Você está na página 1de 291

Música: poética do sentido

Uma onto-logo-fania do real

por

Werner Aguiar

Tese de doutorado apresentada à


Faculdade de Letras da UFRJ
Pós-Graduação em Ciência da Literatura
Subárea de Poética

Orientador:
Prof. Dr. Manuel Antônio de Castro

Rio de Janeiro

2004
Folha de Aprovação

Música: poética do sentido

uma onto-logo-fania do real


!

Werner Aguiar

! Tese! submetida! ao! corpo! docente! da! Faculdade! de! Letras! da! Universidade!
Federal!do!Rio!de!Janeiro!8!UFRJ,!como!parte!dos!requisitos!necessários!à!obtenção!!
do!grau!de!Doutor.!
Aprovada!por:!
!
! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Manuel!Antônio!de!Castro!–!Orientador!
!
! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Emmanuel!Carneiro!Leão!
!
!
! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Luiz!Rohden!
!
!
! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Marco!Lucchesi!
!
!
! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Ronaldes!de!Melo!e!Souza!
!
!
! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Antonio!José!Jardim!e!Castro!
!
!
! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Márcio!dos!Santos!Gomes!
!
Rio!de!Janeiro!
2004!
ii

Ficha Catalográfica

!
!
!
!
!
!
!!Aguiar,!Werner.!
!
!!!!!!!Música:! poética! do! sentido.! Uma! onto8logo8fania! do! real! /!
Werner!Aguiar!–!Rio!de!Janeiro,!2004.!
!
!!!!!!!vii,!286!f.:!il.!
!
!!!!!!!!Tese! (Dourorado! em! Ciência! da! Literatura! 8! Poética)! –!
Universidade!Federal!do!Rio!de!Janeiro!8!UFRJ,!Faculdade!de!Letras,!
2004.!
!
!!!!!!!!Orientador:!Manuel!Antônio!de!Castro!
!
1. Música.!!2.!Poética.!!3.!Hermenêutica!e!filosofia!!4.!
Linguagem!!5.!Mito!
!!I.!Castro,!Manuel!Antônio!de!(Orient.).!!II.!Universidade!Federal!do!
Rio!de!Janeiro.!!Faculdade!de!Letras.!!III.!Título.!
!
!
iii

Dedicatória

Com amor

Para minha esposa,


Adriana Oliveira Aguiar,

e para meus filhos,


Igor Oliveira Augstroze Aguiar e
Andresa Oliveira Augstroze Aguiar

Pelo muitas vezes prolongado sacrifício e suporte nos tempos de presença ausente
iv

Agradecimentos

Aos meus pais,


especialmente à minha mãe, Ausma Augstroze Aguiar
pelos apoios diversos

A Antônio Jardim,
pelo irromper luminoso na obscuridade do caminho

Ao meu orientador,
Manuel Antônio de Castro
pela liberdade e generosidade intelectual

A Ronaldes de Melo e Souza


por Carl Kerényi e outras preciosidades

A Martin Heidegger,
pelo pensar poético

Á Faculdade de Letras da UFRJ e


ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura
por ensejarem a concentração em Poética, tão necessária ao
pensamento das artes em meio aos nossos dias de desertificação representacional

A Capes – UFRN
pelo apoio do PICD,
sem o qual o caminho seria desnecessariamente muito mais difícil

A todos que de alguma forma contribuíram no percurso do pensamento


entre o pensar poético e o poetar pensante
v

Índice

Resumo ........................................................................................................................ vi
Abstract ....................................................................................................................... vii
Introdução
Entre o pensar poético e o poetar pensante................................................................... 1
Capítulo I
A situação dominante da compreensão do real ............................................................ 6
Capítulo II
O originário como possibilidade essencial no horizonte do perguntar ....................... 53
Verdade como exatidão e correspondência............................................................ 55
A verdade como medida, identidade e representação ............................................ 63
A verdade e a causalidade técnica ......................................................................... 71
Verdade e falsidade – a relação alétheia e psêudos .............................................. 79
A relação alétheia – lógos ...................................................................................... 96
Capítulo III
Música e hermenêutica no horizonte do mito ........................................................... 112
Pensamento e hermenêutica: a articulação da compreensão .............................. 112
Hermes, hermenêutica e o limiar da unidade....................................................... 118
Musas, angelos e a relação hermenêutica............................................................ 124
Hermenêutica, compreensão e sentido ................................................................. 128
Música e Hermes: unidade do lógos .................................................................... 142
Hermes e Hermenêutica: a música como onto-logo-fania do real ...................... 156
Capítulo IV
Música e Memória .................................................................................................... 162
Verdade e Memória .............................................................................................. 162
Música e Memória ................................................................................................ 185
Capítulo V
Ser e Sentido ............................................................................................................. 200
Música e verdade .................................................................................................. 200
Música, pensamento, ser e sentido ....................................................................... 216
Conclusão
Entre questões e problemas ...................................................................................... 248
Apêndice I
Textos originais e versões consultadas ..................................................................... 254
Capítulo I .............................................................................................................. 254
Capítulo II ............................................................................................................. 254
Capítulo III ........................................................................................................... 259
Capítulo IV ........................................................................................................... 265
Capítulo V............................................................................................................. 268
Apêndice II
Alfabeto Grego ......................................................................................................... 270
Bibliografia ................................................................................................................... 271
Sites pesquisados .................................................................................................. 278
Índice Remissivo .......................................................................................................... 279
vi

Resumo

O inter-esse em refletir em torno da questão da música em sua dimensão

originariamente poética e instauradora de sentido não tem como objetivo estabelecer um

pretenso fundamento do que se manifesta no real a partir da atividade da música. Este

tipo de tentativa objetualizante não é diferente de tantas outras, como as das ciências

naturais e da própria filosofia em determinar a proveniência cronológico-causal de tudo

aquilo o que é e como é. Portanto, logo de início trata-se de tomar o cuidado de não

trilhar os cursos já preestabelecidos de uma ciência filosófica ou de uma filosofia da

ciência se quisermos in-star a e-stância em meio ao originário, isto é, se quisermos

percorrer as vias e des-vios daquilo que não cessa de originar-se porque não cansa de

retrair-se: o sentido do ser.

O sentido do ser se dá como sentido do real. Este dar-se do sentido não é o

resultado da conjugação operativa de valores positivos e/ou negativos, como se queira,

mas, antes e acima de tudo, a consideração da reunião do sentido mesmo (lógos) com

ser e não-ser, sua con-figuração em mundo e i-mundo, a própria indissociabilidade do

sentido daquilo que nele e por ele se põe e opõe. Em seu poetar pensante pelo e no

sentido da i-latência latente e da latência i-latente do ser, a música re-põe o inominado

do ser como força que re-percute as relações originárias com o próprio homem e a

phýsis. Pois, em toda re-percussão da música, percute a concretização de toda invenção

e de toda criação poética do sentido. Nesse percutere a música poetiza o sentido de caos

e cosmos, abala o homem de suas pre-posições e co-move-o a lançar-se no aberto das

possibilidades de ser e não-ser.


vii

Abstract

The interest in reflecting around the question of music in its originary and

instaurating poetic dimension of sense does not aim at establishing a so-called

fundament of what is manifest in real having the activity of music as the starting point.

This type of objectifying attempt is not different from so many others, like the ones

from natural sciences and from the very own philosophy, attemps which define the

chronological-causal provenance of what is and how it is. Therefore, right from start we

care not to undertake the pre-established paths of a philosophical science, neither of a

philosophy of science if we are to in-sist on the stance in the midst of the originary, if

we wish to roam the ways and deviations of which does not cease to originate because it

does not exhaust of conceal itself: the meaning of being.

The meaning of being bestow itself as the meaning of the real. This self

bestowing of meaning is not the result of some kind of combination of positive or either

negative values, but before anything else it is the consideration of the very meaning’s

reunion (lógos) to being and not-being, its con-figuration as world and non-world, the

indissociability of meaning from that which in it and through it pose and o-ppose. In its

thoughtful poetizing for and trough meaning of concealing unconcealment and of

unconcealing concealment of being, music re-pose the innominate of being as the

strength which re-sound the originary relations with man and phýsis. For in every re-

percussion of music, it also percusses the concretion of every invention and creation of

poetics of meaning. In this percutere music poetizes the meaning of chaos and cosmos,

strikes man from his pre-positions and co-moves him to cast himself to the openness of

the possibilites o being and not-being


Introdução

Entre o pensar poético e o poetar

pensante

Os caminhos de pensamento aqui trilhados percorrem um terreno cuja topo-logia

oferece mais do que simples obstáculos. O que se oferece nessa topo-logia não são

meros acidentes que, por mais intransponíveis que pareçam, ainda assim poderiam ser

mapeados a qualquer instante. Para o caminhar do pensamento, a topo-logia do terreno

nunca é algo que impede ou atrapalhe seu movimento e sua pro-gressão. Pois, o pro-

gresso do pensamento continuamente in-gressa naquilo que a própria topo-logia

manifesta e, por isso, dá-se sempre o seu re-gresso ao lugar de origem. Assim, o pro-

gresso do pensamento na topo-logia do terreno, ao contrário do que se está tão

habituado em todos os empenhos de representação e em todos os desempenhos do

cálculo, nunca se dá numa sucessão linear de causas e efeitos, mas implica sempre, em

certo grau, um recuo do passo para aquém e para além do que se apresenta como e-

vidente.

Talvez seja esta a maior dificuldade de se pensar em meio à aridez e à

proliferação de tantos sistemas de funcionalidade e de representação, de objetividade e

de subjetividade. Talvez seja esta a grande dificuldade, a de que o pensamento se dê ao

tempo e à serenidade próprios de toda questão digna de ser pensada. Por isso, o caminho

mais difícil não é aquele que articula e operacionaliza incontáveis representações e seus

sistemas de cálculo, mas sim aquele que ainda assim pretende, num resguardo

meditativo, sobreviver à asfixia das mais diversas razões suficientes.


2

O que aqui se resguarda no pensamento que medita como topo-logia de seu

caminhar é a música. Falar sobre música é algo que cada vez mais se institucionaliza e,

ao mesmo tempo, se trivializa. A institucionalização dos discursos representacionais a

respeito da música até mesmo implica, em certa medida, na sua trivialização, pois não é

outra a função de todo discurso demonstrativo senão a uniformização de todo

comportamento frente ao que se pro-posiciona como seu objeto de estudo. Por isso, em

todo discurso, seja ele acadêmico ou diletante, fala-se a respeito da música

considerando-a sempre desde uma perspectiva externa e acima dela. Com que

autoridade e através de que tipo de conhecimento podem esses discursos se constituir,

isso diz respeito à presunção que graça em toda parte de que são mais capazes e mais

bem equipados para estabelecer a verdade da música, aquilo que em toda parte e em

todo tempo entra num acordo sobre ela.

O resguardo meditativo do pensamento que caminha pela topo-logia da música

aconselha, entretanto, que somente a música pode estabelecer um discurso sobre si

mesma, somente ela, em seu dizer poético, possui a autoridade de pronunciar-se do

modo apropriado. A dificuldade do pensamento em meio a tanto ruído e a tanto falatório

consiste em escutar as palavras inauditas que a música diz e nomeia poeticamente. Mas

o que é isto que a música poeticamente diz e nomeia? Nomear é algo que depende do

nome. Numa experiência mais antiga do pensar meditativo, nome se diz nomem, ónoma

e contém a raiz gno, donde provém a palavra gnósis, uma das palavras gregas para

conhecimento ou saber.1 Nomear, portanto, diz o mesmo que tornar conhecido. Desse

modo, o que a música diz e nomeia, desvela o que e como o que ela diz é experimentado

e preservado em sua presença. Nomear desencobre e revela, permite que nesse

1
Cf. Autenrieth, G. An homeric dictionay. Projeto Perseus.
3

desencobrimento ocorra uma experiência. Por isso, o nomear que a música diz conduz à

memória. É que a palavra grega para nome – ónoma – é uma assimilação de enuma,

cuja redução aponta para o radical mn, como no ablativo latino nomne. Esse radical

propagando-se através de *énomnos origina as palavras gregas anónimos e nónimnos,

palavras que nomeiam o que é sem nome2.

Ora, esse mesmo radical dá origem tanto à memória e às musas, como por

conseguinte, à música. Na experiência da linguagem a música é, portanto, co-partícipe

com musas e memória tanto da nomeação que torna conhecido e desencoberto, como

aquela que mantém em reserva, sem nome e encoberto. O nomear que a música

pronuncia é um dizer que revela e que ao mesmo tempo vela. Escutar o que a música diz

é a tarefa do pensamento que medita o mistério do que se dá e ao mesmo tempo se

retrai. Na tensão recíproca de dar-se e retrair-se o pensamento não somente caminha

pela topo-logia mais difícil, mas aí mesmo encontra o solo mais fértil.

Mas, então, se somente a música é capaz de dizer poeticamente o que ela diz,

afinal, que necessidade pode aqui justificar suficientemente o presente caminho do

pensamento? Em que pese todas as funções e dis-funções im-postas, pro-postas e justa-

postas ao pensamento na longa tradição da Cultura Ocidental, o pensamento apenas

escuta o poetar pensante da música na expectativa dele mesmo se tornar, de um outro

modo, um pensar poético, para aí também, com a música, com-por a fulgurância do real

desde um apelo do mistério.

Assim, a topo-logia que o pensamento aqui segue é aquela que se abre e se dis-

põe entre o pensar poético e o poetar pensante. Como tal, o caminho não pretende tomar

a responsabilidade de um exame ôntico da música na tentativa de estabelecer seu status

2
Cf. Pokorny, p. 321. In: Database query to Indogermanisches Etymologisches Woerterbuch.
4

correto do ponto de vista científico. Pois, o pensamento que escuta o dizer da música

não delibera sobre ela como um espécime para experimentos e para o trabalho

científicos. A escuta faz questão, então, de preservar o âmbito poético que a música

instaura. Mas que âmbito é esse? Afinal, o que é que a música instaura?

Certamente a música não fabrica coisas que serão muito úteis à humanidade,

muito embora seja crescente o número de aplicações que as mais variadas disciplinas

científicas para ela professam. De certo que se pode a todo instante especular e

especificar sobre esta ou aquela função da música e de suas obras. De certo, porém,

também é o fato de que a música vive a transcender tudo que lhe é imposto e lhe é

alheio. Por isso, nunca há realmente a garantia de que com a música se possa fazer isto

ou aquilo. Mas, se não é possível obter uma garantia total com a música, cabe

novamente perguntar, afinal, o que é que a música dá?

A música certamente dá o que pensar e com isso ela co-responde a necessidade

do pensamento. E o que pensa o pensamento? A única coisa possível ainda a ser

pensada: o sentido. Mas, é preciso salientar, o pensamento não pensa no sentido de

calcular, mas sim no sentido de escutar. Por isso, o sentido do que a música diz e

nomeia também não pode ser pré-disposto pelo pensamento. Este é que se pré-dispõe a

escutar o sentido. E, o que é sentido?

Difícil responder, ainda mais quando na torrente das reações mecanizadas e

automatizadas da modernidade e da pós-modernidade o homem se encontra sempre no

afã de assumir o controle do real e determinar através do cálculo o seu asseguramento.

Daí novamente que, para se nutrir do solo fértil que se abre e se dis-põe entre o pensar

poético e o poetar pensante, o pensamento precisar da serenidade do passo atrás e in-

sistir em se dis-por na escuta. De que? Do sentido. Que sentido? Do sentido que a


5

música poetiza e nomeia. Não é o sentido que a estética enquanto disciplina filosófica

determina, mas sim o sentido que a própria música poetiza e nomeia. Certamente, não é

difícil para ninguém compreender que a música faz sentido. Fazer aqui é

originariamente pensado como pro-duzir. Os gregos nomearam isso com a palavra

poiésis. A música diz e nomeia o que o pensamento quer escutar: uma poética do

sentido. É preciso, pois, silêncio para se escutar o sentido que a música poetiza. Afinal,

o pensamento não quer deliberadamente colocar palavras na nomeação que a música

diz, mas escutando o sentido que a música poetiza, ouvindo o lógos que nela e com ela

se institui, o pensamento também almeja o dizer de uma linguagem originária e assim,

permanecendo próximo a poesia, deseja estar junto à origem. Pois, “dificilmente o que

habita perto da origem abandona o lugar.”3 Eis a verdadeira topo-logia do pensar.

3
Hölderlin, A migração, IV, 167. Apud. Heidegger, 1990:63.
Capítulo I

A situação dominante da compreensão do

real

Independentemente de todas as distinções da escrita, diria


que, para ser compreendido, cada escrito exige uma espécie de
ouvido interior.

Gadamer, 2002:240-1.

Mesmo que hoje se fale e se pense a respeito do fim ou da superação da

metafísica, vive-se por toda parte sob um determinado modo de compreensão do real

cujo desdobramento mais evidente é o que se chama de cultura planetária científica e

tecnológica. Esse desdobramento é a evidência mais contundente do apogeu e da

plenitude da metafísica. “A metafísica cumprida é, no seu sentido mais plano, a técnica

e a instrumentalização do mundo”.4 Compreende-se a metafísica aqui como o modo

preponderante de operar do intelecto no transcurso da Cultura Ocidental que busca

através de bases lógicas e racionais estabelecer o fundamento da totalidade dos entes.

Esse modo de operação intelectual se encontra identificado com a filosofia tal qual esta

se apresenta na tradição ocidental e possui um caráter bastante específico de

compreender o real: busca encontrar o fundamento da totalidade dos entes para

estabelecê-lo como conceito. Este deve permitir explicar a realidade na medida em que

se passa então a operar uma adequação do real aos seus parâmetros. As evidências da

cultura planetária plena de metafísica estão em toda parte.

Fim é, como acabamento, a concentração nas possibilidades supremas. Pensamos


estas possibilidades de maneira muito estreita enquanto apenas esperamos o desdobramento

4
Vattimo, 1989:92.
7

de novas filosofias do estilo até agora vigente. Esquecemos que já na época da filosofia
grega se manifesta um traço decisivo da Filosofia: é o desenvolvimento das ciências em meio
ao horizonte aberto pela Filosofia. O desenvolvimento das ciências é, ao mesmo tempo, sua
independência da Filosofia e a inauguração de sua autonomia. Este fenômeno faz parte do
acabamento da Filosofia. Seu desdobramento está hoje em plena marcha, em todas as esferas
do ente. Parece a pura dissolução da Filosofia; é, no entanto, precisamente o seu acabamento.
Basta apontar para a autonomia da Psicologia, da Sociologia, da Antropologia Cultural,
para o papel da Lógica como Logística e Semântica. A Filosofia transforma-se em ciência
empírica do homem, de tudo aquilo que pode tornar-se objeto experimentável de sua
técnica, pela qual ela se instala no mundo, trabalhando-o das múltiplas maneiras que
oferecem o fazer e o formar. Tudo isto realiza-se em toda parte com base e segundo os
padrões da exploração científica de cada esfera do ente.5

É algo muito ilustrativo alguém, em algum lugar pensar a respeito do fim da

metafísica como plenitude do modo de ser técnico-científico da contemporaneidade.

Pois, o que é pleno nesse tempo de completude metafísica é justamente a ausência do

pensamento enquanto livre abertura para o não-conhecido. Pois, plenitude da metafísica

significa dizer também que o pensamento se converte na operacionalização de tudo e de

todos conforme uma práxis inquestionada, de modo a pressupor o desalojamento da

possibilidade mesma do negativo enquanto possibilidade constituinte do real.

Não é necessário ser profeta para reconhecer que as modernas ciências que estão se
instalando serão, em breve, determinadas e dirigidas pela nova ciência básica que se chama
cibernética6.
Essa ciência corresponde à determinação do homem como ser ligado à práxis na
sociedade. Pois ela é a teoria que permite o controle de todo o planejamento possível e de
toda a organização do trabalho humano. A cibernética transforma a linguagem num meio de
troca de mensagens. As artes transformam-se em instrumentos controlados e controladores
da informação.7

Entretanto, a despeito mesmo de todas as convenções, rigores e pré-

determinações filosófico-científicos da cultura metafísica, o que se ilustra aqui é o fato

5
Heidegger, 1991:72.
6
Cibernética: ciência que tem por objeto o estudo comparativo dos sistemas e mecanismos de controle
automático, regulação e comunicação nos seres vivos e nas máquinas. ing. cybernetics (1948) 'id.', emprt.
ao gr. kubernétikê (sc. tekhnê) 'arte de pilotar, arte de governar'; o fr. cybernetique (1834) 'estudo dos
meio de governo', tem a mesma origem grega; na acp. atual o voc. foi introduzido no ing. (1948), depois
aceito por todas as línguas de cultura, pelo matemático norte-americano Norbert Wiener (1894-1964); In:
Dicionário Houaiss Eletrônico.
7
Heidegger, 1991:72.
8

de que o pensamento ainda possa se colocar a caminho de pensar o real desde sua

questão mais radical e originária, a questão que pergunta pelo próprio ser. Por isso,

tendo em vista essa questão primordial, todo e qualquer questionamento aqui passa

inicialmente pela rejeição de que a música, em sua dimensão poética de sentido, se baste

a ser um mero instrumento controlado e de controle de informação, não obstante o

contínuo crescimento de sua utilização e absorção pelas modernas ciências da

comunicação e das técnicas de marketing. Essa rejeição é a atitude básica pela qual se

coloca aqui o questionamento da Cultura Ocidental no que ela manifesta de afastamento

e esquecimento de suas origens. No envio histórico desse esquecimento, a Cultura

Ocidental, ainda que no seu apogeu metafísico e no curso de seu processo, como um

todo não reúne ainda as condições de questionar seus próprios fundamentos. Isto,

porém, em todo esse questionamento, por mais que aqui ele possa somente e sempre se

dar a partir da própria Cultura Ocidental, isto não deve impedir que se ouse um salto

que do e pelo pensamento, por diferença, manifeste a possibilidade sempre vigente do

vigor das origens. Ao contrário, ousar este salto, em que pese toda a ciência e a técnica,

toda a filosofia e a epistemologia, ou ainda, no que concerne mais de perto a própria

música no modo ocidental de compreensão do real, toda a análise e estética, ousar este

salto constitui a própria condição de possibilidade de, em meio a todos os aparatos

conceituais e formulações ideais, na vertigem e na ausência do chão firme, isto é, de um

firme e inabalável fundamento, se dar a maior aproximação da e para a origem.

O esquecimento da questão originária do pensamento é hoje conduzido à

plenitude de diversas maneiras na Cultura Ocidental, porém, todas possuem uma raiz

comum que reside no delineamento metafísico do real. Esse delineamento constituiu-se

numa marca característica da Cultura Ocidental e como tal determinou toda a


9

compreensão do real como um produto seu. A compreensão como produto cultural

apenas acentua o afastamento das origens.

Os Gregos se distinguem de outros povos e os chamam de ba/rbaroi,8 aqueles que


possuem um tipo estranho de fala, a qual não é muªqoj,9 não é lo/goj,10 não é eÃpoj11 Para os
Gregos, o oposto de “barbarismo” não é cultura; é habitar no interior de muªqoj e lo/goj. Há
“cultura” apenas desde o começo do período moderno; ela começa no momento em que
veritas12 se tornou certitudo,13 quando o homem se apresentou a si mesmo e se produziu,
por seu próprio “cultivo”, cultura, e por seu próprio “trabalho criativo” um criador, i.e., um
gênio. Os Gregos não estão familiarizados com os tipos “cultura” ou “gênio”. Assim, é
curioso que mesmo hoje os melhores filólogos clássicos erram a respeito do “gênio
cultural” dos Gregos. Do ponto de vista dos Gregos, o que é chamado “cultura” no período
moderno é uma organização do “mundo espiritual” produzida pelo poder voluntarioso do
homem. “Cultura” é o mesmo em essência que a tecnologia moderna; ambas são, num
estrito sentido grego, não-míticas. Embora no modo grego, “cultura” e “tecnologia” são
formas de barbarismo, não menos que é a “natureza” em Rousseau.14

A Cultura Ocidental se embrenhou num percurso de auto (trans)formação,

convertendo-se num objeto de criação e cultivo da vontade e do poder do homem

fascinado por si próprio. Esse fascínio por si mesmo já se apresenta como uma

“disposição mental” estranha a origem do pensamento ocidental e deixa transparecer

que outras forças estão em jogo, que estão em cultivo, no sentido de uma formação

(paidéia) cultural do ocidente. Por isso, de modo geral, a educação chamará cada vez

mais a atenção para a necessidade de uma conformação cultural que privilegie o que

está posto como evidente, isto é, aquilo que se pode comprovar através da primazia do

olho e da visão mediante sua disposição no claro. Essa disposição vai aos poucos

subtrair o espaço originário de mythos e lógos. Esse espaço originário, cujo âmbito

sonoro convoca a audição, prescinde tranqüilamente da iluminação racional. Porém, na

8
Bárbaroi.
9
Mythos.
10
Lógos.
11
Épos.
12
Verdade.
13
Certeza.
14
Heidegger, 1992b:70. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 257.
10

nova disposição mental, o mythos será cada vez mais colocado num plano pejorativo e

demeritório, de modo a fazer aparecer em seu lugar a vidência como a faculdade que

representa o modo de ser adequado a conceitualização do mundo. Por isso, não tarda

para que o próprio lógos seja convertido no modo ou no veículo por excelência dessa

conceitualização. Essa nova situação mental, que pode com certeza ser caracterizada

como intelectual, altera completamente o éthos grego, uma vez que toda proferição

manifestativa anterior e tudo que a ela está relacionado permanecerá fora do domínio de

validação da vidência. A vidência é auto-suficiente, não necessita dos sentidos, nem

mesmo da própria visão, já que a vidência é a faculdade do intelecto.

Com isso, o modo grego de se relacionar com e compreender o real, isto é, seu

modo de se inserir no mundo muda radicalmente com a colocação em oposição do

mythos, de um lado e do lógos, de outro. No entanto, na tradição oral, cujo sentido

referencial se dá ao modo da audição e não da visão, esses dois se articulam num con-

junto. O que ocorre com a mudança de primazia da audição para a visão não é uma mera

substituição de privilégios de um sentido para outro, mesmo porque não se trata da

apreensão do real exclusivamente pelos sentidos. Há nessa mudança uma outra mais

essencial, processada lentamente e que na verdade vai configurar uma nova disposição

mental não tanto de compreensão, mas de conceitualização de mundo, sistematizada

pela primeira vez por Platão como o supra-sensível.15

15
O que se pretende aqui é abordar a mudança do modo de compreender o real que separa mythos e lógos
opondo-os um ao outro. Nessa oposição, o que fica claro mais tarde nesse capítulo e que será explorado
mais aprofundadamente no capítulo II é que lógos passa a ser compreendido como razão, inclusive se
tornando fundamento para a interpretação do homem como animal racional ou aquele que detém a
capacidade do discurso. Dessa maneira, a discussão sobre os sentidos audição e visão é apenas uma etapa,
um passo na aproximação para a questão principal. Portanto, a discussão aqui não é realizada com o
intuito de estabelecer o real através deste ou daquele sentido da percepção, mas fundamentalmente como
um modo de abordar a passagem do mítico para o racional como situação determinante de toda uma
maneira de compreender o real. Pode-se pensar com isso, então, a mudança de uma situação de
compreensão para uma outra, determinada a partir da conceituação.
11

O processo a que se alude aqui é o da transição de uma sociedade oral para uma

cultura escrita de leitores. Há nesse processo questões que por sua importância precisam

ser tematizadas na medida em que ajudam a traçar um perfil da compreensão vigente do

real e, por conseguinte, auxiliam a dimensionar a própria concepção das artes e da

música na Cultura Ocidental no tempo de plenitude metafísica. A primeira questão diz

respeito exatamente a mudança de primazia da audição e do ouvido para a visão e o

olho como sentido primordial dessa cultura letrada. A explicitação da exigência do olho

e da visão, por mais óbvia que pareça, necessita um melhor aprofundamento no sentido

de demarcar as diferenças entre a tradição poética e a científico-filosófica inaugurada

por Platão.

No entanto, antes de aprofundar essa primeira questão é preciso evitar que se

deixe a dicussão toda cair por completo num mal-entendido produzido por preconceitos.

O primeiro diz respeito ao fato de toda avaliação que se tem do não-letrado como

iletrado ocorrer, como está pressuposto, num sistema de valores. Neste, o juízo de valor

em relação às culturas não-letradas impõe sobre elas uma depreciação cuja origem

provém do entendimento de que a cultura letrada se encontra num grau mais elevado. O

termo iletrado possui na sociedade ocidental um valor pejorativo e a ele se associam

diversas condições sócio-economicas e culturais depreciativas.

Na sociedade ocidental, “iletrado”, analfabeto”, usa-se para identificar uma parte da


população que, sendo incapaz de ler ou de escrever, presume-se carente de inteligência
média, ou mesmo pouco dotada. É portanto um termo pejorativo, apontando os que ficaram
para trás na batalha da vida, sobretudo porque não foram suficientemente brilhantes. Não
hesitamos em ampliar o significado dessa palavra para aplicá-la a sociedades humanas
inteiras. Se elas vêm a ser economicamente menos abastadas em comparação com as
nações industrializadas, então sua pobreza e “atraso” devem ser conseqüência de sua
condição iletrada, de seu analfabetismo.
(...) Aos gregos nunca ocorreria uma semelhante diferença formal no seio da
sociedade, e esse fato deveria servir-nos de advertência. Pois não tem cabimento empregar
um termo que é usado de forma pejorativa para designar uma suposta minoria,
compreendida no seio das sociedades modernas, para a denotação de culturas inteiras que
podem ser “não-letradas” sem ser “iletradas”. A sociedade humana existe desde muito antes
de se ter alcançado o domínio parcial ou completo da escrita. O analfabetismo de
12

indivíduos de hoje não se pode de maneira alguma confundir com a condição “não-letrada”
ou “pré-letrada” de sociedades humanas que precederam a nossa.16

Tal discriminação não leva em consideração que mesmo na cultura letrada a

oralidade ainda se manifesta num volume imensurável, não sendo, portanto, possível

taxar a cultura grega arcaica de iletrada, não somente pelos motivos expostos por

Havelock, mas principalmente se considerarmos que para a cultura helênica a diferença

entre o grego e o bárbaro reside não no conhecimento propriamente da escrita e das

modernas técnicas de comunicação, mas sim em se permanecer na palavra essencial que

é o mythos.17

De qualquer modo, permanece o fato de se pensar as culturas não-letradas numa

condição cultural inferior a de uma cultura letrada. Esse é um preconceito que não leva

em consideração as diferenças estruturais entre uma e outra cultura, classifica as

sociedades não-letradas como primitivas, rudes ou bárbaras e desconsidera a concepção

própria que essas sociedades tem de si mesmas.

Entre, digamos, 1100 e 700 a.C., os gregos eram totalmente não letrados: nesse ponto o
testemunho da epigrafia é irrefutável. Mas foi justamente nesses séculos que a Grécia
inventou as primeiras formas de organização social e da produção artística que vieram a ser
a sua glória.
(...) A fortiori, por volta do século X, as cidades da Grécia continental devem ser
estimadas já capazes de comportar formas de existência social que iam muito além do
regime de aldeia. No nível tecnológico, essas comunidades eram capazes de forjar o ferro, e
provavelmente de fundi-lo, façanha muito além dos micênicos. (...) É possível mostrar que
a arquitetura de seus templos, no mais tardar pela altura do século VIII, já antecipava, na
madeira, as concepções e refinamentos da época arcaica, a partir da qual esses avanços
foram, em parte, preservados para nós em pedra. No domínio das artes, esse período viu,
nos seus começos, a invenção e o aperfeiçoamento do estilo geométrico de decoração,
seguido da introdução de motivos naturalísticos no assim chamado período orientalizante, o
qual começou, de forma bem apropriada, ao tempo em que as letras fenícias foram
aproveitadas para uso grego. Por fim, e irrefutavelmente, foi esse o período que alentou a
arte verbal de Homero.
Em vista desses fatos, uma concepção que equipara sofisticação cultural com domínio
da escrita deve ser posta de lado. Uma cultura pode até fundar-se totalmente na
comunicação oral, e ser ainda uma cultura.18

16
Havelock, 1996a:47.
17
Cf. citação na página .
18
Havelock, 1996a:48-9.
13

É preciso compreender que o advento da escrita é um fato extremamente recente

na história da humanidade e que a oralidade remonta a incontáveis milênios.

Considerando-se o arco de tempo aí dimensionado, não seria de todo absurdo admitir

que a cultura letrada tem ainda um longo caminho a trilhar para que se possa não

considerá-la ainda como um mero acidente na história das sociedades humanas. Não

custa lembrar, mais uma vez, que a cultura grega se dispõe na união entre a palavra

mítica e o lógos. Isso quer dizer que na tradição grega arcaica não ocorre um modo de

oralidade a qual hoje se está tão habituado, mas que essa oralidade está fortemente

marcada pelo poético. É certo que numa primeira abordagem, mythos significa

exatamente “palavra”. Entretanto, não é possível compreendê-lo a partir do que se

entende hoje por esse termo, uma vez que, como se verá adiante, na cultura determinada

desde o poder da letra e da vidência, a palavra possui um sentido e um uso estritamente

operado pela escrita, isto é, pelo que nela é código. Todo sentido e uso na e da escrita é

sempre abstrato e conceitual. Ao contrário, mythos, o que se diz com esta palavra,

transcende a esfera da sintaxe e do mero uso gramatical. Mythos nomeia para o grego

arcaico a relação com o sagrado do mundo. Tal nomear é ao mesmo tempo um lógos

sobre o que não deve e não pode ser dito.

Daí a necessidade de desde já se tomar o devido cuidado no sentido de

compreender as condições específicas dessa relação com o sagrado a fim de que esta, do

mesmo modo que o aspecto poético-oral da Grécia Arcaica, não seja destituída de seu

vigor originário através de uma compreensão moderna de suas palavras-chave como

experiência. “Nós, homens modernos, presumivelmente não temos a mais parca noção o

quão ponderadamente os Gregos experienciaram sua soberba poesia, suas obras de arte
14

– não, experienciaram não, mas deixaram que permanecessem lá, na presença de sua

aparição radiante”.19

Assim, do mesmo modo que emerge o preconceito em relação à oralidade desde

a perspectiva da letra, a ausência de trato com o sagrado e o embrenhar da cultura

letrada no abstrato criam um bloqueio, senão total, quase que intransponível em relação

ao sagrado.

O homem ocidental moderno experimenta um certo mal-estar diante de inúmeras


formas de manifestações do sagrado: é difícil para ele aceitar que, para certos seres
humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras ou árvores, por exemplo. Mas, (...) não
se trata de uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A
pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas
justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra, nem
árvore, mas o sagrado, o ganz andere.
Nunca é demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até a mais
elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo,
continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma
pedra sagrada nem por isso é menos pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de
um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos
olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade
sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a
Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade,
pode tornar-se uma hierofania.20

Na citação não está clara uma distinção entre o sagrado e o religioso. Porém,

esta não é absolutamente necessária na medida em que mesmo a experiência religiosa

pode ser sagrada. Apenas a partir da idéia do divino como idéia de todas as idéias é que

a experiência religiosa abandona o sagrado para ser constituída de acordo e em

conformidade com uma causa primeira e suprema.

Esta Causa primeira e suprema é chamada por Platão, e em seguida por Aristóteles, toV
qei~on, o Divino. Depois que o ser foi interpretado como ideva, o pensamento voltado para o
ser do ente é metafísico, e a metafísica é teológica. Por "teologia" é preciso entender aqui, e
a interpretação pela qual a “causa” do ente é Deus, e a transferência do ser para esta causa,
que contém em si o ser e o faz brotar de si, porque ela é, de tudo aquilo que é, o Ente
máximo.21

19
Heidegger, 1968:19.
20
Eliade, 1992b:17-8.
21
Heidegger, 1994a:26.
15

Desse modo, a fuga dos deuses pode se dar como fuga do sagrado e a religião,

transformando-se em teologia, pode se tornar metafísica. A citação de Eliade, mesmo

que não distinga o sagrado da religião, esta como um sistema organizado de cultos, ritos

e devoções, repleto de mercadorias espirituais para o pronto consumo dos crentes22, ele,

no entanto, assinala muito bem a incapacidade do homem moderno em compreender a

acepção do sagrado, principalmente por este dar-se ainda numa dimensão outra que a

das religiões modernas. Tal incompreensão é uma das características da indigência dos

tempos de desolação:

A falta de Deus significa que nenhum Deus reúne mais, visível e claramente, os
homens e as coisas em torno de si, ordenando assim, a partir de uma tal reunião, a História
do mundo e a residência humana nesta História. Mas na falta de Deus se anuncia algo ainda
pior. Não só os deuses e Deus fugiram, mas o esplendor da divindade se extinguiu na
História do mundo. O tempo da noite do mundo é o tempo de desespero, porque ele torna-
se cada vez mais estreito. Ele mesmo tornou-se tão estreito que nem sequer é capaz de
admitir a falta de Deus como falta.23

Por isso, pode-se dizer que o sagrado permanecerá na arte mesmo quando

desaparece nas religiões. Ora, a dificuldade que hoje se apresenta a qualquer empenho

de se pensar uma questão na sua originariedade reside no fato de se ter de abandonar

uma esfera onde tudo se encontra pré-disposto de modo evidente e às claras para

transpor o limiar daquilo que se manifesta de modo inefável. Esta a real dimensão da

palavra mythos. Se com a palavra mythos não se pode então dizer nada, ou colocado de

outro modo, se com ela diz-se o não-dito, então será possível compreender o modo pelo

qual o lógos se liga ao mythos como o fiel depositário da relação numinosa arcaica com

o mundo. A referência mútua de mythos e lógos não se constitui, pois, num mero acaso,

mas articula o sentido mais primordial da relação sagrada do real.


22
Cf. Michelazzo, 1999:168.
23
Heidegger, 2002a:200. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 257.
16

O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível no
sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois para
os “primitivos”, como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado
equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado
de ser.24

Não se pode compreender a relação grega com as origens desde uma perspectiva

do moderno. Do mesmo modo que não se pode avaliar uma sociedade oral não-letrada

desde a perspectiva de uma cultura escrita, também sequer é possível pressentir a

manifestação do sagrado desde a conjuntura do profano. E nisso ocorre um paralelo

entre os eixos que articulam não-letrado e letrado de um lado, e de outro, o sagrado e o

profano, um paralelo determinado por algo em comum entre eles: na experiência do

sagrado e da oralidade a palavra é um mythológos, a pronúncia do sentido sagrado do

não-dito do ser. Na experiência da cultura profana e escrita, destitui-se esse mythológos

em função da proposição racional sobre o real. Se com a experiência do mythológos

vive-se a unidade da coisa, na segunda se desencadeia a dicotomia real-irreal ao se

separar sujeito e objeto. Ainda um último traço que se apresenta de modo paralelo entre

essas dimensões de mundo reside no fato de que, assim como ocorrera com o advento

da cultura letrada, a dessacralizacção do mundo, “o mundo profano na sua totalidade, o

Cosmos totalmente dessacralizado, é uma descoberta recente na história do espírito

humano”.25 Não seria então uma mera coincidência, nem surpreendente se o advento e a

consolidação da cultura letrada e a dessacralização do mundo estivessem de algum

modo relacionados.

