por antropólogos, tem como objetivo não explicar ou analisar os filmes e seus temas para o público não
indígena, mas sim criar, através das nossas próprias experiências de vivência com povos indígenas e de produção cultural, um espaço no qual os
indígenas se expressam, comunicam e articulam suas demandas, lutas, pensamentos, filosofias e visões por meio de suas próprias palavras, ações,
modos e artes. O que notamos e aprendemos nessa experiência é que a Mostra é tanto organizada por nós quanto reinventada, ressignificada e

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reestruturada pelos indígenas presentes, ou antes durante o processo de pré-produção. Nesse sentido, será que a organização e produção deste
evento não seria uma forma que estamos experimentando de fazer antropologia? Se, por um lado, antropólogos podem atuar conjuntamente com
populações indígenas em oficinas de formação de audiovisual e na co-direção de filmes etnográficos, por outro, entendemos que a organização
e produção de eventos de arte indígena também é uma função do fazer antropológico.

Uma mostra ou festival de cinema indígena pode ser um local de ampliação e potencialização da diferença como ação política e artística. A seguir,
analisaremos alguns episódios ocorridos em edições da Mostra Tela Indígena que nos fazem refletir sobre as potencialidade e agências de filmes
indígenas e a experiência de exibir e ver essas produções com um público heterogêneo.

Dossiê
3 “Já foi tudo dito ali no filme, mas vocês gostam de mais explicações”

Diversos artigos analisam o cinema indígena através de sua produção (BRASIL, 2016; CAIXETA DE QUEIROZ, 2008; CAIXETA DE QUEIROZ e
DINIZ, 2018), pensando como os realizadores incorporam e reinventam as técnicas e narrativas internas de seus povos e com os não indígenas. 135
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Da mesma forma, os processos que envolvem a criação dos filmes, os diálogos e histórias que originam os vídeos e sua relação com eventos cos-
mológicos e políticos são refletidos em outras várias produções (BRASIL e BELISÁRIO, 2016; CAIXETA DE QUEIROZ e DINIZ, 2018). Entretanto,
a dimensão da recepção e circulação desses filmes em outros espaços interétnicos e não indígenas é um alvo menos frequente dessas reflexões
sobre arte, e é com esse foco que manteremos nosso trabalho - partindo de um caso empírico.

Em 2018, o filme Kakxop Pit Hãmkoxuk Xop Te Yumugãhã - Iniciação dos Filhos dos Espíritos Da Terra (dir. Isael Maxakali, 2015) foi selecionado
para a exibição na III Mostra Tela Indígena. Inicialmente, a produção causou perplexidade entre os curadores, pois parecia haver camadas de
significados em um ritual bastante complexo5. Do mesmo modo, narrativamente, o olhar se alternava entre diversas câmeras na mão, cujo efeito
gerava participação e intimidade com os eventos retratados - basicamente, a morte temporária e revivência de crianças após serem raptadas pelo
espírito Tatakok6 (espírito-lagarta). Pela riqueza - e incomensurabilidade - desse vídeo, selecionamo-lo para compor a Mostra, esperando que, com
a participação do diretor Isael Maxakali, pudéssemos compreender melhor seu processo criativo e os significados por trás de suas imagens. A
incomensurabilidade já citada foi a tônica a partir daí - e veremos que o tema da tradução, da riqueza imagética e do discurso irão se entrecruzar
na recepção da arte indígena.

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Durante a curadoria, sempre nos deparamos com a dificuldade de combinar as produções dentro do tempo estipulado para as sessões dos ci-
nemas. Isso acontece porque a maioria dos filmes que recebíamos tinha duração entre 5 e 40 minutos, enquanto os horários dos locais - apesar
de relativa flexibilidade e abertura de horários diante das nossas questões - tendem a ser de duas horas para cada atividade, contando a exibição
dos filmes e o debate após. Dessa forma, nossa alternativa sempre foi agrupar filmes para montar sessões. As motivações para articulação entre
as obras podem ser das mais diversas. A organização das sessões já por temas específicos como meio ambiente, infância, retomada de terras,
xamanismo e gênero, mas também se focando em produções de um diretor, coletivo de cinema ou povo específico, além de sessões que traçavam
um panorama de diferentes produções audiovisuais indígenas, misturando filmes de ficção, de animação e documentários de diferentes povos. No
caso do filme de Isael Maxakali, optamos por exibir junto a outro filme Maxakali, com co-direção do mesmo realizador, uma animação: Konãgxeka:
Dilúvio Maxakali (dir. Charles Bicalho e Isael Maxakali, 2016).

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A seguir, fizemos o convite a Isael, porém o diretor não poderia estar presente nas datas da Mostra. Sua esposa Sueli, também cineasta, do mesmo
modo, também não poderia, complicando a situação. A presença deles era vista por nós como um grande potencializador das imagens e mensa-

5 Esse filme foi analisado em trabalhos como os de Caixeta de Queiroz (2008) e Caixeta de Queiroz e Diniz (2018).
6 Alguns artigos trazem análises mais densas sobre o processo de filmagem do Kakxop Pit Hãmkoxuk Xop Te Yumugãhã. Segundo Brasil e Belisário (2016), no ritual, são os
filhos que morreram e tornaram espíritos e aqueles que ficarão momentaneamente reclusos na kuxex (casa de religião) para receber instruções sobre as maneiras de se tornar 136
homem no mundo tikmu’un.
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gens dos filmes. Alguns dias depois, ligamos novamente para Sueli. Ela disse que, de fato, não poderia estar presente, mas que o seu primo Ale-
xandre os representaria durante a Mostra em Porto Alegre. Não conhecíamos Alexandre, mas aceitamos a indicação e, meses depois, ele chegava
à cidade para sua participação como debatedor. Envergonhado e bem disposto, Alexandre falava pouco da língua portuguesa. Perguntamos se
ele se sentiria confortável para debater na frente da plateia - mas ele não via problemas. Na época, nos questionamos como ele faria um debate,
mas logo seríamos surpreendidos.

Na recepção do hotel onde todos os convidados estavam hospedados, Alexandre encontrou e abraçou Cris Takuá7, filósofa Maxakali que vive há
anos com os Mbya Guarani de São Paulo, ficando muito emocionados com o reencontro que não acontecia há alguns anos. Sugerimos que os dois
participassem da conversa após a sessão com os filmes Maxakali, propiciando assim um diálogo maior e visões diversas dos temas retratados
nas obras8. Após a exibição do filme - marcado pelos apitos agudos utilizados no ritual -, Cris Takuá e Alexandre Maxakali foram apresentados e
convidados a se sentarem no pequeno palco que fica localizado abaixo da gigante tela da Cinemateca Capitólio.

Cris Takuá conversou sobre a vida dos Maxakali no interior de Minas, quando eram desconsiderados e ignorados até poucos anos atrás, e sobre
o duro, brutal e violento período da Ditadura Civil Militar9. Falou sobre a tentativa, por parte de um Estado colonizador, do extermínio da língua

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Maxakali, que já era hora dos não indígenas aprenderem as línguas indígenas e não o contrário. Quando Alexandre tomou o microfone, apenas
falou “boa noite” e, durante alguns momentos, afirmou que participou do filme e contou breve e resumidamente o mito de origem de seu povo,
com muita vontade de se comunicar. A seguir, mudou de postura e perguntou se poderia cantar em sua língua materna. Prontamente concorda-
mos. Alexandre olhou para o público e disse “bom, então eu vou cantar uma música porque vocês têm que aprender”, tirou de sua bolsa de fibras
de embaúba, confeccionada pelas artesãs Maxakali, um chocalho Mbya Guarani, que tinha adquirido das artesãs que tinham vindo acompanhar
esse dia da Mostra, e iniciou seu canto acompanhado dos movimentos do chocalho e da batida de seu pé. Sua participação encerrou-se nesse
momento, os aplausos e o clima de perplexidade e arrebatamento na sala de cinema demonstraram a força de seu canto.

Dossiê
7 Cristine Takuá é filósofa, educadora e artesã indígena, vive na aldeia do Rio Silveira, São Paulo. Trabalha e estuda há mais de 10 anos plantas medicinais. Nessa Tekoa é professora da Escola
Estadual Indígena Txeru Ba’e Kuai’ e, também, auxilia nos trabalhos espirituais na casa de reza, Opy. É Fundadora e Conselheira do Instituto Maracá e represente por SP na Comissão Guarani
Yvyrupa (CGY). Também é representante do núcleo de educação indígena dentro da Secretaria de Educação de São Paulo e membro fundadora do FAPISP (Fórum de articulação dos professores
indígenas do Estado de SP).
8 Essa é uma informação importante para a organização da Mostra. Apesar da programação e dos convidados serem pensados e organizados meses antes do evento, durante
ele, é necessário tornar essa programação fluída. Não foram poucas as vezes que outras pessoas acabaram fazendo parte dos oradores das rodas de conversa ou dos debates
após as sessões. 137
9 O período militar é abordado no documentário GRIN (2016) de Isael Maxakali e Roney de Freitas. O filme traz imagens da militarização de indígenas de diversos povos para
formação da Guarda Rural Indígena, em Minas Gerais.
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Mesmo assim, de certa forma ainda havia certa expectativa de que o cineasta Alexandre discutisse ou explicasse seu filme, seu processo de
criação, as técnicas utilizadas e os significados do ritual retratado. Não obtivemos nada, ou melhor, obtivemos muito mais do que isso. Como Cris
ressaltou durante sua fala, o fato de Alexandre não falar a língua portuguesa era um ato de resiliência do Povo Maxakali. O diretor não veio (ainda
que o filme tenha sido realizado por muitas mãos); não havia domínio da língua portuguesa que permitisse, aos não conhecedores da língua Ma-
xakali, algum tipo de diálogo sobre o filme; Alexandre não podia explicar a nós (que temos tantas vontades de explicações) sua arte. Como disse
a Cacica Mbya Guarani Julia, após a exibição do seu filme (Opy’i Regua, dir. Júlia Gimenes e Sérgio Guidoux, 2019) durante a IV Tela Indígena: “já
foi tudo dito ali no filme, mas vocês gostam de mais explicações, então eu tenho que falar”.

Como espectadores de cinedebates, estamos acostumados a permanecer na sala de cinema após a exibição de alguma obra para ouvir, geral-
mente do diretor, o processo de realização do filme, motivações, aspectos técnicos. Muitas vezes, esperamos algum tipo de explicação. As per-
guntas do público e a fala do debatedor geralmente abordam a produção que foi anteriormente exibida. Em eventos onde são exibidos filmes de
cineastas indígenas, - principalmente os realizados em abril, em comemoração ao dia do índio por diversas instituições - geralmente são convida-
dos pesquisadores, antropólogos e lideranças indígenas locais para debater alguma questão. Na maioria das vezes, há impossibilidade de trazer
os cineastas envolvidos na produção, mas, também, há um certo deslocamento do debate que gira não tanto em torno das questões técnicas e

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criativas do cinema, mas sobre a questão indígena, algumas vezes de forma mais ampla.

Na Mostra Tela Indígena, buscamos trazer os cineastas para que possam falar sobre suas obras após a exibição. No entanto, durante as conversas
notamos que, frequentemente, os debates se voltam para temas que podem ter sido abordados nos filmes ou não diretamente. Assim, muitas
lideranças e outros artistas também se agregam ao debate com diferentes perguntas, relatos de experiências, cantos, danças, entre outros movi-
mentos. Os filmes exibidos servem, assim, tanto como um chamariz para o público ir ao evento (o cinema indígena é uma grande fonte de curio-
sidade e interesse), quanto como um agente de abertura para outras expressões artísticas, políticas e culturais. Uma sessão de cinema indígena
não se resume apenas ao cinema. A arte indígena presente no evento não se restringe apenas aos filmes, mas está nos corpos, nos adornos, nos
artesanatos expostos, nos cantos, danças e falas dos convidados. A mostra de cinema é transformada em um evento sinestésico, não tanto pela

Dossiê
intencionalidade dos organizadores, mas, principalmente, pelas ações e intenções dos próprios indígenas. O evento congrega várias armadilhas
(GELL, 2001; DEMARCHI, 2009), várias expressões artísticas e objetos de arte que capturam o olhar, a escuta, o olfato, o pensamento e o corpo do
espectador, seja ele indígena ou não. A Tela Indígena, sendo composta por um conjunto de armadilhas, também é capturada pela experiência da
estética relacional ameríndia (LAGROU, 2018; LAGROU e VAN VELTHEM, 2018; SEVERI e LAGROU, 2013), estando em constante transformação
de uma sessão de cinema para uma conversa, um discurso, uma exposição de demandas e reivindicações políticas, para um canto, uma dança,
para um ritual coletivo. 138
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Nesse episódio com Alexandre, havia uma série de incomensurabilidades - de buracos e falhas de comunicação, tradução e diálogo na sua
apresentação. É sobre essas falhas e saltos que tecemos nossos argumentos, pois a construção das pontes - a tradução - entre esses diferentes
contextos, objetos e pessoas é o resultado da cosmocinepolítica. Conforme Caixeta de Queiroz e Diniz (2018) em seu artigo Cosmocinepolítica
tikm’n-maxakali: ensaio sobre a invenção de uma cultura e de um cinema indígena, a imagem para os Maxakali não funciona como uma represen-
tação, mas sim como um aspecto material, como uma sombra ou extensão da pessoa. Esse não envolvimento da imagem com a representação
exclui o domínio imagético das divisões ocidentais entre aparência e ser e, por consequência, entre verdade e falsidade. Da mesma forma, em “Da
tradução como criação e como crítica”, Haroldo de Campos (2006) defende que é impossível traduzir textos criativos - o que permite uma segunda
possibilidade, a saber, sua recriação. Esse seria o trabalho da tradução crítica, ou seja, recriar textos artísticos e, em último caso, traduzir não só
palavras, mas o signo. Quanto mais permeado de dificuldades, mais espaço e possibilidades de criação esse texto permite. Nesse processo, tra-
duz-se não apenas o significado, mas o próprio signo, inclusive sua dimensão material, imagética - ou seja, icônica. É o oposto, portanto, de uma
tradução literal.

Nas diferentes atividades e trocas que ocorrem durante o contexto dos encontros, há diferentes tentativas de tradução do público para com os
filmes e as falas e cantos dos indígenas, assim como destes com o público não indígena. Nós, enquanto produtores e curadores, não escapamos

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disso. Todavia, procuramos controlar essas traduções, ou nos termos de Eduardo Viveiros de Castro (2018) equivocações, no sentido que a lin-
guagem e os significados nativos não devem ser traídos nesse processo. A busca é de uma potencialização da diferença, e não uma tentativa de
apresentar uma explicação homogênea desses processos de estranhamento:

A equivocação não é aquilo que impede a relação, mas aquilo que a funda e a impulsiona: uma diferença de perspectiva. Traduzir é presumir que uma
equivocação já existe; é comunicar por diferenças, ao invés de silenciar o Outro presumindo uma univocalidade – a similaridade essencial – entre o
que o Outro e Nós estamos dizendo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 254-255).

Essa discussão teórica é importante, pois o contexto de exibição dos filmes na Tela Indígena é marcado pelo caráter interétnico - a platéia é com-
posta por indígenas e não indígenas, havendo debatedores de diferentes povos. A solução escolhida por Alexandre para comunicar-se foi um

Dossiê
canto. A tradução feita pelo cineasta envolveu a recriação do ritual em outra forma ritualística, dentro da sala de cinema, com força e agência para
atingir a plateia.

O filme, nesse aspecto, funciona como uma imagem agenciadora, cujo intuito não é representar a realidade da aldeia, sem que caiba ao cineasta
explicar e contemporizar a realidade e as técnicas envolvidas, como frequentemente ocorre em debates de cinema não indígenas. O debate e a 139
interlocução entre filme, plateia e debatedor não tem como função desdobrar aspectos do filme, criando um comentário sobre ele. Essa imagem
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fílmica, no caso em questão, tem força de exibir - pela sua materialidade de extensão agenciadora - a vida Maxakali. O debate sobre essa imagem,
desse modo, não se baseia em discursar e explicar seu significado - já que está posto, mas sim, recriá-lo de outra maneira - nessa situação, o
canto.

4 O encontro das onças

Durante a III Mostra Tela Indígena (2018), o espaço da galeria da Cinemateca Capitólio ficou ocupado com a exposição das pinturas de Denil-
son Baniwa10 e Daniel Kuaray11, além da instalação do filme “Mborai e Jerojy Mbya-Guarani” (Canto e Dança Mbya-Guarani), de Werá Tukumbó
Augustinho Moreira e Kuaray Alexandre Ortega (2017). A sala de exposição tem as paredes pretas e essas obras coloriam o local. Além disso,
movimentando este espaço, a programação desta edição contou com uma roda de conversa sobre arte indígena contemporânea, com Denilson
Baniwa. Antes da atividade começar, os participantes foram entrando na pequena sala e se acomodando no chão. As crianças entravam e saiam,

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brincando e movimentando o espaço.

Iniciando a atividade, Denilson contou sobre a sua trajetória e seguiu explicando como foi o processo de criação das obras expostas. As telas que
ele estava expondo são parte da exposição “Terra Brasilis: o agro não é pop”. As obras pintadas por Denilson buscam romper com o paradigma
social integracionista de uma existência indígena que não pode ser ampliada e desenvolvida no meio social contemporâneo. Assim, o artista mos-
tra como as mesmas tecnologias promovidas brutalmente para colonizar são apropriadas e transformadas em instrumentos metodológicos de
resistência e manutenção da cultura e identidade indígena.

No final da atividade, a Kujá (pajé) Kaingang Iracema Gãh Teh12 pediu a palavra. Apontou para uma das pinturas que ele mostrava em sua apresen-
tação. Era uma imensa onça pintada. Iracema afirmou que sonhara com aquela onça. Agora, que Denilson estava ali, tinha entendido que o sonho

Dossiê
havia acontecido, pois ela receberia a visita dele.
10 Denilson Baniwa é artista visual, comunicador e curador. Denilson é do povo Baniwa, natural do Rio Negro, Amazonas. Foi Vencedor do PIPA Online 2019. Durante sua par-
ticipação na Mostra Tela Indígena, trouxe obras da exposição Terra Brasilis: o Agro não é pop!.
11 Daniel Kuaray Papa é artista visual Mbya Guarani, da Tekoá Jatai’ty, região metropolitana de Porto Alegre. Cursa Artes Visuais da UFRGS e é professor de Guarani e artes
na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Karaí Arandu.
12 Iracema Gãh Teh Nascimento é Kujá (xamã) do povo Kaingang. Atua como pesquisadora na Ação Saberes Indígenas na Escola - núcleo UFRGS, tendo um papel importante
na formação de professores Kaingang no Estado do RS. Participa ativamente de todas as edições da mostra. Durante a III e IV Edição, realizou a abertura da Mostra, bem como 140
se fez presente em todas as atividades da programação.
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O que acabara de ocorrer foi um encontro entre onças e pajés. O povo Kaingang tem sua cosmologia baseada na divisão clânica entre duas me-
tades complementares Kamé e Kajru. Esses foram os gêmeos ancestrais presentes no mito de origem do povo, mito que é continuamente reatua-
lizado no presente. Assim como os irmãos ancestrais, as coisas no mundo também são divididas entre Kamé (o que possui as marcas cumpridas,
re téj) e Kajru (o que possui marcas redondas, re ror) (SCHWEIG, 2019; GARCIA, 2019). As marcas estão presentes nos grafismos, nos corpos,
nas plantas e em todos os seres do cosmos. Dessa forma, a dualidade é presente na visualidade e no sistema xamânico Kaingang, como aborda
Baptista da Silva (2002):

Esta concepção dualista de idealmente buscar simetria nas relações entre opostos vai se refletir nas formas de sensibilidade estética Kaingang e,
conseqüentemente, no sistema de representações visuais, já que as “marcas” (grafismos) opõem e, ao mesmo tempo, aproximam os opostos, e
no sistema xamânico enquanto mediador entre os diferentes domínios do cosmo e os humanos (BAPTISTA DA SILVA, 2002, p. 195).

Dentro do sistema clânico Kaingang, a onça é um ser Kajru. Suas marcas redondas e fechadas pelo seu corpo a conectam com outros diversos se-
res também Kajru, como é o caso da própria Iracema, que compartilha com a onça a mesma parcialidade clânica, e consequentemente, a mesma
origem, subjetividades, entre outras características que não abordaremos nesse artigo13. Além disso, Iracema é Kujá, uma diplomata ou mediadora

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entre mundos.

Os pajés Kaingang possuem espíritos guias, os jagrẽ. Esses podem ter tanto a mesma marca (MARÉCHAL, 2015; CRÉPEAU, 2007), como também
marcas opostas (ROSA, 2005). Crépeau (2015) pontua que essa relação com o “guia” começa a ser negociada quando o aspirante a kujá procura,
na floresta virgem, o seu jagrẽ. No encontro, ações como a não revelação da identidade do guia ou o veto em matar animais da mesma espécie
podem ser exigidas. Em troca, o auxiliar ensina o pajé, dando acesso aos poderes provenientes da mata, auxiliando nos tratamentos dos seus
pacientes: as plantas a usar, a sua preparação, a dosagem e a duração da dieta a ser respeitada. No caso da Iracema, um de seus jagrẽ, é o mĩg,
geralmente traduzido como “tigre”, que é a onça pintada14.

A pintura apontada por Iracema, a onça pintada, é uma imagem recorrente nas obras de Denilson Baniwa. Ela está presente em diversos muros,

Dossiê
paredes de universidades, telas, adesivos, lambes colados por diversas cidades que reivindicam o território citadino como indígena15. A onça, que
é Pajé Onça, também habita Denilson em suas performances. Selecionado para a vigésima segunda Biennale of Sydney: NIRIN16, Denilson fala
13 Ver mais em Baptista da Silva (2002), Geórgia de Macedo Garcia (2019) e Schweig (2018).
14 A relação da kujá Iracema com seu jagrẽ é aprofundada na dissertação de mestrado de Clementine Marechal (2015). Também, sobre as marcas clânicas e a atuação do Kujà
no nível cosmológico e sociológico pode ser conhecida na dissertação de mestrado de Geórgia de Macedo Garcia (2019)
15 Inclusive, durante a estadia de Denilson em Porto Alegre ele pintou uma dessas onças em um muro do centro da cidade. 141
16 Disponível em: https://www.biennaleofsydney.art/artists/denilson-baniwa/ (acesso em 27 de Julho de 2020).
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sobre como os conhecimentos indígenas conectam o mundo dos humanos com outros mundos, como os dos animais e plantas. Esses mundos
invisíveis podem ser acessados pelo Pajé Onça, o mais forte Maliri (pajé) Baniwa. Dessa forma, a imagem do Pajé Onça não é uma representação
do xamã, mas é ele em si mesmo. Baniwa fala dessa relação no site da Biennale: “Meu trabalho é trazer a performance do pajé onça para os lu-
gares pelos quais eu passo, é resgatar a memória indígena e a presença de Maliri trazendo-os para esses locais. Nós precisamos ouvir o que ele
tem a dizer”17.

Entre os Baniwa, há diferentes clãs que têm sua origem nos mitos de origem do povo. Um deles, Dzauinaié, o clã “gente onça”. Segundo o antro-
pólogo Gersem Baniwa, existe uma potência transformadora de gente em onça de quem é parte desse clã (BANIWA, 2019). Assim, a imagem da
onça trazida por Denilson traz consigo mais onças – e, consequentemente, mais gente onça. Assim como Iracema, uma kujá kajru, que traz consigo
os seres que compartilham a mesma marca redonda a que pertence e seu jagrẽ (guia), como a onça, mĩg. Dessa forma, olhamos para o encontro
entre Denilson e Iracema como um encontro de outros seres, gentes e onças, nos mostrando que a atuação dos xamãs não se dá apenas no nível
cosmológico. Aliás, nos mostra como a atuação cosmológica e sociológica estão entrelaçadas.

As imagens de pintura e de luz, assim como os sonhos, comunicam. Os xamãs são aqueles que podem habitar e ver diferentes mundos assumin-

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do o papel de interlocutor no diálogo transespecífico (VIVEIROS DE CASTRO, 2017). São como diplomatas cósmicos, aqueles que se dedicam a
traduzir pontos de vistas ontologicamente heterogêneos (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 320). Para além do xamã, Isabelle Stengers (2018) em
sua proposta cosmopolítica também discorre sobre o papel do diplomata. Diferente do expert, o diplomata é o que faz “suspender a anestesia
produzida pela referência ao progresso ou ao interesse geral, o de dar voz àqueles que se definem como ameaçados” (STENGERS, 2018, p. 461).

Aproximando essas teorias com o contexto cinematográfico, Caixeta de Queiroz e Diniz (2018) pensam a costura entre cinema, xamanismo e cos-
mopolítica a partir da experiência na produção fílmica junto aos Maxakali. Segundo os autores: “cineastas indígenas não fazem apenas cinema,
mas ritual e política através de seus filmes, ou seja, uma espécie de cosmocinepolítica” (CAIXETA DE QUEIROZ e DINIZ, 2018, p. 66). A reflexão,
aqui, não se dá no sentido de uma possibilidade da encenação de rituais, como feito por este autor, mas no sentido de apropriação e transforma-
ção de um espaço, de um evento. Neste caso, em que medida uma mostra de cinema indígena não seria, também, transformada em um ritual que

Dossiê
acontece através da projeção de imagens, sejam os filmes na grande tela branca, as pinturas expostas dos artistas visuais ou, ainda, os sonhos que
avisam que parentes estavam chegando. Mas também um ritual no sentido de ser capaz de conectar distintas e distantes realidades dos povos
originários ao redor do mundo.

17 No original: “My job in bringing Pajé Onça’s performance to the places I pass through is to rescue Indigenous memory and Maliri’s presence, bringing them to these sites. 142
We need to hear what he has to say” (tradução dos autores).
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Isso revela uma segunda característica sobre a circulação de filmes e artes indígenas: os eventos envolvem a potência de encontros. Iracema e
Denilson que se encontram e produzem uma reflexão sobre sonhos, onças e arte. Alexandre e Cris que se reencontram após muitos anos para
debater sobre canções e ritos Maxakali. Canções, músicas, danças e rituais surgem a partir de encontros entre membros da plateia ou das mesas
debatedoras, auxiliando na quebra de certas fronteiras impostas à circulação de filmes indígenas independentes.

5 A linguagem do outro

Assistindo a produções dos cineastas Isael Maxakali e Sueli Maxakali para uma edição da mostra, nos questionávamos sobre acontecimentos
encenados e vividos no ritual que era exibido no filme. Quando contatamos os cineastas para estarem presentes na mostra, criamos certa expec-
tativa que pudéssemos conversar para compreender melhor, esperando uma “explicação”. Apesar do anseio sobre o que as imagens representam,
veremos que os filmes falam por si mesmos, agenciam e entram em relação com outros filmes, imagens e gentes, abrindo possibilidade para
novos filmes, novas criações, canções, obras e encontros.

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Caixeta de Queiroz (2008) cita críticas aos filmes do Vídeo nas Aldeias sobre como as obras podem parecer descontextualizadas: não há um es-
forço de explicação dos realizadores para os espectadores leigos que desconhecem sobre o grupo presente no filme. O autor ressalta que muitas
filmagens também se destinam ao consumo interno. Então coloca-se uma questão que também nos atravessa:

se nossos espectadores televisivos compulsivos e globais têm muita dificuldade em ver e assimilar o conteúdo de uma alteridade qualquer, feita com
nossa “linguagem” (ainda que essa, no caso, seja minoritária na nossa própria sociedade, aquela do “cinema verdade” ou “moderno”), teria ele, fora
do círculo fechado dos antropólogos e cinéfilos, alguma disposição em ler e compreender uma linguagem do outro? (CAIXETA DE QUEIROZ, 2008,
p. 110)

Essa questão trazida pelo autor nos faz olhar para as potencialidades dos filmes produzidos por cineastas e equipes indígenas, buscando enten-

Dossiê
der qual o destinatário desse modo de fazer artístico. Nas Mostras que realizamos, sempre contamos com um público interessado que raramente
abandona uma conversa ou exibição enquanto ela ainda não havia terminado. Nas últimas edições, percebemos que o público vem gradualmente
se modificando. Isso pode ter acontecido tanto pela mudança de local de realização da mostra como também pela continuidade do evento e na
divulgação da mostra na cidade. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de comentar que o público não se diversifica tanto quanto gostaríamos
e estamos sempre nos perguntamos como atrair mais pessoas às exibições. Convocar as pessoas a se abrir a esse discurso e modo de fazer ci-
nema. Um modo de produzir que, de fato, nem sempre deixa explícito ao espectador os elementos importantes da narrativa. Talvez as narrativas 143
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sejam construídas, justamente, de outra forma. Onde o espectador é ativo na construção da história e a interpreta a partir das suas referências e
interesses. Onde muitos elementos importantes estão nas entrelinhas.

O cinema realizado por cineastas indígenas ou com equipes de pessoas indígenas promove o encontro também com os parentes de outras etnias.
Seja no lugar de espectador que, na sala de cinema, conhece a cultura, língua, danças, dos seus parentes de outras localidades do Brasil, como
no próprio encontro presencial através desses eventos em torno da produção cinematográfica dos povos indígenas. Quando os cineastas, artistas
e pensadores participam da mostra eles têm a oportunidade de reencontrar e conhecer parentes. Eles têm a oportunidade de contar com uma
programação que mostra como seus parentes estão produzindo e pensando cinema. Aqui, não há um mundo comum que é debatido e habitado,
mas uma pluralidade de mundos que emergem desses encontros. Não só as gentes humanas que são convocadas e convidadas a participar das
exibições, mas também os invisíveis, os espíritos, as plantas, entre outros. Há a possibilidade de diálogos em línguas diferentes que permanecem
diferentes, mas, ainda assim, existe uma comunicação.

As imagens representam algo que vai além delas, como podemos pensar a partir do encontro entre o Pajé Onça, a onça guia de Iracema, Iracema
e Baniwa. Da mesma forma, as imagens trazidas nas produções fílmicas são agentes que entram em relação com outras gentes, outras imagens,

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produzem encontros, ruídos, relações, reencontros. Dessa forma, entendemos a exibição dos filmes também como continuidade de suas produ-
ções, no sentido da cosmocinepolítica e do cinema que se aproxima da mitologia, do imaginário, do sonho, do mágico, do corpo, da materialidade,
ou seja, aproxima-se do pensamento indígena, selvagem e não domesticado (CAIXETA DE QUEIROZ, 2008, p.118).

A potencialidade de novas criações e encontros a partir dos filmes também é descrita por Caixeta de Queiroz (2008), através da reflexão sobre
os filmes do Projeto Vídeo nas Aldeias, os quais mostravam a primeira vez em que pessoas da comunidade se viam na tela a partir das filmagens
dos cineastas. Essas experiências, segundo o autor, gravitavam em torno da identidade: indígenas que se viam na imagem e refletiam sobre cos-
tumes, tradições, dinamismos, trocas entre grupos, demarcação de territórios. Em muitos filmes, as pessoas da comunidade pedem para serem
refilmados, criando novas cenas, refazendo rituais, reavivando antigas práticas e reformulando outras:

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Carelli e colaboradores (2006) informam que os Panará tinham visto tal evento num outro filme, sobre os Krahô, e, depois disso, resolveram fazer
aquela “brincadeira” para ser filmada e demonstrada, porque ela também fazia parte da cultura deles. Ou seja, o que vemos é um filme gerando ou-
tro filme, tudo a serviço da demonstração de que “nós também temos nossa cultura”, ou “aqui também fazemos isso, mas diferente”, a “nossa tora é
maior”; logo, somos diferentes na semelhança. (CAIXETA DE QUEIROZ, 2008, p. 114).

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O filme, assim como as imagens e como os mitos, não se finda com a conclusão da edição, mas, provocam aberturas e possibilidades de conti-
nuidade. Dessa forma, as imagens não precisam ser explicadas como o não indígena espera, como representações de um ritual ou de um mito,
mas são em si mesmos os rituais, mitos, as imagens que continuam, agora na tela de cinema, produzindo efeitos. Não só os Panará vendo o filme
sobre os Krahô geraram outro filme, pensamos nos espaços de exibição dos filmes em que diversos realizadores criam novas produções e redes.

Um exemplo disso é o filme A Mulher Tartaruga: meõ nire o kaprãn (dir. Coletivo Beture, 2019), que foi exibido na IV Mostra Tela Indígena. Essa
produção Mebêngôkre já vinha circulando na Terra Indígena Kayapó, todavia quando recebemos a inscrição desse filme para a IV edição da Mos-
tra Tela Indígena, uma versão dele com legendas em inglês nos foi enviada. Isso se deu porque esse filme participou de um festival de cinema em
Nova Iorque, mas ainda não havia passado em festivais e mostras brasileiras. Essa produção foi especialmente legendada em português para ser
exibida na IV Tela Indígena. Outro alvo de nossas reflexões é como acontece a circulação de filmes de outros povos em terras indígenas. Nota-
mos em muitas sessões um grande interesse de pessoas indígenas pelos filmes que mostravam a realidade, lutas e territórios de povos de outras
regiões do Brasil. Quando o filme Mbya Guarani Manoá - A lenda das queixadas18 (dir. José Alberto Mendes, 2000) foi exibido, os dois cineastas
Kalapalo que estavam na sessão gostaram muito do filme e, logo após a sessão, foram conversar com o cineasta Mbya Guarani Carlos Papa para
também pedir uma cópia do filme para levarem para a Terra Indígena do Xingu. No outro dia esse filme, que até então havia circulado em formato

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DVD mais por terras indígenas Mbya Guarani do sul e do sudeste, foi entregue em um pen-drive para atingir os territórios do Xingu.

O que se nota na experiência da Tela Indígena é que através da divulgação e exibição de produções audiovisuais indígenas e da presença dessas
pessoas nesses eventos novas perspectivas e olhares são conhecidos pelo público não indígena, bem como ocorre uma promoção da troca de
conhecimento e construção de laços e parcerias dos indígenas da região com os do restante do país. Através desse contato fomenta-se a articu-
lação de redes políticas e sociais entre os povos, territórios e coletivos indígenas para futuros projetos, colaborações e lutas. A possibilidade de
indígenas de outras regiões do Brasil conhecerem a realidade dos territórios do sul do país possibilita debates e trocas sobre diferentes cosmovi-
sões, bem como as relações com políticas e reivindicação de direitos.

Vários pesquisadores que citamos atentam para os olhares, perspectivas e conversas que os realizadores têm durante o filme. A câmera que é

Dossiê
segurada por diversos olhares, que conversa com quem ela aponta, o olhar dos indígenas que se voltam para o olhar do colonizador. Pensamos
numa continuidade desses diversos olhares que fazem o filme também no momento de exibição. Há uma pluralidade de olhares da tela, dos es-
pectadores, de comentadores que não fixam suas posições de modo tão rígido. Há uma quebra do que se espera ou de uma noção de hierarquia
que o diretor detenha a palavra no momento do debate. Este geralmente não está sozinho, quando se pensa sozinho tende a convidar outros
18 O filme, com Direção de José Alberto Mendes e roteiro de Carlos Papá Mirim Poty (2000), conta através de uma narrativa ficcional, repleta de efeitos especiais, a viagem do 145
protagonista para a terra sem males dos Guarani.
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realizadores, anciãos, parentes que estejam presentes no mesmo espaço, ou então se conectar a outras entidades e seres não-humanos através
de cantos, danças, adornos e pinturas corporais.

Como produtores da mostra, geralmente o mais comum a se pensar é convidar o realizador para o debate após a sessão do filme. Entramos em
contato com diversos artistas durante os quatro anos de realização da mostra. Foram raras as vezes em que os convidados aceitaram vir sozinhos
para o evento. Um grande aprendizado em termos de produção: uma pessoa nunca é única. Para além de pensar que cada indígena, em seu corpo,
traz seus ancestrais, a história e o conhecimento de seu povo; os convidados também traziam consigo seus parentes e parceiros para participar
juntos dos eventos. Como afirma Gersem Baniwa ao analisar algumas narrativas das cosmologias ameríndias (2019):

(...) uma pessoa não pode ser considerada apenas como um indivíduo ou um átomo em si mesmo. Primeiro, porque ela não é uma unidade acabada,
definida, autor-referente, autossuficiente, já que sua principal característica é ser uma mutante que transita entre diferentes estados de existência
material e espiritual, ou seja, um ser que transita entre diferentes mundos ou mesmo todos os mundos possíveis (BANIWA, 2019, p.85).

É evidente que o caráter coletivo que muito se atenta entre os povos indígenas é estendido para o cinema. Não só os filmes que parecem, em mui-
tos casos, “misturar” papéis de direção, atuação, roteiro, de quem filma e quem é filmado, entrevistador e entrevistado – o que se expande também

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para os formatos de documentário e ficção, que parecem não ter delimitações tão claras, como é o caso do filme Ava Yvy Vera - A Terra do Povo
do Raio (2016) filme de direção coletiva de tantos diretores guarani, por exemplo. O espaço de exibição do filme não poderia ser diferente. Nele é
também o coletivo que se sobrepõe à nossa tendência de esperar espaços mais monolíticos e individualizantes.

Conclusão

Nesse espaço de circulação do cinema indígena, os discursos produzidos não versam diretamente sobre os filmes, análises estéticas ou sobre a
produção dessas imagens. Trabalha-se com as agências que esses filmes oferecem, e que são recriadas no próprio evento de exibição do filme.

Dossiê
Desse modo, os cinemas indígenas funcionam como um discurso com força agentiva e material, cujo propósito não é serem traduzidos e explica-
dos, mas propiciar novas formas de discurso e novos encontros. Não por acaso, era raro que houvesse um debate sobre formas de filmar, editar
ou sobre os significados dos filmes. As conversas com diretores ou a equipe indígena produtora da película partiam do filme, e não o retomavam
e explicavam. Diante desse contexto, a cultura - parcialmente - de um povo era mostrada e agenciada pelos realizadores, momento que se seguia
por novos diálogos.
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Nosso foco, como já afirmamos, não é a análise dos filmes em si, mas sim de sua circulação em um espaço de cinema, ou seja, como os artistas li-
dam com a agência que as obras fílmicas possuem. Defendemos que o modo como diretores e artistas indígenas fazem isso não se relaciona tanto
à ideia de comentário e crítica, reelaborando e explicando o material artístico, e sim com a de recriação e produtividade de discursos e encontros.
Assim, os filmes servem como uma janela à cultura e à vida retratadas, e, após as luzes do cinema serem acesas, a agência do filme é utilizada
como produtora de novos discursos. Esses poderiam envolver cantos, encontros entre imagens xamânicas, discursos históricos, diálogos entre
parentes, entre outras tantas possibilidades abertas e que enriquecem e entrecruzam a curadoria e produção de uma mostra indígena, dado que
as possibilidades de agências são levadas a novos expoentes.

E parecem ser os expoentes o foco desses cinemas indígenas. Diante de indícios, sombras e extensões de suas realidades, retratadas em cada
película de uma forma única, essas imagens aparecem como uma potencialidade de multiplicação. Os cinemas indígenas propiciam encontros
entre as aldeias, conexões entre parentes e etnias e formas de resgatar e acessar um passado interior. Essa característica exponencial funciona
como um motor de novos encontros, sendo um dos focos cativar e apreender a atenção da plateia e dos espectadores, mas com efeitos colaterais
como os encontros entre artista e os afetos dos não indígenas.

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Por fim, as obras são vistas tanto como instrumentos de luta por direitos e territórios, como produtos estéticos que resgatam valores e memórias
de um grupo étnico. No espaço do festival, diretores, artistas e lideranças indígenas, cada um carregando memórias e lutas de suas comunida-
des, se encontram tanto entre seus pares quanto com comunidades indígenas do Rio Grande do Sul e com espectadores não indígenas. Nesse
momento, o artista atua como um produtor, não só cultural, mas político: divulga sua comunidade, conta sua história, ouve as narrativas de outras
comunidades e revela significados políticos e culturais de suas imagens.

Os filmes indígenas alinham arte e cosmopolítica, mostrando-se como uma ferramenta de resistência, e o cinema, o ato de ir em uma sessão e
estar presente junto a pessoas indígenas, pode ser uma arma de sensibilização, luta e exposição das demandas dos povos indígenas da região.
Assim, acreditamos que essa é uma forma potente na busca pela erradicação do preconceito e soluções de conflitos, pois proporciona, através da
poética da arte, a possibilidade de conhecer o outro. Como, por exemplo, o que ocorreu na sessão de encerramento da III Mostra Tela Indígena,

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com a exibição de Ara Pyau: a primavera Guarani (dir. Carlos Eduardo Magalhães, 2018), que versa sobre a luta dos Mbya Guarani da Terra Indíge-
na do Jaraguá, em São Paulo, pela demarcação e ampliação de seu pequeno território. Após o término do filme, juntaram-se Tonico Benites, Ariel
Ortega e Denilson Baniwa, que defenderam os territórios indígenas em suas falas. Quando Denilson falou, estava visivelmente emocionado e fez
um pronunciamento muito forte sobre o etnocídio indígena e a usurpação dos territórios. Ao fim de sua reflexão, empunhou o microfone em uma
mão e com a outra apontou para o chão dizendo, sob aplausos: “Porto Alegre é terra indígena, aqui é terra indígena!”. O cinema estava demarcado. 147
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FILMES:

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A Mulher Tartaruga: meõ nire o kaprãn. Direção: Coletivo Beture, 12min, 2019.
Ara Pyau: A primavera Guarani. Direção: Carlos Eduardo Magalhães, 76min, 2018.
Ava Yvy Vera: a terra do povo do raio. Direção: Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez,
Dulcídio Gomes, Sarah Brites e Joilson Brites, 52min, 2016.
GRIN. Direção: Isael Maxakali e Roney de Freitas, 35min, 2016.
Kakxop Pit Hãmkoxuk Xop Te Yumugãhã - Iniciação dos Filhos dos Espíritos Da Terra. Direção: Isael Maxakali, 47min, 2015.
Konãgxeka: Dilúvio Maxakali. Direção: Charles Bicalho e Isael Maxakali, 13min, 2016.

Dossiê
Manoa - A lenda das queixadas. Direção: José Alberto Mendes e Carlos Papá Mirim Poty, 17min, 2000.
Mborai e Jerojy Mbya-Guarani (Canto e Dança Mbya-Guarani). Direção: de Werá Tukumbó Augustinho Moreira e Kuaray Alexandre Ortega,
42min, 2017.
Opy’i Regua. Direção: Júlia Gimenes e Sérgio Guidoux, 28min, 2019. 150
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Lights on: gatherings, translations, and agencies in the Tela Indígena Film Festival

Abstract: This article discusses the reception and agency of indigenous cinemas with indigenous and non-indigenous audiences. The
narratives and analyzes described here are based on the authors’ experience of organizing a project about indigenous cinema and
arts, the Mostra Tela Indígena, in the south of the country. In the four editions of this project, several indigenous films from Brazil and
the Americas were exhibited for an audience composed of both non-indigenous and indigenous peoples. We will discuss indigenous
cinemas and other artistic expressions in the aforementioned exhibition, treating these different cinemas as an agency that produces
new contacts and meetings. The circulation of these movies and arts, together with their creators, shows how the cinema screen is a
powerful space for the continuity of filmmaking, for encounters and the realization of a cosmocinepolitics. Our aim is to reflect about the
spaces in which films circulate and how they create agency for new speeches, meetings and productions.

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Keywords: Indigenous Cinema; Film festival; Cosmocinepolitics; Ethnology

Recebido em 31 de julho de 2020

Aprovado em 31 de março de 2021

Dossiê
151
> The Jumara Festival of Panamá:
Cinema and Body in Motion
Abstract >
Based on an ethnography of the First Jumara International In-
Gabriel Izard Martínez
digenous Film Festival, which took place in an Emberá com- PhD in American History
munity in Panama, the aim of this article is to delve deeper into
the connection between the processes of ethnicity derived University of Barcelona
from Indigenous cinema and the processes of ethnicity deri-
ved from the meaning given to that cinema at specific even-
ts. At Jumara, Indigenous cinema was the reason for affirming
Emberá culture and for championing, in a markedly festive and
performative way, the group’s main demands in a celebration
in which the body and its ornamentation took on a special role. Keywords >
It is argued that the ethnographic focus on festivals organized
in Indigenous communities makes it possible to fully analyze Emberá; Panama; Festival; Indigenous Cinema;
the committed and activist dimension of Indigenous cinema. Ethnography.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 152-170 | Jan - Jul | 2021

> The Jumara Festival of Panama: Cinema and Body in


Motion
Gabriel Izard Martínez
> gabrielizard@ub.edu
University of Barcelona

Introduction

The objective of this article is to contribute to Latin American Indigenous Cinema and Indigenous Film Festivals Studies, through an analysis of

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a particular event that take place in an indigenous community. To this end, I present an ethnography of the First Jumara International Indigenous
Film Festival held in Piriatí, an Emberá village in Panama, in July 2018. The information was gathered from a participant observation of the Festival,
as well as from a series of interviews and informal conversations with the Festival’s organizer, Emberá filmmaker Iván Jaripio.

This study will allow us to delve into the connection between the processes of ethnicity derived from Indigenous cinema and the processes of
ethnicity derived from the meaning given to that cinema in specific occasions. Because in Piriatí Emberá, the activist nature of Indigenous cinema,
based on the defense of cultural specificity, of heritage based on ancestral traditions, and of collective rights that allow for this specificity and the
inhabited territories to be protected, connected with the markedly activist dimension of the Emberá ethnicity. Thus, in Piriatí Emberá, Indigenous
cinema was the reason for affirming Emberá culture and championing the group’s main demands.

Dossiê
Hence it is argued that the ethnographic focus on festivals held in Indigenous communities allows for an in-depth analysis of the committed and
activist dimension of Indigenous cinema, and enables the connection of a continental process, made up of the particular stories of various com-
munities of Native peoples, with the particular story of a specific festival.

The purpose here is to go beyond what I have studied in another paper (IZARD MARTÍNEZ, 2020), and focus on how this affirmation took place in
a markedly festive and performative manner in which the body and its ornamentation (dances, clothing, body paintings) took on special presence. 153
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I will begin with an analytical approach to the relationship between Latin American Indigenous film and the internal discourse of identity based on
the anthropological literature on Indigenous cinema (section 2). Then, I will turn to the relevance of the studies on Latin American Indigenous Film
Festivals and their scope, also on the basis of the anthropological literature on the subject (section 3). Finally, I will focus on the example of Jumara
and its performative and bodily dimension (sections 4 and 5). The final conclusions will emphasize the need for this perspective in order to better
understand the meaning of Indigenous Cinema and Indigenous Film Festivals in relation to Indigenous ethnicity.

1 Latin American Indigenous Film and the Internal Discourse of Identity

Latin American Indigenous cinema must be understood as a means of communication characterized by the will of Indigenous communities to
show their own identity to Indigenous groups and to the world. It goes beyond ethnographic cinema which, despite responding to a scientific in-
terest and a desire to disseminate knowledge of excluded minorities, arises from an external perspective. “Subject-generated films”, as defined by
Ruby, are tools used by marginalized groups to negotiate a new cultural identity (RUBY, 2000, p. 196), to affirm their distinctiveness and the will to
survive. This author also stresses the relationship of this type of film with anthropological ideas that for the past few decades have pondered over

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the value of subjectivity and understand culture, not as something permanent but as something under constant construction by the very actors
who participate in social life. Therein lies the great ethnographic value of Indigenous film, in showing culture as an act of creation and recreation.

Thus, Indigenous cinema is an important way of analyzing “selfhood” and the “rhetorics of self-making” (BATTAGLIA, 1995), the internal discour-
ses of identity and therefore of Indigenous ethnicity. This cinema entails a great deal of reflectivity on what it means to be Indigenous and, more
precisely, on what it means to be Indigenous at the present time, in modernity (KERAJ, 2014, p. 22)

Indigenous cinema and/or video emerged strongly in Latin America in the 1980s as a tool for self-expression and self-representation of Indigenous
peoples, as a way to overcome historical invisibilization (“the absent, invisible Indian”) or stigmatization (“the backward, underdeveloped Indian”)
and begin to narrate, through audiovisual media, their own culture and stories (CÓRDOVA, 2011).

Dossiê
In relation to the above, images have enormous potential as intercultural communication platforms because, in the era of “digital convergence,” the
distance between producers and consumers of images has been reduced (ZIRIÓN PÉREZ, 2015, p. 46). In this sense, Indigenous film productions
can not only be seen at festivals or occasionally on television; the new mechanisms for broadcasting audiovisual material (Vimeo, YouTube, etc.)
as well as social networks (Facebook, Instagram, etc.) allow films to be shared with a much wider audience. The Jumara Festival Facebook page,
154
for example, contains several links to the works of Iván Jaripio, the filmmaker who organized the event and of whom I will speak later.
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The “poetic” character of this type of cinema lies in its communicative dimension, according to Salazar and Córdova. If the term “poetry” comes
from the Greek poiesis, that is, “active making or the process of making,” in this case it is about the creative process of making Indigenous culture
visible (SALAZAR, CÓRDOVA, 2008, p. 40).

In addition to its poetic character, Indigenous cinema also has a political character, defined by the desire to show culture in an activist way. Be-
cause of this committed dimension, we have to contextualize it in broader movements linked to demands for autonomy and self-determination
(GINSBURG, 2002, p. 211), in an entire framework that Juan Francisco Salazar describes as “a sociotechnical assembly that involves and inter-
twines technologies, resources, social organizations, legal frameworks and bureaucracies, knowledge and images” (SALAZAR, 2016, p. 93). In the
particular case we are concerned with, that of Panama and, more specifically, the Emberá group, Emberá filmmaker Iván Jaripio’s films deal with
the defense of territorial rights as an indispensable way to ensure the survival of the habitat in which one’s own culture develops. Whether explic-
itly filming demonstrations demanding collective land titling or protesting against the effects of deforestation, or through metaphors, in which the
disappearance of female body paintings as a result of the rain tells us of the loss of culture caused by the destruction of nature, the main focus of
Iván Jaripio’s films is the inseparable binomial land-culture.

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Therefore, Indigenous cinema and its festivals must be framed in an activist context (IORDANOVA, TORCHIN, 2012). Against this backdrop, the
narratives expressed in Indigenous cinema tend to revolve around several main themes: defense of the territory and the sustainable use of resourc-
es in the face of the threat from the state and capitalist companies; the need to preserve cultural specificities (language, religious beliefs, stories
and legends preserved in the oral tradition, textiles, arts and crafts, gastronomy, traditional medicine); and the defense of human rights in the face
of injustice and violence.

The films are mainly documentaries; fiction is scarce. This is possibly not only due to the fact that the production of the latter is more expensive,
but mainly because there is a need to bring to light issues related to collective rights (CÓRDOVA, 2011, p. 90). In this sense, the decolonizing strat-
egy implied by Indigenous cinema is based on the consideration of the right to communication as one more of the Indigenous rights advocated
for decades in the American continent in a generalized process of ethnic mobilization, together with the rights to political autonomy, the collective

Dossiê
ownership of land, and the preservation of language and culture. The right of Indigenous peoples to their own communication, which allows them
to manage their own voice and image, was one of the main points on the agenda of the Abya Yala Indigenous Communication Summits held in
Colombia (2010), Mexico (2013) and Bolivia (2016).

This link with collective rights and the idea of activism and social commitment explain why it is a cinema which, despite usually having an in- 155
dividual author, is understood by its creators as a reflection of collective expressions. Thus, Indigenous filmmakers who have made a name for
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themselves in the Latin American scene, such as the Mexican Huave Francisca Palafox and the Chilean Mapuche Jeannette Paillán, to name but
two examples, are very clear about their role as transmitters of collective stories. In the case at hand, Iván Jaripio combines his dimension of indi-
viduality (he attends film festivals and wins awards) with a markedly ethnic, collective theme, related to the reality and the demands of his group.

From the very beginning, Indigenous cinema has enjoyed the fundamental collaboration of several organizations (NGOs, coordinating committees,
universities and sometimes state agencies) in charge of the organization and dissemination of the various audiovisual initiatives through meetings
and festivals, technical training (filming, editing, screenwriting and production workshops), as well as, on some occasions, through grant funding.
All of this has gradually resulted in a network of support groups, made up of Indigenous and non-Indigenous peoples, an allied field that, for ex-
ample, includes CLACPI (Latin American Council of Indigenous Peoples’ Cinema and Communication), an association created in 1985 in Mexico
by Latin American anthropologists committed to Native people’s rights that has been incorporating since then Indigenous filmmakers (NAHMAD
RODRÍGUEZ, 2007; BERMÚDEZ ROTHE, 2013), or the non-profit Canadian organization Wapikoni Mobile, created in the early 2000s by Quebec
filmmaker Manon Barbeau and Indigenous leaders. Occasionally, external support networks have led to long-lasting and noteworthy Indigenous
projects, such as the Ojo de Agua Comunicación collective in Oaxaca, Mexico, which emerged from an audiovisual technology transfer initiative of

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the National Indigenist Institute (INI) (BERMÚDEZ ROTHE, 2013). The collaborative role occasionally played by anthropologists such as Vincent
Carelli in Brazil and his Vídeo nas Aldeias project, started in 1986 in Nambiquara and Xavante territories by the NGO Centro de Trabalho Indigenista,
is also worth mentioning. The project, which began with the distribution of equipment, was gradually transformed into a video production center
and an audiovisual training school in collaboration with Indigenous associations1. In Colombia, anthropologist Pablo Mora advised an Indigenous
video project from the Sierra Nevada of Santa Marta called Zhigoneshi (“I help you, you help me” in the Kogi language) (OSPINA OBANDO, 2019).
As Pablo Mora himself states, collaborative experiences not only “have offered the possibility of perceiving the Indigenous point of view more di-
rectly,” but also “have resituated the old roles of the production of ethnographies and anthropological documentaries,” at the same time that “they
have become interesting tools to negotiate cultural identities and break the hegemony of those who have historically controlled audiovisual tech-
nologies” (MORA, 2015, p. 34).

Dossiê
In the specific case of Panama, in addition to the continental networks, we find entities such as Mente Pública, a non-profit organization created
in 2010 by people linked to the world of film production and dedicated to promoting “community” film projects; that is to say, in the words of one
of the organization’s coordinators, carried out by people from the capital’s popular districts and from rural localities in the country’s interior, both
Indigenous and non-Indigenous. There is also the Experimental Group of University Cinema (GECU, in its Spanish initials) of the University of Pan-
156
1 See: http://www.videonasaldeias.org.br (viewed on July 12, 2019).
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ama, or Acampadoc, a non-profit organization dedicated to training young people in documentary filmmaking about the national heritage, mainly
immaterial, through film camps/gatherings.

2 Indigenous Film Festivals and the Analysis of Performed Indigeneity

Indigenous film festivals are a privileged setting for the analysis of communication and ethnicity processes referred to in the previous section. In
this sense, they can be understood as “social gatherings that constitute particular communities, [and] create regimes of value” (GINSBURG, 2017,
p. xv).

These events have been taking place for years throughout the Americas, from north to south, and in other places. For instance, in Australia, where
there is also an important production of Indigenous film, video and television linked to the aspirations for self-determination of the Aboriginal
people (GINSBURG, 1995 and 2002). There are the Winda Film Festival and Birrarangga Film Festival, as well as the Central Victorian Indigenous
Film Festival and the Nintila Aboriginal Film Festival. In New Zealand, where there is a long history of Maori ethnic empowerment, Maoriland Film

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Festival and Wairoa Maori Film Festival ought to be outlined.

In Europe, there are two Scandinavian festivals dedicated to the Sámi people, Sámi Film Festival in Norway and Skábmagovat Film Festival in
Finland (CÓRDOVA, 2012, p. 79). In London, NGO Native Spirit Foundation organizes its own festival, as does NGO Indigenous Alternative in Bar-
celona. In Asia, the Nepal International Indigenous Film Festival stands out.

Several of these festivals are held in Canada and the United States, such as the ImagineNATIVE + Media Art Festival in Toronto, the Vancouver
Indigenous Media Arts Festival, the First Peoples Festival in Montreal, the American Indian Film Festival in San Francisco, and the Mother Tongue
Film Festival and the Native Cinema Showcase in Washington, D.C. The last two are organized by the Smithsonian Institution, which also hosted a
single edition of the First Nations/First Features Showcase of World Indigenous Film and Media in New York and Washington, D.C. in 2005

Dossiê
As for Latin American festivals, there is a long list of examples, among which the following ones should be highlighted:

In Mexico, one of the most important countries where these events are held, we can highpoint the Community Radio and Film Festival “The World
We Live In”, organized by aforementioned Ojo de Agua Comunicación, an Indigenous-led association founded in 1998 in the state of Oaxaca that
arose from the government-sponsored Centre of Indigenous Video (CVI). The latter was created in 1994 by Guillermo Monteforte, a trainer in the 157
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Program for the Transfer of Audiovisual Media to Indigenous Communities launched by the National Indigenist Institute (INI) in 1989 (GLEGHORN,
2017, p. 173). Other events are the Puebla’s Indigenous Film and Video Festival, the Smooth Geographies Film and Video Festival, held in Oaxaca
and Yucatan, and the Kayche’ Visual Fabrics Film and Video Festival, which also takes place in Yucatán.

In Colombia we find the Daupará Indigenous Film and Video Showcase, organized by a group of communicators, activists and documentary film-
makers linked to indigenous organizations and CLACPI, which annually alternates its stage between Bogota and an indigenous territory in the
country2. In 2018, for example, it was held in a multi-site itinerant format in the Sierra Nevada de Santa Marta.

In Venezuela, the leading role is played by the transnational Wayúu group, which is also present in neighboring Colombia. The Wayuu People’s Put-
chimaajana Communications Network organizes the Venezuelan International Indigenous Showcase (MICIV)3, a traveling exhibition of films made
by the Wayúu and other indigenous groups of the continent, as well as the Wayuu Film and Video Showcase (MUCIW), which screens Wayúu films
in communities in the cross-border peninsula of La Guajira4.

Ecuador stands out as one of the first Latin American countries where an indigenous organization launched a film festival, as in the case of the First

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Continental Festival of Indigenous Cinema and Video from the Nations of Abya Yala5 hosted by the Confederation of Indigenous Nationalities of
Ecuador (CONAIE), in Quito, 1994 (GLEGHORN, 2017, p. 172). More recently, the role of indigenous organizations such as the Association of Kichwa
Audiovisual Producers (APAK) from Otavalo, which has its own television channel6, and academic institutions such as the Latin American Faculty
of Social Sciences (FLACSO), should be highlighted. FLACSO organizes since 2015 the Ethnographic Film Festival of Ecuador in collaboration with
indigenous associations from all over the country7.

Brazil, where it even exists a production company dedicated to Indigenous cinema (Pajé Films), stands out for its large number of Indigenous film
festivals: Brazil Indigenous Cinema Showcase (Rio de Janeiro), the oldest in the country; Indigenous Film Biennial (São Paulo); Paraguaçu Indig-
enous Cinema Showcase (held in an Indigenous community in Bahia); Indigenous Screen (Porto Alegre); Amotara Showcase – Indigenous Wom-

Dossiê
2 See: http://www.daupara.org (viewed on July 12, 2019).
3 See: https://www.wayuunaiki.com.ve/cultura/la-muestra-internacional-de-cine-indigena-de-venezuela-celebra-10-anos/ (viewed on April 16, 2021).
4 See: https://filmmakers.festhome.com/es/festival/muciwa-muestra-de-cine-y-video-wayuu (viewed on April 16, 2021).
5 Abya Yala is an ancient term used by the Guna group (Colombia and Panama) to refer to the American continent. Due to this ancestral Indigenous significance, it has been taken up by many
organizations.
6 See: http://apakotavalo.tv/ (viewed on April 18, 2021). 158
7 See: https://flacso.edu.ec/antropologia_visual/festival-de-cine/sobre-el-festival/ (viewd on April 18, 2021).
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en’s Gaze (Federal University from Bahia’s South); Indigenous Showcase of Ethnographic Films from Ceará (held in an Indigenous community in
that northeast state); and Cine Kurumin, probably the most important one (held in Indigenous communities of Bahia and Mato Grosso as well as
in cities like Salvador) (FREITAS, 2019). In Argentina, there is the Chaco Indigenous Peoples Film Festival, organized by the provincial government
as a traveling exhibition in different indigenous localities of the region.

In Bolivia, there are some audiovisual initiatives that should be emphasized, like the National Native Indigenous Audiovisual Communication Plan,
a non-governmental program founded in 1997 but redefined in the context of Morale’s period. It was coordinated by the Film Training and Produc-
tion Centre (CEFREC), a group of indigenous and non-indigenous filmmakers founded in 1989 by Iván Sanjinés; the Native Indigenous Audiovisual
Coordinating Committee of Bolivia (CAIB), an organization of indigenous media makers from different regions of the country; and Bolivia’s five na-
tional indigenous and peasant confederations. The Plan developed a special project called Strategy for Communication, Indigenous Rights and the
Constituent Assembly that included distribution campaigns through touring workshops and itinerant video screenings among communities and
cities, besides the political and technical training of media makers and the collective production of fiction and documentary videos that express
the main demands of indigenous movements (ZAMORANO VILLARREAL, 2014).

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The aforementioned CEFREC, at the same time, organizes since 2000 alongside with CLACPI and other organizations the Anaconda Awards. It is
an important itinerant audiovisual exhibition that has spread remarkably, also traveling through cities and rural communities in Mexico, Colombia,
Ecuador, Peru, Paraguay, Venezuela and Cuba, with more than two thousand productions by and about indigenous and Afro-descendant peoples
from twenty-three countries8.

This review of the scenario of Latin American indigenous film festivals must end with the most important of all global initiatives: the CLACPI In-
digenous Peoples International Film and Video Festival, a very important social gathering and cultural exchange held every one or two years in a
different Latin American location. As for the latest editions, in 2018 the 13th International Film and Communication Festival of Indigenous Peoples
(FICMAYAB) took place in different localities in Guatemala, and in 2019 the International Indigenous Film Festival of Wallmapu (FICWALLMAPU)

Dossiê
was organized in the Chilean city of Temuco. As mentioned above, CLACPI was founded in 1985 in Mexico City, within the context of the First Lat-
in American Indigenous Peoples’ Film and Video Festival, organized by anthropologists and filmmakers, mostly non-indigenous, and considered
the first Indigenous film festival in Latin America. Since then, the organization of subsequent festivals and the Coordinating Committee itself has
incorporated a greater number of indigenous filmmakers and activists. In 2015, CLACPI celebrated its 30th anniversary with a major international
festival hosted in Wallmapu, the aforementioned ancestral territory of the Mapuche in Chile and Argentina, which meant that for the first time the
festival was staged according to an ancestral territory of a particular Indigenous people (GLEGHORN, 2017, p. 172). 159
8 See: https://ojodeaguacomunicacion.org/premio-anaconda/ (viewed on April 16, 2021).
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 152-170 | Jan - Jul | 2021

Through the workshops, forums and seminars that accompany the screening of films at the CLACPI festivals, these become a source of knowledge
transmission, not only about film, but also about the living conditions of Indigenous peoples (PEIRANO, 2017, p. 79-81). On the other hand, many
of the organizations and festivals mentioned in the preceding paragraphs are integrated into CLACPI, which increases the intertwined nature of
this audiovisual fabric.

In this sense, just as the metaphor of weaving (itself a form of storytelling in many communities) is used by the Association of Indigenous Councils
of Northern Cauca (ACIN), in Colombia, to organize its video production team, with hilos (threads), nudos (knots), and huecos (holes) representing
the different units (ALMENDRA, 2009, quoted in GLEGHORN, 2017, p. 181), it can also be used, from its combination of patterns and stories, to un-
derstand Indigenous Cinema, as Gleghorn argues, and also Indigenous Film Festivals. Thus, Latin American Indigenous film festivals ought to be
conceived as responsible for the creation of global networks that link training, production and exhibition throughout the region, as well as for the
reconfiguration of Indigenous film from a marginal practice to a vibrant transnational and transcultural cinema (CÓRDOVA, 2017).

Continuing with the analysis of these events, it is worth noting that certain approaches of visual anthropology emphasize the circulation of visual
objects as a form of material exchange (EDWARDS, 2002; BANKS, 2008). The material and nomadic dimension of indigenous films is linked to a

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growing emergence of cosmopolitan indigenous communicators who travel to festivals around the world and who set political agendas through
the creation of transnational networks and democratic spaces that go beyond the relationship with Nation-States (GRAEBER, 2008; HODGSON,
2008; WERBNER, 2008). This can also be interpreted in terms of the negotiation of a certain amount of power in the public space (CYR, 2017).

At indigenous film festivals, film-objects take on an agency of their own and allow for interactions and dialogues between filmmakers, producers,
distributors and audiences (GÓMEZ RUIZ, IZARD MARTÍNEZ, 2020, p. 268). Ultimately, these events contribute to the ‘visual economy’ of indi-
geneity, that is, to the process through which images and displays of indigeneity acquire value, recognition and meaning according to specific
circulation dynamics and markets (POOLE, 1997, quoted in Zamorano VILLARREAL, 2014, p. 92).

It should be stressed that all of these festivals, are presented to us as an arena for the expression of a pan-Indigenous ethnicity constructed around

Dossiê
the narratives and themes referred to in the previous section, which revolve around the issues of the value of land and culture understood as
heritage, as an inheritance that is reworked in order to persist in a diverse and changing world. So, in Indigenous film festivals, and especially in
those festivals held in Indigenous communities, a cultural awareness of the continent’s Indigenous peoples is also built. Furthermore, as we will
see with the example of Jumara, Indigenous film festivals, allow us to get closer to a performative process of staging that shows how indigeneity
is configured. 160
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In addition to Indigenous film festivals, there are – not only in the Americas, but throughout the world – a series of film events on certain social
topics, such as human rights or environmental conservation, in which films dealing with Indigenous issues, made by Indigenous or non-Indige-
nous people, also participate. Later I will refer to a few examples in relation to the work of Iván Jaripio. As for the environment topic, Indigenous
Cinema and Indigenous Film Festivals are so related to conservational concerns that some authors suggest they can also be placed in the terrain
of eco-activism and ecological film festivals (MONANI, 2013).

Finally, it should also be noted that some film festivals not specifically dedicated to indigenous cinema include sections of this category, such as
the Sundance Film Festival in the United States and the Morelia International Film Festival in Mexico (CÓRDOVA, 2017). On the other hand, some
alternative documentary film events have become a space for the exhibition of indigenous cinema, as is the case of DOCS[MX] in Mexico City and
the Mexican traveling showcase Ambulante.

3 The Jumara Festival and the Emberá of Panama

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At the Jumara Festival that took place in the Emberá town of Piriatí, Panama, in 2018, the importance that Indigenous people attach to Indigenous
cinema was apparent, as it allows them to tell their own story. This is especially true in the case of the Emberá, who took advantage of the event to
defend and celebrate their native culture. Before analyzing the festival, a brief socio-historical introduction to the Emberá group should be made
in order to help us understand the significance of the event.

The Emberá are an ethnic group characterized by constant movement as a result of forced displacement. Their language belongs to the Chocó
linguistic family, as does that of the Wounaan group, another one of the Indigenous groups of the Panamanian nation along with the Guna, the
Ngäbe, the Buglé, the Naso Tjërdi and the Bri-Bri. The Emberá are originally from the Panamanian Darién and Colombian Chocó jungle regions.
They have been moving westward in what is now Panama since the 18th century, first because of the Spanish conquest and, since the beginning

Dossiê
of the 20th century, because of the scarcity of game or competition for land with mestizo peasants (COLIN, 2010; FARON, 1962; GUIONNAU DE
SINCLAIR, 1990). In addition, there is a lot of violence associated with guerrilla and paramilitary groups and drug trafficking in the border region,
especially on the Colombian side.

There are currently some 30,000 Emberá living in Panama, mainly in the province of Darién, inside and outside the Emberá Wounaan Region, an
autonomous and collectively owned area created in 1983; in the Bayano Lake Basin in the province of Panama (where Piriatí Emberá is located); 161
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in the Canal Basin and Chagres National Park, which are located in the provinces of Panama and Colón; and in the capital, where several Emberá
neighborhoods have been established in the outskirts (VELÁSQUEZ RUNK et al., 2011).

The Emberá settle collective affairs at regional congresses. The inhabitants of the Region are represented by the Emberá Wounaan General
Congress, and those of the other territories by the Emberá Wounaan General Congress of Collective Lands. The Congresses are subdivided into
smaller geographical congresses in which the democratically elected caciques (this is the name given to the community leaders by the Emberá
themselves) of the various communities act as representatives.

The main demand of the Emberá, as the name of the General Congress of Collective Lands indicates, has always had to do with territorial righ-
ts. Collective ownership of the land, ensured by a political-administrative autonomy that allows collective management of other matters related
to their own culture, is seen as a guarantee of community control over a territory threatened by external agents, such as ranchers, hydroelectric
power plants, mining and logging companies, etc.

The community of Piriatí Emberá came into existence in 1975, after the relocation of the Guna and Emberá Indigenous people who inhabited the

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Bayano River Basin in which a dam was built to provide water and electricity to the country’s capital (PASTOR, 1975). It has a population of about
a thousand and is located on the Pan-American Highway, which stretches across the country from east to west, a hundred kilometers, or about
two hours by car, from the capital.

