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A Música Na Liturgia
A Música Na Liturgia
A palavra “liturgia (do grego leitourgia), formada pelas raízes das palavras laos (povo)
e ourgia (trabalho, serviço, ofício), tem o sentido de “culto público” do povo de Deus e
pode ser equacionada com adoração. Como parte essencial do culto, “a música da igreja
deve cumprir sua tarefa no espírito da liturgia” e ser o “sopro da liturgia“. [1] O cantor
não é livre para apresentar o tipo de música que desejar, sem levar em conta o
“diapasão” da igreja e o “tom” da programação. Neste artigo, apresento alguns
princípios para a música na liturgia adventista por meio de dez proposições:
A liturgia é enriquecida pela música, o que já era reconhecido desde os tempos bíblicos.
Por isso, a música aparece em muitos lugares na Bíblia, em especial no contexto do
templo. O Saltério é o exemplo mais notório da música de Israel. Os Salmos, que não
têm sido mais formalmente relacionados com as orações mesopotâmicas, costume
iniciado nas décadas de 1920 e 1930, [2] são uma coleção de poemas/hinos em louvor a
Yahweh por Suas maravilhosas obras e intervenções em favor de Israel. Louvar é
adorar.
No entanto, adorar não é apenas louvar. Música não é sinônimo de adoração. Até cerca
de 15 ou 20 anos atrás, a tendência nos meios evangélicos era achar que o louvor não
fazia parte da adoração, enquanto hoje é considerar que apenas o louvor constitui a
adoração. Gastar a maior parte do culto cantando, sem deixar tempo para a exposição da
Palavra e outras atividades, é uma distorção da simetria e do equilíbrio da liturgia. Três
cânticos de louvor, além do hino inicial, do hino final e de uma música especial, são
suficientes.
A música do templo, refletida nos Salmos, era centralizada em Deus, não na vida do
cantor, nem na experiência da congregação. O salmista louva e convida a cantar
louvores “ao Senhor” (Salmos 9:11; 27:6; 95:1; 100:1, 2; 148:13). Longe de ser um
louvor ao acaso, o autor mostra por que Yahweh merece o louvor. “O Deus de Israel é
estudadamente celebrado nas canções de louvor do Saltério”, diz Kenneth Kuntz. [3]
Diante de um Deus tão poderoso, os poetas hebreus, compondo/cantando em nome da
nação e dando voz aos sentimentos da comunidade, não podiam ficar sem uma resposta
de louvor. E é assim que deve ser, pois Deus é o centro de tudo.
3. A música é um veículo para expressar conceitos teológicos, não apenas emoções
e sentimentos.
Há uma íntima relação entre música, teologia e adoração na Bíblia. De acordo com Jörg
Jeremias, “os textos mais primitivos do Antigo e do Novo Testamento são hinos”, o que
inclui os cânticos de Moisés e de Miriã. Os hinos, pelo menos no início, não seriam “o
produto da teologia, mas a fonte dela”. O teólogo completa: “Não existe hino no Antigo
Testamento sem a tendência de retratar conhecimento, sem a propensão para
teologizar." [4]
Quando a música focaliza muito o aspecto individual, pode promover a visão de uma fé
privatizada, em que a pessoa se sente livre para escolher o que crer e como adorar.
Músicas sentimentaloides e narcisistas, em que repetidamente o adorador pede para
Jesus tocá-lo, abraçá-lo e curá-lo, perdem a dimensão social. Uma superênfase na
felicidade pessoal pode levar a uma visão errônea do discipulado, criando a falsa
impressão de que a vida cristã é um mar de rosas ou contínuo pôr do sol, quando a
realidade de nosso mundo fragmentado é outra.
Para Lilianne Doukhan, “a música é um fenômeno objetivo”, que precisa ser estudado
objetivamente. A música “está ligada à física através das leis da acústica; à matemática
devido às proporções numéricas que definem os intervalos; à psicologia por causa de
seu impacto no comportamento humano; à história pelo modo com que reflete os
valores e padrões de pensamento de várias épocas; à cultura, da qual funciona como um
espelho; à economia, que promove o negócio da música; à política, que se apropria da
música como um meio de propaganda”. [9] A lista poderia continuar. Isso significa que
a música não depende apenas de gosto pessoal.