Ao se meditar um pouco mais sobre as diferentes experiências trazidas à tona

pela audição e pela visão, vão se tornando mais e mais explícitas as relações que esses

24
Eliade, 1992b:18.
25
Idem, p. 19.
17

sentidos possuem com uma tradição oral e o sagrado, de um lado e de outro, com a

cultura letrada e a dessacralização do mundo. A visão pressupõe a luz, a claridade, uma

fonte de iluminação. Levando-se em consideração que as coisas só são vistas porque

refletem a luz, a eficiência da visão depende essencialmente de um fator externo (luz),

sem o qual não lhe é possível desempenhar suas funções com a necessária acuidade.

Note-se que a acuidade é uma necessidade exclusivamente visual e somente por

analogia se estende a mesma noção à audição. No entanto, mesmo o que na visão pode

ganhar brilho, ocorre por proveniência de uma esfera auditiva. “Claridade” [Helle] vem

de “ressoar” ou “eco” [hallen] e é originalmente um caráter do tom ou do som, isto é, o


26
oposto de “ensurdecer” . O claro, portanto, não é de modo algum um caráter do

visível, mas foi transferido na linguagem para o visível, para o campo onde a luz

desempenha um papel”.27 Isso reforça a questão de que o exercício do poder e da força

da linguagem constitui inicialmente uma apreensão do mundo que ganha sentido no que

pode ser dito e ouvido. Por outro lado, tem-se que a visão necessita de algo externa a si

mesma, tal como a claridade originária do audível, como um terceiro elemento, para que

possa ter algum acesso ao que é por ela focalizado. Esta noção de visão na tradição

filosófica inaugurada por Platão está corroborada na passagem da República VI, 507d-

508a28.

26
A relação entre Helle e hallen, claro ou claridade e ressoar ou eco não vige apenas na semelhança
ortográfica no idioma alemão, mas é confirmada por Ernout e Meillet (Dietionnaire étimologicque de la
langue latine): “Aparentado a clamo e calo, clarus deve ter-se aplicado à voz e aos sons, clara vóx etc.
(cf. decláro; clarisònus, tradução do gr. ligúphthoggos); estendeu-se depois às sensações visuais, clara
lux, clarum caelum 'claro, brilhante', depois às coisas do espírito, clara consilìa, exempla etc., e mesmo
aos indivíduos e às coisas: 'ilustre, brilhante, glorioso' (p.opos. a obscúrus), donde a fórmula vir
clarissimus”, apud Dicionário Houaiss Eletrônico, verbete clar-.
27
Heidegger, 2002b:40.
28
Cf citação na p. 28-9.
18

Ora, o que se pretende pensar aqui não se resume de modo algum numa mera

descrição física e psicofísica dos sentidos da audição e da visão. Por isso, o contraste

aqui posto não é entre visão e audição, mas entre a tradição poética grega e a filosófica

inaugurada com Platão. Nesta última, é o próprio Platão que lança mão de uma

caracterização da visão já numa perspectiva totalmente científica. No panorama dessas

tradições, audição e visão se encontram de modo diferenciado, uma na situação de união

de mythos e lógos e outra, determinada pelo próprio Platão através da totalidade da luz

do lógos convertido em razão intelectual, uma razão que na modernidade pertence ao

sujeito que predispõe o mundo como objeto de seu conhecimento.

Muito diferente é o contexto em que a visão pode ser tratada a partir do

horizonte e da visibilidade.29 Horizonte, vindo do verbo grego horízo, que diz

estabelecer limites e fins, de-limitar e de-finir, pode acolher tanto o olhar como o ouvir.

“O horizonte é sempre acolhedor... acolhe o olhar da deusa e o escutar do pensador”. E

por acolher os contrários e oposições é que ele é “o lugar em que, subtraindo-se a visão,

o visível desaparece no invisível”.30 Um horizonte assim é de tal modo impensável na

doutrina platônica da luz e das formas, incompatível com o ideal de exatidão do

conhecimento. Para Platão não é possível que algo (horizonte) seja ao mesmo tempo

visível e invisível, isto é, que seja e não seja.

Por isso, não sendo platônica, mas originariamente ontológica, toda visão e

visibilidade na tradição poética se dá antes de tudo numa relação hermenêutica, circula

entre as vicissitudes de ser e não-ser. Pelo fato de nela, a visibilidade, poder se dar o ser

e não-ser, podem nela também se com-porem as identidades e diferenças de visível e

invisível como dar-se e retrair-se. Por outro lado, admitindo-se a possibilidade da


29
Leão, 1977:181-8.
30
Leão, 1977:181.
19

audição ser tomada já na dimensão puramente epistemológica, desprovida de um espaço

e de um tempo sagrados, pode-se perfeitamente compreender a afirmação de Heráclito

em seu fragmento 34: “Sem compreensão: ouvindo, parecem surdos, o dito lhes atesta:

presentes estão ausentes”.31 Mas estes são os que ouvem só porque esticam as orelhas.32

Porém, na tradição poética ouvir é algo bastante diferente:

Como princípio de ordem e força de organização do real em sua realização, o Lógos é


linguagem ontológica da vida, no mais elevado grau de sua explosão na história humana,
por isso, a vigência criadora do Lógos revoluciona não apenas fala e discurso, mas também
o ouvido e o ouvir. Nas peripécias da criação, ouvir é escutar o Lógos, seguindo o advento
de sua dinâmica de reunião no curso da História.33

Por isso mesmo, logo de início se mostrou a situação grega em que mythos e

lógos se apresentam num con-junto e se con-formam no ethos grego.34 Pois em todo

ouvido que ouve a tradição poética grega, o que se escuta é a música do lógos

continuamente manifestando o mythos da phýsis. O que se ouve é o que na música é

música; a audição é musical: nela, na música, o mais alto grau de realização do real.35

Por isso, na tradição poética, a audição independe de um terceiro fator externo a

ela para que se dê o acesso direto às coisas. Enquanto que a visão pressupõe a luz, que

veio, aliás, a se tornar o símbolo de todo empenho metafísico-filosófico do ocidente,

uma orientação em direção do positivo, a audição necessita radicalmente do silêncio

como condição de possibilidade primeira e primordial do audível, do som. A contraparte

da audição é o silêncio. Em outras palavras, na audição o mundo integra como principio

estruturante o negativo ao positivo. A vigência do silêncio é a própria possibilidade de

31
In: Os pensadores originários, p.67.
32
Cf. Leão, 1993:140.
33
Idem, p. 139.
34
Cf. citação na p.9.
35
Cf. Leão, 1993:42-3.
20

vigência do som. Ao contrário da relação positiva que a visão estabelece com a luz, a

audição se funda na integração do silêncio (negativo) com o som (positivo). Isso de

modo algum quer dizer que aí se dê uma simples dualidade, uma dicotomia. Pelo

contrário, através do afastamento e oposição dos extremos é que se chega a engendrar a

manifestação de uma ambigüidade plurivalente. O predomínio da visão, tendendo ao

que se manifesta apenas como positivo, rejeita a plurivalência do espaço ambíguo e

heterogêneo, do espaço dimensionado desde a abertura propiciada pelo afastamento do

que se polariza, tal como o afastamento e oposição de céu e terra ou de mortais e

imortais. Numa vertente totalmente diversa da dialética, na audição é preciso que os

pólos se afastem a fim de fazer con-crescer no aberto o mundo.

A visão poderia, no entanto, integrar claro e escuro na composição da imagem

do mundo, tal qual a unidade fundante de som e silêncio. Essa integração é rejeitada

pela ordem vigente a partir de Platão, pois remonta à tradição poética que se quer

superar. A visão depende, de qualquer modo, de um terceiro como fonte externa de luz

para o estabelecimento do sentido. Tal dependência institui o critério, o fator que

permite o sentido como nexo, variando conforme a fonte. A audição não admite

qualquer critério, apenas o sentido do que nela diretamente ocorre. Daí que, o que nela

ocorre não é propriamente um acesso, uma vez que a audição não pode se colocar fora

da dimensão aberta por som e silêncio. Por isso, não há acesso onde ela já se encontra.

Na dimensão aberta por som e silêncio se dá a audição. Não há aí qualquer

intermediação de terceiros. A dimensão aberta por som e silêncio se dá, ressoa i-

mediatamente na audição.

A dificuldade de, após Platão e, mais tarde, após a modernidade, se lidar com o

sagrado e de constituir uma escuta da dimensão aberta por som e silêncio caracterizou a
21

audição apenas como rumor. Gerede, que em alemão quer dizer rumor, o que se ouve

num falatório,36 dispõe da audição na medida em que o próprio homem se aliena no

falatório. No sentido de Gerede a audição é intramundana e o ouvir por aí é uma

“privação da compreensão da escuta”.37 Diferentemente, o ouvir que ora se contrapõe ao

ver encontra-se dimensionado desde o modo de compreensão vigente na tradição

poética, isto é, um ouvir que escuta por que antes de tudo já compreendeu. Desse modo

não há a menor exigência de que o que se ouve, para ser compreendido, deva ser

justaposto a listas de significados a fim de operar uma decifração como ocorre na

tradição filosófico-científica. Somente onde ocorre uma linguagem artificial se faz

necessário uma intermediação que ligue o que se ouve ou o que se vê à sua respectiva

significação. No entanto, no ouvir que escuta porque compreende, a linguagem não

intermedeia conceitos e realidade, mas é o nome da relação direta com o sentido:

(...) o fato de ouvirmos primeiramente motocicletas e carros constitui um testemunho


fenomenal de que a pre-sença, enquanto ser-no-mundo, já sempre se detém junto ao que
está à mão dentro do mundo e não junto à “sensações”, cujo turbilhão tivesse de ser
primeiro formado para propiciar o trampolim de onde o sujeito pudesse pular para
finalmente alcançar o “mundo”. Sendo em sua essência, compreensiva, a pre-sença está,
desde o início, junto ao que ela compreende.38

Por isso mesmo, o modo de escuta da audição quando dimensionada pela música

é totalmente diferente daquele que ocorre como um ouvir por aí. Basta o simples fato

de, por exemplo, ouvir um concerto de música para que a audição imediatamente seja

transportada para a abertura originária de som e silêncio, daquilo que se ouve por que já

se compreende, sem mais. Sem mais quer dizer, sem intermediações. Só com muito

empenho epistemológico é que se pode querer depreender significações que lhe sejam

36
Cf. nota 54 (Geredete) do tradutor em Heidegger, 1993a:323.
37
Cf. Heidegger: 1993a:223.
38
Heidegger, 1993a:222-3.
22

exteriormente adjudicados. O sentido poetico brota daquilo que se manifesta, sendo isso

o que na música é música. Por outro lado, o ouvir que escuta o dizer (Sage) da

linguagem não pode ser um escutar do rumor do falatório (Gerede), mas o ouvir (hören)

que pertence (gehören) ao que a linguagem diz, isto é, mostra.

Ora, na vigência da oralidade e do sagrado, o lógos com-põe, de modos

diferentes, a audição do mundo, mesmo quando este é visualizado. Note-se que a

palavra oral exige uma modalidade de atenção que passa diretamente pela escuta. O

mundo se apresenta, no oral, como o sagrado da escuta:

Nesta comunidade agrícola e pastoril anterior a constituição da polis e à adoção do


alfabeto, o aedo (i.e., o poeta-cantor) representa o máximo poder da tecnologia de
comunicação. Toda a visão de mundo e consciência de sua própria história (sagrada e/ou
exemplar) é, para este grupo social, conservada e transmitida pelo canto do poeta. É através
da audição (grifo nosso) deste canto que o homem comum podia romper os restritos limites
de suas possibilidades físicas e de visão, transcender suas fronteiras geográficas e
temporais, que de outro modo permaneceriam infranqueáveis, e entrar em contato e
contemplar figuras, fatos e mundos que pelo poder do canto se tornam audíveis, visíveis e
presentes. O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos
os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que só lhe é concedido pela
Memória (Mnemósyne) através das palavras cantadas (Musas).39

A palavra cantada nada tem a ver, pois, com a palavra escrita, pelo menos não

enquanto tomadas cada qual a partir das diferentes tradições aqui em questão. Aliás, é

preciso frisar que a linguagem como linguagem é primordialmente oral e não escrita, de

tal modo que entre o que se escreve e o que se fala ocorre uma diferença fundamental.

Se pensada num determinado enfoque, o de que "a linguagem como linguagem é

primordialmente oral", em virtude mesmo da “expressão” linguagem como linguagem, a

afirmação pode ser tomada no sentido de um nivelamento da linguagem à língua. Este

entendimento não vai nada além da conceituação mais comum que pressupõe a

linguagem como instrumento de comunicação e expressão. No entanto, a mesma frase

39
Torrano, 1995:16.
23

pode ser compreendida sob a perspectiva da “linguagem como ela mesma e a partir dela

mesma”, isto é, a linguagem sem ser processada pelos procedimentos tradicionais de seu

estudo, sem se afastar dela mesma para explicar-se em virtude de algo a ela externo,

seja a partir da atividade humana, seja como um poder do espírito, uma visão de mundo

ou expressão do sujeito.40 Outra coisa a esclarecer e que pode induzir a se pensar a

linguagem como língua é sua vinculação na sentença à oralidade, uma vez que o

“primordialmente oral” na frase pode levar a crer que a linguagem se constitua a partir

da oralidade, quando na verdade é o contrário, o oral é que se funda na linguagem. Esse

esclarecimento permite, além do mais, que se possa então pensar na escrita não como o

fundamento da linguagem, mas apenas como suporte. O suporte não é a linguagem, tão

pouco esta se funda sobre ele. Por isso, é pertinente, por outro lado, que se mantenha o

questionamento que se segue, qual seja, o de saber se, como escrita, ainda é possível

permanecer algo de linguagem ou se, com a escrita apenas como suporte, a palavra

linguagem se refere a algo outro e estranho à cultura grega arcaica? A procedência desse

questionamento ganha cada vez mais força na medida em que com Platão, e depois dele,

a linguagem vai sendo restringida cada vez mais à conceituação e ao papel de suporte, a

ponto de suporte e linguagem não possuírem mais qualquer distinção. A ausência de

distinção entre suporte e linguagem aparece na conceituação de linguagem única e

exclusivamente como mecanismo de comunicação e expressão.

A questão que surge agora é se, por outro lado, não é a oralidade também um

suporte ou se ela se configura como um modo direto de se dar da linguagem? A

linguagem investe a palavra de sua força nomeadora do real, isto é, de sentido do real,

um nomear que não é lingüístico, que não se restringe como representação a cumprir

40
Cf. Heidegger, 1982:119.
24

uma função na cadeia de comunicação, mas que é manifestativo, isto é, mostra o ser

como presença no que também se ausenta. Não que a palavra escrita também não seja

investida pela linguagem do vigor de nomeação do real, como advento auto-velante do

próprio ser, mas a palavra nessa conjuntura arcaica advém no oral. No entanto, a

questão não é simplesmente um advir, pois pensado desse modo o oral também é um

suporte. Ora, sendo tudo ao qual a linguagem se liga e se relaciona pensado como

suporte, seria o caso de supor que Platão realmente teria razão ao conceber a linguagem

de um modo exclusivamente conceitual e como veículo próprio de uma comunicação e

expressão que conforma o real à idéia. Mas aí, a linguagem é apenas um instrumento

que se presta a um papel determinado, cumpre uma função de designação no que se

constituiu posteriormente como a relação sujeito/objeto, isto é, a linguagem se torna

apenas o modo de justapor o sujeito representante ao objeto por ele representado, uma

justaposição de signos e significados. A linguagem é transformada em suporte, ou seja,

ela “é representada em termos da fala, no que se refere aos sons articulados, os

transportadores dos significados. Falar é um tipo de atividade humana”.41

No entanto, voltando à citação de Torrano acima, a linguagem que aí ocorre não

é nem um instrumento, muito embora o próprio Torrano se refira ao aedo como aquele

que “representa o máximo da tecnologia de comunicação”; tão pouco é uma atividade

humana, isto é, uma atividade do intelecto do sujeito que representa o mundo como

objeto. A audição (hören) do canto é o ouvir que se dispõe desde a vigência

manifestativa do ser na linguagem e a ela pertence (gehören). A linguagem não é um

elemento intermédio, mas o nome e o próprio nomear da reunião de ser-homem-mundo.

Nela o co-pertencimento dos três se manifesta como sentido. Na manifestação da

41
Idem, p.115.
25

linguagem se conjunta limite e i-limitado de ser-homem-mundo(real) de modo

irredutível e inseparável. O mostrar da linguagem é um dizer (Sage) desses três em con-

junto.

O cuidado aqui deve ser, portanto, o de saber se a noção de linguagem tal qual já

se apresenta com a escrita pode ser reconhecida como grega arcaica.42 Tais

considerações advêm do fato de que, pelo menos no que se refere à transição entre

oralidade e a cultura letrada na Grécia, fala e escrita exigem orientações de sentidos

completamente diferentes.

Uma orientação para o mundo cuja audição chega a ser fundamental o

compreende de um modo inteiramente diferente que uma orientação que exige a visão

como parâmetro. A relação auditiva com o mundo tem uma consideração de espaço e

tempo diversa da visão. O espaço apreendido pela audição é circundante. Quem ouve, o

faz por que se encontra imerso no mundo. Este está em quem ouve, a sua volta, em

todos os lugares e em lugar nenhum. A audição localiza então o ponto onde se dá a

escuta do mundo. A marcação desse ponto já é por si só a localização do espaço como

sagrado, extraordinário. A sagração do espaço se dá como abertura, para ali ou acolá,

para cima ou para baixo, para dentro ou para fora. O mundo desde o local da escuta é

multi-inter-dimensional e multi-inter-dimensionalizante: no local da escuta os planos de

mundo constituindo os planos da audição da abertura de som e silêncio se entre-cruzam,

se inter-põem e se inter-polarizam. Onde ocorre a escuta, rompe-se com a

homogeneidade, eclode-se a diferença e funda-se mundo. Porém, num tempo em que a

audição já não é determinante e mesmo a visão se encontra subtraída à pura intelecção,

as leis da física instalam uma compreensão imóvel do mundo. Desse modo, todo lugar é

42
Arcaico aqui é compreendido na acepção do sentido etimológico de arkhé como princípio inaugural,
constitutivo e dirigente da palavra poética. Cf. Torrano, 1995:15.
26

igual a qualquer outro e nenhum movimento ou direção de movimento tem precedência

sobre qualquer outro.

Do mesmo modo, nenhum ponto no tempo possui qualquer precedência sobre

outro. No entanto, a visão de mundo e a consciência histórica ganham densidade e

dimensão pelo canto do poeta, como fica claro no texto de Torrano.43 O tempo desde a

audição do canto se dimensiona no próprio ato do poeta como realização memorável. A

memorabilidade do ato poético rompe não só com a figuração de um espaço

homogêneo, mas perturba de modo marcante toda e qualquer igualdade do tempo linear.

Pois, a realização dos atos do poeta-cantor é dirigidas já de antemão por uma

sacralidade do tempo como sacralidade do evento. A realização do ato do poeta-cantor,

em torno da qual todos se reúnem, descontinua e rompe o tempo profano dos atos

privados. Aqui, mais do que tudo, manifesta-se uma con-juntura mito-logo-poética de

temporalização do ser no mundo. Desse modo, enquanto o tempo ordinário segue seu

curso, o tempo sagrado, trazido à dimensão do espaço sagrado pelo poeta-cantor,

instaura a própria possibilidade de reversibilidade.

(...) O tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é,
propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. (...) Todo tempo
litúrgico, representa a reatualização de um evento sagrado que teve lugar num passado
mítico, “nos primórdios”. Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração
temporal “ordinária” e a reintegração do Tempo mítico reatualizado pela própria festa. Por
conseqüência, o Tempo sagrado é indefinidamente recuperável, indefinidamente repetível.
De certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que o Tempo sagrado não “flui”, que não
constitui uma “duração” irreversível. É um tempo ontológico por excelência,
“parmenidiano”: mantém-se sempre igual a si mesmo, não muda nem se esgota.44

Por se inserir numa dimensão multidimensional do mundo, a audição admite a

concomitância das coisas do mundo. As coisas do mundo se dão como sentidos do

mundo, sendo neles e com eles que o mundo aparece. A audição aceita tranqüilamente a
43
Torrano, 1995:16.
44
Eliade, 1992b:63-4.
27

concomitância dos sentidos. Isso não é possível na experiência visual dirigida desde a

palavra escrita. Aí, o mundo não pode ser nem circundante, nem seus sentidos

concomitantes. Mesmo a idéia de circumvisão está restrita à natureza angular da visão.

Por isso, toda circumvisão de mundo deve se adequar de início às restrições do campo

visual. Tais restrições impõem a necessidade de organização do espaço e do tempo de

modo radicalmente diferente ao da audição, principalmente porque esta, integrando-se à

abertura plurivalente de som e silêncio aceita uma organização que não é sua, mas que

advém da instauração dos sentidos próprios do mundo. Por outro lado, a visão necessita

reordenar aquilo que a ela se apresenta, de modo a permitir que o apresentado possa ser

visto mediante a luz que lhe é externa. O custo dessa operação é a transformação da

vigência de uma circum-concomitância numa linearidade ordenada posta às claras, de

modo a mostrar o evidente. Essa linearidade não somente ordena o espaço, medindo-o e

representando-o com a palavra escrita, mas elimina, como o faz com o espaço, a

sobreposição de instâncias temporais diferentes. Toda ordenação do espaço linearmente

disposta já pressupõe uma determinada noção de tempo sustentada desde a linearidade

cronológica.

A audição não necessita de modo algum da linearidade como forma de

organização do mundo, mesmo porque a ordem não é a da audição, mas do próprio

mundo. A ordem não está na audição e sim no mundo. A audição, no sentido de ouvir

(hören) é a escuta do que se diz (mostra) e não-diz (se retrai) e silencia. A linguagem

pronuncia a phýsis e a audição escuta o que nesse mostrar se ordena. Totalmente

diferente é o papel da luz, já que é esta que determina o que se mostra e o que não se

mostra como correção ou incorreção, como verdade ou falsidade. Porém, a respeito da


28

visão, é possível tomar o que se “evidencia” na alegoria da caverna de Platão45, em que

a luz, do fogo ou do sol, mas sempre a luz é que determina a visão e o conhecimento do

mundo.

Mas a vista e o que é visto, como deves saber, necessitam desse terceiro elemento.
De que jeito?
Por mais que haja vista nos olhos e se esforce por usá-la quem a possui; por mais que
neles haja cores, se não lhes adicionar um terceiro elemento criado pela natureza para esse
fim, sabes perfeitamente que a vista não verá nada e as cores permanecerão invisíveis.
A que elemento te referes? Perguntou.
O que denominamos luz, lhe disse.
(…)
Não é, por conseqüência, de importância secundária esse elemento de ligação entre o
sentido da vista e o fato de ser visto, porém de muito maior valia do que tudo o mais que
liga as outras coisas, a menos que a luz seja algo desprezível.
(...)
Dirás, por conseguinte, continuei, que este sol é que eu denomino filho do bem, gerado
pelo bem como sua própria imagem, e que no mundo visível está nas mesmas relações para
a vista e as coisas vistas como o bem no mundo inteligível para o entendimento e as coisas
percebidas pelo entendimento.
(...)
Como sabes bem, continuei, os olhos, quando não os dirigimos para os objetos cujas
cores sejam iluminadas pala luz do dia mas pelo clarão da lua, vêem confusamente e se
tornam quase cegos, como se carecessem de pureza de visão.
(...)
Mas estou certo de que, quando se voltam para objetos iluminados pelo sol, vêem
distintamente, parecendo que neles mesmos reside a faculdade da visão.46

Portanto, a ordem não é um modo do mundo aparecer aos olhos, mas se encontra

pré-determinada para visão conforme a mediação da luz. Na tradição metafísica, por

mais que se queira pensar o mundo como revelação aos olhos, esta somente ocorre de

acordo com a intermediação da luz. Por isso toda visão de mundo só pode mesmo ser

sustentada desde uma mediação. Por necessitar da mediação, chega a ser absurdo dizer

que visão vê o mundo, quando o que se vê na verdade é o reflexo desse mundo mediado

desde a luminosidade da luz, seja ela do fogo ou do sol. Portanto, o conhecimento e

verdade do mundo se apresentam, por analogia, desde a mediação da idéia.

45
Platão, 2000:319-22 (514a-517a).
46
Platão, 2000:311-2 (507d-508a; 508c-d).
29

Considera agora a alma sob igual perspectiva: quando se fixa nalgum objeto iluminado
pela verdade e pelo ser, imediatamente percebe e o reconhece, e se revela inteligente;
quando porém se volta para o que é mesclado de trevas, para o que se forma e desaparece,
passa apenas a conjecturar e fica turva, mudando a toda hora de opinião, como se perdesse
por completo a inteligência.
(...)
Ora, o que comunica a verdade aos objetos e ao sujeito cognoscente a faculdade de
conhecer, podes afirmar que é a idéia do bem; é a fonte primitiva do conhecimento e da
verdade, tanto quanto estes podem ser conhecidos; mas, por mais belos que sejam ambos, o
conhecimento e a verdade, se admitires que muito mais belo é esse outro elemento – a idéia
do bem – terás pensado com acerto. Conhecimento e verdade: assim como há pouco nos foi
lícito admitir que a luz e a visão têm analogia com o sol, porém que seria erro identificá-los
com ele, agora podemos considerar o oconheciento e a verdade como semelhantes ao bem,
sem que nenhum, no entanto, possa ser com ele identificado, pois a natureza do bem deve
ser tida em muito maior apreço.47

Numa cultura orientada pela visão nada se admite sem mediação. Daí o

entendimento de que a relação audição/mundo seja ela mesma mediada pelo poeta-

cantor. No entanto, mesmo quando se trata de ouvir a voz de alguém, em especial o

mythológos do poeta-cantor, a audição é sempre audição do mundo na medida em que,

em primeiro lugar, o poeta mesmo se dimensiona desde a escuta. O poeta-cantor não

tem a posse do dizer, muito ao contrário, ele é que está possuído pela escuta de um dizer

que não é dele e sim das Musas: musáon Heliconiádon archômeth’aeídein – “pelas

Musas heliconíades comecemos a cantar”.48

A primeira palavra que se pronuncia neste canto sobre o nascimento dos Deuses e do
mundo é Musas, no genitivo plural. Por que esta palavra e não outra? Dentro da perspectiva
da experiência arcaica da linguagem, por outra palavra qualquer o canto não poderia
começar, não poderia se fazer canto, ter a força de trazer consigo os seres e os âmbitos em
que são. É preciso que primeiro o nome das Musas se pronuncie e as musas se apresentem
como numinosa força que são das palavras cantadas, para que o canto se dê em seu encanto.
(...)
Elas são o princípio do canto, tanto no sentido inaugural, como no dirigente-
constitutivo (arkhé). A exortação “pelas Musas comecemos a cantar” diz também que
tenhamos nelas o princípio por que nos deixe guiar e exprime ainda a vontade de que seja
pela força delas que se cante. Não é nem a voz nem a habilidade humana do cantor que
imprimirá sentido e força, direção e presença ao canto, mas é a própria força e presença das
Musas que gera e dirige o nosso canto.49

47
Platão, 2000:312-3 (508d-509a).
48
Mousa/wn (Elikwnia/dwn a)rxw/meq' a)ei/dein. Hesíodo, Teogonia, v. 1.
49
Torrano, 1995:21.
30

Sendo as Musas manifestação e instituição de mundo, bastando que para isso se

lembre de que Zeus as concebeu com Mnemósyne (Memória) para proclamarem os seu

feitos e suas vitórias sobre os Titãs, isto é, instituindo-se com isso a ordem olímpica do

universo, basta que se lembre disso para que se compreenda o sentido das Musas como

o próprio sentido da manifestação e instituição de mundo. As musas estão, portanto,

cheias, carregadas de ser. A pronúncia necessariamente cantada, musicada das Musas se

deposita na escuta de uma ontologia sonora e ressoante do ser. Sonorizando e ressoando

essa ontologia originária, o poeta-cantor não media e sequer é veículo externo ao canto

das Musas, mas ele é com o cantar o próprio canto. Na audição originariamente

ontológica, o mundo se dá a conhecer como unidade. Nada é simplesmente um em si

mesmo, mas um em-si-com-o-outro. Na relação audição/mundo está em processo,

sobretudo, a contínua formação da unidade de identidade e diferença. Essa síntese

ontológica se concretiza no falar cantado do poeta-cantor e está explicitada na palavra

grega arkhómetha50 no verso 1 da Teogonia.

O genitivo-ablativo Musaôn (“Pelas Musas”) e o subjuntivo médio-passivo


arkhómetha (“comecemos”/ “sejamos dirigidos”) têm um nuanceamento semântico maior
do que o podem suportar as palavras portuguesas de nossa tradução e mesmo maior do que
o podem suspeitar os nossos hábitos lógico-analíticos. A distinção entre o sentido próprio à
voz média (“comecemos”) e o próprio à passiva (“sejamos dirigidos”) aqui neste verso
principal é muito menor do que o nosso rigor analítico apreciaria ver; a noção de arkhéi
contida no verbo arkhómetha reúne numa unidade indiscernível o sentido de princípio-
começo e o de princípio-poder-império.51

Levando em conta tal consideração, uma tentativa de tradução numa outra

possibilidade talvez ajudasse a ouvir a ressonância dessa ontologia originária

substantivamente diferente: “Pelas Musas heliconíades o princípio-começo se dá com o

canto”. Seguindo essa orientação que convoca a escuta da pronúncia musicada do

50
)A)rxw/meqa.
51
Torrano, 1995:21.
31

mundo, isto é, da pronúncia do mundo conduzida desde o canto das Musas, não há o

que se mostre como mediação, mas apenas como unidade.

Pois, do modo como se pôde chegar a pensar acima, a música do mundo desde o

canto das Musas se manifesta justamente como mythológos, instaura no mundo, não

fora dele e de modo mediado, a localização sagrada da escuta da dimensão aberta por

som e silêncio. Assim, não há qualquer intermediário, qualquer coisa que como terceiro

elemento medeie, que se coloque inter-médio entre audição e mundo. A relação

audição/mundo é i-mediata, é uma relação direta, não-mediada. O caráter dessa relação

determina o caráter do espaço e do tempo na relação audição/mundo. Entende-se então

porque os gregos arcaicos mantém uma relação sagrada com a palavra-cantada como

linguagem primordial: nela o mundo se manifesta de modo i-mediato. Por isso, se

pensada na relação mito-logo-poética primeva, a linguagem não pode ser mediação de

coisa alguma. Somente quando transposta para a escrita dependente da visão do

intelecto como vidência é que a linguagem chega a ser reduzida ao que determina a

essência de toda a visão: a mediação. A pergunta que deve ficar ainda em suspenso

questiona se a linguagem é ela mesma, sob tais circunstâncias, ainda linguagem, ou se,

somente a partir desse momento, alguma coisa de outro é que se torna linguagem no

sentido que hoje se tem de uma compreensão dominante dessa palavra?

A resposta a esse questionamento necessita, antes de qualquer coisa, que se

repita, tal qual em tempos arcaicos, a afirmação: a audição é a audição do mundo. A

repetição dessa afirmação serve ainda para aprofundar uma outra diferença entre a

oralidade e a escrita como orientações do sentido do mundo. No ordenamento linear do

espaço e do tempo, a idéia como elemento mediador não admite o erro ou o engano.

Para que a visão veja o que se conforma à idéia, tudo que se vê deve se adequar, de um
32

modo correto, à mediação da luz. Ora, o que se vê, só é visto em correspondência e em

conformidade com a luz que intermedeia. Assim, o que aparece, o que se revela à visão,

o faz em conformidade com a luz. Não se admira, portanto, que a noção de verdade

também se encontre determinada desde a relação intermédia que a luz tem para com a

visão e o mundo. Pois, se o mundo se revela para a visão, ele o faz mediante a verdade

interposta pela luz. Desse modo, compreende-se também a relatividade da verdade:

mudando-se a fonte de luz, muda-se a verdade do que se apresenta aos olhos como

mundo.

Não é a ajlhvqeia52 que forma o objeto próprio do “mito da caverna?” Certamente não.
E, contudo permanece certo que este miro contém a “doutrina” de Platão sobre a verdade.
Portanto ele se funda sobre um fato que ele não menciona, a saber, que a ijdeva levanta a
cabeça sobre a ajlhvqeia. O “mito” dá uma imagem daquilo que Platão diz da Idéia do bem:
aujthV kuriva ajlhvqeian kaiV nou~n parascomevnh53 (517 c, 4) “ela é ela mesma a Soberana,
naquilo que ela permite o não-velamento (àquilo que se mostra) e ao mesmo tempo a
percepção (do não-velado)”. A ajlhvqeia passa sob o (ao) jugo da Idéia. Quando Platão diz
da Idéia que ela é a Soberana que concede o não velamento, ele nos reenvia à alguma coisa
que ele não diz, a saber, que doravante a essência da verdade cessa de se deslocar, a partir
de sua própria plenitude de ser, como essência do não-velamento, mas que ela se desloca
para vir coincidir com a essência da Idéia. A essência da verdade abandona seu traço
fundamental anterior: o não-velamento.
Quando por toda parte, em cada uma de nossas relações com as coisas que são, não há
nada que importe mais que o ijdei~n da ijdeva, a apreensão da “e-vidência” pelo olhar, todos
os nossos esforços devem se concentrar de início sobre um único ponto: tornar possível
uma semelhante visão. Aquilo que exige que nós saibamos olhar (considerar) como é
preciso. Quando, na caverna, o homem liberto se desvia das sombras para considerar as
coisas, ele já dirige o seu olhar para aquilo que “tem mais do ser” que de simples sombras:
prov"ma~llon o!nta tetrammevno" ojrqovteron blevpoi54 (515 d, 3-4), “assim voltado para
aquilo que tem mais do ser, ele vê sem dúvida de um modo mais exato”. Passar de um
estado ao outro, é considerar de um modo mais exato. Tudo está subordinado ao ojrqovth",
à exatidão do olhar. Por esta exatidão, a vista e o conhecimento se tornam corretos, de sorte
que finalmente eles visam diretamente a Idéia suprema e se fixam nesta “visada”. Assim
orientada, a percepção se conforma aquilo que deve ser visto. Está lá a “e-vidência”
(Aussehen) daquilo que é. Esta adaptação da percepção, do ijdei~n, à ideva,55 traz uma
oJmoivwsi",56 uma acordo do conhecimento com a própria coisa. Desta preeminência

52
Alétheia.
53
Autê kuria alêtheian kai noun paraschomenê.
54
Pros mallon onta tetrammenos orthoteron blepoi
55
Idein, idéa.
56
Homoiósis.
33

conferida à ideva e ao ijdei~n sobre a ajlhvqeia resulta uma mudança na essência da verdade.
A verdade se torna ojrqovth",57 a exatidão da percepção e da linguagem.
Esta mudança na essência da verdade se faz acompanhar de uma outra mudança que
concerne ao lugar da verdade. Enquanto não-velamento, a verdade é ainda um traço
fundamental do próprio ente. Mas, como exatidão do “olhar”, ela se torna a característica de
um certo comportamento do homem para com as coisas que são.58

Na relação audição/mundo, sendo ela i-mediata, em primeiro lugar não há ao que

corresponder como correção mediada. Em segundo lugar, se nela há qualquer

correspondência, esta é radicalmente uma co-respondência, isto é, uma mútua

referência, não de similitude, mas de con-vocação. Para compreender essa relação é

necessário ter em conta que, antes de tudo mais, responder é um dizer que ocorre

originariamente pelo ato da fala e somente muito depois por escrito. O sentido de

responder como respondere quer dizer engajar ou prometer, penhorar em retorno.59 O

responder é con-vocado pelo dizer como um apontar para, tornar claro, tornar

conhecido, causar ou fazer nascer, um dispor, ordenar ou ainda, fazer.60 A relação

audição/mundo está pressuposta em todo dizer, não porque anteceda ao próprio dizer,

mas porque nele se torna manifesta. O dizer torna conhecido para a escuta o próprio

mundo. Quem ouve dizer, ouve o mundo em sua ordem e disposição, e a ele responde

penhorando-se em retorno, esse o sentido da audição. E não poderia ser outro na

sociedade oral grega arcaica.

(...) Esta extrema importância que se confere ao poeta e à poesia repousa em parte no
fato de o poeta ser, dentro das perspectivas de uma cultura oral, um cultor da Memória (no
sentido religioso e no da eficiência prática), e em parte no imenso poder que os povos
ágrafos sentem na força da palavra e que a adoção do alfabeto solapou até quase destruir.
Este poder da força da palavra se instaura por uma relação quase mágica entre o nome e a
coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a presença da própria
coisa.61

57
Orthótes.
58
Heidegger, 1994a:20-1.
59
Cf. Buck, 1988:1266.
60
Cf. Buck, 1988:1253.
61
Torrano,1995:17.
34

Não é difícil compreender as circunstâncias em que, na sociedade oral grega

arcaica, o dizer assume tantas outras possibilidades de compreensão do mundo às quais

os povos letrados de hoje já não têm pleno acesso. No caso específico, não há registro

de leis, normas ou regras que possam ser consultadas mediante a recuperação da leitura,

mas o que dispõe o sentido do mundo como o sentido do real é o que chega à audição

pelo dizer. Tanto o som que incorpora o que na fala é dito e não-dito, quanto o que vige

como receptáculo das outras coisas (sentidos) do mundo, dispõem e organizam na

audição a dimensão do real. Daí que no Antigo Alto Alemão “falar” (sprehhan)

significa o mesmo que redōn (dizer)62 ou ainda, derivado do Gótico rōdjan como

rātan63 signifique aconselhar, considerar ou ainda interpretar.64 Ora, se o dizer é então

um modo de interpretar, esse sentido se reforça ainda mais ao se atentar para o fato de

que “dizer”, em sua raiz indo-européia *sekw-, como “apontar para”, isto é, mostrar,

equivale a palavras como seguir e ver. Nesse sentido, o dizer como interpretação que

mostra implica o ver, ou seja, na tradição imemorial da palavra o ver segue o dizer e,

portanto, o ouvir. Somente com a ênfase e a inclinação na direção de uma cultura escrita

é que se pode afirmar, muito posteriormente, que o dizer segue o ver.

Numa configuração de mundo vocalizado tal qual a da sociedade grega arcaica,

o sentido de que é preciso dizer para ver ganha uma densidade de contornos

dimensionada pela sacralidade do evento poético. A relação dizer/escutar com-promete

a audição como depositária da manifestação e interpretação do mundo. A audição é a

realização do acabamento do dizer que manifesta e que interpreta, quer dizer, nela se dá

62
Reden, no alemão moderno.
63
Raten, no alemão moderno.
64
Cf. Buck, 1988:1255.
35

a síntese do que se manifesta e do que se interpreta em todo dizer do poeta-cantor. Esta

é uma situação completamente diferente de um mundo dirigido desde a intermediação

da luz. Em toda mediação, a relação da visão com o mundo, sem ser direta, não

sintetiza, mas analisa as coisas do mundo a fim de dispô-las na linearidade de espaço e

tempo. Analisar quer dizer identificar o que pela luz é iluminado e subtrair a diferença

do que não se mostra à luz. A correlação ordenadamente linear do que se estabelece à

luz registra a identidade como o exato, como o que o ente é. A visão necessita então

identificar os entes que são e como são a fim de estabelecer a ordem visual do mundo. O

procedimento será então o da separação, isto é, o da análise, a fim de se chegar

corretamente à identidade do que cada coisa é e como é. A visão, de acordo com a

natureza própria da escrita, necessita da análise como procedimento de operação. A

visão analítica se caracteriza como elemento de viabilidade da escrita enquanto esta está

destinada a leitura. A leitura é então um procedimento de reconhecimento do que já se

analisou e foi assimilado como identificável.