The Jumara Festival, which in the Emberá language means “everything,” arose from the initiative and determination of the main protagonist of this
story, Iván Jaripio. He is the son of the first cacique of the Emberá General Congress of Alto Bayano and nephew of the first female cacique of Ipetí,
another Emberá community of people displaced by the dam. A few years ago, a documentary film workshop program called Juntos para proteger
nuestra Cuenca (Together to Protect Our Basin) reached the communities of Gunas, Emberás, and of mestizo farmers and ranchers in the Bayano
Basin. The program was an initiative of the Smithsonian Institute of the United States (a center for public education and research that has its only
Latin American office in Panama) and the aforementioned Canadian organization Wapikoni Mobile, which finances Indigenous cinema. Jaripio par-

Dossiê
ticipated in this initiative, from which the collective and multiethnic short film Retratos del Bayano (Portraits of Bayano) emerged9. The experience
was repeated the following year, and Jaripio and the also young Emberá filmmaker Detsy Barrigón made the short film Dadji De (Nuestro hogar or
Our House)10, which addresses the demand for collective titling of the lands assigned after relocation due to the construction of the dam.

9 The short film can be viewed at http://www.wapikoni.ca/movies/retratos-del-bayano. 162


10 The short film can be viewed at http://www.wapikoni.ca/films/nuestro-hogar.
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Later, Jaripio and Barrigón made the documentary short film Arimae11 about deforestation in the Emberá and Wounaan community of the same
name, in the province of Darién. Arimae shows the devastation caused by the timber industry, specifically, its serious ecological and cultural con-
sequences: the disappearance of forests, rivers and animals, as well as the materials needed for the construction of houses and for body painting,
which is made with the dye of a fruit called jagua. Arimae competed in 2015 and won the Jury Prize in the Poor Film Festival of Panama (a name
taken from a similar experience in Cuba), also known as Panalandia, an event launched in 2013 by the aforementioned non-profit organization
Mente Pública.

In 2016, Jaripio made the experimental short film Identidad (Identity)12, a beautiful metaphor about the loss of culture and the brutalization of nature
(represented by images of buildings under construction, agricultural mechanization and deforestation) and its reflection in the disappearance of
body paintings from a female Emberá body. The film participated in various festivals, such as Panalandia 2018, in which it won the Best Experi-
mental Award; Bannabá Fest (Panama International Human Rights Film Festival) 2017, in which it won the Special Jury Prize; the Kuala Lumpur
Eco Film Festival (KLEFF) 2017 in Malaysia, in which it won the Public Service Announcement Award; and the Environmental Film Festival 2018 in
Washington, D.C.

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All of these experiences led Iván Jaripio to feel the need to organize an Indigenous film festival in his town of Piriatí Emberá, in order to bring Indi-
genous cinema, usually exhibited in capitals and large cities, to an Indigenous community. And thus Jumara was born, organized with the support
of Mente Pública, and also sponsored by the aforementioned Experimental Group of University Cinema (GECU) at the University of Panama, the
National Institute of Culture (INAC) of Panama, the Emberá General Congress of Alto Bayano, McGill University of Canada (which frequently col-
laborates with Wapikoni Mobile), and the also aforementioned organization Acampadoc.

Most of the films, which had to deal with Indigenous subjects regardless of whether or not their authors were Indigenous, were documentary short
films, although a few of them were fiction. They were from Latin American countries and revolved around the characteristic narrative themes of
Indigenous cinema already mentioned. In most screenings, which took place at the Casa Comunal, the audience was relatively small (between ten
and fifteen people) with the exception of some screenings which were attended by students of the local school, accompanied by their teachers. As

Dossiê
for the opening and closing events, they were a resounding success, with the attendance of practically all of the community’s residents.

The opening was also attended by several representatives of the sponsoring institutions. There were speeches by Iván Jaripio, the organizer, and
local authorities, such as the local cacique. All of the speakers insisted on the need to make Indigenous peoples more visible and supported de-

11 The short film can be viewed at https://vimeo.com/123862156. 163


12 The short film can be viewed at https://vimeo.com/269560314.
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mands for collective land titling. The opening ceremonies concluded with an exhibition of traditional dances performed by a group of girls from
the community.

In the closing ceremony, Jaripio’s final speech addressed the need to tell one’s own stories as well as to view other Indigenous stories from other
places, through film. The local cacique’s concluding speech dealt with the need to fight for the survival of one’s own culture by defending territo-
rial claims and maintaining traditions (clothing, dance, language). The event concluded with another dance exhibition by a group of local girls,
followed by a concert-dance of traditional Emberá music.

The opening and closing ceremonies were experienced by the residents of Piriatí Emberá as a celebration of their own culture. The speeches, mu-
sic and dance performances were met with enthusiastic applause; there was dancing; people wore traditional attire and body paint, which is one
of the group’s most important ethnic emblems; body paintings were also selflessly made for visitors who wanted them. As for clothing, it should be
noted that common everyday attire in any Emberá community does not differ from “Western” attire as far as men are concerned, but it is different
in the case of women, who always wear the emblematic printed skirt known as paruma. On special occasions, as in the case of the Jumara Festival,
the women may add a metal ring bodice to the paruma and the men may wear a guayuco (underpants) made of fabric or a beaded skirt.

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The previously mentioned documentaries filmed in Emberá territories, Nuestro hogar, Arimae and Identidad were screened, along with other films,
during the closing ceremony. And they were probably the ones that were most closely followed and enjoyed by the audience.

4 Jumara and Cultural Celebration: Film and Body in Motion

The festival organized in Piriatí Emberá was a festive communicative gathering, a moment of activist cultural climax revolving around cinema, a
performative celebration of Emberá identity. Focusing on Jumara allows us to place the spotlight not only on the production of Indigenous film but,
above all, on its consumption.

Dossiê
This is related to the “theory of reception” of media anthropology, dedicated to the analysis of the impact of media on its users (the audience), since
“[it] recognizes that messages are not inherently meaningful, and that which is perceived and understood by media audiences depends largely on
the characteristics of the audience, rather than the intentions of communicators or any intrinsic features of media programs” (CALDAROLA, 1990,
p. 3-4, quoted in RUBY, 2000, p. 183). The questions that are posed from reception analysis are of the type: How do Native spectators understand
this new form of communication? In what social situations does the viewing take place? (RUBY, 2000, p. 217). 164
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What happened in Piriatí Emberá demonstrated the festive-activist nature of the Emberá identity, characterized by the desire to show performa-
tively, in events such as the festival, the most visual dimension of culture, in particular traditional attire and body paintings. In this sense, Jumara
can be conceived as a creative stage in which, through performance, we are shown, in all its strength, a group’s capacity to express its narratives,
its paradigms and its cultural symbols (Bruner, 1993, p. 321).

So the poetic, creative dimension of Indigenous cinema to which we alluded in the second section and which can be observed in Iván Jaripio’s
own film work, especially in the aforementioned Identidad, also has parallels in this festival. This performative dimension must be understood as
the desire for ethnic affirmation of a group that is concerned about the survival of its territories and, in relation to them, its culture.

Focusing on the Jumara Festival allows us to stress the idea of the double dimension of Indigenous cinema: onscreen, in relation to the stories told
in the films, and offscreen, in relation to its social role, by enabling practices in film festivals in which new forms of solidarity, identity and commu-
nity are created (DOWELL, 2006).

And it allows us to emphasize the staging that takes place in Indigenous Film Festivals, which makes use of objects and images that are exchanged

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and ideas that are materialized in video productions. This staging establishes a ritual temporality that is dedicated to the viewing of the films as a
performative and communitarian event (GÓMEZ RUIZ, IZARD MARTÍNEZ, 2020, p. 268).

Based on all of the above, what happened in Piriatí Emberá can be seen by emphasizing the perspective of the Emberá, who took advantage of
the festival to celebrate their culture rather than to watch all the films that were being screened. In this regard, it is important to stress once again
the great interest of the Emberá in the conservation of their cultural heritage, including their lands, and the relative profusion of inter-community
cultural events in different villages that respond to a firm desire to keep this heritage alive by performing it. To give just one example, in July 2018,
the same month that the Jumara Festival was held, the Emberá Ancestral Games were organized in the nearby town of Ipetí Emberá, in the Bayano
River Basin, which were a qualifier for the World Indigenous Games. In this sporting event, apart from the specific sports activities, particular im-

Dossiê
portance was attached to music and dance performances and talks by Emberá leaders on the threat of disappearance of their native language and
culture. As in Piriatí Emberá, the events were passionately experienced by the inhabitants of the town and neighboring villages as a celebration of
culture: the sports competitors were cheered enthusiastically and the music and dance performances held at night at the Casa Comunal were at-
tended by people in traditional attire and jagua body paintings. Another instance of this performative dimension is the tourist activity which several
Emberá communities in the Canal Basin, near Panama City, are engaged in. Day trips are organized with the lure of meeting an Indigenous group
that will show visitors its wood and palm architecture, its clothing and body paintings, and its music and dance. It is important to emphasize the
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significance of these two elements in events of this type: clothing and body paintings, which show us the value of the visual and bodily performa-
tive dimension of ethnic specificity, understood as a traditionalism that must be put into practice for it to survive.

Jumara, the Ancestral Games of Ipetí Emberá and Panama’s Emberá tourism form a mise-en-scène in which the body and its ornamentation (danc-
es, attire and paintings) take on a special role. Therefore, what Indigenous cinema means was followed attentively in Piriatí Emberá, especially
during the opening and closing ceremonies. But in addition to, or beyond that, the speeches of organizers and leaders stressing the importance
of collective land titling and the preservation of language and traditions, and above all, the cultural events centered on music and dance, as well
as the cheerful and assertive display of attire and body paintings constituted the main elements of a festive and communicative event, and a
demonstration of the pride of being Indigenous; the pride of being Emberá. The Indigenous audiovisual productions that were screened at the Casa
Comunal were the trigger for this other production in which the Emberá of Piriatí set their traditions in motion.

By Way of Conclusion: Indigenous Cinema, Body and Ethnicity in Piriatí Emberá

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The ethnographic documentation and analysis of the events in Piriatí Emberá in July 2018 show us the link between Indigenous cinema, commu-
nication and ethnicity for the Emberá of Panama, an ethnic group concerned about and mobilized in defense of their threatened lands and culture.

Indigenous film is the means of expressing awareness of what it means to be Indigenous today based on specific narratives and actions. The cha-
racteristics of the communicative process of Indigenous film can be analyzed, on the one hand, from its production, by focusing on the creation
of messages, and on the other hand, from its consumption, by studying the reception of these productions. The latter allows us to understand
Indigenous film festivals as global networks made up of the exchange of visual objects and the establishment of an allied field. And it also allows
us to consider Indigenous film festivals held in Indigenous communities as scenographic arenas where indigeneity is performed. For this reason,
the spotlight of this article has been focused on Iván Jaripio and his work, as well as on the festival he organized in his community.

Dossiê
Indigenous cinema tells us particular stories that show an internal discourse of identity and revolve around the close relationship between land
and culture. It is a construction of political resistance that defends the idea that the survival of Indigenous culture requires a territory, and Jaripio’s
films go exactly in that direction. Studying what happened in Piriatí Emberá enables us to look closely at the particular story that took place there,
where, for a few days, Indigenous cinema was the reason for affirming one’s own culture in a lively and activist way, with the body used as a banner. 166
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O Festival Jumara no Panamá: cinema e corpo em movimento

Resumo: Com base na etnografia do Primer Festival Internacional de Cinema Indígena Jumara, realizado em uma comunidade Emberá
do Panamá, o objetivo deste artigo é mergulhar na conexão dos processos étnicos derivados do cinema indígena com os processos ét-
nicos derivados do significado atribuído a esse cinema em eventos específicos. Em Jumara, o cinema indígena foi o motivo para afirmar
a cultura Emberá e reivindicar, de maneira marcadamente festiva e performativa, as principais demandas do grupo em uma celebração

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na qual o corpo e sua ornamentação assumiram um papel especial. Argumenta-se que o foco etnográfico nos festivais organizados nas
comunidades indígenas permite analisar com profundidade a dimensão comprometida e ativista do cinema indígena.

Palavras-chave: Emberá; Panamá; Festival; Cinema Indígena; Etnografia.

Recebido em 30 de julho de 2020

Aprovado em 16 de maio de 2021

Dossiê
170
> Telas e Reflexos na Aldeia Aiha

Thomaz Pedro
> thomazmgp@gmail.com
Mestre em Comunicação e Semiótica
Universidade de São Paulo

Este ensaio fotográfico aborda a presença das telas e o ato de assistir a mídias indígenas (GINSBURG, 1995; 2002; 2011) na aldeia Aiha, do povo
Kalapalo, localizada na porção ao sul do Território Indígena do Xingu (MT, Brasil), em uma região chamada alto Xingu1. No conjunto multicomuni-
tário e multilíngue do Alto Xingu, existe um sistema próprio de produção e de circulação de vídeos (SERBER, 2020; PENONI, 2018). Essas mídias
visuais, feitas pelos indígenas, são muito diversas e incluem: registros de rituais, discursos de chefes, documentários sobre os modos de vida,
curtas-metragens de ficção, videoclipes, entre outros. Como esses vídeos são captados e circulam por pessoas que vivem nessa região, existe
uma proximidade muito grande com o que se assiste. Muito do que se assiste foi filmado por parentes ou conhecidos de outras aldeias e outras
etnias que vivem no entorno de Aiha. Com isso, o assistir é, muitas vezes, olhar para si mesmo em um processo de reflexividade que gera tanto
identificação quanto distanciamento. Identificação já que se trata de uma autorrepresentação, e distanciamento que ocorre ao se ver performan-
do em vídeo intensificado por meio da circulação dessas mídias que podem estabelecer relações com diferentes alteridades, tanto indígenas
quanto não-indígenas. Esses aspectos articulam uma noção reflexiva de “cultura” carregada de propriedades de metalinguagem (CARNEIRO

1 Realizo oficinas de audiovisual nessa região desde 2015 e estas experiências resultaram, primeiramente, na construção de relações com pessoas que se tornaram parceiros e amigos, mas
também em filmes, artigos (MACIEL, MONACHINI, PEDRO, 2018) e uma pesquisa de doutorado em andamento no núcleo interdisciplinar DIVERSITAS, da Universidade de São Paulo (USP),
financiada com bolsa FAPESP. As experiências em campo partem do que temos chamado de produção partilhada do conhecimento (BAIRON, LAZANEO, BATISTELA, 2015).
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DA CUNHA, 2009). A própria noção Kalapalo do vídeo enquanto tisugühütü ongitelü2, que pode ser traduzido por “guardar o nosso jeito de ser”3,
aponta para essa noção objetivada e reflexiva: se filma, se assiste e se mostra para outros determinados aspectos escolhidos para representar o
que seria considerado Kalapalo.

O assistir (e o escutar) aos vídeos pode acontecer no celular deitado em uma rede, na frente da televisão junto com outros parentes e amigos, ou
nas exibições coletivas no centro da aldeia. Esse assistir, portanto, não é um ato passivo, mas passa por interpretação, julgamento e apreciação
(DEMARCHI e DIAS, 2018; SERBER, 2020) que levam em conta uma série de critérios éticos e estéticos próprios. Nesse sentido, a visão é também
uma forma de construção de conhecimento sensorial e prático. Buscaremos mostrar a seguir, por meio das fotos e de uma breve contextualização,
como o assistir mídias indígenas é afetado e também afeta uma série de aspectos dos modos de vida dos Kalapalo. As mídias estão implicadas
em relações de parentesco, fazem novas mediações nas formas de transmissão de conhecimento oral e possibilitam a participações de diferen-
tes atores na esfera pública. Ou seja, o assistir passa a assumir um sentido e uma função própria entre essa sociedade, criando novas formas de
socialidade.

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2 Faço uso do itálico ao longo do texto para destacar termos nativos.
3 O termo na língua Karib Kalapalo foi traduzido em interlocução pessoal com Antonio Guerreiro. Fausto (2011), que participou do processo de oficinas do Vídeo Nas Aldeias (VNA) entre os
Kuikuro também verificou o uso desse termo entre esse povo ao tratar do audiovisual. Como toda tradução, é carregada de equívocos, mas o termo ügühütu é traduzido por costume, tradição ou 172
cultura e pode se referir aos hábitos de animais, ao modo de vida dos brancos, ou a propriedades dos entes espirituais ou mesmo de objetos (FAUSTO, 2011).
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Deitado sozinho em sua rede na escuridão da sua casa, Tafarel tem o rosto iluminado pela tela do celular, onde assiste vídeos gravados por seu cunhado, Haja,
durante a festa que aconteceu no dia anterior. Ele dá atenção especial ao registro da sua própria performance, em que está puxando uma fila com cinco mu-
lheres e mais quatro homens. Os homens estão tocando flautas, as mulheres dançando, todos adornados com cocares, braçadeiras, colares de miçangas e

Dossiê
pinturas corporais. Em um processo de reflexividade, ao assistir a sua própria performance, Tafarel está avaliando uma série de detalhes tanto da música quanto
da dança a partir de requisitos éticos e estéticos. Tanto a música quanto os cantos e toques de flauta têm características ligadas a elementos específicos dessa
festa, que se chama unduhe, a festa dos peixes, e foi feita nessa ocasião para a cura de um garoto doente. Esta festa, que mobilizou muita gente na aldeia, foi
feita para que o itseke (termo que pode ser traduzido por espírito ou por bicho) que adoecia o garoto fosse embora e ele fosse curado. A festa, que pode durar
vários dias, tem momentos que não podem ser filmados. Existia, nesse sentido, uma evitação em relação ao registro do garoto adoecido ou todo o processo de
cura feito pelos pajés. Nesse dia de festa, muitas outras pessoas da aldeia também estavam gravando com seus celulares os diferentes momentos de cantos
e danças. Muitos deles trocaram as imagens usando o bluetooth do celular, fazendo-as circular por diferentes aparelhos e indo parar também nas telas das 173
televisões. Durante a noite provavelmente outras pessoas também faziam como Tafarel, assistindo aos registros da festa e avaliavam as performances rituais.
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A casa do Masuka é uma das primeiras a ter uma placa de energia solar. Se a maior parte das televisões da aldeia funcionam apenas durante a noite, quando o gerador

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a diesel da comunidade é ligado, nessa casa a grande tela de LED está ligada quase o dia todo sintonizada na TV Globo. A programação da TV muda ocasionalmente
para que todos possam assistir aos vídeos de festas que aconteceram e foram gravados na própria aldeia Aiha ou em alguma aldeia vizinha. É nesse momento que
a casa fica mais movimentada, já que mais gente tem interesse em passar para assistir as danças e músicas sendo performadas por eles mesmos e por seus pa-
rentes e conhecidos. Esse assistir é atravessado por uma série de comentários, interjeições e até gritos de felicidade. Se as festas deixam feliz, assistir novamente a
uma festa bonita traz um pouco desse mesmo afeto. Nessa foto, Balaki, que está apoiado em sua moto, assiste na companhia de outros homens a um vídeo de uma
festa de outra aldeia. Ele dá uma atenção especial para as performances das suas primas cruzadas. As primas cruzadas podem se tornar esposas no futuro, criando
novos laços de parentescos. Assistir aos parentes em vídeos de rituais passou a ser uma forma de mediar essas relações de aliança também por meio das telas. 174
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Johilu, Creusa, Isabela, Walace, Leidjalu, Susema e Asisi estão amontoados em uma rede para conseguir assistir ao curta-metragem ficcional Bisi Etimbepügü –
A Chegada da Bicicleta (Dir. Igahoka Hehu Matipu, Orlando Kalapalo, Yuahula Alay Matipu Kalapalo, 2018) e riem das piadas e graças do Yuahula Alay Kalapalo
Matipu, que dirigiu e foi o personagem principal dessa ficção. Nessa foto, quem está mais próxima da tela é Johilu. Ela está assistindo à peça pela primeira vez,
já que não pode participar da exibição coletiva do filme que havia acontecido na noite anterior por estar na reclusão pubertária. Durante o período da reclusão,
marcada pela menarca, existe uma série de restrições e dietas específicas para a jovem que está se preparando para virar adulta. Não sair de casa é uma des-
sas regras. Dessa forma, o assistir mídias faz com que seja possível a participação de situações que não estariam acessíveis nesse período. A tela passa a ser
uma forma de mediar relações com o fora de casa durante o período de reclusão e tomar parte ao menos assistindo, acontecimentos que seriam inacessíveis.
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Haja Kalapalo está sentado em sua rede escolhendo qual será o próximo som que vai tocar em seu celular. Na sua playlist, Haja pode escolher entre Bye Bye
da dupla Sandy e Junior, I Love You do norte-americano Chris Brown e também uma série de gravações antigas de cantos de seus parentes dos anos 60. Haja

Dossiê
escolhe ouvir a voz do seu sogro, já falecido, cantando o hagaka (ou jawari em tupi). Assim que começa, Haja acompanha o canto gravado com sua voz. Ele já
conhece todos os detalhes da gravação, até momentos exatos em que soam gritos de empolgação de outros parentes que participaram dessa festa que acon-
teceu há mais de 50 anos. Uma série de gravações feitas pela antropóloga Ellen Basso são, para as pessoas na aldeia, uma forma de ouvir novamente a voz dos
seus parentes mais velhos que já morreram. Para Haja esse canto é hekugu, termo traduzido como “bom” ou “verdadeiro”. O aprendizado de cantos é feito por
meio do ensinamento de “mestres”, que são seus “donos” e responsáveis por cuidar desse conhecimento. Somente os “donos/mestres” podem transmitir esse
conhecimento, trabalho que normalmente é mediado por um pagamento. Esse processo que tem sofrido atualizações a partir da relação com as mídias, já que
essa transmissão no caso dessas pessoas mortas que tem registros como esses gravados não envolve um pagamento. Mesmo que a maior parte das pessoas 176
possam ouvir os cantos, somente parentes diretos podem aprender o canto a partir da gravação (CARVALHO, 2015).
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Um raio havia queimado a televisão de LED e por isso a velha TV de tubo, que podemos ver ao fundo na foto, havia voltado a ativa na casa de Ugise. Mas mesmo
assim as telinhas dos celulares estava sendo as mais usadas na casa. Johilu, que estava em período de reclusão, assiste algo no seu celular e por cima de seu
ombro assistem suas tias Kahagahü, Aline e Luka. Kahagahü também estava em reclusão, no período de couvade, pois tinha acabado de parir seu filho mais
novo e, assim como a sobrinha, assistir aos vídeos que circulam era uma forma de se estar a par dos eventos que não seria possível estar presencialmente. As
mídias e o assistir acaba por reforçar algumas distinções geracionais, já que a maior parte das pessoas que assistem e fazem uso dessas mídias são jovens.
Em alguns casos esse tipo de uso pode ser visto com ressalva por pessoas mais velhas, que consideram que a presença excessiva dos “mundo dos brancos” 177
na aldeia tem transformado aspecto dos seus modos de vida (NOVO, 2018).
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Durante as oficinas de vídeo realizadas em 2017, criamos uma estrutura para exibição dos filmes no centro da aldeia colocando uma grande tela de

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TV e caixas de som do lado de fora de uma das casas, voltada para o centro da aldeia. As crianças trouxeram as cadeiras da escola e se sentaram em
frente a tela. De uma forma improvisada, criou-se um espaço para o ato de assistir vídeos juntos a céu aberto. Esse formato se repetiu algumas vezes
durante as noites para assistirmos juntos diferentes filmes - em sua maioria feitos por outros indígenas. Também exibimos os trabalhos produzidos
ao longo da oficina. Partimos da proposta de que o assistir junto aos filmes, e falar sobre eles faz parte do processo de construção desses trabalhos.
Os diversos comentários e impressões que a exibição traz, a partir dos diferentes olhares e pontos de vistas, pode ser incorporada ao filme em uma
nova versão. A partir disso os realizadores poderiam voltar para a edição e recriar e alterar elementos, reforçando um caráter de construção coletiva
(BRASIL, 2016; LAZANEO, 2017). O processo de assistir junto faz parte de uma negociação e de uma partilha na forma de se fazer esse tipo de cinema. 179
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 171-181 | Jan - Jul | 2021

REFERÊNCIAS

BAIRON, Sérgio; LAZANEO, Caio. S. BATISTELLA, Roberta. Fundamentos da Produção Partilhada do Conhecimento e o saber do Mestre Griô.
Diversitas, v. 3, p. 246-265, 2015.
BRASIL, André Guimarães. Rever, retorcer, reverter e retomar as imagens: comunidades de cinema e cosmopolítica. Galáxia, São Paulo, n. 33, p.
77-93, 2016.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
CARVALHO, Veronica Monachini de. Concepções e Transformações da Infância no Alto Xingu: Um estudo etnográfico sobre as crianças da
aldeia Aiha Kalapalo. 75 f. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais – Antropologia), Universidade Estadual de Campi-
nas, Campinas, 2015.
DEMARCHI, Andre e MADI DIAS, Diego. Vídeo-Ritual: Circuitos Imagéticos e Filmagens Rituais entre os Mebêngôkre (Kayapó). GIS - Gesto Ima-
gem e Som. São Paulo, v. 3, n.1, p. 38-62, 2018.

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FAUSTO, Carlos. No Registro da Cultura. In: ARAÚJO, Ana Carvalho Ziller; CARVALHO, Ernesto Ignacio de; CARELLI, Vincent (Orgs.). Vídeo nas
Aldeias 25 anos: 1986-2011. Olinda: Vídeo nas Aldeias, 2011.
GINSBURG, Faye. “Mediating Culture: Indigenous Media, Ethnographic Film, and the Production of Identity,”. In: DEVERAUX, Leslie; HILLMAN,
Roger (Orgs.). Fields of Vision: Essays in Film Studies, Visual Anthropology and Photography. Oakland: University of California Press, 1995.
________. Screen Memories: Resignifying the Traditional in Indigenous Media. In: GINSBURG, Faye et al. (Org). Media Worlds: Anthropology on
New Terrain. Los Angeles: University of California Press, 2002.
________. Native Intelligence. In: BANKS, Marcus; RUBY, Jay. Made to Be Seen: Historical Perspectives on Visual Anthropology. Chicago: The
University Chicago Press, 2011.

Dossiê
LAZANEO, Caio de Salvi. 217 f. Produção Partilhada e Reticularidade Fílmica. Tese (Doutorado Ciências da Comunicação) – Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2017.
MACIEL, Lucas da Costa; MONACHINI, Veronica; PEDRO, Thomaz. “Osiba Kangamuke - Vamos lá, Criançada!” o audiovisual e o etnográfico em
colaboração. PROA – Revista de Antropologia e Arte, n. 8, v. 1, p. 144-158, 2018.
NOVO, Marina Pereira. 232 f. “Esse é o meu patikula”: uma etnografia do dinheiro e outras coisas entre os Kalapalo de Aiha. Tese (Doutorado em 180
Antropologia Social), Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2018.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 171-181 | Jan - Jul | 2021

PENONI, Isabel. Filmes Feitos Para “Guardar” ou Os Dois “Caminhos” do Cinema Kuikuro. Mana, v. 24 n. 2, p. 172-198, 2018.
SERBER, Luiza. Circulando imagens e tecendo redes no Território Indígena do Xingu. Maloca, n. 3, p. 1-19, 2020.

Recebido em 30 de setembro de 2020

Aprovado em 31 de março de 2021

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Dossiê
181
> Gerações em cena, filmar com
mulheres Mbyá-Guarani: o filme-
-processo Pará Reté
Resumo >
Neste artigo faço a análise fílmica de dois cortes de um filme
Sophia Ferreira Pinheiro
inacabado da cineasta indígena Mbyá-Guarani Patrícia Ferrei- Doutoranda em Cinema e Audiovisual
ra Pará Yxapy, o filme Pará Reté, sobre sua mãe, sua filha e sua
avó. Mesmo inacabado, os cortes já foram exibidos em algumas Universidade Federal Fluminense
mostras e festivais. Evocando o conceito de “filme-processo”,
traço como o cotidiano e a intimidade são indissociáveis do
processo de realização desse filme e apontam para uma das
especificidades do cinema indígena feito por mulheres. Procu-
ro demonstrar as diferentes circunstâncias, características do
trabalho de Patrícia e de seu filme que acontece junto com a
Palavras-chave >
vida, de maneira a refletir sobre o processo de criação do seu cinema indígena, cinema indígena feminino, mulheres
filme a partir das relações dela com as personagens e do diá- indígenas, mulheres cineastas.
logo com a equipe do Vídeo nas Aldeias.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 182-216 | Jan - Jul | 2021

> Gerações em cena, filmar com mulheres Mbyá-Guarani:


o filme-processo Pará Reté1
Sophia Ferreira Pinheiro
> sophiaxpinheiro@gmail.com
Universidade Federal Fluminense

“Pará Reté, minha mãe, carrega no nome as palavras mar e coragem. Olho para ela com atenção e curiosidade. Tento alcançar seus dias, sua es-

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piritualidade, sua história. Aquilo que nos une e nos distancia, como mulheres e como povo. Em breve, minha filha entrará em reclusão e nós lhe
cortaremos os cabelos. Tento compreender aquilo que em nossa cultura desaparece ao mesmo tempo em que resiste e se transforma. Penso no
pátio que minha mãe varre todas as manhãs antes que o sol se levante. E os cabelos despenteados da minha filha.”2 - Patrícia Ferreira Pará Yxapy

Dossiê
1 A análise fílmica de Pará Reté faz parte da minha dissertação de mestrado intitulada A imagem como arma: a trajetória da cineasta indígena Patrícia Ferreira Pará Yxapy. 2017. 283 f. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2017. A dissertação pode ser acessada aqui: <https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/7897?mode=full>.
Acessada em 14 de Maio de 2021. 183
2 Diálogo de abertura do corte apresentado por Patri no FunCultura de Pernambuco e Secretaria do Audiovisual (SAV)/MinC.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 182-216 | Jan - Jul | 2021

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Imagens 1 e 2 - Frames de abertura do filme Pará Reté, para o corte da Secretaria do Audiovisual (SAV)/MinC, por Patrícia Ferreira Pará Yxapy. 184
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 182-216 | Jan - Jul | 2021

1 Pará Reté, um filme-processo

A cineasta indígena Guarani-Mbyá Patrícia Ferreira Pará Yxapy3 está desde 2016 em processo de montagem e finalização de seu filme primeiro
longa-metragem autoral, em colaboração com Ana Carvalho, Tita e Fernando Ancil (parte da equipe do projeto Vídeo Nas Aldeias), chamado pro-
visoriamente de Pará Reté (mesmo nome de sua mãe). Em Mbyá-Guarani, essas palavras referem-se a uma mulher espiritualmente muito forte. É
um nome feminino e cada palavra, segundo Patri4, possui um significado: Pará é “mar” ou “oceano” e Reté é “forte”. Patri me disse: “uma tradução
literal é difícil, mas vem da morada de tupã, um dos deuses, Deus5 da água, trovões, relâmpagos...”. Esse é o primeiro filme que ela dirige sozinha
para aprender mais sobre a técnica e é a primeira oficina de direção – dentre as oficinas continuadas de formação – dada a uma mulher indígena
no Vídeo Nas Aldeias (VNA).
O filme é sobre três gerações de sua família, sua mãe Elsa Pará Reté, sua filha Géssica Pará Yxapy e sua avó, Santa Pará Mirí. Durante nosso traba-
lho de revisitar os materiais brutos gravados para o filme, Patri e Ana comentaram que Géssica é também um grande personagem da narrativa do
filme. Por isso ele talvez não tivesse o nome Pará Reté na montagem final, uma vez que Géssica pudesse ainda se sobressair como personagem.
Contudo, em nossas conversas atuais, Patri me afirmou que deseja fazer o filme sobre sua mãe e com ela, trazer Géssica e Santa. Esses aspectos

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nos dão pistas também da processualidade deste material em aberto e em constante elaboração. Sobre o que motivou Patri a fazer o filme, ela me
disse: “Quis fazer um filme sobre minha mãe para mostrar o cotidiano da mulher Guarani, que é artesã, cuida da casa, dos filhos e netos... Quis
usar o exemplo dela para mostrar como as outras mulheres são. Quis mostrar o que as mulheres têm a dizer!”.

Neste artigo, apresento a análise de dois cortes que o filme possui: um curta de 15min feito para a prestação de contas do edital FunCultura de
Pernambuco e Secretaria do Audiovisual (SAV)/MinC em que o projeto da oficina foi aprovado e um corte com trechos do material bruto com
30min que foi apresentado na Mostra Olhar – Um Ato de Resistência em 2015 durante o ForumdocBH, exibição que enfatizava o aspecto pro-
cessual do filme. Para melhor efeito de compreensão desta análise, nomearei o curta como “corte 1” e o trecho de material bruto como “corte 2”.
A análise desses dois cortes extrapola a concepção de um filme pronto, visto que o filme não está acabado e é atravessada por minha relação de

Dossiê
3 Professora e realizadora audiovisual indígena da etnia Mbyá-Guarani. Em 2007, cofundou o Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema. Está finalizando seu primeiro longa e circula
em festivais de cinema com o filme Teko Haxy – Ser Imperfeita, codirigido com Sophia Pinheiro. Em 2019, participou da mostra Performances Ameríndias do Doclisboa (Lisboa),
participou como artista da 21a Bienal de Arte Contemporânea Sesc Videobrasil. Em 2020, teve sua primeira exposição individual na Berlinale, dentro da mostra do programa
Forum Expanded e participou do projeto Nhemongueta Kunhã Mbaraete, troca de videocartas com Graci Guarani, Michele Kaiowá e Sophia Pinheiro, comissionada pelo Ins-
tituto Moreira Salles durante a pandemia de COVID-19. Já realizou os filmes: As Bicicletas de Nhanderu; Desterro Guarani; Tava, a Casa de Pedra; e No Caminho com Mário.
4 Chamarei Patrícia de Patri pois é a forma como a chamo em nossa relação de amizade. 185
5 Letra maiúscula utilizada por ela em nossa conversa via chat do Facebook em 2015.
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amizade e parceria de trabalho com Patri. Os métodos de construção dessa análise fílmica partem 1) da visionagem desses dois materiais fílmicos;
2) da minha pesquisa antropológica no mestrado em torno da cosmovisão Mbyá a partir da trajetória de Patri como cineasta; 3) do trabalho de
pesquisa de campo no VNA e com a família de Patri na Aldeia Ko’enju que executei entre 2015 a 2017, bem como aos momentos de encontros e
debates em Mostras e 4) as conversas e relações com as pessoas que estão intimamente ligadas ao processo de Pará Reté.

Incluo Pará Reté como um filme-processo, em consonância aos apontamentos de Clarisse Alvarenga (p. 78, 2017): “o que faz do filme um filme-
-processo é, fundamentalmente, o fato de sua forma ser indissociável de seu processo de realização”. Partindo de Cláudia Mesquita (2011, 2014), a
autora ainda formula sobre os aspectos dos filmes-processos em seu livro “Da cena do contato ao inacabamento da história”:

(...) Sua feitura se dá em longuíssimos períodos, sendo preciso que a narrativa internalize a história na qual e da qual eles se fazem. São vários os mo-
dos daquilo que chamaríamos de cinema-processo e Cláudia Mesquita, (...) nos oferece uma definição precisa: trata-se de filmes em que experiência
vivida e experiência fílmica são indissociáveis e que, atravessando longos períodos em sua feitura (muitas vezes iniciada, interrompida, adiada, reto-
mada), incorporam em sua narrativa mesma os processos, a um só tempo históricos e fílmicos, que os constituem. São filmes que, dada sua escala
temporal, se alteram pela história tendo também a força para alterá-lá em contrapartida (ALVARENGA, p. 13, 2017).

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Por esses ângulos, o filme de Patri caracteriza-se pelo cinema-processo justamente por seu inacabamento como forma fílmica – ainda não se sabe
se é um curta, se é longa ou média, o nome do filme e qual será a personagem ou história principal que ora volta-se para Elsa, ora volta-se para
Géssica; o tempo transcorrido também afeta as imagens realizadas em 2015, atualmente, 6 anos depois, Patri me diz que ainda filma sua mãe pen-
sando nesse filme, dando pistas de que talvez esse seja um filme delas, sobre Elsa. Sua forma é indissociável do seu processo de realização e no
caso de Patri, também indissociável de sua vida pois inscreve os aspectos das experiências vividas e compartilhadas com sua família, assim como
deixa entrever o tempo que atravessa seus processos de realização (ALVARENGA, 2017, p. 13). Sobre a experiência vivida, Claudia Mesquita afirma:

As “obras em processo” convocam experiências em que confluem cena e vida, em que as divisórias são porosas, em que o controle (sobre a cena)
nem sempre é possível, em que o filme está a serviço ou inventa, no corpo-a-corpo com experiências que não domina totalmente, o seu singular
movimento (MESQUITA, 2011, p. 18 da transcrição de sua fala no debate “Obra em processo ou processo como obra?” em 5 de Maio de 2011).

Dossiê
O tempo, em Pará Reté, transcorre nas imprevisibilidades da vida e a falta de financiamento para finalização audiovisual no Brasil, já que esse é
um ponto central para que o filme seja terminado atualmente. Mesmo sendo um filme inconcluso, Patri apresentou pela primeira vez o curta de
15min, o mesmo corte para a Secretaria do Audiovisual (SAV)/MinC, na 2a edição da mostra Amotara – Olhares das Mulheres Indígenas6 em
Março de 2021, mostra que fizemos co-curadoria juntas com Graciela Guarani, Olinda Muniz Wanderley e Joana Brandão com 33 filmes de autoria 186
6 Site de Mostra Amotara – Olhares das Mulheres Indígenas: < https://amotara.org/filmes-2/> Acessado em 15 de Maio de 2021.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 182-216 | Jan - Jul | 2021

de mulheres indígenas. Sobre seu filme, Patri diz: “Pará Reté é um filme sobre as mulheres guarani a partir de minha mãe e minha filha, a questão
geracional, modo de ser, os ensinamentos... Com certeza com esse filme eu aprendi muito mais em como é bom ter uma mulher para mulher.”

Outro corte, um trecho de sequências brutas do filme com 30min de duração foi apresentado na Mostra Olhar – Um Ato de Resistência, organiza-
da pelo cineasta Andrea Tonacci no festival de cinema ForumdocBH em 2015.7 No catálogo, ao lado das informações sobre o filme, consta entre
parênteses “em processo”. Segundo a sinopse do filme no catálogo da mostra:

O filme traz um retrato de Elsa feito por sua filha, Patrícia Ferreira. Fundado no cotidiano da personagem na Aldeia Ko’enju, onde vive, e seu trânsito
para a Argentina onde vivem sua mãe e parentes, Pará Reté traz a um só tempo história pessoal, a caminhada sagrada e o conflito de gerações de
mulheres Mbyá-Guarani. (MOSTRA OLHAR UM ATO DE RESISTÊNCIA, 2015, p. 99)

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Dossiê
Imagem 3 - Da esquerda para a direita: Santa, Elsa, Patri e Géssica, quatro gerações de mulheres Mbyá-Guarani (FERREIRA, Aldo, ano).

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7 Catálogo da Mostra Olhar – Um Ato de Resistência disponível em: <https://issuu.com/forumdoc/docs/catalogo_vol2_site>. Acessado em 3 de Setembro de 2020).
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Como Pará Reté não está concluído e, em atenção à minha pesquisa, o VNA permitiu meu acesso ao resultado do projeto aprovado na SAV/MinC8,
o “corte 1” de quinze minutos e ao “corte 2” de trinta minutos com imagens brutas do filme. Além disso, a sede do VNA em Olinda foi aberta para
que eu pudesse acompanhar9 um dos processos de montagem do filme com Ana Carvalho e Patri em 2016. O “corte 2” é dividido em quatro partes:
i) Café da manhã com Elsa e Patri em Koenju; ii) Elsa e Géssica em Koenju; iii) Travessia de barco em Porto Mauá e iv) Chegada em Kunhã Piru,
na Argentina. Analisarei ambos os materiais fílmicos e o processo de montagem inconcluído do filme que acompanhei com Patri e Ana na sede
do VNA.

O filme foi pensado quando Patri e Ana Carvalho estavam em Diamantina (MG), durante o 45o Festival de Inverno da UFMG, no contexto do En-
contro de Realizadores Indígenas10. Elas conversaram, levantando a necessidade de uma pauta da mulher indígena dentro do VNA. Patri disse
que gostaria de fazer um filme sobre sua mãe e que durante esse processo, também realizasse uma oficina de cinema para as mulheres da aldeia
Ko’enju. Infelizmente a oficina para as mulheres não aconteceu por falta de orçamento.

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2 Tupã Txy Ete: mulheres da morada de Tupã

Na apresentação do “corte 2” em São Paulo, no Encontro Mekukradjá – Círculo de Saberes Indígenas, Andrea Tonacci disse para Patri, “não se preo-
cupe com a duração do tempo, deixa o tempo fluir o seu filme”, uma preocupação sobre a montagem que ele já havia demonstrado durante o Forum.
doc 2015 e relatado para Ana. A duração do filme de Patri talvez reflita a transformação de fazer-se da própria cosmologia Mbyá, a busca de modos de
fortalecimento da própria existência, a duração da pessoa (PISSOLATO, 2017) e da forma como Patri cria. É um “outro” tempo, algo dilatado e me-
ditado, que muitas vezes entra em conflito com o “nosso” tempo juruá kuery (não indígena). Em Olinda, Patri questionou-me por que estava ali naquele
momento, por que ela sempre tinha que ceder ao tempo dos brancos e que poucas vezes os brancos se adaptavam ao seu tempo. Disse isso porque
ela queria que eu e Ana fôssemos à aldeia e não que ela tivesse que ir a Olinda. Infelizmente ela se viu confrontada – mais uma vez – pelo processo

Dossiê
financeiro e burocrático do mundo juruá kuery.
8 Secretaria do Audiovisual do então Ministério da Cultura Brasileiro no ano de 2014/2015.
9 Propus minha ida e a de Patri para lá por ser uma maneira de retribuir toda a generosidade que o VNA teve comigo e com minha pesquisa, em um momento em que a verba para dar
continuidade ao filme havia acabado. Além disso, acompanhar esse processo foi vital para o desenvolvimento da minha pesquisa.
10 Durante o encontro, foi realizada a “Carta Diamantina”, formulada por representantes de coletivos indígenas de produção audiovisual, organizações de apoio à produção indígena, pro-
fessores e estudantes universitários durante o encontro: < http://museudoindio.gov.br/divulgacao/noticias/229-carta-de-diamantina-dos-coletivos-de-audiovisual-indigenas-no-brasil 188
> (Acessada em 16 de Maio de 2021).
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Patri possui o nome Pará Yxapy que é da morada de Tupã, assim como sua mãe. Quando criança na cerimônia de nominação, o nhemongaraí, foi
batizada por outro nome, mas, por questões espirituais, os karaí e as kunhã karaí o mudaram. Seu nome anterior não era condizente com seu es-
pírito e por isso ela enfrentava algumas intempéries emocionais e físicas. Desde que mudou de nome na casa de reza em Kunhã Piru,11 há alguns
anos, Patri diz que se sente “mais forte, menos vulnerável, mais corajosa e aceitando as coisas que acontecem”. Poeticamente, Pará Reté, a força
das águas do mar, é mãe de Pará Yxapy; o mar e a força geram a maresia, a presença do mar é levada por meio do vento. Nesse sopro de vida e
força, Pará Yxapy leva sua mãe consigo.12

Recentemente, Géssica também trocou de nome13 Antes era Kerexu14 e, agora, é Pará Yxapy15 o mesmo nome de Patri. Santa, a xe jary (“avó”) de
Patri e mãe de Elsa, chama-se Pará Mirí16 e tem em seu nome algo próximo a “mar sagrado”. Como salienta Jesus (2015, p. 118), o nome Mbyá-Gua-
rani “não apenas identifica a pessoa, mas é parte desta. Fortalece seu nhe’é17 e sua personalidade”. Ter recebido o nome é o que garante ao ser
humano seu fortalecimento para viver “nesta terra imperfeita”. Graças ao batismo, o nhe’é (algo próximo à “nossa” concepção de alma/espírito)
está agora fixo ao corpo e precisa ser guiado por seus parentes. O espírito é a palavra e ela tem substância. Assim, essas quatro mulheres são da
morada de Tupã Txy Ete (“a mãe verdadeira”) e levam consigo toda a potência de suas moradas comuns atreladas às suas almas de guerreiras.
Pessoas da mesma família podem ser de “moradas divinas” diferentes. Não à toa, a proximidade de seus nomes mostra também a proximidade

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de suas visões de mundo com suas forças ancestrais. O mar as une, assim como o sangue nas veias de seus corpos traçam o território imperfeito
onde suas almas habitam.
11 Segundo Patri, na Tekoa Ko’enju, não é feito nhemongaraí, pois não há matérias-primas como o milho verdadeiro (avaxí ete) e a erva-mate (ka’a), nem karaí ou kunhã karaí que possam
realizar as cerimônias. Desse modo, pais e mães com parentes em aldeias onde se realizam a cerimônia as levam para lá. Na família de Patri e Ariel, as crianças e as novas nomeações
são feitas em Kunhã Piru e em Tamanduá, na Argentina. De acordo com Jesus (2015, p. 117-118): “Não há data precisa para se realizar o nhemongaraí. [...] As crianças que recebem o
nome já terão por volta de um ano de idade, a moleira já estará se fechando e a linguagem oral começa a se desenvolver. Isso indica que o nhé’e está pronto para permanecer neste
mundo, tomando assento no corpo da criança, tendo vindo da morada de um dos pais verdadeiros: ou de Nhamandu Ru Ete, ou Karaí Ru Ete, ou de Jakairá Ru Ete, ou ainda de Tupã Ru
Ete. [...] O nhemongaraí acontece na Opy, para onde os pais de meninos levam folhas de ka’a (erva mate) e os pais de meninas levam mbojape (pequeno bolo de milho). O karaí usa o
petyngua (cachimbo) para defumar os ka’a e os mbojape. Assim, o nhe’e se revela e fala aos karaí, que por sua vez dizem aos pais o nome de seus filhos. Em seguida, o ka’a e o mbojape
são nomeados pelos pais com o mesmo nome da criança e deixados na Opy”.

Dossiê
12 Os parágrafos sobre as nomeações foram corrigidos por Patri.
13 É comum, ao longa da vida, as pessoas mudarem de nomes. Quando crianças choram em demasia, ficam tristonhas e apáticas, ou quando adultos adoecem por longos períodos, têm
doenças crônicas, ficam infelizes e nervosos com frequência, ou seja, quando o espírito não vai bem, pode ser em razão do nome errado atribuído no batismo.
14 Uma vez, Elsa disse, de forma bem espontânea, que meu nome em Mbyá-Guarani é também Kerexu, e gostei bastante pois me senti efetivamente da família.
15 Ainda de acordo com Jesus (2015, p. 117), “cada ser humano vem da morada de um pai e de uma mãe verdadeiros e cada uma destas divindades domina um conjunto específico de
conhecimentos e habilidades, que são conferidas aos nhé’é que chegam à terra. Aqueles vindos de Tupã são fortes, guerreiros/as. [...] No geral os nomes mbya são compostos, o primeiro
nome diz a origem da pessoa e o segundo especifica suas características”.
16 Como me disse Patri, traduzir a palavra Mirí é sempre muito difícil, pois ela está ligada a algo muito espiritual. 189
17 Patri sugeriu traduzir como “alma”.
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Além de utilizar seu cotidiano familiar e a história de sua mãe como argumento cinematográfico, Patri ainda esperava filmar o acontecimento mais
importante para que seu filme realmente estivesse completo: a primeira menstruação e todo o ritual de reclusão de Géssica. Quando o filme foi
realizado, em 2015, sua filha estava na fase do inhegue rai’i18 (“perto de menstruar”). Géssica menstruou em 2016 e, como Patri não tinha equi-
pamento para filmar seu ritual, não conseguiu o que queria. Ficou bem triste. Patri desejava filmar a reclusão em casa de até quinze dias, a dieta
restritiva e todo o processo durante esse período de “fabricação do corpo”19 que tal ritual agencia nas famílias, com me explicou:

O processo de reclusão se dá de 15 a 20 dias, dependendo de como ela se comportar antes da menstruação. Se for uma menina obediente, fica me-
nos tempo, a mãe e família que decidem. Antigamente a mulher ficava reclusa mais tempo, minha mãe ficou 20 dias e eu fiquei 15. Na reclusão ela
segue restrições alimentares e depois da reclusão, durante os outros ciclos de menstruação, também. A mulher não pode cozinhar para os homens
e para as outras mulheres só se elas permitirem; não pode comer doces e carne... A dieta alimentícia e o fato dela não cozinhar, ela deve seguir por
toda vida. Nessa primeira menstruação, com a reclusão e a dieta, a mulher corta o cabelo bem curto e com restante dos cabelos que foram cortados
uma outra mulher faz uma trança tetymakuaa que é diferente dessas comuns, é uma trança só para esse momento... Hoje em dia só tem uma mulher
da aldeia que sabe fazer. Depois que a trança é feita ela é dada ao pai para que ele a amarre na perna e fique com ela por alguns dias, amarrada. Ele
deve guardar a trança por toda a vida. (trecho de uma conversa com Patrícia, retirado do meu diário de campo em 2015).

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Patri me relatou que, nesse mesmo processo, as filhas ficam mais próximas das avós, por isso o filme é tão emblemático da relação entre Géssica
e as avós. São as mulheres que repassam os conhecimentos cosmológicos sobre o Mbyá Reko da mulher indígena Guarani. Ela me disse ainda
que para elas não há adolescência, que essa é uma categoria branca, e que, após a menstruação, as meninas, antes crianças, tornam-se adul-
tas, mulheres. Em nossa conversa, pude perceber que, mesmo com toda a relação com outras culturas, esse ritual é algo presente na rotina das
mulheres na aldeia de Ko’enju. Não há aculturação, há ressignificações de acordo com a realidade de cada mulher. A realização dessas práticas
rituais é muito cotidiana para elas, principalmente as restrições alimentares que em alguns momentos da vida precisam enfrentar. Esse nhadereko
(“modo de ser”) é explicitado na confrontação com outros modos de ser e quanto à educação, continuando nossa conversa, Patri diz que homens
e mulheres são responsáveis pela educação das crianças:

Dossiê
A educação na cultura guarani ocorre desde pequeno, casamento, vida, tudo, desde muito cedo é ensinado. As crianças observam aos adultos como
fazer bichinhos. Os pais não dizem “isso é trabalho do homem, esse é trabalho da mulher”. Nem todos são assim, na minha família eu aprendo dessa
maneira que nenhum trabalho é de uma pessoa só, numa casa tem um casal, os dois cuidam do filho, os dois lavam prato, lavam roupas, então tudo
isso aprende desde que criança. Não existe a educação diferente para homens e mulheres. Principalmente os meninos, aprendem o que tem que
fazer para cuidar da mulher. E quando estão casados, os mais velhos sempre falam para se cuidarem. Quando a gente vai na casa dos avós de Ariel,
18 Patri explicou que inhangue remete apenas ao período depois da primeira menstruação, e que inhengue pa ramo va’e é toda a fase de aprendizado depois da menstruação.
19 Uso o termo “fabricação” longe das conotações impessoais ou docilizadoras do corpo, mas sim como técnica corporal (MAUSS, 2003), como produção, ou seja, como criação desse 190
“novo” corpo atrelado à vida e à cultura de certa forma alteradas dali por diante, através de um acontecimento biológico da pessoa humana.
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eles sempre falam: “cuida da sua companheira” e quando eu vou na minha avó ela sempre me diz: “cuida do seu companheiro”. Há sempre o bem e o
mal, desde cedo aprendemos a não fazer a coisa do mal, a por exemplo não roubar, não brigar... Nós somos humanos, tem coisas ruins acontecendo
também nas aldeias, homem que bate em mulher, existe mas não é por falta de conselho, é por falta de... Não sei, muitas vezes são daqueles que
saem mais da aldeia, convivem mais com a cidade, a gente percebe isso... São pessoas que convivem mais na cidade. (trecho de uma conversa com
Patrícia, retirado do meu diário de campo em 2015).

A antropóloga, professora e curadora Guarani Nhandewa Sandra Benites, em sua dissertação de mestrado pelo Museu Nacional da UFRJ, escre-
ve um capítulo dedicado a história de Nhandesy‘Ete (nossa mãe verdadeira), divindade complementar a Nhanderu’Ete (nosso pai verdadeiro) na
origem do mundo pela cosmologia Guarani. No capítulo, Sandra traz a sabedoria e os sentimentos da Nhandesy‘Ete para discorrer sobre uma das
organizações específicas do nhandereko Guarani, os preceitos do kunhangue reko, o modo de vida da mulher guarani que é essencial para o bem
viver de toda a comunidade. Nessa perspectiva da história contada pelas mulheres, a partir das histórias que sua avó, sua mãe e suas tias conta-
vam para ela, Sandra questiona: “como é possível transmitir os conhecimentos através das narrativas que aprendi com minha avó e com as minhas
tias e minha mãe?” (BENITES, 2018, p. 64). A meu ver, é um pouco desse conhecimento em movimento de Nhandesy que Patri tenta elaborar com
seu filme, a fim de transmitir e perpetuar esses ensinamentos intrínsecos ao modo de ser Guarani. A caminhada, é também um processo. Processo

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de fazer-se e desfazer-se20 nesse mundo imperfeito, um trabalho coletivo entre mulheres para construir o corpo-território21.

Segundo Sandra, “as mulheres precisam ter cuidado com elas mesmas primeiro” (2018, p. 71) e dentro desses cuidados, a autora tece – como uma
tecelã das memórias – os ensinamentos de sua avó que era parteira, sobre a educação das crianças, as restrições, os conselhos para as mulheres
e as produções de corpos durante a fase pré-menstrual das meninas, a menstruação e a gravidez. Para ela: “na ordem social Guarani, o corpo é a
relação com o outro e é fundamental para a construção da sabedoria. Por isso, as mulheres Guarani devem ser consideradas como diferentes em
seu próprio contexto. Elas são protagonistas pela própria história de Nhandesy”. No entanto, Sandra enfatiza que a narrativa “mítica” [que é real
para o povo Guarani] de Nhandesy é apenas citada de maneira geral, desvalorizada, sem o cuidado que ela merece. Além disso, é uma narrativa
forjada pelo olhar masculino de pesquisadores e dos próprios homens da comunidade:

Dossiê
20 Articulei mais detalhadamente sobre essa dinâmica de mobilidade no artigo: “Fazer filmes e fazer-se no cinema indígena de mulheres indígenas com Patrícia Ferreira Pará Yxapy” para a Re-
vista Teoria e Cultura no dossiê “Interpretando a etnografia visual: imagens e a construção de significados antropológicos v. 15 n. 3 (2020): < https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/
article/view/33002 > Acessado em 17 de Maio de 2021.
21 De acordo com Sandra Benites: “Digo “território” porque o funcionamento do nosso corpo e o nosso jeito de ser mulher são territórios e identidade, têm relação com diferenças e especificida-
des.” (2018, p. 70). A junção entre corpo e território é também pensada pela ativista e autora Célia Xakriabá (2018) em seu mestrado e foi conceito da 1ª Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília 191
durante o Acampamento Terra Livre de 2019: “Território: nosso corpo, nosso espírito”.
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(...) Com a história de Nhandesy apenas contada na perspectiva dos homens, eu me senti obrigada a falar sobre esse nosso conheci-
mento, que é diferente quando é abordado a partir do olhar da mulher (guarani) (...) O território dos Guarani se constrói a partir dessa
história. Por isso, continuamos caminhando naquele caminho que Nhandesy‘Ete percorreu durante a sua caminhada. (...) A questão do
silenciamento das mulheres sempre foi uma questão que me gerou muitas dúvidas e angústias. Como é possível transmitir os conhe-
cimentos que aprendi com minha avó para as mulheres juruá e os parentes (xeretãrã kuery), com o objetivo de fortalecer nós mulheres
e evitar que os homens ipu’aka, tenham poder sobre nós? O que fazer se os espaços, as instituições, em sua maioria, são dominados
por homens, principalmente fora da minha aldeia onde ainda são vividas algumas práticas rituais? (...) A história de Nhandesy já indica e
ensina como a mulher deve se cuidar. (BENITES, 2018, p. 76, p. 80 e p. 77, respectivamente)

Desse modo, Pará Reté é um lastro dessa caminhada de Nhandesy e da criação coletiva entre mulheres. Aquilo que Patri - na voz em off da
abertura do “corte 1” enquanto Elsa caminha pela estrada - tenta compreender na cultura Guarani que desaparece ao mesmo tempo em
que resiste e se transforma. Sandra aprendeu com sua avó, como Géssica aprendeu com Elsa.

3 Intimidade

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Durante minha presença em parte da montagem do filme e nas conversas com ela e Ana, percebi que Patri descobriu seu filme na tradução e
montagem dele. Ou seja, ela descobriu quem era – como diretora – na produção desse filme, durante a tradução do Mbyá-Guarani para o portu-
guês,22 não no momento da filmagem, com o que Patri também concorda. Quando ela e Ana traduziam uma cena de café da manhã, Patri disse
que a câmera estava errada: “essa câmera não tinha que estar ali, está errada. Ela tinha que estar do outro lado, não captou o momento certo
da fala em Mbyá”. Ana disse: “Mas é por isso que você é a diretora, você deveria ter controlado isso em cena. Como as câmeras se posicionam e
quando elas se posicionam é papel da direção”. Assim, desvela-se algumas lógicas de consciência durante o processo, por isso esse filme-proces-
so evoca o que pontuei na formulação de Clarisse Alvarenga (2017) sobre filme-processo, Pará Reté altera-se pela história, pelo cotidiano e pelas
imprevisibilidades da vida e assim, também possui força para alterá-la em contrapartida, formá-la. “Ser cineasta” na trajetória de Patri revelou-se

Dossiê
mais como um estado em permanente formação, ou seja, um aprendizado a cada filme, festival, prêmio e debate, e, principalmente, um aprendi-
zado conquistado na realização desse seu primeiro filme como diretora. Logo, Patri não “é” cineasta, “torna-se” cineasta a cada experiência em
que apreende mais a respeito de seu processo criativo e imagético. Concomitantemente a esse aprendizado contínuo, esse filme-processo cuja
temática abrange as relações entre ela e as mulheres de sua família pode revelar um pouco mais da sua profunda relação com as mulheres Mbyá
e com seu próprio “ser mulher” e ser mulher Mbyá.
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22 Patri esteve em Olinda no fim de 2015 para fazer a tradução das falas nas filmagens com Ana.
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Os posicionamentos de câmera escolhidos pela cineasta revelam sua intimidade com a personagem, o que viabiliza o tratamento de assuntos
específicos. A criação de sua filha Géssica, os ensinamentos dela e de Elsa para educá-la e prepará-la antes da menstruação, os conselhos coti-
dianos dados a ela desde pequena, ou nas nossas conversas sobre nossas somatizações sentimentais e as doenças do corpo podem ser parti-
cularidades de fazer filmes para Patri, inerente à sua vida, seu modo de ser. Desta forma, como nos diz Claudia Mesquita (2011), o controle sobre
a cena nem sempre é possível, o filme também possui sua agência e está a serviço ou inventa, no corpo-a-corpo com as experiências que não
domina totalmente. Filmava-se na altura dos personagens ou no chão porque Elsa, assim como a maioria das pessoas, estava sentada durante
muitas filmagens. A câmera enquadra-se de lado ou de frente, mas, quando não é Patri filmando, Elsa aparece muito de costas, pois ela não “se
abria” imageticamente para Tita e Fernando, não se sentia tão à vontade como com Patri. Quando esta filma, “é quando o VNA acontece”, o filma
muda de posicionamento. Elsa para de falar para o branco, para as xenhorá (“brancas”) e os juruá (“brancos”), isto é, para de contar como faz o
cesto, o que está cozinhando, como atravessa a balsa, o que vai fazer, como anda... É ter que explicar tudo. Já com Patri e Aldo (o irmão dela) fil-
mando, ela não precisa falar como faz as coisas, pois fala de si, das questões dela, da família, dos sentimentos, das subjetividades. Em um fim de
semana, de folga do emprego, Aldo filmou sua mãe, e no meio de uma conversa ela disse: “porque eu fico ali, falando pra eles (juruá) como eu faço
as coisas”. No processo de realização do filme, Patri foi cada vez mais tomando consciência de seu papel como diretora. Foi a primeira vez que ela
foi colocada nessa posição aberta e franca, e isso talvez até a incomodasse.

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Imagens 4 e 5 - Frames do filme de Patri. Na primeira imagem, Patri filma uma conversa no café da manhã. A câmera é mais próxima, frontal, e a fala de Elsa
é mais íntima, mais subjetiva. A segunda imagem é de uma cena feita por Tita e Fernando com a câmera mais distante, Elsa na maioria das vezes é filmada 194
de lado e fala sobre “como ela faz as coisas”; aqui, fala sobre como vendeu barato o cesto que está fazendo. (Fonte: frames do “corte 2”).
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Elsa, Patri e Géssica são abordadas como protagonistas da história narrada no filme e de suas próprias histórias de vida, isto é, são abordadas
em seu ponto de vista íntimo – principalmente Elsa. Isso posto, não se trata de um filme em que o feminino é estereotipado, pelo contrário, ele é
abraçado. A escolha do filme se deu a partir de uma diretora indígena e mulher, com suas questões particulares no pensamento, no modo de ser,
na espiritualidade Mbyá e nas relações que ela estabeleceu com a mãe, a filha e a avó. Patri vê na mãe um grande personagem, atravessada por
todas as questões do nhadereko (o modo de ser Mbyá): o que faz Elsa “ser” Elsa e Pará Reté? E o que “faz” a Elsa Mbyá-Guarani? Tais questio-
namentos sobre o que faz Elsa uma mulher Guarani (não no termo genérico) são pensados no filme por meio das narrativas cotidianas. Se essas
vicissitudes não fossem questões, não haveria o conflito entre Elsa e Géssica, mas ele existe. Ela quer que Géssica seja uma mulher Guarani. E o
que é exatamente ser uma mulher Mbyá-Guarani?

Essa possivelmente é uma pergunta que Patri busca para si e para seu filme, como diz na abertura deste artigo. É uma filha filmando a mãe, a
filha e a avó. Trata-se da cosmologia Mbyá-Guarani na perspectiva das mulheres e Patri, nesse intervalo, faz a mediação dessas relações, princi-
palmente entre a mãe e a filha. Nesse sentido, são particularidades marcadamente de mulheres, nuanças íntimas de uma relação que só pode ser
estabelecida entre elas. No momento em que Aldo filma Elsa, por exemplo, ela trata de outras relações familiares, como o casamento com as/os
brancas/os23; são outras conversas e, a meu ver, uma outra relação. As problematizações políticas e da terra florescem, mas em seu filme, Patri

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afirma que quer mesmo “mostrar o cotidiano da mulher Guarani, o que elas têm a dizer”. Portanto, o viés da intimidade, do olhar de dentro da casa,
do café da manhã, da conversa na fogueira, do preparo da comida, do cuidado e criação das crianças – em teoria, tarefas das mulheres –, traz um
cinema de escrita pessoal, quase autobiográfico.

No decorrer da gestação, um gesto de cinema-processo do filme, Patri e Ana usaram como referência o longa Nascimento e maternidade (2006)24,
da cineasta Naomi Kawase, que retrata a relação entre a avó da diretora e ela com a chegada de seu primeiro filho, o elo da vida. O filme também
foi exibido na mostra do Forumdoc.BH 2013 “A mulher e a câmera”, mostra essa de que Patri participou pela primeira vez sozinha, como mulher
indígena cineasta. Em 2020, quando Patri e eu participávamos como convidadas25 de um grupo de estudos de Cinema Indígena na USP, Patri es-
tabeleceu uma relação entre gestar o filme e parí-lo: “fazer cinema é como cuidar de um filho”.

Dossiê
23 Aldo teve um relacionamento com uma xenhorá (mulher não indígena) e teve dois filhos com ela, Ivy e Gael. Na época das filmagens, eles estavam separados e Gael não havia nascido.
24 Segundo Cabral (2015): “O filme é, também, a terceira e última obra de uma série de curtas-metragens autobiográficos realizados por Kawase entre 1994 e 2006, constituída por filmes
cujos argumentos centram-se na figura da avó e mãe de criação da própria cineasta, Uno Kawase. O resgate da memória da avó e das questões que permeiam o relacionamento entre Naomi
e Uno tem início em Katatsumori (1994) e permanece em Ten, Mitake (1995) e Hi wa katabuki (1996). Quase dez anos depois, em Tarachime, a discussão ganha novas dimensões ao passar a
abranger também o vínculo afetivo entre a avó e o primeiro filho de Naomi, o pequeno Mitsuki”. 195
25 Falando sobre nosso filme TEKO HAXY – ser imperfeita (2018) e da nossa obra mais recente Nhemongueta Kunhã Mbaraete (2020).
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Esse período de gestação acompanha a imersão cada vez maior de Patri nas cenas e na criação. Em quadro e/ou filmando, ela é nitidamente
personagem e diretora. Como disse Ana, nas filmagens ela teve uma dimensão maior de que filme ela estava fazendo e, foi um amadurecimen-
to na e da prática fílmica, experenciadas também na tradução e na montagem. Quando exibiu o corte do filme em andamento26, sua fala estava
amadurecida, expondo a apropriação cada vez mais nítida de seu filme, e isso é muito bonito. A cada exibição desse corte em andamento, a cada
bate-papo e festival, ela se apropria mais um pouco de seu filme-filho e do seu fazer cinema.

Patri consegue trazer para dentro do escopo atual o mito, a tradição e o contemporâneo com uma temporalidade muito particular. Em certa me-
dida, Pará Reté traz todas essas questões que não se levantam conversando com um karaí (líder espiritual homem) ou uma kunhã karaí (líder
espiritual mulher) nem em filmes como TAVA, a casa de pedra (2012), feito pelo Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema que Patri faz parte. É um filme
de dentro para fora, no sentido do cotidiano – o particular – que leva ao maior – o coletivo. Em Pará Reté, o jeguatá (a caminhada Mbyá) está ali, o
território, a terra, a espiritualidade, o nhadereko, os mitos. Estão todos ali, mas no nível do mais cotidiano e do mais doméstico, no dia a dia dessas
mulheres. É o extracampo que invade o campo de maneira muito sensível, e não por se tratar de uma atribuição supostamente feminina, mas por
mostrar sutilmente como toda a cosmovisão de mundo Mbyá se dá na vida, no comum, borrando as fronteiras entre o público e o privado, a história
e a memória, o íntimo e o êxtimo, o pessoal e o político.

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Mesmo que alguns filmes do Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema, como As Bicicletas de Nhanderu (2011), revelem espectros dessa intimidade, são
os karaí e as kunhã karaí falando do que é espiritualidade. Em Pará Reté, a espiritualidade aparece porque as pessoas vivem isso cotidianamente
porque Elsa e Patri dizem nas conversas, conselhos e ações; não se trata apenas de uma narrativa sobre ela. Em uma cena de café da manhã com
a família, Elsa narra seu acordar dizendo que varre o pátio de sua casa pelas manhãs porque ele deve estar limpo para o sol chegar, para Nha-
mandu (o deus criador que se manifesta ao amanhecer) chegar: “pela manhã, nos arrumamos e depois varremos o pátio. Antigamente as jovens
faziam assim. Hoje em dia já não conseguem mais se levantar antes do sol nascer”. Na mesma sequência, Patri penteia os cabelos das meninas
para que Nhanderu (o pai verdadeiro) as veja bonitas, e mostra-se o fogo de chão e o compartir do ka’a (erva-mate), momentos íntimos, mas que
se passam através de um sistema coletivo, o tecido social da cosmologia Mbyá.

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26 O corte do filme é o mesmo analisado aqui por mim. Disponível em: https://vimeo.com/174969448. Senha: pararete.
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Imagens 6 e 7- Cenas do filme de Patri, que abordam a espiritualidade cotidiana e o cuidado afetivo. (Fonte: frames do “corte 2”).
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Em outro café da manhã filmado por Patri, estão apenas as duas. Elsa arruma o mate, faz reviro27 e canta. Celebrando e meditando, declara: “é
assim que medito todos os dias, mesmo quando não estou na casa de reza”. Ela dá o mate para Patri, que aparece em cena com a sua mão – as
unhas pintadas de azul –; as duas estão em volta da fogueira onde fica a panela de ferro em que Elsa cozinha o reviro. Elsa diz que não possui um
lugar certo para meditar. Medita onde tem vontade, incluindo em sua casa, no lugar onde faz fogueira. A câmera é próxima, filma de frente e de lado
a conversa, e Elsa está muito à vontade, diz que não faz isso diariamente para que os brancos vejam e escutem: “Não é para que vejam todos os
seres imperfeitos”. E canta. Patri canta com ela, suavemente. Elsa continua falando sobre sua meditação: “mesmo que os karaí e kunhã karaí não
saibam como me sinto por dentro, por isso vão dizer: essa mulher medita para alcançar sua velhice. Por isso medito, mesmo que ninguém saiba,
para minha própria força”. E agradece pelos sorrisos imperfeitos: “medito sempre com essa intenção. Nós estamos em um mundo imperfeito. Para
me manter sempre forte e com saúde”. Elsa se emociona e chora... Mãe e filha compartilham erva-mate, juntas no mundo imperfeito.

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Imagens 8, 9 e 10 - Cenas do filme de Patri, que mostram a espiritualidade de Elsa no âmbito doméstico. (Fonte: frames do “corte 2” filmadas por Patrícia).

