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Sobre História Pública e o Ensino de História. Algumas Considerações
Sobre História Pública e o Ensino de História. Algumas Considerações
De História: Algumas
Considerações
About Public History and History Teaching:
Some Considerations
RESUMO
Este artigo1, inserido na perspectiva da História do Tempo Presente, discute as possibilidades de relação
entre o campo da História Pública e o Ensino de História partindo do entrecruzamento de um relato
de experiências desenvolvidas durante dois meses de estágio no Colégio de Aplicação da UFSC e das
proposições para a pesquisa e atuação no campo de Ensino de História, tais como Isabel Barca e Peter
Lee.
ABSTRACT
This article, inserted in the perspective of the History of Present Time, discusses the possibilities of
relation between the field of Public History and History Teaching starting from the crisscross of an
account of experiences developed during two months of internship at the College of Application of
UFSC and propositions for research and acting in the field of History Teaching, such as Isabel Barca
and Peter Lee.
keywords: Public History. History Teaching. Experience. Internship. History of Present Time.
* Graduado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Pesquisador Associado ao
Laboratório de Imagem e Som (LIS) da mesma instituição. igorlemoreira@gmail.com
1Este trabalho é fruto das reflexões desenvolvidas nas disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado I, II e
III e do período de acompanhamento da turma do Segundo Ano D do Ensino Médio no Colégio de Aplicação
da UFSC durante o ano de 2016.
MOREIRA, I.L.
DOSSIÊ
Introdução
aproximadamente 5 horas de estudo, João retorna para casa de ônibus. Como está sem
bateria no celular, resolve ler um livro de leitura obrigatória para a escola.
Chegando em casa, João almoça e assiste na televisão alguma série que está na
moda. Estuda, come, entra nas redes sociais e conversa com seus colegas que deixara
poucas horas atrás. João é um adolescente branco, heterossexual de classe média,
morador da capital de um estado brasileiro, vivendo um cotidiano “comum” para um
jovem de classe média, com as características citadas. Contudo, talvez sem se dar conta,
passou seu dia convivendo com diversos meios que lhe possibilitaram entrar em
contato com diferentes referências sobre passado. O programa de rádio que escutou
com os pais? Possui um momento de discurso de um deputado local que remete aos
discursos de Getúlio Vargas. O livro que leu no caminho para casa? Um romance de
Machado de Assis ambientado no século XIX. A série assistida durante a tarde? Uma
ficção que, mesmo sem deixar explícito, possui relações com a Europa Medieval.
O exemplo colocado acima possui relação com um regime de historicidade
presentista (HARTOG, 2013), que se caracteriza por um processo de sensações de
aceleração do tempo, de valorização do presente, e que convoca o(a) historiador(a) a
refletir sobre algumas questões importantes para nosso ofício. Entre estas, o Ensino de
História. Peter Lee (2011), ao colocar a impossibilidade de fuga do passado e
demonstrar como este é constantemente evocado e reconstituído narrativamente, por
exemplo, em nossas linguagens e expressões, abre espaço para a necessária reflexão
sobre a dimensão do público na história.
Partindo da leitura de Lee (2011), podemos considerar que a história ocupa-se
de estudar o passado de maneira racional para que este não se torne apenas um
instrumento de legitimação de atos no presente ou adquira o status de mestra da vida,
tal qual na Antiguidade, e, para tal, é necessário que o(a) historiador (a) reflita
igualmente acerca das dimensões do público na escrita e pesquisa historiográfica. Desse
modo, me parece fundamental a referência ao campo da História Pública e às discussões
possíveis entre esses estudos com o Ensino de História.
O objetivo principal neste texto é, através de minha experiência como estagiário
docente em História em uma turma do Segundo Ano do Ensino Médio no Colégio de
Aplicação da UFSC, refletir sobre as relações entre Ensino de História e a História
Pública. O estágio em questão foi realizado dentro da disciplina de Estágio Curricular
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objetos, e não mais com um campo de discussão sobre os modos de ensino. Esse
revisionismo colocado por Bergmann incluiu, entre outras questões, as discussões em
torno do papel da história na opinião pública e as representações nos meios de
comunicação, tal qual evoca Marialva Barbosa:
Ao fazer isso, cria-se no que diz respeito aos conteúdos e às
representações da imprensa uma tensão entre o papel que os meios
de comunicação se atribuem e o lugar que ocupam na história. Isso
porque, ainda que procurem fortalecer a imagem do imediatismo
daquilo que divulgam, fazem não só vários usos do passado, como
também se instituem como produtores de uma história do tempo
presente. Além disso, ao selecionarem fatias do mundo como se fosse
o que acontece no mundo, articulam discursivamente o que deve ser
considerado passado numa perspectiva futura. (BARBOSA, 2016. p.
122).
campo da História Pública possuem, por exemplo, igualmente uma preocupação com
relação às demandas dos públicos e à interação pública dos historiadores na sociedade.