Na verdade, o termo “escrita” denota uma série de dispositivos tecnológicos que,


independentemente dos materiais e instrumentos variáveis utilizados como suporte do
escrito ou como meio de escrever, vieram a distinguir-se historicamente por conta de sua
variável capacidade de cumprir sua função básica: a função de apoiar o usuário no ato de
um reconhecimento. A experiência visual de uma forma ou de um signo escrito foi
originalmente usada para referir e acionar um “pensamento” de algum modo pertinente a
essa forma ou com ela associado.
(...) Um sistema de escrita evoluído e bem-sucedido é aquele que não pensa. Há de ser
um instrumento meramente passivo da palavra falada, mesmo que se trate (para fazer um
paradoxo) de uma palavra silenciosamente falada.65

Para que se venha, em algum momento, chegar a compreender os mecanismos

pelos quais o advento da cultura letrada mantém uma estreita relação com a

dessacralização do mundo, é preciso que se aprofunde ainda uma outra questão

implícita na transição da sociedade oral para a cultura letrada. Essa questão diz respeito

65
Havelock, 1996a:57-8.
36

justamente a um aspecto decisivo para a mudança da disposição mental que lida com o

oral e o sagrado de um lado e de outro com o escrito e o des-sacralizado. Trata-se aqui

não somente da mera transição do ouvido e da audição para o olho e a visão, mas com

isso, a transformação do enfoque do concreto para o abstrato. Somente nessa mudança

de enfoque é que não somente pode se dar o paradoxo de uma “palavra silenciosamente

falada”, mas de modo ainda mais aprofundado, o fato da palavra se converter numa

terminologia impronunciável.

Que a linguagem na sua dimensão arcaica pronuncia o mundo e que em tal

pronúncia remanesce o não-dito como o que se reserva e se retrai, disso Heráclito é

testemunha: “surgimento já tende ao encobrimento”.66 Todo lógos só pode ser uma

proclamação do mundo na medida em que, como tal, se des-vela auto velando-se. Outra

coisa, porém, completamente diferente é o fato da linguagem se transformar

primeiramente num instrumento de expressão e comunicação em que tal esforço

comunicativo visa a clareza de tudo o que se diz como exatidão do enunciado, des-

aderindo de sua constituição o não-dito do mundo como numinosidade do real. Em

segundo lugar, pensada agora somente como instrumento, desdobra-se o fato de a

linguagem se inserir completamente no âmbito do impronunciável, inscrita num âmbito

totalmente artificial e somente visível e visualizável no intelecto. Nesse caso a

linguagem se transforma em metalinguagem. Suas sentenças continuam a servir o

propósito instrumental à qual foi reduzida, mas se caracterizam pela total

impossibilidade de pronúncia: a linguagem aí se transformou em metalinguagem da

instrução. Como instrução que não pode ser jamais pronunciada, a metalinguagem vai

dimensionando e controlando todo o real fazendo-o aparecer como o que é tecnicamente

66
Heráclito, Fragmento 123. In: Os pensadores originários, p. 91.
37

compreendido. Os signos que tal linguagem apresenta já não são mais os signos que o

mundo manifesta, mas se constituem a partir dos compêndios terminológicos

inteligíveis fundados numa operacionalidade lingüística pura. Dessa forma, como

instrumento, a linguagem convertida em metalinguagem consiste num operar de sinais e

instruções, como num acender e apagar das luzes conforme se pressiona um interruptor.

O total deserdamento de toda a oralidade da linguagem pela completa abstração da

escrita não faz mais do que transformar a própria linguagem no que se poderia

jocosamente se intitular de “metalinguagem do interruptor”, que aciona e desativa as

instruções de um construto intelectual e mecanizado do real. Não fossem nefastas as

conseqüências para a alienação total do homem e do real realizada pela totalidade da

abstração da linguagem, poderia mesmo até se esboçar um riso. Porém, do que se ri

hoje, faz-se de maneira amarelada, talvez até mesmo sob a forma “instrucionada” de

uma metalinguagem concebida e ao mesmo conceitualizada, mas acima de tudo,

conceitualizante do próprio modo de ser do homem. É que a linguagem como

metalinguagem em si não sabe nada, nem quer saber nada do homem e do real. O seu

pressuposto é a autonomia operacional, um em si platônico levado às últimas

conseqüências, pelas quais já nem mesmo o sujeito é totalmente sujeito, na medida em

que se torna também objeto não dele, mas do caráter instrucional da metalinguagem

autônoma.

Platão confecciona uma parábola, uma alegoria da caverna, no intuito de

demarcar com bastante precisão o que pretende rejeitando a tradição poética da Grécia

em função de uma nova mentalidade fundamentada na intelecção do que se encontra na

idéa. Retomando a passagem da República (VI, 507d-509a)67, a finalidade é mostrar

67
Platão, 2000:311-2.
38

que, tal qual o sol, que ilumina de forma indubitável as coisas vistas pelos olhos, por

oposição às sombras deformadas e projetadas pelo clarão do fogo na parede da caverna,

o que se encontra na intelecção como idéa é a Idéia do Bem.

(...) Platão desenvolve a seguinte questão: Em que a coisa vista e o ato de ver são eles
aquilo que eles são em sua relação? O que é que estende o arco que os une? Que jugo
(zugovn, 508a, I) os mantém reunidos? A resposta, que o “mito da caverna” está carregado
de traduzir em representações sensíveis, nos é assim dada sob a forma de imagem: é o sol,
fonte de luz, que confere à coisa vista sua visibilidade. Mas a vista não vê o visível senão
enquanto o olho é hJlioeidev"68, “de natureza solar” (Sonnenhaft), que ele é o poder de
participar ao modo de ser do sol, quer dizer à sua luminosidade. O olho é ele mesmo
“luminoso”, ele se dá ao parecer, e é assim que ele pode acolher e perceber aquilo que
aparece. Para quem vê através dela, esta imagem sugere relações designadas como seguida
por Platão (VI, 508e, I ss.): tou~to toivnun toV thVn ajlhvqeian parevcon toi~"
gignwskomevnoi" kaiV tw~/ gignwvskonti thVn duvnamin ajpodidovn thVn tou~ ajgaqou~ ijdevan
favqi ei[nai.69 “Aquilo que, portanto, permite o não-velamento das coisas conhecidas, mas
dá também ao conhecedor o poder (de conhecer), revela que isto é a Idéia do Bem”.70

Essa concepção de Platão se viabiliza de duas maneiras copertencentes: a

primeira é a transformação da verdade em correção (orthótes) e semelhança

(homoiósis). A segunda maneira, que no texto de Platão aparece em primeiro lugar,

recebe o nome de mímesis (imitação) e está fundamentalmente interligada com a

verdade concebida como correção e semelhança. Essa interligação não é fortuita e

precisa viger à todo custo de modo a criar as condições de rejeição da tradição poética

grega em prol da concepção filosófico-científica do real. Ora, para que se leve à cabo a

rejeição da tradição poética ao mesmo tempo em que se funde o mundo supra-sensível

da idéia do bem como guia e orientação do real, é preciso, antes de mais nada, que

ambas as coisas, o que sai de cena e o que assume o seu lugar, atuem no mesmo palco,

que estejam colocadas no mesmo nível. A compreensão e aceitação tácita da mímesis

como essência da poesia é a condição sine qua non para a compreensão da crítica de

68
Helioeidés.
69
Touto toinun to tên alêtheian parechon tois gignôskomenois kai tôi gignôskonti tên dynamin apodidon
tên tou agathou idean phathi einai.
70
Heidegger, 1994a:15-6.
39

Platão à poesia. O nivelamento se dá pela adoção da mímesis como denominador

comum, como o parâmetro tanto de uma coisa, como de outra, tanto da tradição poética,

como da abstração conceitual do real.

Mas, quando [o poeta] nos dirige qualquer fala como sendo de outra pessoa, não
poderemos dizer que se esforça para deixar sua linguagem, tanto quanto possível, parecida
com a da pessoa por ele mesmo anunciada antes que nos iria falar?
(...)
Ora, imitar alguém, ou pela palavra ou pelo gesto, não é representar a pessoa imitada?
Sem dúvida.
Sendo assim, num caso como esse, ao que parece, tanto Homero como os demais
poetas procedem em suas narrativas por imitação.71

Como condição sine qua non para a crítica da poesia, a concepção da essência da

poesia como mímesis não é passível de discussão e/ou contestação, pois é preciso que se

viabilize as condições necessárias para que, uma vez que ambas as coisas, a poesia e a

idéia do bem, figurem agora no mesmo plano, Platão possa dar prosseguimento ao seu

ataque à tradição poética caracterizando-a como uma imitação de segunda categoria,

uma mímesis duas vezes afastada da idéia. Para tal, usará a figura do pintor em

comparação com a do artesão, por exemplo, o carpinteiro, para demonstrar logicamente

que o que este faz por imitação simples, isto é, fabrica leitos e mesas segundo uma idéia

permanente do que estas sejam, aquele o faz em sua pintura de um modo duplamente

afastado e, pior, sem conhecimento algum da arte (técnica) de fabricação de tais

utensílios. Não falta ironia e sarcasmo a Platão na construção de sua argumentação:

Então, tomemos dessas pluralidades a que quiseres; a seguinte, por exemplo, se


estiveres de acordo: leitos há [596b] muitos e também camas.
(…)
Porém para todos esses móveis só há duas idéias: a idéia do leito e a idéia da mesa.
(…)
Costumamos também dizer que os obreiros desses móveis têm em mira a idéia
segundo a qual um deles apronta leitos e outros as mesas de que nos servimos, e assim tudo
mais. Porém a idéia em si mesma o [596c] obreiro não fabrica. Como poderia?
(...)
E agora; dás também o nome de mestre ao seguinte artesão?

71
Platão, 2000:147 (393c).
40

Qual?
O que pode fazer tudo quanto faz particularmente cada obreiro.
Falas de um homem extraordinário e miraculoso!
Ainda é cedo; daqui a pouco dirás que ele é muito maior. Pois esse mesmo obreiro não
é apenas capaz de aprontar móveis, como faz tudo o que nasce da terra, dá forma a todos os
seres vivos, a ele próprio e ao que mais houver, além de ser o autor da terra, do céu e dos
deuses, e de quanto existe no céu e embaixo da terra, no Hades.
[596d] Referes-te a um sofista admirável, me falou.
Não acreditas? perguntei; então, me dize: achas mesmo que pode haver um artista
nessas condições? E em que circunstâncias tudo isso poderia ser fabricado, e em quais não
poderia? Não percebes que tu próprio, de certo modo, serias capaz de criar tudo isso?
(...)
Não é difícil (...), a prova pode ser feita a qualquer hora e em pouco tempo, porém
muito mais depressa se te resolveres a tomar um espelho e o levares contigo por toda parte:
num abrir e fechar de [596e] olhos farás o sol e tudo o que há no céu; num segundo, a terra;
rapidamente farás a ti mesmo e os outros animais, os móveis, as plantas e tudo o mais que
enumeramos há pouco.
Não há dúvida, (...); porém tudo isso não passa de aparência; carece de existência real.
Ótimo! (...); bateste no que eu queria; mas entre esses obreiros, quero crer, há de estar
também incluído o pintor.
(...)
Porém decerto dirás, segundo creio, que ele não faz de verdade tudo o que faz. Mas de
certo modo o pintor também faz alguma espécie de leito. Ou não fará?
(...)
[597a] II - E o carpinteiro? Não afirmaste agora mesmo que ele não constrói a idéia do
que dissemos ser o leito, mas apenas um determinado leito?
(...)
Ora, se ele não faz o que é, não poderá fazer o que tem existência real, senão apenas o
que parece existir, sem, de fato, existir. E se alguém se abalançasse a afirmar que o trabalho
do carpinteiro ou de qualquer outro artesão tem existência, de maravilha estaria falando a
verdade.
[597b] (...)
E não queres (...) estudar comigo esses casos, para procurarmos o imitador e dizer em
que consiste a imitação?
(...)
Assim, tais leitos se nos apresentam sob três formas: uma, que se encontra na natureza,
obra, segundo penso, de Deus. (...)
(...)
Outra, feita pelo carpinteiro.
(...)
E outra mais, a do pintor (...)
(...)
Logo, pintor, carpinteiro, Deus: aí temos os três mestres das três espécies de leito.
[597c] (...)
[597e] Quer parecer-me, disse, que a designação mais acertada [ao pintor] seria a de
imitador daquilo que os outros são os obreiros.
(...) Dás, assim, o nome de imitador ao que produz o que se acha três pontos afastado
da natureza.
(...)
Ora, exatamente como ele, encontra-se o poeta trágico, por estar, como o imitador, três
graus abaixo do rei e da verdade, o que, aliás, se dá com todos os imitadores.72

72
Platão¸ 2000:434-7.
41

Não há uma teoria platônica da arte na República. O que há é uma teoria do real

em que a mímesis não é um termo exclusivamente empregado na classificação da arte,

mas de vários outros fenômenos. A mímesis é o denominador comum que permite que

tudo possa ser alinhado de acordo e em correspondência com a idéia do bem. A teoria

de Platão é, definitivamente, uma teoria e como tal ela versa sobre real. Com o

aparecimento de uma teoria do real, é o próprio real que pela primeira vez aparece de

acordo com a teoria. Não sendo uma teoria da arte, mas sim uma teoria do real, a

conceituação platônica promove uma total abstração do mundo. Ora, na abstração do

mundo não pode haver nem lugar nem vez para o concreto do mundo. Dar lugar à

concreta manifestação do mundo é deixar que o poeta-cantor venha ao palco e proclame

a mensagem das Musas pelo vigor que é próprio das Musas. Esse vigor é sempre maior

que toda teoria do real, pois tal coisa perde consistência na relação dirigida desde a

dimensão oral de mundo. Entretanto, teoria do real é uma expressão que denota

justamente o oposto do que diz. Toda teoria do real enuncia o real dimensionado desde a

teoria, sendo que o que em verdade se diz não é uma teoria do real, mas um real da

teoria. Em toda teoria do real, o que se encontra de antemão pré-escrito é o real e isso de

um modo que tal pré-escrita pertence à teoria, não ao real. Entretanto, a mesma sentença

numa sociedade oral plena da relação audição/mundo pronunciando as palavras “teoria

do real”, nada mais diz do que o sentido da teoria disposto desde a dimensão do mundo.

No entanto, Platão quer justamente alterar esse modo de compreensão e para tal precisa

radicalmente do conceito de mímesis a fim de viabilizar o projeto de abstração do

mundo. Abstrair o mundo nada mais é do que instituir o real mediado desde a idéia do

bem.
42

Nessa perspectiva, não sendo A República nem uma teoria do estado, nem uma

teoria política, não sendo uma teoria da educação e sequer da arte, mas, sobretudo uma

teoria que afirma o que é e como é o ente, dali para diante, real e irreal, concebido desde

a adequação (verdade) à idéia do bem, que não é nenhum Deus, mas aquilo que pela

primeira vez brilha, tal qual o sol, no intelecto de um sujeito que se separou do mundo,

um sujeito que conhece e deseja conhecer o conhecido, nessa perspectiva, Platão, para

garantir a fundação de uma nova tradição precisa de todo modo assegurar em primeiro

lugar que a condição mito-logo-poética de um homem lançado no aberto do mundo seja

rápida e radicalmente substituída pela experiência da intelecção como lógica e razão.

Para Platão, a realidade ou é racional, científica e lógica, o não é nada. O instrumento


poético, ao contrário de revelar as verdadeiras relações entre as coisas ou as verdadeiras
definições das virtudes morais, forma uma espécie de tela refratora que mascara e distorce a
realidade e, ao mesmo tempo, distrai-nos e nos prega peças recorrendo à mais superficial de
nossas percepções.
Portanto, a mímesis constitui agora o ato integral da representação poética, e não mais
o estilo dramático.73

Por isso, toda a tradição poética da Grécia Arcaica, que se manifestava numa

densidade espacio-temporal sagrada, precisa ser radicalmente destituída de seu poderes

divinos e encantatórios, simplesmente pelo fato de que em virtude de sua onto-logo-

fania do real e, conseqüentemente, pela natural e esperada auto identificação do homem

para com ela, nenhum nada de teoria epistemo-lógica poderia se fazer valer de maneira

suficientemente vigorosa a ponto de realizar efetivamente a transição do concreto para a

conceituação abstrata do mundo.

Esta transição não é fácil, nem ocorre localizadamente em Platão como se fosse

um passe de mágica. Porém, à época de Platão já se reúnem todas as condições

essenciais para que ela se dê de um modo absolutamente irreversível. Pelo fato de tais

73
Havelock, 1996b:42.
43

condições já se apresentarem favoráveis à época de Platão é que ele pode então, ousa-se

aqui dizer, de maneira quase sofística, atribuir à dimensão poética um estatuto que

jamais lhe pertencera ou lhe caracterizara e, com isso, não apenas fundar uma teoria do

real, mas de quebra, uma teoria da arte. Não é senão por isso que Aristóteles e toda a

tradição filosófica ocidental irão se debruçar sobre a arte desde o estatuto da mímesis.

Pois o que não se comenta e nem Platão chega a qualquer tempo dizer, trata justamente

da questão que permanece em aberto, qual seja, que em nenhum momento na República,

exceto na discussão a respeito do estilo poético de Homero, Platão argumenta desde

onde a poesia do poeta é um ato da mímesis, mas simplesmente dá isso como

pressuposto. Entretanto, como esse é o mesmo pressuposto que relaciona a idéia do bem

ao que se manifesta no mundo sensível, chegando mesmo a conferir o seu sentido, então

se compreende por que Platão se torna refém de sua própria criatura. No entanto, não só

ele é refém, mas toda tradição filosófica ocidental e toda compreensão vigente do real

que dimensiona toda a circunstância do ser desde a imitação do que se encontra modelar

e formalmente vigente na idéia e no intelecto do sujeito.

Como teoria do real, Platão necessariamente define o mecanismo de validação

do que é e do que não é real. A necessidade aqui é aquela exigida desde a verdade como

correção. Portanto, se há uma idéia do bem, seja ela qual for, importa apenas que ela

seja compreensivamente uma emanação da razão. “Tudo isso é trabalho da porção

raciocinante da alma”, diz Platão.74 À idéia do bem se deve aderir à garantia de que por

imitação o real a corresponda corretamente. A não correspondência, por menor que seja,

não é, obviamente, algo que possa ser cotejado e, portanto, validado desde a

comparação com o que vige na idéia. Daí que em toda noção que busca uma

74
Platão, 2000:445 (602e).
44

correspondência com o que vige na idéia mediante a correção e a semelhança, irá

necessariamente encontrar o que deve ser taxado como falso, ou seja, como não correto,

não correspondente ou não semelhante. Ora, é o que se lê no texto de Platão a respeito

do pintor e por analogia, a respeito do poeta: “Ora, se ele não faz o que é, não poderá

fazer o que tem existência real, senão apenas o que parece existir, sem, de fato, existir”.

Ou ainda: “porém tudo isso não passa de aparência; carece de existência real”.75

No exemplo usado por Platão, o que carece de existência real, o que parece sem

existir, nada mais é do que a tradição poética da Grécia Arcaica. Esta determinação não

serve apenas para o modo de se relacionar oralmente com o mundo dos gregos arcaicos,

mas se torna referência para o modo pelo qual toda a tradição filosófica ocidental

posterior conceitualizará a arte. A determinação de Platão sobre a inexistência ou

carência do real na poesia se dá como parte do processo que visa substituir a tradição

poética do concreto pela concepção abstrata do intelecto. Para Platão a poesia corrompe

o intelecto:

Para falar-vos à puridade, pois decerto não ireis denunciar-me aos poetas trágicos e aos
demais cultivadores da poesia imitativa, o que me parece é que todas essas composições
corrompem o claro entendimento dos ouvintes, a menos que estes disponham do antídoto
adequado: o conhecimento de sua verdadeira natureza.76

O antídoto como conhecimento da verdadeira natureza é a reflexão que se dá no

intelecto e cuja vidência mira a verdadeira natureza da poesia a partir da luz que a

ilumina: a idéia. A verdadeira natureza é aquilo que se mostra revelado pela luz e

portanto, está em conformidade com essa luz. O pressuposto de Platão é que somente o

que, tal qual o sol, vige na luz suprema é a forma essencial que dá sentido ao real. A

operação levada à cabo desde o estabelecimento da mímesis como essência da poesia

75
Cf. nota 74, p. 41.
76
Platão, 2000:433 (595b).
45

nada mais é que a instituição da possibilidade de crítica à poesia em que se pode

sustentar a argumentação de que o poeta, da mesma maneira que o pintor, imita algo

que já se encontra afastado da forma original da idéia. Não há a consideração de que a

poesia possa não ser mimética. Para Platão, tudo é resultado da imitação, seja da forma,

para ele primordial, da idéia ou da imitação do que já fora imitado pelo artesão. A

poesia em Platão se encontra disposta no mesmo plano homogêneo de espaço e de

tempo que as demais coisas. E não poderia ser diferente, pois para Platão o método de

apreensão do mundo é o da visão, da visão científica, geométrica e matemática, pela

qual tudo que se conhece é conhecido primeiramente na idéia.

A idéia é abstração por excelência. Nela não há espaço, nem tempo, somente os

conceitos imóveis e permanentes. Ora, para que tal “idéia” possa vingar, não é possível

que no espaço e no tempo sensíveis haja uma situação que quebre a homogeneidade do

conceito. O espaço e o tempo sagrados são, pois, uma ameaça à instituição de um real

homogêneo, estruturado desde o conceito. Por isso, ao afirmar que a poesia é um

veneno para o intelecto, o alvo de Platão não é exatamente a poesia em si, mas algo que

nela subjaz como mais fundamental e poderoso na sociedade grega. O que subjaz na

relação aberta com o mundo na poesia se trata justamente da sacralidade do evento

poético. Por ser oral, isto é, por se dar na recíproca relação de dizer e escutar, de som e

silêncio, admite o sentido do mundo como múltiplo, isto é, em múltiplas acepções de

sentido. Na multiplicidade con-corrente, concomitante, o mundo não é um objeto

oferecido ao conhecimento através de um princípio fundamental, mas uma relação de

reciprocidade e de co-pertencimento entre ser e coisa, entre ser e o que povoa de ser o

próprio mundo.
46

Quando no Livro X Platão argumenta que a poesia corrompe o claro

entendimento, o que ele tem em vista é o entendimento dos ouvintes. O que ele oferece

como antídoto não é uma outra audição, mas a visão clara do e-vidente que se afigura

no intelecto pela razão. O que se afigura na razão intelectiva não é a pintura do leito,

nem o leito que o artesão fabrica, mas tão só e unicamente a idéia permanente do que é

o leito, isto é, do que é o ente, do ser do ente, e nada mais. Nada mais aqui significa: o

ser como singularidade, separado da multiplicidade de tudo que lhe é referente,

inclusive do nada. Para que tal coisa possa em última instância ser visualizada é preciso

remover de vez a reminiscência do estado mental oral encarnado pelo poeta, é

necessário dessacralizar o evento poético atribuindo-lhe um valor igual às demais coisas

no espaço e no tempo homogêneos. A tarefa a que se propõe Platão é a de uma

desconstrução do concreto, isto é, um desenraizamento da compreensão oral/auditiva do

mundo para construir uma visão abstrata do real. Para Platão, somente aquilo que não

está sujeito à ação do espaço e do tempo oralizado e ouvido, mas sim o que se apreende

desde o conceito inespacial e a-temporal da idéia é que tem existência real. A existência

deve se dar como um puro ser sem qualquer concreção. Pois, o que é concreto está

sujeito às intempéries do espaço e do tempo, o concreto é passível de ser sagrado e

também de ser profano, o concreto corre sempre o risco de ser de um modo ou de outro,

inclusive o de não mais ser. Ser e não ser, para Platão e para toda tradição de

pensamento posterior, é algo confuso que só pode se dar na percepção de quem ouve e

portanto, não julga, mas é conduzido pelo mundo sensível tal qual ele se apresenta.

Estes são os que habitam a caverna de Platão. Os habitantes da luz, ao contrário,

efetuam, operam o julgamento do que é e do que não é o real mediante a luz racional do
47

conceito, da idéia e por isso, chegam à verdade do ser como correspondência ao que é

permanente sem espaço e sem tempo.

Por isso, toda efetividade da passagem do concreto ao abstrato do puro ser em

Platão ocorre não somente por que de um lado tudo é uma mímesis, mas também,

porque de outro lado tudo se torna objeto de uma comunicação pura e simples. A

compreensão de Platão liga-se diretamente a noção do vocábulo léxis em que, no Livro

III, passa da descrição do tipo de história narrada pelo poeta para pensar sua atividade

como uma técnica de comunicação verbal. Essa mudança assinala na verdade uma

mudança de paradigma a respeito do que vem a ser a própria linguagem. Se com o poeta

a linguagem, sob a forma da palavra, é a própria onto-logo-fania do real, isto é, a

linguagem é depositária da experiência numinosa arcaica do real77, Platão a toma num

sentido totalmente diverso, como “tecnologia” de comunicação. A linguagem em Platão

é desatrelada do próprio real para se constituir num elemento intermediário, mediador

entre o que é a idéa e o que dela está representado na experiência.

Platão reconhece a linguagem como depositária de uma experiência numinosa:

ar’ou panta hoas hypo mythológon è poietôn lêgetai diégesis ousa tynchánei è

gegonóton è ónton è mellónton – “tudo o que os mitólogos e os poetas contam não é um

relato de fatos passados, presentes ou futuros?”78 Se ao invés de pensar a palavra

diégesis como relato, para pensá-la como narrativa, então, fica claro que o que está na

mira de Platão é o modo pelo qual o conteúdo do que está na narração é apreendido por

quem ouve. Pelo fato da narrativa manifestar um tempo e um espaço sagrados, isto é,

manifestar a sacralidade do evento poético, o conteúdo já não pode ser um objeto de

77
Cf. Torrano, 1995:14-20.
78
a)=r' ou) pa/nta o(/a\s u(po\ muqolo/gwn h)\ poihtw=n le/getai dih/ghsij ou)=sa tugxa/nei h)\ gegono/twn h)\ o)/ntwn h)\
mello/ntwn. Platão, 2000:146 (392d).
48

conhecimento verdadeiro, aquele conhecimento que exprime corretamente o que se

afigura na idéia. É preciso separar o homem desse evento poético a fim de que o sistema

das idéias se viabilize. Por isso, a meta inicial perseguida na República e que propiciará

as condições fundamentais para a o estabelecimento de uma teoria do real se concentra

na afirmação de um sujeito, de uma personalidade ou psyché autônoma e auto-

governante.

O espírito ou a vontade é o aliado correto da razão calculadora. Com seu auxílio, a


tarefa da razão é controlar os instintos apetitivos e conduzir a psyche como um todo a um
estado harmônico e unificado, no qual a virtude de cada faculdade, demonstrada no
desempenho de seu papel adequado dentro de seus próprios limites, reúne-se aos seus
companheiros num estado de “justiça” global. Esta constitui a verdadeira moral interior da
alma e Platão, à medida que retoma, recorda e agora explica sua descrição anterior do
guardião que conquistou o autodomínio.
(...)
Justifica-se o fato de termos chamado a isso uma doutrina da personalidade autônoma,
uma doutrina que deliberadamente reagrupa seus próprios poderes a fim de lhes impor uma
organização interior, cuja inspiração é autogerada e autodescoberta.79

Na estruturação de uma teoria do real a meta inicial de Platão necessita, de outro

lado, a afirmação de um objeto, um campo de conhecimento que será inteiramente

abstrato. O estabelecimento desse campo de conhecimento está bastante evidente no uso

da expressão per se ou si mesmo(a) ao longo da República. Em 493e-494a, Platão opõe

as coisas belas ao conhecimento da beleza per se. Ora, as coisas belas são sem dúvida

nenhuma concretas, mas como sentido do mundo manifesto no evento poético não

dizem respeito ao que a beleza em si mesma seja e sim à multiplicidade das coisas do

mundo. Essa situação terá de ser revista mediante a reflexão racional abstrata a fim de

se chegar ao conceito de beleza, não somente para as coisas que foram manifestas pelo

79
Havelock, 1996b:219-20. A descrição de Platão do guardião que conquistou o autodomínio é a
seguinte, de acordo com a tradução do próprio Havelock: “a probidade diz respeito à ação interior, e não à
exterior, a si próprio e aos componentes do eu, reservando os componentes específicos no seu eu aos seus
respectivos papéis, impedindo que os tipos de psyche interfiram uns nos outros; obrigando um homem a
pôr ordem nas suas várias qualidades, a assumir o comando de si mesmo, organizar-se e se tornar um
amigo de si próprio... tornando-se, sob todos os aspectos, uma única pessoa em vez de muitas”. Cf.
Platão, 2000:221-2 (443c ss)
49

canto do poeta, mas fundamentalmente como a forma permanente da beleza. Para Platão

o evento poético apenas reflete o conteúdo de modo plural e desorganizado, em franca

oposição ao modo de mostrar do discurso apofântico, um discurso logicamente

organizado mediante a reflexão da razão.

Para o estabelecimento de uma teoria do real como um puro ser é necessário que

se separe do mundo o próprio homem, a fim de que como sujeito, isto é, alguém que

tem consciência de si próprio, possa vir a conhecer os entes que também do mundo

foram retirados, isto é, daqui por diante os objetos incontaminados pelo distanciamento

do mundo. Por isso, a linguagem agora tem sua essência na léxis e não mais no lógos. A

linguagem já não pode mais manifestar nada, mas deve ser instrumento proposicional

que executa a correspondência operada por aquele que conhece (sujeito) ao que por ele

é conhecido (objeto). A instituição de uma racionalidade abstrata exige a adoção de uma

linguagem puramente conceitual e que corresponda integralmente à exatidão do

conceito. Havelock sintetiza a exemplificação de Platão sobre o modo como a

linguagem é usada na comunicação dos conceitos abstratos. Platão usa a observação do

céu como exemplo paradigmático a fim de elucidar o comportamento universal dos

corpos, expressos em equações que “são” e não mudam. Platão defende a invenção de

uma linguagem abstrata da ciência descritiva a fim de substituir a linguagem concreta

da memória oral.

Em primeiro lugar, diz ele, comece a pensar não na velocidade na qual esse objeto
específico que se vê está se movendo ou no seu tamanho; pense sobre velocidade e tamanho
como coordenadas em geral; em segundo, não me diga “veja, A está se levantando mais
rapidamente do que B”; em vez disso, tente dizer: a velocidade temporariamente
corporificada em A é duas vezes maior do que a temporariamente corporificada em B; e
então diga: as velocidades desses corpos estão numa determinada proporção com relação a
uma velocidade comum teórica; e isso fará refletir acerca de quais são as leis ou fórmulas
segundo as quais as velocidades aparentes variam. Desse modo, a astronomia invisível
torna-se um artifício para pensar em termos do que (a) é puramente abstrato e (b) pode ser
enunciado numa sintaxe atemporal como aquilo que sempre “é” e nunca “não é”.
50

Eis aqui uma nova estrutura do discurso e um novo tipo de vocabulário apresentado à
mente européia. Nós o aceitamos sem discussão hoje como o discurso de homens
instruídos. Não nos ocorre que houve um tempo quando precisou ser descoberto, definido e
enfatizado para que pudéssemos fácil e complacentemente herdá-lo. Essa descoberta
pertence exclusivamente a Platão, muito embora ele esteja construindo sobre um grande
esforço nessa mesma direção que o precedera. O fato de que os vocábulos gregos que
pudemos traduzir aqui como “movimento” ou “corpo” já existissem não significa nada. Foi
sua relação sintática que mudou, e quando o fez, o vocábulo foi privado da particularidade e
se ampliou de modo a abarcar as dimensões de um conceito. No uso pré-platônico (se
excetuarmos alguns pré-socráticos) os vocábulos jamais haviam sido empregados sujeitos
ao atemporal é. Eles haviam simbolizado o vôo de uma flecha ou o corpo de um homem em
particular quando se apresentavam adequadamente na série narrativa, e agora vão significar
apenas “todo e qualquer movimento” e “todo e qualquer corpo do cosmos”, sem
especificação. Eles foram abstraídos e integrados com base em todas as figuras de corridas
e vôos de flechas ou homens, de corpos de lutadores e cadáveres mortos. Eles haviam se
transformado em “invisíveis”.80

Tome-se então, por exemplo, um texto poético para submetê-lo ao crivo da

linguagem conceitual platônica. A articulação deve ser puramente realizada através de

conceitos universais, aqueles que são perenes, atemporais e inespaciais. Tome-se para

submeter à análise um verso de Manoel de Barros:

Tem mais presença em mim o que me falta.81

O que diz o poema? Algo que não pode se dar nem no espaço e nem no tempo.

Afinal, como algo que falta pode ter preseça? Como a ausência pode ser presente?

Presença é um modo de comparecimento e ausência o seu oposto. É possível que esse

verso diga algo que na verdade é absurdo. A falta sendo presente se destitui do seu

caráter de ausência. Por outro lado, se o que está presente é a ausência, considerado na

perspectiva da ausência é a presença que se esvái. Observado pura e exclusivamente sob

o ponto de vista conceitual o que diz o verso é algo impossível, uma vez que presença e

ausência são “conceitos” que se excluem mutuamente. Na poesia, entretanto, eles são

concomitantes. Na perspectiva do conceito o que se diz na poesia é irreal, carece de

80
Havelock, 1996b:275.
81
Barros, 2000:67.
51

fundamento e não corresponde aos conceitos de presença e de ausência. Tratada como

afirmação, o que se diz no poema é absolutamente falso.

No entanto, não é isto que se pensa quando se ouve o poema. Meditando um

pouco mais a seu respeito, qualquer um logo compreende e atesta com sua própria vida

a revelação do que o poema diz. E o que o poema diz? Diz que em mim o que falta está

mais presente. Estar mais presente quer dizer que a falta se faz mais presente do que o

presente. Quantas não são as situações em o poema aqui não dimensiona o real de modo

tão compreensivo, de maneira tão abrangente. Os amantes, por exemplo, na mútua

ausência são os que mais se fazem presentes um ao outro. Não é a falta de algo

justamente que convoca seu aparecimento como presença? A sociedade de consumo é a

prova mais comezinha do que se diz no poema, na medida em que se estimula a

necessidade da presença daquilo que como ausência não se possui. O que há então de

absurdo e irreal no poema que o conceito não possa aceitar sua concomitância se o que

o poema diz pode ser dito desde as coisas que se têm por mais elevadas até aquelas que

podem se constituir como as mais banais? A resposta necessariamente tem de considerar

a própria natureza do que poesia e conceito são. A poesia diz, refere-se a coisas as quais

o conceito não pode levar em consideração pelo simples fato se estar afastado do real,

pelo simples fato de no conceito e por ele se operar a exclusão do que no real se dá

como real. O conceito é a consideração apenas do real como o que nele se dá como

conceito e nada mais. Mas, ainda é possível uma última e derradeira argumentação: a de

que a linguagem do poema é figurativa. Nessa hipótese, não há como se furtar em

questionar que então, é mesmo possível, a despeito da linguagem conceitual da

metafísica, que a linguagem possa ainda se dar como anúncio de outras possibilidades?

Então, em que pese a crescente “cientifização” e tecnologização do mundo, em que tudo


52

se dispõe na dualidade excludente de uma “metalinguagem de interruptor”, do ligado-

desligado, do sim-não, do é ou não-é, ainda é possível pensar para além disso tudo uma

tal coisa como o sentido “figurado” na medida em que este pode chegar até mesmo a

caracterizar a linguagem? É mesmo possível que ainda se possam abrir outras

perspectivas de sentido que não a igualdade da identidade desvinculada de toda

diferença operada pela correção do conceito?


Capítulo II

O originário como possibilidade essencial no

horizonte do perguntar

Vemos com clareza crescente, e aprendemos isso sobretudo


com Heidegger, que a metafísica grega representa o começo da
técnica. No trajeto de uma longa história, a formação conceitual
gerada pela filosofia ocidental gerou a vontade de domínio como
experiência fundamental da realidade.

Gadamer, 2002:238.

A questão que permanece agora é aquela colocada pela palavra do poeta:

Tem mais presença em mim o que me falta.82

O que aqui se coloca como questão é a possibilidade de na linguagem se dar

uma vigência outra que não aquela estabelecida pela ciência e pela técnica através dos

modernos conceitos da teoria da informação. Cabe perguntar então, em que consiste o

projeto de linguagem constituído na ciência e na técnica, e de que modo suas teorias

levam a cabo tal projeto na plenitude de possibilidades da metafísica? Afinal, desde que

parâmetro pode se atribuir ao dizer do poeta um sentido “figurado”, no sentido de um

dizer que apenas “imita” o real, mas que não tem “realidade” própria? Que estatuto

retira a ficção, a imaginação do que se diz para opô-la ao real como irreal? Em que

difere o dizer do poema, ou melhor, o dizer da poiésis, do enunciado da ciência? Mais

ainda: que importância tem tudo isso e em que isso ajuda no empreendimento de um

caminho do pensamento em direção a questão de música, poética e sentido?

82
Barros, 2000:67.
54

Para que se possa não responder, mas sim, tematizar questões como essas, um

caminho pode ser o de perguntar pelo “dispositivo” conceitual que na Cultura Ocidental

operou o próprio real como conceito, um tal “dispositivo” que se apresenta de modo

inseparável dos conceitos de idéa, linguagem, sujeito, objeto e causalidade, entre outros.

Esse “dispositivo” central para a Cultura Ocidental não é outra coisa senão aquilo que se

indica pelo nome de “verdade” e é a partir do modo como se decidiu compreendê-la e

“aplicá-la” que se constitui a compreensão ocidental vigente, inclusive, e

principalmente, a conceitualização da arte em geral através da estética. Por isso, fala-se

da obra já e sempre sob uma determinada perspectiva do que seja a verdade. Fala-se

inclusive de uma verdade da obra, da veracidade da obra e de sua interpretação, como

também da veracidade da técnica nela empregada e, conseqüentemente, da sua autoria.

Discursa-se muito a respeito da verdade da obra, não somente em relação aos seus

fundamentos e não apenas sob a perspectiva de sua natureza técnica ou teórica, mas

também no que se refere às suas possíveis funções. Por isso, entre tantas “aplicações”,

decide-se a todo instante qual a verdade social, antropológica, psicológica ou política da

obra. A qualquer tempo e em todo espaço de vigência ocidental, pretende-se determinar

o âmbito da funcionalidade como o escopo da verdade no qual a obra deve se constituir.