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A filmagem dessa refeição, como vemos nas imagens acima, exibe um momento posterior de uma filmagem que não deu certo. Elsa contou coisas
muito pessoais para Patri e disse: “o que pus para fora agora era algo que estava guardado dentro de mim... Não é algo para os brancos ouvirem”.
De fato, na ilha de edição, o som e a imagem captados desse momento não existem, ficaram sem gravação, e o HD que continha as imagens quei-
mou, e tiveram que utilizar as imagens de backup. Outro fato relevante sobre o filme é que essa frase de Elsa, “o que pus para fora agora era algo
27 Alimento à base de farinha de trigo e óleo, extremamente comum nas casas Mbyá. É aquecido na panela de ferro no fogo de chão, e é preciso mexer a panela a todo momento para 198
que vire uma espécie de farinha mais grossa.
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que estava guardado dentro de mim...”, foi utilizada por Patri durante o debate do Forum.doc 2015 em que discorreu sobre seu filme no sentido de
que ele também estava guardado dentro dela e que é fruto desse conhecimento, o que ilustra o apoderamento e a relação pessoal de Patri com
seu filme. Tentando investigar se Pará Reté é um filme singular porque é filmado por uma mulher indígena e tentando permear a questão do gênero
no cinema indígena, perguntei a Ana se ela achava que essa cena se deu porque Patri estava filmando, e ela respondeu:

A sequência da Elsa falando no café-da-manhã, ela dizendo que é imperfeita, é a Patri filmando. Ela não teria essa conversa com Tita, com Fernando
e provavelmente não teria nem com o Aldo. Nesse sentido, talvez seja sim pelo fato das duas serem mulheres e estarem ali compartilhando questões
muito íntimas, por serem questões delas. Com o Aldo ela se abre de outra maneira. Com ele, ela fala mais da família, da constituição da família... É
uma sequência bem bonita também. É muito mais uma questão de família e de geração. O que Pará Reté traz, nenhum filme do VNA trouxe ainda que
é essa questão de três gerações de mulheres. Assim, você descama situações de mulheres mesmo. Há um filme que fizemos durante uma oficina
de base, o Ayani por Ayani (2010)28, feito pela Ayani Hunikuin filmando a avó e a mãe, é um exercício em uma oficina de personagem e inspirou o filme
de Patri, claro que numa dimensão expandida. (CARVALHO, Ana. Trechos do diário de campo em conversa com ela, Olinda, 2016).

As relações que estão estabelecidas no filme talvez extrapolam as questões de gênero, mas as conversas, os gestos, o tema são do “universo” das
que estão trabalhando na casa, na criação das crianças, das que cuidam das questões alimentares e das trivialidades da vida. Tais relações são

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acessadas por Patri porque ela compartilha desse lugar. Olhar para esse universo da casa por meio do olhar feminino não deve ser feito no sentido
de categorizar ou de adjetivar na tentativa de criar um cinema de gênero (como nicho), mas sim através das mulheres que estão representadas em
suas atividades diárias atravessadas por sua cultura. Por que não antes? Por que são sempre as “grandes” questões? Por que a casa, na maioria
das vezes, não é tida como uma grande questão? Retomando o slogan feminista “o pessoal é político” e o que afirmam Lasmar (1999) e Overing
(1986), a desvalorização dos papéis femininos nas populações indígenas é também a desvalorização universal do domínio doméstico. O gênero,
a casa, as “questões das mulheres” sempre tiveram um apelo menor nas teorias antropológicas e na maioria dos temas abordados pelo cinema.

As mulheres indígenas que mostram os mundos visualmente por meio de uma “sensibilização audiovisual” (MARIN; MORGADO, 2016, p. 91) se
afastam dessa visão pejorativa e exótica (“do outro”) por meio da apropriação de seus discursos, sendo sua própria agência artística na produção

Dossiê
de uma cinematografia indígena feminina. Diante da problemática de invisibilização e violências contra os povos indígenas no Brasil, qual seria
então a especificidade da mulher indígena cineasta se comparada à dos homens indígenas? Com um recorte de gênero, o que Patri e outras rea-
lizadoras indígenas produzem vai além da própria linguagem cinematográfica e artística. Assim como não é “o branco” que representa a/o indíge-
na, não é o homem indígena que representa a mulher indígena, mas é ela que se faz agora protagonista de sua autoimagem e história. Esta análise
não pretende ocupar o lugar binário dos padrões ocidentais, segregando mulheres e homens indígenas. Pretende, sim, visibilizar o cinema e a
199
28 Ayani, filha de Dani e Agostinho Ika Muru, filma um dia na vida de sua avó Ayani. Disponível em: https://vimeo.com/72744722. Acesso em: 5 fev. 2017.
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especificidade das imagens feitas por mulheres indígenas. A mobilidade Guarani, a espiritualidade Guarani... Elas perpassam esse cotidiano, mas
não há inserção deste e das narrativas das mulheres como centrais. Desse modo, Pará Reté é pensado para ser um filme de geração sobre quatro
mulheres, seu ambiente doméstico e relações pessoais interseccionadas às relações da aldeia. A respeito desses assuntos íntimos interpostos
aos assuntos da coletividade da aldeia, tenho a sensação de que as situações enfrentadas dentro daquela casa ocorrem em quase todas as casas
Guarani, justamente porque o Nhemongueta (os conselhos e as conversas) são uma prática de reconhecimento como pessoa Mbyá, uma ética de
cuidado acionada principalmente pelas mulheres na continuidade da cultura e do nhadereko.

4 Cotidiano

É sobretudo nas tarefas cotidianas que o invisível se mostra. Uma das cenas de que Patri mais gosta é a de Elsa na mata de Ko’enju, indo pegar
taquara para fazer artesanato. Na mata, com Elsa cantando baixo, algumas vezes em silêncio ou meditando ao som da faca que bate para cortar a
taquara: surge o mundo invisível. A espiritualidade está presente ali, não é preciso dizer. É esse mundo invisível que movimenta Elsa e é nele que
ela se revela como personagem. Possivelmente essa é uma cena que abrirá ou fechará o filme, como me disse Patri.

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Outro momento de expressão das relações pessoais e dos afetos cotidianos é quando Patri, sentada no quintal de Elsa, pergunta-lhe: “E se você
fosse cineasta o que você mostraria?”. Elsa responde: “Não sei o que é isso, não saberia como fazer. Quero mostrar o que eu faço, não quero fazer
o que eu não faço”. Um silêncio invade a cena, e Patri sugere uma brincadeira: “Vamos brincar de se olhar? Quem sorrir primeiro é quem gosta
mais”. As duas se olham por um curto tempo, uma de frente para a outra, um olho dentro do outro, brincando de se olhar. Um sorriso pode delatar,
mas nenhuma delas “perde”. As duas riem juntas e não conseguem levar a brincadeira adiante porque as risadas de cumplicidade invadem
a seriedade. O riso de Elsa é bem conhecido, é possível ouvi-lo de uma casa a outra, uma gargalhada grossa. Patri me disse em campo que,
antigamente, a mulher considerada bonita era que ria como sua mãe, alto, meio gritado. Uma gargalhada sem censura. Isabelle Stengers,
uma das conhecidas teóricas sobre cosmopolítica, em uma entrevista para a “Revista DR”29 sobre seu livro Women who make a fuss: the unfaithful

Dossiê
daughters of Virgina Woolf30 diz que o riso sempre foi uma grande força dos movimentos feministas, as mulheres juntas independente dos devires
políticos, quando riem juntas é um riso rico: “um riso de compartilhamento, onde um monte de coisas, que podem ter sido vividas por umas ou por
outras de modos diferentes, se encontram no riso.”

29 Bonilla, Oiara; Roque, Tatiana. “Entrevista com Isabelle Stengers e Vinciane Despret”. In: Revista DR. < http://revistadr.com.br/posts/entrevista-com-isabelle-stengers-e-vinciane-despret-2/ >
Acessado em 17 de Maio de 2021. 200
30 Despret, Vinciane; Stengers, Isabelle. Women who make a fuss: the unfaithful daughters of Virgina Woolf. Minneapolis: Univocal, 2014.
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Um dia antes de irem para a Argentina, Patri filma Elsa – que está em seu quarto – arrumando as malas. As duas brincam, Patri filma deitada na
cama, pegando Elsa de baixo para cima, levanta-se, filma Elsa dobrando as roupas, arrumando os presentes para a família, e ambas conversam
intimamente sobre trivialidades. Na Argentina, diante das proporções que o filme toma é quando ele realmente se desenvolve. Elsa pergunta na
viagem: “Por que será que querem fazer esse filme sobre a minha caminhada?” Em uma das cenas, depois do café da manhã, Elsa e Santa (a avó
de Patri) tocam flauta no quintal da casa desta última. Patri, Santa, Elsa e Gabriela conversam no pátio sobre a jeguatá (“caminhada”) enquanto
Patri mexe no cabelo de Santa e Gabriela no de Elsa. Santa diz que o jeguatá nunca é uma viagem apenas, na caminhada Nhamandu sempre as
acompanha até a volta. As conversas se desenvolvem e elas dizem por que é ruim sair da aldeia sem avisar: é preciso avisar para onde se vai
para que os espíritos acompanhem e saibam sempre onde se está. Santa diz que os Mbyá devem sempre avisar para onde vão. Dentro de casa,
as crianças assistem ao filme Duas aldeias, uma caminhada, e Santa levanta-se e começa a dançar. Curiosamente, quando estávamos em Olinda,
Patri me disse que os espíritos de Leandro, Bela e Xênia31 a acompanharam até lá.

É noite de lua cheia e Patri e Elsa estão sentadas, uma de frente para a outra, no pátio da casa. Patri pergunta: “Tenho a impressão que as mulheres
são mais espiritualizadas. Por que será?”. Elsa responde: “Na maioria das vezes é assim. Sempre vejo as mulheres entrando mais na casa de reza.
Não sei porque acontece assim. Talvez porque nós mulheres convivemos mais com nossas filhas e elas nos acompanham”. O diálogo continua

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com a pergunta de Patri: “Como você quer que sua vida seja quando você for bem velhinha?” Elsa responde: “Eu queria viver na casa de reza.
Para meditar para Nhanderu”.

5 Elsa

Elsa não é uma personagem qualquer. Patri quis fazer um filme sobre sua mãe para também entender sua relação com ela. Desde criança, Patri
ficava sozinha, vivia com parentes. Morou com um tio em Tamanduá por muito tempo, até sair da escola no primário. Na infância, ficava sempre
doente, o que a impediu de andar dos 9 aos 13 anos. Elsa caminhava, de uma aldeia a outra, vendendo artesanato, vivia o jeguatá. Foi nesse pe-

Dossiê
ríodo que sofreu um acidente e perdeu um dos filhos bebê. Patri não escolheu outra personagem, para falar da mulher guarani, escolheu sua mãe.
Ela tem uma história muito particular, vive sozinha e pratica muito o jeguatá. Não para de andar, está sempre em movimento, vendendo artesanato,
visitando os parentes. Sofreu diversos tipos de violência, não só por ser indígena, mas também por ser mulher, e as problematizações da materni-
dade com sua mãe Santa se repetiram com Patri e, por sua vez, se repetem com Géssica. Hoje em dia ela é vice cacica da Aldeia Ko’enju e tomou
a frente da criação da Opy (casa de reza) dentro da aldeia.
31 Irmão de Elsa e pai de Xênia e Isabela, Leandro cria as duas filhas. Um caso de “pai solo” na aldeia Ko’enju. Atualmente mora no Rio de Janeiro com as filhas e é casado com uma 201
mulher branca, a Jussara.
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Enquanto acompanhava Patri e Ana no processo de montagem do filme, ao assistirmos as imagens brutas da conversa que Patri filma no café da
manhã, Elsa diz sobre sua mãe, “não vivi muito com minha mãe porque ela estava sempre caminhando”, algo semelhante ao que Patri me disse
sobre sua própria mãe. Na filmagem, Elsa diz ainda que viveu algum tempo com o pessoal de Seu Duarte Ortega, referindo-se ao que então seria
a aldeia de Tamanduá, contou da sua infância de muitas caminhadas e da ausência da mãe com ela e com suas/seus irmãs/irmãos. Patri pergunta
mais sobre a infância dela e Elsa conta sua história a partir dos 9 anos. Diz que Santa foi casada duas vezes, uma com um mulherengo e outra com
Tito, pai de Leandro, que era muito violento. Conta também que ele espancou Santa quando ela estava grávida de Leandro e que ela fugiu várias
vezes com os filhos. Além da violência contra Santa, o padrasto abusava de Elsa. Mais ou menos aos 13 anos, ela engravidou dele, mas perdeu o
bebê depois que algumas crianças a empurraram em uma brincadeira. Santa denunciou-o e depois de um tempo ele foi preso. Um dia antes de
assistirmos a essa imagem, vimos um outro material bruto em que Patri falava para Elsa de um sonho estranho que teve com a avó: “tinha um
grande buraco, as pessoas iam caindo em Kunhã Piru... Uma mulher empurrou a vovó sem querer e ela caiu”. Quando assisti as imagens do relato
de Elsa, associei-as de imediato com esse sonho que Patri havia tido.

Na busca de Patri pela trajetória de sua mãe, Elsa narra seu trabalho na colheita da erva-mate. Depois de contar sobre esse trabalho, Patri per-
gunta-lhe: “Onde nasci?”. Elsa responde, “Ao lado da casa de Mariano numa casinha de Taquara, em Tamanduá”, e revela que quando Patri nasceu

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ficou muito doente. Patri então a interpela, brincando: “Por isso você não gosta de mim?”. Elsa disse que não teve leite para amamentar Patri e
que ela tomou leite de vaca na mamadeira. Patri brincou dizendo que Elsa estava brava com a pergunta que ela havia feito. Enquanto assistíamos
as filmagens, Ana parou a exibição e perguntou a Patri se ela realmente achava isso, que por conta dessas circunstâncias Elsa não gostava dela.
Patri riu.

Acredito que Elsa seja muito lúcida sobre seu papel ativo dentro do filme e cria situações, fabula o real para a mise-en-scène. Ela de fato atua para
a câmera e coloca sua subjetividade à disposição das filmagens. De acordo com José Serafim e Francisco Rêgo (2020) a produção cinematográ-
fica indígena nos possibilita compreender uma complexa atuação da mise-en-scène, pois opera tanto como um recurso estético relacionado a
forma do filme quanto como uma forma de apropriação dos meios técnicos, ou seja, possibilita uma autonomia de criação e em frente à câmera,

Dossiê
de invenção profilmica pois aciona os sentidos cosmológicos da encenação que referem-se ao extracampo do quadro. À vista disso, em análise da
mise-en-scène no documentário As Bicicletas de Nhanderu32, os autores discorrem sobre os filmes que privilegiam seus processos de realização
também como um destes recursos de se colocar em cena nas relações com aspectos culturais, sociais e antropológicos:

32 O filme As Bicicletas de Nhaderu é um dos mais expressivos filmes do Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema, dirigido por Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Ariel Ortega em colaboração com Vincent 202
Carelli e Ernesto Carvalho. 2011. (45 min), som, cor.
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(...) Capaz de conjugar questões importantes como o acaso, a encenação dos sujeitos, a câmera como um dispositivo de mediação e do campo como
um espaço ativo de relacionamento entre sujeitos, cultura e sociedade. A mise en scène, aqui, ganha contornos amplos nos abrindo para um con-
junto de dados que vão além dos aspectos filmográficos e cenográficos, envolvendo, por assim dizer, aos significados presentes na cena por meio
dos dispositivos, interpretações, gestualísticas, falas e todo o repertório pelo quais os sujeitos sociais desenvolvem diante da câmara e por meio da
câmera. (SERAFIM & RÊGO, 2020, p. 178)

A autonomia criativa de Elsa era tanta que em uma das filmagens, na travessia de barco entre o Brasil e a Argentina, ela finge para Géssica, diante
das câmeras, que aquela era a primeira vez que ela atravessava. Revisitando esse trecho do filme em conversa com Patri para a publicação desse
artigo, em 2021, ela relembra de como Elsa gostava de atuar e como estava a todo momento querendo atuar para as pessoas e que atualmente
Patri precisa pedir para ela ser mais “espontaneamente ela” e menos atriz, em algumas imagens quando estão filmando juntas. Na aldeia Ko’enju,
em 2017, ao visitar Elsa e fotografá-la fazendo artesanato, ela me disse: “não entendo porque querem fazer um filme sobre mim” - não só tinha
consciência do filme, mas também nutria um sentimento de que sua vida não “daria um filme”.

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Imagem 11 - Cena de Elsa e Géssica na travessia da fronteira entre Brasil e Argentina. Elsa “inventa” para Géssica que nunca havia atravessado a
fronteira de barco (Fonte: frames do trecho do “corte 1”, por Patrícia).
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A relação entre Patri e Géssica é pouco filmada, como Géssica estava próxima de menstruar e da fase de reclusão, ficava mais próxima da avó. Se-
gundo Patri, são as mulheres mais velhas que repassam os conhecimentos cosmológicos sobre o Mbyá Reko da mulher indígena Guarani. Nessa
fase, as meninas recebem conselhos de todos os tipos, e, no caso de Géssica, o conflito de geração com a avó ficou visível no filme. Entre Patri e
Géssica esse conflito não foi tão acentuado durante as filmagens. Em uma cena em que as duas estão em casa, cada uma mexendo em aparelhos
eletrônicos, Patri no computador e Géssica no celular, há o seguinte diálogo e nada acontece:

— Géssica, você colocou sua roupa pra lavar?

— Não coloquei não.

— Na máquina?

— Não.

— Por quê?

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— Porque tem roupa na máquina.

— O que você está vendo no celular?

— Simba.

— O quê?

— O Rei Leão.

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Imagem 12 - Cena do diálogo entre Patri e Géssica. (Fonte: frame do “corte 2” por Fernando e Tita).

Depois desse diálogo, as duas continuam a interagir com seus aparelhos eletrônicos. Hoje em dia, Patri parece ter mais “problemas” com a fase

Dossiê
de Géssica após a menstruação, fase que em Mbyá é chamada de inhengue pa ramo va’e. Patri relatou que esse momento atual está bem compli-
cado porque a filha está muito malcriada, mais até do que antes de menstruar: “ela acha que é ‘senhora de si’ e está muito ‘rebelde’”. Disse a ela
que deve ser apenas uma fase mesmo e a recordei de uma parte das vídeo-cartas que fizemos para nosso filme TEKO HAXY – ser imperfeita (2018)
em que ela me diz: “Eu menstruei com 13 anos. Eu achava que era quase adulta quando eu estava nessa passagem. Eu sempre fugia com duas
amigas para assistir TV”. Rimos muito.
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A relação entre neta e avó, por sua vez, é um dos grandes conflitos do filme. Elsa ensina e dá conselhos para Géssica a todo momento. Conforme
explicita Jesus (2015, p. 116):

Por estar o nhe’é conectado às suas origens divinas, a linguagem éo elemento que aproxima as pessoas de seus pais e mães verdadeiros (divindades)
e lhes traz sabedoria. Por esta razão os aconselhamentos (nhemongueta) configuram-se na base de uma educação mbya que garanta o fortalecimen-
to deste vínculo ao longo da vida do indivíduo.

6 Ojepotá

Géssica é confrontada com conselhos e ensinamentos diversas vezes ao dia, como no café da manhã, quando Elsa lhe diz: “você é muito lenta. Vai
se transformar33 em um caracol se continuar assim”. Outra cena que desvela a relação das duas é aquela em que Elsa está pilando paçoca e pede
para Géssica ajudá-la no pilão; ela não vai e Elsa fica muito contrariada. Minutos antes, todavia, as duas estavam conversando, se divertindo em
volta do fogo de chão e fumando pytenguá (“cachimbo”). Ao mesmo tempo, o conflito geracional é nítido: Géssica gosta de andar de bicicleta, de

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mexer no celular, e algumas vezes tem preguiça de ajudar em casa nas tarefas domésticas, por isso todos os ensinamentos necessários da avó.

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33 A “transformação” nesse caso, fazer Ojepotá.
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Imagens 13 e 14 - Imagens em que Elsa chama a atenção de Géssica. (Fonte: frames do “corte 2” por Fernando e Tita).

Em outra cena, Elsa e Géssica estão na casa de Patri; a câmera está no chão, Tita e Fernando filmam. Elsa está sentada em uma cadeira de fio e
Géssica no chão. No plano aparecem as duas, Elsa fala olhando para Géssica, mas ela olha apenas para seu lado direito, sempre com o cabelo
no rosto. Nunca olha para a câmera, parece ter muita vergonha. No primeiro momento, Elsa ensina Géssica a fazer as coisas direito para que sua
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mãe não brigue com ela. Elsa diz que, como a menina é desobediente, irá colocá-la em reclusão por um mês. Na época das filmagens, Patri e Elsa
esperavam o momento da menstruação de Géssica para inseri-lo no filme. Como elas me disseram, o tempo da reclusão refere-se ao tanto de
“trabalho” que a menina dá à família. Patri já me perguntou se eu sabia quanto tempo ela ficou reclusa, como que para sinalizar que ela era muito
arteira. Disse não ter ficado muito tempo, apenas quinze dias.

Até então, o plano está nas duas e a câmera muda para o rosto de Elsa, que está brigando com Géssica por causa da bicicleta. É importante assi-
nalar34 que Patri comprou a bicicleta para Géssica quando Elsa estava na Argentina; ambas compraram escondido porque sabiam que a avó iria
brigar, ou seja, mãe e filha estavam articuladas na cumplicidade, mantendo um segredo entre elas. Elsa continua advertindo Géssica dizendo que
os mais velhos não gostam que as meninas andem de bicicleta porque a menina menstrua mais rápido: “não é para brincar com a bicicleta”, disse,
apenas para usá-la quando ela ou a mãe a pedem para buscar alguma coisa mais rápido. Para Elsa, a bicicleta funciona mais como um instrumen-
to e não como diversão, isto é, deve ter um uso funcional e esporádico.

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Imagens 15, 16 e 17 - Elsa briga com Géssica porque ela anda muito de bicicleta, sem necessidade, e Géssica se diverte com a bicicleta. No corte para o
SAV/MinC, esse conflito geracional e a questão da bicicleta dentro do filme de Patri foram bem articulados. Essa cena de Géssica, por exemplo, tem a tri-

Dossiê
lha sonora de uma boy band argentina que a menina adora. Ventos no cabelo e rebeldia juvenil. (Fonte: Frames do “corte 1” por Fernando, Tita e Patrícia).

Em uma das falas mais bonitas dessa cena, Elsa diz a Géssica, refletindo para mim todo o cuidado, sabedoria e amor necessários para ser uma
mulher Mbyá: “obedecendo a gente agora, você vai saber o que fazer quando estiver sozinha”. Nessa perspectiva, Jesus (2015, p. 116) salienta: 208
34 Essa informação foi dita por Patri no debate de exibição do filme no Forum.doc 2015.
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Embora existam ênfases em alguns aconselhamentos em períodos que demarcam mudanças no lugar social de meninos e meninas, moças e rapa-
zes, tal como os ritos de passagem, há mães e irmãs mais velhas que estão cotidianamente falando com as crianças sobre postura, alimentação e
afazeres que precisam ser aperfeiçoados. São processos de transmissão de saberes que se dão ao longo do ciclo de vida e que tem início no período
da infância.

Patri me disse várias vezes que os conselhos dados desde a infância são para meninos e meninas, que as meninas não são educadas para cuidar
da casa ou dos/das filhos/as sozinhas, que homens e mulheres são ensinados de igual maneira a cumprir suas responsabilidades sociais. Esses
conselhos proferidos pelos/pelas mais velhos/velhas continuam até a vida adulta, no casamento e na velhice.

Depois de falar da desobediência e da bicicleta, Elsa conta a história da criança que fez ojepotá em onça. Patri chega e senta-se em outra cadeira;
as três aparecem em cena de forma triangular, Géssica e Patri na base, e Elsa no ápice.

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Imagens 18 e 19 - Elsa dá conselhos para Géssica. (Fonte: Frames do “corte 2” por Fernando e Tita).

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Elsa, então, narra a história da criança mimada que se transformou em onça:

Era uma vez um menino que era muito chorão e muito mimado. Chorava o tempo todo. Chorava, chorava, chorava. Por mais que sua mãe
dissesse para ele não chorar. E ele continuava chorando. E então uma noite ele começou a chorar e seu pai disse para a mãe: “agora deixe ele
chorar sozinho”. Assim, a mãe fingiu que estava dormindo. A criança começou a bater e a arranhar a mãe para ver se ela acordava. E mesmo
assim a mãe continuava fingindo. Ele parou de chorar e continuou tentando acordar a mãe. Mesmo assim a mãe continuou fingindo. Então
ele começou a mamar no peito da mãe. E mesmo assim a mãe continuava a fingir que dormia. Daí, o menino se levantou entre os pais. Se
levantou e saiu caminhando, pois ele já era grande, mas muito mimado. A Géssica é assim. Ele foi até a mesa onde havia carne de queixada. A
carne estava em cima da mesa. Ele foi até lá e fez um barulho. A mãe se levantou e foi espiar para ver o que era. Ele tinha virado uma grande
jaguaretê em cima da mesa. Aquele menino mimado havia virado uma onça. A mãe voltou para dentro e contou para o marido. Ele disse: “se
levante, seu filho virou um monstro!” Aquele menino que era chorão. Ele era chorão e mimado porque ele era um animal. O pai foi olhar e se
assustou. O pai disse para deixá-lo quieto, que esperassem o dia seguinte para irem embora. E então foram deitar, fingindo que não viram
nada. De novo como um menino mimado procurando o peito da mãe. A mãe continou fingindo que estava dormindo e que não sabia de nada.
O menino começou a mamar. Ele fazia um som para ter certeza que a mãe dormia. E continou a mamar. Amanheceu. O marido disse a mulher:
“vamos fugir!”. E foram embora deixando para trás a criança. Aquele menino terrível a criança ainda dormia quando os pais foram embora.
Então foram embora. Havia um rio enorme. Eles atrevessaram o rio. Quando terminaram de atravessar o rio já era quase noite. E resolveram

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dormir na beira do rio mesmo. E quando se deitaram ouviram um choro do outro lado do rio: “Pai, me ajuda a atravessar o rio”. O pai sentiu
pena mesmo depois que viu o filho se transformando em onça. Ele sabia que o filho havia virado uma onça. Ele sabia que ele havia virado
uma onça. Ele disse: “tenho muita pena de meu filho, por isso vou ajudá-lo a atravessar o rio”. A mãe disse: “não, ele vai nos devorar por tê-lo
deixado para trás”. “Acho que ele não vai nos comer” – disse o pai – “vou até lá ajudá-lo”. Então, quando o pai foi buscá-lo, a mãe subiu numa
árvore amedrontada. Depois... O pai o colocou nas costas e cruzou o rio. A mãe já estava no alto da árvore. O pai e a criança chegaram até
onde haviam feito uma fogueira. A mãe tinha colocado um pedaço de lenha para fingir que ainda estava lá. Depois de cruzarem o rio, o me-
nino seguiu caminhando. E quando chegou lá, se transformou de novo em onça. E foi direto onde a mãe estava, mas era só lenha. Ainda bem
que a mãe não estava lá. Ele então atacou o pai. E o matou. E o devorou. Estava com muita raiva porque eles o deixaram para trás. Quando
amanheceu, a mãe desceu da árvore e a criança não estava mais lá. Havia saído à sua procura. Por isso ela escapou de ser devorada pelo
filho. Ele só conseguiu devorar o pai. Por isso, se a gente for muito mimada a gente vira uma onça. De agora em diante não seja tão mimada
e fale direito com sua mãe se quiser alguma coisa. Não precisa falar chorando, tem que falar direito... Você faz isso porque é muito mimada.

Dossiê
Prates (2009) afirma que o risco de “ojepotar-se” (transformar-se) é maior para as mulheres em comparação aos homens, pois elas estariam mais
suscetíveis a essas transformações por causa da menstruação – o sangue é algo que as deixa sensíveis aos outros seres do cosmos35. Isso ocorre

35 Para Sandra Benites (2018), o sangue pode subir a cabeça: “se não tiver cuidado com a cabeça e com as emoções, pode acontecer uma transformação, pode haver um problema de
desequilíbrio emocional (na mulher)” (2018, p. 74) e a falta de cuidado às preparações e às restrições com o corpo da mulher quando estão perto de menstruar, tornam os corpos mais
susceptíveis ao ojepota: “as consequências de não respeitar as regras é dor de cabeça, tontura e até mesmo perder a cabeça, um risco maior de ojepota, se encantar por qualquer coisa” 210
(2018, p.69).
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justamente porque talvez nenhum outro corpo se transforme tanto como o corpo feminino, em virtude da menstruação e da gravidez. Compreendo
o ojepotá36, nesse caso de Géssica, como uma preocupação legítima de Elsa sobre sua possível transformação caso não seguisse seus conselhos,
visto que estava próxima de sua primeira menstruação e que para isso, era importante, como me disse Patri37: “preparar o corpo para a vida” e que
a preparação corporal é aliada à uma preparação comportamental diante do modo de ser mulher Mbyá-Guarani. Soma-se a isso, fazendo uma
analogia às histórias contadas para as crianças não indígenas, as histórias de ojepotá (que são reais para os Guarani e muito comuns) à uma es-
pécie de “fábula” – sobretudo quando contada para as crianças – em que as personagens são animais que possuem características humanas e há
uma “moral da história”. No tocante a Géssica, para mim, essa moral seria a seguinte: seguindo os conselhos de sua mãe e sua avó, ela vai saber
o que fazer quando estiver sozinha e sabendo que com esses ensinamentos ela não esteve sozinha no mundo, é uma prática de cuidado. Mas, se
não as obedecer, ela pode se transformar.

Voltando à cena de Elsa e Géssica, a menina continua sem dizer nada, com a cabeça baixa. Nesse ínterim, enquanto narra o mito, Elsa interrompe
a história uma vez e diz: “a Géssica está com o cabelo sobre o rosto”. Patri reforça: “eu fico com medo dela”. Elsa mexe no cabelo de Géssica, em
um gesto de carinho, para tirá-lo do rosto. Continua mexendo durante um tempo e faz uma trança. Pude perceber a relação extremamente afetiva
entre mulheres e seus cabelos. Algumas vezes em campo vi Patri mexer no cabelo de Jerá, Géssica, Luana, Isabela e no meu, seja para fazer uma

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trança, pegar piolhos ou apenas fazer carinho. É um cuidar para que, segundo Elsa, “Nhanderu as veja bonita”, mas é também uma forma de
produzir as estruturas de afeto e cumplicidade, ocupando-se da outra e de si para o melhor cuidar comum. Na mesma lógica, acredito que o filme
de Patri estabelece uma relação com ela mesma que é aplicada ao mundo, tanto o mundo Mbyá quanto o mundo juruá kuery. Uma relação de
descoberta de si como mulher Mbyá, mãe e filha, como cineasta, filmando por perto (TRINH, 2012) e com mulheres (MARTINS, 2015)38. As palavras
iniciais de Patri dão o sentido disso: “aquilo que nos une e nos distancia, como mulheres e como povo”.

Dossiê
36 A transformação também possui relação com a libido (PISSOLATO, 2006), visto que, na cosmologia Mbyá, pode se assemelhar ao desejo pelo sangue da carne crua – remete-nos,
talvez, à relação presa/predador implicada nas relações sexuais.
37 Conversa que tivemos por telefone e por mensagens de whatsapp (em Maio de 2021), quando eu disse da publicação desse artigo e que gostaria de discutir alguns “pontos problemáticos”
que foram levantados no parecer da Revista. Revisitamos as conversas e as experiências que tivemos 4 anos atrás, com Géssica agora já casada, Patri grávida e Elsa como vice-cacica da Tekoa
Ko’enju.
38 Como afirma Martins (2015) sobre falar por perto e filmar com um olhar, esse processo evita a reprodução das categorias dicotômicas Eu/Elas, Nós/Elas, bem como a conservação 211
de uma posição de dominação para quem olha. Assim, “olhar de perto” aproxima-se de uma política da experiência que privilegia o “relacionar-se a”.
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7. Um filme que acontece junto com a vida

À medida que o filme constrói uma escrita de si para Patri, Elsa e Géssica e das relações com essas mulheres, somos convidadas/os a olhar para
dentro da nossa própria casa – nossa casa corpo (principalmente se a experiência for de uma espectadora) e nossa casa juruá kuery, que muitas
vezes não abriga nem cuida e é cercada de muros. O cercamento das terras e as delimitações de fronteiras pelo colonialismo, como nos lembra
Silvia Federici (2017, p.200), representou a perda de poder social das mulheres e expressou-se também por meio de uma nova diferenciação sexual
do espaço em que os corpos das mulheres também passaram a ser propriedade de alguém, um homem branco, no caso, assim como as terras.
Nessa perspectiva, as terras comunais passaram a ter donos e mulheres não brancas, sobretudo indígenas no contexto brasileiro, foram definidas
e classificadas por um sistema ideológico de dominação (Gonzalez, 2020, p.41) e representação.

Nesse movimento dentro/fora – do privado para o público – e igual/diferente esses movimentos de Patri podem ser compreendidos entre mundo
Mbyá-Guarani e mundo juruá kuery , Trinh T. Minh-há (2012, p. 199) esclarece, por meio dessas fissuras, que o pensamento binário não é válido
para esse processo da identidade e da diferença entre mulheres pós-coloniais. Patri e eu também pudemos transitar nessa complexidade e des-
frutar da contradição inerente ao fluxo, onde nossa relação e aliança também se constrói39. A respeito dessa mobilidade entre dentro/fora e igual/

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diferente, íntimo/coletivo, não operam como categorias monolíticas e excludentes, mas como ramificações de um mesmo ser, quase uma raiz:

Diferenças não somente existem entre uma estrangeira e uma nativa – duas entidades. Elas também operam no interior da própria estrangeira ou da
nativa ela mesma - uma entidade singular. Ela sabe que não pode falar delas sem falar de si mesma, da História sem falar de sua história, também
sabe que não pode fazer um gesto sem ativar o movimento incessante da vida (MINH-HA, 2012).

Desse modo, Saéz (2006) afirma que no Brasil a autobiografia do/a sujeita histórica indígena está ausente da etnologia e completo: no cinema é
igualmente uma lacuna. Em Ko’enju, Patri e eu lemos o texto acima de Trinh T. Minh-há (2012) e conversamos muito sobre nossa relação. Concor-
damos que somos iguais e diferentes. Iguais por sermos mulheres e compartilharmos semelhanças não só biológicas mas também sociais por

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justamente sermos mulheres e muito diferentes porque o “ser” mulher, nesse caso, está imbricado a etnias, classes sociais, culturas diferentes e
a vivências e violências que eu, como mulher branca não enfrento.

Um dos meus primeiros questionamentos dentro da minha pesquisa foi: com qual finalidade e de que modo as mulheres indígenas utilizam a
imagem? Essa é uma pergunta para tentar ser respondida por toda uma vida, mas, por meio dela, levantei algumas hipóteses e outros questiona-
39 Nesse sentido das alianças, relembro Sandra Benites que escreve: “eu também penso que todas as mulheres são Nhandesy’Ete, não importa a cor ou se são indígenas, a única coisa que muda 212
entre nós mulheres é o contexto, a posição que ocupamos, ou a classe social onde nos encontramos.” (2018, p. 69).
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mentos. Nesse sentido, as mulheres indígenas que produzem imagens desenvolvem capacidades nessa relação simbólica com o mundo, para
uma autoestima e uma relação social e cultural dentro e fora da aldeia. Elas produzem conhecimento e compartilham com outras pessoas da
aldeia não só o processo de realização dessas imagens, mas também o que elas querem mostrar, exibir e difundir, para a valorização da própria
cultura. Assim, fazem parte de várias outras relações que são criadas a partir desse processo de expressão artística subjetiva e sensível. Todo esse
processo também faz parte desse filme-processo, toda essa articulação interna, as estruturas que o filme movimenta num tempo espiralar que
não é encerrado em si mesmo mas que permite uma fluidez da forma fílmica, do pensamento visual e dos movimentos da vida ordinária que estão
caminhando junto com todo esses atos em aberto. É um processo dinâmico de realização de imagens e reconhecimentos. Assim, a linguagem
artística cinematográfica possibilita a narrativa híbrida de histórias autobiográficas potenciais e apropriadas de seus discursos em que filmar a vó,
a mãe, a filha é algo de fácil acesso que está ali e desvela as trajetórias de muitas mulheres comuns, anônimas, que agem micropoliticamente no
dia-a-dia, dentro das suas casas e suas aldeias, mas que estruturam, a meu ver, a macropolítica a fim de outras éticas de vida e possibilidades de
existências.

Nesse processo de ver-se refletida, a câmera é participante, um espelho posto para evidenciar as coisas que estavam ali, mas que não são mos-
tradas, não são “vistas” pois durante séculos foram psicologizadas e ressignificadas com agressão como “coisas de mulher” pelo patriarcado.

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Dentro desse cotidiano, descortina-se com outros olhos o espetáculo, agora “visível”, da manutenção da cultura. Essas estratégias também são
uma subversão das “ordens impostas” pelo sistema ideológico racional colonial, neste caso, ao tecnicismo ocidental. O modo como Patri filma,
passa por um processo de desconstrução das etapas e o método proposto pelas oficinas audiovisuais também passa por uma criação livre: não
há argumento inicial, tampouco um roteiro, por exemplo. É uma maneira inventiva do fazer cinema, onde se aprende fazendo, filmando.

O filme-processo Pará Reté ainda está em desenvolvimento, o desejo de finalização é constante por parte de Ana, Patrícia e meu também, que me
tornei uma entusiasta para que isso aconteça brevemente, mas os editais e os contextos políticos no Brasil aliados ao tempo da vida, têm dificul-
tado a conclusão do filme. Patri segue filmando as mulheres de sua família.

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REFERÊNCIAS

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Generations on stage, filming with Mbyá-Guarani women: the process of making Pará Reté

Abstract: In this article, I do a film analysis of two preliminary versions of an unfinished film by the indigenous filmmaker Guarani-Mbyá
Patrícia Ferreira Pará Yxapy. The film, titled Pará Reté, is about her mother, daughter and grandmother. Even though unfinished, these
work in progress cuts have already been shown in some exhibitions and festivals. Evoking Claudia Mesquita’s concept of “filme-proces-
so” (“Process-film”), I trace how everyday life and intimacy are inseparable from the process of making this film, as it also points to one
of the particularities of the cinema made by indigenous women. I intend to demonstrate the different circumstances, characteristics of
Patrícia’s work and how her film happens along with life, in order to meditate on her filmmaking process based on the her relationships
with the characters and her dialogue with the Vídeo nas Aldeias crew.

Keywords: indigenous cinema, indigenous women cinema, indigenous women, women filmmakers.

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Recebido em 6 de setembro de 2020

Aprovado em 16 de maio de 2021

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A Eternidade de Wiñaypacha como
imagem do pensamento andino
Resumo >
Recentemente estreou Wiñaypacha (título em espanhol Eterni-
Indira Nahomi Viana
dad), o primeiro filme peruano longa-metragem integralmente
falado em aimará, alcançando imenso sucesso não só nos ci-
Caballero
nemas do Peru como internacionalmente. O filme dirigido por Doutora em Antropologia Social
Óscar Catacora, jovem cineasta peruano de origem aimará, é
uma obra-prima tanto por suas qualidades estéticas quanto Universidade Federal do Rio de
narrativas. O objetivo deste artigo é mostrar como fotografia Janeiro
e roteiro, também assinados pelo diretor, têm um forte cará-
ter poético e potente enquanto recursos reveladores do pen-
samento andino, sendo a ideia de Eternidade central nesse
sentido. Por fim, trata-se de destacar o protagonismo que os Palavras-chave >
povos andinos alcançam com o sucesso de Wiñaypacha em Imagem; Cinema Peruano; Paisagem; Andes Peruanos.
lugares onde há muito tempo são/estão presentes, porém, vis-
tos predominantemente como coadjuvantes.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 217-236 | Jan - Jul | 2021

> A Eternidade de Wiñaypacha como imagem do pensa-


mento andino
Indira Nahomi Viana Caballero
> indiranahomi@yahoo.com.br
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Pero no siempre tuvieron fortuna: es dura la vida en la cordillera. Habría, tal vez, que contar historias dolorosas.

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(Ciro Alegría, Los perros hambrientos)

(...) mi gente habla a través de mis fotografías.


(Martin Chambi)

Introdução

Recentemente estreou Wiñaypacha (título traduzido em espanhol como Eternidad), o primeiro filme peruano longa-metragem integralmente fala-
do em aimará, alcançando imenso sucesso não só nos cinemas do Peru como internacionalmente. Participou do Festival Présence Autochtone de

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Montreal (Canadá) onde foi premiado; do Festival Internacional de Cinema de Guadalajara (México), onde recebeu os prêmios de Melhor Fotogra-
fia e Melhor Obra-Prima; e em festivais no Uruguai, Argentina, Equador, entre outros. Reconhecimento merecido, pois o filme dirigido por Óscar
Catacora, jovem cineasta peruano de origem aimará, é uma obra-prima tanto por suas qualidades estéticas quanto narrativas. Aliás, é necessário
dizer que o diretor assina também o roteiro e a fotografia do filme.
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Rodado nas alturas do departamento de Puno (sul do Peru) a mais de 5.000 metros de altitude (BLASCO, 2018), no sopé do Allincapac, uma im-
portante montanha nevada, Wiñaypacha exibe belíssimas imagens das alturas mais extremas dos Andes peruanos, capturando a força da impo-
nente paisagem ao redor: a grandiosidade das montanhas, o brilho intenso da luz altoandina, a densidade da névoa, o uivo profundo e contínuo
do vento. Características estéticas do filme que, somadas às narrativas, emocionam o espectador, talvez mais ainda aquele que já pisou em terras
andinas, por serem qualidades que reforçam um certo teor realista capaz de nos fazer esquecer, às vezes, tratar-se de uma ficção e não de um
documentário. Por outro lado, as imagens artísticas revelam, em parte, a poesia do filme fazendo-nos lembrar inevitavelmente de algumas das es-
petaculares fotografias do grande artista indígena peruano, o “poeta da luz” Martin Chambi (ELSSACA, 2016), pioneiro em dar fama internacional
a lugares remotos da paisagem andina e aos diversos personagens que a compõem a ponto de eternizá-los. O incomparável mestre da fotografia,
também natural da região de Puno, viveu entre 1891 e 1973 no Peru, a maior parte de sua vida na cidade de Cusco, onde tornou-se um prestigioso
fotógrafo. Desde então, não demorou muito para tornar-se uma célebre referência para inúmeros artistas visuais no mundo inteiro até os dias de
hoje, sendo fonte de grande inspiração também para Óscar Catacora1, que iniciou sua carreira nas artes visuais pela fotografia2. Tão potente quan-
to as imagens são as escolhas de Óscar para narrar a história de Wiñaypacha de uma forma brutalmente poética – a começar pelos nomes dos
personagens –, e mais ainda na medida em que estas se convertem em expressões do pensamento andino, da “cosmovisión” andina (BLASCO,
2018), sendo a noção de Eternidade central nesse sentido, como veremos adiante.

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Classificado como drama, o filme conta a história de um casal, Willka e Phaxsi (em aimará Sol e Lua), com mais de 80 anos, que vive em algum
lugar recôndito nas altitudes extremas da puna (o altiplano) e espera incansavelmente o retorno de seu filho Antuko (Estrela que não brilha mais),
que fora embora para a cidade. As especulações constantes do casal sobre o que teria acontecido com o filho para que ele nunca mais voltasse
proporcionam a emergência de um forte laço entre esse lugar tão isolado onde vivem e a cidade, mesmo que esta jamais apareça ao longo do
filme.

A migração andina para as grandes cidades da costa peruana é um fenômeno expressivo desde a década de 1940 até os dias de hoje (ver MON-
TOYA ROJAS, 2010). Viver na cidade, de forma mais próxima a um modo de vida urbano, é uma possibilidade cada vez mais presente no imaginário

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de jovens que vivem em localidades onde um modo de vida rural predomina e que almejam outras oportunidades de trabalho que não as agro-
pastoris e/ou maior qualificação escolar. A partida dos jovens, aquela que não se pretende como deslocamento pendular, causa outro fenômeno
recorrente: pessoas de idade avançada vivendo sozinhas e encarregando-se de uma pesada rotina que antes era a de uma família inteira, a qual
envolve tarefas agrícolas, pastoris e domésticas. Assim, o trabalho camponês passa a ser cada vez menos almejado pelas gerações mais jovens

1 Oscar Catacora dedica a Martin Chambi um dos prêmios que recebe no Festival de Guadalajara: https://www.youtube.com/watch?v=NVTgkjCOTeE. Acesso em 20 de julho de 2020. 219
2 Sobre a trajetória do diretor ver FOTOGRAMA GOURMET (2018) e 242 PELÍCULAS DESPUÉS (2018).
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que miram na cidade oportunidades de mudarem seu status socioeconômico, ainda que a experiência urbana lhes seja um tanto impactante e
agressiva. Na maior parte das vezes as expectativas dos filhos e netos de camponeses não se cumprem, mas a hostilidade citadina e a discrimi-
nação que a acompanham sempre se realizam. Esse é exatamente o cenário, cada vez mais atual, que encontramos no povoado andino de popu-
lação quechua-hablante onde realizei pesquisa etnográfica entre 2009 e 2016, no departamento de Ayacucho, nos Andes peruanos (CABALLERO,
2013, 2020), e é também o pano de fundo em que se desenrola a história de Wiñaypacha. O diretor lança um olhar crítico sobre a migração dos
jovens enquanto “efeito da globalização”, e sobre como esse fenômeno pode proporcionar a desconexão de suas raízes ancestrais na medida em
que o filho que vai embora talvez nunca possa transmitir os conhecimentos de sua cultura para as futuras gerações (BLASCO, 2018).

No entanto, é preciso acrescentar que viver na puna, lugar de altitudes extremas como essa onde Willka e Phaxsi vivem, é uma experiência que
se diferencia muito da vida em pequenos povoados. Isso se deve, em grande parte, pelo fato de que, na ecologia andina, a puna é um lugar prati-
camente não habitado por humanos, por isso deserto, solitário, silencioso, isolado, de difícil acesso, onde sente-se mais facilmente a inclemência
do clima, onde vive-se de forma simples: em casas de pedra com teto de palha, sem energia elétrica e acesso a comércios ou produtos industriali-
zados. Cria-se animais, come-se o que é possível cultivar, faz-se os próprios agasalhos de lã de ovelha e de camelídeos, exatamente como vemos
no filme. Através da rotina do casal, o espectador assiste a cenas de atividades corriqueiras (cozinhar, moer cereais, limpar cereais ao vento, tecer

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em tear, fiar etc.) que beiram a uma boa descrição etnográfica. Eis aqui um ponto importante: o filme não é apenas sobre um casal de idosos de
origem aimará que vive na puna, senão que esse modo de vida específico faz parte da trajetória dos próprios atores e do diretor. Começam a se
entrecruzar aqui a história do filme e de seus personagens e a vida do diretor e dos atores. Isso porque Óscar Catacora decide contar uma história
que lhe é muito familiar, e essa parece ser uma de suas grandes motivações ao realizar tal empreitada ficcional, compondo-a a partir de elemen-
tos autobiográficos decorrentes da época em que viveu na zona alta de Puno com seus avós, adicionando a isso um olhar crítico sobre a situação
das pessoas mais velhas que vivem nas zonas rurais do país, definindo o “abandono” desses como o tema central de seu filme (FOTOGRAMA
GOURMET, 2018; BLASCO, 2018).

A familiaridade de Rosa Nina (Phaxsi) e Vicente Catacora (Willka) com aquilo que é retratado no filme se deve ao fato de que ambos não são atores

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profissionais, mas aymara-hablantes da região de Puno que desconheciam totalmente o que é a cinematografia até o processo de realização do fil-
me, o que garantiu muito mais realismo à história seguindo a expectativa do diretor ao desistir de trabalhar com atores profissionais. Em entrevista
à Fotograma Gourmet, Óscar conta o quão difícil foi encontrar intérpretes para os personagens sobretudo pela questão da idade – e das hierar-
quias decorrentes disso –, anciãos que concordassem em levar a cabo o projeto e que, por conta de aspectos culturais diversos, não se sentissem
desconfortáveis ou até ofendidos diante da necessidade de serem conduzidos pelo diretor, um homem jovem. Assim, foi através de um amigo que
chegaram até Rosa Nina, quem se engajou na proposta imediatamente. Já no caso do intérprete para o personagem masculino, depois de uma 220
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longa busca frustrada (de quase um ano), Óscar decidiu que o mais apropriado seria mesmo trabalhar com seu avô. Então, desde a entrada de
Rosa e Vicente no projeto instalou-se um complexo processo de negociação que incluiu não propriamente um tradutor, uma vez que Óscar e toda
equipe técnica são também aymara-hablantes, mas um “intermediador” que tinha como tarefa transmitir as necessidades dos realizadores para
os atores, cuja finalidade era “no herir su sensibilidad y no romper con esta situación cultural con la que ellos conviven diariamente” (FOTOGRAMA
GOURMET, 2018). Mesmo havendo certa continuidade entre a vida dos personagens, dos atores e do diretor, houve certa rigidez em se transmitir o
que estava no roteiro em vez de optar-se pela improvisação. Tudo que os atores falam em cena faz parte do roteiro e para alcançar tal objetivo, de
que os atores memorizassem suas falas, houve um longo e árduo processo de ensaio, inclusive durante as filmagens, para que eles aprendessem
o texto como se fosse um “poema”, o que demandou muitas horas de trabalho, muito mais do que a filmagem em si (FOTOGRAMA GOURMET,
2018). Tal dificuldade, compreendida pela equipe realizadora como própria da natureza, digamos, dessa empreitada – a realização do filme como
algo diretamente relacionado aos interesses dos realizadores e não uma proposta dos atores ou de suas comunidades –, está relacionada tam-
bém a opções técnico-estéticas: a câmera fixa e a quase ausência de cortes. Ao todo, são 96 planos fixos que vão revelando lentamente a vida no
campo, com seus ritmos, pausas e silêncios. Segundo o diretor, essa foi uma estratégia para dar conta do tempo, ou melhor, para narrar-lhe. Se os
movimentos intensos da câmera dão a sensação de que o tempo transcorre mais rapidamente, a câmera fixa passa a sensação contrária e essa
era a intenção, “detener el tiempo” (242 PELÍCULAS DESPUÉS, 2018).

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Introduzidas algumas informações sobre o processo de realização do filme, cabe dizer que este artigo está divido em duas partes: na primeira
trata-se de percorrer a história do filme e sua trama, sublinhando alguns pontos importantes para o argumento a ser aqui desenvolvido na segun-
da parte, a saber, a imagem da Eternidade que emerge no filme como potente expressão do pensamento andino. Nesta seção, também traremos
à tona o lugar especial de alguns autores e artistas que, mesmo vivendo em épocas diferentes, são referências fundamentais no que se refere à
criação de imagens de teor descolonizador dos/desde os Andes. Partiremos de algumas considerações de Silvia Rivera Cusicanqui (2015), quem
nos leva a Melchor María Mercado, Jorge Sanjinés e Guamán Poma de Ayala. Este autor, principalmente, remete-nos inevitavelmente a Martin
Chambi, outro importante partícipe da construção de um grande legado visual dos Andes peruanos, ao qual soma-se Wiñaypacha. Entre as prin-
cipais reflexões finais derivadas deste exercício, ressalto o protagonismo que a cultura aimará, ou se preferirmos, que os povos andinos alcançam

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através do sucesso de Wiñaypacha em lugares onde há muito tempo são/estão presentes, porém, vistos predominantemente como coadjuvantes.

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1 A chegada do tempo dos infortúnios

Nas primeiras cenas, antes mesmo da voz dos protagonistas, ouvimos o silêncio característico das alturas. Estamos falando, de um lado, da escas-
sez ou ausência de sons humanos e daqueles produzidos por coisas feitas por humanos (artefatos, máquinas etc.). De outro, a multiplicidade de
ruídos do lugar, de tudo aquilo que compõe a paisagem invadindo a percepção sonora do espectador: o vento forte, a chuva caindo, os ruídos dos
pássaros, das ovelhas, da vegetação ao vento, dos córregos... Desse modo, os sons que recebem destaque no filme são exatamente os mesmos
que ouvimos com certa ênfase quando estamos imersos na paisagem andina. Uma opção do diretor quando da edição do filme que, ao ver e ouvir
as imagens, decide não tratar o conjunto sonoro local como ruído a ser eliminado para dar lugar a uma trilha sonora, mas reforçar o próprio lugar
de personagem da paisagem, como em tantas outras histórias que se passam nos Andes (ENTREVISTAS CINESMERALES, 2019) – por exemplo,
nos romances –, seguindo a própria cosmologia andina, tema ao qual voltaremos adiante.

Assim que o espectador começa adentrar a história de Wiñaypacha, vemos Willka (Sol) e Phaxsi (Lua) celebrando com seu gado, mais especifi-
camente com suas ovelhas, um tipo de ritual recorrente em grande parte dos Andes (ver RIVERA ANDÍA, 2014). O momento de festejo do casal e
de seus animais inclui música proveniente de flauta, dança, serpentinas para enfeitar o pescoço, além de muitos pedidos para que haja prosperi-

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dade e que os bons auspícios se aproximem garantido a saúde de todos. Com esse propósito repetem inúmeras vezes “viva la fertilidad” e pedem,
através de oferendas, aos Apus (montanhas sagradas e poderosas), a Pachamana (mãe terra) e ao Santo Romerito, seres capazes de interferir na
vida de todos e de proporcionar a boa sorte, para que os animais “tengan fuerzas y que el corral esté lleno de crías” e que “siempre estén alegres”.
A meu ver, este é um importante momento do princípio da narrativa que marca a satisfação e a alegria do casal junto daqueles que os rodeiam.

Na cena seguinte nos deparamos com um evento relevante na estrutura do filme, pois é a partir dele que notaremos que a ordem da vida do casal
vai lentamente se afastando da fortuna em vez de dela se aproximar: é o primeiro sonho de Phaxsi com o filho. Ela acorda no meio da noite em
sua escura e fria casa de pedra – ao fundo ouvimos o discreto barulho de uma fogueira acesa dentro de casa para abrigá-los do frio penetran-
te da puna – e acende uma pequena lamparina. Em seguida, acorda o marido para contar que teve um sonho ruim com o filho, ou melhor, uma

Dossiê
“má premonição”. Nele, via a Antuko correndo nu e caindo num rio turvo. O marido concorda que tal imagem não é, de fato, um bom presságio e
ambos especulam que ele “estará perdido” e deve ter esquecido de seus pais, pois nunca mais retornou. Daí em diante é como se uma pitada de
mau agouro maculasse a imagem idílica da vida nas montanhas – ainda que essa sempre envolva inúmeras agruras, conforme ficará explícito no
decorrer do filme – que predominava até então, criando uma sutil tensão na trama. Antuko jamais aparece na tela, sequer em fotos, mas retorna
uma e outra vez à narrativa através da memória dos pais que falam frequentemente no filho. Pouco depois, o casal aparece trabalhando no cam-
222
po e, na pausa para o almoço, conversam – Phaxsi estende sua manta sobre o chão e desembrulha os alimentos; uma típica refeição no campo.
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Com um tom queixoso, Willka diz que o trabalho o deixou exausto. Ela responde: “Si nuestro hijo Antuku estuviera aquí, nos ayudaría”. Ao que ele
contesta: “Pienso que él nunca regresará. Para mí esas grandes ciudades han cambiado a nuestro hijo”. Ela acrescenta: “Un día [Antuku] me dijo:
‘Hablar el aymara es vergonzoso’. Así dijo”. Finalmente, ele diz: “Malos deben estar esos tiempos como para que nuestro hijo nos haya abandonado”.
E ela arremata: “Ojalá algún viento pueda traerlo de regreso a casa”.

Chega, então, o momento do segundo sonho de Phaxsi com o filho, mas dessa vez ela pressente que ele finalmente retornará, dissolvendo
um pouco a tensão que o sonho anterior instaurara. Entredormida, fala para o marido: “Parece que nuestro hijo llegará. Algo así soñé. Mis sueños
suelen cumplirse”. Assim, no dia seguinte devem ir esperá-lo no “camino”. Willka diz que “es solo un sueño”, que ele mesmo nunca se lembra do que
sonha e finaliza: “Ya hay que dormir, apaga el candil [lamparina]”. No dia seguinte, os dois vão até o caminho e nada. Desanimada, Phaxsi se per-
gunta: “Que error habremos cometido para que [Antuku] nos haya abandonado?”. Já Willka parece vislumbrar outra motivação para o abandono por
parte do filho: “Se fue hace mucho tiempo y quizás piensa que ya estamos muertos”. Contudo, tal alternativa não parece consolá-la: “Aun vivimos y
le estamos esperando”, responde Phaxsi com a voz chorosa.

Depois disso, o casal aparece novamente trabalhando no campo, ele de pé e ela sentada. A considerar a postura e gestos do casal prova-

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velmente estarão “limpando”3 quinoa ou outro cereal que necessita da ajuda do vento para que o grão se separe da casa. Dessa forma, aquele
que está de pé atira um punhado do cereal em direção ao solo e enquanto o grão cai diretamente no chão, sua casca voa. Neste caso, a presença
do vento é fundamental; sem ele não há como trabalhar. Assim, de repente, o vento vai embora e Willka se aborrece. Phaxsi diz para ele sentar e
descansar um pouco: “Esperaremos que [o vento] regrese”. Ainda aborrecido, ele reclama de dor no corpo: “La chacra es para los jóvenes. Los vie-
jos ya no servimos para nada”. Mas se não trabalharem, lembra Phaxsi, não terão o que comer. Então, ele pede para ela “llamar al viento”, um modo
correto de atrair o vento para que assim possam concluir seu trabalho. “Ese joven viento está con flojera”, diz Phaxsi ao levantar-se para chamar o
vento: “¡Joven viento, ven! ¡La señorita helada [geada] está aquí! ¡Dice que te quiere mucho! ¡Vuelve con todas tus fuerzas! ¡Ven bailando y soplando!”.
Instantes depois ouvimos o vento voltando a soprar. Lentamente Willka vai retomando sua tarefa, lançando um punhado de cereal em direção ao
chão: “Cierto, te ha escuchado. Ya está llegando, mira”. Vemos, então, o vento levar as cascas com vigor crescente.

Dossiê
À noite, em casa, Phaxsi lembra a Willka que no dia seguinte é a celebração de Pachakuti4 e por isso irão ao “cerro sagrado”. É o dia que marca o
início de um novo ano. Conforme planejado, no dia seguinte vão caminhando com sua lhama em direção a essa montanha. Chegando lá, de frente
3 Termo usado pelos andamarquinos para se referirem à separação dos grãos da quinoa e de sua casca, ou seja, a parte que deve ser guardada e a parte que deve ser descartada.
4 Pachacuti ou Pacha Kutiy Inqa – pode aparecer com outras grafias ainda – foi o nono Inca de Cusco e o primeiro do Tawantinsuyo; mas nesse caso específico a referência parece ser ao ano
novo, um novo ciclo que se inicia. É que o termo pachakuti tem também um uso mais amplo, o qual veremos mais adiante, ligado à ideia de retorno ou de repetição que deriva do significado dos
dois termos que compõem essa palavra em quéchua: pacha (tempo, espaço) e kuti (regresso, volta), seguindo a Silvia Rivera Cusicanqui (2015). A autora define pachatuki em seu glossário como: 223
“Regreso del tiempo, cambio del tiempo. Revolución. Ciclo (FLP). Conmoción/reversión del cosmos, que es a la vez catástrofe y renovación” (2015, p. 331).
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à montanha, fazem uma oferenda com incensos, folhas de coca, grãos e outros elementos, tudo disposto de forma organizada sobre uma manta
estendida no chão. A oferenda é endereçada a Pachamama, aos Apus e aos ancestros como sinal de agradecimento pelo ano que passou. Ao
mesmo tempo, para o novo ano que se inicia, pedem por seu gado, por seus cultivos, por eles próprios e também pelo filho, para que ele retorne.
É chegada a hora do terceiro evento adivinhatório, dessa vez não através do plano onírico, mas da leitura da coca – as folhas secas da planta, as
mesmas usadas na mastigação, são lidas conforme sua disposição sobre uma superfície, prática capaz de revelar muito sobre a sorte (ver ALLEN,
2008). Phaxsi pede a Willka que “saque un mensaje” para o novo ano e, assim, ele prognostica uma “desgracia”, vendo através da coca que “la
muerte ronda entre nosotros”. Ao ouvir a má notícia, Phaxsi diz que não quer partir sem ver seu filho, mostrando-se inconformada com o destino
que se aproxima. Os sinais deixam explícito que algo ruim está prestes a suceder, porém, o espectador não sabe ainda com quem nem como a
desgraça irromperá, mantendo-se certo suspense.

Mais tarde, à noite, chove forte e eles estão em casa sob luz de lamparina aquecendo-se com a presença do fogo. É nessa ocasião que Phaxsi
percebe que os fósforos estão prestes a acabar e diz ao marido que ele terá que ir ao pueblo (povoado) para comprar. Ele responde que o pueblo
está muito longe, sinalizando que esse é um dado negativo, algo que dificultaria a solução da falta de fósforo, tensionando ainda mais a história.
Apesar de Willka ter sido um tanto reticente, na noite seguinte Phaxsi enfatiza que ele deve ir em busca de fósforos. Dessa vez, além de ele repetir

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que o pueblo está muito distante, confessa à esposa que tem “miedo de viajar”, acha que se for talvez nem consiga regressar. Ela descorda, afir-
mando que ele ainda está forte e, portanto, voltará. Finalmente, no dia seguinte, vemos o ancião partindo com sua lhama em direção ao vilarejo,
caminhando lentamente. Por sua idade, fica evidente que tal caminhada, que outrora praticamente não deve tê-lo desafiado, é uma desgastante e
arriscada jornada. Lugares remotos como esse costumam ficar também distantes de trajetos de transportes coletivos, portanto a única forma de
sair e de chegar é caminhando – lembrando que a lhama é um animal de carga, que auxilia no transporte de mantimentos e não de humanos. No
caminho, ele joga pedras na “gran apacheta” – montículo de pedras amontoados e/ou empilhadas depositadas aleatoriamente por aqueles que
passam, onde são feitas libações e oferendas – e diz a ela que está esgotado. Em seguida, ele pede: “Grande apacheta, ayudame a seguir el cami-
no”. Apesar de sua persistência para enfrentar o longo e árduo caminho, Willka passa mal e jamais consegue chegar ao seu destino final. Assim, o
único que lhes resta é “cuidar bien el fuego” para que nunca se apague, conservando bem suas brasas. Tarefa que soa como imensamente desa-

Dossiê
fiadora, para não dizer impossível. Pois bem, este é o acontecimento que proporciona a grande virada do filme, uma vez que dessa necessidade
se desencadeiam outros inúmeros maus eventos.

Logo após a viagem mal sucedida de Willka, as ovelhas do casal são devoradas pelo zorro (raposa), voraz predador andino que costuma atacar
o gado na calada da noite, fonte de preocupação constante para os pastores. As poucas ovelhas do casal, umas seis ou sete, aquelas mesmas
que celebravam com eles felizes no começo do filme, amanhecem completamente destroçadas. Pena profunda e desconsolo tomam conta de 224
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ambos ao verem quase todos os seus “hijos” (filhos) mortos, restando-lhes apenas a lhama: “tu eres el único hijo que nos queda”, diz Phaxsi mais
tarde ao animal. Depois dessa tragédia, ainda cabe aos dois a difícil tarefa de cuidar bem do fogo para que ele nunca se apague. À noite, Phaxsi
queixa-se de calafrios. Para curá-la, o marido lhe faz um remédio, aparentemente uma infusão, que parece ser muito eficaz já que pouco depois
ambos aparecem trabalhando.

A espiral da má sorte, entretanto, não dá trégua; a comida vai escasseando e a sobrevivência imediata dos dois vai ficando cada dia mais clara-
mente ameaçada. Até que numa madrugada, o que era mais escasso torna-se excessivo, brotando daí sua tremenda força destruidora. As brasas
que eram objeto de zelo tomam conta da casa, consumindo tudo ao seu redor. O casal acorda em desespero, mas a tempo de escapar. Ao ama-
nhecer, diante das ruínas, Phaxsi diz ao marido: “Mira, el fuego nos robó todo”. Para piorar, Willka tosse e sente muito frio, sinais claros de adoeci-
mento. Apesar de tudo, ele salienta que ambos estão juntos, sugerindo que isso é o mais importante. Phaxsi volta a lembrar de Antuku, repetindo
mais uma vez que se ele estivesse lá os ajudaria. Entretanto, dessa vez Willka é contundente: “Cállate. Nuestro hijo nunca llegará”. E se por acaso
o espectador pensa, ainda que ligeiramente, que algo ou alguém aparecerá milagrosamente para tirá-los dessa situação, logo depara-se com o
quarto e derradeiro sinal premonitório: o canto de um pássaro que Phaxsi interpreta nitidamente como mau agouro.

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Chega a noite e eles aparecem abrigados numa construção semelhante à casa recém-queimada, igualmente de pedra com teto de palha – talvez
uma despensa ou curral –, e bem próxima das ruínas daquela. Willka continua sentindo-se mal e Phaxsi lhe prepara um remédio ao fogo. Nova-
mente escuta-se o grito do mesmo pássaro: “Los dioses están llorando”, diz ele. E ela pergunta: “¿Será que me abandonarás?”. Ele não responde,
mas pergunta o que ela lhe cozinhará, já que o pouco que tinham havia queimado. Pensam em matar a lhama e ao mesmo tempo resistem porque
é o único que lhes restou, o último resquício de fertilidade, ou dos tempos de fortuna. Mas com a sorte tão descompensada e sem mais o que
comer, Phaxsi acaba sacrificando seu último filho aos prantos, inconformada. Ao perceber o que ela teve que fazer para que comessem, Willka se
entristece e eles choram juntos. Antes mesmo de a comida ficar pronta, numa noite fria e chuvosa, ele morre. Diante desta última fatalidade, vemos
Phaxsi partir. Não se sabe para onde, tampouco qual é o seu propósito com dita travessia. As últimas cenas mostram a anciã solitária, porém com
um semblante altivo, caminhando em direção a uma imensa montanha nevada. A sensação de altivez, a meu ver, é passada através da imagem de

Dossiê
Phaxsi em primeiro plano e, atrás dela, a imponente montanha. Necessário dizer que esta não é apenas mero cenário – aliás, como toda paisagem
nos Andes nunca o é –, mas enquanto ser grandioso e forte, pois perene; e (re)ativo, pois vivo, parece transferir à anciã parte de sua imponência,
sugerindo-se sutilmente que algo entre esses dois corpos, um lítico e outro humano, estaria a se fundir neste instante.

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2 O movimento da Eternidade

De fato, a grande virada do filme acontece quando da impossibilidade da eterna presença, digamos, do fogo. É a falta de fósforos, o fim da com-
bustão, ou de um tipo de energia, que parece funcionar como gatilho para desencadear progressivamente a finitude de outras energias, as forças
vitais daquele ambiente: as ovelhas, a casa, a lhama e, finalmente, Willka. São energias que vão minguando na medida em que a boa sorte se
afasta, ao mesmo tempo que a má sorte vai se aproximando num movimento crescente. Cuidar do fogo durante o resto da existência do casal é
uma tarefa que beira o impossível, mas a única solução encontrada por eles, uma vez que viver sem ele era, de partida, uma impossibilidade. Sua
ausência iminente, de qualquer forma, por todos os ângulos pelos quais possamos olhar, apontava para a morte, materializando a instabilidade:
com isso, a vida passa a estar por um fio. Ironicamente, é a escassez do fogo que propicia seu excesso, sua presença exorbitante e extraordinária
é o que traga parte da vida.

A bela imagem que encerra a trágica narrativa nos remete também ao pensamento mítico andino. De acordo com o diretor, a intenção da imagem
que mostra Phaxsi em direção à montanha é que ao subi-la ela se tornará uma “diosa”, um ser sagrado, um Apu (BLASCO, 2018) – aliás, uma mag-
nífica imagem para Eternidade. Por todo o território andino há uma miríade de Apus, como são chamadas as montanhas poderosas ou “tutelares”,

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às quais presta-se cultos e oferendas, conforme vemos no filme, e as quais possuem versões animais e humanas (femininas ou masculinas). Po-
de-se dizer, assim, que a imagem de Phaxsi muito próxima daquele Apu evoca sua transformação em pedra, um tipo de metamorfose (humano-
-pedra) que vemos de sobra na tradição oral e nos mitos andinos (ROBIN AZEVEDO, 2010; FERNÁNDEZ MURILLO, 2018). Outra noção recorrente
entre os povos andinos é, como dito antes, que os próprios Apus têm a capacidade de transformar-se em humanos que aparecem não apenas
em sonhos mas também diante de nós em situações específicas, conforme relatam meus próprios interlocutores andamarquinos. Características
humanas e líticas relacionadas que revelam rochas humanizadas e humanos petrificados5. A perenidade e o perecimento enquanto formas e esta-
dos passíveis de serem transformados em algum tempo-espaço, como Phaxsi no filme. Se o destino de Willka é a morte, o de Phaxsi é eternizar-se
através dessa transformação – que, em alguma medida, não é eterna, ou não é estabilizada dessa forma para sempre se consideramos que ela
pode vir a experimentar um corpo humano novamente; assim como a morte não significa necessariamente finitude absoluta. De qualquer forma,

Dossiê
o que é importante sublinhar é a noção de tempo cíclica, tão pronunciada no pensamento andino, e que se manifesta no filme através de vários
recursos estéticos, imagéticos e narrativos, sendo precisamente essa ideia que se quer transmitir com a Eternidade, segundo o próprio diretor
(242 PELÍCULAS DESPUÉS, 2018; CINE-SECUENCIAS TV, 2018).

