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Os diários de classe dos professores

Publicado em 03/12/2012 | 0 comentários


Autor(a): Miguel A. Zabalza

Escrever o próprio diário de classe é uma interessante atividade para o autoconhecimento e a melhoria do
trabalho dos professores. Constitui uma espécie de atividade formativa integral da qual resultam
importantes benefícios profissionais. O autor convida a compartilhar as reflexões a seguir sobre os diários de
classe.
Escrever seu próprio diário é a experiência de contar (o que você mesmo faz) e de contar-se a si mesmo
(como duplo ator: o ator que realiza as coisas contadas e o ator que as conta). Experiência narrativa que
posteriormente tornará possível uma nova experiência, a de ler-se a si mesmo com atitude benévola ou
crítica, mas tendo a oportunidade de reconstruir o que foi a atividade desenvolvida e nossa forma pessoal
de vivê-la.
Escrever sobre o que fazemos e ler sobre o que fizemos permite que nos coloquemos a certa distância da
ação e vejamos as coisas e a nós mesmos em perspectiva. Imersos como estamos no dia a dia, nessa atividade
frenética que nos impede de parar para pensar, planejar, rever nossas ações e nossos sentimentos, o diário
é uma espécie de oásis reflexivo. É como retroceder nosso vídeo para pausar a imagem e assim poder rever
um pouco mais lentamente essas cenas de nossa jornada que, na azáfama constante da ação na classe,
passaram um pouco despercebidas ou simplesmente as vivemos de passagem.
Uma jornada de trabalho em que tivemos de responder a muitas demandas (quase sempre de forma
simultânea) passa ao acaso. As marcas que deixa são muito débeis, geralmente meras sensações de ter
trabalhado muito, de ter tido uma jornada tensa, ou simplesmente de ter sobrevivido. E isso ao final do dia.
Em poucos dias, tudo desaparece; as lembranças e as imagens que restam são muito vagas e imprecisas para
merecer atenção. Porém, se registramos por escrito nossa experiência, o diário será sua "embalagem", a
garantia de sua conservação. E poderemos voltar a ela quantas vezes quisermos para relê-la e reler-nos. E
também para refletir a respeito.
Isto é o que pode proporcionar um diário. Além do prazer intrínseco de escrever (a que se acrescenta o fato
de que se escreve sobre si mesmo, que é sem dúvida nosso argumento mais caro), o diário constitui um
processo através do qual se vai acumulando informações sobre o dia a dia. Informações que serão valiosas
para poder rever todo o período narrado.
Quando convém escrever o diário?
Em princípio, não deveríamos preocupar-nos demais em buscar motivos especiais para escrever um diário.
Qualquer oportunidade pode ser boa para escrever. Trata-se de uma atividade humana muito gratificante.
Infelizmente, para muitas pessoas tornou-se um sacrifício, seja pela carência da técnica básica para fazê-lo,
seja pela falta de tempo disponível. Sem dúvida, os que se encontram nessa situação estão perdendo uma
fonte extremamente rica de experiências e de satisfações pessoais.
Quando pode ser interessante escrever o diário? Em minha opinião, o diário pode ser um instrumento de
alto valor formativo (afinal, estamos sempre nos formando e tudo deve servir para isso) nas seguintes
ocasiões:
a) Quando queremos ou precisamos tomar um pouco de distância das coisas que estamos fazendo ou da
situação que estamos vivendo e refletir sobre ela.
De modo geral, o ensino (como também outras profissões que envolvem o trato com pessoas) é muito
envolvente. O pessoal e o profissional acabam misturando-se ou, no mínimo, contaminando-se
mutuamente. E, quanto mais vulneráveis forem os alunos, tanto mais forte e intenso torna-se o
envolvimento pessoal (trabalho com alunos com deficiência, com crianças muito pequenas, com sujeitos em
condições de risco, etc.).