Até que ponto o necessário enquadramento da obra num contexto funcional que lhe é

atribuído por outras instâncias pode realmente conduzir não apenas à compreensão do

que a obra é, mas à sua verdade? Até que ponto, por exemplo, ao se empenhar tanto em

compreender a música como um objeto significativo cuja função seja atribuída pela

comunicação ou pela representação simbólica pode-se vir a ter acesso à verdade da

obra?
55

No entanto, em todo questionamento assim dirigido paira sempre a possibilidade

de que, ao se refletir mais detidamente, um tal enquadramento e uma tal atribuição, ao

contrário de conduzir à compreensão, possa na realidade dirigir o entendimento para

uma determinada compreensão de obra. Nessa possibilidade sempre vigente não estará

precisamente vedada a manifestação não da verdade da obra, mas da verdade na obra?

Por isso, em se tratando de obra, de arte, de música, de poesia, seria bom tomar o

cuidado exigido a fim de não precipitar a assunção de pressupostos e de não forçar obra,

arte, música, poesia a caberem num universo conceitual que não apenas lhes é estranho,

mas que lhes é árido e hostil. Pois, em todas essas determinações e possibilidades de

acepção científica e funcional da obra, joga-se sempre e antecipadamente com a

obrigação de se adequar a obra a algum fator externo a ela mesma, uma propriedade que

lhe possa conferir um estatuto de realidade e validade. Num real assim concebido, vale

o que é verdade. Mas em todo mecanismo de adequação da obra ao que se considera

como estatuinte de seu valor, seja esse um valor “teórico” ou “prático”, o que já está

previamente decidido e nunca chega mesmo a ser questionado é a própria verdade como

o “dispositivo” que opera as diversas adequações entre a compreensão vigente e a obra.

Por isso, trata-se aqui também de questionar, retornando ao dizer do poeta como o dizer

de toda obra de arte, trata-se de questionar igualmente a proveniência da determinação

que regula sua linguagem como algo “figurado” até que se tematize convenientemente

e, portanto, se teime na questão da verdade, não da obra, mas na obra.

Verdade como exatidão e correspondência

A crescente radicalização da Cultura Ocidental como uma cultura técnica e

científica é um destino irrevogável. Esse destino se cumpre num certo encaminhamento

histórico da metafísica e fundamenta os modos de determinação das relações entre o


56

homem e o real. Não obstante tal momento histórico de plenitude metafísica, o projeto

aí lançado por certo ainda não se encontra completo. O crescente aprofundamento da

Cultura Ocidental em sua essencialização científica e técnica radicaliza na Modernidade

uma determinada decisão sobre a verdade que ocorrera ainda no mundo grego. Tal

decisão não se deu como uma preferência qualquer por isto ou por aquilo, mas no que

nela foi decidido jogou-se com todo o modo vigente de constituição histórica do

homem.

Por isso, mesmo situações cotidianas das mais simples se deixam contaminar

mais e mais por aquilo que se estabelece a partir do universo de relações armadas pela

ciência e pela técnica. Desse modo, se o que se diz ou se o que provém da opinião

comum e do diletantismo estão impregnados das avaliações técnico-científicas, isto é

uma situação que aponta para um determinado modo de recolher o sentido do real. Pois

em todo trabalho científico e em todo desempenho técnico não há uma diversidade de

modos de des-velamento e recolhimento do real, mas somente uma única e determinante

possibilidade, uma possibilidade que nem mais chega mesmo a ser possibilidade na

medida em que para a constatação dos seus efeitos, técnica e ciência necessitam

radicalmente eliminar a possibilidade enquanto possibilidade. Não é outra senão a

necessidade radical e essencial de manter tudo como presença no des-velado que com

Platão se induz uma teoria do real. Teoria do real significa aqui colocar o real às claras,

no des-velado e aí fazê-lo permanecer. Portanto, por mais que se tenha em conta uma

ciência da natureza como a forma modelar de aquisição de conhecimento, permanece o

fato de se forçar o real a permanecer no des-velado. Forçar aqui quer dizer, des-aderir o

real de sua dinâmica para conceituá-lo atemporalmente e inespacialmente, uniformizar o

real abolindo qualquer alteração não prevista ou não programada e com isso
57

dessacralizar os eventos que podem interferir em tal projeto, incluindo-se aí o próprio

evento poético.

Com isso, mesmo que de modo incipiente, Platão inaugura o paradigma do real

que desembocará no paradigma do sujeito, o real que se constitui com o conhecimento

daquele que conhece e que se empenha em conhecer. A luz do saber quer dizer então o

conjunto do que reside no claro, permanentemente iluminado no des-velado, disponível

à mão daquele que conhece. O pensamento de Platão é inaugural no sentido de separar o

sujeito do mundo e por essa separação estabelecer o critério pelo qual o sujeito pode

afirmar suas enunciações como conhecimento do mundo ou não. Quem conhece, o faz

mediante avaliações, pois é no estabelecimento não de critérios, mas de um único e

exclusivo critério de julgamento e avaliação que se pode chegar a conhecer o mundo,

isto é, o real como efeito do que se produz originalmente na razão. O critério aqui é o da

verdade como operadora do des-velado. O que permanece no des-velado se presta à

comparação com o que vige no conceito. A avaliação do que está no des-velado se

procede conforme a exatidão e semelhança do que se encontra na idéia. A avaliação do

real conforme a verificabilidade é o critério por excelência de verdade que determina o

sentido do real.

Esta interpretação da verdade vige como o não-dito no que o próprio Platão diz.

A palavra “verdade” em grego é alétheia e quer dizer desocultação, desvelamento ou

não-velamento, isto é, trazer ao desvelado o que está velado, ao desoculto o que está

oculto. A versão de alétheia como verdade se constituiu via o latim veritas, porém, já aí

a verdade significa algo bastante diverso da alétheia grega originária. “Na Idade Média

e posteriormente a definição era: veritas est adaequatio rei et intellectus sive


58

enuntiationis83 – verdade é o trazer do pensamento ou proposição em alinhamento com

a coisa, i.e., em correspondência com esta última, commensuratio, poder-se comparar

com, medir em relação a alguma coisa”.84

Esta determinação da verdade, embora explicitada na Idade Média, já estava

implicitamente presente em Platão através do estabelecimento de uma nova mentalidade

científico-epistemológica. Esta nova mentalidade é totalmente exposta na alegoria da

caverna, no início do Livro VII da República e diz: os moradores da caverna, presos e

imóveis, observam o jogo de sombras projetado pela luz do fogo numa parede oposta.

Um deles é solto, podendo então se virar, ver o fogo e os objetos cujas sombras antes

eram projetadas na parede. Conduzido para fora da caverna e em plena luz do dia, fica

ofuscado por ela e nada consegue ver. Depois de algum tempo, entretanto, acostumado à

luz, passa a ver agora tanto os objetos que cintilam à luz do dia, tornando-se entes,

como também vê o próprio sol, que não só ilumina os entes, mas faz tudo crescer e

germinar. Este homem, liberto e cheio de visões, volta à caverna para também libertar

os seus companheiros que, no entanto, recusam-se a serem arrancados de seus hábitos,

julgando o companheiro libertador louco, ridículo, arrogante e perigoso – eles o matarão

se tiverem oportunidade de apanhá-lo. A interpretação que segue a alegoria pode ser

assim resumida:

(...) Os prisioneiros estão algemados pelos seus sentidos exteriores. A libertação libera
seu sentido interno, o pensar. O pensar é a capacidade contemplativa da alma. Enquanto a
cobiça e a coragem, outras duas capacidades da alma, se enredam no mundo dos sentidos, o
pensar se solta disso e permite uma contemplação das coisas como realmente são. O sol,
para cuja visão o pensar se alça, é o símbolo da verdade mais alta. Mas o que é essa
verdade? Platão diz: o bem. Mas o que é o bem? O bem é como o sol. Isso significa duas
coisas. Primeiro, ele deixa ver as coisas, possibilita a cognoscibilidade das coisas e com
isso também o nosso conhecimento. Segundo, ele faz surgir, crescer e germinar tudo o que
é. O bem possibilita o triunfo da visibilidade, da qual os que ainda moram na caverna

83
Aquino, Quaestiones de veritate. Apud Heidegger: 2002b:6
84
Heidegger: 2002b:5-6. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 257.
59

lucram, pois o fogo, oriundo do sol, pelo menos permite que vejam o jogo de sombras; o
bem faz com que exista alguma coisa e que esse algo se mantenha no ser.85

Essa interpretação diz, em primeiro lugar, que a idéia do bem é a causa de tudo,

pelo menos de tudo que é belo e direito. Em segundo lugar, a delineia como algo

dificilmente perceptível, mas que impõe o próprio limite da cognoscibilidade e do

conhecimento, uma vez que a idéia do bem é a causa suprema. E em terceiro lugar, a

compreensão de Platão implica que a verdade não está nas coisas, nem no ser humano,

mas que existe independentemente do homem. A verdade é fruto da idéia do bem e o

que nela se deixa transparecer é o que pode vir a ser conhecido pelo homem. O

movimento do homem liberto da caverna em direção a luz do sol diz respeito justamente

ao esforço que ele deve fazer para chegar a conhecê-la.

(...) O que eu vejo, pelo menos, é o seguinte: no limite extremo da região do


cognoscível está a idéia do bem, dificilmente perceptível, mas que, uma vez apreendida,
impõe-nos de pronto a conclusão de que é a causa de tudo o que é belo e direito, a geratriz,
no mundo visível, da luz e do senhor da luz, como no mundo inteligível é dominadora,
fonte imediata da verdade e da inteligência, que precisará ser contemplada por quem quiser
agir com sabedoria, tanto na vida pública como na particular.86

Esses três aspectos da interpretação de Platão dizem de uma inespacialidade e

uma atemporalidade da causa suprema. A idéia do bem não possui nem espaço, nem

tempo. Antes, é em virtude dela que se dimensionam o espaço e o tempo real.

Distanciando-se e distinguindo-se dos múltiplos efeitos ela pode ser a causa permanente

e imutável, um puro ser. Mas a verdade, se considerada a via latina, não quer dizer

muito do que o pensamento de Platão aí inaugura em relação a esse conceito que se

tornou fundamental para toda a tradição ocidental, uma vez que a palavra grega para

verdade é alétheia – não-velamento – uma palavra negativa que diz algo positivo. O alfa

85
Safranski, 2000:262.
86
Platão, 2000:323 (517b-c).
60

privativo significa negação de léthe, isto é, não apenas do velamento, do que se oculta,

mas do esquecimento. Esse sentido de alétheia é ainda para Platão o sentido do que é

colocado à luz e portanto, no des-velado. Entretanto, pensá-la já como verdade implica

num salto que escamoteia justamente aquilo que o próprio Platão pela primeira vez

chegou a pensar. O texto em grego de Platão diz que a idéia do bem – tou agathou idea87

– é Kuría alétheian kai noun paraschoméne88, isto é, a idéia do bem é mestre em manter

disponível o não-velamento e a percepção89. Antes, no entanto, Platão afirma que a idéia

do bem é pánton háute orthón te kai kalón aitía90, isto é, ela é causa de tudo aquilo que

é correto e belo91, condicionando o modo de ser de tudo que tem a idéia do bem por

essência. Aqui reside o fundamento de toda a interpretação posterior da verdade como

correção, uma vez que, como fruto cuja causa é a idéia do bem, o não-velamento é

correto e belo. Por isso, já na via latina a veritas pode ser interpretada por adequação

entre o intelecto e a coisa, isto é, por exatidão. Por mais que em Platão as referências

entre correção, beleza, verdade e percepção possam ser cruzadas (percepção correta e

verdade bela), a ambivalência de alétheia como não-velamento e como correção ensejou

as interpretações posteriores da verdade como correção e semelhança92 a partir de sua

fundamentação na idéa como o ser do ente. O ser na idéa se torna presença e pode desse

modo permanentemente viger no des-velado. Desadere-se do ser o velamento para

figurá-lo exclusivamente na fulgurância do des-velado.

87
tou= a)gaqou= i)de/a.
88
kuri/a a)lh/qeian kai\ nou=n parasxome/nh.
89
A tradução de Heidegger é um pouco diferente: “a Soberana que permite o não-velamento, mas
também a percepção”. In: Heidegger: 1994a:22.
90
pa/ntwn a(/uth o)rqw=n te kai\ kalw=n ai)ti/a.
91
Heidegger traduz da seguinte maneira: “a Causa (quer dizer aquilo que torna possível a essência) de
tudo aquilo que é exato como de tudo aquilo que é belo”. In: Heidegger, 1994a:22.
92
Cf. Heidegger, 1994a:22-4 a respeito do conceito de verdade em Aristóteles, Tomás de Aquino,
Decartes e Nietzsche.
61

(...) A i)de/a não é um primeiro plano da a)lh/qeia, onde as coisas viriam tomar figura,
mas o fundo onde se funda sua possibilidade. Mesmo assim, entretanto, a i)de/a reivindica
ainda alguma coisa do ser original, mais desconhecido, da a)lh/qeia.
A verdade não é mais, como não-velamento, o traço fundamental do próprio ser; mas,
torna-se exatidão em razão de sua escravização à Idéia, ela é doravante o traço distintivo do
conhecimento do ente.
Desde então existe um esforço para a “verdade” no sentido da exatidão do olhar e de
sua direção. Desde então, em todas as posições fundamentais adotadas a respeito do ente, a
obtenção de um olhar correto para a Idéia torna-se decisiva.93

Essa desaderência é o derradeiro passo para o esquecimento do ser. Daí por

diante, toda a tradição se concentra tão somente no ente, no que permanece no des-

velado. Há nesse novo enfoque algo paradoxal na medida em que empenhando-se por

fazer o ser vigir total e permanentemente no des-velado, a tradição ocidental acaba por

esquecê-lo, por jogá-lo, em relação a si mesma, no total e pemanente velamento. Por

isso, a tentativa de des-aderir o velamento do ser tornou-se para a metafísica posterior

sua total ocultação, na medida em que pode a ocultação viger no esquecimento de léthe.

A ambivalência de alétheia em Platão, ou seja, o fato de ser a alétheia tanto o des-

velado como o correto ou o belo, trata-se apenas de uma ambivalência conceitual. Ela

diz somente que a alétheia possui mesmo para Platão dois sentidos, mas que no entanto,

não são opostos, nem contraditórios e muito menos podem ser ambíguos na medida em

que têm como pano de fundo a idéa. Isso quer dizer que ambas as possibilidades têm em

causa uma única noção pela qual o ser, tratado como presença no desvelado, está em

plena correspondência com a idéa. Essa correspondência é no fundo a beleza do que se

apresenta como presença no desvelado de acordo com a luz da idéa. A beleza do

desvelado deve produzir o grau máximo de exatidão para com a idéa. A verdade é tão

bela quanto for precisa e é tão precisa quanto mais corresponder a idéa. É o que conta a

alegoria da caverna. A percepção dos seus moradores não é verdadeira, pois apreendem

93
Heidegger, 1994a:24-5.
62

somente cópias imperfeitas das coisas lançadas na parede pela luz imperfeita do fogo no

seu interior. A percepção não pode ser então verdadeira porque nada disso que vige na

caverna é verdadeiro, nem as sombras, nem a chama do fogo, uma mera cópia

imperfeita da verdadeira fonte de luz. Mas voltando-se para essa verdadeira fonte de

luz, aquela que não somente ilumina, mas faz crescer e germinar, a percepção pode se

tornar precisa e ver aquilo que na idéa permanece desvelado como verdade. A verdade é

precisão, adequação de um conhecimento ao conhecido.

Por isso, em virtude da verdade se constituir tão somente como procedimento de

verificabilidade, o que enseja a própria natureza do método da ciência moderna, o

parâmetro de medida do conhecimento se dá não como verdade, mas como certeza. “Por

isso, desde a formulação clássica dos princípios de certeza de Decartes, o verdadeiro

ethos da ciência moderna passou a ser o fato de que ela só admite como condição

satisfatória de verdade aquilo que satisfaz o ideal de certeza”.94 Nesse sentido, verdade

também é o método na medida em que este permite refazer sempre e do mesmo modo o

caminho já trilhado. Constituindo-se o método como o procedimento característico da

ciência moderna que permite refazer com exatidão o caminho já percorrido, implica que

há uma necessidade de decidir de antemão uma certa noção de verdade a fim de que se

opere uma restrição ao que figura no método como verdade. Figurar como verdade quer

dizer permitir a verificabilidade. Somente por meio da verificabilidade é que um

caminho pode ser sempre refeito de modo exato. Isso constitui a noção de conhecimento

no ocidente como o que pode ser verificado: conhecimento é, portanto, certeza e esta é

verdade.

94
Gadamer, 2002:62.
63

De certo modo, mesmo não sendo a ciência grega a mesma coisa que a ciência

moderna95, há já em Platão esse mesmo empenho pelo exato como modo de

conhecimento da verdade. Verdade é precisão, exatidão, a perfeita adequação entre

conhecimento e conhecido. “Para Platão existe uma verdade absoluta das idéias”96 e por

isso, sendo a verdade pertencente às idéias, ela existe independentemente do ser

humano. Explica-se porque ele deve então se esforçar para chegar até ela. “Platão iguala

o des-velado ao o que é (entes), de tal modo que o desvelamento como tal nunca vem à

tona. Isso é provado pelo fato de que ele não inquire o velamento que deveria se

contrapor ao desvelamento”.97 Mas aqui, onde o que vige no desvelado e ser são o

mesmo, o que aparece somente é o ente e isso porque a verdade em Platão vê o seres

unicamente como presença. “Platão não coloca especificamente alétheia em questão,

mas sempre trata somente do que está envolvido no des-velamento dos seres como tal.

(...) Para Platão, portanto, des-velamento é um tema e ao mesmo tempo não é um

tema”.98

A verdade como medida, identidade e representação

Mas a rigor, a verdade não pode realmente ser tomada em toda sua envergadura

de ocultação e des-ocultação, pois é justamente a multiplicidade de sentidos da tradição

poética que com Platão se ensejou rejeitar. A rejeição dessa tradição se dá como

rejeição da envergadura da verdade como co-pertencimento de velado e des-velado. Por

isso, onde a verdade não vige como certeza é vedada a possibilidade da ciência e da

técnica, ao menos como instâncias de totalização do real. Mesmo que muito depois de

95
Cf. Gadamer. 2002:61.
96
Safranski, 2000:264.
97
Heidegger, 2002b:89.
98
Idem, ibidem, p. 90.
64

Platão ocorra um esforço para se relativizar a verdade, permanece o problema da

verdade ter se transformado num valor de referência pelo qual se ordena o real.

Referência é assim compreendida como parâmetro. Altera-se o parâmetro e o resultado

é alterado. A relatividade da verdade pode ser algo respectivo a cada teoria ou a cada

concepção. Ela só não pode, no entanto, ser relativa a si mesma. Isto seria tomado como

um absurdo se considerado do ponto de vista da razão; significaria um “retrocesso” que

o ocidente após Platão não tem mais como admitir e não pôde ainda dar o passo além.

No destino histórico do ocidente a verdade só é relativa quando se considera a

multiplicidade de sujeitos. O que jamais está em questão, entretanto, é o fato do sujeito

se constituir como o centro de irradiação da verdade como certeza do conhecimento que

ele tem do real. Desse modo, mesmo sendo relativa a cada sujeito individual, a verdade

não deixa de ser um parâmetro de transformação e operação do real realizado pelos

princípios da medida, da identidade e da representação. Quer dizer, se há medida,

identidade e representação como princípios determinantes do modo de ser da Cultura

Ocidental99, estes se articulam desde a noção de verdade como certeza, certeza de que o

real pode ser totalmente mensurado e por isso, totalmente organizado; certeza de que

tudo pode ser identificado e posto à parte de toda diferença e que, portanto, tudo pode

cair e se encaixar numa representação do que vige no intelecto puramente racional do

sujeito, seja ele individual ou coletivo. A verdade como certeza é o mecanismo que faz

mover todos os empenhos de medir, identificar e representar, formas decisivas de

avaliar e validar o real e desse modo, na Cultura Ocidental, a verdade adquire um

sentido antropológico-cultural.

99
Evidentemente, esses não são princípios exclusivos da Cultura Ocidental. No entanto, como mostra
Antonio Jardim, somente na Cultura Ocidental esses princípios são ontogênicos, são princípios
originantes. Cf. Castro, 1997:31-2.
65

A mensuração que calcula e organiza representa para Platão libertar a reflexão

isolada e objetiva do intelecto da poesia simplesmente mimética. Portanto, se num

primeiro momento a mímesis é o denominador comum da poesia e da idéia do bem, de

tal modo que se pôde constituir um plano de nivelamento necessário à contraposição de

ambas, a mensuração calculadora eleva idéia do bem a uma dimensão superior que diz

respeito à capacidade de retificar as “distorções” poéticas através da eliminação da

contradição no mesmo. O cálculo da medida sob a forma da aritmética é, pois, a idéa

em sua pureza de linguagem, uma linguagem a que nada de concreto mais corrsponde.

Se a idéia da mesa é aquela forma que permanece diante de todas as cópias concretas, a

aritmética a articula numa pura e completa abstração. A forma da mesa é constituída por

suas coordenadas. A aritmética como protótipo de todo cálculo é desafiada a solucionar

o “mal-estar” causado pelas impressões sensíveis da poesia. Permite-se com isso que a

psyché autônoma assuma o controle e o comando da experiência sensível e de sua

linguagem a fim de reformulá-las.100 Como pura abstração, torna-se possível resolver as

contradições do real. Por isso, com a medida que calcula é impossível manter opiniões

contraditórias.

E o imitador? Adquirirá pela simples prática o conhecimento do que ele pinta, se é belo
e está certo, ou formará opinião justa pela conveniência forçosa com o entendido na
matéria, que lhe daria instruções de como deva proceder?
Nem uma coisa, nem outra.
Nesse caso, o imitador não disporá nem do conhecimento, nem da opinião certa com
respeito à beleza ou à utilidade daquilo que ele imita?
Parece que não.
Quão extraordinária, nesse caso, deve ser a sabedoria do imitador sobre os temas de
sua composição!
Não é das maiores, realmente.
[602b] De qualquer forma continuará a imitar, muito embora não saiba a razão de ser
útil ou imprestável alguma coisa. Ao que tudo indica, o que parece belo às multidões que
nada entendem de coisa nenhuma, isso é o que ele imita.
Nem poderá ser de outra maneira.
Então, como parece, ficamos mais ou menos de acordo que não é digno de referência o
que o imitador conhece daquilo que ele imita, e que a imitação não é coisa séria, mas

100
Cf. Havelock, 1996b:225.
66

simples brincadeira, e também que as pessoas que se ocupam com a poesia trágica em
versos épicos ou iâmbicos, são imitadores por excelência.
Perfeitamente.
[602c] V – Por Zeus! lhe disse; essa imitação não se encontra três vezes afastada da
verdade? Ou não?
Isso mesmo.
E mais: em que parte do homem ela exerce a influência de que realmente dispõe?
A que te referes?
É o seguinte: como sabemos, a mesma grandeza não nos parece igual, conforme seja
vista de longe ou de perto, não é isso mesmo?
Certo.
Como, também, o mesmo objeto se nos afigura quebrado ou reto, quando visto dentro
ou fora da água, [602d] côncavo ou convexo, por efeito da ilusão visual produzida pelas
cores, provocando tudo isso na alma grande confusão. É graças a esse defeito de
constituição de nossa natureza que se impõe a arte do desenho sombreado, a do charlatão e
quejandas invenções que se baseiam no prestígio da magia.
Sem dúvida.
E as artes da medida, do número e do peso, não se afirmam como poderosos recursos
contra essa ilusão, a fim de não predominar em nós a aparência da grandeza ou da
pequenez, da quantidade ou do peso, mas a própria faculdade de calcular e medir?
Como não?
[602e] Tudo isso é trabalho da porção raciocinante da alma.
Sem dúvida.
No entanto, para essa mesma faculdade, a despeito de suas medidas e das provas de
que certas coisas são maiores ou menores do que outras, diferentes ou iguais, essas mesmas
coisas podem, por vezes e ao mesmo tempo, parecer contrárias.
Certo.
Porém, já não dissemos que a mesma pessoa não poderia formular opiniões contrárias
a respeito das mesmas coisas?
E com todo o direito o afirmamos.
[603a] Sendo assim, a parte da alma que julga à revelia da medida não pode ser a
mesma que o faz de acordo com ela.
Não, de fato.
Mas a faculdade que entende na medida e no cálculo é a mais importante parte da
alma.
Como não?
Como a que se lhe opõe terá de ser o que de mais inferior existe em nós.
Forçosamente.
Por querer chegar a essa conclusão foi que eu disse que a Pintura e, de modo geral, as
artes imitativas, no desempenho de suas atividades se encontram muito longe da verdade e,
por outro lado, [603b] são companheiras, amigas e associadas da porção do nosso íntimo
mais afastada da razão e em que nada se encontra de são e verdadeiro.101

Para Platão a poesia é estranha ao pensar, antítese da ciência e alheia ao número

e ao cálculo. É pelo cálculo da medida que se pode distinguir o que parece distorcido e

ou contraditório. De certo modo, essa mesma função da razão já pode ser encontrada no

lema dos Argonautas: navergar é preciso, viver não é preciso102, em que a precisão

101
Platão, 2000:443-5 (602a-603b).
102
Plo/ien a)na/gkh zaVhn ou)k a)na/nkh – Plóien anánke zaen anánke.
67

pertence ao navergar, isto é, aquilo que necessita radicalmente da medida como

condição de possibilidade de realizar-se. A palavra anánke103 “é como que a expressão

mítica da força da circularidade do mesmo. A necessidade divina mantém o ser nos

limites do mesmo. Ela o envolve e o mantém firmemente em seus laços”,104 conduzindo

sua compreensão como “lei, regra estabelecida (thémis) que o que é não seja desprovido

de acabamento. Perfeitamente acabado e envolto em laços firmes e necessários, o

mesmo é a lei profunda do ser”.105

Ora, o navegar, pode-se deduzir da explicação acima dada para a)na/gkh é alguma coisa
que tem acabamento, que é, nesse sentido perfeito, chega a um termo, ou se projeta na
direção de um fim, na direção de uma realização, é inevitável que culmine numa realização.
O sucesso dessa realização, dessa perfeição, por sua vez, só é possível com a instauração de
um fator que assegure a sua consecução, a sua realização. Se, por um lado, esse fator pode
ser entendido, a partir da realização da citação acima, como a manutenção do mesmo, se
impõe que pensemos o que vem a ser esse mesmo. O mesmo não é a mera realização e sim
a condição de possibilidade para que essa realização se realize. Nada assegura a sua
realização, mas o que pode ser assegurado é que o caminho percorrido seja percorrido com
algumas precauções. Uma delas é que, sem dúvida, esse caminho, ou melhor, essa lei, seja
miticamente divina. No entanto, se a a)na/gkh, na sua relação com qemij, é o
estabelecimento de uma lei divina que assegura que "o que é não seja desprovido de
acabamento", para que tal acabamento se dê fica implícita que outras regras se imponham,
que se estabeleça uma ordem, que se estabeleça, enfim, alguma medida para a)na/gkh, ou
melhor que a)na/gkh seja o estabelecimento da medida para que o plo/ien se realize enquanto
tal.106

Com Platão, não apenas coisas como o navegar necessitam da medida, mas toda

téchne pressupõe a medida como uma téchne da razão. Por isso, téchne também é o

fabricar leitos e mesas. A medida penetra todo o âmbito da téchne. Ora, a crítica de

Platão ao pintor e aos poetas é justamente quanto ao que considera estarem afastados da

verdade por desconhecerem as artes da medida e do cálculo que conduziram à criação

das coisas por eles “retratados” ou narrados. O poeta, afinal, não conhece

103
a)na/gkh.
104
Marques, 1990:76.
105
Idem, ibidem.
106
Castro, 1997:35-6.
68

“absolutamente nada das respectivas profissões” – Peri oudenos toutôn epaïôn tôn

technón107 – isto é, o poeta não possui qualquer perícia no que é próprio da téchne. Para

Platão, a medida e o cálculo são, assim, indissociáveis da própria téchne.

É, pois, pela medida e pelo cálculo que se pode ascender à parte mais elevada da

alma sob a forma da razão e é por ela que a razão, calculando e organizando o real,

identifica os objetos verdadeiros e os falsos, distinguindo-os e qualificando-os. Portanto,

a medida calculadora implica numa identidade, isto é, aquilo que pode

permanentemente viger no des-velado, iluminado pela luz da razão, separado do falso,

do que não tem vigência real. Ora, a identidade assim posta é já uma coisa muito

diferente do que poderia se depreender de sua primeira formulação no Fragmento III de

Parmênides – “... pois o mesmo é pensar e ser” – ...to gar auto noêin estín te kai

einai.108

Neste caso, coisas diferentes, pensar e ser, são pensados como o mesmo. O que isto
quer dizer? Algo absolutamente diverso em comparação com aquilo que ordinariamente
conhecemos como a doutrina da metafísica, que a identidade faz parte do ser. Parmênides
diz: “O ser faz parte da identidade”. (...) É preciso que reconheçamos: muito antes da
identidade se formular como princípio, fala ela mesma, e precisamente, através de um dito
que dispõe: Pensar e ser têm seu lugar no mesmo e a partir desse mesmo formam uma
unidade.
(...) ser pertence – com o pensar – ao mesmo. O ser é determinado a partir de uma
identidade, como um traço desta identidade. Pelo contrário, a identidade, mais tarde
pensada na metafísica, é representada como um traço do ser. Portanto, não podemos querer
determinar a partir da identidade representada metafisicamente aquela que Parmênides
nomeia.109

A identidade metafísica enuncia uma síntese resultante de uma mediação. Por

isso, a identidade de ser e pensar pode ser entendida a partir de uma unidade, uma

integração de múltiplos na unidade de um sistema, múltiplos mediados por um nexo. A

107
Peri\ o)udeno\j tou/twn e)pai/+wn tw=n texnw=n. Platão, República, 598c. Na versão inglesa de Paul Shorey
disponível no site do Projeto Perseus: “though he himself has no expertness in any of these arts”.
108
To ga/r a)uto noei=n e)sti/n te kai\ ei)=nai. Os pensadores originários, p. 44-5.
109
Heidegger, 1991:140-1.
69

verdade aqui aparece então como o tal nexo, aquilo que na Cultura Ocidental opera a

ligação de uma coisa a outra conforme se estabelece como um critério de

verificabilidade. A verdade como certeza e correspondência opera e viabiliza a

identidade como unidade. Assim, uma tal unidade é posta não pelo pertencimento em

comum que cada coisa tem com outra, mas através da operação do intelecto, da porção

raciocinante, calculadora e mensuradora da alma.

A unidade na metafísica realizada é resultado de uma correspondência operada e

não de um mútuo pertencimento. Ocorre que, com o desprezo pelo mútuo pertencimento

se ser e pensar, a Cultura Ocidental dispensou também a existência como instância de

concretização dessa unidade originária. Dando-se, tal como a verdade,

independentemente da existência, isto é, do homem, a unidade mediada ganha vigência

no plano abstrato da idéia. Por isso, tal unidade só pode mesmo ser representada. Ora, a

representação é por excelência a operação de todas as operações da porção raciocinante

da alma. É por ela que o homem pode ser, sem existir. Não é esta a condição posta pelo

cogito cartesiano, em que o pensar se constitui como condição do existir? Com o cogito

Decartes sela de uma vez por todas o destino histórico do Ocidente encaminhado desde

os gregos e principalmente desde o pensamento de Platão, de tal modo que

fundamentalmente a partir desse pensmento o que na razão se representa do mundo

pode então subsistir independentemente dele. O mundo passa a ser constituído pelos

sistemas de intelecção da medida e da identidade, operados pela verdade como certeza.

Intelecção do mundo quer dizer: o que um sujeito que é, é capaz de representar dele: a

idéia. Nesse sentido o pensar desprovido de existência cartesiano vinga suas raízes na

primeira e fundamental cisão do mundo como sensível/inteligível já em Platão. Através

dessa cisão toda identidade como unidade medida é antes de tudo uma re-presentação da
70

idéia. E da mesma forma que o ser é privado de sua relação com a existência, a verdade

deixa de ser um acontecimento da apropriação mútua de ser e ente para viger como

conceito do que é ou não é real.

Os gregos ainda não tomavam a representação relacionada a conhecimento. Para eles


110
para/sta?sij dizia do que se expõe ou do que nos é trazido diante. Os gregos, só a partir
de Platão, passaram a começar a compreender aquilo que se expõe como idéia, como o que
é conhecido em todas as suas possibilidades, tal como fez o desdobramento da Cultura
Ocidental. (...) Na diferença entre a para/sta?sij e a ide/a verifica-se uma mudança de
perspectiva fundamental. Se na primeira temos a necessidade da presença como condição
de possibilidade para que a representação se dê, um tanto ao modo do que hoje poderíamos
entender como um ícone, essencialmente concreto, na ide/a temos a vigência de uma outra
perspectiva em que vige a idéia de ei)=doj, que diz aspecto exterior, forma de um corpo,
forma de uma coisa no espírito. Aspecto e forma dizem de uma experiência puramente
visual ou mesmo imaginária, o que se faz representar na idéia se constitui com a
possibilidade de vigorar apenas enquanto parcialidade daquilo que se apresenta. Um
aspecto, assim, pode se apresentar como a parte que seria capaz de dar acesso a uma
totalidade. Esta totalidade, na verdade, não pode jamais ser efetivamente total, na medida
em que possa ser apenas aquilo que é visto, em que este visto pode não ser exatamente o
visto pelo olho, mas o pre-visto, o ante-visto, o visto que não depende necessariamente do
apresentar-se do que é, para ser visto. Isto se dá ainda mais quando a idéia de ei)=doj, que diz
em última instância o aspecto exterior, a forma, embora queira, em última análise, dizer de
um modo de relacionamento com o ver, diz, ao mesmo tempo, ver a partir do geral, do
genérico, daquilo que cabe na idéia, que se estrutura de um modo ideal e des-concretizado.
A idéia, como acesso privilegiado a tudo aquilo que se apresenta, acaba por configurar um
privilégio do visual e da apreensão da imagem em detrimento de outras possibilidades de
apreensão do que se apresenta. (...) A idéia se converte no meio por excelência de acesso ao
real e, logo a seguir, de produção de um real. A realidade se vê assim constituída, e
conseqüentemente reduzida, por um tecido de idéias, por um texto ideal que tem então a
possibilidade de apresentar-se como totalidade do real, compreendendo não só o que se
apresenta concretamente, o que é efetivamente presença, bem como o que se ausenta e é
trazido à presença enquanto aspecto, forma, forma com que algo se apresenta ao espírito. A
idéia, como conceito genérico, está no fundamento que admite e estrutura a representatio
seja ela concebida como semelhança, como idéia, como imagem ou mesmo objeto. Se é a
idéia o meio privilegiado de totalização do real, nada menos surpreendente do que a
conversão deste naquela. A idéia passa a ser tomada pelo real e este, identificado com
aquela, é, por sua vez, convertido em uma imagem em que predomina a linha reta, sem
espessura e progressiva. Portanto, o real se torna um real sem dobras, simplório, sem
densidade, sem outra temporalidade que aquela determinada pelos mecanismos de medida,
e sem outra espacialidade que a determinada pela linearidade.111

A idéia desarticula ser e existência, pois somente assim pode se constituir numa

representação permanente e imóvel do real, uma representação atemporal e inespacial.

Não é uma mera coincidência, então, que a visão essencializada na vidência do intelecto

110
Parástasis.
111
Castro, 1997:64-7.
71

seja o modo preponderante de cognição do real e que a escrita venha a ser o instrumento

por excelência de sua representação.

A verdade e a causalidade técnica

A representação converte tanto a visão como a linguagem, equiparada com o

suporte da escrita, em instrumentos de apreensão e determinação do real. Com a

instrumentalização do real a representação é o ato supremo da razão e finalmente retira

a idéa do mesmo e inadequado plano em que Platão concebe a tradição poética para

elevá-la à condição de epistéme. O ato final consiste, pois, na oposição de uma téchne

poietiké, que no entender de Platão é também e principalmente uma téchne mimetiké a

uma téchne epistemoniké, ou seja, uma oposição que indica a transição de uma arte

poética para conhecimento capaz de ciência, um conhecimento capaz de prever,

controlar, organizar e representar o real. Aristóteles consolida esse ato final do seguinte

modo:

[981a][1]A experiência parece muito similar a ciência e arte, mas na verdade é através
da experiência que os homens adquirem ciência e arte; (...). Arte é produzida quando
através de muitas noções de experiência um único julgamento universal é formado com
respeito a tais objetos. Possuir um julgamento (…) é um problema de experiência; mas
julgar (...) é uma questão da arte.112

Na tradução inglesa do texto de Aristóteles aparece a palavra “arte” juntamente

com ciência contrapondo-as à experiência. Se, no entanto, se deixar falar a língua grega,

constata-se que o que foi traduzido por arte diz-se em grego téchne, e ciência, por sua

vez, epistéme. Pensando agora com a língua grega, o texto de Aristóteles adquire outro

contorno. A téchne é produzida de muitas noções da experiência, formando um único

julgamento universal a respeito da experiência. Um julgamento universal nada mais é

112
Aristóteles, Metafísica, 981a. Tradução a partir da versão inglesa de Hugh Tredennick, com apoio do
original em grego, disponível no site do Projeto Perseus. Vide originais no Apêndice I, p. 258.
72

do que aquilo que na razão se determina como a forma, idéia ou essência que pode

pertencer ou ser atribuída a mais coisas, um conceito que dá às próprias coisas a sua

natureza ou os seus caracteres comuns. E é somente pelo fato do juízo constituir-se

como tal que o que através dele se forma deve ser válido para todos. O juízo universal

adquire um status lógico e ontológico. Por isso, possuir um julgamento pode ser algo

que se depreende das várias experiências, porém, julgar é algo que em si mesmo

pertence ao âmbito da téchne. Nesse sentido prossegue Aristóteles:

Poderia parecer, por finalidades práticas, que a experiência não é de modo algum
inferior à te/xnh113; de fato, nós vemos homens de experiência terem mais sucesso do que
aqueles que possuem teoria sem a experiência. A razão para isso é que a experiência é o
conhecimento do que é particular, mas a te/xnh é dos universais; e ações e efeitos
produzidos são todos relativos ao particular. Pois não é o homem que o médico cura, exceto
incidentalmente, mas Callias ou Sócrates ou alguma outra pessoa nomeada similarmente,
que é incidentalmente um homem da mesma forma. [20]Assim, se um homem possui a
teoria sem a experiência, e conhece o universal, mas não conhece o particular nele contido,
ele freqüentemente fracassará em seu tratamento; pois é o particular que deve ser tratado.
Entretanto, nós consideramos que o conhecimento e a proficiência pretence à te/xnh
especialmente e não à experiência, e nós aceitamos que os texni/taj114 são mais sábios que
os homens de experiência (o que implica que em todos os casos a sabedoria depende
especialmente do conhecimento); e isso é porque este primeiro conhece a causa, enquanto
que este último não. Pois, o experiente conhece o fato, mas não a causa. Pela mesma razão
nós consideramos que os a)rxite/ktonaj115 em toda profissão são mais estimáveis e
conhecem mais e são mais sábios que os xeirotexnw=n 116 [981b][1] porque eles sabem as
razões das coisas que são feitas.117

A palavra téchne no grego pode significar tanto arte quanto técnica. Também

não há uma distinção terminológica para arte e artesanato, por isso qualquer artefato

também é produzido mediante uma téchne. Nesse sentido, para Aristóteles os mestres da

arché (a)rxi-te/ktonaj), estes também uma espécie de technítas, são superiores aos

technítas das mãos (cheírios – xeiro-texnw=n), não porque saibam fazer (poíein) as

113
Téchne.
114
Technítas – artistas, artesãos ou técnicos.
115
Architektonas.
116
Cheirotchnôn.
117
Aristóteles, Metafísica 981a-b. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p.
258.
73

coisas, mas porque eles possuem uma epistéme e conhecem as aitíai. Como não poderia

deixar de ser no caso de Aristóteles, a distinção de uma e outra téchne se dá por meio de

uma classificação, a saber, uma téchne poietiké e uma téchne epistemoniké. Aristóteles

declara, na mais perfeita sintonia com Platão, o estatuto de superioridade da téchne que

tem a epistéme e não a poíesis por horizonte de articulação. Já nesse sentido, no caso de

Platão, a atividade que exerce tanto o pintor quanto o carpinteiro é a uma téchne, mas

que se diferenciam em relação ao distanciamento da idéa.