5 Os corpos líticos têm lugar especial nos Andes por diversos motivos, entre eles suas qualidades físicas, resistência e perenidade, capazes de sobreviver à passagem do tempo, mas que nem por
isso deixam de apresentar um forte caráter transformacional. Não apenas os Apus, mas outras pedras muito menores, dependo de sua forma e outros aspectos não apenas morfológicos, podem 226
conter em si certos poderes (ver FERNÁNDEZ MURILLO, 2018).
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Não obstante, antes de avançarmos sobre a importância da noção de Eternidade contida no filme de Catacora enquanto uma imagem do próprio
pensamento andino, gostaria de trazer algumas considerações sobre a construção de uma ‘tradição visual’ andina, passando por alguns nomes
que julgo extremamente relevantes para alcançar meu argumento, pois é justamente na noção de tempo cíclico que vários desses autores e
artistas se encontram. A intenção é partir de algumas reflexões propostas por Silvia Rivera Cusicanqui (2015) sobre o poder narrativo de certos
materiais visuais. As imagens dizem muito sobre quem as faz/cria, tanto quanto sobre aqueles que são retratados. Ideias que Rivera Cusicanqui
mobiliza em seu livro ao pensar em quem são os criadores de imagens bolivianas/andinas importantes, no sentido de como foram sendo forjadas
certas ‘tradições’ imagéticas; o que retrataram; e como isso teria influenciado formas de representação que se cristalizaram enquanto parte de um
repertório associado à ideia de nação boliviana; bem como as formas pelas quais os próprios bolivianos/andinos pensaram e pensam a si mes-
mos. Uma das reflexões mais importantes que a autora nos brinda é sobre como criar/fazer emergir outras referências que não se alimentem de
ideias colonizadoras, mas que consigam delas se descolar expressando outras formas de imaginação. Trata-se de uma busca por uma episteme
própria e de como alcançar uma descolonização do olhar, no sentido de “libertar la visualización de las ataduras del lenguaje, y en reactualizar la
memoria de la experiencia como un todo indisoluble, en el que se funden los sentidos corporales y mentales” (RIVERA CUSICANQUI, 2015, p. 23).
A meu ver, a grandiosidade do trabalho de Óscar Catacora está diretamente relacionada a isso, à possibilidade de que o próprio povo aimará fale
através de suas imagens – como as fotos de Martin Chambi, numa explícita referência a uma das epígrafes deste texto –, de uma forma não de-

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nuncista e/ou trágica apenas, mas que mobiliza, ao mesmo tempo que conta uma “história dolorosa” – fazendo referência à outra epígrafe deste
texto –, parte da complexidade do pensamento andino.

Desde tal perspectiva é que se torna quase obrigatório mencionar o trabalho pictórico de Melchor María Mercado e do cineasta Jorge Sanjinés,
artistas bolivianos cujas obras nos revelam outras imagens da República da Bolívia – e dos povos andinos –, como nos mostra Rivera Cusicanqui
(2015). Para a autora, ambos “se nutrieron de fuentes orales, y ejercieron formas no convencionales de investigación etnográfica”, o que faz com que
possamos encarar seus trabalhos como “‘lecturas’ visuales de las realidades sociales que atestiguaron” (2015, p. 74), sendo extremamente impor-
tantes desde um ponto de vista sociológico, “en la medida en que la etnografía, la imaginación y la oralidad fueron integradas en sus películas y sus
pinturas, recorriendo caminos paralelos de interpretación y comprensión de la sociedad” (2015, p. 75). Daí que ela os conceitua como “sociólogos

Dossiê
de la imagen”, por seus “complejos modos de narración y representación, que a su vez se vieron marcados por la historia social de su época” e por
realizarem, através de suas propostas criativas, “una interpretación de la sociedad de su época, en sus dimensiones abigarradas [salpicadas, man-
chadas] y conflictivas” (2015, p. 74).

Melchor María Mercado nasceu em Sucre e viveu entre 1816 e 1871, deixando apenas uma obra: o Álbum de Paisajes, Tipos Humanos y Costumbres
de Bolivia (1841-1869), publicado somente em 1991 graças a Gunnar Mendoza, historiador e editor boliviano. Nele podemos encontrar várias séries 227
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de desenhos e pinturas que formam um complexo conjunto narrativo pictórico. Em relação à potência da obra de Mercado, Rivera Cusicanqui cha-
ma atenção para a pluralidade de tipos humanos, “en su mayoría indias/os, cholas/os, y mestizas/os; también una que otra ‘señora’” (2015, p. 42),
descritos com profundidade etnográfica, permitindo-nos ver seus gestos, hábitos, vestimentas etc. Características, mais precisamente, de toda a
primeira parte de seu trabalho, correspondendo a um “estilo, diríamos etnográfico, propio de exploradores y viajeros, género no sólo científico sino
ante todo literario, muy característico de fines del siglo XVIII y principios del XIX” (2015, p. 39). O olhar único, arguto e, de certa forma, empático
para com as populações marginalizadas deve-se em grande medida às possibilidades que Mercado teve de transitar, viajar e, assim, conhecer e
ver boa parte do vasto território boliviano, então uma jovem república, graças à sua experiência como deportado e, mais tarde, pelo cargo público
que ocupou no final da vida. Suas longas travessias desde os Andes às distantes planícies amazônicas, ressalta a autora, foram fundamentais para
forjar sua mirada, a qual era capaz de conjugar algo de artístico e de científico, diferenciando-se enormemente da de outros contemporâneos seus,
que assim como ele faziam parte de uma elite letrada “mestizo-criolla” urbana, porém, sequer podiam imaginar como seriam as terras bolivianas
para além da paisagem andina.

O cineasta Jorge Sanjinés é autor de uma extensa obra de destaque internacional que se inicia no final da década de 1950, ao estudar cinema no
Chile. Nascido em La Paz e também procedente da elite mestizo-criolla, como Mercado, deixa em sua produção imagética marcas de seu compro-

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metimento político na luta contra as ditaduras de 1960-1980. De acordo com Rivera Cusicanqui, depois da revolução de 1952 a palavra “índio” foi
substituída por “campesino” em toda linguagem oficial, à semelhança do que aconteceu em outros países, como é o caso do Peru6. Com isso, uma
maléfica operação de apagamento da “persistencia del problema colonial y del racismo” (2015, p. 89) foi sendo gestada a ponto de tais questões
não mais fazerem parte do debate público, o que foi percebido nos meios de comunicação e até mesmo nas ciências sociais. Quem viria explicitar
um caráter racista sobrevivente no país ainda depois de uma conjuntura democrática (e dos efeitos da reforma agrária e da educação, bem como
do voto universal), nos conta a autora, não seria um cientista social, mas o jovem cineasta pacenho Jorge Sanjinés através de seus filmes. Desde
essa perspectiva, Rivera Cusicanqui nos mostra o quão relevante é o trabalho deste artista.

Dito isto, gostaria de enfocar um filme de Sanjinés: La Nación Clandestina (1989), também destacado por Rivera Cusicanqui por nos apresentar

Dossiê
uma contundente reflexão sobre o tempo histórico, e é exatamente por isso que nos interessa. Trata-se de uma ficção que, a meu ver, poderia
até ser pensada como complementar a Wiñaypacha. Não que esta necessite de coisa qualquer parecida, mas no sentido de que as narrativas se
entrecruzam plenamente. Tanto assim que o protagonista de La Nación Clandestina, Sebastián Mamani, bem poderia ser o filho de Phaxsi e Willka
que vai embora para a cidade. Entretanto, diferentemente do que acontece com Antuku em Wiñaypacha, o espectador pode assistir à experiência
urbana do jovem Mamani, pois boa parte do filme descreve justamente a dimensão conflitiva e sofrida de sua vida na cidade, lugar que o faz sentir
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6 Em 1969, durante a ditadura militar de Juan Velasco Alvarado no Peru, foi promulgada a lei da reforma agrária e a substituição do temo “índio” por “campesino”.
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vergonha de sua origem aimará a ponto de ele tentar negá-la, mudando seu sobrenome. Outro detalhe fundamental que o diferencia de Antuku
é o fato de que Sebastián sim retorna a seu pueblo, sendo esse movimento crucial para o desenvolvimento da narrativa. Depois de anos, o jovem
decide voltar para sua comunidade no altiplano onde decidira morrer. Mas essa decisão não está relacionada a uma morte natural, isto é, de que
ele viveria entre os seus até morrer, senão que ele estava determinado a voltar para morrer num ritual de autossacrifício. Sebastián decidiu que
morreria dançando. A escolha por este desfecho para sua vida deriva do doloroso rompimento que teve com sua comunidade anos antes, de
onde foi expulso por traição e por suas más condutas na cidade. De modo que, com sua morte, Sebastián visava alcançar a reconciliação com sua
comunidade numa sorte de renascimento, evento que lhe permitiria “reordenar el tiempo y restaurar el ciclo de la vida colectiva” (2015, p. 79). A
partir desse viés, a morte revela sua positividade e outro tempo se inaugura. O arranjo narrativo do diretor nos “ofrece una lectura del pasado, ‘no
como algo muerto y desprovisto de funciones de renovación’, sino como un tiempo ‘reversible’, es decir, ‘un pasado que puede ser futuro’” ([Carlos]
MAMANI, 1992, apud RIVERA CUSICANQUI, 2015, p. 78). Para executar a dança que levará Sebastián Mamani à morte é preciso um acessório
fundamental: uma máscara específica que ele encomenda a um artesão e com a qual vai caminhando da cidade em direção a seu pueblo ainda
sem vesti-la, apenas pendurada em suas costas. A imagem do jovem percorrendo a pé o altiplano com a enorme máscara de Danzanti olhando
para trás é preciosa, ainda mais se a tomarmos como uma sugestão de que esse atrás é o futuro, conforme nos diz Rivera Cusicanqui. Enquanto
caminha, o jovem vai lembrando de seu passado e dos eventos que o levaram a tomar essa decisão, nesse sentido “la memoria no resulta un acto

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de nostalgia, sino una liberación y un despertar de la vida alienada en la ciudad” (2015, p. 79). Assim, vemos a positividade também da memória.

A noção de tempo reversível, ou de um tempo cíclico, é o que, finalmente, queremos sublinhar, pois há aí um encontro entre Sanjinés, Mercado e
um terceiro autor, o cronista indígena andino peruano Felipe Guamán Poma de Ayala. Este é também um autor caro a Silvia Rivera Cusicanqui pelo
peso teórico de sua obra, a qual elabora entre 1612-1615 através de um extenso texto de mais de mil páginas e também de desenhos, mais de tre-
zentas ilustrações em que retrata os abusos das novas autoridades no Peru. O documento é dirigido ao rei Felipe III com o propósito de reivindicar
à Coroa Espanhola uma reforma do governo colonial. Na obra de Melchor Mercado, um desenho intitulado Mundo al Revés, em que os humanos
trocam de lugar com os animais na atividade de arar, ou seja, onde são estes que conduzem o arado enquanto os humanos o tracionam, aponta
para uma noção já presente na Nueva Corónica y Buen Gobierno de Guamán Poma – noção que segundo Rivera Cusicanqui ressoa em diversas

Dossiê
culturas populares ao redor do mundo. De acordo com a autora “[p]ara Mercado, es una imagen que parece condensar la experiencia catastrófica
de la conquista y la colonización, con las fracturas y aporías que se vivieron en el siglo XIX republicano” (2015, p. 85), impressão bastante próxima a
de Guamán Poma em relação aos colonizadores espanhóis no século XVII.

A imagem invertida, em que os humanos ocupam o lugar dos animais e vice-versa, mostra o sentido de cataclismo vivido a partir de algumas expe-
riências que alteram drasticamente a ordem do mundo. Interessante notar, como faz Rivera Cusicanqui, que Mercado jamais conheceu a obra de 229
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Guamán Poma pelo simples fato de que essa foi descoberta somente no começo do século XX, em uma biblioteca de Copenhague. Portanto, essa
noção de Mundo al Revés, ou seja, “mundo ao contrário” ou “mundo invertido”, recorrente na obra do cronista peruano teve que haver chegado até
o desenhista boliviano através da tradição oral, “quizás basada en la noción indígena de Pachakuti, la revuelta o vuelco del espacio-tiempo, con la
que se inauguran largos ciclos de catástrofe o renovación del cosmos” (2015, p. 177).

Ora, vemos aqui uma noção que irrompe também no filme de Óscar Catacora. De repente, o mundo dos protagonistas Phaxsi e Willka é invertido,
a boa sorte se distancia da vida de ambos e a má sorte toma conta, instaurando um tempo em que a estrela (Antuko) já não é vista, o sol (Willka)
se foi e a lua (Phaxsi) petrificou-se. A Eternidade de Wiñaypacha contém uma visão andina de tempo-espaço, uma eternidade que carrega em si
possibilidades de mudanças tão intensas que reviram o mundo, que abrem para transformações drásticas. O tempo cíclico traz consigo a pos-
sibilidade de reversibilidade, mas sempre encharcado de instabilidade. Alguns ciclos podem ser previsíveis e esperados – as estações, o tempo
da chuva e da semeadura, da seca etc. –, porém, de forma alguma pressupõe-se com isso a ausência de perigos, havendo sempre uma margem
para a catástrofe, o azar, a dissolução, ou a renovação, o (re)nascimento. A cada novo evento há riscos e tensões, por isso mesmo tantos esforços
direcionados para conter as instabilidades e as surpresas negativas, por exemplo, através de prognósticos e inúmeros rituais.

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Antes de finalizar, gostaria de lembrar a forte tradição iconográfica que vigora nos Andes há séculos, que compreende desde tecidos artesanais
pré-hispânicos capazes de revelar uma miríade de informações e sentidos por meio de suas matérias-primas, cores, formas, desenhos e figuras
(ARNOLD, 2015; ARNOLD, ESPEJO, 2013); os khipu, artefatos usados para marcação temporal, de tributos etc. (URTON, 2003; SALOMON, 2004),
por meio de nós em cordões; passando pelas inúmeras formas de artes em pedra (FERNÁNDEZ MURILLO, 2018), cerâmicas e madeira (a exemplo
dos retablos). A obra de Guamán Poma é parte disso, sendo em si mesma, segundo Silvia Rivera, também uma teoria do colonialismo. A própria
noção de Mundo al Revés é parte do que ela considera como “teorización visual del sistema colonial” (2015, p. 177). Para a autora, é através dos
desenhos de Guamán Poma, muito mais do que de seu texto, que pode-se perceber suas ideias sobre a sociedade indígena pré-hispânica, bem
como seus valores e conceitos acerca do tempo-espaço “y sobre los significados de esa hecatombe que fue la colonización y subordinación masiva
de la población y el territorio de los Andes a la corona española” (2015, p. 177). O cronista cria uma linguagem visual para comunicar aquilo que

Dossiê
vê como características fundantes do sistema colonial, as quais contrastam sobremaneira, na maioria das vezes, com os princípios basilares do
mundo andino – a exemplo do trabalho como castigo, desde uma perspectiva colonial, diferentemente do entendimento do trabalho como cria-
ção e intercâmbio, ou distribuição, a partir do pensamento andino (ver RIVERA CUSANQUI, 2015, p. 206) –, mobilizando sua perspectiva crítica
e permitindo-nos acessá-la.

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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 217-236 | Jan - Jul | 2021

E assim nos remetemos, finalmente, a outro grande personagem da história das imagens andinas já mencionado no início deste texto: o fotógrafo
indígena peruano Martin Chambi Jiménez, outro poderoso criador de linguagem visual. Um artista andino que, antes de estabelecer-se em Cus-
co, havia percorrido intensamente as terras altas, cujo olhar era sensível tanto para capturar a vivacidade e magnitude das formas da natureza
quanto das formas humanas. Chambi fotografou membros da elite cusquenha (em momentos de lazer, casamentos e reuniões sociais) – e antes
da arequipenha, quando do início de sua carreira viveu em Arequipa onde trabalhou como fotógrafo de moda –, assim como cidadãos comuns
(camponeses, músicos populares, chicheras, cholas etc.) em diferentes ocasiões, compondo um vasto e variado acervo imagético – certamente
tão ou mais expressivo que o de Melchor Mercado. Segundo Mary Weismantel, seu trabalho constituiu “una história fotográfica integral de la so-
ciedad de Cusco entre 1920 y 1950” (2017, p. 81). Para a autora, a forma como ele descreve os personagens em suas imagens é extremamente forte:

de hecho, Chambi vio sus sujetos, explícitamente, como testigos de la historia andina. […] Chambi describió sus fotografías como ‘testimonios grá-
ficos’ que tenían el poder de callar a él, su fabricante, puesto que las imágenes eran más ‘elocuentes’ que sus palabras. Sus exposiciones, como si
fueran juicios, iban a ser una exhibición pública de ‘evidencia’ que podría transformar a los espectadores en ‘testigos imparciales y objetivos’, cuyo
‘examen’ de la evidencia los llevaría a descubrir nuevas formas de pensar sobre los indígenas (WHITTEN, 1976, p. 10-12; cf. STUTZMAN, 1981, p. 145)
(apud WEISMANTEL, 2017, p. 95-96).

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O olhar único de Martin Chambi, através do qual nos fez ver a paisagem natural andina e as inúmeras obras da arte arquitetônica pré-hispânica,
possibilitou-lhe participar da fundação dos cânones das imagens turísticas dos Andes através de uma série de cartões-postais – uma das suas
formas de sustento – e, sobretudo, deixar um maravilhoso legado visual desse patrimônio arquitetônico (WEISMANTEL, 2017). Imbuído do propó-
sito de revelar esse universo para o mundo é que o artista percorreu inúmeros rincões das terras altas carregando, em lombo de burro, os pesados
equipamentos que lhe permitiram compor com a luz altoandina, cujo esplendor era seu antigo conhecido. Diferentemente de Melchor María Ma-
chado e de Jorge Sanjinés, a origem social familiar de Martin Chambi não era mestizo-criolla, nem classe média escolarizada. Nascido em uma lo-
calidade altoadina de Puno em 1891, em uma casa de adobe e teto de palha semelhante a do casal de anciãos de Wiñaypacha, certamente Chambi
estava acostumado a jogos de luz e sombra desde tenra idade. Contudo, penso que talvez sua percepção da ausência/presença de luz tenha se
acentuado ainda mais depois da experiência que teve como ajudante de mineiros nas profundas minas da Santo Domingo Mining Company, na

Dossiê
província de Carabaya (departamento de Puno) aos 14 anos de idade. Com a morte do pai, Chambi o substitui em seu trabalho e, ironicamente,
lá encontrou sua vocação artística. Quem diria que ao ver fotógrafos ingleses contratados pela empresa para registrar jazidas minerais com suas
grandes câmeras, o jovem alentaria um sonho. Um desejo tão poderoso que o fez trabalhar ainda como mineiro durante aproximadamente dois
anos, até que pudesse reunir as economias necessárias para investir no ofício que o emocionara, partindo para Arequipa onde iniciou sua carreira
(ver RODRÍGUEZ, 2016). 231
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 217-236 | Jan - Jul | 2021

Desse modo, a obra de Martin Chambi constitui “un referente visual del indígena del siglo XX y su visión de mundo, lo cual amerita la comparación
con la figura de Guamán Poma como la misma figura respecto al siglo XVII” (SOTO, 2014, p. 224). Para Catalina Soto:

lo que asemeja a Chambi con Guamán Poma es la generación de un lenguaje propio a partir de imágenes. Dicho lenguaje se compone de códigos
culturales que derivan de hechos y tradiciones ancestrales, comprensibles a cualquier conocedor del mundo andino. Pero conjugado con la técnica
de la fotografía y la tradición artística cusqueña, la que a su vez mezcla la teoría y técnica europea y prehispánica. Además, el autor tiene la intuición
de retratar acontecimientos nuevos para la época dejando testimonios únicos que se convierten en parte del código ‘Chambi’ (SOTO, 2014, p. 221-
222)

Um fotógrafo indígena multifacetado, autor de fotografias documentais e artísticas e, mais do que tudo, “[c]onsciente de su papel trasgresor del
estándar” (RODRÍGUEZ, 2016, p. 66). Com suas fotos tinha a intenção de forjar outras imagens dos indígenas, rompendo com o imaginário pre-
dominante que considerava – como ele mesmo disse em uma célebre ocasião em Santiago de Chile em 1936 – que “los indios no tienen cultura,
que son incivilizados, que son intelectual y artísticamente inferiores en comparación con los blancos y europeos” (WEISMANTEL, 2017, p. 79). Con-
tra tais ideias é que o fotógrafo enfatizou as magníficas potências criativas de seu povo, sendo seu próprio trabalho uma expressão disso. Nesse
sentido, Martin Chambi é um descolonizador de imagens grandioso, uma inspiração para muitos artistas que o sucederam. Óscar Catacora é um

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deles, um dos herdeiros não apenas de Chambi, quem se consolidou como “el gran lente ancestral latinoamericano, por la calidad técnica de su
propuesta, pero ante todo por su documentada insistencia en retratar la realidad peruana” (RODRÍGUEZ, 2016, p. 63), mas de uma longa tradição
visual conforme vimos aqui, a qual busca contar outras histórias.

Considerações finais

Neste artigo tratou-se de mostrar como o filme Wiñaypacha é em si mesmo uma criativa e potente expressão do pensamento andino, na medida

Dossiê
em que a noção de Eternidade, enquanto tempo circular, é acionada de forma central na narrativa. Esta pareceu-me uma proposta clara da trama
do filme ao assisti-lo, tornando-se inteiramente explícita mais tarde ao conhecer a intenção do diretor (242 PELÍCULAS DESPUÉS, 2018), como
antes mencionado. Para ele, essa é uma forma mais próxima, ou verossímil, das experiências vividas, as quais costumam conter momentos felizes
e tristes, sucessos e insucessos. Além do mais, a ênfase na circularidade do tempo é algo vivido nos Andes de múltiplas formas, tanto através do
regime das chuvas, das estações, do ciclo agropastoril, como dos regimes dos ventos, que vão e voltam e, por isso, quiçá capazes de trazerem 232
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 217-236 | Jan - Jul | 2021

Antuku de volta? É o desejo de Phaxsi ao dizer: “Ojalá algun viento pueda traerlo de regreso a casa”. Tal noção é tão importante a ponto de aparecer
com recorrência e destaque em outras obras de renomados autores e artistas andinos, como tratei de demonstrar.

A mesma relevância mostra-se em relação à conexão que é feita com a cidade. O filme aborda com delicadeza e, ao mesmo tempo, de forma
contunde como o modo de vida urbano e capitalista entrecruza-se com esse outro modo muito mais pleno de relacionar-se com o mundo ao re-
dor – habitado por viventes diversos – mas ainda tão estigmatizado em certos contextos. Um dos grandes desdobramentos do sucesso do filme,
a meu ver, está relacionado precisamente com a visibilidade da língua aimará e sua ampla circulação. Apesar do receio inicial do diretor, de que
o filme fosse discriminado por ser inteiramente falado em aimará, o que se mostrou foi um efeito inverso. Podemos dizer que Wiñaypacha recolo-
ca no centro da vida urbana, ao ser exibido em diversas salas de cinema peruanas e estrangeiras, a língua aimará de forma altiva, com toda sua
criatividade. E não é somente a língua que ocupa uma posição protagonística, mas um modo de existência andino e sua cosmologia, descritos e
apresentados de forma tão poética e não exotizada. Não por acaso, este é um filme inteiramente concebido e realizado por uma equipe aymara-
-hablante (CINE-SECUENCIAS TV, 2018). Wiñaypacha é um belíssimo filme que merece ser visto!

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Dossiê
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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 217-236 | Jan - Jul | 2021

FILMES

Wiñaypacha. Direção: Óscar Catacora. (Peru, 2017, 86 min.).

La nación clandestina. Direção: Jorge Sanjinés (Bolívia, 1989, 128 min.).

ENTREVISTAS

242 PELÍCULAS DESPUÉS. Entrevista a Óscar Catacora. 5 de dezembro de 2018. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=FyJd-W41uFg>. Aces-
so em: 30 de junho de 2020.

CINE-SECUENCIAS TV. Wiñaypacha / FICG 33. 2 de julho de 2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NVTgkjCOTeE>. Acesso em: 30 de
junho de 2020.

ENTREVISTAS CINESMERALES. Óscar Catacora (director de Wiñaypacha, la sorpresa del cine peruano). 29 de janeiro de 2019. Disponível em < https://

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www.youtube.com/watch?v=45615MhGWLo>. Acesso em: 15 de junho de 2020.

FOTOGRAMA GOURMET. Entrevista: Óscar Catacora, director de Wiñaypacha. 22 de abril de 2018. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=_
g45TKnYhcM>. Acesso em: 15 de junho de 2020.

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The Eternity in Wiñaypacha as an image of Andean thought

Abstract: Wiñaypacha (which means Eternity) — the first Peruvian feature film spoken entirely in Aymara — recently premiered, achiev-
ing tremendous success not only in Peru but also internationally. Directed by Óscar Catacora, a young Peruvian filmmaker of Aymara
origin, the film is a masterpiece due to both its aesthetic and narrative qualities. The purpose of this article is to demonstrate how the
film’s script and photography, also signed by the director, work as poetic and potent resources that are revealing of Andean thought
regarding, in particular, the idea of Eternity. Finally, it lays emphasis on how, with the success of Wiñaypacha, Andean peoples are now
protagonists in places where, thus far, they were mainly bound to subordinate roles.

Keywords: Image; Filmmaking; Landscape; Peruvian Andes.

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Recebido em 5 de setembro de 2020

Aprovado em 16 de maio de 2021

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236
> Hombres murciélagos de la Sierra
Nevada de Santa Marta. Masculinidades
indígenas y repatriación de imágenes
Resumen >
La producción y circulación de cine indígena en la Sierra Ne-
Sebastián Gómez Ruíz
vada de Santa Marta (Colombia), ha configurado masculi-
nidades indígenas que se vinculan con la imagen mítica del
Doctor en Sociedad y Cultura
murciélago. Los medios indígenas han permitido consolidar Universitat de Barcelona
redes nacionales y trasnacionales que constituyen unas cos-
mopolíticas que condensan temas relacionados con ser indí-
gena, el territorio, la cultura y la política de las imágenes. En
este artículo, se discute la repatriación de los archivos visuales
del Marqués de Waverin, al pueblo arhuaco en la que aparece
el líder Juan Bautista Villafaña (Duane) en los años treinta del
siglo XX, padre del documentalista arhuaco Amado Villafaña.
La repatriación de estas imágenes, es también una forma de Palabras clave >
acción política que se relaciona con la construcción de unos Cine Indígena; Repatriación de Imágenes; Sierra Ne-
reclamos en torno a la soberanía visual y la propiedad colec- vada de Santa Marta; Masculinidades Indígenas; Cos-
tiva, que les permite a los pueblos indígenas la posibilidad de mopolitismo.
(re)interpretar su memoria cultural; un terreno en permanente
disputa.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 237-261 | Jan - Jul | 2021

> Hombres murciélagos de la Sierra Nevada de Santa


Marta. Masculinidades indígenas y repatriación de imágenes
Sebastián Gómez Ruíz1
> gomezruiz1203@gmail.com
Universitat de Barcelona

Introducción

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El X Festival de Cine y Video indígena Daupará, Los espíritus de la imagen, de 2018, tuvo como anfitrión a tres de los cuatro pueblos indígenas de la
Sierra Nevada de Santa Marta (arhuacos, wiwas y kankuamos), en Colombia2 (FIGURA 1). El festival era un recorrido que empezaba en la ciudad
de Santa Marta, y que luego viajaba por diferentes asentamientos indígenas a lo largo de la Sierra Nevada. Entre los participantes del festival se
encontraban varios realizadores indígenas del ya disuelto Colectivo de Comunicaciones Zhigoneshi (palabra kogi que significa “yo te ayudo, tú me
ayudas”), como el realizador arhuaco Amado Villafaña, los realizadores wiwa Rafael Mojica y Saúl Gil, y el antropólogo Pablo Mora.

Después de pasar por el asentamiento wiwa Gotshezhi, llegamos al arhuaco de Kutunzama. Durante el recorrido se habían visionado diferen-
tes películas de cine indígena como Ranchería (2017), Ushui la luna y el trueno (2017), y Wàsi (2017), una película que habíamos hecho junto con

Dossiê
Amado Villafaña precisamente en Kutunzama. En la mañana, Amado me pidió el favor que le hiciera una entrevista en video para hacer un teaser
1 Doctor en Sociedad y Cultura de la Universidad de Barcelona. Master en Antropología Visual de la misma Universidad. Antropólogo y Magister en Antropología de la Universidad de los Andes.
Docente de la Maestría en Estudios Sociales y Culturales de la Universidad El Bosque.
2 La Sierra Nevada de Santa Marta (SNSM) es un macizo aislado de la Cordillera de los Andes de aproximadamente 17,000 kilómetros cuadrados ubicado al norte de Colombia. Alcanza las nieves
perpetuas (con su máxima altura a 5.775 msnm) a tan solo 45 km. Del Mar Caribe. Los cuatro pueblos indígenas (Arhuacos (Iku), Kogi, Wiwa y Kankuamos), habitan el territorio bajo la figura de
resguardos, la cual abarca los departamentos de Cesar, Magdalena y la Guajira, ubicados en sitios reconocidos como Parques Nacionales (Tayrona, SNSM y Teyuna). Así mismo, los cuatro pue- 238
blos indígenas provienen de la familia lingüística chibcha.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 237-261 | Jan - Jul | 2021

y buscar financiación sobre su próxima película, que trataría sobre su padre Juan Bautista Villafaña Mestre (Duane) (1895-1965) quién en 1916, en-
cabezó la primera comisión de arhuacos que viajaría a Bogotá a pedir la expulsión de los capuchinos. Así señala Amado Villafaña la importancia
personal de estos archivos en el teaser de Duane (2018): “Hay historias que no han sido contadas e imágenes que no conocíamos. Para mí fue una
sorpresa ver a mi padre joven. De 1930, creo que es el video y la fotografía. Recuerdo siempre a mi papá bastante mayor. Y cuando lo veo así joven,
es la primera vez que veo a mi papá así joven, en un video”.

Las imágenes a las que hace referencia Amado son las presentadas en las películas Le Marquis de Wavrin. Du Manoir à la Jungle (2017) de Grace
Winter, en la que aparece Duane jóven. Estas imágenes eran inéditas en el contexto colombiano y era la primera vez que Amado las veía ¿Cómo lle-
garon esas películas a las manos de Amado? El intercambio de imágenes funcionó como un don, que pasó por Kutunsama, Viena, para finalmente
encontrarse en el Festival de Cine de Cartagena en el 2019. Las imágenes, que habían sido tomadas en los años 30, serían repatriadas al colectivo
de comunicaciones arhuaco que su director Amado Villafaña utilizaría para hacer el teaser de su próxima película sobre la vida de su padre Duane.

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Figura 1 - Poster X Festival de cine y vídeo indígena Daupará (2018).
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 237-261 | Jan - Jul | 2021

En un inicio, las discusiones en antropología sobre cine indígena se centraron principalmente en la producción, las estéticas y el impacto que te-
nía el uso de la cámara en los pueblos indígenas, más que en la circulación. Desde 1966, cuando Sol Worth y John Adair (1999) hicieron que seis
indígenas navajos de Norte América usaran la cámara de 16mm para hacer una película, a los autores les interesaba ver otros códigos de repre-
sentación visual que se relacionara con un sistema de “ver el mundo”. Desde este trabajo pionero sobre la autorepresentación y la producción au-
diovisual indígena de los navajos, se ha discutido sobre las posibilidades conceptuales y políticas de estos procesos y sobre lo que significa “darle
la cámara al nativo”. Leuthold (1998) señalaba cómo las estéticas indígenas no buscan ser innovadoras necesariamente, sino más bien pretenden
reforzar la transmisión de tradiciones culturales. Para Cardús (2014) muchos de los realizadores audiovisuales indígenas no se identifican con
este abordaje, y existen en sus obras una búsqueda tanto de contenidos como de estética. Sin embargo, en estas dos perspectivas no se tiene en
cuenta el rol político que tienen los realizadores indígenas dentro de su comunidad y en el contexto global (SALAZAR, 2016).

Terence Turner (1991) estudió los kayapó de Brasil y su experiencia de producción audiovisual. El video kayapó contribuyó para que los indígenas
recuperaran sus tierras, las cuales iban a ser expropiadas; sin embargo, el trabajo de Turner fue criticado por James C. Faris (1992), quien señaló
que la representación de estas iniciativas constituía un proyecto occidental que destruía la subjetividad de los indígenas. Turner respondió argu-
mentando que los resultados de las luchas políticas de los kayapó han estado apoyados por sus videos, ganando diversos pleitos al Estado Bra-

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silero, referentes al control de sus tierras. Ginsburg (1992) ha saldado esta discusión desde dos paradigmas situados en las antípodas: el contrato
faustiano y la aldea global. El contrato faustiano parte de una idea tradicional de cultura vista como algo auténtico y esencialista, que es contami-
nada irremediablemente por el contacto cultural, la tecnología y la cultura de masas; por su parte, la aldea global parte de asumir que “los nuevos
medios” tienen el potencial de amalgamar diferentes culturas del mundo, creando así un sentido de comunidad global. Para Ginsburg (1992),
ninguno de estos dos modelos permite responder de manera compleja lo que ha significado la aparición de los medios indígenas. Otros autores,
como Cardús (2011), han argumentado sobre el falso empoderamiento que implica la apropiación de las “nuevas tecnologías”; a su vez, Gleghorn
(2012) ha llamado la atención sobre la inconveniencia de aplicar las mismas categorías y términos provenientes de tradiciones anglosajonas a
contextos culturales distintos, señalando cómo las acepciones corrientes de vanguardista, documental o etnográfico no son categorías “naturales”
y que, además, poco explican la creación audiovisual indígena.

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Los medios indígenas (indigenous media) han surgido como un proceso de domesticación de las tecnologías audiovisuales y como una forma
de resistencia y reafirmación de sus derechos. Ginsburg (2011) resume la importancia de los indigenous media de la siguiente forma: 1) Permiten
plantear preguntas en torno a la diferencia cultural. 2) Establecen una autonomía en la producción y circulación de imágenes. 3) Contribuyen a
entender los modos en que se manifiesta la alteridad radical desde la profundidad cultural, la cosmología, la política, la estética y cómo éstas son
negociadas en el mundo contemporáneo. 4) La incorporación de prácticas mediáticas como una forma de activismo cultural y político. 241
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 237-261 | Jan - Jul | 2021

En años recientes ha existido un auge por el estudio del cine indígena en Latinoamérica desde su producción y modos de representación (CÓR-
DOVA, 2011; MATEUS, 2013; MORA, 2015), y más recientemente desde su circulación, así como desde unas etnografías de los festivales de cine
indígena y muy rcientemente desde su y fueron enconttadas en Cartagena el Marques de Waberin. Est(DOWELL, 2006; VALLEJO Y PEIRANO,
2017). Sin embargo, son escasos los estudios sobre repatriación de imágenes (DOUGLAS Y HAYES, 2019), especialmente en el contexto latinoa-
mericano.

En este artículo me propongo argumentar que en la Sierra Nevada de Santa Marta se ha producido un tipo de masculinidades indígenas de co-
municadores, fotógrafos y documentalistas que, desde el activismo cultural, la autorepresentación, la soberanía visual y la repatriación de imáge-
nes, están dando cuenta de una interpretación nativa de sus realidades. Sus producciones audiovisuales, tienen un alcance cosmopolita desde
la consolidación de una redes nacionales y trasnacionales que constituyen formas de acción política. Estas no se restrieguen a los marcos de los
Estados Nacionales, sino que implican una agenda trasnacional que condensa discursos sobre lo que significa ser indígena, en relación con el ter-
ritorio, la cultura, la ecología y la política. Como señala Salazar (2016), la comunicación indígena permite la posibilidad de performar la indigeneidad
no solo discursivamente, sino desde prácticas audiovisuales. El concepto de indigeneidad, de acuerdo con De la Cadena y Starn (2009), y Jara-
millo (2014), denota una relación y una formación discursiva y no una identidad esencial. Se encuentra articulado con la formación de los Estados

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Nacionales, las diásporas contemporáneas, la relación con el espacio, y una permanente transformación histórica de lo que significa identificarse
como indígena. En este caso, se relaciona con la producción de cine. En efecto, la repatriación de imágenes se configura también como un lugar
de acción política que se relaciona con la construcción de una memoria propia en permanente disputa.

Este artículo se encuentra organizado de la siguiente forma. En la primera parte se muestra cómo fue la formación del cine y unas masculinidades
indígenas en la Sierra Nevada de Santa Marta, desde la creación del colectivo de comunicaciones Zhigoneshi, conformado por hombres, hasta su
fragmentación. En la segunda parte establezco una relación entre los comunicadores indígenas y la imagen mítica del murciélago (Yugo en lengua
Iku [arhuaca]), que se relaciona con la conformación de una agenda global indígena cosmopolita. En la tercera parte discuto los conceptos de
propiedad colectiva y soberanía visual a partir de las discusiones actuales y la interpretación vernácula de estos conceptos para los realizadores

Dossiê
indígenas. En la última parte cuento cómo fue el proceso de repatriación de las imágenes de Juan Bautista Villafaña (Duane) en los años 30, a
partir de un proceso de cine colaborativo que empezó con la creación del corto documental Wàsi (2017).

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1 Cine indígena y masculinidades en la Sierra Nevada de Santa Marta.

El año de 1999 fue un momento complejo en la Sierra Nevada de Santa Marta, de confrontación armada entre el ejército y la guerrilla del ELN
(Ejército de Liberación Nacional). En este contexto surgió la necesidad de crear un espacio político que diera lugar a los cabildos de las cuatro
organizaciones indígenas de la zona, que se denominó Concejo Territorial de Cabildos (CTC). La consolidación del CTC les permitió a los indígenas
articularse de cara a sus reivindicaciones políticas y culturales, lo que constituyó la base organizativa que permitiría la conformación del colectivo
Zhigoneshi. En ese contexto, en los años ochenta y noventa aparecen los primeros trabajos de comunicación con el programa de radio en la “La
voz del Cañaguante”, que se emitía todos los sábados en su programación. Al principio era en castellano y después en versión bilingüe. En 1985
fue cuando se utilizó por primera vez la palabra Zhigoneshi para un proyecto en el que se hicieron las primeras ediciones de Palabra de Mamo, que
eran unas cartillas impresas en papel reciclado traducidas al castellano con relatos de los mamos sobre la creación de la naturaleza (IRIARTE DÍAS
GRANADOS Y PÉREZ, 2011). A finales del 2002, nuevamente por causa de enfrentamientos entre la guerrilla y el ejército, cerca de las cuencas del
río Guatapurí, Amado Villafaña, el gobernador Rogelio Mejía y el Mamo José de Jesús Izquierdo decidieron que era necesario trasmitir el pensa-
miento de los hermanitos mayores (indígenas): “Tenemos que trasmitir el pensamiento de nosotros porque ¿qué vamos a hacer con esta gente? No

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nos podemos armar para defendernos porque los principios están en contra de eso. Lo que hay es que comenzar a trasmitir hacia afuera lo que está
pasando” (IRIARTE DÍAS GRANADOS Y PÉREZ, 2011, p. 82).

A finales del 2003, Amado Villafaña, después de dejar su territorio en Sabana Crespo por amenazas de la guerrilla del ELN conoce en Santa Mar-
ta a Stephen Ferry, fotógrafo de la National Geographic interesado en hacer un documental, que finalmente realizó con los miembros de lo que
sería el colectivo Zhigoneshi, con el título La represa del río Ranchería. La perspectiva indígena de la Sierra Nevada de Santa Marta (2009). Con
su colaboración, lograron obtener 30 mil dólares presentando un proyecto a la Embajada de Estados Unidos para conformar el primer equipo de
comunicaciones indígena. En el 2006, Amado Villafaña conoció al antropólogo y documentalista Pablo Mora en Cartagena. A través de él se hace
un contacto con la Fundación Avina3 y junto con el apoyo de la Unión Europea, destinan recursos para crear formalmente Zhigoneshi, que empezó
en el 2007 con el “Encuentro Taller de sensibilización de la Estrategia de Comunicación”.

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El proceso de formación continuó y algunos de ellos siguieron capacitándose de manera independiente y especializándose en las técnicas y el
manejo de equipos como la cámara, el sonido y los computadores; mientras otros, por las dificultades del trasporte a Santa Marta, decidieron no
continuar. En el 2008, Amado volvió a reunir a algunos de ellos en la casa indígena de Santa Marta, en donde se encontraba Pablo Mora. Así se
empezaron a perfilar los primeros proyectos audiovisuales, con un taller de capacitación en la sala Matriz de la Universidad Javeriana. El colectivo
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3 Fundación Avina, es una ONG Latinoamericana enfocada en generar y apoyar procesos colaborativos. Fue fundada en 1994. En: https://es.wikipedia.org/wiki/Fundaci%C3%B3n_Avina.
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además de publicar varios documentos (cartillas, libros, revistas, folletos), produjo en un principio, varios videos, reportajes y una serie de televi-
sión titulada Palabra Mayor (2009), emitida por Telecaribe. En esta serie se entrevistaban a diferentes mamos sobre temas como el agua, la hoja
coca, la violencia, entre otros. Este fue un trabajo muy importante en términos de traducción y síntesis del pensamiento de los mamos.

Para los miembros de Zhigoneshi, el trabajo de formación les permitió viajar a Bogotá a la Universidad Javeriana, y tener un asesoramiento técni-
co del manejo de cámaras, narrativa y sonido. Este evento es mostrado en el documental de Pablo Mora Sey Arimaku: la otra oscuridad (2012) en
el que los realizadores indígenas se encuentran en Bogotá y caminan por la ciudad hacía la sala Matrix. En la escena se cruzan miradas y varías
cámaras registran el momento: la de los periodistas del noticiero CM&, la del antropólogo Pablo Mora, al igual que las cámaras mismas de los in-
dígenas. Sin embargo, más allá de la posibilidad de viajar a Bogotá y tener unos procesos de formación a nivel técnico y narrativo, para los jóvenes
realizadores del Zhigoneshi, participar en el colectivo significó reconocer el territorio de la Sierra Nevada, acercarse al conocimiento de los mamos
y afianzar su identidad como indígenas.

La ruptura de Zhigoneshi no ha sido documentada por ninguna película y tal vez su origen como colectivo resulta más cinematográfico que su
desintegración. En la película Retratos de una resistencia indígena (2015), el realizador kogi Silvestre Gil, dice lo siguiente sobre la separación:

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entonces, en un principio la idea era entre los cuatro pueblos. Wiwa, Kogis, Arhuacos y Kuankuamos, que se unificaran uno solo, para poder manejar,
dar una comunicación clave de los cuatro pueblos para el mundo occidental. Pero cada uno dentro de la organización empezaron a tener su equipo
y así nos empezamos a dividir.

Cada miembro de Zhigoneshi tiene una versión propia de los motivos de la separación. De acuerdo con Amado, todo empezó porque los kogis
querían sacar de la casa indígena de Santa Marta a los wiwas y a los arhuacos. Los kogis tienen más representantes en Santa Marta y se han de-
jado influenciar más por los buncahis (no indígenas). Otro de los motivos, de acuerdo con Amado, es que Alan Ereira (director inglés de la BBC),
quería hacer otra película en la Sierra Nevada. En un principio, trataron de negociar la autoría y la producción con los miembros del Zhigoneshi,
pero, como se muestra en la película Sey Arimaku: la otra oscuridad, no llegaron a ningún acuerdo. Así que Alan Ereira decidió negociar la película

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solo con los kogis y el realizador Silvestre Gil, sin el consentimiento de los otros miembros del colectivo. La película terminaría siendo Aluna (2012).

El liderazgo de Amado Villafaña dentro del colectivo y su mayor visibilidad y asistencia en los festivales, en comparación con los otros miembros
wiwas y kogis, generó cierta resistencia entre los miembros del grupo, lo cual finalmente hizo que cada uno tomara un camino separado. Sin em-
bargo, más allá de los conflictos personales y las tensiones internas, para Pablo Mora, la separación constituyó un tema más estructural en la forma
de organización política y territorial. Con la creación moderna del Concejo Territorial de Cabildos (CTC) de los cuatro pueblos indígenas, como una 244
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forma de interlocución con el Estado y la empresa privada, han existido disputas internas en torno a los recursos y las regalías que finalmente tuvo
una resonancia al interior de Zhigoneshi.

Después de que los kogis abandonaron Zhigoneshi, los wiwas y los arhaucos también decidieron separarse y armar sus propios colectivos:
Bunkuaneyuman y Yosokwi, respectivamente. Estos dos colectivos han realizado varias películas de manera separada. Aunque estos dos todavía
cuentan con la asesoría de Pablo Mora, existen diferencias de estilos, temas y abordaje. El colectivo wiwa Bunkuaneyuman se creó en el 2011 y
la palabra en wiwa significa: “lenguaje para una mejor comunicación” y el colectivo arhauco Yosokwi es un ave del mundo espiritual que imita
todas las aves. Los dos colectivos empezaron a usar steadycams y planos secuencia, que logran darle fluidez a los recorridos que realizan. Las
películas de Bunkuaneyman, tratan temas propios de los wiwa y se destaca el protagonismo de las mujeres. Mientras que Yosokwi, también hizo
otras películas como Naboba (2015) y Butisinu. Memoria de un Pueblo (2016), que aborda temas sobre la laguna sagrada, el cambio climático y la
historia reciente del pueblo arhuaco. Las películas de Bunkuaneyuman y Yosokwi, que aparecen con la fragmentación, tienen un nivel técnico en
el manejo y la nitidez de la imagen mucho más elaborado que las películas de Zhigoneshi. Esto no se debe simplemente a una reconversión de
la tecnología análoga a la digital, que permite un mejor manejo de la imagen, sino sobre todo a la experiencia y la capacitación técnica y narrati-
va de los realizadores indígenas. La experiencia cinematográfica es también, en muchos sentidos, una experiencia ritual en la que se performan

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los pagamentos4 (tema clásico de las películas de la Sierra Nevada), y es desde la representación audiovisual que se trata de comprender estos
procesos internos espirituales.

Los kogis, por su parte, decidieron tomar otro camino y no formaron ningún colectivo de comunicaciones. Siguiendo la estrategia de los años
ochenta, terminaron apoyando la realización de la película Aluna (2012) de Alan Ereira, que si bien es una película en la que los realizadores indí-
genas no son autores, sí existe una participación de ellos en otras instancias de la producción. En los créditos de la película, por ejemplo, apare-
cen el wiwa Rafael Mojica y el kogui Silvestre Gil como cámaras auxiliares. En una escena, en voz en off, Alan Ereira reflexiona sobre su anterior
acercamiento, retratado en películas como Corazón del Mundo (1991), y “descubre” que los kogis han aprendido a utilizar la cámara y de hacer
una película sin mencionar la historia del Zhigoneshi. En efecto, existen varios elementos de esta película, que no hubieran sido posibles sin la

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experiencia previa del Zhigoneshi: Primero: la integración de los indígenas como parte del proceso de producción. Segundo, la presentación del
idioma kággaba de forma diegética, cosa que en el Corazón del mundo (1991) era doblada. Tercero, la representación del mamo indígena como
alguien que viaja hasta Londres y crea itinerarios propios, donde no solamente se trata del desplazamiento del hombre blanco hacia los territorios
indígenas como sucede en el Corazón del mundo (1991).
4 El pagamento es un rito, que consiste en un pago o una retribución a los padres espirituales (montañas, ríos, imágenes etc.), desde la intermediación de los mamos. Se hace un pagamento,
como una prácticas religiosa y espiritual para desarrollar una determinada actividad. Para esto, se parte de una conexión con los lugares, el espíritu, objetos (algodón, fibras, piedras) y prácticas 245
(canto y música).
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Los mamos, en tanto que agentes espirituales y políticos, son comunicadores que unen el mundo de lo humano, con el mundo de lo no humano.
Para sus ritos usan objetos que cargan con la suma de unos determinados trayectos y tacticidades, que se vuelven nodos de comunicación es-
piritual. Los mamos se encuentran investidos de una legitimidad colectiva que les da su andar, su trasegar y su persistencia. Se podría decir que
los miembros de los colectivos de comunicación emulan el rol de los mamos con el uso de herramientas no tradicionales, pero partiendo de un
sistema de creencias y prácticas tradicionales. Su rol es comunicar, traducir y sintetizar el conocimiento ancestral desde el video y el sonido. Para
esto, trasportan imágenes, de un lugar a otro. Crean nodos de comunicación desde lo intangible, para transformar lo tangible. Son maestros de la
luz y logran iluminar lo que es invisible para el hermanito menor (no indígenas). Se acercan al mundo de las sombras y desde allí unen dos tiempos:
el tiempo de la Ley de Origen que trasmiten los mamos y el tiempo de las imágenes reproductibles. La comunicación se traza desde unas directri-
ces en la que los hombres indígenas traducen el conocimiento. Esto no significa que el poder de traducción sea exclusivo de los hombres como lo
muestra el caso de las sagas5 en los wiwa, o de mujeres que son portavoces políticas como Leonor Zalabata en el pueblo arhuaco6. Se trata, más
bien, de una forma como la comunicación reproduce regímenes de género. La masculinidad indígena, como lo señala, Días (2014) y Pérez (2003),
se asienta en un estatus social que se vincula con los modos de producción cultural, sobrevivencia y reproducción de los pueblos indígenas.

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2 Hombres murciélagos y cosmopolitismo

En el Museo del Oro de Bogotá se encuentra una escultura en oro de un hombre murciélago de la antigua cultura Tayrona7. Se trata de un objeto
antropomorfo que tiene dos tucanes en la cabeza, una nariguera y cuatro espirales que lo adornan. El hombre murciélago, dice la inscripción,
alude probablemente a chamanes o sacerdotes que podían tener vuelos extáticos por el cosmos. Los hombres murciélagos tienen la capacidad
de acceder al mundo de la sombra y ver en el día y la noche. Los mamos de la Sierra Nevada de Santa Marta, al igual que los antiguos hombres
murciélagos, en su proceso de formación, se recluyen por temporadas en cuevas y por medio de la meditación profunda y el ayuno, adquieren la

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capacidad de transitar por otros mundos, de estar en dos lugares a la vez y comunicar su conocimiento proveniente del mundo espiritual. El con-
sumo de la hoja de coca (ayo), por parte de los mamos, está relacionado con los vuelos extáticos, tanto metafóricamente, como en sus recorridos
5 Las sagas son mujeres de conocimiento entre los wiwa que tienen un rol similar al de los mamos.
6 La comunicación del mundo-aldea (SEGATO, 2016), con el mundo no indígena, no es un mandato exclusivo de la masculinidad indígena. Por el contrario, el rol de las mujeres es protagónico en
ámbitos como la producción de mochilas y todas las redes internacionales que se tejen desde ahí. En efecto, en el ámbito de la comunicación son cada vez más mujeres indígenas las que hacen
parte de los colectivos de comunicación en la SNSM, aunque no con el mismo protagonismo.
7 La cultura Tayrona (500-1500 D. dc) desarrolló su civilización hacía los valles de la Sierra Nevada, empujados por las tribus guerreras. Se asentaron en la vertiente occidental del Río Frío hasta 246
el Río Garavito. Se considera que los actuales indígenas arhuacos, kogis y wiwas son descendientes de los extinguidos Tayronas (OROZCO, 1990, p. 35).
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cotidianos. La hoja de coca (ayo) les permite caminar las montañas sin cansarse y les quita el hambre. Los mamos se comunican con el mundo
espiritual y el mundo terrenal, por eso están siempre dispuestos a la escucha y hablar cuando se les solicita. Al parecer, los mamos no son los úni-
cos con este poder. Los realizadores audiovisuales de la Sierra Nevada como traductores del conocimiento de los mamos, también han adquirido
el poder de la omnipresencia y la inserción en el mundo de las sombras. Con el manejo del cine, se han hecho conocedores de la luz y han podido
revelar sus intensidades y oscuridades. Por medio de sus películas pueden viajar por otros territorios y estar en dos lugares al mismo tiempo: ir al
mundo de las tinieblas y traducir el conocimiento de los mamos.

Durante el trabajo de campo en Kutunzama, en una de mis conversaciones con el mamo Camilo Izquierdo (FIGURA 2), le pregunté sobre los
murciélagos. En iku (lengua arhuaca), murciélago se dice Yugo y en plural Yuguyina. De acuerdo con el mamo, existen varios tipos de murciélagos
como: el Yugo Bunsi (murciélago blanco), Yugo siti (murciélago rojo), Yugo bursino (murciélago pintado) Yugo tuicaba (murciélago negro). Cada
uno tiene un significado particular. Los murciélagos son animales sagrados y son mensajeros. Cuando aparecen, simbolizan que algo va a pasar,
su presencia tiene connotaciones de augurio: el anuncio de un hecho futuro o pasado, de acuerdo a cómo se interprete. Así me lo dijo el Mamo
Camilo: “los Tayronas habían creado todos los animales, de todos los países. Los murciélagos, son presagios, aparecen cuando algo va a suceder.
Los murciélagos son buenos. Pueden aparecer cuando se dan calamidades o para anunciar algo, que puede ser bueno o malo”. La aparición de los

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hombres murciélagos de Zhigoneshi ha implicado un presagio, un llamado de atención frente al cuidado de la Sierra Nevada y su inminente des-
trucción; su aparición también fue la posibilidad de acercarse a los mamos, de escucharlos, de verlos, no solo de forma local, pues su imagen se
empezó a reproducir en otras partes del mundo.

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Figura 2 - Mamo Camilo Izquierdo, Kutunzama, Magdalena, Colombia (O autor, 2015)
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Desde los años noventa, los indígenas en Latinoamérica se han convertido en actores políticos relevantes, gracias en parte a las plataformas or-
ganizativas mono o pluriétnicas, a nivel nacional e internacional, articulando de esta forma una identidad colectiva “indígena” capaz de convertirse
en un vector político de primer orden (MARTÍNEZ Y BRETON 2015). Los realizadores indígenas han hecho del lenguaje audiovisual un medio para
establecer conexiones y comunicar temas relacionados con su territorio, trascendiendo así sus propias fronteras. El cosmopolitismo, entendido
así, no hace referencia a los ideales de la ilustración, universalistas, que suponen ser “ciudadanos del mundo”, ni bebe del liberalismo y elitismo de
una tradición eurocéntrica y colonial. Este “nuevo cosmopolitismo” hace énfasis en la empatía, la tolerancia y el respeto de otras culturas y valores
(WERBNER, 2008). Contrario a las ideas de globalización que hacen énfasis en la libre circulación de mercancías, el cosmopolitismo vernáculo,
retoma el concepto de Gramsci (1974) de intelectual orgánico y se sitúa en actores pertenecientes a contextos poscoloniales que se comprometen
con ideas cosmopolitas y movimientos más allá de sus inmediaciones locales (WERBNER, 2008).

Para Graeber (2008) la producción de prácticas democráticas (democratic practices), designan procesos igualitarios y de autogobernanza desde
la arena de la discusión pública para administrar asuntos propios. Esto es posible en espacios cosmopolitas (cosmopolitan space), en los que
confluyen personas con diferentes tradiciones y orígenes. En estos espacios se improvisan formas de acción colectivas fuera de la supervisión o
el consentimiento del Estado. Para Hodgson (2008), la cosmopolítica es una de las formas que ha tomado el activismo indígena para mediar las

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relaciones con el Estado y las presiones del neoliberalismo en su territorio, desde un posicionamiento político que se compromete con luchas
sociales trasnacionales. Este tipo de articulación en red, configura un tipo de etnicidad cosmopolita (cosmopolitan ethnicity) que adopta lo étnico
como lugar de encuentro. Esto les ha permitido a los movimientos indígenas compartir experiencias y así construir estrategias para interpelar a
los estados nacionales. Sin embargo, como advierte Hodgson (2008), este activismo trasnacional no se traslada necesariamente a un reconoci-
miento dentro de la propia Nación, ni en el mismo pueblo. En consecuencia, las estrategias de lucha y autorepresentación cambian dependiendo
los escenarios en los que se encuentran.

Un ejemplo de esta praxis política está en el control de las imágenes desde su producción y circulación, lo cual supone unas formas de autode-
terminación que tienen un anclaje en las luchas asociadas al territorio y la memoria, y en últimas, a las luchas en torno a temas como la soberanía

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visual, la propiedad colectiva y la repatriación de imágenes. Los medios indígenas producen significados sobre lo indígena que tienen un alcance
global. La producción de imágenes por parte de los colectivos de comunicación indígena permite un despliegue performativo del ser indígena
desde prácticas cotidianas, que se enclavan en políticas de la distribución y el reconocimiento o mejor, como aclara Salazar (2016), de la autode-
terminación y la autorepresentación. Esta agenda política planetaria o cosmopolítica, toma unas formas de acción que abarcan la trama de lo legal
y los movimientos sociales en escenarios locales, pero que, al hacer uso de imágenes fotosintéticas, les permite crear alianzas trasnacionales, que
amplían espacialmente su acción y experiencia política. 249
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Cuando conocí a Amado Villafaña me intrigaba su presencia, sus palabras. Me parecía un comunicador indígena que se podía mover entre varios
mundos: los padres espirituales, los mamos, su comunidad, y al mismo tiempo, entre los colombianos, extranjeros y el mundo no indígena. Esta
posibilidad de movilidad, tanto geográfica, como personal y lingüística, le da una capacidad de comunicarse, de transitar diferentes dimensiones
que atraviesan las relaciones complejas del mundo indígena. Hacer películas, viajar dentro de su territorio, por Colombia y otros países, lo han
convertido en un líder en su comunidad, pero también un nativo cosmopolita. El transitar la Sierra Nevada y el mundo entero es una continuación
de sus caminos de juventud, cuando me decía que se la pasaba “de aquí para allá”. La imagen del murciélago (yugo) crea una relación, no solo con
él como persona y su capacidad de estar en varios lugares, sino con la misma naturaleza del cine: la capacidad del murciélago (yugo) de ver en
la oscuridad, la ubicuidad de la imagen y la comunicación con el mundo, como si de un presagio se tratara que busca advertir sobre la necesidad
de volver al cuidado de la montaña y el agua. En su cine hay un gesto de autonomía y vitalidad que desafía las formas, los convencionalismos, la
mirada de los antropólogos, los documentalistas, los fotógrafos y los capuchinos que habían representado tradicionalmente a los indígenas de la
Sierra Nevada. No solo Amado Villafaña, sino Rafael Mojica, Saúl Gil, Silvestre Gil, Berni Gutiérrez y Pablo Mora son hombres murciélagos (yuguyi-
na) que anuncian un augurio, que vuelan por las montañas, mueven la tierra y de pronto, cuando menos lo esperan, logran comunicarse con los
padres espirituales de la imagen.

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3 Soberanía visual y Propiedad Colectiva

¿A quién pertenecen las imágenes? ¿Quién es el dueño de la cultura vernácula? Entre poblaciones indígenas, étnicas, académicos y activistas, se
viene hablando desde los años ochenta sobre protección al patrimonio cultural, propiedad colectiva y el derecho exclusivo o parcial de los pueblos
sobre su historia y sus costumbres (BROWN, 2003; COMAROFF, 2011). Estas discusiones, según los Comarroff (2011), plantean dos puntos de vista
a nivel teórico: por un lado, una defensa romántica de la imaginación individual, en la que se valora la creación de los sujetos, por otro lado, una

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orientalista en torno a la autenticidad sobre los objetos que producen los pueblos originarios.

En Colombia, en abril de 2017 el Consejo Nacional de Patrimonio Cultural (CNPC) precedido por la Ministra de Cultura, incluyo en la lista de patri-
monio cultural inmaterial el Sistema de conocimientos ancestral de los pueblos kogui, wiwa, arhuaco y kankuamo. De la misma manera, en el cam-
po audiovisual, desde la Mesa Permanente de Concertación de los Pueblos y las Organizaciones Indígenas (MPC), se ha planteado la necesidad de
una política pública de comunicación indígena en Colombia. Se argumenta la defensa del patrimonio material, inmaterial e icónico y la creación 250
de mecanismos para que se proteja la propiedad intelectual colectiva de los pueblos indígenas con el fin de resaltar, proteger y revitalizar la co-
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municación propia (BOLETÍN INFORMATIVO ESPECIAL, 2017). En efecto, como sostienen los Comaroff (2011) muchas de estas reivindicaciones
en torno a la propiedad colectiva de los pueblos indígenas en el mundo y en Colombia se han dado desde la esfera de la ley y la jurisprudencia.
Sin embargo, uno de los riesgos de esta defensa jurídica es lo que han denominado como fetichismo de la ley, que consiste en una dependencia
de los procedimientos e instrumentos judiciales para resolver los problemas de lo étnico, a partir de guerras jurídicas, que han reducido lo social
a lo contractual. Se trata de un viraje hacia la judicialización de la política. En el caso de los audiovisuales de la Sierra Nevada, las luchas a nivel
jurídico por la propiedad colectiva están acompañadas por prácticas de soberanía visual en las que se tiene un control en torno a la producción y
circulación de las imágenes.

Preguntarse por los derechos de la imagen de los pueblos indígenas significa pensar lo visible y lo invisible de la representación audiovisual. En
el caso de la película de los colectivos indígenas de la Sierra Nevada, lo que se quiere “mostrar” es un territorio sagrado, la comunidad y el eco-
sistema. Sin embargo, esto tiene un doble filo que sitúa el acento en los límites de la representación y el conocimiento: por un lado, se visibilizan
y denuncian las problemáticas de un territorio y, por el otro lado, se “desnuda la tierra” o como señala Amado: “Para nosotros los indígenas la foto-
grafía extrae la espiritualidad de lo que se está retratando”.

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Los regímenes de autorepresentación de los indígenas de la Sierra Nevada han implicado un proceso de “alfabetización visual” en la producción,
recopilación y circulación de imágenes y videos, que ha permitido, como señala De Largy Healy (2013), una suerte de soberanía visual en cómo se
muestran, se narran y se representan los indígenas, no desde las miradas hegemónicas, sino desde sus propios términos de visibilidad e invisibi-
lidad. No se trata solo de un cambio en las formas de producción en el que los indígenas ahora son los realizadores y narran sus propias historias,
sino que este proceso de “autoría y autoridad” de la imagen se desplaza al control mismo de la circulación de las imágenes y los videos. No es
casualidad que sus documentales, reunidos en un plegable de ocho DVD de sus trabajos (2007-2013), solo se puedan comprar en Santa Marta y
además no circulen en la red o solo de manera fragmentada, como lo explica Amado Villafaña:

bueno hay una cuestión del manejo de la imagen y del conocimiento que es de propiedad colectiva. Entonces, inicialmente si yo monto algo en las
redes, un producto, pues la gente lo va a bajar y ya es de la gente. Desconocía que el derecho de autor es algo que se respeta, la gente no puede

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estar usándolo. No puede cogerlo así no más.

Los términos de la discusión no se plantean exclusivamente desde “la propiedad intelectual” que remiten a unas formas individualizadas de
“autor”, sino que hacen parte de unas ideas colectivas de propiedad, en la que se busca de manera estratégica una mayor autonomía, poder y
soberanía, tanto en la producción como en la circulación de las imágenes (GÓMEZ RUIZ, 2018). Su lucha tiene asidero en la búsqueda de meca- 251
nismos jurídicos de protección de la propiedad colectiva y en la creación de una política pública de comunicación indígena, pero también en sus
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prácticas políticas en las márgenes del Estado desde la producción y circulación de la imagen, en la que reside una soberanía y autonomía sobre
su conocimiento.

4 Repatriación de imágenes. Wàsi y el Marqués de Waberin.

Entre el 4 y el 10 de mayo de 2018 se celebró el Ethnocineca, International Documentary Film Festival en Viena, Austria. Allí tuvimos la oportuni-
dad de participar con el documental Wàsi (2017). En la portada del catálogo se encontraba una foto en la que aparecía Juan Bautista Villafaña
(Duane), papá de Amado Villafaña, junto con Marques de Wavrin; y en otro lado, Amado junto con el mamo Camilo Izquierdo (FIGURA 3). Este
encuentro permitió que se estableciera una conversación con Grace Winter, la directora de la película del Marques, y se generara un proceso de
repartición de imágenes que finalmente se cristalizó con el encuentro de Amado Villafaña y Grace Winter en el festival de cine de Cartagena 2019,
en la sección “El cine y los pueblos indígenas” en el que se hizo entrega de estos archivos visuales de forma oficial, en dónde la conversación fue

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mediada por la realizadora wayuú Leiqui Uriana. Este proceso da cuenta de cómo el trabajo colaborativo de la producción de cine no se planeta
exclusivamente durante la producción en momentos como la construcción del guion, la filmación, y el montaje, sino también como intermediario
en los procesos de circulación, en los cuales emergen unas políticas de la mediación y la colaboración (MORA, 2015; LARCERDA, 2018). Estos
procesos se articulan en un mayor activismo internacional por parte de los realizadores indígenas en torno a la recuperación de archivos visuales
y la revitalización de su memoria.

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Figura 3 - Programa International Documentary Film Festival Vienna Ethnocineca (2018).
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Wási (2017), es un corto documental en el que se narra la historia de un día de ver(se) en la comunidad arhuaca de Kutunzama (Magdalena). De
la mano de Amado Villafaña, nos adentramos en lo que significa el “ver” para los Arhuacos. A partir del visionado de fotografías históricas y las
películas (El Valle de los Arhuacos, 1964 e Ika Hands, 1988), nos acercamos a cómo se ha representado visualmente desde afuera al pueblo arhuaco
y cuál es la interpretación que Amado tiene de estos archivos visuales, en un ejercicio de ver, verse y representarse. La producción de Wàsi (2017)
había constituido un trabajo colaborativo, la técnica principal que se utilizó para detonar el diálogo fue la elicitación, permitiendo un intercambio
de imágenes que continuo durante el proceso de circulación del documental en festivales.

La producción de Wàsi (2017) fue negociada desde su proceso de creación, hasta la producción, filmación, montaje y circulación. De acuerdo con
Lacerda (2018), el trabajo colaborativo en el cine indígena no es solamente una técnica o metodología de investigación, sino implica una posición
ética y política que compromete al cineasta como mediador. En el caso de Wàsi (2007), el proceso colaborativo no solo se situó en la recuperación
de archivos visuales en la preproducción como sucedió con la película Ika Hands (1988), traída de la Universidad de Manchester; la visualización
de estos archivos en el asentamiento de Kutunzama, y lo que significó la producción de la película, sino que el mismo proceso colaborativo se
desplazó a los festivales de cine indígena. Ejemplo de esto fue el premio que recibió Amado Villafaña en Chile por Wàsi (2017), en el festival Ficwall-
mapu (2017), por aporte a la identidad indígena. Pero especialmente el trabajo más importante en términos de intermediación fue la posibilidad de

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repatriar las imágenes que el Marqués de Waberin tenía del pueblo arhuaco grabadas entre los años veinte y treinta con el encuentro que tuvimos
con Grace Winter en Viena y la posterior mediación de Pablo Mora y Bastien Bosa para que se diera el encuentro oficial en el Festival de Cine de
Cartagena (2019). En efecto, desde el festival Los espíritus de la imagen (2018), Amado tenía claro que estos archivos constituían una lucha por la
memoria y el territorio del pueblo arhuaco y así lo hizo saber en el teaser de Duane (2018):

Hay unos antecedentes históricos de la lucha del pueblo arhuaco. Nosotros no hablamos de una persona, sino del pueblo. Hay personas que han
venido liderando en su época y el de Duane, es una época muy dura en donde se establece la misión capuchina... Yo diría que es importante que la
historia sea contada por nosotros mismos y eso también tiene un valor. Para que la generación que viene, va a tener ese banco de archivos para tener
un camino y continuar esa lucha en la defensa del territorio y la cultura.

Dossiê
Al interior del pueblo arhuaco la figura de Juan Bautista Villafaña (Duane), resulta problemática. En 1916 viajó una comisión de arhuacos a Bogotá
liderada por Duane para reunirse con el entonces presidente José Vicente Concha (BOSA, 2016). Los arhuacos le reclamaban al Estado la pérdida
de autonomía política y la posibilidad de nombrar autoridades propias, demandado así un derecho a pertenecer al Estado-Nación. Sin embargo,
de acuerdo con Bosa (2016) a la larga esta visita lo que significó fue un detrimento del poder de los arhuacos y un despojo de sus tierras “al otór-
gales a los misioneros y a las autoridades civiles nuevas competencias y un poder caracterizado por su alto nivel de discrecionalidad” (BOSA, 2016, 254
p, 120). Esto hizo que todos los inspectores de la década de 1920 fueran colonos, ya que ningún arahuaco estaba en posición de asumir dicha au-
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toridad. Los resultados de esta comisión lo que hicieron fue “institucionalizar aún más la sujeción de los indígenas frente a las autoridades estatales
y religiosas” (BOSA, 2016, p, 121). Para Amado, la posibilidad de tener estas imágenes, significa re contar la historia de su padre y darle el lugar que
se merece al interior de su pueblo.