Muitas vezes, precisamos tomar um pouco de distância de nossa própria atuação para vê-la em perspectiva
e de uma forma mais consciente (mais controlada por nossa capacidade de ver as coisas). É a capacidade de
"descentrar-se" que se costuma solicitar dos atores para que consigam construir seu personagem de maneira
mais adequada à realidade. O diário oferece essa oportunidade. Depois de um dia imersos de corpo e alma
na ação de ensinar, e sem muito tempo nem energia para dar esse passo atrás e situar-nos em posição de
observadores de nós mesmos, paramos e olhamos para trás, reconstruindo no diário o que foi nosso dia.
Observamos a nós mesmos e contamos o que nos parece relevante de nossa intervenção. Essa reconstrução
da jornada ou de alguns momentos possui a qualidade do distanciamento em um duplo sentido: porque se
trata de reconstruir algo que já passou e porque se trata de narrá-lo por escrito (converto a experiência e as
vivências em um tema narrativo, algo que construo através de palavras). Nesse duplo sentido, o diário
permite à pessoa distanciar-se da situação narrada e recuperar uma certa objetividade e um certo controle
sobre esta.
Nos casos extremos, o diário exigiria alguma forma de supervisão externa (o que também se pode conseguir
através do diário quando este é revisto e discutido com alguém que nos serve de ponto de referência
externo). Mesmo que isto não ocorra, o diário permite-nos "contar-nos", pôr para fora os demônios que às
vezes se acumulam dentro de nós e conseguir que aquilo que eram vivências e sentimentos nem sempre
controláveis passem a ser "narração", isto é, algo externo e construído por nós mesmos.
b) Quando se quer depurar um pouco o próprio estilo de trabalho.
Toda técnica de documentação tem como objetivo a ideia da depuração das próprias práticas. A
documentação (seja gravada em áudio ou vídeo, seja escrita, seja configurada em algum tipo de produto
realizado) fixa em um suporte a atividade analisada e confere-lhe objetividade e permanência. O que antes
eram ideias, experiências, atividades, impressões, etc. (isto é, realidades nem sempre visíveis e de fácil
acesso) converte-se, através da documentação, em realidades visíveis, acessíveis e que sustentam a análise
Isto também ocorre com o diário. Ao longo da narração, nós mesmos vamos recuperando imagens e
lembranças que passaram despercebidas. E, ao incorporá-las ao texto escrito, elas vão completando o
sentido dos fatos contados ali. Quando acaba de escrever suas impressões do ocorrido nesse dia,
seguramente a pessoa tem uma visão mais clara e completa de si mesma. E, como a narração converte-se
em algo visível e permanente, pode-se voltar a ela para revê-la e analisá-la.
O diário oferece-nos uma dupla perspectiva de nosso trabalho: uma perspectiva sincrônica e pontual (o que
se conta em cada unidade narrativa, o que ocorreu nesse momento recolhido em cada parte do diário) e
uma perspectiva diacrônica (o modo como vão evoluindo os fatos narrados e nossa própria visão e
experiência). Dessa maneira, as pessoas que escrevem o diário terão a oportunidade de conhecer melhor
tanto o que vai ocorrendo no dia-a-dia (ou em cada uma das unidades do diário: que atividades, que
impressões, que problemas, que pessoas, etc.) quanto a forma como isso evolui ao longo de todo o período
recolhido no diário (como eu fazia as coisas no início e como fui mudando; quais eram os problemas que me
preocupavam mais quando comecei a escrever o diário e como fui alterando minha perspectiva sobre eles
com o passar do tempo; como me sentia quando começou a aventura de escrever o diário e como fui me
sentido à medida que o processo avançava...).
Enfim, o diário torna-se um material extremamente valioso de autoconhecimento.
c) Quando se sente que está sofrendo muita pressão e/ou acumulando muita tensão interna.
Outra situação em que é muito oportuno escrever o diário é quando sentimos que estamos acumulando
muita tensão pessoal. As razões podem ser muito diversas (desde problemas pessoais até profissionais,
desde situações muito pontuais até períodos em que as coisas não vão indo bem para nós, etc.), mas o
resultado é similar: sentimo-nos a ponto de explodir e damo-nos conta de que nossas respostas e nossas
reações são desproporcionais.