Apesar da ênfase no elemento objetivo, é preciso reconhecer que a música é uma arte e,
portanto, tem um referencial autoral subjetivo e pode ser interpretada subjetivamente.
Ela nasce da experiência de um compositor ou comunidade e expressa sua percepção
dos feitos divinos. Inclui fatores como gosto pessoal, cultura, memória afetiva e estética.
A música existe como uma concepção artística, mas ganha vida quando é tocada,
cantada e apreciada. Por isso, o sentimento despertado pela música tem que ser real, e
não artificial.
Em seis salmos, o salmista canta ou exorta outros a cantar uma “nova canção” ou “novo
cântico” (33:3; 40:3; 96:1; 98:1; 144:9; 149:1). O que seria novo e em que sentido? As
possibilidades incluem a letra do próprio salmo, uma composição totalmente nova, uma
nova melodia, novos acompanhamentos, a celebração de um novo evento, uma nova
ênfase teológica. Enfim, o “novo cântico” pode ser novo no conteúdo, no motivo do
louvor, ou na forma, em que o poeta faz algum tipo de experimento musical. É
significativo que quatro dos seis salmos que falam do “novo cântico” mencionam o
acompanhamento de instrumentos musicais, enquanto o total no Saltério inteiro é
apenas 21 em 150. [10] O fato é que o salmista viu a necessidade de apresentar um novo
louvor, pois Deus está sempre renovando as demonstrações de poder. (*)
Há belos hinos que merecem ser cantados até o século 25, se Jesus não voltar, e há
relíquias compostas especificamente para a liturgia do passado que não encontram mais
ressonância nos ouvidos pósmodernos. Se a igreja não é um palco para concertos,
também não é um repositório de antigos sons ou peças de museus.
É a combinação desses três elementos básicos da música que define seu estilo e a torna
marcante. “Quanto mais complexos e súbitos forem os relacionamentos, ecos, variações
e alusões, mais satisfatória, profunda e duradoura será a experiência auditiva”, explica a
Dra. Doukhan. “Equilíbrio é a chave por trás de qualquer obra musical permanente.”
[12] A melodia, que tem um forte viés cultural, é o modo pelo qual “o som é organizado
no espaço de maneira horizontal”; a harmonia, que funciona como a textura de um
tecido e tem o poder de criar tensão ou relaxamento, é a organização do som no espaço
de maneira vertical; e o ritmo, o elemento mais controvertido e antagonizado nos meios
religiosos, é o modo pelo qual “a música é organizada no tempo”. [13] Outros
elementos menos essenciais, como timbre (som particular de um instrumento), tempo
(velocidade da execução), volume (altura) e textura (interação entre as partes), também
precisam de equilíbrio. Por exemplo, se a música for muito rápida, excessivamente alta
ou dissonante demais, pode criar desconforto e “ruídos” na experiência da adoração.
A música de Israel era vibrante e alegre, com muitos recursos. Porém, os instrumentos
eram usados com critério. Entre os instrumentos mencionados nos Salmos estão harpa,
lira, trompete, címbalos, alaúde, tamborins e instrumentos de cordas. Os quatro
primeiros são apresentados em conexão com o templo de Jerusalém (I Crônicas 15:16,
19-22, 28; 16:5, 6; II Crônicas 5:12, 13). Eram também valorizados nos templos das
civilizações vizinhas, como Egito, Assíria e Suméria, ao passo que a civilização fenícia
preferia música mais barulhenta e sensual, com címbalos e tambores. [15]
9. A música tem um sentido básico para todos, mas significados específicos para
cada um.
A música tem uma linguagem universal, mas cada ouvinte a entende de modo diferente.