El trabajo de repatriación de imágenes sigue siendo un proceso lento, con muchas limitaciones al acceso de estas imágenes, generalmente li-
deradas por museos o instituciones de los Estados-Nacionales (DOUGLAS Y HAYES 2019). Sin embargo, existen procesos de repatriación de
imágenes donde desde la producción de películas se construyen unas formas de acción y mediación que, en algunos casos, se encuentran en las
márgenes del Estado, que parten de procesos autónomos construidos desde la colaboración entre indígenas y no indígenas. Estos procesos se
anclan en la consolidación de unos intercambios que tejen unas redes de colaboradores y alianzas nacionales e internacionales que han hecho
que el cine indígena se constituya como una forma de acción política frente a la memoria y el territorio. En efecto, la memoria es un lugar de dis-
puta al interior de los pueblos indígenas como lo muestra la figura de Duane y el acceso a estos archivos lo que hace es mostrar la complejidad y
las tensiones en las que se mueve la repatriación de imágenes.

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Conclusiones

Las imágenes son nómadas y omnipresentes, es decir que pueden circular en diferentes partes del mundo y de manera simultánea; también ocu-
pan un lugar concreto, es decir son corporales y mediales (BELTING, 2007). Estas características de la imagen se han entroncado con la configu-
ración de unas masculinidades indígenas o como señala Rivera Cusicanqui (2015), unos sociólogos de la imagen, que han ampliado espacialmente
su experiencia política en la modernidad indígena. Los comunicadores indígenas de la Sierra Nevada se vinculan con la imagen mítica del murcié-
lago de la cultura Tayrona, que puede estar en varios lugares al mismo tiempo y se vuelven traductores del conocimiento de los mamos como lo
muestra la serie Palabra Mayor (2009). La imagen del murciélago, es también la aparición de un presagio, de un llamado en torno al cuidado del

Dossiê
agua y unas agendas cosmopolitas que se despliegan con el cine.

El activismo cultural por medio de la producción audiovisual indígena, supone una forma de entender la política cultural desde la creación, pro-
ducción, distribución y la organización de base de los colectivos (OCHOA 2002). Este activismo, parte de una democratización de las comunica-
ciones que Rodríguez (2009) denomina “medios ciudadanos”, y que en la práctica se articula estratégicamente con programas de fomento estatal
e internacional, pero que también se mueve en otros lugares, como las redes trasnacionales y en alianzas personales.
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La circulación de las películas en festivales de cine, como en el caso de Wàsi (2017), ha puesto en escena una agenda indígena que se relaciona
con la autorepresentación, la soberanía visual y la repatriación de imágenes. Este último, es también un lugar de acción política que apela la cons-
trucción autónoma de la memoria, que está en permanente disputa al interior de los mismos pueblos. La repatriación de imágenes es la posibilidad
de darle nuevos significados, de recrear e inventar su pasado, presente y futuro.

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DESDE el Corazón del Mundo. Un mensaje de los hermanos mayores. Dirección de Alan Ereira, 90 min. Inglaterra: BBC, 1990.

EL valle de los Arhuacos. Dirección de Vidal Antonio Rozo, 70 min. Colombia, 1964.

IKA Hands. Dirección de Robert Gardner, 60 min. Estados Unidos, 1988.

LA represa del río Ranchería. La perspectiva indígena de la Sierra Nevada de Santa Marta. Dirección de Stephen Ferry, 20 min. Estados Unidos, 2009.

LE marquis de wavrin. du manoir a la jungle. Dirección de Grace Winter y Luc Plantier, 85 min. Bélgica, 2017.

NABOBA. Dirección de Amado Villafaña, 60 min. Colombia: Colectivo de Comunicaciones Arhuaco Yosokwi (CCAY), 2015.

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PALABRA Mayor. Dirección de Colectivo de Comunicaciones Zhigoneshi, 7 min. Colombia, 2009.

RANCHERÍA. Dirección de Amado Villafaña, 31 min. Colombia: Colectivo de Comunicaciones Arhuaco Yosokwi, 2017.

RETRATOS de una resistencia indígena. Dirección de Myriam Laalej y Messaline Porchet, 60 min. Francia y Colombia, 2015.

USHUI la luna y el trueno. Dirección de Rafael Mojica, 71 min. Colombia: Colectivo de Comunicaciones Wiwa Bunkuaneyuman, 2017.

WÀSI (ver). Dirección de Sebastián Gómez Ruiz y Amado Villafaña Amado, 17 min. Colombia: Colectivo de Comunicaciones Arhuaco Yosokwi y Antro pò, 2017.

Dossiê
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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 237-261 | Jan - Jul | 2021

Os homens morcegos da Serra Nevada de Santa Marta. Masculinidades indígenas e repatria-


ção de imagens

Resumo: A produção e circulação de cinema indígena na Serra Nevada de Santa Marta (Colômbia), configurou certas masculinidades
indígenas que se vinculam com a imagem mítica do morcego. Os meios indígenas permitiram consolidar redes nacionais e transnacio-
nais que constituem certas cosmopolíticas que condensam temas relacionados com o ser indígena, o território, a cultura e a política
das imagens. Neste artigo, discute-se a repatriação dos arquivos visuais do Marquês de Waverin, ao povo arhuaco, onde aparece o
líder Juan Bautista Villafaña (Duane) nos anos 30 do século XX, pai do documentarista arhuaco Amado Villafaña. A repatriação destas
imagens é também uma forma de ação política, que se relaciona com a construção de reivindicações em torno à soberania visual e à
propriedade coletiva, que permite aos povos indígenas a possibilidade de (re)interpretar a sua memória cultural; um terreno em per-
manente disputa.

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Palavras-chave: Cinema Indígena; Repatriação de Imagens; Sierra Nevada de Santa Marta; Masculinidades Indígenas; Cosmopolitis-
mo.

Batmen of the Sierra Nevada de Santa Marta. Indigenous masculinities and repatriation of images

Dossiê
Abstract: The production and circulation of indigenous cinema in the Sierra Nevada de Santa Marta (Colombia), has configured indige-
nous masculinities that are linked to the mythical image of the bat. The indigenous media have made it possible to consolidate national
and transnational networks that constitute cosmopolitics that condense issues related to being indigenous, the territory, culture and the 260
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 237-261 | Jan - Jul | 2021

politics of images. In this article, the repatriation of the visual archives of the Marqués de Waverin to the arhuaco people is discussed
in which the leader Juan Bautista Villafaña (Duane) appears in the 1930s, father of the Arhuaco filmmaker Amado Villafaña. The repa-
triation of these images is also a political action that is related to the construction of claims around visual sovereignty and collective
property, which allows indigenous peoples the possibility of (re) interpreting their cultural memory; a land in permanent dispute.

Keywords: Indigenous Cinema; Repatriation of Images; Sierra Nevada de Santa Marta; Indigenous Masculinities; Cosmopolitanism.

Recebido em 22 de julho de 2020

Aprovado em 31 de março de 2021

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Dossiê
261
> proa | artigos
> Devoradores de Deuses – a fotogra-
fia, as artes negras e a mira imperial
Resumo >
Partindo de uma fotografia de uma máscara elmo iorubá pre-
Rafael Gonzaga de
sente na obra Negerplastik de Carl Einstein, o artigo procura
demonstrar que, ao contrário do que possa parecer à primeira
Macedo
vista, nenhuma fotografia é transparente e que seus pressupos- Doutor em História Social
tos visuais estão ancorados na experiência do olhar imperial
ocidental sobre o outro. Trata-se de explorar as implicações de
Pontifícia Universidade Católica do
uma postura que considera a fotografia não meramente como Rio de Janeiro
uma ferramenta para a divulgação das artes ditas primitivas,
mas como vetor de um devir maquínico dessas artes, devoran-
do e produzindo imagens que expressam uma sensibilidade
específica e imperial com sua historicidade e seus dilemas. Palavras-chave >
Carl Einstein; Fotografia; Arte negra; Etnocentrismo.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 263-284 | Jan - Jul | 2021

> Devoradores de Deuses – a fotografia, as artes negras e


a mira imperial
Rafael Gonzaga de Macedo
> rafael.macedo@unimep.br
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Introdução

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O fator decisivo no deciframento de imagens é tratar-se de planos. O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um
golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser “aprofundar” o significa-
do e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem. (FLUSSER, Vilém, Filosofia da caixa preta – São
Paulo: Hucitec, 1985, p. 7)

Quando um leitor folheia as páginas de Negerplastik1 de Carl Einstein, depara-se, entre muitas outras fotografias, com a imagem de uma Más-
cara-elmo da cultura iorubá – seu artista, infelizmente, é desconhecido. A fotografia é em preto-e-branco e mostra uma cabeça arredondada de
aproximadamente 31 centímetros e os olhos, nariz e boca seguem os modelos convencionais da arte iorubá, a saber, os olhos emergem da su-
perfície como grandes sementes, como se fossem búzios, e nariz e boca formam uma só estrutura expressiva em T invertido. Ao redor da cabeça,

Artigos
segmentos cilíndricos formam uma espécie de gargantilha com espinhos e, no topo, a madeira é entalhada de forma a parecer um penteado com
formas alheias a olhos ocidentais e na testa uma protuberância geométrica brota como um chifre ou antena.

1 Negerplastik foi publicado em 1915, em plena Primeira Guerra Mundial, quando Einstein se encontrava internado e se recuperava de ferimentos decorrentes de sua participação no front. Neger-
plastik é considerada a primeira obra a atribuir aos objetos plásticos negros (que, naquele contexto, significava objetos africanos e asiáticos) o estatuto de objetos de arte a partir de um ponto de 264
vista formalista. Para informações mais aprofundadas conferir: EINSTEIN C. Negerplastik (escultura negra) (org. MEFFRE, L.). Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 263-284 | Jan - Jul | 2021

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Figura 1 - Máscara-elmo. Artista iorubá, Nigéria. Madeira, 31 cm. Coleção particular, Düsseldorf. Antigas coleções: A. L. [André Level] (Clouzot e Level 1919, pl.
XXIV); University of Pennsylvania Museum, Filadélfia. (O’NEIL, E.; CUNDURU, R. 2015, p. 73).

O leitor não é informado por Einstein sobre os usos e funções dessa Máscara-elmo em sua própria cultura, pois a preocupação do autor era quase

Artigos
que exclusivamente formal/estética2. Einstein descreve aspectos tridimensionais e soluções plásticas de artistas africanos e de outras regiões dis-
tantes da Europa – naquele momento, todas essas linguagens eram igualmente enquadradas como arte primitiva. Os olhos do leitor são levados
a se confrontarem com tais expressões visuais conforme ele desenvolve sua teoria estética acerca das formas puras da plástica negra. O objetivo
de Einstein pode ser resumido em dois caminhos: o primeiro, construir uma alternativa plástica que atuasse no cenário europeu como uma injeção
de ânimo; e, segundo, encontrar os fundamentos históricos da própria arte moderna.
2 Essa perspectiva exclusivista perdurou somente até a publicação da obra Plástica Africana, anos mais tarde. Ver: MUNANGA, K. “A Dimensão Estética na Arte Negro-Africana Tradicional” In: 265
AJZENBERG, E. (coord.) Arteconhecimento. São Paulo: MAC, 2004, p. 35
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 263-284 | Jan - Jul | 2021

Einstein desejava romper com o regime poético das artes (RANCIÈRE, 2009b, p.30), que, naquele momento, era identificada como arte acadê-
mica e, também, com a perspectiva óptica renascentista e quase todos os seus pressupostos e transbordamentos da pintura para a escultura,
desejando, sobretudo, uma escultura insubmissa às leis do desenho (ou disegno clássico)3. Einstein procurava desenvolver – e defender – uma
escultura-movimento sem lados, frentes e até mesmo fundo. Para sua nova teoria da arte, Einstein utilizava fotografias de esculturas africanas e
asiáticas para ilustrar e divulgar suas ideias para o maior número possível de leitores e artistas.

É preciso, porém, deter-se diante dessa fotografia para aprender a olhar e não apenas ver, isto é, conforme nos mostrou Vilém Flusser, é preciso
vaguear na imagem para dela extrair algo além de sua superficialidade plana.

A imagem fotográfica, tal como ela é utilizada em Negerplastik, abre-se como uma janela transparente para a visão da Máscara-elmo. A visualida-
de fotográfica é percebida como se fosse um ser esburacado (MERLEAU-PONTY, 2013, p.33) que nos permite ver o objeto de um viés exterior. À
fotografia é atribuída a capacidade de invocar o referente fotografado em si mesmo diante de todos aqueles que a olharem, pois imagem e mundo
se encontram no mesmo nível do “real” de tal forma que a imagem fotográfica parece não ser símbolo e não precisar de deciframento (FLUSSER,
1985, p.10).

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A esta forma de apreender a fotografia será dado o nome de fotografia-documento (ROUILLÉ, 2009). Quando o leitor ou Einstein vê a fotografia
como algo idêntica ao “real” – tanto na aparência como na constituição e na substância desse real – a imagem torna-se indiscernível enquanto
imagem. O observador vê, mas não olha.

Ao invocar a Máscara-elmo em si mesma diante do ver, não se olha a imagem que está diante dos próprios olhos, mas aquilo que ela evoca. No
entanto, toda imagem é um acontecimento condicionado historicamente e antes de aprender a olhar para essas fotografias é preciso reconhecê-
-las, elas próprias, como um aparelho4 fotográfico, como uma máquina de produzir visão. Ou seja, conceber a fotografia como objeto e não como
um ato (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.46).

Artigos
3 Tal como delineado – literalmente, diga-se de passagem – pelo artista-humanista Leon Battista Alberti no livro De pictura, publicado em latim em 1435. Esta obra era dedicada a Filippo Brunelles-
chi – idealizador do famoso Duomo de Florença e tinha como destino todos os artistas que desejavam seguir os passos do mestre de Florença, mas também de outras referências humanistas da
época. De Pictura marca também uma mudança fundamental na concepção de artista e de pintura, que se transforma em “culto imitador e recriador da natureza”. Os fundamentos da perspectiva
óptica desenvolvidas por Alberti, que se orienta através de uma explicação geométrica da visão monocular como base da representação pictórica, também serão fundamentais para a dióptrica
cartesiana. Ver: ALBERTI, L. B. Da Pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 2009,p, 49.
4 A referência à aparelho fotográfico, nesse texto, parte da definição de Vilém Flusser: aparelho fotográfico como um brinquedo que traduz pensamento conceitual em fotografias. Ver: FLUSSER, 266
V. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 5.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 263-284 | Jan - Jul | 2021

Segundo André Rouillé (2009, p.28), a fotografia foi um dos documentos primordiais da modernidade e fundamento do regime de verdade da so-
ciedade industrial e expressou de modo formidável uma virada no regime das artes do século XIX (RANCIÈRE, 2009b, p.34). A fotografia não foi
inventada ao acaso: ela surge, em primeiro lugar, no arcabouço do imaginário visual europeu e do encontro de vários campos de conhecimentos
e de dispositivos desenvolvidos antes mesmo da Modernidade.

Em primeiro lugar, é herdeira da câmara escura, que se desdobra a partir dos estudos ópticos e da perspectiva renascentista; em segundo, dos
avanços das pesquisas e da indústria química que progrediu imensamente no final do século XIX, permitindo a descoberta de que certas substân-
cias químicas, como os sais de prata, reagiam e eram sensíveis à luz, permitindo a invenção desse sistema de registro dos fenômenos luminosos.
A fotografia emerge, portanto, do encontro do universo óptico, da retórica e da geometria euclidiana no Alto-Renascimento (ALBERTI, 2009) com
a química e a máquina do século XIX da sociedade industrial5.

Alimentados, entre outras coisas, pelo paradigma da termodinâmica, os homens daquele período perceberam que um sistema óptico que in-
tegrasse a câmara escura e um material quimicamente ativo, como os sais de prata, comportaria a conversão de energia luminosa em energia
química, permitindo a existência de uma câmara escura que conservasse todas as impressões das coisas colocadas diante dela. Assim, a imagem

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fotográfica surge através de uma série de operações químicas, em que propriedades da luz interferem com as dos sais de prata. A imagem só
aparece após um tratamento químico engendrado por um conjunto de procedimentos técnicos precisos no interior de um laboratório.

Quando a fotografia aparece, ela emerge da fissura de uma crise da verdade que atingia os modos de representação que existiam na época, como
textos e desenhos – vistos àquela altura como dependentes demais da habilidade manual e subjetiva. A fotografia, filha direta da sociedade in-
dustrial6, na esteira das inovações no campo da impressão e das técnicas de reprodução, transformando a crença na imitação e na representação.
Visto como um espelho capaz de reproduzir e fixar as coisas diante dele, através de um processo automático, o aparelho fotográfico não será visto
como uma máquina de criar representações, mas como uma máquina de reproduzir e registrar o mundo e as coisas. É curioso que, justamente no
momento em que ela reforçava a capacidade do homem de apreender o real em si mesmo e ganhava espaço nas práticas de representação cien-

Artigos
tífica no campo das artes, os artistas se libertaram das amarras miméticas, através da emergência de um novo regime estético. Contudo, as duas
5 Para Vilém Flusser, a invenção do aparelho fotográfico foi um acontecimento de importância equivalente à invenção da escrita. Ver: FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec,
1985.
6 Enquanto produto direto da sociedade industrial, o aparelho fotográfico é também o arquétipo da sociedade pós-industrial: “O aparelho fotográfico é o primeiro, o mais simples e o relativamente
mais transparente de todos os aparelhos. O fotógrafo é o primeiro ‘funcionário’, o mais ingênuo e o mais viável de ser analisado. No entanto, no aparelho fotográfico e no fotógrafo já estão, como
germes, contidas todas as virtualidades do mundo pós-industrial. Sobretudo, torna-se observável na atividade fotográfica, a desvalorização do objeto e a valorização da informação como sede de
poder. Portanto, a análise do gesto de fotografar, este movimento do complexo ‘aparelho-fotógrafo’, pode ser exercido para a análise da existência humana em situação pós-industrial, aparelhiza- 267
da.”. FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 17.
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perspectivas aparentemente conflitivas se complementarão ao longo do século XIX, como fica evidente na emergência do Realismo na pintura de
Gustave Coubert e Jean-François Millet7.

A segunda metade do século XIX foi um contexto de grandes transformações culturais na Europa. Ao mesmo tempo em que a fotografia era in-
ventada quase que simultaneamente na França e na Inglaterra, esses países se constituíam como o epicentro daquilo que viria a ser chamado de
“era do maquinismo” (ROUILLÉ, 2009, p.32). Um pouco antes do aprimoramento derradeiro da máquina fotográfica por Nièpce-Daguerre em 1839,
tanto a França como a Inglaterra testemunharam uma forte aceleração da vida cotidiana e cultural, uma transformação nos modos de produção
e um aumento nas trocas comerciais dentro de um gigantesco processo de industrialização, urbanização e fortalecimento da economia de mer-
cado. Junto ao capitalismo industrial, emerge uma modernidade embebida com o espírito de cálculo e pela racionalidade instrumental, que Max
Weber diria levar ao “desencantamento do mundo” (Ibid, p.29). O dispositivo fotográfico é um produto dessa modernidade, uma máquina capaz de
produzir, em série, imagens-objetos mais próximos dos produtos industriais do que das realizações das obras artísticas – ao menos na percepção
dos homens em seu primeiro século de existência.

A imagem fotográfica, portanto, é um produto genuíno da sociedade industrial. Foi essa sociedade de máquinas, enquanto instrumentos que pas-

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saram pelo crivo científico, que assegurou as condições necessárias para sua invenção, que permitiu seu desdobramento, seus contornos e seus
usos, funções e suas reverberações mentais e epistêmicas. A fotografia vem atender às novas necessidades de imagens da nova sociedade que
aparecia, indo ao encontro das exigências da sociedade industrial por um novo real, ao mesmo tempo, vasto, complexo e em constante expansão.
Tanto o aparelho fotográfico quanto suas imagens atendem à necessidade de um sistema de representação que fosse adaptado ao nível de desen-
volvimento industrial, ao seu grau de tecnicidade, aos seus ritmos, aos seus modos de organização sociais e políticos, aos seus valores, crenças e
à sua expansão. Não por acaso, quando se pensa nos desenvolvimentos urbanísticos contemporâneos à invenção da fotografia, os adjetivos uti-
lizados para descrever a nova realidade das cidades industriais convergem profundamente com os procedimentos fotográficos: instantaneidade,
racionalidade e movimento – esta última tornada real com a máquina portátil lançada pela Kodak em 1889.

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Assim, o aparelho fotográfico se encontra no mesmo platô que a estrada de ferro, da navegação a vapor, ou do telégrafo, que, em conjunto, con-
tribuem para que os tentáculos da sociedade industrial alcançassem todo o mundo. A fotografia, junto a todos esses avanços técnicos, ajudou a
sociedade industrial a se desenvolver e a conquistar o local e o global, permitindo um importante passo na constituição daquilo que Wallenstein
(2007, p.87) denominou como sistema-mundo e, por isso, alcançou o papel de fotografia-documento, adquirindo o poder de equivaler legitima-
mente às coisas que ela representava (ROUILLÉ, 2009, p.31). Não é irrelevante o fato de que o europeu só “conquistou” a África quando, no final
7 O ponto de contato entre a fotografia e o Realismo na pintura acontece não por causa de um naturalismo figurativo, mas na abertura das duas linguagens em apreender o detalhe, o anódino 268
sem uma hierarquia de temas preexistente.
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do século XIX, conseguiu inserir naquele continente o navio a vapor, a metralhadora MAXIM8 – o maquínico por excelência – as estradas de ferro
e o aparelho fotográfico, que acompanhavam todas as missões científicas, militares e de exploração. O aparelho fotográfico atua como o olho
imperial absoluto, o seu modelo de visão aproxima-se da imagem ideal imaginada pela dióptrica cartesiana, pois a máquina vê através do contato
com as coisas – tal como o cego “vê” as coisas através do contato de sua bengala com o mundo (MERLEAU-PONTY, 2013, p.19) – e depois o visto
no interior de uma moldura, como se fosse uma janela.

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Figura 2 - ilustração da metralhadora inglesa MAXIM para o dicionário enciclopédico Brockhaus and Efron.

Essa crença no poder demiúrgico da imagem fotográfica perdurou até as primeiras décadas do século XX, incluindo o momento em que Carl Eins-
tein escreveu Negerplastik. O sucesso dessa concepção da imagem fotográfica deve-se aos próprios princípios da sociedade industrial. Embora
8 A metralhadora Maxim foi a primeira metralhadora verdadeiramente automática. Inventada em 1884, foi amplamente utilizada por tropas coloniais britânicas na África. Ela se transformou no 269
símbolo da superioridade militar europeia na África e em outras regiões do mundo.
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a tecnologia sempre tenha sido uma aliada de desenhistas, gravadores e artistas, as mãos dos artistas eram ainda quem dominavam o processo
de produção de imagem; o lápis, o pincel e o buril são instrumentos que se constituem como o prolongamento da mão do artista, sendo as ima-
gens o produto da unidade entre corpo-ferramenta. É justamente essa unidade que a fotografia vem quebrar para instituir um novo elo: entre as
coisas do mundo e as imagens (ROUILLÉ, 2009, p.34). Assim, o grande diferencial da câmera fotográfica é o papel preponderante da tecnologia
na produção de imagens-máquina, a ponto de advogar a completa independência das mãos humanas – como na propaganda da Kodak n.1 em
1889: “você aperta o botão, nós faremos o resto”.

A imagem fotográfica, cuja maior característica seria a ausência do homem, era uma imagem desenhada pelo próprio sol, enquanto ele-
mento fundamental da luz, e nenhum olhar humano poderia ter encarado de forma tão altiva essas torrentes de luz (Ibid, p.33). Como mostra An-
dré Rouillé, no ápice da industrialização do Ocidente, momento em que a produção dos bens materiais se desloca dos setores primários (trabalho
manual das matérias primas) para os setores secundários (atividades mecânicas de transformação), a fotografia desloca as imagens para um
processo similar, introduzindo uma produção, até então dominada pelo primário, para o secundário.

Esse deslocamento expressa uma mudança fundamental. Relacionando as artes dos séculos anteriores à invenção da fotografia, temos que as

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primeiras eram pautadas por um desejo de transcendência – sendo a pintura o modelo mais destacado – a partir da emergência de um novo
regime das imagens, cuja invenção da câmera fotográfica vem reforçar, opera-se uma nova concepção de imagem que parecia lidar apenas com
a imanência das coisas sob o sol. Ou seja, as imagens-máquina, enquanto impressão química das coisas, diz respeito somente a este mundo.
Assim, a imanência substitui a transcendência e é justamente este aspecto que dota a imagem fotográfica de caráter documental. Essa mudança
de paradigma do transcendental para a imanência equivale a outra grande mudança que ocorreu no seio da modernidade: o vasto processo de
secularização que se desdobra na recusa da autoridade divina e transcendente sobre as coisas do mundo.

O registro sem distinção ou hierarquização de tudo aquilo que está sob o sol consiste justamente em uma das maiores novidades que a fotografia
trouxe ao mundo ocidental. Da catedral ao calçamento, do grão de areia às obras-primas do Renascimento, todas essas coisas, grandes ou pe-

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quenas, são apreendidas pela objetiva fotográfica. Ela ignora a transcendência, subverte o sagrado e o mundo profano, ou, nas palavras de André
Rouillé: “a catedral, doravante, equivale ao grão de areia”.

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Figura 3 - Fotografia lateral da Catedral de Notre-Dame de Paris. A câmera fotográfica não faz distinção entre as pedras, arcos ogivais, arcobotantes e galhos
invernais das árvores circunvizinhas. (O autor)

Ao equiparar o grão de areia à catedral, a fotografia revela sua grande potencialidade “democrática”. Graças a ela, por exemplo, será possível a vul-

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garização da arte através da reprodução de álbuns de fotografia. Antes dessa vulgarização, mesmo críticos de arte consagrados, como Baudelaire,
tinham acesso a um número limitado de obras de arte (Ibid, p.59), agora “qualquer” operário poderia ter em sua casa álbuns de fotografia con-
tendo a reunião de todas as grandes obras de arte da humanidade, do Egito Antigo à China. No entanto, não apenas esse aspecto “vulgarizador”
revelava esse caráter democrático, mas também como o próprio mecanismo fotográfico foi percebido como intrinsecamente democrático, pois a
câmera acolhe tudo, sem nenhuma distinção. Como o sol, a fotografia não hierarquiza, seu olhar sobre o mundo é democrático: para ela, todas as
coisas ocupam o mesmo valor. E todas essas coisas serão inseridas no circuito de circulação de bens da sociedade industrial. 271
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Para que pudesse ocorrer essa mudança radical no regime da imagem fotográfica foi preciso uma transformação anterior no próprio regime das
artes. Essa mudança foi definida por Jacques Rancière como uma “revolução estética” (RANCIÈRE, 2009a, p.27-28) que tem início ainda no século
XVIII quando Vico, em sua Ciência Nova, estabelece, apesar de Aristóteles e da tradição representativa presente nas artes daquele momento, o
“verdadeiro Homero”. Segundo o filósofo francês, Vico não tinha como alvo criar uma nova “teoria da arte”, mas foi isso que ele acabou fazendo.
O humanista italiano desejava problematizar uma velha questão teológica-poética presente na ideia de “sabedoria dos egípcios”, isto é, refletir
se a linguagem dos hieróglifos era uma linguagem críptica, depositária de um pensamento religioso vedado ao profano, ou se as antigas fábulas
poéticas, como a Ilíada e a Odisseia, eram expressões alegóricas de um pensamento filosófico (Ibid, p.28). Ao tratar dessa questão, Vico, segundo
Rancière, golpeia duplamente essa questão. Ele se propõe a negar que essas escritas possuam uma sabedoria misteriosa e oculta; a isso, ele con-
trapõe uma nova hermenêutica que relaciona a imagem, não à uma criptografia, mas às condições de sua produção. Ele insere Homero na história.

Ao conceber Homero como um testemunho da linguagem e do pensamento imagéticos dos povos dos tempos antigos, Vico transforma o poeta
grego na expressão fina da cosmogonia grega – extraindo daí um circuito de conexões que estabeleceram a cultura grega do século XVIII a.C.
como um bloco sensível, cuja expressão podemos ver na forma como são narradas e descritas as aventuras, as relações e os valores dos heróis

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gregos. No entanto, a expressão desse mundo, em Homero, não acontece de forma intencional, mas como uma experiência de suspensão, na qual
a forma – os poemas homéricos – são experimentados numa espécie de “inconsciente estético” que fala através do poeta. Hegel, por exemplo,
também pensava a partir do regime estético das artes quando interpretou a pintura de gênero holandesa como a expressão da liberdade de um
povo impressa em reflexos de luz, e não como meras histórias de estalagem ou descrições interiores (RANCIÈRE, 2009b, p.36).

Com sua proposta, Vico também questiona a imagem aristotélica e representativa do poeta como inventor de fábulas, caracteres, imagens e rit-
mos. O Homero de Vico não é um inventor de fábulas, pois, para ele, as fábulas eram a história que ele transmitia tal como recebera, sem inventar
metáforas e imagens. Suas histórias e personagens são metáforas em imagens em um momento em que não era concebível separar imagem e
pensamento. Dessa forma, as fábulas homéricas são enquadradas em seu tempo como propriedades da linguagem grega disponível na época,
ou seja, uma linguagem que falava através dele, que tornava possível sua experiência-mundo. Uma linguagem que pressupõe um regime de pen-

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samento da arte na qual ela se transforma em um procedimento consciente e uma produção inconsciente, uma ação voluntária e um processo
involuntário, a presença de um logos e de um pathos (RANCIÈRE, 2009a, p.30). Vico mostra a imanência do pathos (a cultura grega do século VIII
a.C.) no logos (os cantos dos rapsodos no interior dessa cultura), isto é, do não-pensamento no pensamento9

9 De certa forma, a fórmula das emoções (pathosformel) de Aby Warburg também dialoga com essa emergência do pathos no logos através do reaparecimento da gestualidade clássica na arte
renascentista e moderna. Ver: WARBURG, A. “Dürer e a Antiguidade italiana”. In: Histórias de fantasmas para gente grande – Aby Warburg – escritos, esboços e conferências (org. WAIZBORT, L.). 272
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
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Os procedimentos adotados por Vico revelam uma “revolução silenciosa” que Rancière chama de estética e que, segundo ele, permitirá a elabora-
ção de uma ideia de pensamento e de uma ideia correspondente de escrita. Tal ideia exprime uma afirmação fundamental: existe pensamento que
não pensa. Estabelece-se uma identidade entre dois pólos que é dotado de uma potência específica. Ao regime da palavra que regulava a ordem
representativa, a revolução iniciada por Vico opõe um regime da palavra que ao mesmo tempo fala e se cala, que sabe e não sabe (WARBURG,
2015, p.35). Essa escrita muda é a palavra que as coisas mudas carregam nelas mesmas. Trata-se da potência de significação inscrita em seus
corpos e que aparece, em Novalis com o “tudo fala”, a partir da descoberta do “verdadeiro Homero” e da sua linguagem muda, tudo se transforma
em rastro, vestígio ou fóssil. Seja na topografia de um lugar, na fisionomia de uma fachada, nas vestimentas, no caos de uma exposição de merca-
dorias, tudo se transforma em emblemas de uma mitologia.

No campo das práticas pictóricas, o momento inaugural do regime estético das artes acontece quando Gustave Courbet rompe com as normas
hierárquicas, que até então dominavam os ditames das artes e do fazer artístico, e decide pintar trabalhadores pobres – uma de suas pinturas mais
famosas representa trabalhadores quebrando pedras. Essa mudança de postura foi comumente denominada como Realismo na história da arte.
Assim, o historiador da arte Ernst Gombrich descreve os princípios artísticos de Courbet:

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Para quem estava habituado aos quadros espetaculares da arte acadêmica, essa tela (Gombrich, refere-se à tela “Bonjour Monsieur Courbet”) deve
ter parecido sobretudo pueril. Não há poses graciosas, linhas fluentes, cores impressionantes (...) As telas de Courbet são, fora de qualquer dúvida,
sinceras. Escreveu ele numa carta característica em 1854: ‘espero sempre ganhar a vida com minha arte, sem me desviar um milímetro dos meus
princípios, sem ter mentido à minha consciência nem por um único momento, sem pintar sequer o que pode ser coberto pela palma da mão só para
agradar a alguém ou para vender mais facilmente’. A deliberada renúncia de Courbet a feitos fáceis, e sua determinação de representar o mundo tal
como o via, estimularam outros a rejeitar o convencionalismo e a seguir apenas sua própria consciência artística (GOMBRICH, 2009, p.511).

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Figura 4 - Quebradores de pedras. Óleo sobre tela, 165 x 257 cm. Gemäldegalerie, Dresden (COURBET, Gustave, 1849).

Em 1854, o aparelho fotográfico já era uma realidade no cotidiano de artistas e amadores. É impressionante como Courbet se aproxima do ele-

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mento fundante da fotografia: assim como o sol e a fotografia, os olhos e o espírito do artista não mais hierarquizam os temas da pintura10. Para
ele, todas as coisas ocupam o mesmo valor. É o mesmo princípio “democrático” da fotografia em ação. Na realidade, são os enunciados do regime
estético da arte que alimentam seu olhar e sua percepção do mundo. Ao fazer isso, Coubert rompeu com o regime de enunciados das artes que
existiam até então, que Rancière define como regime poético das artes.

10 É justamente essa a diferença entre o chamado “regime estético das artes” e o “regime poético – ou representativo – das artes” descrito por Rancière. Ver: Rancière, J. A partilha do sensível. 274
São Paulo: Editora 34, 2009, p.32.
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Dessa forma, o “tudo fala” do regime estético das artes dialoga intimamente com a fotografia, que relativiza do grão de areia à catedral. A metade
do século XIX, cenário em que essas transformações ocorrem, testemunhará a abolição das hierarquias presentes na ordem representativa, que
ainda operava a partir da episteme clássica. A fotografia e o regime estético da arte constelam nos imaginários que emergem no bojo da socieda-
de industrial. Ensejam a grande regra freudiana de que não existem “detalhes” desprezíveis, mas são estes que abrem o caminho para a verdade
(RANCIÈRE, 2009a, p.36).

Assim, a fotografia não é uma projeção transparente das coisas do mundo para os álbuns de fotografia, mas uma determinada maneira de or-
ganizar e pensar o visível. Nesse sentido, a ideia, comum em seu primeiro século de existência, de que ela seria uma reprodução passiva, fiel e
transparente das coisas equivale – no campo das teorias científicas contemporâneas à essa concepção – ao impulso da ciência do século XIX em
transformar o mundo ao mesmo tempo em que negava habitá-lo (MERLEAU-PONTY, 2013, p.15). Muito pelo contrário, a fotografia criou mundos
inteiros a partir dos vetores desse novo regime estético das artes, que não apenas alimentava sua fome de tudo ao inventariar e esquadrinhar em
coordenadas geométricas (perspectiva óptica) por meio de imagens-máquina11, mas também permitiu a essa mesma sociedade apoderar-se do
mundo a partir de uma nova visualidade técnica. Pois enquanto a perspectiva renascentista serviu para descrever as coisas e suas posições no

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espaço e construir a noção de semelhança através de um paradigma convencional, a perspectiva que fundamenta a produção de imagens-má-
quina da fotografia privilegia os movimentos e as dinâmicas, tratando-se de uma perspectiva temporal, que estabelece um real preexistente em
todo o mundo, e nenhuma metralhadora MAXIM conseguiu fazer isso de forma tão perfeita.

A fotografia não produz imagens exatas e verdadeiras – não ao menos nos termos em que isto era posto até metade do século XX. A interpretação
das imagens como documentos infalíveis ocorre, não em decorrência da fotografia em si, mas em decorrência do regime de certezas e verdade do
século XIX – inerente à sociedade industrial que a pariu – pois a verdade é inseparável do procedimento que a estabelece (ROUILLÉ, 2009, p.62).
É preciso, portanto, compreender a produção de certezas e quais procedimentos permitiram que as fotografias-documentos puderam aparentar
ser realistas, imediatas, exatas e verdadeiras, ou basicamente: por qual razão Einstein utilizou 111 fotografias para escrever Negerplastik. Ademais,
esse procedimento interfere profundamente na própria concepção de arte que se instaura no regime estético da Europa daquele momento, e

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afeta não apenas as artes criadas posteriormente à invenção da fotografia, mas as representações das artes europeias e não europeias de todos
os períodos históricos precedentes.

11 Esse processo de multiplicação das imagens ocorridas no apogeu da sociedade industrial do século XIX e primeira metade do século XX também é discutida por Norval Baitello Jr (embora o
seu recorte seja mais amplo). Segundo ele, essa reprodução ensandecida de imagens levaria, paradoxalmente, à saturação e ao esvaziamento da imagem através da superexposição, produzindo 275
uma carência e uma necessidade obsessiva por novas imagens. Ver: BAITELLO jr. N. A era da iconofagia. Ensaios de Comunicação e Cultura. São Paulo: Hacker Editores, 2005, p. 13.
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Conforme assinala André Rouillé, a crença na verdade fotográfica pode ser equiparada ao pensamento mágico, uma vez que a imagem-docu-
mento – e talvez toda imagem – constitui-se como um apelo à convicção do espectador. Nesse sentido, a fotografia-documento demanda mais
convicção do que semelhança ou exatidão (Ibid, p.62). Citando Marcel Mauss, Rouillé mostra que a fotografia-documento está inserida num cam-
po de coordenadas que faz com que o espectador acredite ver ali, não uma imagem como produto de um procedimento técnico, mas o real em si
mesmo, como se fosse um objeto mágico. No entanto, não é a fotografia em si que emana essa poderosa capacidade, pois a magia não está nem
no mágico nem nos seus instrumentos e seus truques, mas na crença coletiva do grupo mágico em si. Assim, para que a fotografia tenha esse
poder foi preciso que condições particulares, como o surgimento de um novo Regime de Verdade, possibilitassem a um artefato ser equivalente
às coisas e aos fatos do real.

Os fundamentos para esse novo regime de verdade são: a câmara escura e a perspectiva renascentista, pois em certo sentido, a câmera foto-
gráfica racionaliza e mecaniza a organização visual construída na Itália a partir do século XV. A perspectiva óptica é uma forma simbólica que
estabelece o hábito perceptivo dos homens no Ocidente. A perspectiva albertiana constrói a percepção do mundo a partir de uma organização
geométrica que enquadra o real numa constelação matemática e convencional. Ela é, sobretudo, o fundamento da expansão ocidental no tempo e

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espaço global, pois seu objetivo principal é esquadrinhar o mundo a partir de um olhar monocular – tal como a objetiva da câmera fotográfica ou
a mira de um rifle – que estabelece as coisas em termos de proximidade ou distância em relação ao observador. E a fotografia não contesta esse
hábito perceptivo, mas reforça-o.

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Figura 5 - Exemplo de uma câmara escura. 276
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Em segundo lugar, o Regime de Verdade do dispositivo fotográfico fundamenta-se a outro elemento da exatidão e da verdade: o registro químico
das aparências. Assim, os avanços técnico-industriais, a fé no progresso através das máquinas, bem como as propriedades químicas da impres-
são reúnem-se às propriedades físicas da máquina para renovar a crença na imitação. Por último, tal Regime se fundamenta também na crença
da imagem sem homem. Isso acontece no bojo das mudanças na economia da imagem, ou seja, em razão de sua própria estrutura física: uma
máquina. Ao contrário do paradigma artesanal do desenho, que se define pela união das mãos dos artistas com instrumentos rudimentares como
o lápis, buris ou pincéis, a câmera fotográfica insere-se a partir do paradigma industrial, que é a captura das aparências de uma coisa por uma
máquina. Enquanto os artistas produziam representações, ícones e imitação, a fotografia estabelece o registro, o índice, a impressão. Na passa-
gem das artes liberais às artes mecânicas, temos, ao invés de um artista, um operador; no lugar da originalidade e unicidade temos a similaridade
e a reprodução técnica.

Ao contrário de uma pintura ou desenho, a fotografia-documento necessita de uma imagem sem homem para ser verdade, estabelecendo uma
nova relação entre a coisa e sua fotografia (Ibid, p.64). Seu regime de verdade é alimentado, por sua vez, pelo próprio fotográfico, pela moder-
nidade e pelo positivismo (a emergência deste último coincide com o nascimento da fotografia). Este novo real convoca novas imagens, novos

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dispositivos de imagens, para novos modos de crença (Ibid, p.65). Do momento de sua invenção até a Segunda Guerra Mundial, a ideia de fo-
tografia como fotografia-documento irá se estabelecer de forma soberana nos procedimentos do ver através da junção de numerosos enuncia-
dos que alimentaram esta bela ficção. O primeiro deles é a metáfora do espelho, pois este é totalmente confiável e absolutamente infalsificável,
porque automático, sem homem, sem forma e sem qualidade (Ibid, p.66). Outro importante enunciado fundamenta-se no fato de que a fotografia
é sempre fruto do contato entre a objetiva da câmera e a coisa fotografada, pois ao contrário do desenho, que pode ser inventado ex nihilo, a fo-
tografia-documento acontece sempre pelo contato físico através do encontro da luz, que reflete e emana do objeto fotografado para o interior do
dispositivo fotográfico, e das reações químicas consequentes. A fotografia-documento, portanto, estaria presa a uma coisa original e essa seria a
especificidade da fotografia.

No entanto, essa noção acaba encarcerando a fotografia no interior de uma metafísica do ser e da existência que reduz a realidade a somente

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substâncias e aparência das coisas, esquecendo que a fotografia é uma linguagem opaca e historicamente determinada, pois a fotografia não
apenas capta uma realidade preexistente, mas produz mundos. Ela não representa automaticamente o real, sua aparição convencional não subs-
titui as coisas que ela fotografa. A imagem fotográfica é construída do início ao fim, ela projeta uma visão de mundo. Nesse ponto, começa-se a
se desvincular da noção de “isso foi” e de rastro para desvendar como a imagem fotográfica produz o real, bem como a tomada de consciência
de que ela contém uma relativa autonomia perante os referentes, uma vez que, em si, a fotografia não é um documento, mas é provida de valor
documental segundo as circunstâncias. 277
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Ao se colocar diante da máquina fotográfica presente entre si e a Máscara-elmo e mirar sua objetiva para aquele objeto, o fotógrafo de Carl Eins-
tein não estava mais próximo do real que um pintor diante de uma tela. Nenhum documento, por mais puro que pareça, pode ser separado de
uma expressão; ela se constitui em uma escrita, uma subjetividade e um destinatário (Ibid, p.20). A fotografia apareceu em estreita relação com
o regime estético das artes e com os fundamentos mais básicos da sociedade industrial, como a expansão das metrópoles, economia monetária,
industrialização e, especialmente no presente estudo, modificações do espaço, do tempo e das comunicações. O mundo criado pela fotografia,
portanto, é a própria imagem da sociedade industrial (Ibid, p.16).

Um evento ocorrido em 1931, na cidade de Kéméni, no Benin, pode ser esclarecedor sobre os usos e funções das imagens fotográficas e desse
regime estético das artes no contexto colonial africano e da coleta e “aquisição” de objetos plásticos africanos que depois seriam vendidos a co-
lecionadores, artistas e museus como arte primitiva. Uma missão científica francesa, liderada por Marcel Griaule, com a presença do igualmente
célebre Michel Leiris, tinha como roteiro cruzar a África, partindo das margens do Oceano Atlântico, especificamente da cidade de Dakar (Sene-
gal), até o Mar Vermelho, chegando à cidade de Djibouti (hoje, capital de um pequeno país no nordeste do continente, com o mesmo nome). O ob-
jetivo da missão era conhecer as culturas africanas ainda desconhecidas ou desprezadas pelos europeus, catalogando e descrevendo, por todos

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os meios, tudo aquilo que encontravam. Se possível, os membros da missão deveriam recolher material local, como artefatos religiosos e objetos
artísticos12 para serem enviados aos museus europeus. Estes homens da ciência utilizavam todos os recursos disponíveis na época para coletar e
inventariar o maior número possível de objetos e, como não podia deixar de ser, seu instrumento fundamental era um aparelho fotográfico.

No dia 6 de setembro de 1931, atravessando a região habitada pelos Dogons, nas proximidades da cidade de Kéméni, a expedição se deparou com
um templo dedicado à divindade local chamada Kono. Descrita como uma “magnífica choça”, através do diário de Michel Leiris, transformado em
livro anos depois, pode-se ter uma vaga ideia daquilo que eles viram:

Em Kéméni (24 km de Bla), descoberta de uma magnífica choça não mais de Nya, mas de Kono. Já tinha visto a de Mpésoba (até entrei no pátio à
noite), mas esta é bem mais bonita com seus nichos repletos de crânio e ossos de animais sacrificados, sob os ornamentos pontiagudos de terra

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seca em estilo sudanês. Morremos de vontade de ver o Kono. Griaule manda dizer que é preciso retirá-lo. O chefe do Kono manda responder que nós
podemos oferecer um sacrifício (LEIRIS, 2007, p.141).

12 A própria definição de “objetos artísticos”, nesse caso, já está inscrito no regime estético das artes, pois a arte, como se verá, será percebida como a escrita “muda” da cultura dos povos não 278
ocidentais.
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Figura 6 - Marcel Griaule e Michel Leiris se preparam para sacrificar galinhas do altar do kono, em Kéméni. 1931. 1 Fotografia. (Autor desconhecido)13.

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A necessidade de olhar esse objeto que, “infelizmente”, só pode ser alcançado mediante um sacrifício, reflete de forma clara a expansão do olhar e
o desejo voraz por imagens sobre o outro, sobretudo, o desejo de “captar o semelhante” de que falava Walter Benjamin (1994, p.170) e que carac-
terizaria a sociedade que se projetava na reprodutibilidade técnica de imagens. No entanto, apesar da presa, todas as negociações para iniciar o
sacrifício tomam muito tempo dos expedicionários. O homem que deveria buscar as galinhas demora e quando ele finalmente retorna com uma
279
13 Ibidem, p. 143.
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grande galinha, os membros da expedição são avisados pelo chefe de Kono que o sacrifício de uma galinha permitirá que apenas um homem
entre na choça, assim, tem-se ainda mais demora, pois é preciso comprar mais animais para que Leiris e outro membro também tenham o direito
de entrar. Depois de uma longa espera, um novo problema: o homem responsável pelo sacrifício não aparece.

Impacientes, Leiris e Griaule decidem entrar na choça por conta própria e, apesar das ameaças que pairam sobre aqueles que ousarem olhar o
Kono sem o ritual necessário para isso, eles avançam assim mesmo. Tal situação é descrita por Michel Leiris nos mínimos detalhes:

A choça do Kono é um pequeno reduto fechado por algumas tábuas (uma delas em forma de cabeça humana) sustentadas por um pau fendido,
a outra extremidade apoiada no chão. Griaule tira uma fotografia e levanta as tábuas. Surge o reduto: à direita, formas indefiníveis em um tipo de
pasta marrom que é simplesmente sangue coagulado. No meio, uma grande cabaça repleta de objetos heteróclitos, entre os quais muitas flautas:
de chifre, de madeira, de ferro e de couro. À esquerda, pendurado no teto, no meio de uma porção de cabaças, um pacote inominável, coberto com
plumas de diferentes pássaros e no qual Griaule, que o apalpa, sente a presença de uma máscara. Irritadas com a tergiversação das pessoas, nossa
decisão é tomada com rapidez: Griaule pega duas flautas e mete-a furtivamente na bota; devolvemos as coisas aos seus lugares e saímos (LEIRIS,
2007, p.141-142).

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Ao fotografar um templo que não deveria ser visto, Griaule não apenas desrespeitou o ritual ligado à divindade mas, também, desautorizou os
saberes locais. Ele instituiu, através da produção de uma imagem fotográfica, algo completamente novo, posto que a fotografia, ao colocar a coisa
em contato com outros elementos materiais e imateriais – tanto a luminosidade do flash ou do sol, quanto das reações químicas, não representa
exatamente as coisas preexistentes, engendrando um processo de criação (BENJAMIN, 1994, p.168-169). Ao submeter a choça ao processo foto-
gráfico, bem como a subsequente reprodução técnica dessa fotografia, Griaule atualizou seus fundamentos ritualísticos para uma existência serial,
iluminada pelo sol, pois em sua existência aurática, a choça estava assentada em uma tradição local, que a fotografia deslocou para uma nova
existência, cujo valor de exposição seria definitivo. Poder-se-ia dizer que, numa linguagem benjaminiana, a unicidade e a aura daqueles objetos
caíram como um anjo amaldiçoado14. Griaule, ao “clicar” o interior da choça encarnou uma antiga crença Malinke, pois nos dizeres de Youssouf
Tata Cissé (SEYDOU, 2014), o fotógrafo seria um “feiticeiro comedor de homem”, quer dizer, no caso descrito acima, um feiticeiro devorador de

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deuses, pois no momento em que captou, através da máquina, aquilo que não poderia ser visto, o francês roubou os deuses de forma mais potente
e humilhante que o caso concreto de roubo das flautas, Griaule roubou o “espírito ativo” de Kono.

14 Conforme demonstra Georges Didi-Huberman, em Walter Benjamin a aura dos objetos de arte, na era de sua reprodutibilidade técnica, não é destruída, mas decaída, pois a imagem comporta
essa múltipla dimensão em que ambos os regimes ético, poético e estético podem sobreviver como sombras prestes a brilhar como vaga-lumes. Ver: DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos 280
vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 121.
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A metamorfose desses objetos descrita por Leiris, bem como a fotografia de Kono produzida por Griaule, significaria um violento abalo na tradição
na qual aquela “magnífica choça” estava inserida. Em um sentido mais amplo, significaria o crepúsculo do valor tradicional da cultura que aquele
povo atribuía a esses objetos. De uma existência única, da qual se desdobra sua história e sua autoridade ritual, ela passaria para uma existência
serial, através da reprodutibilidade técnica das imagens fotográficas. A perda da aura requer o apagamento dessa existência única, como também
a metamorfose do conteúdo e da autenticidade, que definem o fundamento da tradição que identifica esse objeto como sendo “aquele objeto”,
sempre igual e idêntico a si mesmo (BENJAMIN, 1994, p.167). Desse modo, a reprodução técnica pode inscrever a cópia do original em novas re-
lações culturais “universais”. A choça, para parafrasear Benjamin, abandona o seu lugar para instalar-se no estúdio de um amador, podendo ser
apreciada na parede de um quarto (Ibid, p.168). Por mais que essa fotografia apreenda em todos os detalhes o interior daquela choça, segundo
Benjamin, ela desvaloriza “o seu aqui e agora”.

Seguindo o raciocínio benjaminiano, esse “aqui e agora”, ou autenticidade, da choça de Kono, aquele pequeno território que assombrava o vila-
rejo, os homens e mulheres inseridos naquela cultura, cuja entrada só poderia ocorrer segundo procedimentos ritualísticos, é a quintessência
da própria tradição em que ela se enraizava. Com a fotografia, através da reprodução, a materialidade dessa coisa se perde momentaneamente,

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bem como o conteúdo da experiência ritualística. Assim, para Benjamin, a captura da coisa pela fotografia a destaca do fundo sagrado na qual
ela estava inscrita. E, na medida que ela multiplica a existência através da reprodução em quadros, livros e álbuns de arte, a fotografia substitui a
existência única dessa obra por uma existência serial. Tão importante quanto essa perda da aura é que, ao permitir a reprodução da mesma em
todas as situações possíveis, o próprio objeto fotografado não permanece o mesmo, mas é atualizado em uma nova existência no processo, inse-
rido em um novo regime das artes.

O que existe aqui são dois regimes artísticos distintos cuja existência de um equivale ao esquecimento formal do outro. Antes desse apagamento
causado pela reprodutibilidade técnica, a choça sagrada, bem como a Máscara-elmo iorubá, pertencem a um regime específico das imagens que
será denominado como regime ético das imagens. Nesse regime, “a arte”, na verdade, não é vivida como arte – no sentido que costumeiramente
esta é vivida no Ocidente – mas enquanto uma força superior, uma divindade. Nesse regime, tais obras não são destacadas do seu ethos, de seu

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destino, isto é, dos usos que têm e dos efeitos que induzem naqueles que a vivem no interior desse regime, sua produção obedece a uma técnica
que se funde inteiramente com o próprio ritual. Tais imagens existem através de funções mágicas, são objetos para a fruição dos espíritos. O mais
importante é que elas existem – e não que elas sejam vistas em um museu, galeria de arte, tese de doutorado ou álbum de fotografia (Ibid, p.173).
A máscara de Kono é um instrumento mágico e só ocasionalmente deve ser exposto aos olhos dos homens. A Máscara-elmo iorubá insere-se
organicamente na comunidade que a engendrou e é vivida no corpo-comunitário daquela cultura.
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Esses objetos, ao serem transformados em fotografia, são destacados do campo sagrado da qual faziam parte, e são reinventados no interior de
um novo regime da arte. Aqui estamos no cerne deste artigo. Entretanto, essa transformação não acontece como uma sucessão linear de um re-
gime pelo outro – do sagrado para o profano – pois isso seria supor que tais regimes são equivalentes, quando, na realidade, são completamente
diferentes. Na verdade, a existência de um pressupõe a invisibilidade do outro, mas não sua supressão. A Máscara-elmo iorubá ou a choça foto-
grafada, nos álbuns de fotografias ou no interior do laboratório de revelação dos clichês, sofre uma metamorfose profunda e completa no processo
de deslocamento que a fotografia lhe impõe.

Uma vez dispostos diante da objetiva, são transpostos em bloco para o regime estético das artes: estético porque agora eles passam a ser iden-
tificados como arte propriamente dita, ou, em outras palavras, transformam-se em um ser sensível, o que permite que sejam identificados assim.
Como já mencionado, a palavra estética não se refere a uma teoria do gosto, mas ao modo de ser desses objetos. Enquanto no regime ético das
imagens, tais obras eram idênticas aos modos vivos da cultura – o terror que os homens sentiram ao se aproximar da choça de Kono é sentida
como real – no regime estético das artes, elas são percebidas como escrituras mudas de um regime específico do sensível, como formas de civi-
lização transformadas em mitologia.

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Esse sensível é a potência de um pensamento que se transformou estranho a si mesmo. A partir desse momento, a fotografia de uma divindade
africana passa a conjurar não a coisa fotografada em si, mas um pensamento que está incrustado na materialidade mesma do objeto, como hieró-
glifos que podem ser decifrados. Esses objetos transformados em arte entrelaçam logos e pathos em uma só matéria: a Máscara-iorubá como
testemunha de um determinado inconsciente iorubá é apenas percebida por esse olhar eurocêntrico que tudo vê, pois a presença do inconsciente
iorubá na materialidade da máscara é estranho a si próprio, tal como Édipo, “o herói de um pensamento que não sabe o que sabe, quer o que não
quer” (RANCIÈRE, 2009a, p.49).

A estética nesse contexto, pensada aqui em sintonia com Jacques Rancière15, designa um campo de conhecimento que se ocupa da arte, um olhar
que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura desenvolver uma hermenêutica que reivindica que elas são coisas do pensamento. Não

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se trata de um novo nome para designar a Máscara-elmo iorubá ou a Máscara de Kono enquanto arte, mas uma reconfiguração completa desses
objetos na constelação de classificação, usos e funções, que os transpõem, em fragmentos, para o regime do pensamento da arte. A metamor-
fose ocorrida pelos objetos africanos, ameríndios e oceânicos – que deixam de ser meros objetos “rústicos” e sagrados para se transformarem
em objetos artísticos que deveriam ser contemplados no museu e que traduzem suas civilizações, por exemplo, só se torna possível com base na
revolução que opera a passagem desse domínio das artes do reino da ética e poética para o da estética.
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15 Ibid., loc. cit..
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MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

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________ . A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2009b.

ROUILLÉ, A. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Editora Senac, 2009.

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WARBURG, A. Histórias de fantasmas para gente grande: escritos, esboços e conferências (org. WAIZBORT, L.). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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Devourers of God – photography, the Black Arts and imperial aim

Abstract: The article attempts to demonstrate that, contrary to what may seem at first, no photograph is transparent and its visual as-
sumptions are anchored in the experience of the Western imperial gaze. It is, then, a question of exploring the implications of a posture
that considers photography not merely as a tool for the dissemination of the so-called primitive arts, but as a vector of a machinic be-
coming of these arts, devouring and producing images expressing a specific and imperial sensitivity with its historicity and its dilemmas.

Keywords: Carl Einstein; Photography; Black Art; Ethnocentrism.

Recebido em 17 de março de 2021

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Aprovado em 25 de março de 2021

Artigos
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> Carlito Carvalhosa: uma
experiência em equipe
Resumo >
O presente artigo resulta de um diálogo entre domínios da an-
Gabriel Cardoso Gonzaga
tropologia visual e da sociologia da arte, com ênfase em dis- Graduando em Ciências Sociais
cussões acerca das “histórias de vida”. Por meio dessa pers-
pectiva e de uma entrevista realizada com o artista Carlito Universidade de São Paulo
Carvalhosa, reconstituí, brevemente, alguns momentos e as-
pectos da trajetória do artista buscando articular sua expe-
riência e obras. Sem deixar de vista, no entanto, sua inscrição
no campo artístico em que está situado.
Palavras-chave >
Carlito Carvalhosa; Casa 7; Artes Visuais; Antropolo-
gia das Formas Expressivas; Sociologia da Arte.
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> Carlito Carvalhosa: uma experiência em equipe


Gabriel Cardoso Gonzaga123
> g.cardosogonzaga@usp.br
Universidade de São Paulo

Mesmo o mais humilde dos homens participa de uma engrenagem junto aos demais, exercendo uma função qualquer.
(Nuno Ramos)

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Ao encerrar períodos, encadeá-los e, assim, ir dando forma ao pensamento, os pontos podem formar textos. Mas, ao deslindar um ponto, juntan-
do infinitos deles em uma constante, “durante o crescimento, o ponto se torna uma linha” (INGOLD, 2012, p. 32). E, delas, também encadeadas,
pode-se dar forma a outro pensamento. Em desenho, pintura ou, enfim, imagem. Era de maneira semelhante a esta que Paul Klee (1879 – 1940)
via a forma dos pontos nos anos vanguardistas da década de 1920. Porém, vinte e nove anos depois deste, pouco antes da primeira Bienal de São
Paulo, em que regeu um frenesi pela abstração geométrica, um artista vizinho desse país continental imprimia o ponto de uma outra forma. Agora,
ao invés de partir do ponto para uma construção encadeada, formada, constituída por fortes contornos, ou quase que científica – como faziam

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os concretistas – por ele a construção se dava de modo que, literalmente, era possível vazar. (INGOLD, 2012) Em Buchi, o artista argentino Lucio
Fontana desfaz a forma positiva do ponto geralmente mobilizada em pintura, imprimindo-o de forma negativa na tela.

1 Agradeço à FAPESP pelo apoio a minha pesquisa de iniciação científica [no 2020/13712-2, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo].
2 Poucos meses após a realização e publicação desse trabalho, Carlito Carvalhosa, veio a falecer. Por isso, gostaria que esse singelo texto, que muito deve à nossa conversa, ficasse aqui também
como uma homenagem ao artista. Agradeço a generosidade com que Carlito me atendeu nessa primeira entrevista realizada para a minha pesquisa que, muito infelizmente, não poderá se repetir.
3 Agradeço à Sylvia Caiuby Novaes por toda a ajuda, intermediação com Carlito Carvalhosa e pelo seu curso de Antropologia das Formas Expressivas. É do cruzamento entre a minha iniciação 286
científica e o trabalho de aproveitamento desse curso – sem esse último não haveria tom antropológico algum no tratamento do objeto da pesquisa – que esse trabalho é fruto.
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Figura 1 – Obra de Lucio Fontana, Conceito espacial, tela, 55 cm x 84,6 cm. Fondazione Lucio Fontana, Milan.

Fontana nasceu em 1899, em Rosário na Argentina, em meio às artes. Sua mãe, argentina, era ligada às artes cênicas e o pai, italiano, à escultura.

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Desde sua infância, tanto na Itália quanto na Argentina, frequentou o ateliê do pai. Mas, essa experiência familiar foi apenas uma das formas de
aprendizado artístico que o artista experimentou. Durante alguns de seus períodos de estadia em Milão, na Itália, estudou de maneira formal na
Academia de Belas Artes de Brera. Portanto, não é demais supor que esse artista, tanto pela atividade escultórica decorativa exercida por seu
pai, quanto pela experiência no sistema de ensino acadêmico, dominava as práticas de representação mais tradicionais. O que significa dizer, ao
menos, que tinha domínio da construção tridimensional escultórica comprometida com o motivo da própria escultura e que, no que se trata de
pintura, da utilização de um plano bidimensional para uma construção imagética fundada nas ilusões de volume e tridimensionalidade. 287
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Entretanto, se pararmos o mínimo de tempo para ver esses buchis (buracos, em italiano) na tela Conceito Espacial, temos tal ilusão desestabiliza-
da em nossos olhos. O que está emoldurado nessa obra? Se nosso olho, ainda um pouco renascentista, está acostumado a encarar uma moldura
como uma janela, com sua vista ao mundo, o que é que agora há ali? Ainda mais bagunça é causada em nossos olhos devido a gradação dos tons
de marrom escolhidos pelo artista. Enfim, olhamos a tela, a contrastamos com seu título e, daí, um mundo se expande. “Os buracos que se abrem
nela dão para espaços pretos ilimitados, irredutíveis a qualquer dimensão” (MAMMÍ, 2000, p. 7, grifos meus) Apesar do referente dessa crítica ser
uma obra e artista distante, em tempo e espaço, de Fontana, ele pode nos ajudar bastante a pensar esse seu gesto. Pois, ao intervir no suporte de
maneira contrária à tradicional, Fontana quase faz a tela ser vista de maneira tridimensional. Agora não vemos mais algo a partir da janela que já
foi a tela, e sim, nos detemos no próprio suporte e ali também passamos a perceber um pequeno volume.

Seguindo nesse fluxo para frente é possível ver como desse gesto que formava pequenos furos, Fontana partiu para Tagli. Cortes, em italiano. “Du-
rante o crescimento, o ponto se torna uma linha, mas a linha, longe de seguir a superfície pré-preparada do chão” (INGOLD, 2012, p. 32) – nesse
caso, ao invés de contribuir para o trançado da superfície que é a tela, como ocorre na relação entre a linha e a terra descrita por Tim Ingold em
diálogo com Paul Klee – a linha de Fontana dá vida à forma, rompendo com o trançado que constrói a tela. Com esse gesto, o artista retoma os tra-

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balhos iniciados em 1949 e faz, nesse suporte tradicional, ainda mais possíveis aberturas para espaços como sugerem seus títulos e instalações.

Por um olhar mais rápido e desatento, que não tem nada de errado como comumente o julgam, seria possível ver nos trabalhos de Lucio Fontana
apenas uma tentativa de destruição da tela. E, à vista disso, de tudo que ela representa. Como, por exemplo, um lugar de criações idealizadas;
de construção de verdades, sejam elas religiosas ou políticas; ou, até mesmo, de cenas mais comuns da vida cotidiana, como as das vanguardas
impressionistas. Mas, olhar seus gestos dessa maneira é colocá-los apenas em diálogo com a natureza figurativa da pintura, seja tradicional ou
mesmo moderna. É, enfim, ver no seu gesto apenas a destruição da representação. Entretanto, acredito que outra leitura, semelhante à de Adolfo
Navas sobre a poesia, é bastante plausível e possível. Segundo o autor: “Todo poema, de alguma forma, é um corte, uma última cesura com o
mundo fora da página.” (NAVAS, 2012, p. 20) Mas, esse corte, segundo ele, em fotografia e em poesia, não é apenas uma ruptura com o mundo
e, sim, um corte em que se cria uma possível “reordenação em limites precisos”. (NAVAS, 2012, p. 20) Portanto, é um corte que dá forma. É uma

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cesura que não apenas destrói o mundo, mas produz o inverso. Cesura semelhante à ideia de vida de Tim Ingold, contrária à clássica dicotomia
entre sujeito e objeto que pode levar à um estancamento da dinâmica do mundo social. O autor propõe, no lugar desta visão dicotômica, outra em
que dinamismos “continuamente dão origem à forma das coisas ainda que elas anunciem sua dissolução.” (INGOLD, 2012, p. 32)

Esse processo dinâmico da realidade social pode ser visto na trajetória artística de Lucio Fontana, aqui, brevemente condensada por alguns de
seus trabalhos. Mas, se, ao invés de traçar somente a linha ao longo da qual esses seus trabalhos se desenvolveram, tentarmos vê-la trançada 288
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no emaranhado que compõe a história da arte e as produções artísticas, é possível chegar, por exemplo, em outro importante artista, chamado
Nelson Leirner. Esse, brasileiro, paulistano, também nasceu em meio às artes, em 1932, Tem processos migratórios marcados na sua constituição
familiar, como indica seu sobrenome polonês. Sua mãe, Felícia Leirner, foi uma escultora e, seu pai, Isai Leirner, além de industrial, foi um grande
mecenas, que chegou a dirigir o Museu de Arte Moderna de São Paulo e a Bienal de São Paulo. Não só no que diz respeito à morfologia social
da família de ambos os artistas, resguardadas as suas diferenças e singularidades, há pontos de contato. Nelson Leirner, em 1967, um ano antes
da morte de Fontana, evocou diretamente os trabalhos vistos do argentino, como em uma realização do processo descrito por Ingold, em que se
criam formas mesmo que as próprias anunciem suas dissoluções. A série “Homenagem a Fontana”, de Leirner, dá forma por uma revisita ao que
em Lucio Fontana era quase dissolução.

Mais uma vez informados por um olhar rápido, podemos ver, nessa série de homenagens feitas com lona e zíper, que o gesto de Leirner sugere
uma reestruturação da possibilidade figurativa desse suporte. Porém, será que apenas isso que pode representar seu gesto? O zíper dessas obras
sempre deixará marca de seu feito. Tanto se fechar o espaço da tela quanto se deixá-lo aberto. Algo do que o último toque na obra quis fazer sem-
pre ficará explícito. Com isso, de um vazamento da forma ítalo-argentina de Fontana, Leirner cria outras, também cheias de possíveis vazamentos.

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Sejam eles referentes à figuração ou não, pois, as imagens que Leirner produz na série, nada tem de figurativas. E, assim, a vida descrita por Ingold
em que se cria dissolvendo, vai se reproduzindo e perpetuando.

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Figura 2 - Nelson Leirner, Homenagem a Fontana I, 1967, lona e zíper, 180 cm Figura 3 – Nelson Leirner, Homenagem a Fontana II, 1967, tecido e zíper, 179
x. 125 cm (ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2020). cm x 124 cm. (Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil, doação 290
do artista, 1984).
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Percorrendo sob as orientações do antropólogo Tim Ingold, portanto, sempre a frente, mais ao longo dessas linhas e emaranhados, podemos
chegar a outro artista, também brasileiro, nascido em São Paulo, mas no ano de 1961, conhecido como Carlito Carvalhosa. Luiz Carlos Cintra Gor-
dinho Carvalhosa talvez não teria se tornado o artista que é hoje sem esse pequeno trajeto esboçado acima. Mesmo que os artistas e obras vistos
sejam de tempos anteriores a ele, e não apenas por Carlito viver e trabalhar em um campo artístico um pouco semelhante ao terceiro estado do
campo descrito por Pierre Bourdieu, no qual a “contemporaneidade como presença no mesmo presente existe praticamente apenas na luta que
sincroniza tempos discordantes” (BOURDIEU, 1996, p. 183), eles são, para esse último artista, determinantes. Em conversa com Carlito, na qual
havia de fundo uma pergunta fundamental sobre como ele formou-se artista, essa relação ficou logo explícita:

o primeiro contato que eu tive [com artes plásticas], meu pai jogava pôquer com o Nelson Leirner. Então, tinha um trabalho que era super importante,
tinha em casa. Uma Homenagem ao Fontana. Eram aqueles zípers assim, não é? E esse trabalho, eu gostava muito dele. Eles eram amigos. Jogavam
pôquer. (CARVALHOSA, 2020).