Na contraposição da experiência ao conhecimento da causa, os exemplos

tomados são o dos homens de experiência – os émperoi – e o daqueles que possuem o

conhecimento da causa, claramente indicados no texto como os áneu tes emperías lógon

echónton,118 isto é, os technítai. Estes são os mesmos aos quais Platão atribui o

conhecimento da medida e do cálculo, pois contemplam primeiramente a forma do

saber, o eidos. No texto, Aristóteles fala daqueles que possuem perícia (sophóteroi)

porque conhecem as causas (aitíai). Portanto, a téchne não pode ser a arte no sentido da

poíesis,119 pois Platão mesmo já a definira como mímesis, conceito ratificado na Poética

de Aristóteles e por isso a arte é na verdade uma poiétikes téchnes, como o próprio título

da obra de Aristóteles diz. Por ser mimética, a arte está duas vezes afastada da idéa e

somente conhece a experiência na sua multiplicidade e não na universalidade do

conceito. A téchne é o conhecimento exato que o artesão pode empregar no seu ofício.

A téchne, nesse sentido, é um conhecimento que prescinde da experiência para,

primeiramente com Platão e depois com Aristóteles, se incrustar definitivamente no

âmbito da idéa, de tal modo que a téchne em toda a Cultura Ocidental se torna

118
a)/neu th=j e)mpeiri/aj lo/gon e)xo/ntwn.
119
poi/hsij.
74

conhecimento, uma epistéme do eidos. Desse modo a técnica media o eidos e todo ente

que é em geral, quer seja material ou imaterial, quer seja físico ou espiritual.

Em contraste ao e)/mpeiroj, o texni/thj é aquele a)/neu th=j e)mpeiri/aj e)/xei to\n lo/gon120
(cf. Met. I, 1, 981a21), “que, sem ser acostumado com qualquer procedimento em
particular, conhece o ei)=doj”. Ele é aquele que kaqo/lou gnwri/zei121 (cf. a2f.) o ser em
questão, “conhece o ser em sua generalidade”, mas que através do to\ e)n tou/t%
122
kaq’e(/kaston a)gnoei= (cf. a22), “não é familiarizado com o que em cada caso o ser é por
si mesmo”, o ser que é esse o(/lon é um e(/n entre outros. Para te/xnh, assim, o que é decisivo é
prestar atenção, olhar, i.e., revelar. Portanto, Aristóteles pode dizer: <a)rxite/ktonej> ta\j
123
aiti/aj tw=n poioume/non i)/sasin (981b1f.), “O arquiteto conhece as causas do que é para
ser construído”. O seguinte é assim manifesto ao mesmo tempo: a aiti/a, ou o kaqo/lou, são
inicialmente não o tema de uma mera observação. Eles na verdade se sobressaem como
ei)=doj, mas não de um tal modo a serem tema de uma investigação especial. O
conhecimento da aiti/a está inicialmente presente apenas em conexão com o próprio
fabricar; i.e., os aiti/a estão inicialmente presentes apenas como o porque-portanto de tal e
tal procedimento. Ei)=doj está primeiramente presente somente na te/xnh ela mesma. Mas,
porque na te/xnh, ei)=doj é precisamente tornado proeminente, portanto ma=llon ei)de/nai124
(a31f.), “saber mais,” é atribuído aos texni=tai, e eles são pensados como sendo sofw/teroi
do que os meros e)/mpeiroi.125

A compreensão da idéa como causa suprema, causa de todas as causas, permite

a conexão entre eidos e téchne. A téchne será a mediação entre a causa, isto é, entre a

idéa e o que no real se manifesta como sua mímesis, isto é, sua imitação e sua

representação, o que será posteriormente compreendido como efeito. Para Platão e

Aristóteles a téchne mantém uma relação com a verdade como certeza. A téchne como

conhecimento das causas transformado em perícia necessita como horizonte a precisão e

a correspondência com o eidos operada pela verdade. Desse modo, a verdade é o fio

condutor que articula medida, identidade e representação. Percebe-se então como a

relação idéa-mímesis em Platão se transforma em princípio de causa e efeito através de

120
Aneu tês empeirías echêi tis tón lógon.
121
Katholou gnôrizêi.
122
To d' en toutôi kath' hekaston agnoêi.
123
Architektones tas aitias tôn poioumenôn isasin.
124
Mallon eidenai.
125
Heidegger, 1997:62-3. Heidegger interpreta nessa passagem o texto de Aristóteles – Metafísica I, 1.
Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 258.
75

Aristóteles, determinando toda a compreensão metafísica no ocidente. Nessa

transformação, a téchne pode ser agora descolada da poi/hsij e passar a ter uma

vigência exclusivamente científica. Pois, somente como vigência científica é que na

plenitude metafísca o ocidente chega a pensar a constituição e o acontecimento da obra.

Por isso, em toda parte pode se falar de uma arte cientificamente amparada ou dos

métodos de investigação e análise das obras de arte. É que já numa conjuntura

cientificamente amparada a apreensão da obra de arte tem de passar pela determinação

instrumental da técnica que vige como mediação da relação causa-efeito. “Onde se

perseguem os fins, aplicam-se os meios, onde reina a instrumentalidade, aí também

impera a causalidade”.126 A causa tem como conseqüência um efeito. Na efetuação do

efeito a técnica como meio realiza a causalidade.

A filosofia ensina há séculos que existem quatro causas: 1) a causa materialis, o


material, a matéria de que se faz um cálice de prata; 2) a causa formalis, a forma, a figura
em que se insere o material; 3) a causa finalis, o fim, por exemplo, o culto do sacrifício que
determina a forma e a matéria do cálice usado; 4) a causa efficiens, o ourives que produz o
efeito, o cálice realizado, pronto. Descobre-se a técnica concebida como meio,
reconduzindo-se a instrumentalidade às quatro causas.127

O que se percebe mais agudamente é que a causa efficiens domina de certo

modo as outras causas, isto é, é por ela que ocorre a articulação das quatro causas. A

causa eficiente determina decisivamente toda a causalidade, na medida em que se

determina a causa como o que é eficiente. Eficiente é o que se caracteriza pelo poder de

produzir um efeito real. A causa é eficiente na medida em que produz o real. A causa

eficiente é pensada como o ourives, isto é, o technítes, aquele cujo saber e perícia

produzem o efeito, o resultado de sua ação combinando as outras causas. “Mas, a

doutrina de Aristóteles não conhece uma causa chamada eficiente e nem usa uma

126
Heidegger, 2001:13.
127
Idem, ibidem.
76

palavra grega que lhe corresponda”.128 Pois, causa é em grego aiti/on e não quer dizer o

mesmo que a versão latina causa – de cadere, cair, “aquilo que faz com que algo caia

desta ou daquela maneira num resultado”129 – e sim, responsável130 ou aquilo pelo que

um outro responde e deve:

A prata é aquilo de que é feito um cálice de prata. Enquanto uma matéria (u(/lh)
detreminada, a prata responde pelo cálice. Este deve à prata aquilo de que consta e é feito.
O utensílio sacrificial não se deve, porém, apenas à prata. No cálice, o que se deve à prata
aparece na figura de cálice e não de um broche ou anel. O utensílio do sacrifício deve
também o que é ao perfil (ei)=doj) de cálice. Tanto a prata, em que entra o perfil do cálice,
como o perfil, em que a prata aparece, respondem, cada uma, a seu modo, pelo utensílio do
sacrifício.
Responsável por ele é, no entanto, sobretudo um terceiro modo. Trata-se daquilo que o
define, de maneira prévia e antecipada, pondo o cálice na esfera do sagrado e da libação.
Com ele, o cálice circunscreve-se, como utensílio sacrificial. A circunscrição finaliza o
utensílio. Com este fim, porém, não termina ou deixa de ser, mas começa a ser o que será
depois de pronto. (...)
Por fim, um quarto modo responde ainda pela integração do utensílio pronto: o
ourives. Mas, de forma alguma, como uma causa efficiens, fazendo com que, pelo trabalho,
o cálice seja efeito de uma atividade.131

O trabalho do ourives não é a eficácia de sua atividade. Refletindo a matéria,

forma e o modo de realização, de acontecimento (télos)132, a atividade do ourives é

reunir tudo isso numa só coisa, isto é, num lógos, para Aristóteles, algo ainda muito

diferente de uma eficácia da ação, mas sim uma reunião que faz aparecer

(apophaínesthai). O fazer aparecer é o modo de des-encobrimento do technítes trazer

algo à presença e fazê-lo permanecer no des-velado. E é somente por isso que ele não é

apenas um áneu tes emperías – aquele que é sem experiência – mas também e

fundamentalmente um lógon echónton – aquele que possui o lógos133. Porém, como se

128
Idem, p.15.
129
Idem, p.14.
130
Liddell & Scott, s/d, verbete aiti/on.
131
Heidegger, 2001:14.
132
Cf. Liddell & Scott, s/d, verbete te/loj.
133
Cf. Aristóteles, Metafísica 981a.
77

verá adiante, o lógos aí já não é pensado como uma reunião originária, mas como uma

reunião de coisas que se dão por meio da razão. Por isso mesmo, o lógos traduzido por

discurso se apresenta já numa modalidade de sistema de comunicação na medida em

que também é tomado por “razão”. Como apofântico, o lógos enseja um juízo racional.

“Diferenciando-se de todas as formas de discurso, o juízo caracteriza-se por pretender

ser somente verdadeiro e medir-se exclusivamente no fato de revelar um ente tal qual

ele é”.134 Esse traço acentua a tradução de télos como finalidade ou propósito, de tal

maneira que a atividade do technítes deixa de ser o modo de reunião das diversas

formas de responder e dever, para se constituir, do mesmo modo que matéria e forma,

num meio de obtenção de um resultado de acordo com um juízo pré-estabelecido, isto é,

de acordo com uma razão calculante. O acordo é o que torna o juízo verdadeiro como

representação e vice-versa. O acordo é o que permite a finalidade. Por isso, na acepção

de télos como “fim”, a finalidade passa a dominar o modo de integração das quatro

causas e assim, a técnica se converte, tal como o technítes, num meio para um fim.

Nesse sentido, a deposição da causa efficiens como aquela que reúne num conjunto com

ela mesma todas as outras, implica que toda a causalidade técnica possa se dar a partir

de uma causa finalis. Uma substituição assim abre espaço para que a técnica finalmente

possa ser uma vigência independente do próprio homem. Por isso, o empenho cada vez

mais crescente em dominar a própria técnica. “Esse querer dominar torna-se tanto mais

urgente quanto mais a técnica ameaça escapar ao controle do homem”.135

A necessidade de dominar mais e mais a técnica não significa apenas que o

homem se encontra numa situação de acentuado progresso científico, mas denuncia a

situação extremada que se acerca do homem no sentido de que não apenas os utensílios,
134
Gadamer, 2002:60.
135
Heidegger, 2001:12.
78

artefatos e produtos da técnica se tornam dis-poníveis e à mão, mas ele mesmo se

transforma numa dis-ponibilidade. Nesse caso, fica mais patente que a técnica não

apenas não está mais sob o controle do homem, mas que se torna uma ameaça na

medida em que este também está dis-ponível como os demais utensílios. Assim, uma tal

dis-ponibilidade possui um sentido latente de exploração. Por isso pode-se pensar o

homem como dis-ponibilidade de mão de obra ou de consumo; pode-se compreendê-lo

igualmente como uma disponibilidade política ou cultural; pode-se até mesmo

apreendê-lo como algo dis-ponível técnica ou cientificamente. Mas, em todo modo de

dis-ponibilidade, é exatamente a concepção não apenas da técnica como meio para um

fim, mas, com isso, o uso técnico de tudo e de todos que confere uma uniformidade ao

real, isto é, torna o real dis-ponível, sempre à mão. Em toda dis-ponibilidade vige a

exploração do que se apresenta como tal e, desse modo, ocorre sua consumação. Pois,

dis-por quer dizer retirar algo de sua abertura de mundo e fazê-lo viger numa posição

em que possa ocorrer sua consumação numa finalidade. Por isso, o tornar-se dis-ponível

ou à mão traz consigo a própria possibilidade do descartável. Tudo que é dis-posto, o é

conforme uma idéia prévia de um “para quê”, de uma causa finalis absoluta e autônoma

que norteia toda medida, toda identidade e toda representação do que é dis-posto, de tal

modo que se não há ou se não se encontra um “para quê” do que é dis-posto, também

não se pode chegar a vislumbrar um “por quê”. Quando uma tal imbricação de razão e

finalidade ocorre, pode-se perceber o quão absoluta e impenetrável a qualquer

questionamento se torna a chamada causa finalis, cuja definição e supremacia na

vigência da técnica colocam num único dis-positivo a idéia e seu efeito.

A causalidade dominada pela causa finalis, isto é, como causalidade técnica é

uma pretensão em fazer algo viger como presença apenas. Por isso, quando se diz que
79

“tudo possui uma causa” ou “nada é sem fundamento”, remete-se à causa o status de

origem, uma origem que em si mesma possui apenas e sempre uma única finalidade, a

de fazer-se presença. Causalidade é um conjunto de determinações que justificam o ser

de uma coisa tal qual ela é. Desse modo, o ser na causalidade é tomado como presença e

por isso, não somente diz do ser o que é, mas “como é”. O “como é” explicita o ser

lançado na luz do des-velado para aí conservá-lo. Desse modo, dizer que algo é “como

é” institui uma inevitabilidade que aliena do próprio ser a possibilidade de retrair-se e

retirar-se. Toda inevitabilidade se dá como fatalidade. Uma compreensão assim do real

não leva propriamente tão em conta a causa como modo de conhecer a coisa, mas sim

como modo de prever e controlar a coisa. Nesse sentido, causalidade técnica quer então

dizer, de um lado, um modo de dis-por e dis-ponibilizar o real como pre-visibilidade e,

de outro, como inevitabilidade. A verdade se configura ao mesmo tempo como precisão

das representações da causalidade enquanto efeito e o des-encobrimento alienado de sua

relação originária com o encobrimento.

Verdade e falsidade – a relação alétheia e psêudos

Porém, originariamente a relação explicitada na palavra alétheia é com o

encobrimento. A palavra a-létheia não apenas significa des-ocultação ou des-velamento,

mas mantém uma relação fundamental com léthe136. Esta relação pode ser pensada

inicialmente através de duas diretrizes, conforme o enfoque: a-létheia ou a-létheia. No

primeiro caso, está claro que a-létheia aponta para léthe, ocultação ou encobrimento,

isto é, indica que ocorre ou que ocorrera um encobrimento. Nesse sentido, o

encobrimento se dá como condição de possibilidade do des-encobrimento. No entanto,

na segunda diretriz, a-létheia diz ao mesmo tempo uma negação de léthe, isto é, o des-
136
Léthe.
80

encobrimento nega o encobrimento. Portanto, os gregos pensavam “na essência da

verdade alguma coisa como tirar, cancelamento, ou aniquilação do encobrimento”.137

Em ambas as diretrizes em que se pensa inicialmente esta palavra está claro também que

a-létheia possui um sentido negativo, quer apontando para o encobrimento, quer

negando-o. Este sentido negativo não é um mero capricho de uma experiência do

pensamento que se esvaiu na tradução de alétheia como veritas e como verdade. Na

tradução, a verdade não possui nada de negativo, pelo contrário, ela é uma palavra que

possui um sentido positivo e, portanto, um sentido já em acordo com a determinação do

ser como presença. Por isso, posteriormente, e conforme Platão pensara, eliminando

toda contradição e se tornando certeza da presença, a verdade como veritas indica

também a ausência de qualquer conflito. A verdade, nesse sentido, está para além de

qualquer conflito de tal modo que ela mesma deve se dar de modo não conflitante. No

entanto, a a-létheia não apenas em suas duas diretrizes iniciais se apresentou como um

conflito a partir das possibilidades de enfoque vigentes na própria palavra, mas como

desencobrimento que é arrancado do encobrimento apresenta nele mesmo um

permanente conflito.

Na mesma perspectiva da tradução de alétheia por veritas, todo conflito

subjacente à verdade passa à condição de mera oposição. Mera oposição quer aqui dizer

uma oposição cuja essência se funda na exclusão. A verdade como veritas, em virtude

de sua natureza como certeza e precisão não pode admitir uma oposição que se dê

internamente, mas polariza com o falso ou a falsidade uma oposição excludente. Por

isso, do mesmo modo em que se operacionaliza no princípio da identidade a exclusão

do outro (A=A), assim como com Platão se institui um princípio da não-contradição

137
Heidegger, 1992b:16.
81

(impossibilidade de simultaneamente haver A e não-A), também a verdade como

certeza do ser como presença passa a reger toda enunciação do real através do princípio

do terceiro excluído: ser ou não-ser, não havendo terceira possibilidade. A veritas opõe-

se ao falso e o real aparece uniformizado de acordo com a dicotomia de oposições

excludentes. Muito embora esta seja uma determinação da verdade configurada sob

medida na conjuntura imperial romana, o fato é que uma tal configuração da verdade já

se impõe no início da filosofia grega. Pois, a configuração da verdade tanto na

conjuntura imperial, como na tradição filosófica aparece já como uma determinação

efetuada na relação sujeito-objeto. Na disposição de tudo e de todos desde a perspectiva

dessa relação e do domínio total da racionalidade sobre o real, não apenas a verdade se

encontra alienada de sua íntima relação com o encobrimento, mas também o falso

encontra sua determinação somente pela oposição excludente à verdade. Desse modo, a

palavra grega psêudos deixa de possuir uma intimidade com alétheia para através da

tradução de falsum figurar apenas como oposição excludente. Na latinização do grego

se leva a cabo a transformação radical iniciada pela epistemologia, isto é, a

transformação que pensa pela primeira vez a verdade como orthótes e homoiósis. Desse

modo, psêudos, pensado não mais de modo grego como “dissimulação”, passa a viger

como falsum. Psêudos – dissimulação – não sendo correção, nem semelhança, opõe-se à

verdade como veritas. Na romanização da Grécia, psêudos é falsum, aquilo que cai e

não se sustenta diante da verdade.

No entanto, o latim falsum é completamente estranho ao grego psêudos. Esta

palavra não pode ser suficientemente compreendida tomando-se apenas o que mesmo a

filosofia grega diz, uma vez que nela já se encontra a pressuposição da alétheia como

correção e semelhança. Portanto, não apenas a versão latina é estranha ao grego


82

psêudos, mas também a própria compreensão configurada pela filosofia grega a partir

do rompimento com a tradição mitopoética. Por isso, é preciso perguntar por aqueles

cujo testemunho da relação grega com a verdade também testifica a respeito de sua

intimidade com psêudos. Um desses testemunhos diz: enth' allous men pántas elánthane

dákrua leíbon138 – “Mas então ele (Ulisses) derramou lágrimas, sem que os outros o

percebessem”. O outro diz: láthe biósas139 – “Viva imperceptivelmente”. Tanto num

como noutro, a experiência é a do encobrimento, mas não no sentido de que algo se

apresenta como encoberto, mas sim como um modo do ser. Pois, o radical láth-140 que

aparece nas palavras elánthane e láthe é pertinente ao verbo lantháno141, que diz “eu

sou encoberto” ou ainda como lathôn ou lathón142– “ser encoberto”.

Na experiência Grega a palavra de Homero diz: “Ele (Ulisses) estava em encobrimento


como aquele que derrama lágrimas.” Correspondentemente, nós traduzimos a famosa
admoestação Epicúrea… como “Viva imperceptivelmente”; pensada de maneira Grega, ela
diz, “Esteja em encobrimento como aquele que conduz sua vida”. (…) Isso é decisivo –
especialmente para a compreensão da essência primordial da verdade, cujo nome Grego,
a)lh/qeia, está relacionado com a palavra lanqa/nw (…). Pois, precisamente o modo como
lanqa/nw, no exemplo a pouco referido, é a palavra dominante, nos diz que o que é
nomeado nessa palavra, o “encobrimento”, possuía uma prioridade na experiência dos entes
e, especificamente, como um caráter dos entes eles mesmos é um possível “objeto” de
experiência. No caso do Ulisses que chora, os Gregos não consideram que os outros
presentes, como “sujeitos” humanos em seu comportamento subjetivo, falham em perceber
o choro de Ulisses, mas eles realmente pensam que em torno desse homem e sua
experiência, aí reside um encobrimento que ocasiona os outros presentes a estarem como se
fossem isolados dele. O que é essencial não é a apreensão por parte dos outros, mas que aí
há um encobrimento de Ulisses, agora mantendo aqueles que estão presentes afastados dele.
Que um ente, nesse caso o Ulisses que chora, possa ser experienciado e assim tomado
depende se acontece um encobrimento ou um desencobrimento.143

138
e)/nq )a)/llouj me\n pa/ntaj e)la/nqane da/krua lei/bwn. Homero, Odisséia, VIII, 93.
139
la/qe bio/saj. Lema estóico. Apud. Heidegger, 1992b:23-4.
140
la/q-
141
lanqa/nw.
142
laqw=n ou laqo/n.
143
Heidegger, 1992b:27-8. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 259.
83

Ora, o que se nomeia com o encobrimento não é, então, uma representação que

adéqua com precisão um determinado objeto ao que um sujeito da razão calcula como

correto. Nada está mais distante da experiência originária grega da verdade do que sua

representação através do que se identifica e permanece tão somente no des-velado. Não

há tal coisa como um des-velado per se; este pressupõe radicalmente o velamento como

sua contra-parte essencial. Por isso, a palavra grega psêudos, muito embora não

contenha qualquer “semelhança ortográfica” como o radical láth-, participa

intimamente, no entanto, da mesma relação que a alétheia. Nenhum estudo lingüístico

ou filosófico basta para caracterizar a intimidade com que o grego antigo pensa a

relação de alétheia e psêudos. Dessa forma, será necessário que se deixe mais uma vez o

próprio grego falar em testemunho de sua experiência. Um primeiro exemplo desse

testemunho chega hoje com a palavra “pseudônimo”. Esta palavra é composta por

psêudos – “falso” e ónoma – “nome”, literalmente significando “falso nome”. No

entanto, quem usa um pseudônimo não tem sua identidade falsificada, mas sim

encoberta. Da mesma forma, operações militares ou policiais possuem um pseudônimo

destinado a encobrir uma ação ou conjunto de ações que não são destinadas de modo

algum a aparecer. Igualmente nesse sentido, não há nada de falso no pseudônimo

adotado por um autor ou naquele designado a uma determinada operação. Por isso, a

tradução de psêudos como falso ilude o que com esta palavra está realmente em jogo.

Ora, na medida em que psêudos permite cobrir alguma coisa tal qual um pseudônimo de

um autor ou de uma operação secreta, o faz na medida em que desvela de um modo

especificamente recôndito, desvelando de certo modo algo que pertence a esse âmbito

do recôndito e do velado. Assim, psêudos na palavra pseudônimo ao mesmo tempo em

que encobre, revela algo e, desse modo, o que se entende “normalmente” por “nome
84

falso” não é algo assim tido como “incorreto”. Assim, psêudos não somente é um modo

de encobrimento, mas ao mesmo tempo deixa revelar algo. O pseudônimo “Alberto

Caieiro” não se apresenta justamente como o nome que ao encobrir “Fernando Pessoa”

pretende deixar aparecer a busca da vida ingênua e simples, despojada de qualquer

inquietação intelectual? Pode-se realmente afirmar que há aí qualquer coisa de

incorreto, ou que, na verdade, ocorre um determinado modo de encobrimento que vige

como dissimulação? O uso do pseudônimo não torna patente o autor muito mais de si

mesmo do que o uso de seu nome “correto?” Desse modo, o pseudônimo não torna

simplesmente o autor um desconhecido, mas antes, chama atenção para sua essência

coberta. O cobrir envolvido em psêudos mantém, então, uma profunda intimidade com

alétheia na medida em que nele também acontece não apenas um modo de encobrir,

mas também de deixar aparecer, sem que isso represente nada de “correto” ou

“incorreto” nos termos da oposição excludente de veritas. Psêudos pertence, assim,

tanto quanto a alétheia ao domínio essencial do encobrimento e do des-encobrimento.

Nesse sentido, pode-se agora, como que com ouvidos renovados, escutar o testemunho

de Homero e de Hesíodo a esse respeito. Na Ilíada, II 348ss, Nestor diz que para os

gregos não há esperança em retornar do campo de batalha de Tróia antes que eles

sabiam se Zeus é verdadeiro ou mentiroso – prin kai Dios aigiochoio gnômenai ei te

psêudos hypóschesis ei te kai oukí144. Nestor aqui faz referência à promessa de Zeus de

que seriam vitoriosos sobre Tróia. A promessa se dá em forma de sinais:

fhmi\ ga\r ou)=n kataneu=sai u(permene/a Kroni/wna


h)/mati tw=? o(/te nhusi\n e)n w)kupo/roisin e)/bainon
)Argei=oi Trw/essi fo/non kai\ kh=ra fe/rontej
a)stra/ptwn e)pide/ci' e)nai/sima sh/mata fai/nwn.

144
pri\n kai\ Dio\j ai)gio/xoio gnw/menai ei)/ te yeu=doj u(po/sxesij ei)/ te kai\ ou)ki. Tradução baseada na
edição inglesa de Samuel Butler: “was out ere they have learned whether Zeus be true or a liar”.
Disponível no site do Projeto Perseus.
85

Pois, agora vos digo, o plenipoderoso


filho de Chronos, Zeus, deu um sinal de sim,
quando – morte e má sorte a Tróia transportando –
subíamos às naves rápido singrantes:
relâmpagos à destra, luz de bom agouro!145

O verso 349 diz gnómenai psêudos hypóschesis ei te kai ouki, isto é, conclui que

será preciso ir à luta para “saber se a promessa de Zeus é ou não é falsa”. No entanto, é

preciso pensar não somente a relação entre psêudos e hypóschesis, mas também a

conexão entre o que se diz nesse trecho e os versos subseqüentes (350-3). Por isso, ao

menos por enquanto, deve-se preservar psêudos de uma tradução por “falso”, uma

tradução tão apressada quanto moderna. Ao fazê-lo, pergunta-se, então, o que determina

que a promessa de Zeus possa ser psêudos ou não? Como promessa, hypóschesis é um

modo de engajamento, um tomar para si como responsabilidade e compromisso. A

palavra schésis que se apresenta claramente em hypóschesis acentua justamente esse

sentido de uma posição estacionária engendrada pelo comprometimento da promessa:

schésis vem de schêin, aoristo de écho, indicando não apenas o sentido de “posse”, mas

também o sentido de manter e guardar. Tanto um como outro são enfatizados pelo

prefixo hypó- sob, debaixo de, embaixo – reforçando a idéia de subordinação. Como

promessa, hypóschesis pode ser então compreendida como um dar ou fazer que ao

mesmo tempo resiste, um mostrar que, resistindo e mantendo-se reservado, ao mesmo

tempo não mostra. Na simultânea possibilidade de dar-se e reservar-se, a promessa se

apresenta através de um sinal. É o que diz especialmente o final do verso 353:epidéxi

enaísima sémata phaínon.146 Aqui a promessa – hypóschesis – como o oferecer que se

145
Homero, 2002:87 (Livro II, vv. 350-4).
146
e)pide/ci' e)nai/sima sh/mata fai/nwn.
86

reserva encontra sua essência no sinal – séma147. Pois, o sinal é aquilo que, mostrando-

se a si mesmo, deixa algo outro aparecer. Como sinal, os relâmpagos atirados por Zeus à

direita são um presságio, isto é, mesmo que sejam auspiciosos, eles continuam a

reservar e velar o que ainda está por vir na batalha contra Tróia. A promessa como o que

se apresenta enquanto presságio, enquanto sinal é psêudos. Isto quer dizer: na medida

em que deixa algo aparecer no sinal, Zeus mantém algo des-encoberto. Porém, ao

mesmo tempo o próprio sinal reserva e guarda, uma vez que nunca mostra a si mesmo

do mesmo modo que deixa o outro aparecer. O sinal encobre. Por isso, como já se pôde

perceber através da palavra pseudônimo, psêudos possui um sentido primordial ligado

ao encobrimento, isto é, como “dissimulação”. O sémata phaínon, o sinal que se mostra

e que como sinal também se encobre – hypó-schesis – é psêudos, ou seja, é

dissimulação. A dissimulação não significa um engano que se atribui ao caráter de uma

pessoa. Homero fala de psêudos não com respeito à vontade e à razão calculante de um

sujeito, mas a respeito de um evento que ocorre em meio aos entes. Um exemplo poderá

esclarecer melhor:

(...) Nós dizemos que uma casa na vizinhança está obstruindo a vista das montanhas.
Dissimular como ob-struir é em primeiro lugar um encobrimento ao modo de uma
cobertura. Nós cobrimos, e.g., uma porta que não deve ser vista na sala e a disfarçamos
colocando um armário na sua frente. Dessa mesma maneira um sinal que aparece, um gesto,
um nome, uma palavra, também podem disfarçar alguma coisa. O armário colocado antes
da porta não apenas se apresenta como esta coisa e não apenas disfarça a porta ao cobrir por
cima – i.e., encobrindo – a parede na qual esse lugar possui uma abertura, mas, mais
propriamente, o armário pode ser disfarce ao ponto que ele finge que não há porta alguma
na parede. O armário disfarça a porta e, por ser colocado antes dela, distorce o “real” estado
da parede.148

A promessa de Zeus como psêudos se apresenta com o sinal de um destino

auspicioso, mas que também esconde o verdadeiro disastre retido e mantido em segredo

aos gregos, embora já a eles designado. Quer dizer, não apenas psêudos como um modo
147
sh/ma.
148
Heidegger, 1992b:32. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 259.
87

do encobrimento mantém um íntima relação com alétheia, mas se apresenta como

aquilo que, dissimulando, mantém em segredo e oculta. Sendo a alétheia des-ocultação,

isto é, retira algo do encobrimento, psêudos se mostra como um encobrimento

dissimulante, um esconder em estrito senso.

[233] Nhre/a d' a)yeude/a kai\ a)lhqe/a gei/nato Po/ntoj,


presbu/taton pai/dwn: au)ta\r kale/ousi ge/ronta,
ou(/neka nhmerth/j te kai\ h)/pioj, ou)de\ qemiste/wn
lh/qetai, a)lla\ di/kaia kai\ h)/pia dh/nea oi)=den:

O Mar gerou Nereu sem mentira nem olvido,


filho o mais velho, também o chamam de Ancião
porque infalível e bom, nem os preceitos
olvida, mas justos e bons desígnios conhece.149

Levando-se em conta psêudos não como “falso”, e tão pouco apenas como

“mentira”, mas agora, do modo em que se chegou aqui a se pensar, como um

encobrimento dissimulante, um esconder, abre-se então a possibilidade de se estabelecer

uma correspondência com a forma privativa a-pseudés150. Esta palavra, normalmente

traduzida por “sem mentira e engano”, “verdadeiro”, “sincero” ou “leal”, pode ganhar

uma conotação bastante diferente em virtude de sua relação com pseudés, isto é, com o

esconder dissimulante. A partir da relação de privação que a-pseudés mantém com

pseudés, pode-se então pensar os versos de Hesíodo ainda numa outra perspectiva:

Neréa d’apseudéa kai alethéa151 – “Nereu, aquele que não dissimula nem esconde

nada”, isto é, aquele que não dissimula porque não encobre152. Hesíodo dá seu

testemunho a respeito desse modo do encobrimento logo no início da Teogonia, v. 27-8:

ídmen pseudea polla légein etýmoisin homóia, ídmen d’, eût’ethélomen, alethéa

149
Hesíodo, 1995:119.
150
a)-yeudh/j.
151
Nhre/a d' a)yeude/a kai\ a)lhqe/a.
152
A palavra kai/ nesse verso não promove simplesmente a adição ou a repetição de termos, mas, como
conjunção, realiza uma união, uma relação de implicação entre encobrir e dissimular. Cf. discussão em
Heidegger, 1992b:33.
88

gerúsasthai – “sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos, e sabemos, se queremos,

dar a ouvir revelações”153.

Dizer mentiras símeis aos fatos é furtá-los à luz da Presença, encobri-los. As mentiras
são símeis aos fatos enquanto só os tornam manifestos como manifestação do que os
encobre. As mentiras são símeis (=homoia) quando se dissimula a unidade que, por estar na
raiz da similitude, une simultaneamente em um só lugar o símil e o ser-mesmo. Símil (lat.
similis) e o grego homoia tem a mesma raiz etimológica, que indica como idéia
fundamental a unidade. Por meio também desta raiz podemos aprender e pensar a
similitude que une as mentiras e os fatos, unidade-similitude em que a mentira e o ser-
mesmo se dão como símeis. Ao dar-se como símil, o ser-mesmo se dissimula pela
simulação desta similitude que, na força do assemelhar e do simular, apresenta-o como
simulacro (mentira símil). O Símil mesmo é já Outro ao dar-se como símil, pois aí o ser-
mesmo se oculta sob a similitude que o une ao Outro. Assim, na unidade desta similitude,
estão unidos as mentiras e os fatos, pois os fatos enquanto símeis, ocultam-se eles mesmos
sob a similitude com outra coisa, – subtraindo-se enquanto ipseidade.154

Na terceira diretriz para a compreensão de alétheia está em foco uma oposição.

Não uma mera oposição tal como o antagonismo excludente de veritas e falsum, de

verdade e falsidade, de correto e incorreto. A oposição que transparece na palavra grega

aponta continuamente para a unidade: a unidade de alétheia e léthe, a unidade entre

psêudos e a-pseudés, e a unidade entre psêudos e alétheia. Na multiplicidade de

referências diretas e cruzadas que aí se manifestam vem à tona a unidade do dizer das

Musas e do próprio dizer do poeta, isto é, a unidade de divinos e mortais. No dizer de tal

unidade se abre um primeiro e fundamental eixo de sentido do mundo como um jogo de

espelhos em que todos mutuamente se re-fletem e se espelham. Na unidade da verdade

grega arcaica como evento do dizer, os que se espelham o fazem porque se especulam

mutuamente. Pois, só pode haver re-flexão do que e no que se espelha se no espelhar

houver antes de tudo um especular. Esse especular não possui de maneira alguma o

sentido de uma investigação científica ou racional, tal qual se está por demais habituado

153
i)/dmen yeu/dea polla\ le/gein e)tu/moisin o(moi=a, i)/dmen d', eu)=t' e)qe/lwmen, a)lhqe/a ghru/sasqai Hesíodo,
1995:106.
154
Torrano, 1995:24-5.
89

na maturidade da modernidade. Tão pouco um especular assim vem a ser simplesmente

algo que fica só na teoria, sem tomar medidas práticas ou ainda um resumir-se a

conjecturar e bisbilhotar sem qualquer base em “fatos concretos”. Também não é

possível compreender o especular aqui como um tirar proveito no sentido da exploração

de algo ou de alguém. Especular é uma palavra que provém de modo mais próximo da

experiência latina de speculare, isto é, da constante e necessária conduta imperial

romana de manter sentinela a partir da observação desde um lugar alto. Porém, o radical

indo-europeu *spek- vai muito além da compreensão romana. Numa primeira

abordagem, esse radical está presente em palavras ligadas a observação e contemplação

como specìes – “aspecto, aparência, forma, figura; vista, espetáculo, imagem; aspecto,

fantasma; bela aparência, beleza” (donde speciósus,a,um “belo, formoso”), e também

em derivados de specùla,ae – “lugar de observação, atalaia; lugar elevado, altura, serra,

torre etc.” *spek- está presente de modo determinante também em palavras como

speculabìlis,e – “posto à vista, visível”, specùlum,i – “espelho” (com os derivados

speculáris,e – “transparente”, speculátus,a,um – “em que há espelhos, ornado de

espelhos”, além de specìmen,ìnis – “indício, marca; exemplo, modelo; imagem” e

spectrum,i – “visão, espectro, fantasma, imaginação”. *spek- ainda pode se dar como

specto,as,ávi,átum,are, isto é, em verbos como “olhar repetidas vezes, contemplar,

observar atentamente, ter os olhos fixos em”, nos derivados spectabìlis,e – “que está à

vista, visível, notável”, spectacùlum,i – “vista, aspecto, espetáculo”; spectatìo,ónis –

“ação de olhar, de ver; o olhar para, consideração; distinção”, spectátor,óris –

“contemplador, observador; espectador (no teatro); o que observa, examina;


90

conhecedor, perito, bom julgador”, e também em spectatívus,a,um – “especulativo,

contemplativo, teórico”(...).155

A experiência grega de palavras formadas palo radical *spek coleta ainda outras

dimensões. A princípio este radical se encontra na forma rearranjada skep156 como no

verbo sképtomai157 – olhar, observar ao redor de modo cuidadoso158, mas também em

skópos159 – destinar, apontar para160. O jogo de espelhos aberto pelo eixo mortais e

imortais reflete a experiência não apenas do olhar, mas ao fazê-lo com cuidado destina

um ao outro. Mortais e imortais destinam-se mutuamente, por isso divinam. O divinar

não é um ato exclusivo dos imortais enquanto divinos, mas o por em obra do mútuo

destinar de mortais e imortais. Esta experiência foi colhida também pelo antigo alto

alemão spähen como scharf hinsehen161, isto é, um modo de resguardar aguçadamente o

que se observa com cuidado. É o que refletem, pois, as palavras formadas por hinsehen:

hinsehend – olhar aí, e hinsicht – aspecto, respeito. Desse modo, mortais e imortais se

espelham não apenas no sentido de refletir uma imagem ou aspecto, mas ao fazê-lo,

resgradam-se mutuamente, cada qual mantendo o outro sob sua proteção.