Santhiago (2016) destaca que, desde a emergência e expansão das mídias no meio
social, uma série de escritores, jornalistas, cineastas, artistas, cantores, roteiristas e
biógrafos vêm ganhando espaço e conquistando uma forte audiência dos públicos em
geral contribuindo na formação de opiniões e visões de mundo. Em consonância a isso,
“a disseminação de recursos tecnológicos e, por fim, a popularização da internet, as
formas adquiridas pelo chamado ‘espírito público da história’ se multiplicaram, pouco
ou nada dependendo da instituição de um campo formalizado de debates.” (2016. p.
24).
Em outras palavras, o conceito de História Pública, e seus sentidos, apontam para
o campo de estudo onde algumas das principais preocupações seriam: as relações da
história feita com os públicos, a história feita pelos públicos, a história feita para os
públicos e as relações de história e o público (SANTHIAGO, 2016). Ou seja, aquela
primeira compreensão assinalada, onde haveria uma preocupação apenas com a
divulgação das produções acadêmicas, é criticada e alargada ao mesmo tempo em que
aponta para maiores possibilidades nas relações com o Ensino de História. Assim, é
possível refletir acerca da História Pública, ao considerar que todos os sujeitos, sejam
estes inseridos ou não no meio acadêmico ou escolar, formam “consciências históricas”
sobre o tempo no qual vivem, seu passado e seu lugar nesse meio.
Para refletir sobre as possibilidades da inserção das discussões sobre História
Pública e o Ensino de História (seja no campo da pesquisa ou da atuação docente)
apresentarei a seguir alguns exemplos de atividades desenvolvidas em sala de aula com
os alunos. As discussões realizadas até este momento serviram de base para a
proposição de tais atividades e serão melhor discutidas durante as próximas partes do
texto.
Uma experiência
Série1 Série2 Série3 Série4 Série5 Série6 Série7 Série8 Série9 Série10
19
19
12
11
2
1
1
Earned all this money Eu gosto da minha pequena herdeira com cabe-
But they never take the country out me lo de bebê
I got a hot sauce in my bag, swag E cabelos de afros
Eu gosto do meu nariz negro com narinas Jack-
son Five
Ganharam todo esse dinheiro
Mas eles nunca tiraram o meu país de mim
Tenho molho picante em minha bolsa, estilo
Durante a análise coletiva da turma, foi chamada a atenção para alguns elementos
como as referências ao grupo musical Jackson Five (grupo ao qual o cantor Michael
Jackson pertenceu durante sua infância), as questões de aparência e a utilização de
palavras como bama, usado como um termo pejorativo para trabalhadores negros que
se deslocavam do sul para o norte dos Estados Unidos. Durante a exibição da
performance em sala, os alunos observaram também o destaque dado às vestimentas,
que remeteriam aos panteras negras, e à formação de um X, remetendo ao militante
negro Malcom X.
Em seguida, trabalhamos o clipe da música Work da cantora Rihanna, buscando
relacionar as questões de negritude e representação das populações negras sob
influências latino-americanas, especialmente barbadenses, e africanas, para em seguida
discutirmos em conjunto a paródia da música da youtuber Kéfera. O vídeo em questão
também trouxe uma série de discussões nos veículos de mídia em função do namorado
da atriz, que aparece na paródia, ter possivelmente se pintado de negro e usado uma
“peruca” para se aproximar da aparência do Rapper Drake, presente no clipe da música
Work.
A utilização deste recurso possibilitou trabalharmos elementos da consciência
histórica, refletindo sobre referências trazidas pelos/as estudantes nos debates e suas
opiniões sobre o vídeo. Outro elemento fundamental foi, partindo de uma perspectiva
de discussão da atuação dos veículos midiáticos e dos meios digitais na vida pública,
utilizarmos da possibilidade de trabalho com fontes para além das textuais ou
imagéticos em sala de aula.
A utilização de outras linguagens foi pertinente também uma vez que, a partir do
questionário produzido anteriormente, observamos que fontes “mais recentes” como
as digitais (e os vídeos trabalhados se enquadram também neste tipo por estarem em
plataformas digitais e serem produzidos para estas) podem também ser consideradas
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sobre o passado a partir deste. Vemos o futuro com o que estamos vivendo. Neste
presentismo, defendido por Hartog, o passado e o futuro seriam produzidos
diariamente a partir de nosso maior horizonte: o presente, este valorizado e imediato.
Contudo, processos recentes criados também no século XX promovem novas relações
com as categorias de passado, presente e futuro. As mídias têm papel fundamental
nisso, assim como os movimentos de patrimonialização. Ao mesmo tempo, nosso
presente anseia por previsões, por tentar saber o que irá acontecer, previsões estas que,
com a “virada humana” que ocorre a partir das reformas religiosas, onde o Juízo Final
não mais é dado como certo em função de um centramento no homem e na religião,
parecem retornar enquanto um desejo cotidiano dado a uma curiosidade e um medo.