Em grande medida, o significado da música é colorido pela experiência da pessoa. Com
um pouco de exagero, a Dra. Doukhan expressa a mesma ideia desta maneira:
“Ouvimos na música o que queremos e esperamos ouvir. […] O poder moral da música
não reside na música em si, mas onde a música intersecta com a experiência, isto é, em
um evento.” [19] O que a música faz é intensificar, embelezar e conectar eventos e
momentos. Isso amplia o cuidado que devemos ter com a música apresentada na igreja,
pois as pessoas podem criar associações e ter sentimentos diferentes daqueles
pretendidos.
O tipo de música precisa expressar as experiências impostas pelo ritmo da vida. Isso
inclui alegrias e tristezas, derrotas e vitórias. No Saltério, além de hinos de louvor,
vemos adoração, lamentos, confissão, ações de graças e até imprecação, entre outras
coisas. Os primeiros cristãos também tinham uma rica experiência musical, com
expressões musicais apropriadas para a ocasião, embora “a distância de tempo e cultura
torne particularmente elusiva a tarefa de identificar ou reconstruir a fibra musical da
igreja cristã primitiva”. [20]
Paulo incentivou seus leitores a cantar “salmos, hinos e cânticos espirituais” (Efésios
5:19; Colossenses 3:16). Wellesz vê um significado específico em cada termo,
definindo salmos como “a cantilena de salmos judaicos e dos cânticos e doxologias com
base neles”; hinos como “canções de louvor do tipo silábico, isto é, cada sílaba é
cantada segundo uma ou duas notas da melodia”; e cânticos espirituais como “aleluias e
outros cantos de caráter exultante ou extático, ricamente ornamentados”. [21] Não está
claro se essa classificação é realmente válida ou se as três expressões são apenas
sinônimas, mas, de toda maneira, a afirmação paulina sugere diferentes expressões
musicais em momentos diversos.
Concluindo, é importante que o nível da música na adoração seja levado a sério. Além
de escolher músicos capacitados para liderar a área de música, o pastor deve estudar a
filosofia musical adventista com a igreja. Afinal, em última instância, ele é o
responsável pelo louvor. E Deus merece o melhor. Em alguns casos, o problema não
está com o estilo musical, mas com a má qualidade da música ou da apresentação.
Música ruim, sem inteligência e emoção, desonra o Criador da música.
Referências:
1. Johannes Hatzfeld, “Music out of the Spirit of the Liturgy”, em Crvx et Cithara,
ed. Robert A. Skeris (Altotting: Verlag Alfred Coppenrath, 1983), p. 27. (voltar)
2. Hans Ulrich Steymans, “Traces of Liturgies in the Psalter: The Communal
Laments, Psalms 79, 80, 83, 89 in Context”, em Psalms and Liturgy, ed. Dirk J.
Human e Cas J. A. Vos (Londres: T&T Clark International, 2004), p. 168.
(voltar)
3. J. Kenneth Kuntz, “Grounds for Praise: The Nature and Function of the Motive
Clause in the Hymns of the Hebrew Psalter”, em Worship and The Hebrew
Bible, ed. M. Patrick Graham, Rick R. Marrs e Steve L. McKenzie (Sheffield:
Sheffield Academic Press, 1999), p. 182. (voltar)
4. Jörg Jeremias, “Worship and Theology in the Psalms”, em Psalms and Liturgy,
ed. Dirk J. Human e Cas J. A. Vos (Londres: T&T Clark International, 2004), p.
89. (voltar)
5. Georg P. Braulik, “Psalter and Messiah. Towards a Christological
Understanding of the Psalms in the Old Testament”, Psalms and Liturgy, ed.
Dirk J. Human e Cas J. A. Vos (Londres: T&T Clark International, 2004), p. 15,
16. (voltar)
6. Para Lutero, com exceção da teologia, não existe nenhuma arte que esteja no
mesmo nível da música. Por isso, numa carta para o compositor Ludwig Senfl,
datada de 4 de outubro de 1530, ele escreveu que “os profetas não fizeram uso
de nenhuma arte, exceto a música”; ao demonstrar sua teologia, “não a
apresentaram como geometria, aritmética ou astronomia, mas como música”
(ver Robin A. Leaver, “Luther on Music”, Lutheran Quarterly 20 [2006], p.
