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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE DIREITO

Laura Brandão Osório Silva

TRABALHO DE ANTROPOLOGIA NO DIREITO: O ATO COGNITIVO


DO ESCREVER

Orientador Dr. Ronaldo Lobão

Niterói

2021
INTRODUÇÃO E METODOLOGIA

O trabalho do ato cognitivo do escrever foi proposto por meio de duas etapas
centrais e uma etapa opcional, as quais tiveram como fundamento a análise da tentativa
de homicídio ocorrida no dia 23 de janeiro de 2013 no Mercado do Peão, localizado no
Município de Uiramutã-Roraima - envolvendo Élcio da Silva Lopes, Valdemir da Silva
Lopes, Mozarildo Ribeiro e Antônio Alvino Pereira - a partir dos julgamentos
realizados pelo Sistema de Justiça Formal e pelo Sistema de Justiça dos indígenas
Macuxi.

Na primeira etapa, a fim de alcançar uma compreensão inicial acerca do caso,


realizei a leitura de um compilado de textos: o Laudo Antropológico do processo
judicial, o documento da Ação Penal de Competência do Tribunal do Júri, e a ATA da
decisão do povo Macuxi. Em conjunto com as leituras, assisti ao vídeo sobre o Tribunal
do Júri realizado no Centro Comunitário Maturuca na Terra Indígena Raposa Serra do
Sol.

Obtendo um panorama geral da narrativa na primeira etapa, na segunda etapa,


busquei descrever, seguindo a proposta do docente, os aspectos centrais do Sistema de
Justiça do Estado brasileiro e do Sistema de Justiça Macuxi, em uma perspectiva
comparativa contrastiva. Nesse sentido, as formas de proceder e a compreensão dos
elementos jurídico/legais desses sistemas serão expostas a partir do estudo sobre as
decisões redigidas no documento da Ação Penal de Competência do Tribunal do Júri e
na ATA da decisão do povo Macuxi, que demonstram, respectivamente, a interpretação
da Justiça do Estado e da Justiça dos povos Macuxi referente ao caso criminal ocorrido
no Mercado do Peão. Para complementar, incorporando elementos introduzidos pela
leitura recomendada do texto “Comparação e interpretação na antropologia jurídica” de
Luís Roberto Cardoso de Oliveira, buscarei identificar as dimensões situacionais, ou
seja, os “tipos-ideais”, propostos por Max Weber, bem como os tipos de solidariedades
sociais, definidos pelo sociólogo Émile Durkheim, presentes no contexto de cada um
dos sistemas de justiça examinados.

Por fim, na última etapa, tendo como base o quadro comparativo apresentado no
texto de Antoine Garapon e Ioannis Papadopoulos, entre o Tribunal do Júri norte
americano - representativo do modelo da Common Law - e o Tribunal do Júri francês -
representativo da Civil Law - irei apresentar alguns aspectos que pude perceber desses
modelos sendo manifestados nos Sistema de Justiça do Estado e no Sistema de Justiça
Macuxi.

DESELVOLVIMENTO E CONCLUSÕES

Primeiramente, após realizar a etapa inicial e obter um panorama geral acerca do


crime cometido contra a vida de Antônio e as motivações culturais que envolveram o
caso - a partir dos diferentes relatos e perspectivas apresentados no documento - foi
possível concluir que a associação de Antônio ao Kanaimé, por parte de Élcio, Valdemir
e Mozarildo, devido a uma série de acontecimentos antecedentes e a fatores
comportamentais e do fenótipo de Antônio, foi o fator determinante para a prática do
eventual ilícito. Nesse sentido, elementos como a ocorrência recente da morte de
parentes dos réus e da testemunha sob circunstâncias não esclarecidas na Comunidade
da Enseada, além de características próprias da vítima, como a cor de pele e o tipo de
musica apreciado, teriam permitido a visualização da temida figura do Kanaimé em
Antônio, de forma a explicar a tentativa de homicídio como um ato representativo de
defesa por meio da eliminação de um perigo iminente na perspectiva dos indígenas
Macuxi.

Partindo para a leitura e análise da Sentença Tribunal do Júri, realizado pelo


Poder Judiciário de Roraima, percebi que as consequências dos atos lesivos cometidos
contra a vida de Antônio, por Élcio e Valdemir, foram avaliadas apenas pelo teor
factível, por meio de quesitos processuais e formais como a presença de antecedentes
criminais e a culpabilidade. Nesse viés, a fala de uma das advogadas da defesa, quem
cita o uso da legítima defesa contra a figura do Kanaimé durante sua atuação no
Tribunal do Júri, ilustra esse uso do tecnicismo legislativo dentro da comunidade. Ao
final da sentença, ambos os réus sofrem punições, porém não são estabelecidas sanções
à vítima ou à testemunha devido a alguma eventual participação na ação, como ocorrido
na sentença dos povos Macuxi.

Assim, no sistema de Justiça do Estado Brasileiro, a partir do procedimento do


Tribunal do Júri, realizado na ocorrência de um caso de crime doloso contra a vida, o
resultado do desfecho do caso é determinado a partir da Lei, já que o senso de justiça
nesse sistema, na perspectiva da dicotomia fato-lei, tem a lei como o consenso de fato.
Dessa forma, as autoridades legitimadas pelo estado como promotores e defensores
públicos, procederam ao julgamento a partir da tipificação de tal ato no ordenamento
jurídico.