O diário oferece-nos um mecanismo de catarse protegida. Permite-nos abrir um canal de escape da tensão
interna por meio da escrita. E, na medida em que ao escrever reelaboramos racionalmente os conteúdos
emocionais, isso nos permite ir controlando de maneira autônoma nosso estado emocional. Por outro lado,
trata-se de uma atividade realizada em um contexto muito pessoal e autocontrolado. Ninguém tem de ler o
que escrevemos, nem o fato de contar o que nos ocorre submete-nos a um possível julgamento, crítica ou
deterioração de nossa imagem por parte dos outros. No fundo, contamos para nós mesmos, estabelecendo
uma espécie de conversa terapêutica com nós mesmos.
O diário não cura nem resolve os problemas, mas ajuda a controlá-los. O que nos pressiona na esfera do
emocional (menos controlável) é recodificado por meio da escrita e torna-se um material filtrado
racionalmente (e, portanto, mais fácil de ser controlado e inclusive modificado).
A pressão profissional aumenta quando se está participando de alguma pesquisa, de alguma avaliação ou de
algum processo em que seja importante documentar os passos que vão sendo dados, bem como a evolução
das diversas dimensões do trabalho em curso (incluída nossa própria situação pessoal). Também nesses
casos é importante implementar o diário como meio de documentar o processo que se está seguindo,
sobretudo nos casos em que o processo realizado tem um sentido formativo, e não apenas de mera pesquisa.
Nesses casos (processos de pesquisa-ação, processos de avaliação com orientação formativa, processos de
aplicação de alguma inovação, etc.), é muito importante documentar o processo para identificar as
dificuldades encontradas, os procedimentos utilizados, as reações produzidas por parte dos diversos
participantes, etc. Do ponto de vista pessoal, interessa muito saber como se enfrentou o processo, quais
foram os bons e os maus momentos por que se passou e que tipo de impressões ficaram ao longo da
atividade desenvolvida.
e) Como oportunidade de aprendizagem (nos processos de formação).
Nos contextos de formação, os diários dos estudantes são particularmente importantes (na minha opinião
são evidentemente necessários) quando eles devem enfrentar suas aprendizagens práticas ou quando estão
diante de situações reais de aprendizagem profissional ou pessoal (práticas de campo, intercâmbios
internacionais, atuações em ONGs, tutoria para estudantes mais jovens, participação em seções clínicas,
participação em pesquisas, etc.). Nesses casos, o diário torna-se um instrumento que possibilita racionalizar
a experiência e tirar o máximo partido dela: mediante a narração, pode-se iluminar todo o processo seguido
pelo estudante em formação, tanto no que diz respeito às suas atuações quanto às suas vivências pessoais
(suas expectativas, seus medos, suas satisfações, o tipo de atitude que adota diante da atividade, etc.). O
diário também se mostra muito importante para que os estudantes possam reconstruir seu estilo de
trabalho pessoal: como organizam sua jornada, como planejam o trabalho, que estratégias de estudo
adotam, que tipo de atitudes vão desenvolvendo com relação às disciplinas, ao curso, à universidade e a
seus professores, etc.
Enfim, como se pode ver, é interessante escrever o diário quando desejarmos ou julgarmos conveniente ir
recolhendo dados ou impressões sobre o nosso trabalho, ou sobre os momentos que estamos vivendo, a fim
de poder voltar a eles em outro momento e analisá-los com tranquilidade (sozinhos ou acompanhados por
alguém que nos ajude a construir uma imagem mais completa da situação a partir da narração). Todas as
situações a que nos referimos são particularmente propícias para os diários. Em todos esses casos (e, com
certeza, em muitos outros que não são mencionados aqui), os professores - e qualquer outro profissional -
que se encontrem em situações parecidas podem beneficiar-se enormemente da potencialidade expressiva
dos diários.
Miguel A. Zabalza é professor da Universidade de Santiago de Compostela.
E-mail zabalza@usc.es
Para Saber Mais
ZABALZA, M. Qualidade em educação infantil. Porto Alegre: Artmed, 1998
PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício do professor: profissionalização e razão pedagógica. Porto
Alegre:
Artmed, 2002.
Artigo originalmente publicado na Pátio - Revista Pedagógica nº 22, julho/agosto 2002

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