Apesar da caracterização dada pelo artista ao decorrer da conversa sobre a baixa presença das artes em sua infância, talvez seja possível dizer
que, semelhante aos outros artistas vistos acima, Carlito nasceu em meio às artes. É possível interpretarmos a presença deste trabalho de Fon-

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tana em sua casa não somente sob a perspectiva das linhas, emaranhados e vazamentos de Tim Ingold, mas também com perpectivas da teoria
dos campos de Pierre Bourdieu. A posse desse trabalho de Nelson Leirner pelo pai de Carlito e a própria relação de seu pai, engenheiro, chamado
Carlos, com o artista-professor da FAAP, pode nos dar algumas pistas sobre uma possível resposta à pergunta fundamental mencionada. Pois,
segundo Bourdieu, apesar da manifestação organizada e continuada produzida nos atos e enunciados sobre uma história de vida, nos quais as
pessoas produzem a si da mesma maneira que a filosofia sartriana – da qual o sociólogo francês é crítico –, ou seja, como indivíduos dotados de
consciências irredutíveis, há por trás dessas consciências determinações que vão além delas. Portanto, tentar aproximar-se da trajetória Carli-
to Carvalhosa, sem tentar aproximar-se do pouco que uma conversa pode levantar sobre sua relação mais ampla com o mundo social, ou seja,
de sua posição e das relações objetivas com outras posições que estabeleceu ao decorrer de sua vida,“é tão absurdo quanto tentar explicar a
trajetória do metrô sem levar em conta a estrutura da rede, ou seja, a matriz de relações objetivas entre as diferentes estações.” (BOURDIEU, 2006,

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p. 189-190). É por isso que ao olhar esse relato de Carlito, sobre seu primeiro encontro com artes visuais, intermediado pela obra de Nelson Leirner,
podemos ver como essa experiência subjetiva do artista é inscrita no que Bourdieu, criticando análises preocupadas apenas com as interações,
institui como relações objetivas entre posições (BOURDIEU, 1996). Portanto, não reduzindo os encontros entre esses personagens à meras inte-
rações, vemos como estas interações expressam algo da estrutura social em que nasceu esse artista. Possuir em sua casa uma obra de Nelson
Leirner, que talvez não seria adquirida sem a existência da relação afetiva de seu pai com o outro artista, seu companheiro de jogo, mostra como
essas experiências de Carlito Carvalhosa com as artes são produtos da circulação de capitais sociais e culturais que o rodeavam. 291
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A partir dessa perspectiva, antes de focar nas minúcias das experiências de Carlito Carvalhosa, tão importantes quanto o que há de estrutural
em sua trajetória, pois, apesar de determinada, não pode ser vista como mero produto dessa determinação (SCHWARCZ, 2015), dois dados bio-
gráficos apresentam enorme relevância: o primeiro, é o fato de sua “primeira experiência” com as artes visuais, descrita acima e, a outra é seu
ingresso no Colégio Equipe.

No ano em que a ditadura militar brasileira iniciava seu período mais violento, com a declaração do Ato Institucional-5 em 1968, nasceu uma ins-
tituição extremamente oposta ao Ato que, posteriormente, viria a ter forte papel crítico ao autoritarismo brasileiro. O Colégio Equipe é fruto da
Universidade de São Paulo, especificamente, de professores que saíram do Cursinho do Grêmio da USP e de um projeto educacional que no início
era apenas um curso preparatório para o vestibular e que, quatro anos depois de sua fundação, expandiu-se como colégio ao abrigar também
as séries que correspondiam ao antigo ginásio. A escola, descrita por um professor como ilha de liberdade ou, por Leda Catunda, outra artista
que lá estudou, como uma ilha de ripongas, desde sua fundação tem um projeto educacional diferente do comum entre a maioria das escolas da
cidade de São Paulo. Recusando a cunha de construtivistas, a diretora pedagógica da escola diz que o diferencial do colégio foi sempre basear a
educação na ideia de coletividade. “Em alguns momentos a gente partilha esses pressupostos [construtivistas], mas isso não é o tempo todo. O

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construtivismo responde como ensinar, mas não responde para quem ensinar e para que ensinar”. (NO COLÉGIO EQUIPE, 2013)

Além desse “como” incomum, talvez a resposta do Equipe para os outros dois pontos levantados nessa fala da diretora seja baseada em uma
ideia crítica do mundo social. Ou seja, formar pessoas críticas (“para que”) para a sociedade (“para quem”). Nessa mesma reportagem, o escritor
Antonio Prata, ex-aluno, diz, referindo-se à relação entre o Equipe e o início dos protestos de junho de 2013: “Moleques que pararam a cidade para
discutir em roda o País? Claro, aquilo parecia uma aula do Equipe!” (NO COLÉGIO EQUIPE, 2013, grifos meus). Ainda há poucos materiais mais
densos sobre a história do colégio disponíveis online4, mas, esses e outros depoimentos, já ajudam a ver um pouco sobre o que era essa institui-
ção. Um lugar de formação crítica fundamentada em processos de construção coletivos, nos quais as rodas são o melhor exemplo.

Outro ator importante no desenvolvimento desse colégio, é o apresentador de televisão Serginho Groisman. Nos anos 70, enquanto era estudante

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universitário, estava à frente do Centro Cultural do Equipe. Cumprindo com o objetivo do Equipe, crítico frente ao regime militar, Sergio levou vá-
rios artistas contrários à ditadura para tocar no colégio. Nomes como Caetano Veloso, Jards Macalé, Gonzaguinha, Gilberto Gil, “não tinham onde
se apresentar porque não havia um circuito cultural e por causa da censura.” E, daí, intermediado por Sergio, “o Equipe passou a ser um centro
possível”. (NO COLÉGIO EQUIPE, 2013)

4 Pretendo, em minha pesquisa, estudar as possíveis relações entre a experiência de estudos no Colégio Equipe e a formação do grupo Casa 7 e, assim, poder contribuir com algum adensamento 292
de material não apenas sobre os artistas, mas também sobre o trabalho educacional do Equipe.
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Não é possível saber se Carlito Carvalhosa está na famosa foto de Gilberto Gil tocando em cima de mesas no Colégio Equipe5. Mas, ao menos,
sei que ele esteve ali. Durante uma conversa na Fundação Casa Rui Barbosa, construindo um breve relato de sua trajetória ele disse se lembrar
desse show que, para ele, foi incrível (SÜSSEKIND; DIAS, 2018). Em nossa conversa, talvez como em qualquer outra que passe por esse perío-
do, apareceu a tropicália: “tinha uma coisa da cidade com arte. Principalmente com música, né?” (CARVALHOSA, 2020), muito importante para
seu ingresso nas artes. Mas, não apenas no que diz respeito às questões internas e formais das artes. Pois, segundo ele, havia na experiência da
música desse movimento, “talvez o período mais poderoso da música brasileira” (CARVALHOSA, 2020), um certo contraponto a outros setores
da esquerda brasileira na época. Manifesto, apesar da concordância crítica ao regime militar, presente em toda a esquerda, na qual está situado
tanto o Colégio Equipe quanto os artistas tropicalistas, em uma diferença importante. “Tinha uma coisa com o corpo que ia contra essa ideia da
esquerda, entendeu? E esse debate era um debate muito vivo no colégio. Porque havia essa ideia: isso também é política. E a política não é só o
pensamento estruturado da economia marxista.” (CARVALHOSA, 2020), pois o tropicalismo “criticava ao mesmo tempo a ditadura e uma estética
de esquerda acusada de menosprezar a forma artística”. (RIDENTI, 2014, p. 41)

Nessa análise de Carlito sobre a música dos anos 70, vista como contraponto a um pensamento de esquerda hegemônico vigente até então, o

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artista expressa tanto sua identificação com a preocupação estética levantada pela tropicália, quanto seu “desencanto com esse dogmatismo (...)
político”. (CARVALHOSA, 2020) Diz ele, sobre os períodos iniciais do colégio, que “antes o Equipe era um colégio mais engajado numa militância
política estruturada (...) Com pensamento marxista e tal.” (CARVALHOSA, 2020) Mas, apesar de uma forte presença da política no colégio, que
“tinha muita reunião política de debate” (CARVALHOSA, 2020), o Equipe “era um colégio muito aberto assim, a possibilidades e tal. E havia essa
questão com arte” (CARVALHOSA, 2020).

Essa tensão entre o que o artista nomeia de algo semelhante a política estruturada marxista e de política com o corpo se assemelha ao processo de
construção de significado analisado por Victor Turner. Segundo o autor, é ao associar o passado cristalizado pela cultura com o tempo presente,
através da tríade pensamento, desejo e sentimento, que emergem os significados que compõe o mundo social (TURNER, 2005). Carlito Carvalho-
sa realiza tal associação e fricciona duas tradições de momentos diferentes – uma anterior aos anos 1970 e outra que inicia com essa década –,

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ao descrever o que estava em vias de se cristalizar com a produção cultural tropicalista, opondo-a à tradição das “gerações anteriores”, que “eram
muito mais politizadas do ponto de vista de um engajamento de esquerda. Muitas vezes Trotskistas, Libelu, essas coisas todas”. (CARVALHOSA,
2020) Desse choque com as tradições culturais anteriores, analisando o meio em que estava situado, ao dizer, “eu acho que a minha geração...”
(CARVALHOSA, 2020), mas, principalmente, colocando a si nesse entremeado geracional, diz: ”eu, pelo menos... A gente já meio... sentia um cer-
5 A foto a que me refiro é uma das duas fotos que estão na sobrecapa do livro Equipédia: o livro dos 50 anos do Colégio Equipe (2018) – que não foi utilizado nesse trabalho pelo fato de eu ter tido
acesso apenas posteriormente. Segundo índice do livro, ela é de Mário Luiz Thompson 293
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to desencanto com esse dogmatismo (...) político. Assim, achava que era um caminho meio...(pausa) tinha uma espécie... tinha um autoritarismo
mesmo, sabe? Essas reuniões...” (CARVALHOSA, 2020).

Entre esses silêncios e pausas da sua fala, Carlito apresenta a mudança que estava em curso naquele momento. Ao invés de ver na produção
cultural um instrumento da política, o artista já apresenta ali um outro olhar sob esse fazer da cultura. Esse olhar, criado na fricção com a tradi-
ção política anterior, refletindo o choque descrito por Turner “entre passado e o presente, o passado coletivo e o presente pessoal e existencial”
(TURNER, 2005, p. 178), foi determinante para a constituição de sua visão sobre o próprio fazer artístico. Nas palavras dele: “Essa oposição entre o
engajamento político e todos os outros desejos da adolescência era um dilema para a gente. E isso me atraiu para ser arista.” (SÜSSEKIND; DIAS,
2018, p. 170, grifos meus).

Já está claro que o Colégio Equipe é para Carlito Carvalhosa, tal como na metáfora de Pierre Bourdieu, o que a rede do metrô é para as estações.
Pois, o colégio foi determinante para a formação do setor artístico paulistano do período, tanto em uma dimensão simbólica, na qual as artes
sempre permearam o projeto educacional do Equipe – como mostram os cursos de Cinema, Fotografia e Teatro, que outras escolas não possuíam6
– quanto em incentivos materiais, por exemplo, de apoio à publicação das revistas de história em quadrinhos feitas por alunos (MALTA, 2002) ‒

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dentre os quais, estavam Paulo Monteiro, Rodrigo Andrade, Antonio Malta, Leda Catunda e o próprio Carlito Carvalhosa.

. “O Colégio Equipe era um colégio meio fora do normal, assim, naquela época, né? Ele era um colégio que não sei por que... tinha um monte...
todos os alunos eram artistas.” (CASA 7, 2015) Apesar dessa fala de Paulo Monteiro, outro artista visual, repetir os ares de anormalidade que co-
mumente rondam as produções artísticas, logo depois ele mesmo dá uma possível resposta: ”Tinha muitos filhos de políticos que tinham sido
cassados. Ou intelectuais que tinham sido cassados. Então ficou uma redoma ali. Eu não sei se por causa disso ou se por causa de outra coisa, é...
mas, todo mundo queria ser artista ali” (CASA 7, 2015).

Essa tal redoma, se vista à luz da já mencionada teoria de Bourdieu, dá indícios de aspectos estruturais que conformam a produção artística, como

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as relações entre capitais culturais e sociais. Não é sem motivo, como analisa Paulo Monteiro, que nesses anos o Colégio Equipe formaria figuras
importantes em diversos campos de produção cultural. Por exemplo, na música, os Titãs e, nas artes visuais, Leda Catunda, Carlito Carvalhosa,
entre outros.

Entretanto, restringir a análise da trajetória do artista Carlito Carvalhosa às determinações sociais que essa própria trajetória expressa, é fazer o
que Lilia Schwarcz denomina filosofia sem sujeito (SCHWARCZ, 2015), pois, se permanecer restrita às estruturas, uma análise de uma trajetória
294
6 Informações retiradas da fala de Leda Catunda para a Carta Capital: “Passei o colegial inteiro num ensaio. Tinha curso de Fotografia, Cinema, Teatro, coisa que escola nenhuma tinha.”
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de vida pode terminar por retirar dela a própria vida, se tivermos à vista a ideia de Ingold (2012) já mencionada. Ao invés dessa filosofia restrita ao
que a experiência no Equipe manifesta de estrutural, é preciso ouvir as minúcias da trajetória do artista que ele próprio construiu. Pois, ali, o artista
não apenas formou-se culturalmente, mas construiu laços afetivos importantes que não são só capital social.

Entre esses amigos, estavam Antonio Malta, Fábio Miguez, Paulo Monteiro, Rodrigo Andrade. Os dois primeiros, ao fim do colégio, foram juntos
com Carlito Carvalhosa cursar arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU). A decisão de Carlito
pela Arquitetura deu-se em função da amplitude da graduação e, também, por sua descrença em escolas de arte. Ele “não acreditava muito em
escola de arte. (...) Achava que você tinha que aprender sozinho essas coisas”. (CARVALHOSA, 2020) Entretanto, a graduação pareceu à Carlito
bastante esvaziada de sentido7. Além dos longos períodos de ensino relatados por ele como tempos em que pouco se fazia objetivamente, em
contraste com seu aprendizado libertário frente à oposição elaborada por ele sobre o que permeava a atuação política, a FAU se apresentou a ele
como uma instituição um pouco atrasada.

[A FAU] Também tava nessa saída da ditadura, começo da democracia, essa passagem dos anos 80. Muitas questões ligadas a esse problema do
engajamento político, assim, como forma de... acho que um pouco mais atrasado que o Equipe na verdade, entendeu? A questão política ainda era

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muito presente na escola (CARVALHOSA, 2020, grifos meus).

Se essa experiência esvaziada de Carlito Carvalhosa na FAU se assemelha ao “comportamento repetitivo e rotinizado” (TURNER, 2005, p. 179),
as aulas no ateliê de gravura de Sergio Fingermann, feitas por ele e seu grupo de amigos – Fábio Miguez, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade –, se
parecem com as experiências que interrompem tal comportamento. Nesse ateliê, Rodrigo Andrade, artista e amigo do Colégio do Equipe, já havia
estudado anteriormente com o gravurista e, então, o grupo decidiu voltar a frequentar ao ateliê. “Terça-feira a gente ia, passava o dia inteiro lá e
era uma coisa ótima. A gente se encontrava, dava muita risada e era um trabalho muito objetivo. Você fazia alguma coisa. Pensava sobre desenho.”
(CARVALHOSA, 2020) Diferente do que acontecia na FAU. “O fato é que essa experiência mostrou que tinha um outro lugar que era próximo da
experiência do Equipe que tinha uma vitalidade que eu não tava encontrando na escola.” (CARVALHOSA, 2020) Nesse relato em que o artista

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contrapõe seu desencanto subjetivo com a FAU com a experiência de um ateliê, emerge o tipo estrutural de significado descrito por Victor Turner,
ao ser apresentado pelo artista como um encontro naquele tempo presente de estruturas de experiências anteriores vividas no Equipe. E, como
a experiência não é estanque, desse momento de ocupação predominante dos valores (TURNER, 2005) do trabalho manual, objetivo e artístico
encontrado no ateliê de Fingerman, visto em relação às produções anteriores durante o período de Equipe, “surgiu a ideia de a gente ter um ateliê.”
(CARVALHOSA, 2020)
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7 Durante a entrevista, o artista tece uma crítica ao ensino da FAU naquele momento.
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Esse ateliê se tornaria transformativo não apenas para Carlito Carvalhosa ou seus companheiros de grupo, mas, para a história da arte brasileira.
Ali, de início, estavam Antonio Malta, Carlito Carvalhosa, Fábio Miguez, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade. Mas, após um período na casa, Antonio
Malta decidiu sair do ateliê (MALTA, 2002). Dessa saída, um lugar vagou e Nuno Ramos passou a ocupá-lo. Essa última formação foi a que fez o
grupo conhecido como Casa 7.

A família de Rodrigo Andrade era dona de uma vila em Pinheiros e, no mesmo período em que o grupo decidiu se juntar, a casa de número 7 vagou.
“E a gente então alugou. Arrumamos a casa para ter um ateliê. Que a ideia era um ateliê que nem o do Sérgio, todo arrumadinho, com sofá boni-
tinho, entendeu? Mas, acabou sendo o contrário” (CARVALHOSA, 2020). O ateliê dos pintores começou todo arrumado, com mesas de trabalho,
uma de gravura, marca da experiência conjunta com Sergio Fingermann, mas, com o passar do tempo, tudo foi jogado fora e só restou “tinta e os
trabalhos” (CARVALHOSA, 2020).

Talvez, também, devido às dimensões que os trabalhos desses artistas foram tomando. De início, comumente, na Casa 7 faziam pequenas pinturas
à óleo. Mas, “o grande passo foi o negócio dos painéis, que é uma ideia do Rodrigo [Andrade]”. (CARVALHOSA, 2020) Dali em diante, problemas
como o alto custo do material seriam revertidos. A cara tinta a óleo foi substituída por esmalte sintético, “que você comprava numa esquina” (CAR-

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VALHOSA, 2020) E a tela pelo barato papel kraft. O lento tempo do óleo pode ser contornado com esses materiais. Mas, o grande passo não se
resume a essas possibilidades práticas de trabalho que os novos materiais possibilitavam. Sim, “era muito fácil fazer aquilo”, mas como ressalta
Carlito, “plasticamente eu acho que é um negócio muito bacana”. (CARVALHOSA, 2020) “São trabalhos juvenis, mas eles têm potência.” (CARVA-
LHOSA, 2020) Potência que foi rapidamente reconhecida por toda a arte da época. Em 1984, a exposição Painéis, de Paulo Monteiro, Nuno Ramos
e Rodrigo Andrade, alçou o grupo da Casa 7 a um patamar bastante alto. Antonio Malta, o artista recém-saído do grupo, relata que a exposição foi
um como um “soco na cara” que o transportou para o presente8. Um presente em que diferente daquilo que procurava em seus estudos de História
da Arte estava ali, logo a frente. Desde então, os painéis de esmalte sintético sob papel kraft se tornariam a marca de todo o grupo.

A criação de uma diferença na antropologia ao tradicional olhar cindido entre indivíduo e sociedade, clássica oposição das ciências sociais, tem

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não só contribuições estrangeiras como as de Ingold (2012) e Turner (2005). O antropólogo Marco Antonio Gonçalves (2012) propõe articular pela
etnobiografia, nessa clássica oposição, uma terceira dimensão: o sujeito. Segundo ele, uma etnobiografia pretende olhar não só o indivíduo e a
cultura, mas, também, o papel do sujeito nesta relação. Pois, a criação individual, fruto de processos de individuação, ou seja, de formação de indi-
víduos, se desenvolve na cultura. Isso significa pensar que as criações e manifestações dos sujeitos, suas histórias individuais, não são insuficien-
tes para pensar o social. A verdade é o contrário. As elaborações pessoais só ocorrem em diálogo, portanto, em certa medida, elas são a própria
8 “A exposição “Painéis”, pelo contrário [das exposições “Pintura como meio” e “Como vai você, Geração 80?”], foi, como se diz, um “soco na cara”. [...] em meio a questionamentos sobre pintura 296
que me faziam mais mergulhar no estudo da História da Arte do que procurar uma linguagem atual, ao visitar esta exposição fui transportado de sopetão para o presente” (MALTA, 2002, p. 211)
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cultura. “A realidade sociocultural, portanto, não é mais que as histórias contadas” e “as narrativas pelas quais ela é representada.” (GONÇALVES,
2012, p. 10) São criadoras desta e, portanto, mais que representativas para pensar o social.

Após essa breve digressão, é possível alterar um pouco mais o olhar dedicado a história de Carlito Carvalhosa. Pois, ao invés de tentar compreen-
der a relação de Carlito Carvalhosa com as artes e, especificamente, esse momento com o grupo Casa 7, opondo indivíduo e grupo, aqui – e, tam-
bém, por hora – é interessante focalizar na criação de Carlito. Ao invés de entrecruzar as histórias de todos os integrantes, das suas semelhanças
e divergências, pretendo focalizar um pouco mais o olhar para a história pessoal de Carlito9. É claro que o grupo está e estará nessa história, pois
ela é para o artista uma verdadeira experiência transformativa. Portanto, mesmo com foco nos seus improvisos, em suas criações, situando-as,
como nos orienta tanto Pierre Bourdieu (1996) quanto Marco Antonio Gonçalves (2012), é possível se aproximar mais da relação desse artista com
a arte, sem desconsiderar como essa experiência de grupo foi determinante para essa relação. Dito isso, antes de ver algum painel realizado na
Casa 7, é pertinente dar um salto em direção a alguns trabalhos posteriores.

O artista distante a que se referia aquela crítica do filósofo Lorenzo Mammí, essa última contrastada aqui com os buracos de Lucio Fontana, é
Carlito Carvalhosa. Esse último que criou os buracos referentes desse texto crítico. Mas, ao invés de fazê-los em uma pintura, fez em esculturas,

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na série Porcelana esmaltada realizada entre 1996 e 1997. Vale colocar essas rígidas esculturas, feitas com o material que dá nome a esse conjunto
de trabalhos, em diálogo com outra série de esculturas do artista, chamada Ceras Perdidas10.

Essas últimas, feitas dois anos antes das de porcelana (1994), são de cera e parafina. Ambas preservam uma organicidade comum, expressa na
tortuosidade de suas linhas curvas. Entretanto, apesar de Carlito criar algo de semelhante entre elas, ele parte de materiais e processos bastante
diferentes, que evidenciam o que elas têm de divergente em seus resultados. A singularidade de cada cera perdida deve-se ao fato de que seu
processo de construção, “o escorrimento de uma superfície cilíndrica em direção ao chão” (TASSINARI, 2000, p. 9), tem um alto grau de improviso.
Em arte e criação sempre pode haver uma medida de improvisação, mas nessas obras, mesmo que o artista controle a queda pela temperatura
aplicada à cera, o resultado estético final é bastante imprevisível. Já as porcelanas, apesar de “maleáveis ao nascer, ao queimar se enrijeceram”.

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(NAVES, 2000, p.11) Em suma, as esculturas em cera e parafina partem de um início rígido, tornam-se maleáveis e se encerram com outro enrijeci-
mento; enquanto as porcelanas partem do material maleável para dele enrijecerem. Desse processo ambíguo, Carlito Carvalhosa cria esculturas
ambíguas que transitam da rigidez à maleabilidade. Ao mesmo tempo também preserva estruturas comuns, seja por um caráter orgânico ou pela
própria ambiguidade.

9 Esse trabalho de entrecruzamento das trajetórias deverá ser realizado em minha pesquisa de iniciação científica. 297
10 A breve leitura e análise dessas séries foi realizada pelas imagens publicadas no livro monográfico do artista indicado na bibliografia..
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Essa tensão característica do trabalho de Carlito Carvalhosa, rotinizada, principalmente, após a leitura do crítico Rodrigo Naves, que caracterizou
o trabalho do artista por sua “natureza ambígua”, não é apenas um produto do campo artístico. Se, “é justamente através da interpretação pessoal
que as ideias culturais se precipitam e tem-se acesso à cultura” (GONÇALVES, 2012, p. 9), enxergar essa natureza ambígua da arte de Carlito so-
mente como mero produto do campo artístico pode reforçar uma desconsideração da manifestação criativa operada pelo artista nessa produção
– a qual tanto a perspectiva sociológica quanto a antropológica aqui postas em diálogo tem como objetivo não realizar11. Essa ambiguidade é sim
inscrita na posição que ocupa o artista no mundo social, mas, este mundo, realidade sociocultural, é também produzido e constituído pela história
pessoal de Carlito. Dito de maneira mais simples, é também resultado da realização pessoal criativa de Carlito Carvalhosa.

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Artigos
Figura 4 - Carlito Carvalhosa, Sem título, esmalte sintético sobre papel, 200 cm x 230 cm. (ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras, 2020). 298
11 Ver também Esboço para uma teoria da prática (1983) publicado sob organização de Renato Ortiz em Pierre Bourdieu: sociologia (1983).
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Não há melhor maneira de ver a realização criativa de um artista do que por suas obras. Então, além dessas esculturas, um de seus painéis
realizados anteriormente no período da Casa 7, pode ajudar. Os painéis, segundo o artista, “têm um barato assim. São obviamente juvenis, mas
obviamente tem ali aquilo que tem que ter, assim, não é. Que é uma vitalidade, tal. E... (pausa)”. (CARVALHOSA, 2020) Entre 1862 e 1863, Édouard
Manet (1832 – 1883), com a pintura Déjeneur sur l’herbe (1863), realizou uma verdadeira revolução simbólica. O assunto dessa tela, uma cena de
gênero era considerado de baixa relevância, numa época em que ainda regiam com certa força as hierarquias acadêmicas. Portanto, ao tratá-lo
nas grandes dimensões da pintura, Manet afrontou as categorias de apreciação da arte vigentes12. Apesar da grande distância entre Manet e Car-
lito Carvalhosa, a operação moderna do primeiro assemelha-se à do segundo, considerando as estratégias referentes as dimensões dos trabalhos.
Como no Déjeneur, os painéis do Casa 7 alcançavam mais de 2 por 2 metros. Só que nesse diálogo com toda a tradição pictórica anterior, Carlito
Carvalhosa e os artistas da Casa 7somaram mais uma necessária transgressão. Retiraram da pintura o tradicional chassi e realizaram-na sobre
um papel barato. Como já dito, em lugar do óleo sobre tela, esmalte sintético sobre papel kraft.

As escolhas de Carlito e da Casa 7 vistas acima rompem e desestruturam elementos tradicionais da pintura, assim como as tomadas de posição
de Manet, Lucio Fontana ou Nelson Leirner. Entretanto, a operação realizada pelo artista e pelo grupo nos painéis não foi só de ruptura. o. Pois, ali

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na Casa 7, a relatada baixa presença de arte na vida de Carlito Carvalhosa seria reconvertida. Já que, mesmo dizendo sobre uma forte ingenuidade,
Carlito diz: “A gente tinha muita noção de pintura. Isso a gente tinha. Que vinha de uma formação... Quer dizer, a gente sabia olhar pintura, né? Até
hoje” (CARVALHOSA, 2020).

Durante esse momento da conversa, a pausa logo após a palavra formação me despertou imensa atenção. Pouco tempo antes dessa fala, ao
descrever sua escolha pela universidade, interpelei o artista com uma referência sobre escolas de arte e, principalmente, sobre a FAAP, devido
ao grande número de artistas da geração formados por essa escola. Dessa minha interferência, sem titubear, Carlito respondeu o que já vimos.
“Eu não acreditava muito em escola de arte. (...) Achava que você tinha que aprender sozinho essas coisas. Aquilo [escola de arte] não fazia muito
sentido” (CARVALHOSA, 2020) Talvez, essa resposta anterior, nascida sem pausas, possa ocupar o silêncio dessa outra fala posterior. Um silêncio
sobre formação artística vindo desse artista talvez possa dizer mais do que falas longas e sem pausas. Falas sem buracos. Vimos aqui que esses

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últimos podem dizer muito, mas, devido a uma inclinação ao verbo, interpelei-o mais uma novamente, perguntando sobre sua formação artís-
tica, dessa vez tentando localizá-la na experiência no ateliê do Sergio Fingermann. E, daí, Carlito preencheu a lacuna: “não, não... Isso veio do...
do... da vontade de saber isso. De olhar as coisas. De olhar livro antigo. Olhar livro novo. Ir para o MASP que tinha pintura, né? O MASP foi muito
importante. E das Bienais, entendeu? A gente ia e olhava com muita atenção” (CARVALHOSA, 2020).

12 Ver Manet: uma revolução simbólica (2014) de Pierre Bourdieu. 299


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Ele também comumente relata sobre visitas a sala Sergio Milliet da Biblioteca Mário de Andrade que, como no ensino do Equipe, também ocor-
riam em grupo. Ainda mais sobre formação, diz:

é... eu acho que essa capacidade de falar sobre arte, de comentar, é até uma coisa que eu tive que depois que modular quando eu faço isso com pes-
soas que... mesmo sendo amigas talvez não tenham essa (pausa), nem esse desejo de ouvir coisas que você possa tá falando, entendeu? É, porque
muitas vezes o cara não quer falar sobre o trabalho dele. Entende? É... Mas, a capacidade de você olhar pra um trabalho e você olhar muito tempo
pra um trabalho e entender o funcionamento dele e poder... Essa... Essa... Profundidade, assim, vem muito da experiência da Casa 7, sabe? (CARVA-
LHOSA, 2020)

Dessa experiência comum de pintura, permeada de muita conversa, discussão e olhar para a história da arte, seria muito difícil frutificar uma ex-
periência com a pintura “mais soltona mesmo sem muito compromisso” (CARVALHOSA, 2020) como a que caracteriza, para o artista, a da famosa
exposição do período, Como vai você Geração 80?13. Para Carlito Carvalhosa, referindo-se aos trabalhos realizados na Casa 7, “a pintura tinha que
tá estruturada. No sentido da história da pintura. Do Cézanne”. (CARVALHOSA, 2020) Deveria, então, dialogar com essa em termos semelhantes
aos que Agnès Varda fez em seus trabalhos. Como nas cenas de seus filmes que remetem às pinturas tradicionais, as quais a diretora mostra em

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seu documentário autobiográfico ou, em um exemplo melhor, como ela faz em seus trípticos14. Pois, nesses, não apenas reivindica a tradição da
pintura, mas a tensiona ao inserir vídeos num suporte comumente pictórico. Assemelha-se ao posicionamento de Carlito que, logo após reivin-
dicar a estrutura de Cézanne, diz: “não que não pudesse ser avacalhado” (CARVALHOSA, 2020). Carlito Carvalhosa queria e diz que a pintura
deveria ser a um só tempo estruturada nos termos da pintura moderna e avacalhada. “Havia uma vontade de tensionar essa pintura com... Com
uma espécie de uma contradição, sabe? Que aquilo que tá figurado não casa com aquilo...”. (CARVALHOSA, 2020)

Havia, então, uma vontade de criar algo que tivesse uma natureza (questão cara ao artista como visto em nossa conversa) ambígua. Algo que
estivesse, portanto, como entre os buracos e cortes de Lucio Fontana e os zíperes que podem fechar esses cortes de Nelson Leirner. Algo ten-
sionado. Esticado, mas estancado. Contraditório. Ou, nos termos de Victor Turner, friccionado. Como se estivesse, de certa forma, em um embate.
Seja mais forte e direto, como era rotina na Casa 7 (talvez haja algo disso no painel Sem título). Ou já mais fluído, como em Porcelana Esmaltada

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ou em Ceras Perdidas. Todas essas obras, da juventude à maturidade, têm essa tensão ambígua entremeada, algo semelhante ao que, outro ami-
go, companheiro de Casa 7, vê no... “[...] ovo, obra-prima comum a todas as aves, uma perfeita combinação de higiene e de asco, de assepsia e de
gosma, de transparência e amarelo de cádmio, de sol e placenta, desastre e construção, de solidez e fragilidade, origem e fim” (RAMOS, 2008, p. 76,
grifos meus).
13 Importante ressaltar que a caracterização não é de caráter pejorativo. O próprio artista declara que é apenas uma diferença de postura artística.
14 Agnès Varda, Le triptyque de Noirmoutier, filme 35 mm transferido para vídeo de 3 canais, madeira, dobradiças e sistema de polias, 104,5 cm x 457 cm aberto, 104,5 x 326 cm fechado. Disponível 300
em: < https://www.moma.org/collection/works/117936>
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ENTREVISTAS

CARVALHOSA, Carlito. Entrevista concedida ao Autor. São Paulo, 01 de maio de 2020.

<<<<<<<
CAMPOS, Antonio Malta. Entrevista concedida ao Autor. São Paulo, 16 de julho de 2020.

FILMES

Varda par Agnès. Direção de Agnès Varda. 2019. (159 min)

Casa 7 – Pivô TV. Direção de Mariana Lacerda e Pio Figuerôa. Recife: Bebinho Salgado 45, 2015. Disponível em: <https://www.pivo.org.br/canal/casa-7/>

Artigos
JORNAL

NO COLÉGIO EQUIPE, coletivo sempre. Carta Capital, São Paulo, 29 ago. 2013. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/educacao/o-cole-
tivo-sempre/> Acesso em: 18 jun. 2020.
302
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 285-304 | Jan - Jul | 2021

IMAGENS

The Tate Gallery 1984-86: Illustrated Catalogue of Acquisitions Including Supplement to Catalogue of Acquisitions 1982-84, Tate Gallery, London 1988, pp.145-7.

HOMENAGEM a Fontana I. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra65478/homenagem-a-fontana-i. Acesso em: 08 de junho de 2020. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

SEM Título. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/
obra12467/sem-titulo. Acesso em: 08 de junho de 2021. Verbete da Enciclopédia.

Carlito Carvalhosa: an experience with others

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Abstract: This article is the result of a dialogue between the fields of visual anthropology and the sociology of art, with an emphasis
on discussions about “life stories”. Through this perspective and an interview with the artist Carlito Carvalhosa, I briefly reconstituted
some moments and aspects of the artist’s trajectory, seeking to articulate his experience and works, however, without forgetting his
inscription in the artistic field in which he is located.

Keywords: Carlito Carvalhosa; Casa 7; Visual Arts; Anthropology of Expressive Forms; Sociology of Art.

Artigos
Recebido em 20 de outubro de 2020

Aprovado em 18 de janeiro de 2021

303
> Culturas indígenas no Mato Grosso do
Sul: outros saberes, outras perspectivas,
espaços políticos e de resistência
Resumo >
No artigo, argumenta-se sobre culturas indígenas, as quais, em
Nilva Heimbach
muitos casos, são expostas de maneira estereotipada, dentro Doutora em Educação
de uma visão colonialista, na Disciplina de Arte. Discutem-se,
a partir de resultados de uma pesquisa realizada em Campo Universidade Estadual de Mato Grosso
Grande/MS, com base na determinação da Lei 11.645/2008 e do Sul
com suporte teórico nos Estudos Culturais e no Grupo Moder-
nidade/Colonialidade, as culturas indígenas na perspectiva
da diferença, em que outros saberes são possíveis. O estudo
objetiva contribuir para potencializar e tencionar o ensino de/
sobre culturas indígenas presentes no Estado de Mato Gros-
so do Sul, como marcadores de lutas, resistências e política.
Concluiu-se que debater, a partir das conquistas das diversas Palavras-chaves >
etnias, é romper com a tendência de fixá-las no passado; a
arte ressignificada possibilita o diálogo entre indígenas e não Culturas indígenas; Ensino de arte; Colonialidade; Res-
indígenas e aponta para caminhos interculturais. significação.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 304-330 | Jan - Jul | 2021

> Culturas indígenas no Mato Grosso do Sul:


outros saberes, outras perspectivas, espaços políticos e de
resistência
Nilva Heimbach1
> nilvah@uems.br
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul

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Introdução

Candau (2008) aponta para a escola como “um espaço de cruzamento de culturas, fluido e complexo, atravessado por tensões e conflitos” (CAN-
DAU, 2008, p. 15), e para aprofundar na compreensão das relações estabelecidas e na possibilidade de romper com o caráter padronizador, homo-
geneizador e monocultural imposto à educação, discutem-se particularidades das culturas indígenas. O estudo centra-se em estéticas indígenas,

Artigos
de etnias que se localizam em Mato Grosso do Sul e que são possíveis de serem tratadas no ensino de Arte na Educação Básica. Estéticas com
suas peculiaridades, carregadas de saberes e cosmovisões, como marca identitária, política e de resistência.

1 Possui graduação em Educação Artística pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1989), graduação em Segunda Licenciatura em Pedagogia pela Faculdade Educacional da Lapa
(2018), mestrado em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (2008) e doutorado em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (2019). Tem experiência na área de Artes, com
ênfase em Educação Artística, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura indígena, artesanato regional, ensino de arte, apreciação estética, exposição e interculturalidade, currículo, 305
colonialidade.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 304-330 | Jan - Jul | 2021

Enfoca-se a possibilidade de um ensino de arte que busca propostas descolonizadoras, capazes de contribuir para a construção do subjetivo dos
sujeitos e de um saber contextualizado, valorizando os diversos saberes. Busca-se, nesse sentido, dialogar comas estéticas e culturas indígenas
presentes em Mato Grosso do Sul. Entende-se que as propostas em Arte evidenciam, além da forma, da estética2, o conteúdo, o subjetivo, os
discursos enunciados e as relações de poder, considerando que o olhar singular da arte faz conexão com outras áreas de conhecimento, assim
como espelha em si as contribuições daquelas transversalizando fronteiras. Neste território, a arte gera conexões que podem abordar conceitos
e conteúdos que ultrapassam os limites de seus próprios territórios (MARTINS, PICOSQUE e GUERRA, 2010, p.194).

Logo, as relações estabelecidas entre o ensino de Arte e as culturas indígenas propiciam reflexões sobre a escola como um espaço de encontro
entre culturas, no caráter do respeito à diferença. O ensino de Arte, especialmente na Educação Básica, com propostas visando uma educação in-
tercultural, pode contribuir como canal de negociação, abrir diálogo com a diferença, de modo específico, entre povos indígenas e não indígenas.

Procura-se, assim, demonstrar a possibilidade de uma perspectiva intercultural anunciada por Candau (2008), que afirma:

a perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação para o reconhecimento do ‘outro’, para o diálogo entre os diferentes grupos

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sociais e culturais. Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes
grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual a diferença seja dialeticamente
incluída. (CANDAU, 2008, p.23).

As culturas indígenas fazem parte dos conteúdos relativos ao ensino de Arte na Educação Básica. A Lei 11.645/20083, embora não desconsidere
a transversalidade da temática no currículo, evidencia que as relações estabelecidas entre o ensino de Arte e a cultura indígena na formação da
sociedade brasileira propiciam reflexões sobre a escola comoum espaço de encontro entre culturas, respeitando as diferenças. A Lei 11.645/2008,
a respeito das culturas indígenas, é marcada em sua construção como conquista, resistência e luta de coletivos reivindicando espaços que foram
silenciados. No processo de colonização, a cultura indígena foi desconsiderada do espaço escolar4, saberes foram inferiorizados, diminuídos de
tal modo que a promulgação da Lei pode ser entendida como um avanço e vitória na desconstrução de um currículo monocultural e colonizador.

Artigos
2 De acordo com Barbosa (1998, p. 41), “é preciso, entretanto, ficar claro que educação estética não é ensinar estética no sentido de formulação sistemática de classificações
e de teorias que produzem definições de arte e análises acerca da beleza e da natureza. Este não é o principal propósito da educação estética [...] a experiência apreciativa”.
3 A Lei determina o desenvolvimento de propostas com a cultura indígena na Ed. Básica, preferencialmente na Ed. Artística, Literatura e História.
4 O foco da pesquisa é a cultura indígena em escolas não indígenas, no entanto, sobre as conquistas escolares em espaço indígena e demais conquistas de direitos sociais e políticos, ler em: 306
Nascimento (2004), Urquiza (2016).
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 304-330 | Jan - Jul | 2021

A produção cultural indígena, no que se refere a sua arte, carrega outros saberes, outras perspectivas, diferentes da visão colonialista. Argumen-
ta-se que a produção cultural indígena é arte e que a colonialidade tende a transformá-la em algo menor, estereotipado, folclórico, naturalizando
o silenciamento. Parte-se, pois, desse silenciamento para abordar as culturas e as estéticas indígenas como ato político e de resistência. Silencia-
mentos que denunciam e ressignificam as artes indígenas. Entende-se, de acordo com Aguiar e Pereira (2015) que,

quando tratamos de arte indígena, estamos abrangendo um leque de expressões estéticas, éticas, lúdicas e de afirmações étnicas e políticas. As mais notórias, e que desde
a conquista contam com registros mais ou menos sistemáticos, são aquelas relacionadas à materialidade, como cestaria, cerâmica ou escultura. Contudo, existem outras
formas de manifestações artísticas talvez menos retratadas e estudadas, como a poética, a música, as danças, as narrativas míticas e a pintura corporal (AGUIAR e PEREIRA,
2015, p. 719).

Como se percebe, a arte indígena abrange um significativo leque de expressões e linguagens artísticas. Suas manifestações estão interligadas
com as cosmovisões de cada etnia e não ficam presas ao passado, pelo contrário, são ressignificadas e atualizadas de acordo com o contexto
vivenciado. Carrega particularidades presentes nas coletividades, com diversidade de possibilidades expressivas, com código, símbolos e signi-
ficados.

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Os povos indígenas estão por todo o território brasileiro, apresentando uma significativa população. No Estado de Mato Grosso do Sul, existem vá-
rias etnias indígenas, cada qual com suas especificidades e características, com contribuições que agregam a formação cultural do Estado e, em
conjunto com outros povos que migraram de regiões do Brasil e do exterior, colaboram para a construção da identidade regional. Segundo Vieira
(2016), os povos indígenas, presentes no Estado são os: Kaiowá, Guarani (Ñandeva), Terena, Kadiwéu, Guató, Ofaié e os Kinikinau, e incluem, ain-
da, os Atikum e Camba5, que são originários de outros espaços geográficos que não pertencem a Mato Grosso do Sul6. No entanto, para os povos
indígenas, as fronteiras geográficas nacionais e regionais são arbitrárias, uma vez que se estabelecem sob uma lógica de nação diferenciada,
portanto, ignoram essas fronteiras políticas estabelecidas.

Apesar do contexto descrito, na realização da pesquisa sobre as culturas indígenas do Mato Grosso do Sul no espaço escolar em decorrência da

Artigos
Lei 11.645/2008, com professores de Arte7, no ano de 2018, pontos contraditórios foram identificados. Na pesquisa, os resultados indicaram que

5 Para Henrique (2015), os Camba, originários da Bolívia, vieram ao Brasil em busca de trabalho. Acabaram se estabelecendo em Corumbá e hoje querem o reconhecimento de sua cidadania
como indígenas no Brasil, como cidadãos brasileiros que ajudaram a construir a estrada de ferro, estabelecer família e formar um pueblito (o São Francisco) no antigo “lixão” de Corumbá, inde-
pendentemente de ainda serem vistos regionalmente como “moradores do bugreiro”.
6 Apesar da presença e circulação de diversos povos indígenas, informações alarmantes, anunciadas pelo Conselho Indigenista Missionário CIMI – 2017, dão conta de que a violência contra os
povos indígenas em MatoGrosso do Sul é preocupante. No ano de 2017, ocorreram 23 assassinatos e 31 casos de suicídio.
7 Grupo de WhatsApp de Professores de Arte CG, criado em 2014 para que professores de Arte de diversas linguagens, residentes em Campo Grande, MS, troquem experiências sobre suas práti- 307
cas. Na investigação, foramselecionados seis colaboradores, seguindo os critérios: ter desenvolvido proposta sobre cultura indígena em escola pública; dispostos a debater sobre suas propostas;
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 304-330 | Jan - Jul | 2021

os professores desejam realizar propostas sobre as etnias/culturas/saberes indígenas, mas relatam dificuldade por falta de acesso a informações
pertinentes aos saberes indígenas e encontram barreiras com o currículo colonialista; as propostas predominam em datas especiais, como Dia do
Índio, o que já predispõe a construção de estereótipos de fixar as culturas indígenas no passado, limitando suas vivênciasem matas, com poucas
referências ao contexto urbano. Relataram que, apesar das diversas etnias presentes em Mato Grosso do Sul, é recorrente os trabalhos com as
etnias Kadiwéu, Terena, Guarani e Kaiowa, as demais etnias parecem silenciadas.

No entanto, Aguiar e Pereira (2015) anunciam que há poucas pesquisas sobre as artes indígenas de Mato Grosso do Sul, circunstância que parece
refletir no campo da educação. De modo particular, compara-se o silenciamento com as manifestações culturais daetnia Ofaié, destacando o que
se refere ao canto:

o canto era formado por um coro de várias vozes, em rituais que incluíam danças e consumo de cauim8. Nos dias atuais, os Ofaié não dedicam mais
o seu tempo à música. As constantes mudanças de lugar a que foram forçados, certamente, não lhes deu alternativa nem motivos para comemorar
(DUTRA,2015, p.224)9.

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Dutra (2015) relata que devido às intempéries sofridas, falta motivação para o canto dos Ofaié, que corre o risco de ser esquecido, afinal, não é
reconhecido como marca de uma coletividade. Situação que não difere de outras linguagens artísticas e de outras etnias. O silêncio, o oculto, in-
dica qual posição é ocupada. Entende-se, com isso, que o tema culturas indígenas, assim como o canto Ofaié, é um campo vasto a ser explanado,
existente e pouco divulgado. O não-dito, mas presente. Assim como diversas etnias silenciadas no ensino de Arte, mas existentes.

1 Culturas, ensino de arte, colonialidade: tensionamentos

Compreendendo que o ensino de Arte, em suas diversas linguagens, constitui um espaço para a discussão sobre as culturas indígenas, tensio-
namentos são gerados. Apesar da polissemia do termo cultura, entende-se que ela representa um sistema de símbolos e significados. Decifrar

Artigos
os códigos leva a assumir o sentido da produção em questão e tensiona a leitura dos sentidos. No entanto, alguns aspectos da construção do
simbólico devem ser considerados. Segundo Hall (1997), cultura sempre teve importância, os seres humanos são interpretativos, criam sistemas
de significados, códigos e

não ser indígena.


8 Bebida feita com milho fermentado. 308
9 Ofaié, na atualidade, vivem na aldeia Enodi, no município de Brasilândia, Mato Grosso do Sul. O último censodo IBGE apontou que existem ali 71 indivíduos indígenas.
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Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomados
em seu conjunto, eles constituem nossas ‘culturas’. Contribuem para assegurar que toda ação social é ‘cultural’, que todas as práticas sociais expres-
sam oucomunicam um significado e, neste sentido, são práticas de significação (HALL, 1997, p.15).

Desse ponto de vista, os seres humanos instituem sentidos para suas ações. A cultura sempre teve um papel expressivo como um conjunto dife-
renciado de significados, e, como toda prática social é cultural, a educação, que é uma prática social, está inserida nesse contexto de práticas
de significação. Hall (1997) destaca os aspectos epistemológicos da cultura para explanar a dimensão global nas transformações da vida local
e cotidiana, suas interferências na identidade e na subjetividade. Fatos que levam a cultura a um dos elementos mais dinâmicos e imprevisíveis,
quando as relações de poder se tornam mais nítidas.

Todavia, Candau (2011, p. 241) defende que a “diferença é constitutiva, intrínseca às práticas educativas”, compreendendo que é imprescindível a
dimensão cultural para potencializar processos de aprendizagem e de representação. Esta ocupa um lugar de destaquecomo um processo central
na formação e produção da identidade cultural e social em estreita conexão com a relação saber-poder. Castro-Gómez, refletindo sobre a inven-
ção do “outro”, aponta para o “caráter dualista e excludente que assumem as relações modernas de poder” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 80). Essa

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representação abrange a complexa relação de poder, envolvida por um cenário econômico, político, cultural da conquista colonial europeia, como
narrativas que constroem o Outro colonial quando subalterno, com submissão dos povos colonizados, os quais são analisados como narrativas de
resistência ao olhar e ao poder. O Outro é visto como estranho, exótico, e há o impulso para fixá-lo e dominá-lo como objeto de saber e de poder,
uma criatura imaginária do poder colonizador.

No processo de colonização, que envolve saberes, cosmovisão, memórias, para o direito do colonizador, há a negação do direito do colonizado.
Processo de exclusão. Na construção eurocêntrica, normaliza o código do colonizador. Negam-se suas lógicas culturais, suas cosmovisões, re-
primem-se os saberes locais e o sentimento de superioridade europeu, posto como natural e universal. Povos em condições de desigualdade do
poder, conhecimentos considerados obstáculos.

Artigos
Com os conceitos apresentados, observa-se que as relações culturais estão imersas nas relações de poder, marcadas pelo preconceito e pela
discriminação de determinadosgrupos socioculturais. Nesse sentido, a escola apresenta um espaço oportuno para tais abordagens e tensiona-
mentos, espaços de negociação e de enfrentamento. Selecionar, privilegiar, destacar um tipo de conhecimento é uma questão de poder. Questão
epistemológica e política.
309
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 304-330 | Jan - Jul | 2021

2 Artes Indígenas: outros olhares de resistência e luta!

O silenciamento dos saberes indígenas tem uma longa trajetória, que se reflete no espaço escolar, na formação do professor, na representação
do imaginário coletivo. Situações

que permeiam o entendimento da existência, ou não, de uma Arte indígena. Os povos indígenas foram vistos como primitivos. Esperava-se o “de-
saparecimento” deles, como um resultado da passagem do índio específico a índios genéricos, de genéricos a caboclos, “camponês pobre”, como
desfavorecido, que deixa a sua condição primeira. Eram, pois, vistosem situação transitória.

Com mudanças no cenário político, principalmente, a partir da Segunda Guerra Mundial (convenções, igreja), termos como “selvagem”, “primitivo”
passaram a ser questionados. Povos indígenas, em diversos movimentos, reivindicam seus direitos, questionam a expropriação sofrida; resisten-
tes, realizam demarcações políticas. Com o aquecimento dos debates, a Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho, em 1957, ocor-
rida em Genebra, Suíça, estabeleceu proteções fundamentais para os povos indígenas, porém foi a Convenção 169 da OIT, em 1989, que provocou

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mudanças nas políticas culturais de forma mais significativa; a participação indígena foi mais efetiva. Convém observar que, a partir dos anos de
1970, iniciou-se uma busca de coletar, organizar, editar e publicar informações e análises sobre a situação contemporânea dos indígenas no Brasil,
listando os diversos povos, dando visibilidade à população indígena, refletindo em diversas áreas, entre elas a educação. Com uma longa trajetó-
ria de conquistas, após a Constituição Federal de 1988, na educação, destaca-se a Lei 11.645/2008, com marcas de resistência e luta de coletivos
reivindicando espaços que foram silenciados.

Dada a abrangência de temas referentes à cultura indígena, ao grande número de etnias no Brasil, o Parecer CNE/CEB no 14/2015, que orienta
as Diretrizes Operacionais para a implementação da história e das culturas dos povos indígenas na Educação Básica, visando à promoção de
políticas públicas, reconhece os desafios e tensões geradas. Percebe-se a necessidade de representações positivas e que valorizem a diferença,
porém, entende-se que ainda há desconhecimento e preconceitos em relação aos povos indígenas, pois podem ocasionar práticas “sem a devida

Artigos
orientação antropológica, linguística ou histórica, provocando a reprodução de estereótipos e preconceitos tradicionalmente utilizados contra os
povos indígenas” (CNE/CEB no 14/2015, p.6).

Em relação às artes indígenas, estudos referentes ao ensino de Arte apontam para o diálogo com o campo da Antropologia. Richter (2003, p.204)
destaca contribuições da Antropologia e da Sociologia para o entendimento da arte, afirmando que “essas áreas precisam ser mais abordadas,
para que o ensino intercultural se desenvolva com eficiência”. Barbosa (1998, p.16) entende que a antropologia “nos ensina a ver o outro e, 310
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 304-330 | Jan - Jul | 2021

mais precisamente, a ligação da antropologia com a arte nos ensina a ver o universo estético do outro”. Portanto, para o entendimento da cultura
indígena, no espaço escolar, das relações de poder impostas, da construção da identidade e diferença, é preciso discutir o tema por outras pers-
pectivas, uma delas, a da Antropologia, e, com ela, apreciar a arte indígena.

O conhecimento nas sociedades indígenas possui outras perspectivas que podem diferir das sociedades não indígenas. Para muitos coletivos, o
conhecimento reside no corpo, não dissociando conhecimento do seu conhecedor, envolvendo laços entres os pares, seus bens são imateriais
e materiais. Ocorrem transformações, mas elas não levam necessariamente a mesma constituição das não indígenas. Como todos os povos, os
indígenas vivem de acordo comsua cultura, seus saberes, suas conexões estabelecidas com o mundo, por isso, cada povo se expressa de maneira
peculiar. A diversidade dos povos indígenas instiga novos conhecimentose o entendimento de que nenhum povo permanece intacto, preso a um
passado, mas em mudanças constantes. Como, no exemplo a seguir, a sorridente criança10 da Fotografia 1 apresentaa pintura facial, característica
identitária do povo Kadiwéu11. Estética peculiar carregada de significações para uma coletividade, linhas que não se fixam apenas na ornamenta-
ção, com marcas que carregam saberes, vivências, cosmovisão.

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Artigos
10 Matéria de Lu Tanno. Disponível em: <https://www.campograndenews.com.br/lado-b/comportamento-23-08- 2011-08/no-campo-dos-indios-conheci-o-povo-que-luta-e-se-adapta-sem-
-perder-a-identidade>.
11 O povo Kadiwéu, em sua maioria, vive na Terra Indígena Kadiwéu, no município de Porto Murtinho. AReserva Indígena inclui cinco grandes aldeias. Sua população é estimada em 1.629
pessoas (VIEIRA, 2016). 311
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 304-330 | Jan - Jul | 2021

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Fotografia 1 - Criança Kadiwéu com pintura facial (Lu Tanno, 2011)

Em coletânea sobre o grafismo indígena, a antropóloga Lux Vidal (2000) afirma que,

em certos grupos indígenas, a arte pode atingir níveis de um virtuosismo extremado, como ocorre, por exemplo, na antiga pintura facial dos
Kadiwéu. Apesar disso, permanece estática por longos períodos, pois se relaciona com uma trama de significados sociais e religiosos (isto é, com
modos de classificar e interpretar o mundo) de cuja preservação participa, criando marcos tangíveis para seu reconhecimento (VIDAL, 2000, p.15).

Artigos
Tal virtuosismo extremado, no exemplo citado, com linhas retilíneas e curvas, com pigmentos apropriados, com repertório de padrões decorati-
vos, configura o estilo Kadiwéu, iconografia carregada de intencionalidade. Harmonia de composição que desperta atenção do apreciador para a
experiência estética. Siqueira Jr (2000), sobre a iconografia Kadiwéu, explica que

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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 304-330 | Jan - Jul | 2021

os padrões decorativos são aplicados em diferentes suportes: primeira e tradicionalmente, a pintura do corpo com jenipapo, na qual os Kadiwéu
atingiram grande elaboração técnica, atualmente entrou em desuso. Os mesmos padrões utilizados na ornamentação corporal podem ser trans-
postos para suportes completamente diversos: a cerâmica e o couro de veado ou boi, um com saliências e reentrâncias e o outro totalmente plano
(SIQUEIRA Jr., 2000, p.272).

De tal modo que se pode observar os mesmos padrões e estilos decorativos na Fotografia 2, em que o suporte é a cerâmica12 (que, na atualidade,
é utilizada como objeto decorativo) e, na Figura 1, realizada no suporte couro. No passado, poderia ser pintada com jenipapo. Nas duas imagens,
é possível identificar o estilo Kadiwéu.

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Fotografia 2 - Cerâmica Kadiwéu (FUNDAÇÃO DE CULTURA MS, 2017) Figura 1 - Desenho com padrões Kadiwéu em couro (VIDAL, 2000, p.273)

Artigos
A composição Kadiwéu carrega a forma visual, composta de traços e cores pertinentes à etnia, o conteúdo estético apresenta relação direta aos
modos de vida da coletividade.
12 Sobre a venda de produções de algumas etnias indígenas de Mato Grosso do Sul, consultar <http://www.ms. gov.br/artesanato-molda-cultura-e-promove-inclusao-da-populacao-indige-
na-na-economia-solidaria/>. 313
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 304-330 | Jan - Jul | 2021

Compreende-se, como Richter (2003), que a arte indígena não pode e não deve ser apreciada apenas como simples artesanato, mas, sim, como
Arte e como estética específica a cada etnia, a cada coletividade. De acordo com a estudiosa,

se consideramos que estamos trabalhando com um conceito abrangente de arte, não mais nos moldes modernistas e sim com uma visão antropo-
lógica, artesanato é arte no momento em que apresenta características de ‘fazer especial’, significando envolvimento, prazer, sentimento estético,
busca de perfeição técnica. É preciso retirar da palavra ‘artesanato’ sua conotação pejorativa de trabalho manual feito de forma repetitiva, monótona,
sem envolvimento pessoal, produzido apenas para venda (RICHTER, 2003, p. 200).

Na perspectiva exposta, a produção artística e estética dos diferentes povos indígenas é considerada arte, sem a distinção entre arte/artesanato.
Arte que difere das produções e concepções com herança europeia, pois possuem outras epistemologias. Lux Vidal e Aracy Lopes da Silva (2000),
discorrendo sobre a antropologia estética e o que pode ser considerado arte para uma cultura, afirmam que

segundo a tradição ocidental, as artes são conceitualmente separadas de outras esferas da vida social e cultural, ainda que nem sempre tanto
quanto se pretenda. Nas sociedades indígenas, as artes são uma ornamentação paraas manifestações públicas e os talentos manuais, mesmo os

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mais individualizados, são bastante compartilhados pela população: as coisas são feitas por artesãos locais e por intermédio de processos que todos
conhecem (VIDAL e SILVA, 2000, p.281).

De tal modo, a arte está relacionada à noção de expressar significados simbólicos essenciais a cada cultura e, constantemente, sofre transforma-
ções, porque “mantém-se nesta tensão provocada pela articulação entre tradição e inovação” (VIDAL e SILVA, 2000, p.290).

Observando as produções das culturas indígenas, na perspectiva da estética do cotidiano13, dos “fazeres especiais”, Richter conceitua a arte como
“envolvimento, prazer, sentimento estético, busca de perfeição” (2003, p.100), relacionando-a às mudanças contemporâneas de propostas em
arte em que “a relação com a estética do cotidiano é umadas tendências do design contemporâneo” (RICHTER, 2003, p.171). Com propostas
que buscam romper com a visão binária arte/artesanato, verifica-se que essas produções artísticas indígenas também passam por esses proces-

Artigos
sos e conquistam outros espaços. Composições sãoressignificadas e vivenciadas em outros contextos. Em processo dinâmico de transformação,
que pode não carregar o sentido primeiro, porém expressa marcas de sua identificação. A cultura, a arte em processos dinâmicos de negociação,
rompe fronteiras e não permanece isolada.

13 Para Richter, a estética do cotidiano subentende, além dos objetos ou atividades presentes na vida comum, considerados como possuindo o valor estético por aquela cultura, também e prin- 314
cipalmente a subjetividade dos sujeitos que a compõe e cuja estética se organiza a partir de múltiplas facetas do seu processo de vida e de transformação (2003, p. 20/1).
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Tensionamentos irrompem quando produções indígenas são vivenciadas fora do local de origem, e também surgem dúvidas sobre a tradução
realizada, se a arte tem fronteiras ou não. Vilela Pereira (2004) alerta para o compromisso da experiência estética. Afirma que “nãoé possível fazer
Estética em cima do muro; é fundamental o comprometimento político” (VILELA PEREIRA, 2004, p.234). Nas produções das manifestações es-
téticas indígenas, o compromisso político se faz presente; uma pequena mostra será exposta na Fotografia 3, em que padrões Kadiwéu, fora do
contexto original, podem ser observados. São iconografias que foram ressignificadas em Berlim14, Alemanha. Esses desenhos indicam o interesse
pela harmonia da composição Kadiwéu e seus usos são praticados na contemporaneidade ocupando outros espaços e outros significados. Para
a concretização da proposta, foramrealizados 271 desenhos e selecionados 6 para a confecção dos azulejos. As mulheres/artistas15 Kadiwéu, que
tiveram seus desenhos eleitos, além do prêmio monetário, ganharam a visita ao conjunto arquitetônico.

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Fotografia 3 - Mulheres Kadiwéu com seus desenhos e fachada de prédios com os respectivos padrões (ISA, 2009)

O aspecto político é evidenciado, uma vez que o projeto arquitetônico se transformou em um marco para a propriedade intelectual Kadiwéu, que,

Artigos
até então, não era considerada. De acordo com o relato de Jófej (2006), a relevância da proposta e demarcações de conquistas e espaços para

a consecução envolveu uma cessão de direitos autorais dos indígenas que elaboraram os desenhos selecionados em benefício da Associação das
Comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu (ACIRK). A cessão objetivava reverter em prol de uma coletividade um direito que, à luz da propriedade

14 O Projeto arquitetônico visava recaracterizar um bairro inteiro de Berlim, antiga zona Oriental, o Bairro Amarelo de Berlim Hellersdorf, com motivos da América Latina. O padrão Kadiwéu foi
sugerido pela antropóloga Solange Padilha. Para maiores informações, consultar: <http://www.funai.gov.br/index.php/ comunicacao/noticias/3210-o-bairro-amarelo-e-o-patrimonio-cultural-in-
digena>. 315
15 As seis premiadas foram: Acácia de Almeida; Cláudia Pedroso; Joana Baleia; Sandra da Silva; Saturnina daSilva e Sofia de Souza.
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intelectual, teria sua titularidade definida na pessoa de cada artista indígena, desconsiderando que, embora a obra seja individual, aqueles desenhos
possuem uma simbologia própria daquela cultura e seguem padrões criados erecriados historicamente de acordo com características peculiares aos
grafismos Kadiwéu (JÓFEJ, 2006, p.134).

Complementa a autora que o “projeto de arquitetura na Alemanha veio desencadear, pela primeira vez no Brasil, o reconhecimento do direito
autoral dos índios sobre sua arte” (JÓFEJ, 2006, p.195). Logo, a sua arte apresenta forte demarcação política, tanto para os Kadiwéu como para
os demais coletivos étnicos.

Como se percebe, os modos expressivos artísticos indígenas não são presos a um passado distante. Pelo contrário, estão em contínua reformula-
ção, carregando posicionamentos e identidades pessoais e coletivos. Para Vidal (2000), apenas recentemente surge o interesse pela diversidade
das artes indígenas brasileiras, como fonte de inspiração ou de conhecimento, pois

[...] apesar da riqueza do material disponível, o estudo da arte e da ornamentação do corpo foi relegado a segundo plano, durante muitos anos, no que
diz respeito às sociedades indígenas do Brasil. As razões para essa recusa se explicam pelo fato de a arte ter sido considerada como esfera residual

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ou independente do contexto no qual aparece. Com isso, ignorou-se o tipo de evidência que o estudo da arte aporta à análise das ideias subjacentes
a campos e domínios sociais, religiosos e cognitivos de ummodo geral (VIDAL, 2000, p.13).

Lagrou (2009, 2010) aborda as diferenças artísticas nas sociedades indígenasbrasileiras, as quais possuem concepções de Arte diferentes da so-
ciedade não indígena, não havendo “distinção entre a beleza produtiva de uma panela para cozinhar alimentos, uma criança bem cuidada e deco-
rada e um banco esculpido com esmero” (LAGROU, 2009, p.35). Para Aguiar e Pereira (2015), que discutem a relação entre arte e antropologia, as
informações culturais, materiais e imateriais compõem o universo identitário de uma coletividade. Portanto, arte indígena exige uma perspectiva
mais holística para ser discutida.

A identidade pode ser manifestada pela cultura material e pela imaterial, por elementos físicos e por todos os saberes e fazeres relacionados ao

Artigos
campo do simbólico, do abstrato e do não palpável, onde a arte atua como representação, envolvida em signos e significados, e nela o saber
artístico antecede o objeto artístico. Nessa representação, as produções artísticas tornam-se “verdadeiros discursos simbólicos materializados”
(AGUIAR ePEREIRA, 2015, p. 711), e, por isso, devem ser consideradas pela estética iconográfica e pelalinguagem simbólica intrínseca à sua arte,
como materialização de sua cosmologia, de indicador de posição social e como expressão social, entre outros fatores.

A arte indígena pode ser, pois, relacionada à invocação do sobrenatural, quando enfoca os xamanismos, curandeirismo e as práticas religiosas. 316
Os objetos construídos parafins religiosos são dotados de regras estéticas, e estabelecem conexão entre o praticante e o mundo espiritual. Para
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Aguiar e Pereira (2015, p.721), “alguns objetos, enquanto formas espirituais materializadas, são dotados de especial valor simbólico e só podem
ser manuseados pelo xamã que detém sua curadoria”. De acordo com os autores,

outro exemplo são os arcos e flechas colocados nas entradas dos acampamentos dos Kaiowa e Guarani, não objetos de caça, mas de proteção ri-
tual, deixados como herança tecnológica por Ñande Ryke’y, a divindade hoje representada no sol, que desempenha a função de guardião e protetor
dessas etnias (AGUIAR e PEREIRA, 2015, p.716).

Constituindo, assim, Arte relacionada à religiosidade, à expressão social de uma coletividade e, portanto, inserida nessa religiosidade e nessa
expressão. Na arte indígena, as mudanças ocorrem nos objetos artísticos de um coletivo social e nem, por isso, perdem o valor étnico. Exemplos
são dados em relação à produção parao comércio, quando ressignificados, novos materiais são utilizados na sua confecção e novos sentidos são
atingidos:

objetos de arte são capazes de produzir perturbações causais no ambiente social, ou seja, manifestam agência. Captam e expressam processos
emergentes, tendências e necessidades presentes no ambiente social, fazendo com que a cultura tematize e processe tais eventos (AGUIAR e PE-

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REIRA, 2015, p.716).

As mudanças na produção da arte indígena não se reduzem à comercialização. As lideranças indígenas, conscientes da produção da arte como
elemento político, concordam que (as mudanças) se tornam “[...] cada vez mais frequente a apresentação e representação de sua cultura
enquanto instrumento político capaz de assegurar direitos étnicos e territoriais” (AGUIAR e PEREIRA, 2015,p.719). Situação observada nas apre-
sentações de rituais, que podem ser diferenciadas quando expostas para a coletividade e para o público externo. De acordo com Ulian (2015),
os Atikum16, para apresentação da dança ritual do Toré, modificam-se o número de participantes e a indumentária. Internamente, dançam com
familiares, vestidos como no cotidiano, mas, nas situações públicas, usam roupas características “com seus penachos e saiotes de palha de bu-
riti, a fim de evidenciar para os visitantes a sua indianidade” (ULIAN, 2015, p.418), conforme pode ser contemplado na Fotografia 4, com diversos

Artigos
componentes Atikum trajados para uma exibição em comemoração ao Dia do Índio.

16 De acordo com Ulian (2015, p.403), “Os Atikum são um grupo indígena originário do sertão pernambucano, mais especificamente da região da Serra das Crioulas, complexo de serras dentro do
qual está localizada a Serra do Umã. A Serra do Umã recebeu esse nome em referência a um personagem da cosmologia Atikum, Umã, o ‘índio mais velho’, pai dos Atikum que povoaram a serra
que recebe o mesmo nome. O município mais próximo dessa serra, hoje área indígena Atikum, é Carnaubeira da Penha, antigo distrito do município de Floresta”. 317
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Fotografia 4 - Atikun reunidos para apresentação do Toré, na aldeia Brejão, terra indígena de Nioaque (ULIAN, 2015, p.476)

A manifestação do Toré possui coreografia estabelecida; nela, invocam a história, a religiosidade e as tradições culturais e o canto que apresenta
a situação dos Atikum, povo originário de Pernambuco, os quais, após complexa situação migratória, estabeleceram-se em Nioaque, MS. Ulian
(2015) registra um dos cantos percebidos na demonstração do Toré:

Ô meu caboclo índio

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O que é que anda fazendo aqui? (bis)Eu ando em terra alheia

Procurando a minha aldeia (bis)Ô hêina hêina, hêina hêi

Ô hêina hêina, hêina hêi ôah (bis)

(pisadas) (Bis) (ULIAN, 2015, p.419).


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O Toré, com as diversas linguagens artísticas (a dança, música, poesia, indumentária, adornos), retrata o contexto vivenciado, a cosmologia, seus
saberes. O posicionamento é político.

Em contrapartida, além das mudanças explicitadas sobre a arte indígena, outros aspectos devem ser considerados, como o uso de materiais na sua
confecção, os quais vão se ressignificando e novos elementos são utilizados. Lagrou (2009), em sua pesquisa sobre aArte indígena no Brasil:
agência, alteridade e relação, apresenta diversos materiais que foram incorporados na confecção da arte indígena. Exemplo dessa incorporação
é o uso de miçangas, penas artificialmente coloridas nas produções diversas. Heimbach (2008)17 relata que, em umaescola de um bairro indígena
de Campo Grande, na aula de Cultura Terena em que a professora indígena ensina a construção de objetos indígenas com novos componentes,

o material é todo comprado. A venda é justificada para aquisição de novos materiais e a realização de novas composições. Para que construir tais
adornos? Para se sentir Terena, para ressignificar a identidade terena de forma que se tenham laços com a tradição e que seja contemporânea, esta-
belecendo elos com a diversidade, com o outro. Todos podem usar, admirar, comprar e valorizar a estética indígena Terena (HEIMBACH, 2008,p.119).

Nas imagens abaixo (Fotografia 5), podem ser observadas produções de adornos (objetos decorativos) confeccionados com materiais diversos

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(metal, massa biscuit, contas...), todos comprados e transformados em objetos artísticos, carregam a marca identitária indígena.