Definitivamente nossas noções de futuro, presente e passado enquanto categorias
temporais pertencem ao século XX, momento em que mais foram invocados,
especialmente o primeiro destes. Contudo, este futuro que foi o destacado entre os três
tempos, passa a perder lugar para um presente que se torna onipresente, um presente
que em si já está passado antes mesmo de ocorrer completamente. Neste sentido,
retomamos as ideias de patrimônio uma vez que, em um contexto de crise, este é
sempre um recurso e uma preocupação. Assim, podemos pensar que o presente se
estendeu, conforme aponta Hartog, tanto ao futuro quanto ao passado de maneira
ainda maior do que visto no século XIX ou períodos ainda mais distantes.
Ao partir da leitura de que vivemos em uma sociedade presentista, é preciso que
o historiador e a historiadora, tendo isso em mente, leve em consideração este regime
de historicidade em sua prática de ensino. Compreender tal questão é fundamental para
compreendermos, por exemplo, o motivo que levam nossos estudantes a questionar
“Porque aprender história se isso já passou?”. Nossa relação com o tempo, assim como
o contexto no qual cada sociedade se insere e as mudanças que a atravessam convocam
ao docente romper com metodologias ou espaços considerados “tradicionais” como o
uso do livro didático enquanto o guia fundamental de ensino para as escolas.
Para além de apresentar “O mundo no qual vivemos produz em abundância
diferentes recursos documentais que enriquecem a produção do saber histórico e
podem também tornar mais vivo, interessante e instigante o ensino da história.”
(DELGADO; FERREIRA, 2013. p. 27), a proposta de articulação entre História
Pública e Ensino de História possibilita refletirmos acerca da possibilidade de trazermos
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ainda mais o discente para o centro de sua formação. Significa trazer para a sala de aula
da dimensão do Público e da vida pública para debate. E, juntamente ao estudante,
refletir acerca do seu lugar social, da sociedade e estimular a este se observar enquanto
sujeito ativo em sua própria história e na produção historiográfica. É buscarmos
construir novas narrativas históricas em um sentido plural em que a memória do lugar,
a trajetória do estudante, seus referenciais e crenças, o país, o mundo no qual ele
pertence, as marcas culturais e sociais e as diversas temporalidades que atravessam o
sujeito sejam levadas em consideração.
As atividades relatadas, especialmente os momentos de debate sobre a paródia da
youtuber Kéfera, demonstraram não apenas a influência de diversos outros agentes na
formação da consciência histórica, atuando enquanto formadores de opiniões e no
espaço público, mas também na própria participação no cenário atual. Os debates sobre
a paródia foram enriquecedores na medida em que, partindo de Santhiago (2016), foi
possível discutirmos em que medida agentes diversos produzem conteúdo no espaço
público, sendo estes também públicos de suas produções.
Tal problemática foi destacável também na utilização e abordagem de linguagens
cinematográficas para estimular o debate. Nesta ocasião podemos pensar os elementos
da Didática da História, levantada por Bergamann (1990), ao problematizarmos filmes
produzidos no próprio presente dos alunos e que possuem papel fundamental na
formação das consciências históricas dos sujeitos. Retomando a obsessão pelo passado
e a mercadorização da memória a partir dos anos 1980 (HUYSSEN, 2014), podemos
relacionar o presente vivido com a atuação de múltiplos sujeitos na produção de
narrativas sobre a história, assim como a necessidade de atuação dos historiadores nessa
mediação (SANTHIAGO, 2016). Apontando então para uma outra possível relação da
História Pública com o Ensino de História.
Durante o período de estágio, tais questões foram fundamentais. A proposta de
partirmos da realidade e dos referenciais dos estudantes durante as atividades foi a de
buscarmos trabalhar com os pontos elencados por Ricardo Santhiago (2016) e que
comentamos inicialmente, destacando a centralidade e a importância dos estudantes
(interpretados como públicos atuantes) em sua formação.
Para que isto ocorra, a aprendizagem da História demanda um
processo de internalização de conteúdos e categorias históricas
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Assim, nosso principal objetivo foi justamente o de, partindo da ideia de formação
do discente e de seus referenciais, buscamos refletir acerca das aproximações entre o
Ensino de História na sala de aula e a dimensão Pública, tanto do estudante fora de sala
como da atuação deste na sociedade. Segundo Gelbcke (2014), é preciso que os/as
historiadores/as no Tempo Presente, em especial aqueles/as que atuam diretamente na
sala de aula, atravessem o trabalho com as referências externas e estimulem o(a) aluno(a)
a ser ela(a) mesmo(a) sujeito ativo em seu processo formativo, conforme coloca Isabel
Barca (2004). É necessário que se interfira nos mais diversos espaços e atente o
estudante para as possibilidades deste também atuar, refletindo sobre as diversas
produções e produzindo eles mesmos suas reflexões, colaborando não apenas em seu
processo de formação, mas também enquanto sujeitos críticos e ativos publicamente,
tendo estes conhecimento sobre sua condição enquanto ativos no processo narrativo
da história.
Referências
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