A mútua proteção de mortais e imortais não é um misticismo qualquer cercado

de supertição e crendice. A relação mortais-imortais, ou ainda, divinos-mortais reúne a

unidade do inefável com aquele mesmo que sobre a terra e sob o céu está investido da

força de nomeação. Esta relação reúne a unidade do inaudito e do dito, da presença e da

155
Verbete espec- in: Houaiss Eletrônico.
156
Cf. Pokorny, p. 984.
157
ske/ptomai.
158
Cf. Liddell & Scott, s/d.
159
skopo/j.
160
Pokorny, p. 984.
161
Idem, ibidem.
91

ausência, do conhecido e do desconhecido. Muito além de uma determinação mística e

muito aquém de uma prescrição religiosa, encontra-se a unidade mítica primeva de

abertura e aparição do mundo. O testemunho dessa relação imemorial colhida na

experiência das línguas indo-européias é manifesto no radical *deiwos, cujo sentido

próprio não somente é “luminoso” e “celeste”, isto é, na qualidade de “deus”, aquilo que

se opõe ao humano e ao terrestre162, mas também e fundamentalmente no sentido do

radical indo-europeu *dei. A experiência coletada nesse radical aparece também

poetizada por Hölderlin:

O que é deus? Para ele desconhecida e no entanto


cheia de características é a fisionomia
do céu. Os raios na verdade
são a ira de um deus. Tanto mais invisível é
aquele que se destina ao estranho.

No que brilha cintila a ambigüidade do estranho e do outro, do desconhecido. O

celeste mantém para o homem uma fisionomia familiar porquanto com ele se opõe. Na

oposição não se polariza tão somente a natureza física de céu e terra pela oposição

homem-divino. O radical *dei quando alongado pelo u indica o “outro” e o “distante”

no tempo e no espaço.

O próximo é caracterizado pela vogal – i –, o remoto pela vogal – u –. Assim, no


indiano antigo: i-há = “aqui na terra”, indica algo que se encontra em nosso mundo; o
indiano antigo: asäu = “aquele”, que contém um “u”, é utilizado no Rigveda com as
palavras: céu, sol, nuvem, imortalidade, águas do céu, para indicar que são elementos
distantes, transmundanos, do além, que transcendem o mundo do experienciável.163

O divino no deus se apresenta familiar ao homem em sua fisionomia, mas

mantém-se para além do experienciável, isto é, fora do alcance como o desconhecido e

como o estranho. No caminhar sobre esta terra o homem não tem ao seu alcance nem o

162
Benveniste, 1995b:182.
163
Martins Terra, 1999:301.
92

céu, nem o sol, nem as nuvens e nem as águas do céu, muito embora ele sempre

reconheça a fisionomia quando estes se lhe apresentam. Não estar ao alcance mantém o

que brilha como estranho e desconhecido.

Na medida em que se dá a oposição mutuamente especular e vigilante entre o

conhecido e o desconhecido vige o resguardo da relação entre divino e mortal como

modo essencialmente poético de instaurar o sentido do próprio mundo. Uma tal

instauração ganha sentido pela escuta da mensagem do divino, isto é, o apelo pelo qual

o poeta deixa o desconhecido se manifestar, assim como deixa na claridade do estranho

que brilha o sentido penetrar no conhecido, no que sempre já está ao alcance. Por isso,

“os imortais são acenos dos mensageiros da divindade”.164 Na ausência que se faz

presença o poeta musica a vigência do sentido do ser. Nesta vigência nunca se dá o

sentido como algo simplesmente dado, isto é, ao alcance de uma disponibilidade sem

distância, mas antes, na escuta vigilante e cuidadosa do que brilha e cintila como o

desconhecido e o estranho. Em todos os percalços dessa escuta do divino entre os

mortais se dá a diferença em meio a toda identidade.

Por isso, uma tal oposição, longe de ser apenas uma disposição de pólos

contrários e excludentes, dá-se como oposição cujos extremos abrem, ao contrário, as

múltiplas dimensões e perspectivas do real. O que se diz com essa oposição é que em

toda abertura e dimensionamento de mundo ocorre uma dinâmica da verdade como

evento originário de realização do real. Em todos os modos de manifestação e de

apresentação abertos pelos extremos opostos está sempre em curso o evento

fundamental e originário da verdade. Esta não é uma verdade racional fundada

exclusivamente na correção e semelhança. A alétheia arcaica nomeia as formas

164
Heidegger, 2001:156.
93

extraordinárias de dar-se e retrair-se do que sempre vige como numinoso. A alétheia diz

o real como lugar e tempo de aparição do numinoso, quer dizer, deixa o real

transparecer como dimensão trancendente do sentido. Os múltiplos jogos de

encobrimento e des-encobrimento, as variedades de re-flexões especulares e

espetaculares em contínuo espelhamento na relação divinos-mortais configuram as

possibilidades e impossibilidades de manifestação do sentido do real como manifestação

do sentido do ser.

Na maturidade da modernidade e no tempo que se afigura como o auge das

possibilidades metafísicas, pode parecer estranho que se venha pensar a música numa

dimensão de sentido assim constituída. Um tal modo de pensar não só parece não ter

nada a ver como a sutentação científica e tecnológica do ocidente global, como

destacadamente parece contrapor-se obstacularmente ao predomínio unidimensional de

realização do real como idealidade raciocinante e racional. Claro que um pensamento

assim pode até mesmo se constituir como um contraponto, mas dificilmente é possível

afirmá-lo como um obstáculo a uma planetarização homogênea dos ideais da Cultura

Ocidental. E isto porque no ofuscamento de tanta luz – luz do saber, luz da ciência, luz

da razão – não apenas se pretende iluminar os âmbitos mais recônditos da vida e do real,

mas fundamentalmente, como um espaço e um tempo permanentemente efetuado pela

luminosidade da razão, a numinosidade do real desaparece à visão da vidência que põe

tudo e todos na clareza da verificabilidade da verdade-correção.

Embora na modernidade se tenha a ciência e sua tecnologia como mecanismos

por excelência de produção do saber, é preciso considerar que em toda manifestação que

se reveste de um espaço e de um tempo originários, permanece vigente como modo

característico de apresentação de sentido aquilo que é arcaico, isto é, um modo de


94

manifestação do sentido que extrapola as meras condicionantes e condicionamentos

delimitantes de uma ciência do real. Por isso a alétheia, permeando as essenciais

possibilidades do ser, do não-ser e do vir-a-ser manifesta um vigor originário que

extrapola toda a capacidade de iluminação da ciência. Por mais que se definam os sons,

inclusive os musicais, por suas propriedades físico-acústicas, por mais que se decrete as

características físico-químicas da cor nas telas das obras pictóricas, por mais que se

pretenda abarcar todo o domínio da arte através do domínio técnico e tecnológico, o que

se está sempre a fazer se resume a uma redução como delimitação, um determinado

modo de corresponder a manifestação do originário a um modo de intelecção do

originado. Porém, o que nunca está tematizado é a constante incursão do originado na

origem. Ora, a origem não é um objeto científico e muito menos filosófico. A origem

também não pode ser determinada como algo teológico, já que a própria teologia se dá

como metafísica. A origem como origem simplesmente não pode ser determinada, ao

menos como mais um objeto de observação. Todo modo de se fazer corresponder o

originado à origem, determinado pelo sistema de causa-efeito, avilta antes de tudo a

relação arcaica de origem e originado. Por isso, os versos de Hesíodo testemunham uma

experiência que

...ultrapassa e extrapola o interesse da mera erudição acadêmica, porque o mundo que


este poema arcaico põe à luz, e no qual ele próprio vive, está vivo de um modo permanente
e – enquanto formos homens – imortal. Um mundo mágico, mítico, arquetípico e divino,
que beira o Espanto e o Horror, que permite a experiência do Sublime e do Terrível, e ao
qual o nosso próprio mundo mental e a nossa própria vida estão ubelicalmente ligados.165

Ora, o mítico, o mágico e o divino, diz-se de modo arcaico poiésis – poesia.

Poiésis é o nome arcaico não para o discurso que se estrutura através de uma métrica ou

de uma determinada maneira de se contruir uma rima. Mesmo isso está muito aquém da

165
Torrano, 1995:19.
95

manifestação do verso como poesia. A palavra grega poiésis diz, de maneira arcaica,

isto é, de modo originário e fundante, não apenas o que se produz como efeito, mas o

produzir mesmo como a realização da passagem do não-ser para o ser. Realizar quer

dizer aqui tornar real, permitir o real livremente se manifestar. Em toda livre

manifestação do real a poiésis é o evento mais radical da alétheia. Para quem ouve a

realização da passagem do não-ser para o ser, este é o evento sagrado por excelência.

No sagrado habita o divino e com ele é que se mantém as relações especulares

primordiais porque nelas ocorre a manifestação do sentido do mundo.

Não será diferente então com a música, a manifestação arcaica das relações

especulares primordiais. Como tal, não há uma verdade da música como verdade da

obra, mas há, sim, verdade na música. Isto quer dizer, a música dá-se alétheia. Na

experiência arcaica a palavra não é somente um discurso, mas precisa ser cantada, isto

é, precisa ser o que na música é música: precisa ser manifestação do sentido e da

verdade do que transcende o não-ser como concretização e realização do ser.

Mas sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o tempo retornarem
à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida com que
vieram à luz pela primeira vez. (...) Na solidária colaboração dos homens com a Divindade,
o rei-cantor na antiga Babilônia devia entoar, nas festas de Ano Novo, o poema narrativo de
como a ordem cósmica divina e humana surgiu prevalecendo sobre as anteriores trevas
amorfas, e por meio desta declamação do canto prover que o novo círculo do Ano, o novo
ciclo do Mundo, tendo retornado às suas fontes originais, se refizessem de novo no Novo
Ano. – Este poder ontopoético que a palavra cantada teve multimilenarmente se faz
presente nas culturas orais se faz presente na poesia de Hesíodo como um poder
ontofântico. O mundo, os seres, os Deuses (tudo são Deuses) e a vida aos homens surge no
canto das Musas no Olimpo, canto divino que coincide com o próprio canto do pastor
Hesíodo, a mostrar como surgiu e a fazer surgir o mundo, os seres, os Deuses e a vida aos
homens.166

As palavras do poema manifestam a verdade e o sentido do mundo como

palavras cantadas, isto é, como palavras musicais. Note-se que a palavra no poema não

é apenas palavra. A música que vige na palavra do poema quer dizer aqui o modo
166
Idem, p. 20.
96

essencial e distintivo da palavra no poema. As palavras sozinhas nada podem. Palavras

há todo o tempo e em todo o lugar. Até mesmo na atividade pastoril de Hesíodo

encontram-se as palavras. Porém, somente quando estas se revestem do canto, isto é, da

música – do que é próprio e relativo às Musas – é que se abandona o corriqueiro e banal

– “vis infâmias e ventres só”167 – para entrar na relação com o sentido manifesto no

sagrado e inspirar um canto divino que glorie futuro e passado, impelindo a hinear o ser

dos venturosos sempre vivos e a elas, Musas, primeiro e por último sempre cantar168.

A relação alétheia – lógos

Por isso mesmo, a verdade não pertence às obras como também não pertence às

Musas. A alétheia não é um bem que se possua. Nada mais não-grego do que

compreender a verdade como um conceito que se possui. Isso poderia soar como uma

afirmação de que a verdade a ninguém pertence, mas uma tal perspectiva serve de

sustentação apenas para um outro conceito, o da relatividade da verdade. No entanto, ao

se pretender entrar numa relação com a compreensão grega da alétheia, deixar-se levar

pelo conceito de uma verdade relativa só distancia ainda mais a possibilidade de se fazer

uma experiência com a alétheia na medida em que esta habita a origem. Em que pese o

fato de nos ser impossível uma recuperação ipsis literis do pensamento grego originário

– e nem seria aqui o caso – o intuito de se realizar uma aproximação com esse

pensamento reside no fato de que em sua proximidade se possa ainda pensar o a-ser-

pensado da origem. Nesse sentido é que se empreende um esforço para se pensar a

música para além e para aquém da esfera comum da técnica e da ciência. Nessa esfera e

por essa esfera giram os empenhos e desempenhos de um pensamento moderno que já

167
Hesíodo, 1995:107, v. 26.
168
Cf. Idem, v. 31-4.
97

não pensa mais tanto quanto raciocina, que já não se lança e se aventura tanto quanto se

agarra às operações conceituais. Por isso, qualquer iniciativa que objetive conceber a

verdade tal qual mais um outro conceito de operação do real, nada mais faz do que se

afastar da origem para se ater ao que lhe é modernamente familiar. Ora, o sentido do

ater-se ao que é conceitualmente familiar conduz sempre a reflexão ao já conhecido. Por

isso, em termos do pensamento que pensa o a-ser-pensado da origem, nada mais não-

grego do que um conceito da verdade. Porém, a alétheia não é algo que se encontre

disponível sob a forma de um conceito, pelo menos não para o grego.

Nós refletimos muito raramente sobre o fato de que os mesmos Gregos aos quais a
palavra e a fala foram concedidas primordialmente podiam, pela mesma razão, manter-se
em silêncio igualmente de um modo único. Pois, “manter-se em silêncio” não é meramente
não dizer nada. Sem algo essencial a dizer, não se pode manter-se em silêncio. Somente no
interior de uma fala essencial, e através dela apenas, pode prevalecer o silêncio essencial,
nada tendo em comum com o segredo, a ocultação ou “limitações mentais”.169

Para o grego não é preciso sintetizar qualquer conceito a esse respeito, uma vez

que como acontecimento, a alétheia é a própria manifestação do ser. Tal manifestação é

a um só tempo o que há de mais simples e o que há de mais misterioso. Qualquer

refelxão é atravessada pela ambigüidade dessa questão: para ser o que é, o que é precisa

ser. No entanto, toda reflexão sobre o que é se acerca da impossibilidade de se tratar o

ser como o que é, sob pena de omitir a diferença entre ser e ente.

A verdade se dá na obra como nas Musas. Verdade e obra, assim como verdade

e Musas não se determinam a partir de uma relação de posse, mas se dão conjuntamente

e de modo indissociável. A verdade acontece: no acontecimento da verdade se dá a

apropriação do ser como manifestação. Obra e musas manifestam o evento em que

homem e ser reciprocamente se apropriam. Em outras palavras, obra e Musas conferem

169
Heidegger, 1992b:73. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 259.
98

densidade ao ser no homem, mas o homem também ganha densidade no ser. “O evento

é essa relação de recíproco, Uebereignen, de expropriação-apropriação”.170 Isto quer

dizer: “o homem está entregue como propriedade (vereignet) ao ser e (..) o ser é

apropriado (zugeeignet) ao homem”.171 Por isso, só se pode pensar o ser como o que se

remete ao homem, apropriando-se dele. Na dimensão dessa apropriação Heráclito

ensina: “a morada do homem, o extra-ordinário”.172 O homem expropria-se ao ser e

como sua morada se lhe manifesta o ser como sentido e o sentido do ser. “O ser

relaciona-se com o homem enquanto tem necessidade deste para acontecer; e o

acontecer não é um acidente ou uma propriedade do ser, mas é o próprio ser. Nem o

homem, nem o ser podem conceber-se como um <<em si>>, que depois se encontram

em relação”.173 O acontecer da verdade na obra e nas Musas manifesta a necessidade do

mútuo co-pertencimento de ser e homem:

Dizemos demasiado pouco do ser em si mesmo quando, ao dizer o ‘ser’, deixamos fora
o seu estar presente ao homem, passando assim por alto que este último também entra a
constituir o ‘ser’. Também do homem dizemos sempre demasiado pouco quando, ao dizer
‘ser’ (não ser do homem), pomos o homem por si mesmo e só num segundo tempo o pomos
em relação com o ‘ser’. Mas também dizemos demasiado, se entendemos o ser como aquilo
que abarca tudo em si e representamos o homem apenas como um ente particular entre
outros (plantas, animais) e imediatamente o pomos em relação com o ser; na realidade, já
na essência do homem está constitutivamente contida a relação com que (precisamente
devido a tal relação, que é um relacionar-se no sentido de ter necessidade) é determinado
como ser e, por conseguinte, está despojado do seu pretenso ‘em si e por si’.174

Fica claro então por que o homem na esfera do ser nunca se encontra

propriamente como um sujeito tal como na esfera da ciência e da técnica, bem como o

ser nunca poderá se dar como objeto. Nesse sentido, o daímon a que Heráclito se refere

170
Vattimo, 1989:107.
171
Heidegger, 1991:144-5.
172
Fragmento 119. In: Os pensdores originários, p. 91.
173
Vattimo, 1989:107.
174
Heidegger, Zur Seisnsfrage, apud Vattimo, 1989:107.
99

e remete ao âmbito de iluminação, à instância manifestativa de sentido de alétheia. Este

âmbito de iluminação, esta instância de manifestação do sentido do ser não é, no

entanto, um domínio completamente iluminado e totalmente manifesto como predende a

metafísica. A palavra alétheia, além das relações anteriormente desdobradas, diz, de um

modo pleno, não somente a ambigüidade da diferença ontológica, já que remete para o

des-encobrimento, mas mantém igualmente em latência uma relação de co-

pertencimento com o encobrimento. Latência é o estado ou o caráter daquilo que se

acha latente, oculto, isto é, não aparente, não manifesto. Ora, em grego nomeia-se o que

se oculta e não se manifesta com a palavra léthe. Até mesmo no português léthe

conservou-se na palavra “latente” através do radical lat- do verbo latino lateo – estar

escondido. Isto quer dizer que o evento apropriador de ser e homem se dá numa relação

preeminentemente tensional, quer dizer, alétheia não manifesta o acontecimento do ser

como uma ocorrência que apenas se manifesta, mas que nesse mesmo manifestar ocorre

um retraimento e, portanto, uma ausência. No sentido da presença e, ao mesmo tempo,

da ausência, o que se dá na origem do pensamento grego e que permeia tudo o que à

origem pertence, ao contrário da tradição metafísica ocidental fundada por Platão,

mantém um equilíbrio tensional inaugural. Desse modo, o co-pertencimento de alétheia

e léthe manifesta a inauguralidade da diferença entre ser e nada como o acontecimento

genesíaco por excelência. Para o grego não há a necessidade de construir um conceito a

respeito disso, pois o ato genesíaco atravessa toda experiência que ele faz com o mundo.

au)ta\r )/Erij stugerh\ te/ke me\n Po/non a)lgino/enta


Lh/qhn te Limo/n te kai\ )/Algea dakruo/enta

Éris hedionda pariu Fadiga cheia de dor,


Olvido, Fome e Dores cheias de lágrimas,175

175
Hesíodo, 1995:117, vv. 226-7.
100

Nos versos de Hesíodo não se elabora um conceito do que seja o Esquecimento,

mas apenas assinala que Léthe é filha de Eris, nascida irmã de Limós, palavra

modernamente traduzida por Fome. No entanto, esta tradução não somente é moderna,

mas em virtude disso mesmo, soa inapropriada. Apenas por não se levar em conta a

mútua apropriação de homem e ser como no poema hesiódico é que se pode

compreender não somente Limós por fome, mas também Léthe por esquecimento, isto é,

como aspectos fisiológicos e psicológicos que se acometem a um sujeito. Não são os

seus efeitos sobre o homem que sustentam a identidade de Léthe e Limós, mas sua

própria essência. Léthe é um modo de encobrimento em cujo retratimento o homem é

alienado de si mesmo, deixa de habitar em meio a sua própria essência. Com Léthe os

gregos nomeiam o que deixa de ser percebido como presença. Através de sua ligação

com lantháno, Léthe é o que escapa ao olhar e à atenção. Do mesmo modo, Limós não

diz somente e modernamente “fome”, mas através de sua raiz indo-européia *lei176,

liga-se a lei/pw – deixar, deixar desaparecer. Por isso, Limós não quer dizer a não

satisfação fisiológica de um desejo humano. No relacionamento com *lei, Limós

provém do verbo liázomai, que significa apartar-se, recuar ou ainda mergulhar, descer,

desaparecer e nesse sentido, furtar-se e escapar177. Limós, do mesmo modo que Léthe,

caracteriza-se como ausência, como o que se retrái e se retira, isto é, um ser ausente.

A relação entre Léthe e Limós, porém, não é de modo algum experienciada pelos

gregos como um experimento lingüístico. Os gregos não realizam com estas palavras

qualquer cálculo ou operação conceitual, mas dizem, antes, na Teogonia que ambas são

nascidas irmãs, filhas de Éris – a deusa “Conflito”. Éris é ela mesma filha de Nyx – a

176
Buck, 1988:332; Pokorny, p. 661-2.
177
Cf. Pokorny, p. 661-2.
101

Noite – chamada holoé178. Em Homero e Hesíodo este epônimo liga-se a Moira179 e é

geralmente traduzido como “ruinoso” ou “destruidor”. No entanto, esta mesma tradução

afasta mais uma vez a possibilidade de se fazer uma experiência com a compreensão

grega de alétheia, uma vez que nada mais indica do que aquilo que se tentou até o

momento evitar, isto é, que Léthe e Limós tomadas tão somente por esquecimento e

fome sejam meros indicadores de estados fisiológicos e psicológicos aflitivos que numa

perspectiva extrema levam o homem à sua alienação como destruição. Porém, uma tal

lógica apenas transforma a questão toda em algo muito simplório para aquilo que o

próprio Ocidente toma como base da gênese de sua configuração cultural. Nesse

sentido, o de não tornar as coisas simplórias, é preciso perguntar em que e de que

maneira pode a Noite ser alguma coisa ruinosa ou destruidora? Em que medida pode

ela, mãe de Éris (conflito) e origem de Léthe e Limós ser devastadora?

Arruinar quer dizer destruir e aniquilar, isto é, exterminar e reduzir a nada.

Reduzir a nada quer dizer desprover ou privar do ser, para os gregos, retirar a presença.

Desse modo Nyx é holoé por que deixa tudo que se dá como presença desaparecer no

encobrimento, isto é, em Léthe. Léthe é, pois, um modo da presença – aquilo que se

mostra e se manifesta – se dar como ausência. Nesse sentido, léthe e alétheia –

encobrimento e des-encobrimento – não se relacionam apenas por uma causalidade

lingüística, mas em virtude de um co-pertencimento de uma ambigüidade originária de

velamento e des-velamento. Esta ambigüidade é tensional, isto é, se configura numa

perspectiva em que o conflito não é uma profunda falta de entendimento entre partes,

mas se delineia como aquilo mesmo que mantém a complementaridade dos opostos.

178
Cf. Ilíada, XVI 567.
179
Cf. Odisséia, II 100, III 238, XIX 145; Ilíada, XVI 849.
102

Num sentido completamente diverso da tradição pós Platão, conflito no pensamento

originário não se apresenta como algo a ser resolvido, mas como o que se produz pela

tensão dos contrários e ao mesmo tempo os sustenta em sua máxima tensão e

envergadura. Nesse sentido é que se dá para o grego a manifestação da verdade como a

própria manifestação do ser. Em tal manifestação, levando-se em conta o co-

pertencimento de léthe e alétheia, o próprio ser nunca é simples presença, um simples

dar-se, mas imprescinde ao mesmo tempo da ausência, no sentido do encobrimento,

como um retrair-se e retirar-se. Somente num mecanismo operacional de medida,

identidade e re-presentação em que tudo é conduzido sempre e exclusivamente à

iluminação do intelecto é que se pode pretender destituir o sentido do ser de suas forças

co-originárias de conflito e encobrimento. Na configuração cultural em que mythos e

lógos são substituídos por epistéme e ratio ocorre a pressuposição de que nem Éris, nem

Nyx têm qualquer vínculo com o que se dispõe como presença e como sentido.

No entanto, na perspectiva originária do pensamento ocidental, isto é, no âmbito

em que este pensamento se dá como origem, não há um isolamento lógico e racional das

coisas, do mundo e do próprio homem como simples objetos de conhecimento e de

estudo. Somente num pensamento afastado da origem, ou seja, moderno, é que se pode

compreender o homem, sua inserção no mundo, e o universo de relações aí

desencadeado, sob o domínio das operações racionais e científicas. No âmbito do

pensamento originário, porém, não há ainda um desequilíbrio que pende para a pura

racionalidade e a subjetividade total. No espaço e tempo de vigência de mythos e lógos,

Éris, Nyx, Léthe e Alétheia não são definições terminológicas de conceitos e estados

pertencentes a um sujeito, tampouco são os substantivos próprios de entes sobrenaturais

do panteão de uma religião grega. Mas, justamente pela vigência de mythos e lógos,
103

estas palavras nomeiam o modo de manifestação do ser, o ser que se dá ao sentido. No

mythos e lógos se dá a manifestação do ser.

Entretanto, não é possível restringir mythos e lógos a um modo de vigência do

ser exclusiva a Grécia Arcaica. No entanto, ambos residem na própria origem do

pensamento grego como aquilo que não cessa de originar-se e, portanto, permanece o

mais atual.

e)n d' a)reta\n


e)/balen kai\ xa/rmat' a)nqrw/poisi Promaqe/oj Ai)dw/j:
e)pi\ ma\n bai/nei te kai\ la/qaj a)te/kmarta ne/foj,
kai\ pare/lkei pragma/twn o)rqa\n o(do\n
e)/cw frenw=n.

O Assombro impulsiona o florescimento da essência e a alegria que dispõem o homem


a pensar adiante; mas às vezes lhe sucede a nuvem sem sinal do encobrimento, que retém
das ações os caminhos retilíneos e os colocam além do que é de modo pensado
desvelado.180

O poema de Píndaro diz respeito ao mythos da colonização da ilha de Rhodes.

Nessa narrativa, a palavra Aidós, traduzida aqui por “assombro”181, se opõe a látha.

Como aquilo que dispõe em oposição ao encobrimento, Aidós determina alétheia – o

des-encobrimento em seu desencoberto, isto é, no seu ser desvelado, manifesto. No que

se manifesta como sentido vige a essência do homem, isto é, o ser se dá como lógos

através de alétheia. Sendo pensado quer como termor respeitoso, quer como reverência,

Aidós propele, arremete e confia algo ao homem. O que por Aidós se impulsiona sobre o

homem é arete – enébalen aretán182. Esta palavra essencial, do mesmo modo que

outras, não pode ser moderna e exclusivamente compreendida de acordo com uma

esfera moralista como virtude ou excelência.

180
Píndaro, Ode Olímpica, VII, 43-7 apud Heidegger, 1992b:74. Tradução nossa a partir da versão
inglesa transcrita no Apêndice I, p. 259.
Ai)dw/j. Pode ser compreendida como “reverência” como em William J. Slater, Lexicon to Pindar
181

disponível no site do Projeto Perseus.


182
a)reth/ – e)ne/balen a)reta/n.
104

)Areth/ significa o surgimento e o abrir-se e a inserção da essência fundamental do


homem no Ser. )Areth/ está relacionada a fua/, a palavra de Píndaro para a essência do
homem como o surgir no desoculto. )Areth/ e a)rtu/w são da mesma raiz que o Latim ars, que
se tornou a palavra Romana para te/xnh, e a qual nós traduzimos por “arte”. Baseado na
inserção, surgimento e abertura da essência do homem na a)reth/, ele é “resoluto”, aberto,
revelador e revelado em direção aos entes. Em tal a)reta/, re-solução, o homem está em
sentido literal “de-cidido” com relação ao Ser dos entes; isto é, “de-cisão” significa ser sem
cisão com o Ser.183

A relação entre areté e artýo184 (arranjar, inventar, preparar) configurada na raiz

indo-européia ar-185 em sua forma básica não apenas integra ao âmbito de sentido de

areté palavras derivadas como arma, harmonia e arte, como também por meio de

*áro,186 como em areípo,187 quer dizer levantar-se e elevar-se e, portanto, um modo do

surgimento – aquilo que é próprio da phýsis. Nesse sentido, pode-se então compreender

por que areté se relaciona com phyá,188 forma poética de Píndaro para phýsis e que diz

“surgir no desoculto”, sentido consonante ao que também ainda diz a)ei/rw – levantar-se

por si mesmo, responsabilizar-se pelo que lhe é o mais próprio. O surgir no des-oculto é

um modo essencial de se fundar a manifestação do ser na alétheia – aí se atinge no

homem o que lhe é mais próprio, a própria manifestação do ser.

“Resolução” no sentido moderno é a ordenação fixa da vontade sobre si mesma e


pertence metafisicamente dentro da essência da vontade à vontade, a forma presente da qual
é demonstrada pela vontade de poder. Resolução no sentido moderno é metafisicamente
não fundada na a)lh/qeia, mas na auto-segurança do homem como sujeito, i.e., na
subjetividade. Resolução, conforme concebida no modo moderno é a vontade do que é
voluntário em sua própria vontade; essa vontade a dirige para a voluntariosidade. “Ser-
dirigido” é em Latim fanatice. A característica distinta da resolução moderna é “o
fanático”. Conforme entendido pelos Gregos, entretanto, resolução, o abrir-se auto-
revelante em direção ao Ser, possui uma outra origem de essência, ou seja, uma experiência
diferente do Ser – aquela baseada em ai)dw/j, assombro. O assombro impulsiona ao homem,

183
Heidegger, 1992b:75. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 260.
184
a)rtu/w.
185
The American Heritage Dictionary of the English Language.
186
*a)/rw.
187
a)ei/rw.
188
fu/a.
105

e a ele concede, a)reta/. O assombro como essência do Ser conduz o homem à revelação dos
entes. Mas oposto à ai)dw/j, lá mantém-se firme la/qa, o encobrimento a que chamamos
esquecimento.189

No ser e pelo ser se dá a oposição mais extrema do que se manifesta e do que se

retrai conferindo ao real a mais pura ambigüidade. A abertura manifestativa do sentido

do ser se une tensionalmente ao encobrimento, ou como diz Píndaro – láthas atékmarta

néphos190 – “a nuvem obscura e impredizível do encobrimento”. Aqui, atékmarta possui

o sentido daquilo que não se mostra, daquilo que se esconde. O que é próprio de léthe, a

retração, é constitutivo da essência de alétheia. Por isso mesmo, léthe não pode ser

concebida como um esquecimento presente de algo que ficou ou ocorreu no passado. A

nuvem do esquecimento, que não se mostra e se esconde, ocorre mesmo quando,

segundo Píndaro, o homem pensa adiante – anthropóisi Promathéos.191 Nessa

constituição da verdade vige a ambigüidade de que bem no âmago de toda manifestação

do lógos ocorre uma retração como um encobrimento. Uma tal mútua apropriação de

manifestação e retraimento é algo que se dá completamente fora do alcance e da

vontade da subjetividade humana. Ao contrário da vontade de estabelecer os mais

diversos mecanismos de controle sobre a realidade do real, é o homem que é atingido e

lançado no abismo do que se dá e ao mesmo tempo escapa. Esta situação existencial do

homem Hölderlin a recolhe com muita agudeza:

Agora também vem um sopro que agita os cumes das ávores,


Mira! e a silueta de nossa terra, a lua
Vem agora secretamente também; a entusiástica, a noite vem.
Cheia de estrelas e bem pouco preocupada conosco,
Brilha a que se admira ali, a estrangeira entre os homens,
Sobre os picos das montanhas subindo triste e esplêndida.192

189
Heidegger, 1992b:75-6. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 260.
190
la/qaj a)te/kmarta ne/foj.
191
a)nqrw/poisi Promaqe/oj.
192
Hölderlin, Brot und Wein, 1, vv. 13-8. In: hoelderlin-gesellschaft.de. Tradução nossa. Cf. original na p.
260.
106

A noite vem a despeito da vontade dos homens, independentemente de toda

industriosidade e de toda engenhosidade, de toda luz do dia ao qual se apega; a noite

vem e com ela o que lhe é próprio. O que lhe é próprio nos diz Hölderlin: entusiástica.

Desse modo, não apenas a noite traz o encobrimento, mas nele a presença do

desconhecido. É o que diz a palavra derivada de “entusiasmo”, em grego – éntheos –

cheio do deus, possuído e inspirado pelo deus. O que “brilha e se admira ali” é o que

deixa a noite repleta do desconhecido, por isso “estrangeira entre os homens”. Há aqui

uma ambigüidade que se reverte: em léthe, o encobrimento que retrai e retira, a ausência

em meio ao que se manifesta como presença se dá a plenitude do divino como o que

brilha como o desconhecido e como o estranho. Outro não é o sentido da noite como

estrangeira entre os homens, qual seja, o de contrapor-se à iluminação dos entes no e

pelo homem como proveniente de outro país, isto é, proveniente da dimensão do

estranho e do não-conhecido. A ambigüidade reside justamente no fato de que o

retraimento de léthe propicie a oposição mutuamente especular e vigilante entre o

conhecido e o desconhecido e a vigência do resguardo da relação divinos-mortais como

garantia da instauração poética do sentido do ser.

Maravilhoso é o favor dos excelsos e nada


Sabe, desde quando e que coisa lhe sucede a alguém por eles.
Assim move ele ao mundo e à alma esperançada dos homens,
Nem mesmo o sábio compreende o que ele prepara, pois assim
O quer o deus supremo, o que te ama tanto, e por isso
Te é mais querido que a ele a ti o dia prudente.
Mas às vezes ama o olho nítido a sombra
E intenta por prazer, antes que seja necessidade, o sonho,
Ou observa também com gosto um homem fiel à noite,
Sim, é conveniente consagrar-lhe guirlandas e canto,
Porque para os errantes ela é sagrada e para os mortos,
Ela mesma, todavia, permanece eternamente, no mais livre espírito.
Mas ela nos tem que oferecer também, para que o tempo vacilante,
Na obscuridade algo nos seja um apoio,
O esquecimento e a embriaguez sagrada, generosamente
Oferecendo a palavra fluída a fim de que, como os amantes, esteja
107

Sem adormecimento, e com a taça mais plena e a vida mais ousada,


Sagrada recordação também, velando na noite.193

A noite não é jamais um objeto admirado por um sujeito do conhecimento, mas

no seu brilho auto-velante, no desconhecido, é ela que pro-voca a admiração nos

homens antes mesmo que tal se torne uma necessidade. Desse modo, a noite não é algo

que se configura desde uma perspectiva antropomórfica. Ela mesma, porém, é quem

confere densidade ao ser diurno dos homens, seja com a imaginação e o sonho, seja

através do sagrado da errância, ou ainda no espírito livre e na própria morte. Todavia, é

com o esquecimento – léthe – com aquilo que é contitutivo de alétheia, que na

obscuridade de uma temporalidade hesitante, a noite, em seu mais puro retraimento,

oferece ao homem um apoio a fim de que, na mais pura ambigüidade, este possa, sem

adormecimento, mas também sem repouso [Schlummerlos], ousar a própria vida. Este

apoio nada mais é do que a palavra fluída [strömende Wort], para os gregos, lógos.

Para os Gregos a palavra como muªqoj, e)/poj, r(h=ma e lo/goj é aquilo pelo qual o Ser se
consigna ao homem a fim de que ele possa preservá-lo em sua própria essência, como o que
é consignado a ele e possa, de sua parte, encontrar e reter sua essência como homem através
de tal preservação. Portanto, o destino “ter a palavra”, lo/gon e)/xein, é a característica
essencial da humanidade que veio a ser histórica como a humanidade Grega.
(...)
Somente onde uma humanidade é confiada a essência ter a palavra, lo/gon e)/xein,
somente aí ela permanece designada a preservação do desencobrimento dos entes, Somente
onde essa desgnação permanece e onde o desencobrimento aparece antecipadamente como
o Ser mesmo, somente aí o encobrimento também prevalece de um modo que nunca pode
ser o mero contrário e o simples oposto a revelação, i.e., nos modos de dissimulação,
distorção, erro, engano e falsificação.
Em virtude de haver um modo ainda mais original de encobrimento a ser distinguido
de tudo isso, os Gregos o nomearam com uma palavra a qual, em distinção a yeu=doj e
a)pa/th e sfa/llein, imediatamente se apreende na relação com a raiz original:
encobrimento como lh/qh.194

193
Hölderlin, Brot und Wein, vv. 19-36. In: hoelderlin-gesellschaft.de. Tradução nossa. Cf. original na p.
260-1.
194
Heidegger, 1992b:78-9. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 261.
108

É desconcertante para uma configuração cultural moderna, então, que a palavra

possa encontrar uma determinação que serve de apoio para o homem a partir do caráter

noturno do esquecimento, de léthe. O desconcerto assinalado por Píndaro diz que léthe

tira o pensamento que pensa adiante o deslocando para longe das ações do caminho

direto do desencobrimento – pragmáton orthan hodón.195 Somente o caminho que se dá

do desencoberto para o desencoberto pode de modo grego ser um o)rqa\n o(do\n. Do

mesmo modo, Hölderlin assinala a noite como estrangeira entre os homens por que não

se dá naquilo que é mais caro aos homens que ao deus supremo, isto é, como o dia

prudente. O paralelo entre orthan hodón e a prudência do dia dizem uma e a mesma

coisa, que a léthe deixa o desencoberto e sua revelação decair no ausente de uma uma

ausência velada. Não há para Hölderlin uma existência puramente dioturna, uma

existência que seja apenas e tão somente industriosa e engenhosa. Não somente não há

uma existência assim de tal modo exclusiva e orientada para os caminhos retilíneos do

dia, como no poema se acena com uma possibilidade não apenas contrapositiva da noite

em relação ao dia, mas originária. Por isso, a noite se constitui como o lapso em que os

errantes encontram a verdadeira existência. Para o homem dioturno, o desconcerto

reside justamente no fato de, por oposição aos caminhos diretos e à prudência do amado

dia, poder encontrar a habitação da palavra no caráter caótico e errante da noite. Numa

perspectiva moderna esse desconcerto beira o absurdo, já que caos significa confusão, a

falta de leis e normas. No entanto, não somente na modernidade caos é sinônimo de

desordem. Já na tradição platônica considera-se como o estado geral desordenado e

indiferenciado de elementos que antecede a intervenção do demiurgo, por meio da qual

é estabelecida a ordem universal.

195
pragma/twn o)rqa\n o(do\n.
109

Mas agora amanhece! Eu esperei e o vi chegar,


E o que vi, possa o sagrado ser minha palavra.
Pois ela, ela mesma, que é mais antiga que os tempos,
E acima dos deuses do ocidente e do oriente,
A Natureza despertou agora com ruído de armas
E desde o sumo do éter até o fundo do abismo,
Segundo firmes leis, como outrora, engendrada no sagrado Caos,
Se sente de novo o entusiasmo,
De novo, a criadora de tudo.196

A despeito das concepções correntes, caos para Hölderlin, e para o pensamento

grego originário, se dá numa modalidade de compreensão, que se não completamente

diferente, do mesmo modo que léthe em relação a alétheia, ultrapassa em muito a

simples oposição excludende dos contrários.