Artigos
Fotografia 5 - Produções com diferentes materiais, aula de Cultura Terena da Escola Municipal Sulivan Silvestre de Souza – Tumune Kalivono ‘Criança do
Futuro’ (HEIMBACH, 2008, p. 118)
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17 Pesquisa de Mestrado em Educação, UCDB.
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Outra transformação, nos aspectos das relações sociais, é que, no passado, aconstrução era ensinada do mais velho ao mais novo, no seio familiar.
No exemplo oferecido (Figura 8), as produções artísticas foram realizadas dentro do ambiente escolar, na relação professor-aluno. No entanto, as
marcas identitárias, a valorização das estéticas indígenas, foram consideradas como elementos de afirmação étnica. A produção indígena como
arte é carregada de sentido e valor, mesmo quando não é construída em seu local de origem, com matérias-primas compradas, com significações
diferenciadas do uso primeiro. Considera-se arte porque comunicam valores de uma coletividade, saberes, cosmovisão. Da mesma maneira, va-
lores tão comunicantes como da cerâmica Terena18, com suas linhas harmoniosase de material resistente. Objeto que, na contemporaneidade, é
comercializado em pontos turísticos, como algo característico do Estado, reconhecido como Patrimônio Imaterial Histórico e Cultural do Estado
de Mato Grosso do Sul (Decreto 12.847, de 16 de novembro de2009), demarcando posicionamentos e conquistas.

Para Rosaldo de Albuquerque Souza (2012) da etnia Kinikinau19, povo que foi considerado banido, as manifestações artísticas de seu povo (entre
elas a dança, a cerâmica, a música) é traço de identificação, de resistência, ato político. Na atualidade, suas produções artísticas são realizadas
para venda, as quais além do aspecto financeiro, servem para que seu povo possa ser “conhecido e reconhecido [...] que saibam que o povo Kiniki-
nau está vivo e tem um endereço, ainda que emprestado” (SOUZA, 2012, p.36). Na mesma linha de raciocínio, os pesquisadores Aguiar e Pereira

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(2016, p.729) entendem que, “para grupos étnicos que enfrentam o problema de negociar seu reconhecimento pelo Estado nacional, a produção
da arte com feições étnicas pode ser um importante instrumento de luta política”.

Relata Souza (2012) que, nas aulas de Arte da Escola Municipal Indígena Koinukunôen, os alunos aprendem a fazer a distinção entre as cerâmicas
Kinikinau e de outras etnias, ou seja, “professores ensinam as crianças a reconhecerem os desenhos e cores de sua etnia, fazendo a devida di-
ferenciação entre as formas Kinikinau, Kadiwéu e Terena” (SOUZA, 2012, p.28-9), conforme pode ser percebido na Fotografia 6, com cerâmicas
Terena, Kiniquinau ao centro, seguida pela cerâmica Kadiwéu. Na cerâmica Terena apresentada, observa-se o fundo escuro e desenhos curvilí-
neos realizado com cor clara. Na cerâmica Kiniquinau, figuras geométricas coloridas com predominância de linhas retas demarcadas com linhas
escuras. Na cerâmica Kadiweu, as figuras geométricas são similares, porém em maior número e com linhas divisórias claras.

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18 Os Terena estão localizados em aldeias de seis municípios do Estado: Miranda, Aquidauana, Anastácio, Sidrolândia, Dois Irmãos do Buriti, Nioaque e Rochedo. Muitos vivem em grandes cen-
tros, como em Dourados eem Campo Grande
19 Os Kinikinau compartilham uma ancestralidade com os Terena, tendo por raiz os grupos Chané-Guaná. Foram considerados extintos, membros dessa etnia foram registrados pelos próprios
órgãos oficiais como Terena. Os Kinikinau estão assentados na aldeia São João, em região da Serra da Bodoquena que hoje integra a Terra Indígena Kadiwéu (AGUIAR e PEREIRA, 2015). 320
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Fotografia 6 - Exemplos de vasos de etnias diferenciadas (SOUZA, 2012, p.33)

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Souza (2012) descreve ainda que, apesar das similaridades entre as cerâmicas Kinikinau e Kadiwéu, suas representações e significações são dis-
tintas:

O grafismo Kinikinau tem alguns traços parecidos com as pinturas e desenhos Kadiwéu, porém, segundo as ceramistas, não são cópias nem imita-
ção. São frutos da arte própria dos Kinikinau, representam os rios, as florestas, os animais e tudo o que se observa na natureza (SOUZA, 2012, p.33).

Como se observou, a estética Kinikinau possui os seus próprios elementos e significados e “as cores usadas na pintura Kinikinau também são
inspiradas nas flores, nos animais e na água” (SOUZA, 2012, p.34), apesar da similaridade, são diferentes nos aspectos estéticos, nas histórias e
na cosmovisão.

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Outro exemplo é o do movimento Hip Hop20 entre os indígenas Kaiowá e Guarani21, pesquisado por Oliveira (2015). Segundo a autora, os jovens
se apropriaram de uma cultura global para transformar o ambiente local com objetivo de preservar a Língua Guarani. Foi por meio de atividades
educacionais que professores e jovens indígenas encontraram uma forma de expressarem a indignação diante desse contexto apresentado sobre
a reserva de Dourado/MS. Na Fotografia 7, pode-se observar a dupla B’Boys e sua apresentação para a divulgação de um Clip, que, mesmo em
condições adversas, expressões contemporâneas acontecem. As manifestações artísticas indígenas são ressignificadas e são comunicantes. Na
imagem, parte da letra da música é traduzida para a língua portuguesa “o tempo está passando e assim vou caminhando”. As composições dos
vários grupos de Hip Hop retratam a realidade vivenciada, questões políticas sociais, como se observa neste exemplo:

Daquele jeito, continuo a minha sina sabendo muito bem que gerou minha ruína

510 anos de abandono confinados em reservasque mal cabem nossos sonhos

[Música: A vida que eu levo] (OLIVEIRA, 2015, p.116).

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Artigos
20 O movimento Hip Hpo é composto por três elementos básicos: Brea (que representa o corpo na dança); grafite (que representa as artes plásticas, com desenhos coloridos e grandes) e o rap
(que representa a música e a poesia). De acordo com Oliveira, no movimento local, há “mistura do break com o Guaxiré’’, e, no rap, o português e o guarani’’, “além da utilização de instrumentos
como o chocalho de cuia ou Mbaraká – instrumento que marca o compasso dos homens na dança religiosa” (OLIVEIRA, 2015, p.81).
21 No Brasil, os Guarani estão distribuídos em três subgrupos: Ñandeva, Mbya e Kaiowá. Em Mato Grosso do Sul, os Ñandeva (Nhandeva) são os únicos que se autodenominam Guarani. Os 322
Kaiowá e Guarani se encontram distribuídos em oito reservas históricas e outras áreas de retomadas. Estão localizados em Dourados, Amambai e Caarapó (VIEIRA, 2016).
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Fotografia 7 - B’Boys da Reserva (Oliveira, 2015, p.82)

Na produção de cestaria da artista guató22 Catarina Ramos da Silva23 (Fotografias 8 e9), marcas identitárias são percebidas. Ela vive distante
de sua comunidade, mas constantemente atravessa o rio para coletar a planta aguapé, na lagoa Uberaba, que “não leva mais de 3 talos e colhe
tudo com as mãos, para não matar a planta”. Age com seus saberes e conhecimentos sobre a natureza, sem danificar o meio ambiente. Mulher que
utiliza o seu corpo para o trançado e confecção do material, pois “Quando aprendi a trançar, aprendi igual índio, porque eu sou índio e é assim que
se faz. Tem que prender a trança no pé, senão parece que não sai direito, fica frouxa” (Fotografia 9). Mulher que vende a sua produção, que vive

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no contexto urbano, em outra localidade e sobrevive como mulher indígena guató. Mulher que carrega na arte mais do que a sua sobrevivência,
carrega marcas de sua etnia.

22 De acordo com Vieira (2016), o povo Guató sempre habitou e habita as terras do atual Estado de Mato Grosso do Sul. Conhecidos como índios canoeiros ou simplesmente índios d’água, “o povo
Guató fica em uma região marcada por uma extensa planície alagável, mais conhecida como Pantanal” (p.69). Atualmente, o povo Guató vive na ilha de Ínsua (a 350 km de Corumbá), fronteira
com a Bolívia, em apenas uma aldeia indígena denominada de Aldeia Indígena Uberaba.
23 Matéria do campograndenews, 22 de agosto de 2019. Kimberly Teodoro e Kísie Ainoã. 323
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Fotografia 8 - Catarina e sua produção (Kísie Ainoã, 2019) Fotografia 9 - Catarina trançando com os pés (Kisie Ainoã, 2019)

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A partir das explanações sobre arte indígena inserida no cotidiano, versando sobreos diversos saberes e cosmovisão, consideram-se as teias de
significações e perspectivas outras. Relaciona-se a ressignificação ao maracá24 (Fotografia 10), utilizado pelos Guarani e pelos Kaiowá. Segundo
Aguiar e Pereira (2016), nos seus pertences, na primeira etnia citada, predominam as cores vermelha, azul e amarela; na segunda etnia, combi-
nações em tons de pardo e de palha natural são bem populares. Para sua confecção, diversos materiais (porongo, cabo de madeira, sementes,
penas, entre outros) que, combinados, tornam-se um único objetoque, ao receber um estímulo, produz som.

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24 O “Mbaraka” (chocalho) é feito de porongo com sementes de iva’u dentro e com cabo de madeira. Na mitologia Nhandeva, a sabedoria é transmitida pelos sons do Mbaraka usado pelo xamã
e por todos os homensno cerimonial. As sementes têm de ser escolhidas. Se colocar “à toa” o Mbaraka “não fica feliz”! “Assim como nós, quando estamos muito alegres, temos força.” Por isso,
enfeita-se com flores de algodão e pinta-se com urucum. O estado de calor está associado aos períodos de transição entre o que se é e o que se está por ser. As pessoas, os frutos da terra e os
instrumentos rituais passam por um “resfriamento” e os provém de “temperança” caracterizado por um modo de ser calmo. Há uma diferença entre o formato do Mbaraka, utilizado pelos Kaiowa, 324
e o usado pelos Nhandeva. Os primeiros são mais redondos e maiores, os segundos mais longilíneos e menores. Disponível em: <https://www.maimuseu.com.br/musicais>. Acesso em: fev. 2019.
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Fotografia 10 - Maracá em cena do documentário Martírio25 (CARRELI, VINCENT, 2016)

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Objeto que pode ser entendido como um artefato artístico com marcas de etnicidade,um instrumento musical de percussão (chocalho), ou ainda,
mbaraká, que, com rezas eencantos, transforma-se no receptáculo de poder sagrado, logo é “morada de um espírito que atua como auxiliar de um
xamã” (AGUIAR e PEREIRA, 2016, p.716). Porém, existem objetos semelhantes que são produzidos para o comércio, mas estes não têm a intenção
de quem o fez, não passaram pelas mãos do rezador, não se tornaram sagrados. Ainda assim, o mbaraká carrega marcas da etnia que o produziu,
informando a sua existência. Marca política.

Outras perspectivas, outros saberes, outra cosmovisão.

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25 Martírio, documentário sobre a situação de vulnerabilidade dos povos indígenas que têm seu direito à terra garantido pela Constituição. O filme, realizado pelo cineasta e Vincent Carreli em
parceria com Ernesto de Carvalho e Tita, retrata a luta histórica dos Guarani Kaiowá. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/ brasil/ 2016/09/24/cultura/1474724560-033841.html>. Matéria de:
24 set. 2016. 325
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Considerações Finais

No decorrer deste texto, a partir de bases epistemológicas dos Estudos Culturais e do Grupo Modernidade/Colonialidade, os quais oferecem
suportes para abertura de novos olhares sobre as culturas e as estéticas indígenas, discutiu-se como a arte e a cultura possuem símbolos, signi-
ficados e subjetividades, demonstrando que as relações de poder, inseridas no processo de colonialidade do poder-saber, buscaram inferiorizar
a diferença.

A recusa em aceitar as expressões artísticas dos povos indígenas, ou em concebê-las como algo menor, possui um longo trajeto vinculado ao
processo de colonização e ao ensino de Arte com seu currículo voltado para uma arte elitizada, situação que apresenta a produção artística
indígena como algo menor, de forma genérica, sem a distinção entre as diferentes culturas. Na escola, pouco se aborda sobre saberes outros que
envolvem a cosmovisão de cada etnia, processos de silenciamentos e exclusão, envoltos pela colonialidade do poder, que “é o eixo que organizou
e continua organizando a diferença colonial, a periferia como natureza” (MIGNOLO, 2005, p.34).

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Argumentou-se sobre algumas das situações em que a arte indígena se faz presente e ressignificada. Arte indígena que, com outras epistemo-
logias, distintas e dinâmicas, diferem de concepções de herança europeia. “Fazeres especiais” (RICHTER, 2003) que atravessam fronteiras geo-
gráficas, simbólicas, de construção, de usos pessoais, arte que é ressignificada. Compreende-se com Aguiar e Pereira (2015, p.710) que “a
arte requer a capacidade de comunicação e simbolização. Em certo sentido, o saber artístico precede o objeto artístico”. A arte indígena se faz
presente em diferentes espaços, é dinâmica, comporta diversas linguagens e não está fixa no passado. Suas estéticas são densas de sentidos e
simbolizadas e carregam, além de marcas de etnicidade, posicionamento político.

Cada iconografia tem seus símbolos e significados, traduzem cosmovisões e, na ampliação do repertório imagético, amplia-se o saber e se comu-
nica com o outro. Estética simbólica que busca, na atualidade, fazer-se presente em outros espaços, como marca distintiva, valorizada, ressigni-
ficada, distinguindo a identidade, porém o processo de produção da identidade “oscila entre dois movimentos: de um lado, estão aqueles pro-

Artigos
cessos que tendem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la” (SILVA, 2005, p.84).

Ao compreender as artes indígenas na afirmação da diferença, abre-se ao diálogo, em busca de relações igualitárias, capazes de enfrentar “con-
flitos pela assimetria de poder” (CANDAU, 2008, p.23), em processo de negociação permanente, tornando-se adequada “para a construção de
sociedades, democráticas e inclusivas (CANDAU, 2011, p.247). Portanto, entende-se que o diálogo promove o reconhecimento do “outro”, com
posições transformadoras, com outras perspectivas e outros saberes. 326
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Artigos
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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 304-330 | Jan - Jul | 2021

Indigenous cultures in Mato Grosso do Sul: other knowledge, otherperspectives, political and
resistance spaces

Abstract: The article discusses about indigenous cultures, which, in many cases, are exposed in a stereotyped manner, within a co-
lonialist view, in the Discipline of Art. Based on the results of a research conducted in Campo Grande / MS, based on the determina-
tion of Law 11.645 / 2008 and with theoretical support in Cultural Studies and in the Modernity / Coloniality Study Group, indigenous
cultures in the perspective of difference are discussed, in that other knowledge is possible. The study aims to contribute to potentiate
and tension the indigenous cultures present in the State of Mato Grosso do Sul, as markers of struggles, resistance and politics. The
conclusion reached is that to debate based on the achievements of different ethnic groups is to break the tendency to keep them in the
past; reframed art enables dialogue between indigenous and non-indigenous and points to interculturalpaths.

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Keywords: Indigenous cultures. Art teaching. Coloniality. Resignification.

Recebido em 03 de março de 2020

Aprovado em 31 de dezembro de 2020

Artigos
330
> proa | relatos
> Mokõi Kovoe, por trás das câmeras da
Associação Cultural de Realizadores Indígenas (Ascuri)

Luiza Serber1
> luizaserber@yahoo.com.br
Doutoranda em Antropologia Social
Universidade Estadual de Campinas

Eliel Benites
> eliel.benites@gmail.com
Doutor em Geografia
Professor da Faculdade Intercultural Indígena
Universidade Federal da Grande Dourados

1 Agradeço imensamente aos membros da Ascuri que tão generosamente vem compartilhando comigo seus modos de pensar e fazer cinema. Esse relato é fruto dessa partilha. Aguyjevete.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 332-358 | Jan - Jul | 2021

Resumo >
Este relato descreve, em palavras e imagens, o processo de realização do filme “Mokõi Kovoe”, uma produção da Associação
Cultural de Realizadores Indígenas (Ascuri) desenvolvida em comunidades do povo Kaiowá. Trata-se de uma breve história
de como o mito de origem do pássaro sagrado Kovoe percorreu diferentes tempos, suportes, grafias e linguagens até expres-
sar-se em cinema. O relato estrutura-se em torno de dois eixos: primeiro, o caráter comunitário desse processo de produção
fílmica, proporcionando uma experiência de retomada do teko joja (jeito harmonioso de ser), depois, a relação entre este pro-
cesso e o yvy rendy (mundo espiritual), sendo os ñanderu e as ñandesy (rezadores, xamãs, líderes espirituais) os principais
guias e agenciadores dessa relação. Imersos em uma paisagem cosmológica em que distintos mundos são conectados por
diferentes linguagens, as imagens e os sons do cinema da Ascuri – bem como os corpos-objetos que os produzem e guardam
– se integram também como elementos atuantes neste campo de mediações.

Palavras-chave >

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Cinema indígena; Cosmologia Kaiowá; Visualidades ameríndias.

[...] Nhanderu plantou o milho branco, “agora vamos nos preparar pra gente ir pro céu”, “vamos comer só peixe e farinha de milho branco, e chicha
também”. “Então vamos rezar”. Aí começou a chamar todo mundo, e começou a rezar, rezar, rezar, rezar... Na colheita do milho branco Nhanderu já

Relatos
começou a rezar. Nhanderu falou para a filha assim: “de manhã bem cedo, você não pode ir nem lá, aqui tem reza, você não pode ir lá sentar sozinha,
você tem que ficar aqui do lado”. Aí veio aquele relâmpago, veio relâmpago, relâmpago... Aí caiu perto dele, parecia aquela corneta “tchiiiiiiiuuuu”, uma
vez. Aí na segunda vez Nhanderu falou para as filhas assim: “pega água e volta rápido porque o caminho brilhante vai aparecer para a gente ir embo-
ra. Se você tomar banho, se você entrar na água, se você demorar, você não vai mais não. Vem, pega água, e traz rápido, porque o caminho brilhante
já vai aparecer daqui a pouco.” A filha falou “tá bom”. Aí ela chegou lá e esqueceu, tomou o banho, brincando, mexendo no cabelo [...]
Trecho do mito de origem do pássaro Jaó (Kovoe), narrado por Ademilson “Kiki” Concianza, indígena Kaiowá da aldeia Panambizinho e cineasta da Ascuri.
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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 332-358 | Jan - Jul | 2021

As artes verbais ameríndias, nas suas mais diversas manifestações, podem ser percebidas como vias privilegiadas de acesso a perspectivas ou-
tras. Entre os Kaiowá, a palavra, ñe’ẽ, é “voz, fala, linguagem, idioma, alma, nome, vida”, é palavra-alma (CHAMORRO, 2008, p.57). É alicerce da
comunicação entre múltiplos ára (mundos) e entre os diferentes seres que os habitam. A palavra, quando enunciada, toma forma no mundo, tor-
na-se fio a tecer a malha da vida. As narrativas míticas não se encerram em seu próprio tempo, atravessam gerações através da transmissão oral
e operam a conexão entre eventos transcorridos no tempo dos antigos – ára ymagware – que agem sobre os modos de ser na atualidade – teko
pyahu. Os mitos, assim, desenham futuros ao ilustrar passados, enquanto dão lugar e sentido ao tempo presente.

Partimos aqui do lugar da palavra – em especial, das narrativas míticas – entre os Kaiowá para tecer uma breve história de como o mito de origem
do pássaro sagrado Kovoe2 percorreu diferentes tempos, suportes, grafias e linguagens até expressar-se em áudio-visual – ta’angapu, em tradu-
ção aproximada ao guarani – no filme “Mokõi Kovoe”, mais recente realização da Ascuri (Associação Cultural de Realizadores Indígenas), coletivo
que reúne indígenas dos povos Kaiowá, Guarani e Terena e vem atuando no campo da formação e produção audiovisual há mais de uma década.

Em forma de relato, propomos que essa história seja aqui lida, mas também vista através das fotografias que a entretece. Costurado a quatro mãos
– por uma pesquisadora karai3 e por um pesquisador e cineasta indígena – este relato é enunciado a partir de duas vozes que, ora se encontram

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formando um nós, ora se distanciam por ocuparem posições bastantes distintas no processo de produção fílmica aqui descrito. Neste segundo
caso, optamos por nos referir a nós mesmos em terceira pessoa.

Relatos
2 Pássaro popularmente conhecido como Jaó. 334
3 Termo referente aos “brancos”, à sociedade não-indígena.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 332-358 | Jan - Jul | 2021

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Figura 1 – Gee e Kiki, cineastas da Ascuri, preparam as fogueiras para as filmagens em Te’yijusu (SERBER, 2021).

1 A Associação Cultural de Realizadores Indígenas

A realização do filme “Mokõi Kovoe” marca um momento muito especial na trajetória de engajamento dos jovens indígenas da Ascuri com o ci-
nema – com sua linguagem, com seus processos e tecnologias. A caminhada da Ascuri4 compreendeu até aqui a realização de inúmeras oficinas
de formação audiovisual (predominantemente ministradas em aldeias sul-mato-grossenses, mas também muitas vezes fora delas, entre os Cinta
Larga (RO), os Xavante (MT), os Guarani-Mbya (RJ), entre outros), bem como a produção de dezenas de filmes5 (abrangendo os mais diversos

Relatos
temas: de narrativas míticas a rituais, depoimentos de lideranças, técnicas e medicinas tradicionais, vídeos-denúncia de conflitos territoriais). A
realização de tais oficinas e filmes foi possível graças a uma grande diversidade de projetos, eventos e parcerias que atravessaram a história da
Ascuri e vem viabilizando a continuidade de suas atividades (entre estas podemos mencionar: as diversas edições da oficina Cine Sin Fronteras
4 Para um relato mais completo da trajetória da Ascuri, recomendamos a dissertação escrita por um de seus membros fundadores, Gilmar Galache (cf. GALACHE, 2017), do povo Terena. Além de
coordenador da Ascuri, Galache é também formado em Design pela Universidade Católica Dom Bosco, é mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília, e tem especiali-
zação em Cinema pela Escuela de Cine y Arte de La Paz (ECA/Bolívia). 335
5 Boa parte destes filmes se encontram disponíveis no canal da Ascuri no Youtube: <https://www.youtube.com/channel/UC_EvIOBMTbte94t3YtJWT_Q>. Acesso em 10 jun 2021.
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e do Fórum de Discussão sobre Inclusão Digital nas Aldeias (FIDA), os projetos Vídeo Índio Brasil e Ava Marandu - Os Guarani convidam, o Projeto
Gestão Ambiental e Territorial Indígena (GATI), entre outros).

A formação dos membros da Ascuri não se deu previamente à realização destes filmes, mas ao longo deles. Formação que foi sendo constituída
durante os processos de produção de cada oficina, de cada filme, fundamentada nos princípios de “aprender fazendo” e na noção de que cinema
não se encerra no produto audiovisual em si, mas se constitui por todas as relações que mobiliza e processos que agencia. Embora esta formação
seja contínua, ela tem na Bolívia seu marco inicial e no documentarista Quéchua, Iván Molina6, sua referência. A Ascuri começou a ser idealizada
por Gilmar Galache e por Eliel Benites, um dos autores deste relato, a partir de sua participação conjunta em 2008 na oficina Cine Sin Fronteras –
uma experiência de imersão em produção audiovisual voltada a povos originários, orientada por Iván Molina e realizada naquela ocasião em uma
comunidade Aymara (Bolívia). Nesta experiência inicial de formação, Iván Molina introduziu algumas das noções que seguem ainda hoje guiando
a prática da Ascuri, como as de autonomia e de horizontalidade.

Muita água correu na trajetória da Ascuri até que, uma década mais tarde, a Escola de Cinema Darcy Ribeiro, com sede no Rio de Janeiro, ofere-
cesse ao coletivo três vagas em alguns de seus cursos de especialização (direção, roteiro e montagem). Foi assim que Michele Perito, Ademilson

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“Kiki” Concianza e Gilearde “Gee” Barbosa Pedro – jovens membros Kaiowá da Ascuri, moradores da aldeia Panambizinho (Dourados/MS) – par-
tiram para a capital fluminense diante da oportunidade de acessarem o universo do cinema karaí (“dos brancos”)7. Tal experiência acabou por
estimular um processo de amadurecimento de seus próprios modos de fazer cinema, ao mesmo tempo em que adquiriram uma maior capacitação
técnica para navegar equipamentos e processos inerentes à produção cinematográfica. Porém, como bolsistas do curso, mas sem a garantia de
condições de permanência na cidade, tal experiência não foi vivida sem significativos sacrifícios pessoais para cada um dos jovens envolvidos. O
filme “Mokõi Kovoe” é uma das primeiras produções realizadas pela Ascuri após o retorno de seus membros à aldeia e é, assim, um dos primeiros
frutos colhidos pelo coletivo a partir desta experiência de formação.

Relatos
6 Iván Molina Velasquez, de origem Quéchua, formou-se na Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Baños (EICTV/Cuba) e é um dos fundadores da Escuela de Cine y Artes
Audiovisuales (ECA/Bolívia). Ao longo de sua trajetória como documentarista e professor, tem atuado como um grande fomentador de um cinema realizado pelos povos originários na América
Latina. 336
7 Cf. <http://www.escoladarcyribeiro.org.br/indigenas-do-ms-vao-cursar-direcao-roteiro-e-montagem-na-escola-de-cinema-darcy-ribeiro/>. Acesso em 10 jun 2021.
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2 Mokõi roikove, “nós duas sobrevivemos”8

No atual contexto de desmonte das políticas públicas voltadas ao fomento do setor cultural, em geral, e ao cinema, em particular, somado a um
acúmulo de dificuldades trazidas pela pandemia, o anúncio da Lei Aldir Blanc9 em 2020 trouxe algum alento. Foi neste cenário que a Ascuri foi
contemplada em um edital lançado pela Secretaria Municipal de Cultura de Dourados/MS e pôde dar início à fase de pré-produção do filme com
a perspectiva de receber algum recurso, ainda que modesto, para sua realização. Estando os membros da Ascuri dispersos por diferentes aldeias,
cidades e até mesmo países, iniciou-se um processo de elaboração coletiva do roteiro inteiramente mediado por ferramentas virtuais de comuni-
cação10.

Em sintonia com um dos princípios que orientam o trabalho da Ascuri – o de fomentar por meio do audiovisual o contato da juventude indígena
com os mais velhos, guardiões das palavras e saberes de seu povo –, a criação deste roteiro foi suscitada a partir da leitura do mito de origem do
Kovoe. O mito foi registrado em um livro organizado pela etnóloga Friedl Paz Grünberg (2011) em que ela compila diversas narrativas Guarani co-
lhidas ao longo das últimas décadas, histórias narradas oralmente para então serem transcritas em livro, chegando finalmente às mãos dos jovens

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de Panambizinho, Kiki e Gee. Esta narrativa, semi-adormecida em texto, quando levada à ñandesy Anamélia Concianza, ganhou uma nova versão,
ao mesmo tempo em que recuperou sua oralidade, seu som, textura, afetos e atualidade.

Esta ideia inicial para o filme surgida em Panambizinho viajou então à aldeia de Eliel Benites, Te’yikue (Caarapó/MS), e seguiram juntos desen-
volvendo-a até que resultasse na escrita de um roteiro em formato propriamente “cinematográfico”11, acompanhado de um pequeno texto que
articula o filme a conceitos centrais à cosmologia Kaiowá e o situa politicamente na atualidade vivida por este povo. Foi percorrendo esta traje-
tória de encontros entre a cosmologia kaiowá e as tecnologias de comunicação dos karaí (primeiro, o gravador do etnólogo, depois, as palavras
escritas guardadas em livro e, por fim, o cinema da Ascuri) que uma memória viva, mas semi-adormecida, foi pouco a pouco sendo despertada
pelos jovens Kaiowá. O kokove representa a vida dos Guarani e Kaiowá na terra, e, assim, pareceu aos membros da Ascuri a narrativa ideal para

Relatos
atualizar nas telas.

8 Conforme explica a ñandesy Anamélia, escutamos o canto do Jaó como “mokõi kokove” ou “mokõi kovoe” (grafia escolhida para dar nome ao filme), mas, na compreensão humana, o pássaro
está dizendo “mokõi roikove” (“nós duas sobrevivemos”, em tradução para o português).
9 Cf. <https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2021/06/a-emergencia-da-cultura-e-a-lei-aldir-blanc/>. Acesso em 10 jun 2021.
10 As habilidades e as condições necessárias para que essa forma de trabalho fosse possível é também “herança” da pandemia (como, por exemplo, a instalação de internet na casa de um dos
membros da Ascuri na aldeia Panambizinho).
11 Na experiência da Ascuri, esta foi a primeira vez que desenvolvemos um roteiro por escrito em formato propriamente “cinematográfico”, pois até então sempre trabalhamos com o roteiro apenas 337
“na cabeça”. Assim inauguramos uma nova forma de fazer cinema, um roteiro pensado de maneira coletiva, atual e em rede.
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Em paralelo às trocas referentes ao desenvolvimento do roteiro, iniciou-se a realização de encontros virtuais semanais para o planejamento de
todos os aspectos de produção do filme, reuniões conduzidas por Iván Molina e com a participação de outros membros e parceiros da Ascuri en-
volvidos na produção. Um ponto crucial deste planejamento dizia respeito ao andamento da vacinação contra a covid-19 da população nas aldeias
sul-mato-grossenses, condição essencial para a realização das filmagens12. Estes encontros propiciaram ainda a realização virtual de algumas
“mini-oficinas” que ofereceram uma espécie de formação complementar para algumas atividades específicas (no caso, som e continuidade13).
Essa fase de pré-produção compreendeu ainda a compra e confecção de equipamentos, um mapeamento dos possíveis locais de filmagem, além
de um breve treinamento de manuseio do drone recém-adquirido, equipamento que permitiria a exploração e experimentação de novas perspec-
tivas.

A filmagem da maior parte das cenas, sobretudo daquelas com a presença de atores, se concentrou em um período de cinco dias ao longo dos
quais transitamos entre dois territórios de ocupação Kaiowá no município de Caarapó/MS: a aldeia Te’yikue e a retomada Te’yijusu, situada nos
entornos da aldeia14. Chegando em Te’yikue, toda a equipe da Ascuri vinda de Panambizinho alojou-se na Escola Municipal Indígena Ñandejara-
-Polo. A escola serviu de base para todas as atividades relacionadas ao filme, onde toda a equipe se reunia diariamente, onde realizaram-se as

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oficinas de atores, onde fizemos nossas refeições e, sobretudo, onde passamos mais tempo juntos. Na retomada Te’yijusu encontra-se a casa de
reza, circundada por belas roças de milho e mandioca – contrastando com os extensos plantios de soja que dominam a paisagem da região. Foi
ali que os rezadores – como costumam ser chamados em português os ñanderu e as ñandesy, xamãs, líderes espirituais – conduziram o jeroky
(dança-ritual), especialmente promovido em função das filmagens. As demais cenas do filme foram captadas em lugares adjacentes a estes dois
“polos”.

12 A partir do momento em que se definiu que as filmagens ocorreriam quando todos os indígenas envolvidos estivessem plenamente imunizados, a Ascuri convidou Luiza Serber a colaborar
também com as atividades presenciais, de modo a oferecer, sobretudo, um apoio em questões de produção e logística. André Doneux também se juntou para oferecer este apoio. Para tanto,

Relatos
foram tomadas todas as medidas possíveis para minimizar os riscos de contágio: todos os trajetos foram percorridos de carro; foi realizado às vésperas da viagem um exame PCR para covid-19;
e foi feito uso rigoroso de máscaras durante todo o período (dentro e fora das aldeias).
13 Colaboraram como professores destas oficinas, respectivamente, Pedro Gradella (coordenador do Centro de Artes da UFF) e Ivania Molina (continuista, Bolívia).
14 As chamadas áreas de retomada são territórios ocupados por famílias Guarani e Kaiowá que constituem um movimento, intensificado a partir da década de 80, de reivindicação pela demarca-
ção de terras tradicionalmente ocupadas por estas populações. Em Mato Grosso do Sul, onde as populações indígenas da região foram submetidas a um processo de “confinamento” em peque-
nos territórios descontínuos denominados reservas, as chamadas áreas retomadas são expressão da insuficiência e da morosidade dos processos de demarcação e das dificuldades enfrentadas
pelas famílias dentro das reservas. A Reserva Indígena de Caarapó, conhecida como aldeia Te’yikue, foi delimitada pelo SPI em 1924 e hoje se encontra circundada por uma série de áreas reto-
madas a partir de 2013, entre as quais a retomada Te’yijusu (BRAND, 2004; BENITES, 2020). A aldeia Panambizinho, também mencionada neste relato e homologada apenas em 2004, é exemplo 338
da resistência dos Kaiowá frente aos projetos federais de colonização (em particular, a Colônia Agrícola Nacional de Dourados) e frente ao seu confinamento em áreas de reserva.
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Figuras 2 e 3 – Filmagens em
frente à casa de reza de Te’yi-
jusu. Em fila, os ñanderu Lídio
Sanches e Florêncio Barbo-
sa, junto a lideranças locais e

Relatos
aos jovens de Te’yikue. Por trás
da câmera, Quênio (jovem de
Panambizinho, mais novo in-
tegrante da Ascuri), Alexqui-
son, Kiki e Gee (SERBER, 2021).

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3 Teko joja, modo harmonioso de ser

Marca fundamental da realização deste filme é o caráter comunitário de todo seu processo – caráter comumente apontado como distintivo e ca-
racterístico do chamado “cinema indígena”. Ao longo de todas as etapas da filmagem, a equipe da Ascuri continuamente esforçava-se por integrar
a comunidade de Te’yikue àquele projeto de realização do filme, permitir que esta não apenas se engajasse em sua produção, mas se apropriasse
mesmo dele. O vínculo entre comunidade e filme, de início instável e frágil, foi pouco a pouco se consolidando. Este se estreitou, primeiramente,
por meio da inclusão de professores indígenas15 que ofereceram um apoio fundamental a toda a realização, indicando alguns de seus alunos a
participarem das oficinas de atores, acompanhando-os e amparando-os ao longo de todos aqueles dias de intensa dedicação.

Kiki, tendo iniciado sua trajetória no cinema como ator16, foi quem ofereceu as oficinas aos atores mirins, lançando mão de diversas técnicas e di-
nâmicas aprendidas em sua própria experiência de formação em atuação. O objetivo destas oficinas não era apenas selecionar as duas principais
atrizes a interpretarem as filhas de Ñanderu que então se transformariam em kovoe, mas também cultivar a conexão daquelas crianças e adoles-
centes com tudo que aquela experiência proporcionava: o contato com as técnicas e processos da produção audiovisual e, sobretudo, a convivên-

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cia com os rezadores, com as narrativas e práticas rituais Kaiowá, e o encontro com suas palavras, ñe’ẽ. Tal cultivo se tornava evidente à medida
que o momento da escolha das atrizes foi sendo adiado, optando-se por filmar algumas das cenas repetidas vezes com todas as possíveis atrizes,
para apenas na fase de montagem selecionar aquelas com as atrizes escolhidas. Prevalecia a lógica de que nada daquilo era esforço ou tempo
perdido, o mais importante era o partilhar daquela experiência e de seus aprendizados – aprendizados do arandu (conhecimento, sabedoria)17.

Relatos
15 Entre os professores envolvidos, destacamos a participação de Voninho Benites Pedro, liderança Guarani Kaiowá, membro do conselho Aty Guassu e do Conselho Continental da Nação Gua-
rani.
16 O primeiro contato de Kiki com o universo do cinema se deu através de sua participação como ator no filme “Terra Vermelha” (Marco Bechis, 2008). 340
17 Etimologicamente, a palavra arandu contempla ára (dia, tempo, espaço) e ndu (ouvir, sentir). Assim a palavra se refere a “ouvir, sentir o tempo-espaço”.
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Relatos
Figuras 4 e 5 – Na Escola
Ñandejara-Polo, Kiki con-
duz as primeiras oficinas
de atuação com os jovens
de Te’yikue (SERBER, 2021).

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Aqueles dias de filmagem só foram possíveis graças a um delicado trabalho anterior de articulação conduzido por Eliel Benites de modo que os
diferentes domínios que compõem a comunidade de Te’yikue e da retomada Te’yijusu, através de seus respectivos representantes, estivessem
abertos a receber aquela atividade e nossa equipe. A “bênção” da realização do filme por parte de lideranças locais e rezadores foi sendo cui-
dadosamente tecida antes mesmo da chegada da equipe na aldeia, bem como nos dias iniciais da filmagem, em que a proposta do filme e os
membros da equipe foram formalmente apresentados. Essa aprovação era essencial para que as coisas transcorressem bem, sem que houvesse
contratempos.

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Figura 6 – Em Te’yijusu, a Ascuri apresenta à comunidade cada um dos membros da equipe e a proposta do filme (SERBER, 2021).

Relatos
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Relatos
Figuras 7 e 8 – Com a “bên-
ção” das lideranças e dos
ñanderu, realiza-se um je-
roky que marca o início das
filmagens (SERBER, 2021).

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O caráter comunitário de toda a produção se evidenciava não apenas pela integração com a comunidade de Te’yikue e da retomada Te’yijusu, mas
também pelo conjunto de pessoas que se deslocaram de Panambizinho até lá. Esse conjunto era composto não apenas pelos realizadores da
Ascuri, mas também pelas suas esposas, filhos, mães, igualmente essenciais àquela realização – contrastando assim com uma lógica comercial
de cinema, em que a equipe é reduzida ao máximo. Os momentos de trabalho eram entremeados por rodas de tereré18, que, por sua vez, eram
também ñemongeta jere (rodas de conversa) – disposição considerada ideal pelos Kaiowá para a partilha e para a tomada de decisões (CARRION;
THOMAZINHO, 2019, p.16). Elemento essencial também à experiência comunitária era a partilha de alimentos, o comer junto. Daí a importância
fundamental da Narcísia, merendeira da escola e cozinheira de toda a equipe durante aqueles dias, e da farta oferta de alimento possibilitada pelo
recurso recebido para a produção, com destaque à mandioca colhida pela própria equipe e cultivada nos arredores da casa de reza. A atmosfera,
assim, era de realização de um mutirão, em que todos se dedicavam a um projeto comum no qual a contribuição de cada um era reconhecida
como de fundamental importância. Nessa dinâmica de mutirão, conduzido com a calma e gentileza que é característica dos Kaiowá, exercitamos
e experimentamos uma retomada do teko joja, do jeito harmonioso de ser (BENITES, 2020, p.34).

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Relatos
Figura 9 – Parte da equipe do filme “Mokõi Kovoe”. Ao centro, os cineastas Gee, Kiki e o novato da Ascuri, Quênio. Nas laterais, dois participantes de Te’yikue,
Iarlei (figurante, à esquerda) e Micael (assistente de som, à direita) (SERBER, 2021).
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18 Bebida gelada de erva-mate, de uso ancestral dos povos Guarani.
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Relatos
Figuras 10 e 11 – Quênio
(acima) e Gee (abaixo) co-
lhem mandioca nas roças
de Te’yijusu (SERBER, 2021).

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4 Yvy rendy, o mundo espiritual

Pode-se dizer, no entanto, que o eixo que sustentou e orientou todo o processo de produção fílmica se situa, antes, na relação com o mundo
espiritual, sendo os rezadores os principais guias e agenciadores dessa relação. Essa relação atravessou cada etapa do filme e de seu processo
de realização – do mito que lhe dá origem, à maneira como as coisas transcorreram nos dias da filmagem, às escolhas de montagem. Conforme
explica Lídio Sanches (rezador de Te’yikue que esteve presente durante as filmagens),

[...] “o mundo (todo o cosmo existente) que conhecemos é uma parte da totalidade da existência”. Portanto, há dois mundos em conexão. Na língua
Guarani, chamamos de Yvy rei ao mundo que conhecemos (mundo passageiro, que não é o verdadeiro mundo), e o mundo espiritual é Yvy rendy
(terra iluminada), onde habitam os espíritos, que é, ao mesmo tempo, nossa verdadeira morada (BENITES, 2014, p. 64).

A conexão entre Yvy rei e Yvy rendy é permanentemente atualizada por diferentes agentes-seres que se expressam por meio de diferentes lingua-
gens. Enquanto a chuva, o vento, os raios, os sons de animais e da floresta são a língua dos espíritos; os homens têm nos cantos-reza porahéi o

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elemento central de sua mediação entre distintos mundos (BENITES, 2014, p.64, 65), sendo os rezadores aqueles especialmente aptos a operarem
o trânsito e a comunicação entre eles. Sejam os enunciadores espíritos ou rezadores, importa não apenas o que é dito, mas a forma como é dito.
E é sobre essa complexa trama de linguagens e formas que se assentam as filmagens de “Mokõi Kovoe”, acrescentando a ela mais uma camada.

Os rezadores – em especial Anamélia Concianza, de Panambizinho, Lídio Sanches e Florêncio Barbosa (conhecido como “Baixinho”), de Te’yikue
– estiverem presentes em diversas fases de realização do filme. A ñandesy Anamélia (mãe de Kiki, neta de Pa’i Chiquito19, e grande conhecedora
das histórias Kaiowá), esteve envolvida desde o momento de concepção do roteiro e viajou conosco até Te’yikue para participar também das
filmagens. Os ñanderu Lídio e Baixinho chegaram ao encontro da equipe performando o jehovasa20 (ritual de recepção espiritual e de retirada de
mal espírito do lugar), imbuindo aquela empreitada de força espiritual. Daquele momento em diante, o jehovasa passou a marcar cada etapa da
produção, transformando toda aquela experiência – os corpos-objetos e as relações que a constituem – em uma espécie de continuum ritual.

Relatos
19 Pa’i Chiquito foi um grande líder espiritual denominado como techakára (revelador), que fundou a aldeia Panambizinho através de seu canto-reza. Este líder realizava grandes rituais sagrados
como o Kunumi pepy (ritual de perfuração dos lábios dos meninos) e o Jerosy (ritual do milho branco). Parte das famílias que hoje vivem em Panambizinho descendem deste grande líder.
20 Jehovasa é um conjunto de cantos-reza que se comunicam com os espíritos (positivos e negativos) para que o evento no qual o rezador está presente corra bem. O canto pede que o mal
espírito se retire e que os bons espíritos se façam presentes no evento (tempo). Assegura-se, assim, a perfeição do encontro entre diferentes pessoas, pois na ótica dos mais velhos o encontro 346
não é apenas físico, mas também um encontro das almas das pessoas, que inaugura o tempo-espaço (ára).
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Figura 12 – Os ñanderu Lídio Sanches e Florêncio Barbosa realizam o jehovasa, marcando a passagem de mais uma etapa da produção (SERBER, 2021).

A presença dos rezadores ao longo dos dias da filmagem, desempenhava a dupla função de orientar o trabalho da equipe, ao mesmo tempo em
que estes eram também “guardiões” de todo o processo. Os últimos dias de filmagem estavam ameaçados de chuvas, podendo comprometer, em
especial, as cenas a serem gravadas em uma pequena cachoeira. Em um breve momento de trégua das águas, corremos para o local de filmagem
e nos embrenhamos no mato carregados de equipamentos valiosos e frágeis, uma grande lona e sacos plásticos. Anamélia, embora não fosse
atuar naquelas cenas, acompanhou toda a correria entoando cantos-reza e fazendo jehovasa, garantindo que os donos da água (yryvera) e da mata

Relatos
(ka’aguy jára) fossem devidamente saudados21 e que, assim, toda a equipe, bem como seu trabalho, estivesse resguardada. E assim foi. A chuva
caiu, mas os seus intervalos proporcionaram todo o tempo e a luminosidade desejada para as filmagens.

21 Na visão dos Guarani e Kaiowá, as matas, os rios, as áreas pantanosas e muitos outros lugares são domínios de diferentes guardiões do lugar e, por isso, quando se transita é necessário pedir 347
licença a esses guardiões. É por esta razão que Anamélia rezava, para se comunicar pedindo espaço para se realizar a produção do filme.
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Relatos
Figuras 13 e 14 – A ñandesy
Ananmélia faz jehovasa,
pedindo licença aos donos
da água (yryvera) e da
mata (ka’aguy jára) para as
filmagens (SERBER, 2021).

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Figuras 15 e 16 – Na foto acima,
da esquerda: Eliel, a ñandesy

Relatos
Ananmélia, Kiki, e Voninho. Na
foto abaixo, as duas irmãs (futu-
ras kovoe) encenam o momento
em que percebem terem sido
deixadas (SERBER, 2021).

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Os três rezadores estiveram especialmente atentos ao desempenho das jovens candidatas a assumirem o papel da itykéra (irmã mais velha), filha
de Ñanderu e futura kovoe, pois desempenhariam mais tarde um papel decisivo nesta escolha. Depois de filmadas boa parte das cenas, a equipe
da Ascuri fez uma rápida montagem do material, reunindo em “pequenos filmes” a atuação de cada uma das candidatas. Decidiu-se que a es-
colha das atrizes deveria manifestar o desejo de toda a comunidade envolvida, mas que a palavra final seria de responsabilidade dos rezadores.
Assistimos então, juntos, a cada um dos pequenos filmes e nossas reações, enquanto público, já expressavam nossas preferências. A palavra final
foi, então, concedida aos rezadores que, por sua vez, a concedeu à ikypy’ýra (irmã mais nova), que finalmente escolheu a atriz. Para a equipe da
Ascuri, tal processo permitiu que a escolha não fosse técnica, mas espiritual e coletiva. Uma vez escolhidas, as duas irmãs receberam um batismo
denominado ombohero (ritual de canto-reza que chama o espírito do jaó para pousar nos corpos das duas meninas), para que desempenhassem
bem a função na condição de representantes da comunidade.

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Relatos
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Figuras 17 e 18 – Acima, Gee
orienta uma das atrizes en-

Relatos
quanto, ao fundo, os ñanderu
e outros membros da comuni-
dade observam atentamente.
Abaixo, da esquerda, Eliel Be-
nites, Lídio Sanches e Florên-
cio Barbosa (SERBER, 2021).

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Figuras 19 e 20 – Acima, ñande-
ru, atores, atrizes e demais en-

Relatos
volvidos nas filmagens assistem
às diferentes versões do filme
para avaliar as atrizes. Abaixo,
ñanderu e ñandesy cantam-re-
zam durante o processo de es-
colha das atrize (SERBER, 2021).

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Para além da estreita relação com os rezadores e da própria narrativa mítica retratada, o mundo espiritual atravessou o filme, também, no que diz
respeito aos equipamentos empregados e nas posteriores escolhas de montagem22. O uso do drone foi pensado para indicar ao espectador o
trânsito entre diferentes tempos e patamares que compõem o cosmo Kaiowá. Em uma das cenas, seu movimento de subida em diagonal do yvyra’i
(pequeno altar) em direção ao céu traduz em imagem o momento em que a comunidade torna-se aguyje e eleva-se em direção ao kandire. A cena
final, que captura um belo pôr do sol de luminosidade amarelada sobre uma plantação de soja, sugestiona o Araguaju – que apesar de encantador,
é o lugar dos mortos e fonte dos malefícios humanos (BENITES, 2020, p.22).

Nesta paisagem cosmológica em que distintos mundos são conectados por diferentes linguagens, as imagens e os sons do cinema – bem como
os corpos-objetos que os produzem e guardam – se integram também como elementos atuantes neste campo de mediações. A forma como a
equipe da Ascuri, sob orientação dos rezadores, conduziu todo o processo de produção fílmica, expressava a consciência de que o trabalho ali
desenvolvido afeta – e era afetado por – relações e agentes, visíveis e invisíveis, humanos e não-humanos, tipicamente geridos pelo xamanismo.
A adaptação para o cinema de uma história tradicionalmente transmitida pela oralidade, tensiona os âmbitos do ouvir, hendu, e do ver, hecha –
constitutivos de diferentes formas de percepção da palavra (CHAMORRO, 2008, p. 60) – ao mesmo tempo em que potencializa a conexão entre

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um tempo-espaço primevo e o mundo-vivido atual.

Relatos
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22 Esta etapa contou com a colaboração de Iulik Lomba de Farias, mestre em Antropologia pela UFGD, doutorando em Cinema na UFF e parceiro de longa data da Ascuri.
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Figuras 21 e 22 – O ñanderu Lí-

Relatos
dio Sanches fala sobre o proces-
so do aguyje enquanto os mais
jovens distribuem os elementos
– milho branco e urucum – que
formam o caminho brilhante no
filme (SERBER, 2021).

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Considerações finais

Se iniciamos esse relato falando de ñe’ẽ – da palavra-alma Kaiowá –retornemos agora a elas. Seguem as palavras de Eliel Benites durante a roda
de encerramento das filmagens em Te’yikue, fala que condensa muitas das noções aqui apontadas e dá a dimensão da importância do trabalho
desenvolvido hoje pela Ascuri:

É a primeira vez que a Ascuri assumiu uma responsabilidade dessa, primeira vez no sentido de receber recurso, mas também no sentido de dar
início a outra grande responsabilidade. Por quê? Porque nós temos várias histórias, histórias sobre o Sol e a Lua, sobre os animais, sobre todo tipo
de mitologia, é muito rico! Então a nossa história é a nossa riqueza em termos de memória, história antiga, tem muito. O problema é que os mais
velhos estão morrendo. Nesse tempo da pandemia, então. A gente percebe, a gente vê na mídia, que está morrendo muita gente e vem acelerando
esse processo. E nesse processo a nova geração vai se criando. Só que essa nova geração que nasce muitas vezes já vai pro trabalho, vai esquecer
essa memória, o próprio arandu, o conhecimento. Cada vez mais vai se produzindo uma geração de esquecimento. Por isso que o nosso compro-
misso como Ascuri é muito importante. Quanto mais um povo esquece a sua história, mais ele se perde. Então um povo ele existe porque ele tem a
sua memória. Você é alguém se você tem história. Se você não tem história você não é ninguém. A gente é produto de uma história. O problema é

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que esse mundo do karai – karai reko, mundo moderno, sistema do karai, sistema do mundo que está aí – ele apaga essa memória. Quando a gente
esquece a nossa memória, esquece a nossa terra, esquece a nossa tradição, a nossa língua, ñee, que é nosso principal instrumento para entender o
mundo. A gente enxerga o mundo a partir do nosso olhar, e o nosso olhar é construído pela nossa história, a gente enxerga o mundo do lugar em que
a gente vive. Por isso que é importante a Ascuri manter esse trabalho. Parece que não é muito para a pessoa que está se envolvendo pela primeira
vez, mas é muito importante, porque é um instrumento que vai fazer uma conexão, a memória dos mais velhos com as novas gerações. Uma ligação.
Por isso que fazer filme na perspectiva da Ascuri não é só produzir, mas viver essa história. Por isso que a gente fala pra atriz, “vamos sentir aquela
tristeza do kovoe, vamos sentir como é que aquele kovoe foi abandonado. O que é ser abandonado? Todos nós temos esse sentimento de abando-
no. Na história foi construído esse abandono. Esse sentimento de abandono foi criado no início dos tempos. Ele foi criado pela história do kovoe. E
hoje a gente é abandonado, de uma certa maneira, como povo Guarani-Kaiowá. A gente fica então sem horizonte. Então essa é a missão maior que
nós temos. Nosso compromisso como profissional, como instrumento produtor de uma determinada narrativa audiovisual que faz o retorno dessa
memória viva. A memória sobre o passado como horizonte para construir o futuro. Por isso que as pessoas quando esquecem sua história se perde
no mundo do branco! Por que o mundo do branco. Perde a língua, perde o entendimento sobre a natureza, como a gente vai levantar uma família.

Relatos
Tudo! Ele se perde. Porque o jeito dos outros é importante, é encantador, mas não é uma coisa que vai orientar a nossa existência. Então por isso
a memória – ñande [nossa] história, língua, cultura, tradição, arandu – é importante! E o fazer filme é um processo de viver isso hoje, através dessa
história. Aguyjevete! Vamos continuar na luta!

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Por fim, convidamos o leitor a acessar o canal da Ascuri no Youtube para assistir ao filme “Mokõi Kovoe”, cuja narrativa espelha a narrativa do mito:

“Ñanderu prepara toda a comunidade para percorrer o caminho brilhante e tornar-se aguyje – estado de perfeição, plenitude –, processo de eleva-
ção do corpo em direção ao kandire (terra sem males). Suas duas filhas, porém, ao ignorar as orientações de Ñanderu, são deixadas na terra, expe-
rienciando assim o abandono e a tristeza. Ouvindo seus lamentos, Ñanderu as transforma no pássaro kovoe, para que possam assim sobreviverem
sozinhas. Ainda hoje, o kovoe canta na mata: “mokõi roikove” (“nós duas sobrevivemos”) e sua história é relembrada a cada vez que o mito é narrado
e enunciado em cantos rituais.”

Assista aqui ao filme: <https://www.youtube.com/watch?v=RxJH85lBpbU>.

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Relatos
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REFERÊNCIAS

BENITES, Eliel. Oguata Pyahu (Uma nova caminhada) no processo de desconstrução e construção da educação escolar indígena da Reserva Indígena Te’ýikue.
2014. 165 f. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Católica Dom Bosco, 2014.

BENITES, Eliel. Tekoha Ñeropu’ã: aldeia que se levanta. Revista NERA, v. 23, n. 52, p. 19- 38, dossiê., 2020.

BRAND, Antônio. J. Os complexos caminhos da luta pela terra entre os kaiowá e guarani no MS. Tellus, Campo Grande, n. 6, 2004, p. 137-150.

CARRION, Dirce.THOMAZINHO, Gabriela (orgs). Projeto Teko Joja. União Européia: Projeto Imagem da Vida, 2019.

CHAMORRO, Graciela, CONCIANZA, Misael e PEREIRA, Levi M. Kaiowa Mombe’upy Nhemohembypy Rehegwa— Relatos da cosmogonia Kaiowá: Implicações
no campo linguístico e na produção vida social. Espaço Ameríndio. Vol. 10, n.1, p. 10-33, jan/jun, 2016.

CHAMORRO, Graciela. Terra Madura – Yvy Araguyje: Fundamento da palavra guarani. Dourados: Editora UFGD, 2008, 368 p.

GALACHE, Gilmar. KOXUNAKOTI ITUKEOVO YOKO KIXOVOKU – Fortalecimento do jeito de ser Terena: o audiovisual com autonomia. 123f. Dissertação (Sus-

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tentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais) – Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, 2017.

GRÜNBERG, Friedl Paz (Org.). 2011. Ñande Ypykuéra ñe’engue. Minas Gerais. UFMG.

Relatos
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Mokõi Kovoe, câmera Associação Cultural de Realizadores Indígenas (Ascuri) rapykuéri rupi

Ñe’e mbyky: Kóa ko jehai pyre, ñe’ẽ há ta’anga rupive, omombe’u mba’éichapa ojejapo ta’angapu “mokóĩ kovoe”, ojapo va’ekue Asso-
ciacao Cultural de Realizadores Indígenas (Ascuri) amo tekoha Kaiowápe. Upépe oñemongeta mbyky hina mba`éichapa oñemombe’u
akue ijypy ramo guare guyra kovoe, ohasa ramo guare heta ára, mba’ekuaa, jehaipyre há ayvu oguãhẽ haguã cinema pe (ta’angapu).
Ko jehai oñemombarete hina mokóĩ jekoha rehe: tenondegua, ta’angapu ojejapoha tekohápe maymáva ndive, oikuãve’ẽvo mba’éichapa
jaipyhy jevy haguã teko joja, há upéi, oñembojoaju arandu yvy rendy rehegua (teko jára renda), upépe ñanderu há ñandesy (opurahéi-
va, tendota kuéra) ñande gueraháva há omoĩ porãva umi mba’e. Jajegueroyvate ára rehe jajepokóvo ára joguigui rehe heta iñambuéva
ayvu, ta’anga há mba’epu ojapóva cinema Ascuri – avei heta mba’e ojapóva há ogueropytáva – ojehe’áva mbarete oikóva há ojejapóva.

Ñe’ẽ mbarete: Ta’angapu ava mba’éva; Kaiowá arandu; Visualidades ameríndias.

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Recebido em 08 de julho de 2021

Aprovado em 12 de julho de 2021

Relatos
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> Mirando Mundos Possíveis: uma experiência videográfica
virtual para (Re)Existir e Curar
Ana Carolina Estrela da Costa
> estrela@gmail.com
Doutoranda em Antropologia Social
Universidade de São Paulo

André Luís Lopes Neves


> tupxi@usp.br
Doutorando em Antropologia Social
Universidade de São Paulo

Nadja Woczikosky Marin


> nadjamarin@gmail.com
Doutora em Antropologia Social
Universidade de São Paulo
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 359-371 | Jan - Jul | 2021

Resumo >
Este relato narra a experiência de concepção e construção da plataforma virtual “Mirando Mundos Possíveis: (Re)Existir e
Curar”, que reúne uma série de produções audiovisuais realizadas por povos indígenas durante o período da pandemia. O
mosaico de vídeos criado a partir desta experiência emerge como uma potente expressão de como povos indígenas, em
sua multiplicidade, oferecem perspectivas igualmente múltiplas acerca deste momento dilatado de rupturas. A criação desta
plataforma insere-se em meio à recente trajetória de formação da Rede CineFlecha, uma rede que articula diversos coletivos
indígenas de cinema junto a seus parceiros não-indígenas.

Palavras-chave >
Povos Indígenas; Covid-19; Audiovisual; Comunicação indígena; Cinema indígena.

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Esse tipo de coisa não acontecia antigamente como hoje, as doenças não chegavam, como diz o vovô. Portanto, hoje parece o tempo passado, mas não
é. Tem que retirar as doenças das crianças trazendo para o rezador poder cantar.
Ñandesy (líder espiritual) do povo Kaiowá (MS), em websérie “Nativas Narrativas” da ASCURI (Ep. 1 - Teko Marangatu).

A doença que não conhecemos, a palavra impronunciável da doença, agora, está chegando. O que está chegando não podemos ver. O revelador se
estivesse em nosso meio explicaria para nós. “Veste todos os trajes rituais e cantem para impedir”. Assim ele orientaria a todos nós. Os brancos chamam
de coronavírus. Está vindo esta doença. Essa doença que está vindo não escolhe. Provoca dor de cabeça, febre, e tem aqueles que podem resistir. É só
cantar todas as noites o canto para os donos da doença no céu. Tem que entoar também o canto sagrado.
Ñandesy (líder espiritual) do povo Kaiowá (MS), em websérie “Nativas Narrativas” da ASCURI (Ep. 2 - Ary Va’i).

Relatos
Eu sinto que as plantas, todos os seres sagrados, vegetais, animais, estão muito atentos a este momento. Sinto que a floresta pulsa dia e noite. E ao
mesmo tempo que pulsa ela ecoa os seus saberes e o seu instinto de vida a cada novo amanhecer. [...] Há muito tempo eu venho sentindo e ouvindo
dos pajés, dos líderes espirituais, dizendo que os espíritos da floresta estavam bravos com a gente, com nós todos humanos. E agora  a gente sente que
eles tão sentindo tipo um suspiro, um alento, sabe? Um suspiro de alívio mesmo. Então acho que de uma certa forma todos os seres sagrados, todas as
plantas, tem observado nós humanos.
Cristine Takuá, do povo Maxakali (SP), no vídeo “O teu, o meu, o nosso”.

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É uma doença contagiosa que pega rapidamente um no outro, e isso é ruim. Tem parente que fala assim, “ah, eu não tenho medo de morrer”. Lógico,
você não tem medo de morrer, mas o seu irmão, o seu filho, sua filha, sua esposa, seu pai, sua mãe, eles não querem morrer. Então, por mais que você
queira morrer, não vá para a rua, pra cidade, pela sua família, pelo seu povo. Isso que eu queria dizer a todos os meus parentes e também àqueles não-
-indígenas que queiram olhar, escutar o meu vídeo.
Marcelo, do povo Cinta Larga (RO), no vídeo “Marcelo Cinta Larga (RO) alerta gravidade de covid19”.

Precisamos pedir para nossos espíritos da floresta, os donos espirituais das árvores. Vocês, espíritos que podem nos ajudar, nessa hora tão difícil. Todos
vocês que nos deixaram: meus pais, meus cunhados e meus avós... Cuidem da gente! Sei que vocês estão ouvindo a minha fala. Minha filha, que me
deixou, olha por todos nós aqui na terra. Leva pra longe essa Covid-19! Tenho certeza de que com a ajuda de vocês essa doença não chegará aqui na al-
deia. Até peguei remédio para tomar banho com meus netos. Acho que vocês ouviram o meu pedido. Pode ir embora, doença! Ninguém quer você aqui!
Jamäxi Myky, do povo Myky (MT), no documentário “Comunidade Myky contra covid”.

Por que surgiu essa pandemia de Covid-19? Às vezes é uma vingança da Terra, uma vingança dos donos das criações dos animais. A Terra tem dono, o
peixe tem dono, o rio tem dono, as matas têm dono, os morcegos têm dono... Falaram que veio através dos morcegos... porque estavam matando tudo,
então o dono se vinga! Matou sem dó nenhuma? O dono vem fazer essa vingança. Antigamente, os Manoki não ficavam doentes e comiam morcego!
Eu comia morcego! (...) Eu não vou falar que o morcego trouxe. O que trouxe foi o próprio homem mesmo, através do desmatamento, através da falta de

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cuidados com os animais, dos peixes, dos rios e tudo...
Manoel Kanunxi, chefe do povo Manoki (MT), no documentário “Piny Pyta: a força de nossas medicinas”.

A crise despontada pela disseminação global de um novo vírus trouxe para muitos uma sensação de vulnerabilidade e ruptura que nos convida a
repensar o que nos trouxe até aqui, o que deve ser preservado desse mundo que parece se desmanchar, e o que deve ser abandonado. Essa rup-
tura, no entanto, não é novidade para uma parcela da humanidade que, como diz Ailton Krenak, há séculos resiste a essa “abstração civilizatória”
e não aceita que rios, florestas, chuvas, ventos, oceanos - todos os entes não-humanos com os quais partilhamos nossa existência - sejam vistos
como recursos a serem dominados pela exploração humana. São sobreviventes de outros “fins de mundo” impostos por ideologias e práticas

Relatos
colonizadoras. É preciso entender urgentemente que não habitamos um único mundo, mas sim uma constelação de mundos, nos quais diferentes
povos estão experienciando e concebendo de formas muito distintas o contato com esse microscópico viajante que os cientistas batizaram de
Covid-19.

Certas noções de saúde pressupõem saberes e práticas que ensinam a respeitar e coabitar com diferentes seres, habitantes de distintos mundos.
Pela urgência em mobilizar e testemunhar as formas indígenas de (re)existir - resistir e existir outra vez - e curar, e com o intuito de preencher esse
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tempo de silêncios com outras vozes, a plataforma “Mirando Mundos Possíveis: (Re)Existir e Curar” convidou povos indígenas a compartilharem
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através de vídeos suas experiências, reflexões e relatos suscitados a partir de uma travessia por tempos marcados pela mais recente pandemia
global. Em torno desta experiência videográfica virtual, pretendeu-se criar um ambiente através do qual possamos, juntos, mirar (olhar, apontar,
sonhar e filmar) novos mundos possíveis. As falas apresentadas no início deste relato são fragmentos deste mosaico de vídeos que expressa como
povos indígenas, em sua multiplicidade, oferecem perspectivas igualmente múltiplas acerca deste momento dilatado de rupturas.

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Relatos
Figura 1 - Mosaico de vídeos que compõem a plataforma “Mirando Mundos Possíveis”.
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A criação dessa plataforma insere-se em meio à recente trajetória de formação da Rede CineFlecha. Embora a Rede tenha nascido em um con-
texto de encontros acadêmicos, nos quais quatro colegas antropólogos-documentaristas não-indígenas identificaram ressonâncias entre seus
trabalhos, sua atuação sempre buscou extrapolar as fronteiras da universidade. Enquanto uma rede formada por diversos coletivos indígenas
de cinema junto a alguns de seus colaboradores não-indígenas, buscamos levar as produções audiovisuais indígenas - e os debates que as cir-
cundam - a um público mais amplo, promovendo um intercâmbio de saberes entre indígenas pertencentes a diferentes povos, bem como entre
indígenas e não-indígenas. Tal proposta pretende abrir possibilidades de articulação e intercâmbio entre grupos e coletivos que, de diferentes
formas, têm encontrado na linguagem cinematográfica um meio de expressão. A partir da relação de colaboração estabelecida entre os quatro
membros-fundadores da Rede e diferentes comunidades indígenas, sua atuação hoje abrange uma multiplicidade de povos e regiões do país, en-
tre os quais estão os: Maxakali/Tikmũ´ũn (MG); Huni-Kuin (AC); Cinta-Larga (RO); Manoki (MT); Myky (MT); Guarani-Kaiowá (MS); Terena (MS)
e Guarani Mbya (SP).

Recém criada em 2019, a Rede CineFlecha, desde suas primeiras atividades, foi bastante impactada pela conjuntura política e sanitária dos úl-
timos anos. Temos testemunhado um dos vários períodos de agravamento de um longo processo histórico de exclusão, negligência, violência

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e aniquilação de diferenças vivido pelos povos indígenas no Brasil e mundo afora. Tal agravamento incide, entre muitas outras coisas, sobre as
possibilidades de concepção e execução de políticas públicas voltadas às populações indígenas e ao chamado “setor cultural”. Esse contexto
trouxe para a Rede desafios que somavam-se às dificuldades estruturais inerentes a estes campos de atuação já conhecidas por nossos parceiros
indígenas, antropólogos e cineastas. A despeito deste contexto, e sem abrir mão da estratégia na qual mais apostamos - a construção de diálogos
e a produção e troca de saberes em rede -, seguimos ao longo de 2020 e 2021 nos mobilizando e buscando adaptar nossas propostas de atuação.

No lugar da realização de atividades que nos permitissem experimentar “tempos” diversos, fazendo o ritmo acadêmico dar mais lugar ao tempo
da alteridade, da escuta, da imagem e do som, do cinema, vimo-nos todos diante de uma limitação repentina e radical, inclusive dos “espaços”,
que passaram a se conectar e se constituir em um ambiente virtual sem que nossa imaginação tivesse tido tempo de propor essas experiências.
Sabemos que é possível existir e se constituir como rede inclusive na “rede”, e que isso, aliás, poderia acompanhar uma lógica de conexões muito

Relatos
mais identificada a pensamentos indígenas do que se imagina. Tão logo sentimos as primeiras ruínas da realidade diante da pandemia, tivemos
que compreender este novo tempo e espaço e, ao mesmo tempo, resistir ao ritmo e às relações que nos foram repentinamente impostos.

Havíamos inicialmente programado a realização de uma mostra de cinemas indígenas - a I Mostra CineFlecha - para outubro de 2020 em dois
importantes centros culturais da cidade de São Paulo, o Centro Cultural São Paulo (CCSP) e o Cinusp1. Pretendíamos trazer à capital paulistana
1 Esta Mostra foi depois adaptada a um formato virtual e realizou-se com o apoio do PROAC (Programa de Ação Cultural) da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, em parceria com a 363
plataforma online Videocamp. No site é possível consultar a programação e baixar o catálogo da mostra: <https://redecineflecha.org/mostra/>. Acesso em 10 julho 2021.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 359-371 | Jan - Jul | 2021

doze cineastas de diferentes povos e coletivos com os quais trabalhamos para a realização de minicursos, palestras e outras atividades. No en-
tanto, nada disso se mostrava possível no horizonte sombrio que avistávamos em abril de 2020. Nossos planos de ir às aldeias e depois reunirmos
cineastas indígenas em São Paulo tiveram que ser postergados junto a tantos outros planos e, dia após dia, nos acostumamos a passar mais horas
na frente das telas do que gostaríamos. As perguntas eram inevitáveis: o que poderíamos fazer, então, junto aos nossos amigos cineastas, a partir
de notícias tão tristes e preocupantes que começavam a chegar das aldeias? Como estariam eles, os cineastas e seus parentes, refletindo sobre
essa nova doença que se aproximava a cada dia e que nos obrigava a nos isolar?

A partir destas questões e da necessidade de migrarmos nossas atividades para formatos virtuais, começamos a reunir os materiais que viriam
depois compor a plataforma. Trabalhamos em duas frentes: primeiro, incentivando e fomentando alguns coletivos e realizadores indígenas a
produzirem vídeos sobre a situação da pandemia, de forma ampla e livre em termos de enfoque, conteúdo e linguagem; depois, compondo uma
espécie de acervo através de uma pesquisa contínua de mapeamento de produções audiovisuais relacionadas ao contexto da pandemia entre
diferentes povos indígenas no Brasil e pelo mundo. Para além de continuarmos de alguma forma conectados, ainda que virtualmente, a ideia era
também de compartilharmos informações comumente ignoradas pelos veículos de comunicação, sobretudo em determinados contextos regio-

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nais, como em pequenas cidades amazônicas, do interior de Minas Gerais, de Mato Grosso ou de Mato Grosso do Sul.