Desse modo, nota-se que a prática do direito na comunidade apenas pelo


enquadramento das ações tidas como crimes nas normas, de certa forma, reduz a
complexidade dos fatos, já que há uma menor preocupação relacionada à inserção dos
atos no contexto cultural dos réus diante da predominância da Lei para a formulação da
sentença condenatória. Assim, pode-se afirmar que a Justiça do Estado brasileiro possui
características referentes à solidariedade orgânica, tendo em vista o teor punitivo do
Direito e a derivação da “coesão social” dos códigos e regras de conduta expressos em
normas jurídicas - sendo possível citar também a presença de uma menor consciência do
coletivo, típica dessa solidariedade, no contexto de aplicação da justiça no sistema do
Estado. Em conjunto a esse fator teórico, a justiça realizada pelo Estado Brasileiro pode
também ser visualizada como um tipo-ideal de dominação legal racional, já que a
intervenção na comunidade partiu da ideia de legitimação burocrática designada pela
competência funcional do poder estatal de exercer uma disciplina produzida unicamente
pela norma, pelo teor legal “que deve ser seguido”.

De forma bastante distinta, a partir da análise da ATA dos povos Macuxi e da


fala da liderança indígena Júlio Macuxi, no vídeo do Tribunal do Júri, pude perceber a
forma de proceder aos julgamentos no Sistema de Justiça Macuxi mais voltada para a
realidade dos fatos no contexto social. Iniciando com um panorama geral obtido sobre a
realização de justiça entre esses povos originários, na comunidade as acusações são
impostas pelas lideranças durante reuniões onde o respeito é fortemente valorizado nas
discussões para a conclusão das decisões. Não há no julgamento, portanto, a figura do
acusador e do defensor, como ocorre no direito brasileiro - motivo o qual levou a grande
estranhamento por parte dos Macuxi ao presenciar o embate, tido como agressivo e
desrespeitoso, entre o Ministério Público e o promotor no Tribunal do Júri. Ainda no
que tange ao julgamento, Júlio afirma que esse pode ocorrer em três instâncias: a
primeira instância seria na comunidade, na segunda, o conflito seria levado ao polo
(espécie de centro das várias comunidades) e na terceira e última instância seria
proferida a decisão final, caso fosse necessário, na coordenação regional.

Em relação às penas proferidas na comunidade indígena, novamente observei


divergências significativas quando comparado ao modelo de Justiça do Estado brasileiro
– baseado na pena de reclusão, o encarceramento em massa. Os povos Macuxi
exprimem múltiplas e variadas penalizações (penais, civis, políticas e administrativas),
como o isolamento da família e a participação em trabalhos regionais, sobre um mesmo
delito. Além disso, como explica Júlio, há uma preocupação em delimitar sanções que
possuam o propósito de fazer com que o punido seja, de fato, reintegrado como membro
da comunidade e em considerar e auxiliar as famílias do condenado e da vítima nesse
processo, diferente do ocorrido no Sistema de Justiça do Estado Brasileiro - voltado
unicamente para a aplicação de penas sem ponderar as suas consequências.

Abordando mais especificamente acerca da interpretação dos Macuxi no


julgamento do crime de tentativa de atentado à vida de Antônio, envolvendo Élcio,
Valdemir e Mozarildo, mais algumas características do sistema de Justiça desses povos
podem ser evidenciadas. De forma extremamente improvável na perspectiva da justiça
estatal, na sentença dos povos Macuxi, os réus, a testemunha e a vítima foram
condenados e sofreram penalizações. Ao final da decisão, formulada pelo acordo sobre
o fato e protelada pelas votações, Mozarildo, a testemunha ilesa frente ao julgamento do
tribunal estatal, obteve a maior punição pelos Macuxi, que reconheceram um
envolvimento maior da sua parte por considerarem que ele teria instigado a prática do
ato violento, e menor de Valdemir, quem lesou Antônio com um canivete. A vítima
também foi penalizada por ter bebido cerveja – bebida de branco- e posteriormente
participado da confusão, ato o qual seria condenável de acordo com a jurisprudência de
1977 da comunidade.

Após essa exposição é perceptível, no Sistema de Justiça Macuxi, que a solução


para os conflitos dentro da comunidade é proferida de forma particular, já que as
decisões sobre os conflitos são tomadas entre os membros da aldeia a partir de acordos
sobre os fatos analisados, de votações, caso necessário, que estabelecem as regras a fim
de buscar a harmonia no contexto comunitário. Nesse sentido, observamos um tipo
-ideal de dominação tradicional, referente ao estabelecimento da ordem social na sua
forma mais pura, em que a coesão da sociedade é realizado por meio das tradições
locais, dos hábitos da comunidade - já que o Sistema de Justiça Macuxi pauta as suas
decisões em favor das noções comuns de seu mundo social. Analisando as formas de
penalização desse sistema é evidente também um direito restitutivo e uma maior
consciência coletiva, característicos da solidariedade mecânica, proposta por Émile
Durkheim.

Por último, após a leitura do texto de Antoine Garapon e Ioannis Papadopoulos


para realização da terceira etapa, pude traçar algumas semelhanças entre os modelos dos
Tribunais abordados no texto e os sistemas de justiça analisados. Nesse sentido, a
cultura jurídica do Estado brasileiro enquadra-se no modelo da “Civil Law” tendo em
vista que o Direito é preexiste e, assim como as sentenças, é condicionado à legislações
escritas, possuindo também o poder das decisões centralizado nas instituições. Já a
cultura jurídica Macuxi estaria mais próxima do modelo da Common Law, uma vez que
as relações sociais que determinam o Direito, e não o Estado. Sendo assim,
características como a construção pela jurisprudência, ou seja, com base nas vivências
anteriores, e a possibilidade de todas as partes serem ouvidas, demonstram uma justiça
menos baseada em textos e amplamente voltada para o contexto social em que se insere
- com uma manifestação mais espontânea da verdade jurídica.

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