(...) xa/oj significa primeiramente o bocejar, o abismo tenaz, o aberto que primeiro se
abre no lugar em que tudo é tragado. O abismo não permite suporte a qualquer coisa
distinta e fundamentada. E portanto, para toda experiência, que apenas conhece o que é
mediado, caos parece ser algo sem diferenciação e assim, mera confusão. O “caótico” nesse
sentido, entretanto, é apenas o aspecto inessencial do que “caos” significa. Pensado em
termos da natureza fu/sij, caos persiste como a tenacidade da qual o aberto se abre de modo
que possa conceder sua presença limítrofe a todas as diferenciações.197

Nesse sentido, Hölderlin chama Caos “o sagrado” [der Heilige] e por isso, é

primevo. No primevo, no primordial se dá o limite não como aquilo em que se pára e

não podendo ir adiante, finda, mas justamente como aquilo que origina e permite ser

formado. Como o limite originante o sagrado [der Heilige] transpassa o que surge e se

retrai (phýsis) “desde o sumo do éter até o fundo do abismo” de modo inteiro e intacto

[heil], isto é, em seu todo. Para os gregos, o todo em que se dá o limite originante do

sagrado é pánte – de todos os lados, em todas as direções. Desse modo, pánte se dá

como fundo de reserva dos orthan hodón e se torna constituivo via cháos, Nyx e léthe da

experiência fundante da verdade como alétheia. Para o grego arcaico e para os poetas, a

196
Hölderlin, Wie Wenn am Feiertage, vv. 19-27. In: Heidegger, 2000a:68-70. Tradução nossa. Cf.
original na p. 261.
197
Heidegger, 2000a:85. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 261.
110

verdade é em seu todo uma ex-periência que integra em seus limites tanto o que se

manifesta como presença com todas as vias de acesso, como o que se ausenta com todos

os des-vios e errância. Nessa tensão, diz Hölderlin, a palavra é oferecida como um

apoio, compartilhando de uma experiência do pensamento já trazida pelas palavras de

Heráclito: ouk emou Allá tou lógou akousantas homolegéin sophón éstin hén pánta

einai.198 No fragmento de Heráclito traz-se à palavra e à escuta o limítrofe do qual até

aqui se falou, no qual não apenas vige a origem, mas no pensamento originário, o

próprio lógos. O lógos está no limite entre o que se orienta como direção nos caminhos

do pensar, no que se manifesta como presença diretiva, e o que se des-orienta na

digressão dos caminhos do caos primevo, no que se retrai e retira a toda e qualquer

pretensão diretiva, direcionalizadora e linear. O lógos integra e se une ao limite de

alétheia e léthe, de tal modo que o que dele provém, a palavra, se torna o que pode

conferir sentido e iluminar os entes com o ser, mas ao mesmo tempo foge a qualquer

padrão de uso que se pretenda impor como modelo uniforme de significação. Sendo o

lógos em unidade com o limite de alétheia e léthe, é possível dizer que tudo é um sem

que isso se torne uma igualdade medida e re-presentada de tudo e de todos. Na medida

em que se possa pensar o lógos em unidade com o limite originante de alétheia e léthe,

a palavra que dele provém nunca fica, então, reduzida a mera significação, mas

concretiza-se e con-cresce sempre na possibilidade mais extrema do sentido. Por isso,

na concretização da linguagem do lógos habita o ser como possibilidade de todas as

possibilidades, uma tal possibilidade que não se furta sequer à impossibilidade, um

modo de habitação que pode dizer tranqüilamente:

198
“Auscultando não a mim mas o Lógos, é sábio concordar que tudo é um. Heráclito, Fragmento 50. In:
Os pensadores originários, p. 71.
111

Tem mais presença em mim o que me falta.


Capítulo III

Música e hermenêutica no horizonte do

mito

A comparação [do mito] com a música (...) encontra-se à


mão. Pois, embora o que aflui [do mito] permanece sempre
imagético em si mesmo, (...) se tornou algo com voz própria, ao qual
se faz justiça não pela interpretação e pela explicação, mas acima de
tudo ao deixá-lo a si mesmo e permitindo que profira seu próprio
sentido.
Dessa combinação dos aspectos imagéticos, significativos e
musicais da mitologia segue-se a atitude correta em relação a ela:
deixar que os mitologemas falem por si próprios e simplesmente
escutá-los.

Kerènyi, 1993:3, 4.

Pensamento e hermenêutica: a articulação da compreensão

Trata-se aqui de deixar que uma questão venha ao pensamento como tema.

Deixar que uma questão venha a ser tema para o pensamento significa permitir que ela

mostre o vigor que lhe é próprio. Aqui, o tema para o pensamento é a mais originária de

todas as questões. Diz respeito ao “o que é”. A pergunta pelo “o que é” é a mais

originária de todas as questões por se tratar, antes de qualquer coisa, da pergunta pelo

ser. Por isso, deixar que a questão do ser venha a se tornar temática para um diálogo

frutífero com a música e a poética tem em conta permitir que o pensamento teime

naquilo que lhe é mais originário, isto é, naquilo mesmo que se dá como seu vigor e sua

origem.

O intuito em curso não pretende transigir com o que se tornou e se consolidou,

na modernidade e na chamada pós-modernidade, como pensamento hegemônico da

técnica. Na perspectiva desse pensamento, a dificuldade de tal tarefa reside em dois


113

aspectos determinantes: o primeiro se refere justamente ao fato de se pretender, em

meio a atual cultura planetária, colocar novamente em movimento a questão que

pergunta pelo ser como o horizonte de toda questão digna de ser pensada na medida que

em virtude mesmo de sua hegemonia, qualquer que seja, essa cultura não admite

qualquer questionamento. Desse modo, a impossibilidade de um questionamento que

destine o perguntar ao originário é uma condição estrutural de todo pensamento

hegemônico. Em segundo lugar, enquanto condição estrutural, a inadmissão de qualquer

questionamento que destine o perguntar ao originário pré-condiciona a própria maneira

de se encaminhar todo e qualquer questionamento. Esse pré-condicionamento diz

respeito ao grau com que a linguagem se transforma num aparato tecnológico que deve

cumprir funções e objetivos bem delimitados, uma vez que ela mesma se encontra

cativa de um modo específico de encaminhamento do pensamento enquanto enunciação

proposicional. Daí, se para a Grécia Arcaica a palavra mythos possuía uma tal força de

manifestação de sentido do mundo a ponto de com o poeta-aedo figurar co-

originariamente na mensagem das musas, na cultura planetária hegemônica, no entanto,

o mythos decai do lugar sagrado em que se dá a manifestação de sentido do mundo para,

como elemento meramente terminológico, compor o desencadeamento de uma

tecnologia da informação a que quase nada mais pode resistir. Não obstante a

hegemonia desse “pensamento”, deixar que a questão mais originária seja uma vez mais

tema para um pensamento que teima é para nós levantar não apenas a questão mais

presente, mas acima de tudo, a questão que mais radicalmente aponta para o futuro.

Pois, levantar a questão que pergunta pelo sentido do ser cuida em primeiro lugar de

manter no horizonte do pensamento aquilo que lhe provê alimento, em outras palavras,

aquilo mesmo que o provoca a pensar e que é digno de ser pensado. Por isso, o
114

pensamento é teimoso, in-siste em não perder de seu horizonte aquilo que lhe é

temático.

Considerando o que foi dito, não parece que seja difícil a qualquer um

compreender a importância de se manter em aberto o interesse pela questão do ser como

aquilo que essencialmente desperta a necessidade do próprio pensamento frente à

padronização do mundo imposta pela exponenciação da relação sujeito-objeto. Desse

modo, a rearticulação da questão que interroga pelo ser dispõe a própria necessidade do

pensamento na medida que sendo convocado pelo ser, mantém com ele uma estreita

reciprocidade, trazendo novamente à tona do longo esquecimento levado a cabo pela

tradição metafísica a questão mais digna de ser pensada.

Enquanto questão pelo sentido do ser, a questão de que se trata aqui é tríplice,

isto é, se des-dobra em três, a saber: o que é música, o que é poética, o que é sentido. O

desdobramento da questão temática do pensamento não é, entretanto, um

desmembramento. A tentativa de um caminho para pensar teimosamente a questão de

música, poética e sentido, mantendo no horizonte de todas as questões aquilo que lhes é

mais temático, isto é, a própria questão do ser, requer de imediato que se evite a

tentação das simplificações. Des-dobrar não é simplificar, isto é, não é abolir ou negar a

dobra. Ao contrário, deseja-se com o desdobramento da questão intensificar, aumentar e

reforçar as dobras da questão pelo ser. Em todo esforço em se des-dobrar a questão aqui

temática, o que se pretende é fazer aparecer caminhos pelos quais o pensamento possa

trilhar e assumi-los em toda sua força de envergadura. Também não se trata, de modo

algum, de promover a ex-plicação da questão, isto é, de fazê-la projetar-se para fora do

plexo, de sua dobra. Trata-se antes de permitir uma aproximação com aquilo e a partir

daquilo que na questão vige como mistério e, por isso mesmo, se dá como fonte
115

inesgotável de sentido. Desse modo, o desdobramento da tríplice questão de música,

poética e sentido apenas configura o panorama em que o pensamento teima em pensar o

seu tema.

Os limites do pensamento são os limites de sua questão originária. O panorama

em que se desdobra a tríplice questão de música, poética e sentido tem em vista o

horizonte da questão que pergunta pelo ser. Por isso, não será possível a imposição de

outros limites que não sejam aqueles configurados desde a própria questão do ser. A

medida desses limites não se encontra, portanto, nas definições, nas delimitações dessa

ou daquela tradição filosófica e muito menos científica, mas no exercício do

pensamento teimoso que caminha em virtude e no vigor de seu tema. Nesse sentido,

qualquer tentativa de definir de antemão o caminho do pensar implica no

desaparecimento do horizonte da questão que pergunta pelo ser como a sua mais

originária medida.

Essa medida desde a questão pelo ser se dá como abertura de possibilidades. As

definições, ao contrário, limitam em si mesmas apenas um conjunto específico de

possibilidades, determinado por critérios pré-estabelecidos, excluindo-se todo o resto.

Na cultura planetária hegemônica da técnica a exclusão é o vigor da ciência em sua

maior plenitude. Operar o pensamento científico quer dizer, delimitar o que pode ou

deve ser conhecido através do modo como pode ou deve ser conhecido. Entretanto, ao

se pensar a tríplice questão de música, poética e sentido tendo como panorama o

horizonte dimensionado desde a pergunta pelo ser, há que se evitar, além das

simplificações, as definições e delimitações de tudo que vá de encontro a uma livre

abertura de mundo.
116

Nesse sentido, o pensamento se dá como abertura para o ser. O desdobramento

da tríplice questão de música, poética e sentido no horizonte instalado pela questão do

ser conduz o pensamento a uma situação intrinsecamente ambígua, em que todo o

questionamento se encontra suspenso entre a vigência do que se conhece e o vigor do

que sempre re-siste como mistério. Essa suspensão advém da própria condição

existencial do homem na sua abertura para o ser na medida em que ex-iste

hermeneuticamente.

“Faticidade” é a designação que nós usaremos para o caráter do ser de “nosso”


“próprio” Dasein. Mais precisamente, essa expressão significa: em cada caso “esse” Dasein
no seu ser-aí por um momento no tempo particular (...) na medida em que é, no caráter de
seu ser, “aí” ao modo do ser. Ser aí ao modo do ser significa: não, e nunca, ser
primeiramente como um objeto da intuição e definição com base na intuição, como um
objeto do qual nós meramente tomamos cognição e temos conhecimento. Ao contrário,
Dasein está aí por si mesmo no “como” de seu ser mais próprio. O como de seu ser abre e
circunscreve o respectivo “aí” o qual é possível por um momento no tempo particular. Ser –
transitivo: ser a vida fática! Ser é ele mesmo nunca o objeto possível de um ter, pois o que
nele está em questão, ao que ele vem, é ele mesmo: ser.
(...)
A hermenêutica possui a tarefa de tornar o Dasein (...) acessível ao próprio Dasein em
relação ao caráter de seu ser, comunicando o Dasein a ele mesmo nessa relação, dele
recolhendo a alienação com a qual é golpeado. Na hermenêutica o que é desenvolvido para
o Dasein é a possibilidade do seu tornar-se e ser por si mesmo ao modo de uma
compreensão de si mesmo.
(...)
A possibilidade mais própria do ser ele mesmo o qual o Dasein (faticidade) é, e de fato
sem que esta possibilidade esteja “aí” para ele, pode ser designada existência. É com
respeito a esse próprio ser autêntico que a faticidade é colocada em nossa pré-compreensão
quando inicialmente se engaja e vem à tona em nosso questionamento hermenêutico. É
dele, baseado nele, e com uma visão para ele que a faticidade será interpretativamente
explicada. As explicações conceituais que se desenvolvem dessa interpretação são
designados como existenciais.199

A vigência hermenêutica da existência se dá numa temporalidade em plena

reciprocidade originária com o ser, donde retira o seu caráter absolutamente

transcendente e sua resistência a toda e qualquer apreensão direta.

Como palavra de todas as palavras, a palavra ser é, portanto, propriamente, a palavra-


originária-do-tempo. Como palavra de todas as palavras, ser, esta palavra-do-tempo nomeia
“o tempo de todos os tempos”. Ser e tempo pertencem um ao outro de maneira originária.
Ao menos uma vez o pensamento deve pensar no percurso comum de “Ser e Tempo”. É

199
Heidegger, 1999a:5, 12. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 262.
117

que, do contrário, o pensamento cai de novo no perigo de esquecer o que para o


pensamento dos pensadores insiste em ser pensado.200

A existência se configura como o lugar da compreensão da abertura do homem

para o ser, da interpretação da mútua e inseparável dependência entre um e outro. Nessa

unidade essencial e misteriosa se dá o sentido do mundo. À articulação em que se dá a

compreensão dessa mútua e inseparável relação de ser e homem pela existência

chamamos hermenêutica. Como compreensão da existência, a hermenêutica articula o

sentido do ser, considera-o em toda sua ambigüidade e não lhe impõe resistências que

não sejam dele mesmo advindas. Por isso, quando dizemos que o pensamento que teima

se coloca a caminho de pensar sua questão temática através do desdobramento da

tríplice questão de música, poética e sentido, tendo como pano de fundo a própria

questão do ser, dizemos isso considerando que o pensamento se empenha por e numa

hermenêutica do ser em todo o seu vigor e em toda sua ambigüidade.

Nesse empenho, o pensamento não pressupõe assenhorear-se do ser, pois sabe

que dele provém o seu alimento e por ele é con-vocado. O pensamento que pensa se

mantém dócil ao ser e não somente compreende a ambigüidade de pensar o ser, mas

fundamentalmente a ambigüidade de pensar toda questão que toma o ser por horizonte,

como aquilo que é próprio da inter-pretação. Quer dizer, o pensamento que se empenha

por e numa hermenêutica do ser vige na ambigüidade da inter-pretação. A hermenêutica

da compreensão não é, nesse sentido, um entendimento que se dá como um modo de

conhecimento da vida e do ser do outro como objeto. Não há, pois, na hermenêutica

qualquer característica de intencionalidade, uma vez que ela não é fruto da consciência

subjetiva, mas se encontra numa dimensão de pré-compreensão do próprio Dasein, que

nós mesmos somos. Pos isso, a hermenêutica não se apresenta como mais um modo
200
Heidegger, 2000b:74
118

artificial inventado de análise que se impõe ao Dasein. Antes, a relação entre

hermenêutica e o Dasein, que nós mesmos somos, aflora no sentido de que ela é “ela

mesma um modo possível e distintivo do caráter do ser da própria vida fática”.201

Hermes, hermenêutica e o limiar da unidade

Na medida em que a palavra hermenêutica provém etimologicamente de

Hermes, de que modo sua caracterização pode se dar como caracterização do próprio

deus? Na tradição filosófica, Hermes é relacionado com a hermenêutica apenas pela

mera vinculação lingüística. Nesse sentido, na tradição filosófica ocidental a

hermenêutica mantém quase nenhuma relação com o deus. Resta para nós, saber se isso

é assim mesmo ou se ao contrário, Hermes pode desempenhar um papel muito mais

decisivo na determinação do que a hermenêutica seja, principalmente se o percurso

empreendido trilhar um caminho não estritamente comprometido com a tradição

filosófica ocidental, mas fundamentalmente com aquela tradição que permanece latente

no próprio mito.

Sendo assim, pode-se começar esse percurso perguntando pela própria

compreensão daqueles para os quais Hermes adveio de um modo originário. Para os

gregos arcaicos esse deus se manifesta através de características particulares:

1. Hermes se move durante a noite, ocasião do amor, sonhos e roubo;


2. é o mestre da astúcia e do engano, fraude, a marginalidade das ilusões e dos
truques;
3. ele possui poderes mágicos, a margem entre o natural e o sobrenatural;
4. ele é o patrono de todas as ocupações que ocupam margens ou envolvem
mediação: comerciantes, ladrões, pastores e mensageiros;
5. sua mobilidade o transforma numa criatura intermediária, ambígua;
6. sua marginalidade é indicada pela localização de sua herma fálica, não em
qualquer lugar, mas nas estradas, nas encruzilhadas e nos bosques;
7. mesmo o seu erotismo não é orientado para a fertilidade ou para manter a
família, mas é basicamente afrodítico – furtivo, dissimulado e amoral, uma
amor ganho por furto sem qualquer preocupação moral pelas conseqüências;

201
Idem, 12.
119

8. Hermes é um guia através das fronteiras, incluindo a fronteira entre a terra e o


Hades, isto é, entre a vida e a morte.
9. Hermes é o deus grego das aberturas e das fendas.202

Hermes manifesta a ambigüidade do real. Ele não somente é o mensageiro dos

deuses porque Zeus o tenha designado para tal, mas é angelos porque seu modo

essencial de ser é aquele que transita livremente entre os mundos. Esses mundos são

mundos opostos, porém, complementares. Para que se entenda melhor quem é Hermes e

o mundo que ele instala, isto é, o sentido de Hermes, transcrevemos abaixo a passagem

inicial do Hino a Hermes, atribuído a Homero:

Musa, cantai Hermes, o filho de Zeus e Maia, senhor de Cyllene e Arcadia rica em
rebanhos, o condutor da sorte mensageiro dos imortais a quem Maia revelou, a ninfa de
cabelos ricamente cacheados, quando ela se uniu em amor com Zeus, [5]º - uma deusa
tímida, pois evitando a companhia dos sagrados deuses, viveu no interior de uma profunda,
sombria gruta. Lá o filho de Cronos costumava se deitar com a ninfa de cabelos cacheados,
invisível aos imortais e aos mortais, ao silenciar da noite enquanto o sono profundo
continha os pálidos braços de Hera. [10]º E quando o espírito do grande Zeus estava por se
completar, e a décima lua estava já no céu, ela produziu sua criança, de muitos artifícios,
gentilmente astuto, um salteador, um ladrão de gado, um condutor de sonhos, [15]º um
vigilante da noite, um ladrão nos caminhos, aquele que brevemente estava por mostrar
maravilhas dentre os deuses imortais. Nascido com o amanhecer, ao meio-dia ele tocou a
lira, e à noite roubou o gado do arqueiro Apolo no quarto dia do mês, pois naquele dia
nobre Maia o revelou, mas ele saltou e buscou os bois de Apolo.203

Designações tais como “ladrão de gado” e “o que mostra maravilhas dentre os

deuses imortais” exemplificam bem a ambigüidade latente de Hermes. Surge, no senso

comum, a dúvida de como um ladrão pode ao mesmo tempo ser aquele que mostra

maravilhas dentre os deuses. Esse traço de ambigüidade e de paradoxo se acentua mais

ainda ao se contraporem os aspectos da astúcia e da furtividade com o fato de Hermes

ser o mensageiro dos imortais, o condutor da sorte. Como alguém pode congregar em si

aspectos tão elevados e sublimes e comportamentos tão desprezíveis e ardis? Mas,

202
Friedrich, Paul. The meaning of Aphrodite, apêndice 8, p. 205. Chicago: University of Chicago Press,
1978, apud Palmer, 1980. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 262.
203
Hino a Hermes, 1-22. Traduzido por nós da versão inglesa de 1914 de Hugh G. Evelyn-White, Projeto
Perseus. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 262-3.
120

talvez a principal face dessa ambigüidade hermenêutica resida no fato de muitas vezes

Hermes se apresentar ao mesmo tempo como uma criança-divina e como um deus

olímpico.204 O fato de Hermes se manifestar como uma criança primeva aponta para

uma deidade que antecede, pois, a ordem olímpica.

O poeta do “Hino a Hermes” apresenta um material mitológico primordial numa forma


que pôde ser mais tarde integrado e se tornado parte da tradição clássica. A serenamente
cintilante e meneante ironia com a qual ele glorifica o evento Titânico corresponde
igualmente à atitude do seu herói. Que informação adicional obtemos aqui a cerca de
Hermes não amplia tanto sua imagem incluindo novos aspectos quanto a aprofunda em
direção ao Titânico. Desde que ele está integrado ao mundo de Zeus, Hermes naturalmente
não pertence à raça dos Titãs. Ainda assim, conforme nós o seguimos, podemos sentir nele
a presença do mundo pré-Olímpico, mesmo à parte do fato de que ele aparece como uma
criança divina e que essa infância dos Deuses não pertence ao mito Olímpico, mas a uma
mitologia muito mais antiga. No Hino, um Deus Olímpico cresce de uma criança primeva, e
com esse desenvolvimento sua história pré-Olímpica se torna parte de sua figura clássica.205

Ora, em Hermes convivem, portanto, dois princípios opostos. Um, de natureza

olímpica, hierárquica e cosmogônica; outro, de fundo pré-olímpico, confusamente

insubordinado e caótico. Na tradição clássica o lugar de cada divindade no panteão

grego é determinado com respeito às possibilidades e características de cada figura

individual. Na hierarquia da poesia homérica cada relação dos deuses com todo o resto

se encontra imutavelmente fixa. O fato de Hermes se manifestar ora como criança, ora

como adulto é possível, portanto, apenas fora da hierarquia olímpica. No Hino a Hermes

os aspectos mais primitivos da divindade e que antecedem a ordem olímpica são com

ela alinhados de tal modo que “a figura de Hermes nunca perdeu aquele caráter mais

primitivo”206, mas “persistiu ao lado da hierarquia olímpica e do hino homérico”,

determinando assim o seu espectro cósmico desde o início.

204
Cf. Kerényi, 1993:52.
205
Kerényi, 1986:17-8. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita na p. 263.
206
Kerényi, 1993:53.
121

Desse modo, Hermes integra nele mesmo a oposição originária do caos e do

cosmos como modalidades de manifestação do titânico e do olímpico. Não surpreende,

portanto, que Hermes transite com facilidade entre os mundos e possa perfeitamente ser

tanto o mensageiro dos deuses, como aquele que é mais próximo dos homens. “Hermes,

tu, mais do que todos os outros deuses, és o mais querido para ser companhia do

homem...”207 Hermes gosta de se associar aos homens para garantir um desejo ou para

torná-los invisíveis.208 “É da natureza de Hermes não pertencer a qualquer localidade e

não possuir habitação permanente; ele está sempre a caminho entre aqui e acolá”.209

Hermes é, pois, o deus dos caminhos. Pelo fato de estar sempre a caminho entre aqui e

acolá, Hermes vige enquanto pode ser engendrado pelo caminho. Hermes não é o deus

de pontos cardeais ou fixos, ele não possui “habitação permanente”.

Se se buscar a habitação de Hermes, será preciso atentar para uma coisa: a

ambigüidade de Hermes reside no próprio caminho, na jornada como o entre-mundos.

Hermes se dá como pura transitividade ou transcendência. Essa transitividade ou

transcendência, porém, não é a mesma de um viajante. O viajante tem um ponto de

partida e de chegada muito bem definidos. Para o viajante, toda jornada se converte em

mero meio para um fim. Não há qualquer relação dele com o caminho. Este é apenas

mais um percalço a ser vencido na sucessão cronológica do tempo entre um ponto e

outro. Cada passo no caminho se trata apenas de tomar posse do destino ao modo de um

objeto. Sua posse se dá mediante a verificabilidade ou a correspondência entre o ponto

de chegada e o que foi previamente definido como destino. Desse modo, o destino na

forma de um ponto de chegada já se encontra de antemão traçado pelo mapeamento das

207
Homero, Ilíada, Livro XXIV, 334-35.
208
Cf. Kerényi, 1986:9.
209
Otto, Walter F., The homeric gods, apud Palmer, 1980.
122

possibilidades da viagem. Nesses termos, o viajante continuamente mantém os pés bem

firmes no solo, ele sempre adere a uma base sólida. Qualquer movimento que haja é

apenas consecução de um cálculo previamente estabelecido, de tal modo que a fixidez

dos pontos inicial e final acaba por suprimir o próprio caminho.

A supressão do caminho é a supressão de Hermes. Este vigora, porém, na

medida em que transcende os mundos, em que passa com facilidade e rapidez do mundo

pré-olímpico para o olímpico e da terra para o Hades. A vigência do caminho como

possibilidade hermenêutica é a instauração do sentido mais próprio do mito de Hermes.

Na instituição do caminho como criação de possibilidades, Hermes conduz as almas de

um mundo para outro por que transcende os domínios do consciente e do inconsciente,

da vigília e do sono, do real e do imaginário, do ordinário e do extra-ordinário. Hermes

só é Hermes quando se dá entre-mundos. Como modo de sua vigência, a ambigüidade

demarca seu caráter transcendente e por isso, Hermes é aquele que empreende jornadas.

Sua condição entre-mundos o volatiliza e altera a paisagem ao seu redor. Hermes está

em sua habitação justamente por se encontrar a caminho.

O jornadeador está em casa enquanto a caminho, em casa no caminho ele mesmo, o


caminho sendo entendido não como uma conexão entre dois pontos definidos na superfície
da terra, mas como um mundo em particular. Este é o antigo mundo do caminho, também
dos “caminhos molhados” (os hygra keleutha) dos mares, os quais são acima de tudo, os
genuínos caminhos da Terra. Pois, diversamente das estradas romanas, as quais cortam
impiedosamente reto o solo, eles correm serpeantes, como linhas onduladas
irracionalmente, de acordo como os contornos do terreno, sinuosos, ainda assim
conduzindo a todos os lugares. Estar aberto a todo lugar é parte de sua natureza. Todavia,
eles formam um mundo em sua própria prerrogativa, um médio-domínio, onde uma pessoa
nessa condição volatilizada tem acesso a tudo. Aquele que se move familiarmente nesse
mundo-do-caminho tem Hermes por seu Deus, pois é aí que o aspecto mais saliente do
mundo de Hermes é retratado. Hermes está constantemente a caminho: ele é enodios (“do
caminho”) e hodios (“pertencente à jornada”), e se encontra em todos os caminhos. Ele está
constantemente em movimento; mesmo ao sentar-se, reconhece-se o impulso dinâmico para
mover-se, como alguém já agudamente observou sobre sua estátua herculeana de bronze.
Seu papel como líder e guia é freqüentemente citado e celebrado, e, pelo menos desde os
tempos da Odisséia, ele é também chamado de angelos (“mensageiro”), o mensageiro dos
Deuses.210

210
Kerényi, 1986:14-5. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita na p. 263.
123

Ao transcender os domínios do caos e do cosmos Hermes reúne num mesmo

continuum consciente e inconsciente, vigília e sono, real e imaginário, ordinário e extra-

ordinário. Hermes é o nome divino para a reunião da diferença e se concretiza na

existência humana como reunião de vida e morte. Na força da reunião dos opostos, na

vigência do mistério dessa reunião, Hermes não é um deus da luz e da claridade, muito

menos do evidente. Otto aponta para a experiência da noite como o elemento

característico da natureza de Hermes:

Um homem que está acordado no campo aberto à noite, ou aquele que medita sobre
caminhos silenciosos, experimenta o mundo de maneira diferente do que durante o dia. A
proximidade desaparece, e com ela a distância, tudo está igualmente longe e perto, próximo
a nós e ainda assim misteriosamente remoto. O espaço perde suas medidas. Há sussurros e
sons e não sabemos onde estão nem o que são... Não existe mais uma distinção entre o
morto e o vivo, tudo é animado e inanimado, a um só tempo vigilante e sonolento.211

Do mesmo modo, Hermes instala o domínio da ambigüidade do ser. Ele é o seu

mensageiro e por isso é a divindade mais próxima dos mortais do que qualquer outro

imortal. Hermes é o nome divino para a instalação do domínio do mistério em meio à

vida ensolarada do cotidiano. “Esse mistério da noite visto de dia, essa escuridão

mágica sob a luz brilhante do sol é o domínio de Hermes...”.212

Na vigência de Hermes como uma coisa em meio à outra, não é possível,

portanto, que se admita um caráter de mediação em sua vigência. A volatilidade de

Hermes consiste em justamente estar no limiar. Mas o que é isto – o limiar? Limiar é

aquilo que constitui o limite. Entretanto, o limite de algo não tem nada de objetual, pois

não é algo que se interponha entre uma coisa e outra. O limite de um país e outro, por

exemplo, não é algo que chega a se caracterizar sem que se tome como determinante

211
Otto, Walter F., The homeric gods, apud Palmer, 1980. Cf. original na p. 263.
212
Ibid.
124

ambos os países. No entanto, se de um lado ambos os países são pressupostos para que

haja todo e qualquer limite, por outro lado, é justamente o limite que enseja a diferença

e, assim, a possibilidade de se distinguir um e outro. Em outras palavras, o limite se

configura e é configurado como instauração ao mesmo tempo de origem e originado. Do

mesmo modo, céu e terra compõem em sua identidade e diferença o limite entre ambos.

O limite, portanto, pressupõe céu e terra, mas ao mesmo tempo, permite que eles se

apresentem em toda sua envergadura de diferença.

Como aquele que tem sua vigência essencial no limiar do entre-mundos, Hermes

compõe a unidade de origem e originado em sua reciprocidade. Origem e originado se

necessitam, não há mediação entre eles, pois o limiar a ambos pertence. O limiar é, pois

a copertença dos mundos, a produção da unidade com as e das diferenças. A

liminaridade em que Hermes habita não é, pois, um terceiro elemento entreposto aos

mundos que ele transcende, mas sim a realização da unidade desses mundos, no caso de

Hermes, mais notadamente, pelo que se pode depreender da estrutura do mito, a unidade

de caos e de cosmos. O sentido de Hermes se dá apenas na instalação e na vigência da

unidade. Se Hermes mediasse alguma coisa, ele seria no mínimo um agente de

separação e não de união. Ao contrário, na medida em que a vigência de Hermes é a

própria vigência da unidade, podemos dizer que com Hermes o proclamar das musas

ganha mundo.

Musas, angelos e a relação hermenêutica

Será preciso, então que se medite mais aprofundadamente a respeito da

angelicalidade de Hermes na medida em que, como instalação do entre-mundos, isto é,

da liminaridade em que caos e cosmos se encontram em unidade e reciprocidade, ele

vem a ser o mensageiro. Pois, se Hermes não desempenha um papel mediador, em que
125

consiste então o ser-mensageiro de Hermes? Qualquer tentativa de resposta deve ter em

conta, em primeiro lugar, que não se pensa aqui o mito desde uma perspectiva

contemporânea no sentido de uma cultura hegemônica que impõe a padronização da

interpretação de tudo e de todos a partir de seus mecanismos de medida, identidade e

representação. Em outras palavras, é preciso depurar com muito cuidado a palavra

mensageiro e seus correlatos de todo significado padronizado pela terminologia

estruturada desde as modernas ciências da lingüística e da informação. O motivo é

simples e já foi subliminarmente exposto. Em tempos Olímpicos não há possibilidade

de se pensar o mito desde uma perspectiva científico-epistemológica sem que se destitua

sua vigência, ainda mais em se tratando de uma divindade que, como vimos

anteriormente, retira seu vigor igualmente de uma imemorialidade pré-olímpica, ctônica

e titânica. Em virtude disso, preferimos substituir a palavra mensageiro e suas correlatas

pela palavra grega angelos. Hermes se dá pois como angelos.

Angelos significa mensageiro, enviado, porém, mais ainda: como enviado, o

mensageiro é aquele que proclama ou anuncia. O poeta, por exemplo, é um mousôn

angelos, mensageiro das musas, isto é, proclama ou anuncia as musas ou o que elas

dizem. O que dizem as musas é a substantivação da unidade.

A palavra musa vem do grego mou~sa, que, por sua vez, pode tanto se originar do
radical mn-, com grau zero de apofonia, ou do mesmo radical, com grau flexionado de
apofonia mon-. A este se junta o sufixo tja (iode, alfa) em que o iode sibiliza a consoante
dental. (...) Desse modo pode-se com tranqüilidade estabelecer uma vinculação entre musa
e memória, além da vinculação explícita de explícito parentesco. A palavra musa surge do
mesmo radical da palavra memória, no grego. No português, a palavra memória se
constituiu, via latim, a partir do mesmo radical grego só que a partir do seu grau normal
men- em que o n, acabou por se transformar, por acomodação fonética, em m, em m.
Como já foi descrito acima, o radical mn, no seu grau flexionado mon-, traz consigo a
idéia de unidade; já o afixo -tja, tem a terminação -ja, terminação caracterizadamente
formadora de substantivos da primeira declinação. As musas, portanto, trazem consigo a
substantivação da unidade. Isto é: é por elas e com elas que se possibilita a unidade, ao
menos enquanto perspectiva.213

213
Castro, 1997:170-1.
126

Sabe-se que as Musas foram engendradas por Zeus, filhas de Mnemósine a fim

de cantarem os seus feitos e suas vitórias. Na memória se dá a unidade do que é, do que

foi e do que será, e por ela é que as Musas cantam Zeus. No cantar das Musas é essa

unidade que está em jogo na medida em que sem a memória não se poderia chegar à

unidade, tudo seria des-uno e sem sentido. Portanto, o sentido do canto das Musas não é

outra coisa senão a unidade mesma. Esta, por outro lado, é aquilo que possibilita o

próprio sentido.

A vigência de Hermes como entre-mundos, além de lhe conferir a possibilidade

mântica, isto é, de antevisão do extra-ordinário em meio ao ordinário, permite, como

angelos, que se torne justamente aquele que não somente conduz as almas de um mundo

a outro, mas fundamentalmente conduz um mundo ao outro e vice versa. Como

liminaridade entre-mundos, Hermes os unifica. Sendo angelos, Hermes o é em virtude

de que sua angelia pronuncia a unidade dos mundos. Ninguém melhor do que Hermes,

aquele que ao se volatilizar transita rápida e velozmente entre mundos, é capaz de portar

e suportar a mensagem da unidade. Numa dimensão ainda mitológica, Hermes é aquele

que realiza a unidade porquanto a pronuncia como angelia. A angelia que Hermes

suporta consigo enquanto unidade de caos e cosmos se manifesta como “novas”. Na

pronúncia de sua angelia, Hermes-angelos proclama a unidade e ao fazê-lo, a realiza.

A expressão “hermenêutica” deriva do verbo grego hermeneuein. Esse verbo está


relacionado com o nome hermeneus, o qual se refere ao nome do deus Hermes através de
um pensamento jovial que compele mais do que o rigor da ciência. Hermes é o mensageiro
divino. Ele traz mensagens do destino; hermeneuein é esta exposição que traz novas porque
pode escutar uma mensagem.
(...)
(...) Pois na fonte do aparecimento, algo vem ao encontro do homem que sustenta a
duplicidade de presença e dos seres presentes.
Esta duplicidade sempre se ofereceu ao homem, embora sua natureza permaneceu
velada.
O homem, na medida em que é o homem, escuta essa mensagem.
127

E isso acontece mesmo que o homem não dê qualquer atenção particular ao fato de que
ele já está sempre escutando a esta mensagem.
O homem é usado para ouvir a mensagem.
(...) o homem encontra-se numa relação.
E a relação é chamada hermenêutica porque traz notícias dessa mensagem.
Essa mensagem reivindica no homem que ele responda a ela...
... para escutar e pertencer a ela como homem.
(...)
O homem é o mensageiro da mensagem pela qual o desvelamento da duplicidade fala a
ele.214

Fazendo-se unidade com o próprio homem, ainda numa outra perspectiva,

Hermes realiza a unidade. Essa perspectiva aponta para o acontecimento em que, como

mensageiro dos deuses, como transcendência do habitar entre-mundos, como união do

Olímpico e do Titânico, do caos e do cosmos, da vida e da morte, Hermes nomeia o

con-juntar em unidade de mortais e imortais. A realização da unidade com o próprio

homem não somente situa Hermes como o “mais querido” pelos mortais, como o oposto

também se apresenta como verdadeiro: o homem se dá como o mais querido entre os

divinos. Nessa cumplicidade entre divinos e mortais inaugura-se o sentido do mundo. O

que diz a mensagem de Hermes aos mortais? “O homem é o mensageiro da mensagem

pela qual o desvelamento da duplicidade fala a ele”.

(...) o homem, como o mensageiro da mensagem do desvelamento da duplicidade, seria


também ele quem andaria o limiar do sem-limite.
E nesse caminho ele busca o mistério do limite...
...o qual não pode estar oculto em outra coisa que não a voz que determina e canta sua
natureza.215

O caminho que se aproxima do limiar do sem-limite lança o homem igualmente

num entre-mundos tal como Hermes. Esta é uma dimensão de abertura para o ser em

que “não se age tanto quanto se re-age, não se fala tanto quanto se ouve, não se

214
Heidegger, 1982:29, 40. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 264.
215
Heidegger, 1982:41. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 264.
128

interpreta tanto quanto se compreende a coisa que é desvelada. O movimento

fundamental aqui é a compreensão como uma emergência do ser”.216

Hermenêutica, compreensão e sentido

Desde o início desse trabalho nos movemos no empenho por pensar as questões

de música, poética e sentido desde o horizonte mais amplo da questão que pergunta pelo

ser. O movimento de questionamento nesse horizonte se dá hermeneuticamente, isto é,

ao mesmo tempo em que, para garantir a possibilidade de que o pensamento teime em

seu tema, esse modo de questionar deve se manter aquém e além das delimitações da

ciência e da técnica, ele necessita levar radicalmente à sério a ambigüidade em que se dá

o próprio questionar. Essa ambigüidade, muito ao contrário de uma situação que

destitua o questionamento, é a força motriz que o impele em direção e em busca do ser.

Sem ambigüidade não há transcendência. Ambigüidade é o pro-duto do ser no tempo e

se dá como manifestação do emergir do ser enquanto compreensão.

Diversamente das ciências e da metafísica, a compreensão não advém das

definições e das proposições enunciativas. Estas, como dissemos anteriormente, impõe

uma limitação incompatível com o questionar que pergunta pelo ser. Impor uma

limitação é algo especialmente diferente de viger no limiar. A imposição de limites é

infensa ao limiar por transformá-lo em objeto. O limiar, entretanto, dá-se como limiar

na medida em que não se deixa apreender. O limiar é o domínio de Hermes, o limiar se

dá como hermenêutica, ganha vigência com a ambigüidade da unidade de caos e

cosmos.

Nesse sentido, a compreensão é a vigência do limiar em todo o pensamento que

questiona o ser ou que tem a questão do ser como o horizonte em que se dá o perguntar.

216
Palmer, 1980.
129

Como vigência do limiar, a compreensão não tem nada de objetual, isto é não se

encontra calcada sobre a relasção sujeito-objeto. Justamente essa inobjetualidade essa

não-subjetividade da compreensão, retirando-a do universo do meramente representável,

enseja acima de tudo sua concreção. A concreção da compreensão advém, desse modo,

da maneira pela qual o ser é interrogado ou ainda, da maneira pela qual a pergunta tem

por horizonte a questão que interroga pelo ser. No pensamento que teima pensar o seu

tema, a questão não é uma mera pergunta em virtude de uma simples curiosidade ou de

uma necessidade a satisfazer. A questão-tema do pensamento enquanto compreensão

não pergunta “sobre” mas sim “pelo” ser.