Por meio dessa dinâmica, a plataforma “Mirando Mundos Possíveis” foi tomando forma e acabou por reunir vídeos de variados formatos, pro-
duzidos por coletivos ou realizadores que trabalham de formas diversas, nem sempre “cineastas”, mas, por vezes, lideranças, pajés, professores,
agentes de saúde ou outros membros das comunidades. Conectados de diferentes maneiras em torno de um tema, mas heterogêneos entre si,
fazem parte deste conjunto de produções audiovisuais dezenas de vídeos curtos, alguns produzidos especialmente a convite da plataforma, ou-
tros realizados de forma independente ou por meio de outros projetos. Alguns desses vídeos foram feitos pelo celular, voltados à comunicação
entre aldeias ou a determinados contextos regionais, trazendo, por exemplo, lideranças que buscam alertar e orientar suas próprias comunida-
des. Outras produções, tecnicamente mais elaboradas, trazem relatos sobre a forma como suas comunidades vêm sendo impactadas e sobre as
estratégias de prevenção que têm adotado (barreiras sanitárias, uso de medicinas tradicionais, cantos-rezas, encontros de pajés, mutirões, entre

Relatos
outras). Também em resposta a essa chamada, recebemos vídeos que abordam a crise sanitária a partir de outras referências, que deslocam
nosso olhar para formas singulares de interpretar e experienciar este momento pandêmico, tais como a narração de histórias tradicionais ou a
apresentação de territórios em construção e disputa. Por fim, há vídeos que são resultado de processos mais longos e complexos de produção,
filmagem e montagem, como é o caso do curta-metragem “Piny Pyta: A força de nossas medicinas”, do Coletivo Ijã Mytyli, e da websérie composta
por três episódios “Nativas Narrativas”, da ASCURI.
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Foi neste processo de (re)descobertas, de (re)existência e de reformulações que a Rede CineFlecha elaborou a plataforma “Mirando Mundos
Possíveis” como estratégia para atravessar o isolamento físico e mapear, ver-ouvir e dar a ver as imagens e vozes de grupos, sujeitos e mestres
indígenas durante a pandemia. Aliando-se a diferentes iniciativas que atravessam e constituem a Rede, a plataforma foi concebida em parceria
com a ASCURI (Associação Cultural de Realizadores Indígenas) e conectada à mobilização “Povos Indígenas Frente à Covid-19” do Centro de
Estudos Ameríndios (CEstA-USP)2.

1 Navegando pela plataforma

1.1 Sobre a websérie Nativas Narrativas, da ASCURI

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Ao mesmo tempo em que dialogavam conosco e participavam da concepção da plataforma, os membros da ASCURI davam forma à sua própria
produção em tempos de pandemia. Este coletivo de cinema - formado por cineastas dos povos Kaiowá, Guarani, Terena e Quéchua - hoje conta
com uma trajetória de mais de uma década, ao longo da qual produziram dezenas de curta-metragens que transitam por uma multiplicidade de
temas e linguagens3. Atentos a um novo cenário de produção e difusão audiovisual que se consolidava no contexto da pandemia, a ASCURI rein-
ventou seu modo de produzir filmes. Cientes de que esta nova produção não circularia pelas grandes telas em exibições coletivas (como costu-
mam ser assistidas as obras do coletivo em mostras e festivais de cinema), mas seria vista por muitos em ambientes virtuais nas telas de celulares
(suporte da disseminação, mas também da aceleração), optaram por experimentar com o formato de websérie.

Relatos
2 Os materiais reunidos por esta mobilização encontram-se disponíveis em: <https://amerindios.wixsite.com/acao>. Acesso em 10 julho 2021. 365
3 Boa parte da produção audiovisual da ASCURI encontra-se disponível em: <https://www.youtube.com/channel/UC_EvIOBMTbte94t3YtJWT_Q>. Acesso em 10 julho 2021.
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Figura 2 - Ñanderu (rezador, líder espiritual) do povo Kaiowá caminha por uma roça enquanto fala da alimentação dos antigos. Cena da websérie “Nativas
Narrativas” (ASCURI. 2020).

Os três episódios que compõem a websérie “Nativas Narrativas”, embora curtos, não se deixam levar pela pressa imposta pelas redes, mas se-
guem a cadência da vida na aldeia, do plantio e da colheita na roça, dos ñanderus e das ñandesys, dos cantos-reza, da batida do mbaraká. Cami-

Relatos
nhando pela terra vermelha ou reunidos em torno da fogueira, os jovens escutam atentos aos mais velhos, aqueles que conhecem o tempo dos
antigos, que contam suas histórias. Em suas narrativas se entretecem os espaços-tempo das divindades criadoras e do vírus que hoje nos pertur-
ba. Apresentando elementos do ñandereko (“nosso modo de ser”) - como as medicinas e as técnicas de cura tradicionais -, a Ascuri nos permite
vislumbrar a perspectiva singular dos Kaiowá acerca da pandemia. Uma perspectiva em que o proteger é inseparável do embelezar, do cantar e
dançar, e segundo a qual as relações entre terra, humanidade e seres da floresta exigem cuidadosa e incessante manutenção.
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1.2 Sobre modos Maxakali de filmar um tema

A participação dos realizadores Tikmũ´ũn/Maxakali na plataforma também demonstrou muito de seus modos de conceber a produção de ima-
gens. Não é muito comum estes se colocarem em disputas por espaço ou narrativas no campo político do manejo da informação, seja através da
fala ou da produção audiovisual, seja entre si ou diante de outros povos ou dos não indígenas. Em vez disso, preferem intensificar sua ação política
no campo do xamanismo, da relação com os encantados da natureza que chamam de “yãmĩyxop”, de suas práticas cotidianas de manter e celebrar
o encantamento do mundo através dos cantos.

A produção audiovisual Tikmũ´ũn, como tem-se observado até o momento, intensifica os modos de relação xamânica, através do olhar e da escu-
ta. Demonstrar seu pensamento a pessoas não-Tikmũ´ũn, informar a respeito de um contexto ou de seus modos de pensamento e interpretação
do mundo é apenas uma consequência possível.

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Relatos
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Figura 3 - Pajé Totó Maxakali dá uma aula para cineastas na Aldeia Verde. (Acervo pessoal de Ana Estrela, 2013).
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Sendo assim, as notícias da pandemia da Covid-19 a princípio os encheram de medo - era frequente questionarem sobre os perigos da doença,
o alcance da ameaça, a preocupação com as fake news que alcançavam a aldeia, e, sobretudo, o modo como a crise afetaria os trabalhos, as
políticas públicas e o abastecimento das aldeias. Entretanto, num segundo momento, a situação passou a mobilizar uma troca de experiências e
memórias de tantas e tantas epidemias que já os ameaçaram em outros períodos da história, formulando-se uma consciência de que tais doenças
não são coisa de Tikmũ´ũn, e sim coisa de “Ãyuhuk” (não-Tikmũ´ũn); e que as coisas deles são as coisas dos Yãmĩyxop. Por isso, talvez, na maioria
dos vídeos produzidos durante a pandemia, tenha prevalecido o interesse em manter e intensificar as atividades xamânicas - atividades essas
responsáveis por promover a proteção e a cura entre os Tikmũ´ũn, seus aliados, e o mundo que habitam.

1.3 Sobre um novo caminho-história para jovens Manoki e Myky, o Coletivo Ijã Mytyli

A criação do Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky foi praticamente concomitante à da Rede CineFlecha. O evento que precipitou a sua

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efetivação foi uma visita especial de representantes da instituição de cinema indígena canadense, Wapikoni Mobile, na qual optou-se por uma
formalização desses grupos de modo a apresentar melhor esses trabalhos, até então não reunidos, em uma proposta sinérgica mais coesa em
agência e sentido. Nesse sentido, não deixa de ser interessante como o encontro de iniciativas tão diversas de cinemas indígenas pode ter um
potencial gerativo expressivo. O Ijã Mytyli agregou de modo inédito membros pertencentes a diferentes povos que partilham de uma mesma lín-
gua, os Manoki e os Myky, e se encontram divididos entre três núcleos regionais relativamente distantes entre si e heterogêneos. Este coletivo de
cinema emerge, portanto, de um esforço por conectar as atividades realizadas em diferentes lugares para contar suas narrativas e concomitante-
mente traçar rotas que sejam minimamente convergentes.

Relatos
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Figura 4 - Manoel Kanunxi conversa com Cileuza Jemiusi sobre as propriedades medicinais da “negramina do campo”. Fotograma do documentário Piny
Pyta. 2021. (Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Myky, 2021).

As mais recentes produções do coletivo, feitas no contexto da pandemia, trazem temas, e suas respectivas formas de tratamento, que dizem muito
sobre os modos de existência indígenas. Ao ver esses filmes e pensar sobre o passado desses povos, fica evidente que o enfrentamento das crises

Relatos
epidêmicas não é uma novidade, mas um evento cíclico no histórico colonial dessas populações. Sempre estiveram vulneráveis e ao mesmo tem-
po resilientes aos fatores patogênicos desde a chegada dos não indígenas à região. O surgimento das novas variantes do coronavírus reativaram,
portanto, as memórias Manoki e Myky de outras epidemias e tem atualizado velhas estratégias locais para se esquivarem da recente enfermidade. 

As barreiras instaladas nas principais entradas das Terras Indígenas, de modo a limitar da circulação de pessoas entre as cidades e aldeias, o
reforço das roças de toco familiares para a geração local de alimentos, a realização de rituais de oferecimento de comida aos espíritos Yetá e o re-
curso aos “remédios do mato” como modos de prevenção e tratamento da doença foram temas abordados nos vídeos que integram a plataforma
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Mirando Mundos Possíveis. A exibição de vídeos na plataforma e, mais tarde, na I Mostra CineFlecha, foram uma das primeiras oportunidades em
que o Coletivo mostrou um conjunto parcial de seus trabalhos para um público externo, já que esses filmes de forma geral tiveram muito pouca
visibilidade e possibilidades de circular fora das aldeias - algo que começou a ocorrer a partir de 2019, uma década após o início das primeiras
filmagens naquelas comunidades4. 

1.4 Outras Miradas

Além dos vídeos produzidos especialmente para a plataforma com apoio da Rede CineFlecha ou concedidos diretamente pelos realizadores para
comporem essa galeria, esta conta também com uma série de vídeos que integram a seção “Outras Miradas”. Essa seção é fruto de uma pesquisa
contínua de mapeamento de produções audiovisuais relacionadas ao contexto da pandemia entre diferentes povos indígenas no Brasil (“Mirada
nas Redes - Brasil”) e mundo afora (“Mirada nas Redes - Mundo”), além de reunir produções em outros suportes e linguagens, como materiais

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gráficos e podcasts. Tal mapeamento esteve associado à mobilização “Povos Indígenas Frente à Covid-19” do Centro de Estudos Ameríndios
(CEstA-USP), do qual também fazemos parte, e integrou-se também ao site que abriga o acervo desta mobilização (formando a seção “vídeos”).

2 Para mirar mais mundos possíveis

Pouco mais de um ano se passou desde o início da experiência do “Mirando Mundos Possíveis”. A pandemia não acabou, e continua ceifando
vidas preciosas dentro e fora das aldeias. As estratégias de combate ao vírus e de mitigação das consequências da pandemia - rituais, encontros
de pajés, cantos-rezas, uso de medicinas tradicionais, barreiras sanitárias, campanhas de doação, formação de comitês, pressão junto a entidades

Relatos
públicas - se somaram, estando estas mais ou menos ativas conforme oscilam e avançam as ondas da Covid-19. Seja em contextos regionais ou
em esferas nacionais ou até mesmo globais, testemunhamos a dúvida e o medo darem lugar aos saberes sobre a vida e sobre a Terra. Através
dos vídeos da plataforma, assistimos à manifestação de diferentes interpretações sobre este momento, à reafirmação de modos ancestrais de se
relacionar, de se proteger e de se curar, e à denúncia de situações específicas de abuso, invasão, e ameaça a direitos fundamentais.

4 Ainda no período da pandemia, o coletivo organizou em abril de 2021 a I Mostra Ijã Mytyli “Tempos de Cura”, na qual se apresentou de forma inédita o maior conjunto de documentários realizados 370
pelos povos Manoki e Myky, desde 2009 (<https://www.ijamytyli.org/mostra>. Acesso em 10 julho 2021).
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 359-371 | Jan - Jul | 2021

O potencial da plataforma “Mirando Mundos Possíveis” se mostrou, justamente, em evidenciar para os visitantes do portal a diversidade das pro-
duções audiovisuais indígenas contemporâneas, das estratégias de comunicação, dos modos de saber e de transmitir saberes. Fomentando o
trabalho de cineastas, coletivos, realizadores e comunicadores indígenas - além de lideranças, rezadores, pajés e curadores, professores e outros
mestres e mestras tradicionais -, buscamos com a plataforma contribuir para a divulgação e diálogo dos saberes e linguagens desses povos. A
difusão de vozes indígenas mostra-se de fundamental importância, não apenas para colaborar na defesa de seus direitos e modos de existência,
mas para oferecer à sociedade perspectivas alternativas aos modos de vida destrutivos e hegemônicos que estão associados ao conturbado
momento que atravessamos.

Deixamos aqui o convite para acessar a plataforma, através do link: <https://redecineflecha.org/mirando-mundos-possiveis/>.

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Recebido em 25 de maio de 2021

Aprovado em 31 de julho de 2021

Relatos
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> proa | ensaio visual
> A escrita no isolamento: quando o desenho vira parte
constituinte da etnografia
Ana Clara Sousa Damásio dos Santos
> anaclarasousadamasio@gmail.com
Mestre em Antropologia Social
Universidade Federal de Goiás

Há dias que não conseguimos escrever sobre o campo. A mão não desembola, as palavras ficam trancadas, ficam sem frase, ficam sem dedo,
ficam sem papel. Elas não querem existir. Elas ficam presas em um mundo que não sei nominar. Às vezes elas não querem habitar um espaço tão
inóspito e frio. Tento apanhá-las enquanto minha mãe me diz: “Você tem que se jogar para a vida! Ela foi feita para isso”. Em meio ao que ela cha-
ma de “vida” tantas coisas atravessam nossa escrita (como mais de mil mortos diariamente por COVID-19). Deixo as palavras quietas no próprio
mundo por um tempo. Ainda assim, algumas grafias emergem tão tímidas e incompletas, com tanta falta de vontade e tão mal criadas. Outras
composições vão ganhando espaço com os processos reticentes de escrever e fazer uma etnografia em meio a pandemia. Quando forçamos algo
a crescer das nossas mãos, outras coisas desembolam, outras coisas existem (por mais tristes que sejam). Nada que cresce em meio a força, vin-
ga. O processo de deixar florescer é essencial para que as palavras tenham cada vez menos medo e mais vontade.

Entretanto, como nos alerta Anzaldúa (2000: 234): “não é no papel que você cria, mas no seu interior, nas vísceras e nos tecidos vivos” que a “es-
crita orgânica” atua”. É preciso expor nossa constante tentativa de entender e fazer sentido. Não fazemos apenas uma leitura do mundo ou uma
interpretação de outras interpretações (Geertz, 2008) GEERTZ, mas também colocamos nossa capacidade criativa e visceral no momento em que
escolhemos o que expor, mostrar e deixar acessível ao leitor último do nosso texto. Quando escolhemos que materiais e métodos usar ao longo
das diferentes grafias que podemos acessar. Assim, o que mostrar e esconder pode ser muito bem comparado ao processo de desenhar. Onde
para conseguir definir o volume de um objeto é necessário valorizar tanto a intensidade da luz de forma correta, como da sombra.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 373-384 | Jan - Jul | 2021

Desenhar virou o caminho pelo qual eu dava vazão à experiência de pensar antropologicamente o processo de tentar escrever e fazer um texto.
Em muitos dias, o desenho era a única maneira possível de expressar antropologicamente o que eu queria escrever. Ao mesmo tempo, o desenho
transbordava e ganhava vida para além das palavras. Como apontado por Azevedo (2016), o desenho aqui produzido surge em conjunto com a
palavra, em alguns momentos escapa e em outros luta contra ela.

Esse movimento de tentar escrever-desenhar ao longo de um contexto pandêmico poderia ser compreendido a partir do que Evaristo (2006) inti-
tulou de “escrevivência”. É um constante processo de tentar entender o mundo em diálogo com o que vivemos e criamos. E nisso, a autora afirmava
que a vida, de forma inexplicável, continuava a correr como um rio em meio a todo e qualquer acontecimento. Como uma oração, uma promessa,
uma sentença. Sua escrita advinha de tudo que a compunha como ser, como ancestralidade, como gesto de vida e dor. Ela me ensinava, por fim,
que escrever-desenhar-viver ao longo de 2020 eram experiências indissociáveis.

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Ensaio Visual
Desenho 1 - O ensaio surgiu em conjunto a escrita da dissertação de mestrado (Damásio, 2020). A pesquisa ocorreu por três meses em Canto do Buriti-PI e
procurava compreender as classificações locais associadas ao curso de vida. E a partir da elaboração da escrita da dissertação reconheci que eu não preci- 374
sava efetuar uma reconciliação com a escrita, pois os processos históricos e etnográficos cortavam minha vida (meu sangue), existência e etnografia.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 373-384 | Jan - Jul | 2021

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Ensaio Visual
Desenho 2 - Eu dialogava diretamente com o que chamei de parentes-interlocutoras. Então contar as histórias sobre minhas parentes-interlocutoras de Can-
to do Buriti-PI era também me contar por conseguinte. Falar sobre minha família e grupo de parentesco era refletir sobre uma família que estava em transfor-
mação, descontinuidades e deslocamentos.
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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 373-384 | Jan - Jul | 2021

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Ensaio Visual
Desenho 3 - As formas como minhas parentes-interlocuto-
ras estruturavam suas carreiras migratórias e como tentavam
construir uma família unida mesmo entre-fluxos, mostrava
como a família era importante para a constituição das mi-
nhas parentes enquanto pessoas. Isso atravessava, inclusi-
ve, minhas angustias, dores, ânsias e desconcertos de não
saber falar sobre mim dentro dessas mesmas histórias. Foi
a partir desse processo que o desenho emergiu com força
para dar conta das sensações e percepções que extrapola-
vam as palavras.
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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 373-384 | Jan - Jul | 2021

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Ensaio Visual
Desenho 4 - Na dualidade “eu” e o “outro” ou o “Nós” x “Eles”, a pesquisa com parentes na verdade embaralha e dissolve, em alguma medida, essa dicotomia. 377
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 373-384 | Jan - Jul | 2021

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Ensaio Visual
Desenho 5 - Eu não posso simplesmente fechar um cam-
po e, se quiser, nunca mais voltar. A minha experiência-em-
-campo é uma experiência-em-processo-para-toda-a-vida,
pois há uma relação de temporalidade distinta. O estar-lá
de que fala criticamente Clifford (2002) em termos da au-
toridade etnográfica implica estar-lá-por-um-certo-tempo.
Para mim esse “estar-lá”, de certo modo, é por toda a vida. 378
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Ensaio Visual
Desenho 6 - O desenho é constituído em dois movimentos contíguos. Fazer pesquisa enquanto eu fazia-família e vice-versa. Esse proces-
so de pesquisa pode ser entendido nos termos colocados por Carsten (2014), que aponta o parentesco como espaço em que as pessoas
constroem parte do seu “material imaginativo”. Mas também como sendo relacionado com o tempo, sendo feito, refeito, sendo construído e 379
sendo constituinte de tantas outras coisas (inclusive de desenhos).
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 373-384 | Jan - Jul | 2021

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Ensaio Visual
Desenho 7 - Como pontua Peirano (2014: 42), “métodos (et-
nográficos) podem e serão sempre novos, mas sua natureza,
derivada de quem e do que se deseja examinar, é antiga. So-
mos todos inventores, inovadores. A antropologia é resultado
de uma permanente recombinação intelectual”. Essas recom-
binações expressam o lugar que diferentes grafias vão alçan-
do ao longo do fazer etnográfico.
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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 373-384 | Jan - Jul | 2021

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Ensaio Visual
Desenho 8 - Nossa vida e biografia não estão separados da
nossa forma de desenhar e fazer na antropologia. Nós faze-
mos e criamos a partir dos nossos corpos, vidas, biografias,
materialidades, sonhos, atravessamentos e ancestralida-
des. Tudo isso influência diretamente na forma de produzir. 381
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 373-384 | Jan - Jul | 2021

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Ensaio Visual
Desenho 9 - A família conseguiu reconfigurar minhas narrativas em relação a minha própria biografia. Por conseguinte, através dos “segredos de famí-
lia” que descobri em campo fiz com que toda minha família e grupo de parentesco recriassem uma nova narrativa coletiva sobre a origem da famí-
lia. Esses “segredos” que o campo remexeu acionavam novas concepções de mundo, valores, afetos e resvalavam nos “direitos” que eu teria em relação
as histórias e lembranças que descortinei com o campo. Dessa forma, as devolutivas na pesquisa com parentes eram para além do tempo do campo.
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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 373-384 | Jan - Jul | 2021

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Ensaio Visual
Desenho 10 - Ao escolhermos entre uma fotografia, texto, desenho ou colagem (e tantas outras possibilidades), não estamos escolhen-
do entre um estilo mais “literário” ou “científico” (e acrescento também “artístico”). Estamos apenas escolhendo com qual “ficção per-
suasiva” dialogar (Strathern, 2013: 174). As ficções são construídas através de múltiplos instrumentos que tentam dar conta do mun- 383
do, mas que também constroem diversos mundos a partir desses mesmos instrumentos – como, por exemplo, os mundos desenhados.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 373-384 | Jan - Jul | 2021

REFERÊNCIAS

ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas. N.1. 229 – 236. 2000.

AZEVEDO, Aina. Desenho e Antropologia: recuperação histórica e momento atual. Cadernos de Arte e Antropologia, Vol. 5, n° 2/2016, pag. 15-32.

CARSTEN, Janet. A matéria do parentesco. R@U, 6 (2), jul./dez : 103-118. 2014.

CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Editora UFRJ 2002.

DAMÁSIO, Ana Clara. Fazer-Família e Fazer-Antropologia uma etnografia sobre cair pra idade, tomar de conta e posicionalidades em Canto do Buriti-PI.
2020. 206 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2020.

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EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A Interpretação das Culturas. 1ed., 13. reimpr., Rio de Janeiro: LTC, 2008.

PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, 20:377-391. 2014.

STRATHERN, Marilyn. Fora de contexto: as ficções persuasivas da antropologia. São Paulo: Terceiro Nome, 2013.

Recebido em 4 de setembro de 2020

Ensaio Visual
Aprovado em 31 de dezembro de 2020

384
> proa | resenha
SGaawaay K‘uuna: Edge of the Knife, Indigenous
Language Revitalization
Michelle Hurtubise
> michelle.hurtubise@temple.edu
Visual Anthropology PhD candidate
Temple University (USA)

At the intersection of Indigenous language socialization, linguistic preservation of endangered languages, and a sociocultural anthropology of Indi-
genous media, lies how Indigenous languages are being revitalized by film and the production process. The critically acclaimed production of the
first all Haida language feature film, SGaawaay K‘uuna: Edge of the Knife (2018), tells an inspiring story of bringing hope to the elders, Indigenous
language to the youth, and a passionate revitalization of language and community with its radical approach to language revitalization through its
community-driven production process.1

This analysis is drawn from my experiences at the imagineNATIVE Film + Media Arts Festival, the Mother Tongue Film Festival, with blogs put out
by the Haida Nation (primarily written by one of the Haida scriptwriters, Graham Richard),2 the CBC short documentary, Retake (2018), about the
filming process (directed by Haida/Cree documentary filmmaker Kristi Lane Sinclair and produced by award-winning Anishinaabe filmmaker Lisa
Jackson),3 and recorded Q&A sessions from the Toronto International Film Festival (TIFF).4
1 “Haida Gwaii Language and Film,” Isuma TV, accessed June 30, 2020, http://www.isuma.tv/haida.
2 “Haida Film Project,” Council of the Haida Nation, accessed December 8, 2018, http://www.haidanation.ca/?cat=148.
3 “Retake: Making the World’s First Haida-language Feature Film | CBC Short Docs,” YouTube video, 24:16, posted by CBC Docs, September 04, 2018, https://www.youtube.com/watch?v=8WwI-
Cs7S-AQ.
4 “EDGE OF THE KNIFE Cast and Crew Q&A, Sept 9 | TIFF 2018,” YouTube video, 34:57, posted by TIFF Talks, September 8, 2018, https://www.youtube.com/watch?v=eT7pbYGWwnA;
“EDGE OF THE KNIFE Cast and Crew Q&A, Sept 10 | TIFF 2018,” YouTube video, 25:49, posted by TIFF Talks, September 11, 2018, https://www.youtube.com/watch?v=664XFzBWso4.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 386-390 | Jan - Jul | 2021

Haida is a critically endangered Indigenous language with little more than 20 fluent speakers left before this film was made. Legendary produ-
cer Zacharias Kunuk of Isuma laid a path 19 years ago for Indigenous language feature films with Atanarjuat: The Fast Runner (2001), and he also
brought his expertise to this project. In addition to multiple awards, co-director Helen Haig-Brown said the film’s success is contained in “the spirit
that’s been ignited around and the excitement and love and the passion around the language and how happy and joyful it’s making people and…
for those few handful of speakers left to say, that is exactly how we sound”.5

Danis Goulet, an award-winning Indigenous Cree/Métis filmmaker, programmed the film at TIFF and provided the framework of the importance of
this film to the larger public when she introduced it saying, “everybody is really in for a very spectacular and unique experience. This is an incredible
rendering of a classic Haida tale set in the 1800s in Haida Gwaii. And it is a really stunning cinematic achievement as well as being shot entirely
in the Haida language which is critically endangered. And so, this was very much also a language revitalization project and really an ambitious
undertaking. And I think, you know, it’s so rare that we get to see, you know, Indigenous stories reimagined in this way for the screen, but I think
that the depth of these stories really also redefines what cinema can be”.6

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Goulet opens the public’s experience of this film by drawing attention to key concepts that also showed up in Haida conversations about what is
so important about this film. It is a Haida tale, set in Haida Gwaii, and told in the northern and southern dialects of Gaw Xaad kil and HlGaagilda
Xaayda kil.7 Goulet grounds SGaawaay K‘uuna in a context of cultural pride, narrative film intervention, and Indigenous resilience. This Haida story
is passionately rendered through the language, excellent filming, and is a true cinematic achievement.

The Indigenous community driven filmmaking process is also radically important. Those involved in the production of SGaawaay K‘uuna spoke ex-
plicitly about how film practices relate to language and community revitalization. The production process has been well documented by the Haida
Nation, and from start to finish was community-driven.8 As Production Manager Dana Moraes said, “this film came from our community. It came
from community planning. And in our community they said they wanted to, number one, they wanted to revitalize our language. It was in a crisis,
and it still is in a crisis. So we wanted to revitalize our language, we wanted to protect our land and water”.9

Resenha
5 “Q&A, Sept 9 | TIFF 2018.”
6 “Q&A, Sept 10 | TIFF 2018.”
7 Craig Takeuchi, “SGaawaay K’uuna: World’s First Haida-language Feature Film to Be at Vancouver International Film Festival,” Georgia Straight Vancouver’s News & Entertainment Weekly, Sep-
tember 05, 2018, https://www.straight.com/movies/1129981/sgaawaay-kuuna-edge-knife-worlds-first-haida-language-be-vancouver-international-film.
8 “Haida Film Project.” 387
9 “Q&A, Sept 9 | TIFF 2018.”
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 386-390 | Jan - Jul | 2021

Haida people wrote the script, translated it, conducted the language training, built the props, wove the costumes, hand-poked the tattoos (for the
first time in 100 years), ran the production, scouted for locations, composed the music, and acted in the film - all while learning their Haida lan-
guage and acting, for many, for the first time. Haida artist Gwaai Edenshaw made his directorial debut with this film, and spoke about using the
film for multiple purposes, including community capacity building, mentorship, and ongoing language projects.10 Of the four fluent elders in the
film,11 some had not used their Haida language for 60 years, because of the damaging effects of the Canadian residential schooling system.12 By
1900 the smallpox epidemic took out about 90% of the Haida population, and the residential school silenced a generation.13 Now children are not
only speaking Haida words, but joyfully bringing them to life. As Edenshaw said, “I think through film we have this opportunity to have the Haida
language play in the soundtrack of people’s lives”.14

At screenings, those involved in the filming opened and closed the film with live Haida chants and prayers, drumming and song. They created a
space filled with a vibrant Haida language that properly prepared the public to witness their story and the space to hold it reverently. Adeana Young
(a Haida actor, who played HIaaya, a central character in the film) elegantly showed her fluency and ease of using the Haida language when she
opened her comments at the TIFF Q&A in Haida as she introduced her matrilineal family line with a commanding presence.

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Our language is something that we, that makes us who we are... It’s our culture and the respect that any nation has for our culture, and our language,
is exactly who we are... So the language for me - I started learning when I was in kindergarten, and it was something that I started to forget when I
was finished high school. And I remember going to school thinking, I want to be a fluent speaker, I want to be a fluent speaker. That’s all I ever wanted,
was to be a fluent speaker... One of the Nonnies said that any person can copy our art, they could copy our weaving, but they can’t copy our language
because that’s who we are (Adeana Young).15

The Haida words flowed easily out of Young at the screening, but it was a long road for the actors to get there. Haida actor Willy Russ (who played
HIaaya’s husband Kwa) spoke at length about the process of learning the language, which contains sounds not found in English and demands a
different use of the throat, mouth, and body. Beyond technique, his story about the elders is indicative of how this film has infused new life into the

Resenha
Haida language.

10 “Haida Film Project.”


11 “Q&A, Sept 9 | TIFF 2018.”
12 Catherine Porter, “Reviving a Lost Language of Canada Through Film,” The New York Times, June 11, 2017, www.nytimes.com/2017/06/11/world/americas/reviving-a-lost-language-of-canada-
-through-film.html.
13 “Retake.”
14 “Retake.” 388
15 “Q&A, Sept 9 | TIFF 2018.”
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Our elders used to believe that the language was going to die and it was something that they were very, very sad, very sad about and very concerned
with. When we first started this there wasn’t a lot of hope for us to get this project done because we were so brand new and we were very terrible at
pronouncing any of the Haida and getting it into sentences and all this other stuff and understanding it. But through hard work… the elders really
started to believe that something was going to change or that things were changing. And after this movie was made, and after it was screened, there’s
been a huge growth spurt in people wanting to reconnect with the language and signing up for the language programs and being a part of that side
of the culture… because this movie was made, people are feeling and realizing the importance of our language and wanting to take part of it and learn
it. And so I feel, the elders are very proud. They feel heard, they feel cared for and loved. They’re the ones who understood and know the language and
for a long time they felt that their knowledge was going to pass on with them but I don’t feel like they feel that way anymore (Willy Russ).16

SGaawaay K‘uuna offers a unique approach to Indigenous language revitalization, where some of the most successful Haida speakers learned
their language outside of state funded schools17. Filmmaking can be a tool for language revitalization and community capacity building. Haida
people were trained to be actors, filmmakers, and fluent Haida speakers. This production drew Haida people into a unique engagement with their
language. It has created desire.

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University of British Columbia community planning professor Leonie Sandercock has been involved in the production process from the start and
has received funding to continuing studying the impact of this film on the Haida language, local community, employment, and further influences18.
Over half of the $1.8-million budget for the film stayed in the community, and recent festival prize money will go towards more Haida filmmaking
and language projects19. The impact from this work on many levels is just beginning to be felt, and more is sure to come from the Haida Nation and
Isuma’s Indigenous community-driven film productions.

Resenha
16 “Q&A, Sept 10 | TIFF 2018.”
17 “Retake.”
18 Leonie Sandercock, “TIFF Premiere: Sgaawaay K’uuna, the First Feature Film about the Haida People,” The Conversation, October 19, 2018, https://theconversation.com/tiff-premiere-sgaawa-
ay-kuuna-the-first-feature-film-about-the-haida-people-102109.
19 Edge of the Knife, “Sgaawaay K’uuna wins Most Popular Canadian Film at VIFF’s closing gala tonight!!!” Facebook, October 12, 2018, https://www.facebook.com/edgeoftheknifemovie/vide- 389
os/157185548560462/.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 386-390 | Jan - Jul | 2021

REFERENCES

“EDGE OF THE KNIFE Cast and Crew Q&A, Sept 9 | TIFF 2018.” YouTube video, 34:57. Posted by “TIFF Talks,” September 8, 2018. https://www.youtube.com/
watch?v=eT7pbYGWwnA.

“EDGE OF THE KNIFE Cast and Crew Q&A, Sept 10 | TIFF 2018.” YouTube video, 25:49. Posted by “TIFF Talks,” September 11, 2018. https://www.youtube.com/
watch?v=664XFzBWso4.

EDGE OF THE KNIFE. “Sgaawaay K’uuna wins Most Popular Canadian Film at VIFF’s closing gala tonight!!!” Facebook, October 12, 2018. https://www.face-
book.com/edgeoftheknifemovie/videos/157185548560462/.

“HAIDA FILM PROJECT.” Council of the Haida Nation, accessed December 8, 2018. http://www.haidanation.ca/?cat=148.

“HAIDA GWAII LANGUAGE & FILM.” Isuma TV, accessed June 30, 2020. http://www.isuma.tv/hai/haida.

PORTER, Catherine. “Reviving a Lost Language of Canada Through Film.” The New York Times, June 11, 2017. www.nytimes.com/2017/06/11/world/americas/

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reviving-a-lost-language-of-canada-through-film.html.

“RETAKE: Making the World’s First Haida-language Feature Film | CBC Short Docs.” YouTube video, 24:16. “Posted by CBC Docs,” September 04, 2018. https://
www.youtube.com/watch?v=8WwICs7S-AQ.

SANDERCOCK, Leonie. “TIFF Premiere: Sgaawaay K’uuna, the First Feature Film about the Haida People.” The Conversation. October 19, 2018. theconversa-
tion.com/tiff-premiere- sgaawaay-kuuna-the-first-feature-film-about-the-haida-people-102109.

TAKEUCHI, Craig. “SGaawaay K’uuna: World’s First Haida-language Feature Film to Be at Vancouver International Film Festival.” Georgia Straight Vancouver’s
News & Entertainment Weekly, September 05, 2018. https://www.straight.com/movies/1129981/sg aawaay-kuuna-edge-knife-worlds-first-haida-language-
-be-vancouver-international-film.

Resenha
Recebido em 2 de julho de 2020

Aprovado em 17 de maio de 2021


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> proa | galeria
prêmio mariza corrêa 2020
> Concurso ao Prêmio Mariza Corrêa de Antropologia
Visual 2020
Comissão avaliadora:
Brunela Succi
João Custódio
Isabela Cassis Augusto
Natalia Negretti
João Bardy

É com muito entusiasmo que apresentamos o resultado de mais uma edição do Prêmio Mariza Corrêa. Como estratégia para congregar as duas
principais iniciativas dos alunos do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Unicamp - as Jornadas de Antropologia John Monteiro,
e a PROA: Revista de Antropologia e Arte - este certame acontece desde 2017 e consiste na seleção de um trabalho de cada uma das modalidades
de mostras artísticas das Jornadas - Ensaio Visual e Ensaio Audiovisual - para a publicação no número subsequente da Revista. Para tanto, a cada
ano se forma uma nova Comissão para a avaliação dos trabalhos concorrentes ao Prêmio, geralmente composta por dois ou mais membros do
Comitê Editorial da PROA e dois ou mais integrantes da Comissão Organizadora das Jornadas de cada ano e que, contudo, se abstêm de concur-
sar.

Tendo como objetivo principal fomentar o debate em torno das mais variadas formas em que o conhecimento antropológico se apresenta e se
produz, o edital de convocação à apresentação de trabalhos para as mostras artísticas das Jornadas de 2020 propôs, em sua curadoria, acolher e
expôr trabalhos que borrassem fronteiras do que se entende tradicionalmente como escrita etnográfica. Partindo da premissa de que a narrativa
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através de e com imagens permite o despertar de sensações distintas, a transmissão de afetos por canais outros, e a dissociação multiplicadora

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entre signos e seus significantes, a mostra de 2020 trouxe a público 11 ensaios visuais e 4 produções fílmicas que representam, cada uma à sua
maneira, o esforço contínuo de desenhar, representar, etnografar, e colocar em diálogo as imagens, como efeitos, mas também dispositivos de
produção de relações e afetos de seus respectivos campos.

Desde 2020, a pandemia da Covid-19 vem aprofundando as dificuldades que o desempenho do trabalho intelectual e acadêmico já vinha pade-
cendo com os ataques à ciência, às artes e à cultura testemunhados nos últimos anos. À escassez de recursos e financiamentos, ao adoecimento,
às mortes, ao caos e à incapacidade dos governos de lidarem na crise, somaram-se o isolamento social, a sobrecarga de trabalho no espaço do-

Galeria > Prêmio Mariza Corrêa 2020


méstico, as dificuldades técnicas e de acesso a tecnologias que nos permitissem seguir com atividades cruciais às nossas pesquisas. Os quinze
trabalhos participantes da Mostra das Jornadas 2020 mostraram, contudo, que antropólogos e artistas vêm driblando as intempéries com ainda
mais criatividade e excelência. A própria realização das exposições e dos debates com autores em formato virtual e transmitidos ao vivo por strea-
ming - sem prejuízo do rigor técnico e da coerência teórica e metodológica - sinalizam e consolidam o inquebrantável compromisso ético e político
da antropologia com a sociedade, com a pesquisa científica e com a universidade pública.

As sessões de apresentação dos ensaios participantes do Prêmio Mariza Corrêa de 2020 ocorreram entre os dias 23 e 26 de novembro do mesmo
ano, no canal do PPGAS Unicamp IFCH, no YouTube1. Além da já tradicional Mostra de Filmes, houve sessões de debate sobre os trabalhos ins-
critos em todas as categorias, incluindo, este ano pela primeira vez, os ensaios visuais. Além de permitirem o diálogo entre a comissão do Prêmio
Mariza Corrêa com participantes, as discussões em ambiente virtual ainda representaram uma maior horizontalização e acessibilidade dos espa-
ços de apresentação, reflexão e debate, uma vez que qualquer pessoa com o link e um dispositivo com acesso à internet (computadores, tablets
e smartphones) pôde assistir às sessões e estava convidada a dialogar ao vivo com autoras e autores. Além disso, as produções já haviam sido
disponibilizadas para o público com alguns dias de anterioridade, através de uma exposição virtual desenvolvida pela comissão das Jornadas com
o suporte da Secretaria de Eventos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.2

As discussões fomentadas durante tais sessões, bem como a seleção dos dois trabalhos premiados, se orientaram por algumas questões: como
o conjunto das imagens constrói narrativas? Qual o lugar da pessoa fotógrafa/antropóloga/cineasta nos ensaios visuais e cinematográficos?
Como a forma e a técnica utilizadas nas fotografias e nos filmes agem a serviço da proposta? Como o conjunto entre formas, técnicas e conteúdos

1 As sessões de apresentação e debate dos trabalhos participantes da mostra e do concurso ao prêmio de 2020 se encontram no seguinte link https://www.youtube.com/channel/UCxa-5Y3X-
PgFKGdnrSTt11yA/videos
2 A exposição virtual ficou em cartaz de 10/11/2020 a 03/12/2020, mas ainda pode ser acessada, por tempo indeterminado, através do link https://www.expo.ifch.unicamp.br/portal/premioma- 393
rizacorrea/92
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produz e transmite relações e afetos? A partir de quais lugares as imagens são produzidas? O que estes lugares nos dizem sobre os temas que

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foram veiculados? Como o ensaio fotográfico e a imagem cinematográfica atingem a proposta do autor em seu texto de apresentação? Como se
desenvolve a relação com os interlocutores das pesquisas? Como os interlocutores afetam ou participam da produção visual ou fílmica? Que lugar
tem a perspectiva dos interlocutores no produto visual ou audiovisual final?

As 15 produções inscritas na edição do Prêmio Mariza Corrêa de 2020 certamente configuram-se, de diferentes formas e em diferentes medidas,
como frutos frescos da tensão entre as teorias e a prática antropológica. Tal feito, por si só, requer dos autores intenso trabalho de reflexão e
elaboração das imagens e materiais produzidos em campo, bem como aprofundado conhecimento técnico, teórico e prático, sobre os assuntos

Galeria > Prêmio Mariza Corrêa 2020


apresentados. Além disso, os trabalhos participantes do certame, bem como seus contextos de pesquisa e realização, perpassaram temáticas e
realidades muito díspares. Disso já se pode deduzir a dificuldade que tivemos em selecionar apenas um exemplar de cada categoria para esta
premiação...

Nesse sentido, o ensaio fotográfico de Maria Isabel Pia dos Santos, No Dia 8 de Dezembro, Eu Vou Jogar Flores no Mar... versa sobre a festa de
Iemanjá em 2019 na cidade de João Pessoa, Paraíba, e mostra que, mais do que uma homenagem ao orixá, a festa celebra a liberdade religiosa de
que se goza naquela cidade há apenas poucas décadas. As sensíveis fotografias em preto e branco de autoria de Paula Affonso de Araujo Silva que
compõem Terra e Mar na Baía dos Castelhanos, Ilhabela falam sobre a sobrevivência de técnicas de pesca centenárias e o respectivo modo de vida
que sustentam, a partir do cotidiano de três comunidades de pescadores e de sua sobrevivência à exploração de petróleo por grandes empresas
na Ilha de São Sebastião, São Paulo. Cidade de Giz: Ensaio Gráfico, de Jeferson Carvalho da Silva, se utiliza do desenho com giz para costurar
sentidos e símbolos ao tecido urbano de Viçosa, Minas Gerais. Já o trabalho de Bárbara Rossin Costa, que também não consiste de fotografias, As
Linhas da Demência: Desenhando Memórias, Artefatos e Experiências, traz o desenho como “um de modo de ver com o corpo” e como forma de
escritura de relações que só acontecem através dos sentidos háptico e óptico, no trabalho de campo sobre processos demenciais.

Em Retomada Pitaguary, de Alex Hermes, temos a potência das articulações entre indígenas e seus aliados na reversão da ordem de reintegração
de posse das terras da aldeia Monguba, no Ceará. Através das imagens da Festa de Nossa Senhora do Rosário, Alejandro Escobar Hoyos mostra
a força da presença e da identidade negras na região do tricentenário Quilombo da Boa Vista do Negros, em Parelhas, Rio Grande do Norte. Par-
tindo de um sujeito não tão convencional, Maysa Mayara Costa de Oliveira, em A Ponte: Espaço de Conexões e Sociabilidades, mostra como este
equipamento urbano é atualmente capaz de materializar a fusão de realidades tão contraditórias quanto o passado e futuro, o antigo e o moderno,
o campo e a cidade, no coração da capital São Luís do Maranhão.
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Também enfocando o espaço urbano, o ensaio Deixa Gente Viver, de Larissa de Rezende Tanganelli, narra o cotidiano da pandemia de Covid-19

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em seus primeiros meses no centro de São Paulo, capital, e utiliza as imagens para interpelar as sensibilidades coletivas a respeito das articu-
lações nefastas entre as dinâmicas de infecção viral e as tecnologias de governo que modulam os deslocamentos ou permanência nas ruas, e o
viver ou morrer de diferentes categorias sociais. Em A Potência do Corpo-Território: 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, Jaqueline de Araújo Vieira
documenta a histórica Marcha das Mulheres Indígenas, realizada em agosto de 2019 em Brasília junto à já tradicional Marcha das Margaridas.
As Oleiras de Santiago Norte, de Vinícius Venancio de Sousa, foi o ensaio escolhido para a Menção Honrosa desta edição do Prêmio, e fala da
centralidade da atividade ceramista das mulheres nas ilhas do país-arquipélago de Cabo Verde, explorando as pontes entre técnicas manuais,
fluxos migratórios e turismo. Ao colocar a atenção sobre as contradições do tempo, visto como fluxo dinâmico entre o movimento e a estaticidade,

Galeria > Prêmio Mariza Corrêa 2020


o ensaio ainda põe em relevo uma espécie de memória da mulher-terra, que se funda na intensa relação entre as mulheres e o trabalho, e ainda
povoa imaginários (nos termos de Michelle Perrot, 2017) sobre a feminização da terra.

Finalmente, o trabalho premiado na categoria Ensaio Visual e publicado no presente volume, Carnaubal, de Lucas Coelho Pereira, mostra as poro-
sidades decorrentes do complexo encadeamento do preparo e manuseio de folhas da carnaúba, de sua diferenciação, e da elaboração dos com-
plexos saberes envolvidos no processo de aproveitamento da planta. Os percursos daí depreendidos revelam temporalidades e formas de exis-
tência que se encontram no campo-chave da produção visual. Tal produção, por sua vez, dá lugar à reunião de histórias humanas e não-humanas,
compondo-se como um registro visual de uma perturbação particular, ao mesmo tempo em que põe em evidência os percursos de uma natureza
que é, a um só tempo, palavra de luta e ferramenta (TSING, 2019). É também desta convivência que as folhas vegetais e os gestos deste trabalho
se misturam a percursos, como folhas escritas, de debates antropológicos concernentes à agência mais que humana.

Embora o número de Ensaios Audiovisuais fosse menor, a diversidade temática também fez-se sentir na mesma medida. O primeiro deles, Re-
campesinización/ Voltar ao campo, de Alejandro Escobar, aborda uma experiência de reparação a vítimas dos deslocamentos forçados em Cairo,
nos Andes colombianos. A “recampesinización” ou “restituição de terras” é uma das iniciativas propostas pelo estado nacional para lidar com as
consequências dos conflitos históricos que assolam a Colômbia. Já o curta metragem Loss e Renam: Etnobiografias de artistas urbanos, é um tra-
balho do Núcleo de Antropologia Visual da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Navisual/PPGAS/UFRGS) e produto de uma experiência
coletiva proposta em uma oficina com alunos de antropologia da universidade e artistas urbanos locais. Além de abordar as relações entre arte
e espaço urbano, a produção ainda explora, de maneira prática, o conceito de etnobiografia, e deixa entrever alguns dos conflitos e disputas que
permeiam as trajetórias de artistas urbanos de diferentes classes sociais e gêneros.

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O instigante ensaio de Noah Mancini, Socialights | Jorge Lafond, reúne materiais de diferentes fontes e épocas sobre o ator Jorge Lafond e sua

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popularíssima personagem, Vera Verão. Ao mostrar a indissociabilidade entre criador e criatura, ator e personagem, Lafond e Vera, o ensaio não
somente aponta para um emaranhado de questões, clássicas da antropologia, em torno da constituição da pessoa, do gênero, da raça e da se-
xualidade que modularam a carreira, o sucesso e o declínio da saúde física e psíquica de Lafond em seus últimos dias, mas também propõe uma
reflexão intensa sobre a midiatização da vida, as redes sociais e, em especial, a televisão, que aqui se insere como uma personagem central da teia.
Certamente, a sagacidade desta espécie de documentário-arquivo-colagem audiovisual produzida por Mancini através da garimpagem minucio-
sa na internet, seguida da edição e da montagem de vídeos, entrevistas, programas de fofocas, frivolidades múltiplas e excertos de espetáculos,
asseverou a nossa dificuldade de escolha consensual do vencedor do prêmio, e terminou valendo a Menção Honrosa de 2020.

Galeria > Prêmio Mariza Corrêa 2020


Finalmente, a produção premiada na categoria de Ensaio Audiovisual foi O Colégio Estadual Dr. Raimundo Alves Torres, na perspectiva de seus
agentes - Breves notas sobre o fazer antropológico, de autoria de Mateus Rodrigues Jorge e Amanda Rocha. O trabalho elucida diálogos entre e
sobre instituições, e produz um interessante jogo de perspectivas no que concerne às performances de ‘mostrar olhar’ e ‘mostrar interpretação’.
Realizado por dois estudantes de graduação em Ciências Sociais para ser submetido como trabalho final da disciplina Etnografia e Métodos, este
curta metragem aborda, por um lado, a relação entre trajetórias sociais e instituições educativas, e por outro, a transformação da subjetividade
dos autores em torno à sua própria passagem, literal e simbólica, “de um lado para o outro do muro”, ou seja, de uma instituição (a escola) à outra
(a universidade). Se os relatos, percepções e representações de estudantes, professores e funcionários da escola são apreendidos e mostrados
em cenários rígidos – cadeira, mesa e parede - essa composição se alastra também sobre o espaço de apresentação das atividades de pesquisa,
sugerindo a ideia de que outras salas de aula e outras formas de contar também estão envoltas em aparelhamentos gestuais normatizadores.
Deste modo, o filme se aproxima de movimentos de interdisciplinaridade e, mais que isso, destes como reflexão e material de estranhamento e
familiaridade.

Como já deve ter ficado claro, não se tratou de escolher os “melhores” trabalhos, e tampouco os “mais representativos”; a seleção se norteou pelo
encontro com as questões em que a comissão se balizou. Sem desatender completamente o domínio das técnicas mas entendendo que não se
tratava de priorizá-lo, optamos por selecionar os trabalhos que não só dialogassem com o maior número das questões supramencionadas, mas
que também colocassem novas questões não previstas por nossos editais e listas de critérios. Entendemos que este último ponto foi o diferencial
que nos permitiu não somente individualizar estes dois trabalhos em relação ao excelente conjunto de inscritos, mas, principalmente, sublinhar o
caráter de espaços de debate horizontal e de coletivização da produção do conhecimento que tanto o Prêmio Mariza Corrêa, quanto as Jornadas
John Monteiro e a própria revista PROA têm como finalidade última.
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> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 392-397 | Jan - Jul | 2021

Sem mais delongas, é com imensa satisfação e entusiasmo que convidamos leitoras e leitores a visitarem, na seção Prêmio Mariza Corrêa deste

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volume, o ensaio visual de Lucas Coelho Pereira intitulado Carnaubal (pp. 398-407), e no canal da revista Proa no YouTube, o documentário audio-
visual de Mateus Rodrigues Jorge e Amanda Rocha, O Colégio Estadual Dr. Raimundo Alves Torres, na perspectiva de seus agentes - Breves notas
sobre o fazer antropológico3, ambos vencedores do Prêmio Mariza Corrêa do ano de 2020.

REFERÊNCIAS

Galeria > Prêmio Mariza Corrêa 2020


PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução: Denise Bottman. 7 ed. Paz e Terra. Rio de Janeiro/ São Paulo, 2017.

TSING, Anna L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Edição: Thiago Mota Cardoso, Rafael Victorino Devos. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.

Mostra (Audio)Visual das Jornadas de Antropologia John Monteiro de 2020, disponível em https://www.expo.ifch.unicamp.br/portal/premiomari-
zacorrea/92 [consultado por última vez em 22/07/2021].

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3 Link para acesso ao filme: https://youtu.be/5ACTMQ1Smh8
> Carnaubal
Lucas Coelho Pereira
> lucascoelhopereira@gmail.com
Doutorando em Antropologia Social
Universidade de Brasília
Bolsista CNPq

“Carnaúba é assim: dá em todo em canto”. Andando pelo Delta do Rio Parnaíba é difícil discordar disso. A carnaubeira faz-se presente nas portas
e nos quintas das casas, na beira do rio, nas calçadas de prédios públicos, no meio fio de avenidas. Há quem a chame de “árvore da vida”, porque
dela tudo se aproveita. Das raízes fazem remédios; com o caule, móveis, cercas, casas. As palhas são bastante apreciadas no artesanato de cestos,
redes, tapetes e o que mais a criatividade permitir. Elas fornecem ainda matéria prima para a produção de velas, microchips, cera, cosméticos e
produtos lubrificantes. Antes disso, obviamente, suas folhas precisam ser retiradas do alto de suas copas. É sobre este processo que irei narrar
através de imagens.

Apesar de amplamente presentes no semi-árido nordestino, é nos carnaubais onde encontramos várias delas. Juntas. Exuberantes! Medindo até
20 metros. Suas palhas são coletadas com o auxílio de uma foice. Na Reserva Extrativista Marinha do Delta do Parnaíba (lugar onde o ensaio foi
realizado) a organização para esta atividade ocorre em “turmas”. Grupos de pelo menos quatro homens que – desempenhando diferentes funções
– coletam e preparam a folha da carnaúba para serem trituradas em máquinas. Somente assim se obtém o pó com o qual produtos derivados da
planta serão confeccionados. Porém, se a máquina realiza uma das principais transformações técnicas (Sautchuk, 2017) implicadas nesta cadeia
produtiva, é apenas através do manuseio da folha por mãos humanas que isso se torna possível.

Lelía, Assis e Marcelo – personagens desta narrativa visual – trabalham com as mãos ao lidar com foices, facões e outros ferros. As mãos unem,
separam, cortam, carregam, abrem as folhas. O que não significa dizer que todo o corpo não esteja envolvido na constituição dessas habilidades
(Ingold, 2002). Acessar as carnaúbas requer caminhadas. Implica conhecimento profundo do próprio território e suas territorialidades (Godoi,
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2016; Little, 2002) seu relevo, áreas alagadas, localização dos carnaubais. Saberes gestados a partir do engajamento prático das pessoas com

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seus ambientes e caminhos de vida (Ingold, 2002, 2015). Quem se aventura neste ofício joga ainda com o calor do sol, pois só depois de espalha-
das ao chão para secar poderá ser extraído o pó das folhas. Além da descrição de gestos efetuados na coleta, portanto, o ensaio mostra o conjunto
de paisagens, plantas e agentes mais-que-humanos (Tsing, 2019) nela envolvidos. As fotos são da “safra” de 2019.

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REFERÊNCIAS

GODOI, Emilia Pietrafesa. Territorialidade. In: Sansone, L; Furtado, C.A. (orgs.). 2016. Dicionario crítico das ciências sociais dos países de fala oficial portuguesa.
Salvador: EDUFBA; ABA Publicacões.

INGOLD, Tim. 2002. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill. London: Routledge.

INGOLD, Tim. 2015. Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: EditoraVozes.

LITTLE, Paul E.2002. Territorios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasilia, Serie Antropologia, 322, UnB

SAUTCHUK, Carlos Emanuel (Org.). 2017. Técnica e transformação: perspectivas antropológicas. Rio de Janeiro: ABA Publicações.

TSING, Anna. 2019. Viver nas Ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas.

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Imagem 1 – O trabalho começa antes do nascer do sol. Lélia me mostrava áreas que já estavam sendo trabalhadas por outras turmas. Há um (re)conhecimento tácito
a respeito disso e deve-se observar muito bem as porções de carnaubal já “mexidas”. Caminhar também é, de algum modo, planejar a provável da rota de trabalho. 400
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Imagem 2 – Setembro e outubro são meses com forte ocorrência de ventanias no
Delta do Parnaíba. O foiceiro precisa posicionar-se na direção contrária ao vento.
Caso contrário as folhas podem lhe atingir ao cair. Um dos principais riscos do ofício.
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Imagem 3 – As folhas da carnaúba apresentam diferenças entre si. Aquelas já desenvolvidas e, portanto, abertas são chamadas de
“palha”. O pó delas obtido é vendido mais barato – cerca de nove reais o quilo. Quase metade do valor daquele processado a par- 402
tir “olho” (que são folhas de carnaúba ainda em broto, fechadas, situadas no cume da carnaubeira e consideradas de maior qualidade).
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Imagem 4 – Cortar os pedún-
culos é função do aparador. Um
serviço considerado mais leve,
mas nem por isso menos des-
gastante. Trabalha-se das primei-
ras horas da manhã até o pôr do
sol. Como os personagens des-
sa narrativa residem na Resex e
são parentes e amigos próximos,
cada um faz uma breve pausa 403
para o almoço em suas casas.
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Imagem 5 – Trabalhar no carnaubal requer um conjunto de ações coordenadas. O foiceiro é seguido pelo aparador que, por sua vez, é acompanhado
pelo feixeiro. À medida que o dia avança fechar as palhas é preciso, caso contrário elas podem perder muito pó antes mesmo de serem postas para secar.
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Imagem 6 – Além de fechar as palhas é função do feixeiro organizá-las
em feixes, como o próprio nome da função indica. Somente assim elas
poderão ser transportadas. As carnaúbas crescem dispersas e cami-
nha-se muito no carnaubal até chegar onde a turma irá amontoá-las. 405
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Imagem 7 – “Se tivesse um jumento aqui, rapaz, a gente tinha derrubado mais palha”. Sem ajuda animal meus
anfitriões carregam as folhas por longas distâncias. Nas costas. Em virtude disso evita-se lidar com car-
naúbas muito longe de casa, a não ser que se esteja disposto a agüentar o pique (ou se extenuar de cansaço).
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Imagem 8 – A labuta nos carnaubais é uma ativida-
de temporária. Ocorre em meados do verão que, pelas
bandas do Delta, compreende os meses de julho a iní-
cio de dezembro. Com o inverno e o “subir das águas”,
as palmeiras pouco a pouco recuperam sua folhagem. 407
> “O Colégio Estadual Dr. Raimundo Alves Torres, na pers-
pectiva de seus agentes” - Breves notas sobre o fazer an-
tropológico
Mateus Rodrigues Jorge
>mateus.jorge@ufv.br
Graduando em Ciências Sociais
Universidade Federal de Viçosa

Amanda Rocha
Graduanda em Ciências Sociais
Universidade Federal de Viçosa

“O Colégio Estadual Dr. Raimundo Alves Torres, na perspectiva de seus agentes” é uma produção dos estudantes Mateus Rodrigues Jorge e
Amanda Rocha, graduandos em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), resultado das discussões, orientações ereflexões
oriundas da disciplina Etnografia e Métodos, ofertada no referido curso pela Professora Dra. Maria Isabel, entre agosto e dezembro de 2019.

Uma das atividades avaliativas da disciplina consistia na elaboração de uma etnografia. Neste período, o primeiro graduando mencionado cumpria
estágio obrigatório na Escola Estadual Dr. Raimundo Alves Torres, um dos maiores colégios estaduais da cidade e, também, um dosmais próximos
da Universidade Federal de Viçosa - a instituição que movimenta o município economicamente, politicamente e socialmente.
> PROA: Revista de Antropologia e Arte | UNICAMP | 11 (1) | p. 408-411 | Jan - Jul | 2021

Em O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras, Vagner Gon-

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çalves da Silva (2000) dedica um capítulo à reflexão sobre a chegada do pesquisador ao campo. O livro trata especificamente de etnografias
realizadas em terreiros, mas certas reflexões permitem pensar a entrada do antropólogo independentemente do campo, guardadas as devidas
especificidades. Em meu caso, não precisei “chegar ao campo”, pois a minha entrada como estagiário já havia sido legitimada meses antes,e a
etapa de convite e aceite dos entrevistados para a pesquisa ocorreu sem problemas.

Vagner argumenta que os artigos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses que envolvem trabalhos etnográficos, devido a uma
tradição inaugurada por Malinoswki, não explicitam ou omitem conscientemente o percurso traçado até a finalização do trabalho. Em outras pala-

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vras, apenas o que temos acesso, a etnografia escrita, representa uma percepção do antropólogo sobre o campo, sem mencionar as contradições,
conflitos e relações desenvolvidas ao longo de todo o campo.

Em vista disso, apresentarei a seguir as etapas que segui para realização desse trabalho, passando por sua concepção, convite aos entrevistados
e formatação do filme. Além disso, disponibilizarei as perguntas que orientaram as entrevistas, bem como as gravações completas de todos os
participantes.

A cidade de Viçosa, localizada na Zona da Mata Mineira, possui aproximadamente 70 mil habitantes, sendo que a população flutuante é de 20 mil
pessoas - movimentadas, sobretudo, pela Universidade. É discurso comum entre os militantes do movimento estudantil (dentre os quais mein-
cluo) que grande parte da população viçosense não usufrui dos benefícios que essa instituição de ensino superior proporciona à cidade, como o
lazer, os espaços culturais, além é claro, do próprio ensino de qualidade. Procuro abordar a relação entre a Universidade e o colégio Estadual Dr.
Raimundo Alves Torres quando pergunto aos entrevistados “Qual é a distância entre a Universidade e a escola?”.

Analisando retrospectivamente, observo que a forma como elaborei a pergunta é tendenciosa, pois pressuponho que exista uma distância entre
os estudantes de uma escola pública e suas chances de ingresso numa instituição federal. No entanto, me surpreendi com várias respostas dos
estudantes e dos funcionários da escola, que contrariaram minha expectativa.

Ruth Cardoso (1986), em um texto célebre sobre a metodologia na pesquisa de campo esboçou uma excelente reflexão sobre “as armadilhas do
método”, na qual a situação citada acima pode ser enquadrada:

o objeto do conhecimento é aquilo que nenhum dos dois conhece e que,por isso mesmo, pode surpreender. Logo, a novidade está na descoberta de
alguma coisa que não foi compartilhada e não - como quer a noção usual de empatia - na comunhão (CARDOSO, 1986, p.103). 409
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Após a concepção da ideia, o primeiro movimento foi a elaboração de um documento para autorização do uso de imagem e som, com uma carta

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explicitando os objetivos do trabalho, em que tentava tornar minha proposta compreensível aos entrevistados. Cabe mencionar que, nesse texto,
adicionei que a minha contrapartida à escola e aos entrevistados seria a de disponibilizar o produto final para cada participante do filme, além de
realizar uma exibição na escola.

Emseguida, valendo-se da inserção no campo permitida pelo estágio, apresentei a proposta a Leonardo Martins Dias (estudante do primeir ano),
Maria Luísa (Estudante do segundo ano), Diogo Antônio Ribeiro Martins (Estudante do segundo ano), Gláucia Martins Laureano (Especialista da
educação básica), Silvia Rogéria Sangoleti Bellato (Diretora), Lilian Martins Vieira Peres (Vice-diretora), Bartomélio da Silva Martins (Professor de

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Sociologia) e Ana Mendes Ferreira Peres (Merendeira) os quais havia estabelecido uma relação de proximidade. Em virtude dessa convivência,
convidei-os a participar de uma produção fílmica.

Marco Antônio Gonçalves e Scott Head (2009) buscaram em Confabulações da alteridade:Imagens dos outros (e) de si mesmos,contribuir com o
debate antropológico contemporâneo sobre o fazer etnográfico, especialmente nas discussões sobre a representação do outro. Busco, neste filme
etnográfico, romper com as pesquisas antropológicas tradicionais, poisas pessoas historicamente restritas à condição de objetos tornam-se sujei-
tos, na medida em quesão eles que relatam suas histórias e expressam suas ideias personificadas em voz, trejeitos eperformances.

Antes das entrevistas, apresentei o roteiro de perguntas aos entrevistados. Cabe mencionar que, as mesmas questões, disponibilizadas na se-
quência, foram feitas a todos os participantes,com exceção da terceira pergunta, direcionada apenas às pessoas que já haviam concluído sua
formação e estavam na escola na função de trabalhadores, e não de estudantes.

1) Apresentação do entrevistado, como nome, idade, trajetória de vida (formação) e tempo na escola.

2) O que é a escola pra você?

3) O que mudou na escola na época que você estudava e agora?

4) Qual é a distância da escola pra Universidade?

5) O que há de bom na escola? E quais são os pontos negativos?

6) Há esperança na escola? 410


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Uma menção importante é que, neste filme etnográfico, apenas as falas dos entrevistados são exibidas. Com esse artifício, busco romper a clássi-

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ca distinção da ciência moderna - também presente na Antropologia - entre sujeito, aquele que detém o conhecimento, e o objeto a ser conhecido.
São os próprios indivíduos que vivenciam a escola que se representam, apresentam suas percepções acerca da própria realidade e, com isso,
constroem seus próprios sentidos.

Após a finalização da etapa de gravação das entrevistas, com o auxilío de Amanda, assistimos todas as filmagens diversas vezes. Em seguida,
selecionamos os trechos que julgamos que os atores elaboraram falas representativas sobre a realidade escolar, seus projetos individuais e suas
percepções sobre a mudança da instituição escolar.

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O filme etnográfico é, portanto, o resultado da síntese de relatos, percepções e representações de estudantes, professores e funcionários da es-
cola, organizados pelos graduandos de modo a estabelecer uma narrativa coerente sobre a instituição escolar, numa perspectiva universalista e,
também, acerca do cotidiano do colégio ESEDRAT.

Link para o filme: https://www.youtube.com/watch?v=5ACTMQ1Smh8&feature=youtu.be

REFERÊNCIAS

CARDOSO, Ruth C. L. Aventuras de antropólogos em campo ou como escapar das armadilhas do método. In:(Org.). A aventura antropológica: teoria e pesquisa.
Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1986. 156 p. p.95-105.

GONÇALVES, Marco Antonio; HEAD, Scott (Org.). Devires imagéticos: a etnografia, o outro esuas imagens. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. 308 p.

SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográficonas pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras,
São Paulo, Edusp, 2000, 194 pp.

Link para as gravações completas:

https://drive.google.com/drive/folders/1tjPXD6nAF3-rjiIFR2Ch-FOsWHCKhKo-?usp=saring 411
>>> Nominata de Pareceristas
> Adalberto Luiz Rizzo de Oliveira
Professor Associado do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão
Doutor em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão

> Alex Vailati


Professor Adjunto do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco

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Doutor em Antropologia e Etnologia pela Università degli Studi di Torino (Itália)

> Amiel Ernenek Mejía Lara


Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia
Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas

Pareceristas
> Ana Carolina Estrela da Costa
Doutoranda em Antropologia Social na Universidade de São Paulo

> Ana Paula Santos Horta


Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista
Mestra em História pela Universidade de São Paulo 413
> Ana Paula de Souza Campos
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

> André Brasil


Professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais
Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

> Catarina Alves Costa

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Doutora em Antropologia pela Universidade Nova de Lisboa

> Catarina Laranjeiro


Doutoranda em Pós-Colonialismo e Cidadania Global no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

> Denise Machado Cardoso

Pareceristas
Doutora em Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade Federal do Pará
Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Antropologia Visual e da Imagem (VISAGEM) e o Grupo de Estudos sobre Populações Indígenas (GEPI)

> Erlan Moraes de Souza


Doutor em Antropologia de Iberoamérica pela Universidad de Salamanca (Espanha)

414
> Gabriel Omar Alvarez
Professor Associado da Universidade Federal de Goiás
Doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília

> Gemma Orobitg Canal


Professora do Departamento de Antropologia Social da Universitat de Barcelona

> Janaína Damaceno


Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF/UERJ)

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Atua nos programas de Pós-graduação em Educação, Cultura e Comunicação (PPGECC/ Febf/ Uerj) e no Programa de Mestrado em Cultura e
Territorialidades (PPCULT/ UFF)
Coordenadora do Fórum Itinerante de Cinema Negro (FICINE)
Pós-Doutorado em Sociologia (UFSCAR)

> Jérôme Souty

Pareceristas
Doutor em Antropologia Social pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS, Paris)
Pós-Doutorado no Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ)

415
> João Martinho Braga de Mendonça
Professor Associado da Universidade Federal da Paraíba nos cursos de graduação e pós-graduação em Antropologia
Doutor em Multimeios/Antropologia Visual pela Universidade Estadual de Campinas
Líder do grupo de pesquisa AVAEDOC (Antropologia Visual, Artes, Etnografias e Documentários

> José Maria Gonçalves da Silva Ribeiro


Doutor em Ciências Sociais – Antropologia pela Universidade Aberta de Portugal
Coordenador da Rede Internacional de Cooperação Científica Imagens da Cultura

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> Josnei Di Carlo
Doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política (PPGSP), na mesma universidade

> Juan Carlos Castrillón


Doutorando em Etnomusicologia na Universidade da Pennsylvania

Pareceristas
> Kaciano Gadelha
Professor Adjunto de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande
Doutor em Sociologia magna com laude pela Freie Universitat Berlin

416
> Marcelo Pedroso Holanda de Jesus
Doutor em Cinema pela Universidade Federal de Pernambuco

> Marco Antonio Sá


Fotógrafo. Doutor e Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

> Maria Inês Ladeira


Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo
Pós-Doutoramento em Antropologia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

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Sócia Fundadora do Centro de Trabalho Indigenista – CTI

> Mariana Petroni


Doutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas

> Mariano Báez Landa

Pareceristas
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas
Fundador da Cátedra Internacional Roberto Cardoso de Oliveira (CIESAS-UNICAMP)

> Nadja Marin


Doutora em Antropologia Social pelo PPGAS-USP
Pesquisadora associada ao Grupo de Antropologia Visual (GRAVI-USP) e ao Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (LISA-USP) 417
> Natalia Möller González
Pós-Doutoranda no Instituto de Estética da Universidad Católica de Chile
Doutora em Estudos Latinoamericanos na Universidad de Chile

> Pablo Mora


Mestre em Antropologia pela Universidade dos Andes
Organizador do International Documentary Festival em Bogota (MIDBO)
Coordena o Daupará, o festival indígena de filmes e vídeos na Colômbia

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> Priscilla Barrak Ermel
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo
Doutora em Seminário de Formação Doutoral em Etnomusicologia no Centre National de la Recherche Scientifique
Pós-Doutoramento em Antropologia Audiovisual na Universidade de São Paulo

> Rafael Gonzaga de Macedo

Pareceristas
Doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Docente na área de história junto aos Cursos de História, Música e de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Metodista de Piracicaba

> Rafael Victorino Devos


Professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina

418
> Renan Bergo da Silva
Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho

> Rodrigo Iamarino Caravita


Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas

> Sérgio Baptista da Silva


Professor convidado do Departamento de Antropologia Social
Professor aposentado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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Doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo

> Sérgio Procópio Mendes


Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Pesquisador em Ciências Sociais na Kryptus

Pareceristas
> Siloé Amorim
Professor da Universidade Federal de Alagoas
Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

419
> Sílvia Martins
Professora Associada pela Universidade Federal de Alagoas
Pós-Doutorado pela University of Manchester
Doutora em Antropologia pela University of Manitoba

> Teresa Castro


Maître de conférences en études cinématographiques et audiovisuelles
Responsable Erasmus et échanges internationaux
IRCAV - Institut de recherche sur le cinéma et l’audiovisuel

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Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3

> Thaís Brito


Doutora em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia

Pareceristas
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