125-145). (voltar)
7. Ellen G. White, Educação, p. 39. (voltar)
8. Por exemplo, Basílio (c. 329-379) mencionou o canto de salmos em antífona
(carta 207, “To the Clergy of Neocaesarea”, em Saint Basil, Letters, v. 28 de
The Fathers of the Church [Nova York: Fathers of the Church, 1955], v. 2, p.
82-84). (voltar)
9. Lilianne Doukhan, In Tune With God (Hagerstown, MD: Review and Herald,
2010), p. 17. (voltar)
10. Roger Tomes, “Sing to the Lord a New Song”, em Psalms and Prayers, ed. Bob
Becking e Eric Peels (Leiden: Brill, 2007), p. 237-252. (voltar)
11. Robert T. Coote, “The Hymns that Keep on Going”, Christianity Today, março
de 2011, p. 30-32. (voltar)
12. Doukhan, p. 18, 19, itálico no original. (voltar)
13. Ibid., p. 21-23. (voltar)
14. Carl E. Seashore, Psychology of Music (Nova York: McGraw-Hill, 1938), p.
140-145. (voltar)
15. Doukhan, p. 109, 110. (voltar)
16. Ibid., p. 112, 113. (voltar)
17. Ibid., p. 111, 112. (voltar)
18. Ver Tompson Makahamadze e Fortune Sibanda, “‘Melodies to God’: The Place
of Music Instruments and Dance in the Seventh Day Adventist Church in
Masvingo Province, Zimbabwe”, Exchange 37 (2008), p. 290-309. (voltar)
19. Doukhan, p. 60, itálico no original. (voltar)
20. W. J. Porter, “Music”, Dictionary of New Testament Background, ed. Craig A.
Evans e Stanley E. Porter (Downers Grove: InterVarsity, 2000), p. 712. (voltar)
21. E. Wellesz, “Early Christian Music”, em Early Medieval Music Up to 1300, ed.
A. Hughes (Londres: Oxford University Press, 1955), p. 2. (voltar)
[*] – Entendemos que “certamente há uma necessidade contínua por hinos novos que
enriqueçam a experiência da adoração na igreja hoje. Porém, um estudo do “novo
cântico” na Bíblia, revela que essa frase não se refere a uma composição nova, mas a
uma nova experiência, que torna possível louvar a Deus com um novo significado.”
(BACCHIOCCHI, Samuele, O Cristão e a Música Rock, Biblical Perspectives, Berrien
Springs – Michigan, USA, p. 199). Para uma compreensão mais aprofundada do
significado da expressão “novo cântico” na Bíblia devemos fazer uma análise à luz das
palavras originalmente empregadas nos textos citados. Nas passagens de Salmos, a
palavra hebraica chadash não diferencia entre o conceito de “novo” do ponto de vista
cronológico e “novo” do ponto de vista experimental. Porém no grego da versão
Septuaginta, bem como no texto grego do Novo testamento em Apocalipse 5:9; e 14:2,
“a palavra grega traduzida por ‘novo’ é kainos, que significa novo em qualidade e não
em tempo. O segundo significado é expresso pela palavra grega neos. O Theological
Dictionary of the New Testament (Dicionário Teológico do Novo Testamento)
claramente explica a diferença entre as duas palavras gregas neos e kainos. ‘Neos é o
que é novo no tempo ou origem…. Kainos é o que é novo em natureza, diferente do
habitual, impressionante, melhor que o velho’.” (Idem, p. 200). Para um mais amplo
detalhamento da questão, sugerimos a leitura do capítulo 7 – "Música na Bíblia", da
obra de Bacchiocchi, citada acima. (voltar)
[***] – Deve ser destacado que a flauta, os címbalos e o piano não foram criados
especificamente para a música popular dançante e altamente amplificada, como é o caso
da bateria e da guitarra elétrica. Aqueles instrumentos têm um histórico na música
erudita e/ou folclórica, enquanto que estes foram projetados especificamente para as
necessidades musicais do jazz e do rock. (voltar)