Que significa perguntar por algo? Em primeiro lugar perguntar “por” algo não é o
mesmo que perguntar “sobre” algo. O perguntar “sobre” algo implica que isso pelo qual
pergunto está em um nível inferior ao meu perguntar, por isso pergunto “sobre”. Tem um
significado semelhante ao perguntar “acerca” de algo. Todavia, trata-se em todo caso de
algo que eu desconheço e por isso pergunto, mas que pode chegar a ser conhecido e
dominado por mim. No caso, por exemplo, de um cientista que se pergunta “sobre” as
propriedades de umas amostras selenitas, ou de um jornalista que pergunta “sobre” os
acontecimentos ocorridos na última conferência “sobre” o desarmamento. Neste perguntar
“sobre” algo está implícito um “para”, uma finalidade. É ir atrás de algo para conseguir um
propósito determinado. Ordinariamente nosso buscar cotidiano se move nesse nível que
poderíamos chamar de pragmático. É uma dimensão “cativante” na vida do homem:
efetivamente, por um lado possui toda a riqueza que proporcionam a busca e a inquietude e
por outro assegura à referida busca o domínio possível do buscado. É “cativante” ainda
mais porque mantém o homem prisioneiro de seu próprio perguntar.
Perguntar “por” algo possui um sentido muito diferente. Meu perguntar se move no
nível daquilo pelo qual pergunto. É, porém, isso pelo que me pergunto me corresponde
diretamente a mim. Todavia não é um perguntar-me “sobre” mim mesmo, mas é “por” algo
que me incumbe. Notemos por exemplo a diferença que há quando perguntamos sobre
alguém e quando perguntamos por alguém. No primeiro caso nos movemos ao nível da
cortesia ou no mais da curiosidade. Em compensação, quando perguntamos por alguém que
nos incumbe o fazemos perguntando por tal pessoa. Por exemplo, um médico não pergunta
“sobre” os seus pacientes, mas “por” eles. Um sacerdote não pergunta “sobre” os seus
paroquianos, mas “por” eles. Uma mãe não pergunta “sobre” seus filhos, mas “por” eles. 217

O pensamento que teima pensar o seu tema vige num empenho “pela” sua

questão-tema. A compreensão é o âmbito em que esse pensamento se move em direção

ao questionamento que pergunta pelo ser. Nesse sentido, a compreensão se dá num nível

217
Capurro, 1971. Tradução nossa. Cf. original no Apêndice I, p. 264-5.
130

comprometido em que ao perguntar pelo ser, por ele somos incumbidos. Por isso, “o

homem é usado para ouvir a mensagem”. Perguntar “pelo” ser ou ainda, perguntar pela

música, poética e sentido tendo a pergunta pelo ser como horizonte realiza uma

mudança radical da relação em que se dá a compreensão. A compreensão não é assim

obra acabada de um sujeito da razão, não se objetifica na forma de conhecimento do

real, mas se volta antes para o mistério de sua origem tomando-o radicalmente como

mistério. Tomar radicalmente o mistério como mistério quer dizer assumir o risco da

possibilidade. A transformação da compreensão em conhecimento objetificado

oferecido a um sujeito da razão, ao contrário, significa a total erradicação da

possibilidade enquanto possibilidade. Porém, com a compreensão que assume o mistério

como raiz, o que se passa é algo inteiramente diferente na medida em que se dá uma

abertura à origem. Por isso o questionamento que pensa a partir do horizonte

dimensionado desde a questão que pergunta “pelo” ser necessita radicalmente pensar

também o “desde onde” a possibilidade de compreensão retira seu vigor.

Nosso perguntar “por” tem uma origem. Este pode se referir a uma determinada
situação que “lhe deu origem”. “Dar origem” possui então o sentido de um começo
histórico-fático. Por exemplo: eu comecei a perguntar pelo critério do sentido da linguagem
movido por tal circunstância, em tais condições, etc. Com isto assinalo os motivos que
deram origem ao meu perguntar, indico, pois seu “desde onde”. Todo perguntar humano
tem seu “desde onde” nesse sentido, e bem sabemos até que ponto pode condicionar o
referido começo toda a busca posterior.
Porém, se bem falamos de “dar origem”, convém todavia que reservemos a palavra
origem para indicar com ela o “desde onde” radical de nosso perguntar. Com efeito este
acontece em mim sem ser desde mim. Este último me indica a faticidade do perguntar que
implica um saber que pergunta (um saber que já sabe) e ao mesmo tempo um saber que
pergunta (e todavia não sabe). É então, nesse poder do negativo, nesse mistério que move o
perguntar como sua origem, donde se enraíza a força do perguntar.
Desse modo, porque me incumbe, a origem do perguntar questiona o meu mesmo
perguntar pela origem. Este “giro” não é um jogo gramatical, mas revela o sentido do
“desde onde” de nosso perguntar. A origem se mostra assim como não mediatizável
plenamente, pois não é posto por mim, como im-prescindível, pois acontece desde ela,
como não assegurável, pois me questiona. Meu perguntar não se orienta em direção a uma
doutrina ou ciência que pudesse adquirir desde si mesmo. Meu poder perguntar se converte
por outro lado em poder responder.218

218
Capurro, 1971. Tradução nossa. Cf. original na p. 265.
131

No circular da origem do perguntar e da pergunta pela origem a relação

hermenêutica se dá como compreensão. Nessa relação não é admissível uma forma

unívoca de se perguntar pelo ser ou ainda de se perguntar por aquilo que tem a pergunta

pelo ser como horizonte de questionamento. Nessa dimensão da compreensão enquanto

círculo hermenêutico supera-se a vinculação da origem ao natural. Nessa superação, o

advento da compreensão se dá pela dinâmica da verdade como unidade do co-

pertencimento de origem e originado, de tal maneira que nesse co-pertencimento ainda

se está aquém e já se está além de uma metafísica do ser, já se está aquém e além de

uma visão de mundo que encontra no natural a origem.

De certo modo, na Cultura Ocidental, compreende-se o que é natural como

aquilo que abriga a origem. Não é incomum, pois, que se remeta a origem das coisas à

natureza. O que é natural ou o que provém da natureza é considerado, portanto, como

aquilo onde se encontra a origem. Entretanto, a pura e simples associação do natural à

origem impõe uma aceitação incondicionada do discurso do atual sobre o real. A

univocidade desse discurso reside na base da interpretação do real caracterizado como a

ação em direção a um fim, compreendendo esse movimento como a própria práxis. Em

toda determinação do real como práxis vige o atual. Na medida em que a práxis norteia

todo o real, cresce o papel desempenhado pela historiografia na disponibilização da

própria práxis atual como algo natural.

O discurso do atual sobre o real suprime toda e qualquer distância na proporção

em que a práxis nos convoca desde o cotidiano mais próximo e em plena consonância

com a racionalidade técnica e instrumental dominante em todos os empenhos em se

pensar a origem das coisas. Esta situação apenas espelha a conversão do próprio pensar

num operar de razões a fim de determinar desde onde as coisas recebem onticamente
132

sua proveniência e seu vigor. A atualidade da práxis sem-distância se configura como

supressão da dimensão historial do acontecimento na medida em que dimensiona o real

desde uma configuração da práxis como efetividade de produção. Nesse sentido o real

apenas serve: sua serventia é ser consumido numa utilidade.

Porém, apesar de toda a tradição filosófica ocidental, o real se radicaliza através

de sua inapreensibilidade, mostrando-se apenas em parte na medida em se dá e se retrai.

Desse modo, o negativo se torna para a compreensão da faticidade um elemento co-

originário de composição da dinâmica de circularidade hermenêutica. Do mesmo modo

que Hermes, a compreensão nessa dimensão hermenêutica necessita radicalmente de

uma oposição essencial no estabelecimento de sentido. Sem essa oposição de contrários

não há sentido nem em se perguntar, nem em se responder. Ora, permanecendo o real

apenas como uma práxis atualizada pela ciência e pela técnica, suprime-se o negativo

como possibilidade constituinte da compreensão e com isso, a própria possibilidade do

sentido desaparece. Nesse horizonte em que tudo se dá de modo pré-disposto por uma

práxis tecnológica se institui o niilismo. Ocorrendo o niilismo na supressão de todo

negativo, opera-se a substituição do sentido pela pura e simples significação. A

separação de presença e retraimento, de ser e nada levada à cabo nessa operação possui

em seu âmago uma decisão bastante precisa a respeito do sentido da verdade na forma

de semelhança e correspondência. A supressão do negativo, a substituição do sentido

pelo significado e a total dependência do real ante a práxis pelo fator de semelhança e

correspondência da verdade instituem o niilismo tecnológico que marca o modo

característico da alienação do homem.

Mesmo se apresentando como atualidade e independentemente de toda tentativa

de sistematização, o real se mantém como reserva de outras possibilidades de


133

compreensão constituídas como ressalva daquilo que se mostra como claro e evidente.

Assim, o real nunca se dá por completo. Ao contrário, necessita radicalmente se mostrar

incompleto por manifestar o projeto sempre inacabado do ser. O vigor de sua vigência

reside na ambigüidade de ao se dar, se ocultar. Na envergadura histórica dessa

ambigüidade, o real não é uma realização acabada, ou mesmo um somatório de

realizações. O real se essencializa como manifestação da dinâmica do ser no tempo.

Desse modo, é muito difícil estabelecer um “discurso natural” sobre o real, na medida

em que todo discurso na tradição ocidental implica numa enunciação apofântica. Todo

discurso, enquanto apofântico, precisa decidir de antemão a referência pela qual se dá o

verdadeiro em oposição ao falso. A dificuldade do “discurso natural” sobre o real se

torna patente na medida em que o real, que se mostra como claro e evidente, é ao

mesmo tempo obscuro e fugidio. A unidade entre o claro e o evidente, de um lado e o

obscuro e o fugidio de outro, nada mais é do que a instauração de uma hermenêutica.

Uma tal hermenêutica se dá no mesmo sentido em que Hermes conjunta em seu modo

de habitar o entre-mundos.

Por considerar apenas o que se encontra no claro e evidente, os diversos

discursos do natural tomam como fundamento a atualização. A atualização dos

discursos do natural constitui as tentativas de ordenamento unívoco do real, isto é, a

ordem por eles instalada tem por medida a atualização. O real, porém, manifesta a

origem não como aquilo que num dia e num determinado lugar historiograficamente

veio a ser como um ente através de sucessivas atualizações. O real manifesta a origem

como aquilo que não cessa de originar, como aquilo que não cessa de abrir

possibilidades de manifestação e de sentido. A origem é a abertura para a manifestação

das possibilidades do ser no tempo. Por isso, o real é a concretização mais íntima do
134

próprio ser em suas possibilidades mais essencialmente historiais e assim, a origem não

possui nada de natural, uma vez que este, deixado a si mesmo, jamais chegaria a

realizar-se. O real como concretização do ser no tempo não se encontra estancado numa

atualidade, mas está em continua com-posição. Em sua com-posição o real é a con-

juntura do que se reúne e do que se distende. O real abre dimensões do sentido na

medida em que se mostra e se oculta. O real manifesta, desse modo, uma poética do

sentido.

Portanto, em todas as asserções que igualam origem à natureza, o que permanece

impensado é sempre a questão da origem. Em relação à música, é necessário pensar se a

origem pode tão tacitamente estar no que é natural ou se a aceitação pura e simples das

pré-condições do que é e do que não é natural impede decisivamente o acesso à origem.

Em todo dimensionamento e em todo condicionamento da vida através do discurso do

“natural”, seja pela ciência, seja pela cultura ou pela doxa, o que permanece esquecido é

o questionamento que repõe o vigor da pergunta pela origem. O que deve ser posto,

então, a título de esclarecimento é a questão que pergunta desde onde e desde quando a

ciência, a cultura e a doxa são os modos naturais da Cultura Ocidental olhar e divisar

toda e qualquer coisa.

A questão que pergunta pela origem é aquela envia o pensamento para além da

total e incondicional alienação aos modernos sistemas de relacionamento entre sujeito e

objeto. É que nos modos “naturais” do Ocidente olhar as coisas, a relação sujeito-objeto

é a estrutura dominante pela qual se dá o pré-condicionamento de tudo o que é. Não

deve causar espanto, entretanto, o fato de algo tão artificialmente forjado, como a

estrutura imposta pela relação sujeito-objeto, ser a determinação essencial dos

chamados “discursos naturais” da ciência, da cultura e da doxa. Pois, em todo pré-


135

condicionamento ocorre uma insuficiência do discurso, seja ele qual for, ante a própria

envergadura do real. Superando os “discursos naturais”, o real, sobre o qual estes se

fundam, admite a mais profunda ambigüidade e coexistência dos opostos, dos díspares,

das diferenças e dos para-doxos.

No vigor originário do real, a pergunta pela origem como pergunta pelo próprio

sentido do ser é aquela que necessariamente retira o pensamento de toda e qualquer

estrutura predefinida de funcionamento e de sujeição. Por isso, a pergunta pela origem

dispõe para o homem suas possibilidades mais próprias, lança-o no aberto, no abismo

insondável e infinito de seu próprio ser, o dis-põe num nada criativo. Esse espaço aberto

na pergunta pela origem em que o homem mesmo habita, permeia a existência,

polemiza e dinamiza o real com as realizações e nesse sentido, Hermes vincula-se

solidariamente ao homem.

Na abertura disposta pela questão da origem, a questão da música em sua

dimensão poética ganha sentido. Como pergunta pela origem a questão requer

primeiramente que se evite cair de antemão na armação metafísica da causalidade, uma

vez que essa armação configura o discurso sobre a origem desde aquilo que

cronologicamente veio em primeiro lugar. Na busca incessante por aquilo que veio

primeiro, a origem já se encontra pré-definida pelo absoluto, seja pela Idéa em Platão,

seja pelo Cogito em Decartes, seja pela Razão a priori do sujeito em Kant, pelo Espírito

Absoluto em Hegel e até mesmo pela Vontade de Potência em Nietzsche. Em todas

essas instâncias pré-configurativas do real, o que está sempre colocado é o absoluto

enquanto dimensão totalizante e totalitária do real e das realizações. Desse modo, é

sempre a instância do absoluto que dimensiona, desde a época de Platão, aquilo que é o

real e suas realizações.


136

Idéa, Cogito, Razão, Espírito Absoluto, Vontade de Potência são as várias pré-

concepções com as quais o Ocidente procurou exercer o controle sobre o real e as

realizações. Essas concepções são instâncias ab-solutas de determinação do real que se

instituem a partir de uma decisão histórica no início do Ocidente a que nada de

“natural” corresponde. No exercício de poder dessa decisão, o que se decidiu foi a

supressão de toda e qualquer ambigüidade do real. Em todo exercício de poder, porém,

há que se ter em conta que se configura um perfil bastante específico e restrito do real.

Nessa configuração, os lugares se encontram previamente definidos. Numa

configuração de tal modo imperial o poder é distribuído conforme os mecanismos de

semelhança e correspondência, orthótes e homoiósis. Na República, Platão mesmo

estipulara o lugar ou a posição de cada um e sua respectiva função na pólis.

Por isso, também a decisão sobre o sentido da verdade não é inofensiva. A

verdade na acepção da veritas latina não é relativa às coisas, nem ao real e muito menos

às realizações. Não há tal coisa, a chamada verdade relativa. A verdade é um valor de

referência à posição que se ocupa no exercício do poder e, portanto, se nela há alguma

relatividade, esta esbarra no fato da veritas pré-dispor o modo pelo qual se pretende

controlar o real. No imperium as posições são determinadas pela ação que resulta num

fallere da parte que é dominada. No pensamento latino, a ação acabada de fallere como

“provocar ou levar à queda” é expressa pelo seu particípio, a palavra falsum. O

comportamento comum dos romanos em relação às coisas em geral é governado pela lei

do imperium, pelo im-parare – estabelecer, fazer arranjos, organizar. Aquele que cai,

isto é, que é dominado, ocupa a posição predeterminada do falsum. Ocupar com

antecedência é pré-ocupar ou prae-cipere, e por esta ocupação, a manutenção do

comando sobre ela configura o modo de ocupação territorial do imperium. Comando é a


137

lei ou a ordem dada desde um pre-ceito. Por isso, a justiça é imperial na medida em que

segue a lei – ius, iubeo – de tal modo que o iustum ordena e comanda sobre aquele que

cai, isto é, sobre o falsum. Desse modo, o falsum se torna erro.

Mas, se por um lado o falsum é o erro, isto é, aquele que cai e não sustenta sua

posição diante do imperium, por outro lado, a verdade como verdade imperial diz

justamente o contrário. A palavra verdade, que provém do latim veritas possui o radical

ver de origem indo-européia. Este radical, aparecendo nas palavras alemãs wehren, die

Wehr e das Wehr querem dizer respectivamente, resistir, defender e obstruir. O radical

ver indica manter e segurar a posição, permanecer firme, isto é, manter-se acima e no

comando, não cair, não fallere ou não se tornar falsum, estabelecer o certo. O erro é

definido, portanto, de antemão pela lei de quem impera, pelo verum e desse modo o

verum não precisa de lei, somente o falsum. Assim, a oposição essencialmente moral da

verdade imperial estabelecida entre certo e errado é excludente na medida em que,

mesmo admitindo que o dominado venha a se insurgir e passar à condição de

dominante, não permite, entretanto que haja um inter-câmbio das posições previamente

estabelecidas pelo imperium, quais sejam, do verum e do falsum. Nesta configuração

absolutamente imóvel, o real é de antemão destituído da ambigüidade da origem e de

sua hermenêutica essencial. Por isso, a origem só pode ser compreendida como aquilo

que ocupa a posição primeira e não como abertura da co-pertença entre origem e

originado.

Co-pertença é palavra desconhecida pelo exercício de poder, seja da Idea, seja

do Cogito, da Razão a priori, do Espírito Absoluto ou da Vontade de Potência. Não há

espaço na instância do absoluto para a partícula co, como na com-paixão de

Schopenhauer. Não há, portanto, espaço para se pensar a unidade e, muito menos, a
138

diferença. No exercício do poder imperial tudo se trans-verte para a identidade e sua

representação. Nesse domínio, verum é a constante que permanece, o correto, aquilo que

se encontra dirigido para o que é superior e está dirigido desde o alto. Verum é rectum,

regere é o regime, o certo, iustum.219

Se não há inter-câmbio das posições estabelecidas de antemão pelo imperium,

também não pode haver interpretação possível. Interpretação vem de inter-pretium, ou

seja, de uma palavra usada para a ação levada a cabo nas feiras e mercados quando da

negociação de compra e venda de mercadorias. O pretium é estabelecido entre – inter –

os interessados, entre vendedor e comprador, de tal modo que somente através desse

processo é que se pode chegar ao real valor da mercadoria. Não é por acaso que Hermes

é para os gregos o deus mensageiro, intérprete dos deuses, patrono dos comerciantes

bem como dos ladrões, da astúcia e da inventividade. Com Hermes e sua hermenêutica,

o preço jamais é estabelecido de antemão e nunca se ocupa uma posição imóvel.

Hermes é o guardião dos caminhos. Os caminhos de Hermes ermam, isto é, conduzem

ao ermo, ao desabitado, ao lugar em que não se ocupa posição prévia, portanto, não se

impera. A interpretação possui então uma ambigüidade latente. Por um lado, no

estabelecimento do pretium, interrelaciona a diferença como unidade. Por outro lado,

conduz à solitude como retiro da identidade, repõe o viajante do caminho ao próprio

nada. O percurso pela ambigüidade dessas posições opostas e complementares é a

realização do círculo hermenêutico. Contudo, no imperium a interpretação é destituída

de sua dinâmica originária e transformada em sinônimo da adequação do real às

posições preestabelecidas da veritas, isto é, trata-se de determinar o significado preciso

219
Cf. Heidegger, 1992b:48.
139

do que ocupa as posições de verum e falsum e do que, a partir dessas posições é

ordenado, medido e representado.

Como disposição de uma compreensão que interpreta, dando-se no horizonte de

questionamento pelo ser, a pergunta pela origem se abre para lugar onde acontece:

A pergunta pela origem (está) na origem da pergunta. (Está) indica que não está à
maneira de um ente. O dizer “na” não afirma imanência contraposta à transcendência, assim
como tampouco (está) implica quietude contraposta a movimento. Ao indicar a origem do
perguntar mostramos a pergunta desde sua origem.
Pergunto-me pela origem: foi dito que esta pergunta me incumbe, mas que não é um
perguntar-me solipsista já que nesse caso a origem da pergunta estaria posta por mim e foi
mostrado que a pergunta acontece em mim, mas não desde mim.
A pergunta acontece em mim como linguagem. Pois bem, o lugar próprio da
linguagem enquanto linguagem é o diálogo. O perguntar como “logos” se abre ali
originariamente ao “diá” que o possibilita e se faz diá-logo. Esta orientação do perguntar
em direção a sua origem a veríamos já ao interpretar o sentido radical da pergunta pelo
critério de sentido da linguagem. Esta pergunta nos fazia saltar de um nível pragmático ao
abismo do perguntar que se expõe (posto que ele incumbe). Pois bem, este salto realiza pelo
(dia) outro, na linguagem (logos) e por isso acontece como diálogo.220

A questão que pergunta por música, poética e sentido tendo por horizonte a

questão que interroga pelo ser ocorre em mim como linguagem. Novamente, é preciso

cercar-se de cuidados para que a essa altura não se coloque em risco o caminho

percorrido até aqui na medida em que se busque agora o critério de sentido da

linguagem que em mim ocorre. O perigo aqui reside no fato de rapidamente se esquecer

que a linguagem se dá como diá-logo e não a partir de um critério que determina de

antemão o que é ou o que não é linguagem, o que corresponde ou não à linguagem. Na

efetuação de toda correspondência o critério é o de verificabilidade e sempre de acordo

com uma verdade imperada desde a consciência do sujeito. O diá-logo, entretanto, se dá

como uma relação em que não se ocupa posição prévia. Dito de outro modo, o diá-logo

não ocupa previamente uma posição e por isso, qualquer possibilidade de critério, isto é,

de coação violenta da pré-ocupação das posições de verum e falsum se vê esgotada logo

220
Capurro, 1971. Tradução nossa. Cf. original na p. 265.
140

de início. O diá-logo implica necessariamente nesse esgotamento na medida em que o

que se vai dialogar na linguagem não se encontra ainda colocado às claras. O diá-logo

reclama para si, pois, um inter-câmbio em que de acordo com o seu desdobramento é

que se dá uma permuta e se transforma em algo diverso. O diá-logo se dá linguagem,

desencadeia o ser no tempo. Esse diá-logo é hermenêutico na medida em que o Dasein,

que nós mesmos somos, se dá a conhecer a si próprio. No diá-logo o Dasein se

manifesta como abertura, no diá-logo o intercâmbio é a própria transitividade do ser

como inter-pretação que compreende a si mesmo, no diá-logo, enquanto modo não

apenas da linguagem, mas do lógos, se dá a possibilidade mais essencial do homem: a

compreensão do sentido. Hölderlin poetiza o homem da seguinte maneira: “desde que

somos um diálogo e podemos escutar uns aos outros”.

O ser do homem é fundado na linguagem; mas isso ocorre na verdade apenas no


diálogo. Diálogo, entretanto, não é somente um modo pelo qual a linguagem acontece, mas
antes a linguagem é essencial apenas como diálogo. O que nós normalmente significamos
por “linguagem”, a saber, um estoque de palavras e regras para combiná-las, é tão somente
o aspecto exterior da linguagem. Mas o que se pretende por “diálogo”? Obviamente, o ato
de falar uns com os outros sobre algo. Falar, então, media o nosso vir uns aos outros. Mas
Hölderlin diz, “Desde que nós somos um diálogo e podemos escutar uns aos outros”. Poder
escutar não é meramente uma conseqüência de falar uns com os outros, mas é ao contrário a
pressuposição para falar. Mas mesmo o poder escutar é ele mesmo de outro modo baseado
sobre a possibilidade da palavra e possui a necessidade dela. Poder falar e poder escutar são
co-originais. (...) Nós somos um diálogo, isto também significa que nos somos um diálogo.
A unidade de um diálogo consiste no fato de que na palavra essencial é sempre manifesto
aquele um e o mesmo sobre o qual concordamos, com base no qual estamos unidos e assim
somos autenticamente nós mesmos. O diálogo e sua unidade suportam nossa existência.221

“O diálogo e sua unidade suportam nossa existência”. Na tentativa de uma

compreensão dessa afirmação em direção ao que aqui se põe como questão temática

para o pensamento, poderíamos proferir essa frase ainda de outro modo: “a (nossa)

existência é suportada pela unidade do diálogo” ou ainda, “a unidade do diálogo

sustenta a existência”. A existência é o modo de ser próprio da faticidade, se dá de

221
Heidegger, 2000a:56-7. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 265-6.
141

modo hermenêutico e tem por horizonte a temporalidade. No horizonte da

temporalidade acontece, de maneira mais próxima e direta, o diálogo com o próprio ser.

Hölderlin não deixou de assinalar esse horizonte: “Desde que nós somos um diálogo...”.

No sentido da existência, estendida no horizonte do tempo, o diálogo não é um mero

fato acabado. Pelo contrário, o diálogo acontece no tempo como elemento de

dimensionamento de sua unidade, isto é, a unidade adquire dimensão pelo tempo e no

tempo. Desse modo, a unidade do diá-logo sustenta a existência desde a dimensão do

tempo. O diá-logo como suporte da existência instaura o histórico desde o tempo em

que há o tempo, isto é, há o tempo desde que este, co-originariamente como diá-logo,

inaugura a existência. Por isso, “ambos – ser um diálogo e ser histórico”, no sentido da

dimensão disposta pelo tempo “ – são igualmente antigos, eles se pertencem, eles são o

mesmo”.222 A antigüidade desse co-pertencimento não é propriamente algo distante

num tempo cronologizado, mas acima de tudo reside no originário da origem. O que é

originário, histórico por excelência, supera qualquer cronologia porque instala a

sustentação da existência desde a origem, isto é, o tempo como diá-logo se concretiza

na existência. Pensando ainda num outro desdobramento: “a unidade do diá-logo

sustenta a existência desde a compreensão de sua origem no horizonte do tempo”. A

compreensão articula a unidade do diá-logo conjuntamente com o tempo. Dessa

articulação provem sentido da existência.

Na articulação do sentido na hermenêutica da faticidade, a compreensão ocorre

de modo antecipatório, isto é, ela se dá na verdade como pré-compreensão, porém,

apenas na medida em que esta vige de modo não arbitrário. Pensa-se com isso, então, o

“pré” numa outra constituição que não aquela de uma simples predeterminação de toda

222
Heidegger, 2000a:57. Tradução nossa.
142

mecânica metafísica. Pensa-se o “pré” não numa constituição em que se tome o sentido

do latim prae- de anterioridade e superioridade comparativa, mas no sentido do grego

prótos, do que está à frente enquanto essencial, primeiro. Ora, o que é primeiro em

primazia, para além de qualquer configuração cronológica, é a origem. Nesse sentido,

não será absurdo se dizer que o modo antecipatório da hermenêutica da faticidade possa

ser pronunciado não apenas como pré-compreensão, mas de maneira mais fundamental

ainda, como proto-compreensão.

No entanto, ainda se deve perguntar: o que é essa unidade do diá-logo que pelo

exercício hermenêutico da compreensão vem historicamente articular sentido da

existência? Mais ainda: o que é unidade e o que é diá-logo? Ambas as questões podem

ser pensadas com a profundidade necessária se prestarmos atenção para o que diz

Heráclito no seu Fragmento 50: “Auscultando não a mim, mas o Logos, é sábio

concordar que tudo é um”.223 De imediato, percebe-se que o um, ou o uno mantém uma

estreita referência para com o lógos. A referência aqui não é uma mera justaposição de

elementos, mas uma referência mútua e recíproca. Nessa perspectiva, a escuta do lógos

conduz ao uno, isto é, à unidade. O lógos desencadeia os caminhos para a unidade.

Música e Hermes: unidade do lógos

Com o mito de Hermes, já se pôde circular em torno do que aqui agora se diz de

maneira mais explícita. Mas, para que ainda se possa aprofundar a questão de música,

poética e sentido, tendo como horizonte a pergunta pelo ser, tendo em vista a realização

da unidade hermenêutica de existência e ser, de origem e originado, de caos e cosmos,

de identidade e diferença, ainda será preciso realizar um percurso pelo modo como se dá

a relação de Hermes com o próprio lógos e desse com as Musas, a fim de que se

223
Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In: Os pensadores originários, p. 75.
143

conceda aqui mais claramente pensar a estreita relação entre o lógos e a unidade. Pois, é

em virtude dessa estreita relação que se pode avançar a compreensão da própria música

como a realização mais concreta da unidade em sua proximidade com o ser.

Como guia das almas, Hermes tem sua vigência essencial no entre-mundos e aí

se manifesta como unidade. O circular de Hermes de um mundo a outro compõe a

unidade de identidade e diferença. Essa unidade não tem nada de uma tranqüilidade

estática, mas se manifesta na maior envergadura de tensão entre identidade e diferença e

por isso mesmo realiza-se como estável. O entre-mundos de Hermes aparece tanto mais

quanto ele se volatiliza, isto é, Hermes produz a concretude do entre-mundos na medida

de sua volatilização. Volatilizar-se aqui é, pois, o aspecto mais concreto de composição

da unidade, uma vez que na tensão recíproca das diferenças Hermes pode instituir a

identidade estável do entre-mundos. Na instituição da unidade hermenêutica, o que está

em jogo não é apenas o posicionamento antagônico dos opostos e contrários, mas mais

essencialmente ainda, a oposição originária de identidade e diferença do tudo e do um.

No circular hermenêutico pelo co-pertencimento originário das diferenças pode Hermes

instituir a dimensão da liminaridade. O limiar como dimensão em que se manifesta toda

a envergadura de tensão das diferenças entre terra e Hades, entre divinos e mortais, ser e

não-ser, se apresenta, pois, como aquilo que mais se retrái. Por isso mesmo, o dar-se da

liminaridade de Hermes necessita co-originariamente retrair-se. O limiar funda e é

fundado na com-posição da unidade de dar-se e retrair-se. Hermes é o nome do limiar e

hermenêutica, o nome do circular pelas diferenças desse limiar. Nesse sentido, Hermes

é aquele que manifesta e conduz o lógos, não apenas por ser angelos, mas

fundamentalmente por compor e instituir a unidade de identidade e diferença,

manifestação originária do co-pertencimento do tudo e do um.


144

Nessa perspectiva, a angelia de Hermes se dá não tanto como o seu aspecto

determinante, mas como uma decorrência de sua co-incidência com o lógos. Hermes e

lógos são, desse modo, o mesmo. Tomando esse sentido como referência, a

hermenêutica figura de um modo inteiramente outro, de tal maneira que, em se

manifestando Hermes como sua essência, ela não se apresenta circunscrita a um mero

papel interpretativo do significado da mensagem. Hermes é o portador da mensagem e

por isso não importa aqui qual é a mensagem e muito menos o que ela quer dizer. Estas

são preocupações de uma ciência e de uma tecnologia da informação que aprisionam a

compreensão em relação não ao qual é, mas sim ao o que é a mensagem. Pois, a

mensagem se dá como a mais plena manifestação da unidade. A unidade que

inicialmente se manifesta é aquela que une portador e a própria mensagem de tal modo

que a ausência de um implica na supressão do outro, pela presença de um se dá a

manifestação do outro. Hermes e a mensagem são, pois, um e o mesmo.

Por outro lado, a mensagem se dá como comunicação e assim, é preciso que se

pense mais detidamente o que é e não qual é a comunicação da mensagem sob a

perspectiva da mesmidade de Hermes e lógos, isto é, sob a perspectiva da com-unidade

do tudo e do um. No grau máximo da unidade de portador e mensagem, essa unidade

com-unica. Assinala-se com isso que não se trata de uma mera transmissão de dados ou

idéias, muito menos da propagação e difusão de informação ou conhecimento. Trata-se

antes de por-se em comum, dividir, partilhar; ter relações com; conversar, misturar.

Nada disso tem a ver com uma ciência ou tecnologia da informação que, ao contrário,

isola, particulariza, cinde, interrompe o diá-logo e ordena. No sentido da com-unidade

de Hermes e mensagem advinda desde a máxima envergadura da unidade do próprio

Hermes com o lógos, a hermenêutica se dá, pois, como aquela situação existencial em
145

que, através do que se compreende agora com o mito de Hermes, a mensagem e o lógos

são também um e o mesmo. O lógos na mensagem com-unica a existência. Pela unidade

originária manifesta pelo lógos, a condição hermenêutica da existência se coloca em

comum-unidade com o próprio logos. Não é, pois, outro o sentido da frase “O diálogo e

sua unidade suportam nossa existência”224, cujo desdobramento chegou a se pensar

como a unidade do diá-logo sustenta a existência desde a compreensão de sua origem

no horizonte do tempo.

A palavra mythos, longe de ser uma terminologia com a qual se possa designar

um modo de compreensão que se deu na Grécia Arcaica e para além da visão

contemporânea sobre essa compreensão, com-põe em Hermes a força de manifestação

do sentido do mundo na medida em que ele mesmo é posto em relação com o próprio

homem através do poeta-aedo. Nesse por-se-em-relação, é o próprio poeta-aedo que se

torna portador da mensagem das musas. Em mais uma ocasião pode-se testemunhar a

força de recolhimento do lógos na unidade do hèn pánta, de tal sorte que o poeta-aedo e

Hermes são, por sua vez, um e o mesmo. É que na máxima envergadura da mensagem, a

unidade de Hermes e Musas se reúne à condição hermenêutica do poeta-aedo. Não é por

acaso que a música se dá como manifestação da unidade Poeta/Musas. Também não é

um mero acaso que a unidade do real possa se concretizar no seu grau mais originário

através daquilo que as Musas proferem pelo dom de Mnemósyne, isto é, Música, bem

como através da realização mais simbólica e primeva de Hermes: a invenção da lira.

Seu primeiro encontro no mundo Homérico traz algo muito primitivo à luz,
mitologicamente falando. A natureza fortuita desse encontro é típica de Hermes, e é
primitivo apenas na medida em que possibilidade e acaso são parte intrínseca do caos
primevo. Na verdade Hermes transfere essa peculiaridade do caos primevo – acaso – para
dento da ordem Olímpica. Hermes encontra uma tartaruga, uma criatura de aparência
primeva, pois até mesmo a mais jovem tartaruga poderia, por sua aparência, ser descrita

224
Cf. citação p. 141.
146

como a criatura mais antiga no mundo. Ela é um dos mais antigos animais conhecidos pela
mitologia. Os chineses vêm nela a mãe, a verdadeira mãe de todos os animais. Os hindus
mantém Kashyapa em honra, o “homem-tartaruga” pai de seus deuses mais antigos, e
dizem que o mundo repousa sobre as costas de uma tartaruga, uma manifestação de Vishnu:
habitando as regiões mais inferiores, ela suporta todo o corpo do mundo. O nome italiano
tartaruga mantém viva a designação datada da alta antiguidade, de acordo com a qual a
tartaruga sustenta a camada mais baixa do universo, chamada de Tartarus
(Tartarou~co").225

Desse encontro fortuito surge, por invenção de Hermes, a lira com a qual

presenteará Apolo. O modo como se dá esse encontro é típico de Hermes enquanto

possibilidade e acaso. Esses aspectos marcantes de um caos originário não apenas são

introduzidos por Hermes na ordem do Olimpo, mas por ser sua a invenção da lira, não

seria de modo algum absurdo dizer que no seu aparecimento incorpora-se nela

igualmente esse traço de possibilidade e acaso como seu constituinte. Hermes recolhe

em unidade caos e cosmos, e ambos constituem a lira em sua unidade. À reunião em

unidade de aspectos de um caos originário à tartaruga, um animal primevo de

sustentação do universo em diversas culturas antigas, Hermes nomeia lira. A lira de

Hermes é a reunião de caos e cosmos como a unidade mitológica originária. Porém, não

apenas é a tartaruga transformada em lira através das habilidades cao-cosmo-gônicas de

Hermes, mas é ela mesma, além do delfim, uma das formas do próprio Apolo.226 Por

outro lado, delphin é uma variação posterior de delphi,227 ou Delphi, nome do local

onde foi erguido o Templo de Apolo e onde este colocou o seu famoso oráculo. No

entanto, não se trata de uma mera coincidência o fato de o símbolo mais característico

de Hermes, a herma,228 se localizar no lugar cuja natureza se designa com o mesmo

225
Kerényi, 1993:57. Tradução nossa da versão inglesa transcriata na p. 266.
226
Kerényi, 1993:57.
227
Cf. entrada no Projeto Perseus.
228
Representação do deus Hermes, ger. constituída pela cabeça, pescoço e parte do tronco, erguida sobre
um pedestal prismático e alto ou sobre uma hermeta, e us. pelos antigos gregos como marco indicador nas
encruzilhadas, ao longo de estradas, nos ginásios etc. In: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa.
147

nome que o oráculo de Apolo: “A herma original ficava na montanha onde a criança

Hermes nasceu numa caverna. Esta caverna era um lugar do caos primevo, a natureza

do qual é indicado no nome “Delphi”229. Desse modo Apolo aponta com seu oráculo

para Hermes na medida em que este aponta para aquele com a lira. Nessa mútua

referência vige a mais pura possibilidade de reunião entre Hermes e Apolo. Por isso,

através da lira, Hermes concede a Apolo o dom de sua música inaudita ao mesmo tempo

em que este concede àquele os poderes mânticos e divinatórios do oráculo.

Em Hermes vige de modo contundente a extrema oposição dos opostos. No

Hino, quando Zeus, após ouvir a defesa de Hermes diante da acusação de Apolo,

determina que ambos se unam em um só espírito e sob a guia do primeiro busquem o

gado de Apolo:

(...) ele [Zeus] ordenou a ambos que se unissem em espírito e procurassem o gado, e
Hermes o condutor a guiar o caminho.230

Hermes não somente dá posse a Apolo da inauguralidade da música que lhe é

característica, como mostrará posteriormente o Hino (475-78), mas para que isso

aconteça, ambos devem primeiro se encontrar numa unidade: Hermes encontra em

Apolo seu irmão (ambos são filhos de Zeus) como o seu mais antagônico. No Hino,

Hermes já declarara que poderia, se quisesse, pilhar231 os tesouros de Apolo. Ele possui

o poder titânico concretizado em sua malícia e ausência de escrúpulos, porém, enquanto

latência, esse poder sofre refreio pela unidade com Apolo. No horizonte aberto por essa

229
Kerényi: 1993:56.
230
Hino a Hermes, 391-392. A mesma fórmula (homophrona thumon echontas) é utilizada por Hesíodo
para indicar a união de Mnemósyne e Zeus, a origem das Musas (Teogonia, 53-62).
231
Idem, 175-81.
148

mútua referência circula uma intimidade de Hermes e Apolo em que, pela lira, se dá a

unidade como música.

“Alegria e amor e doce sono” são, de acordo com Apolo, as dádivas dessa arte
Hermética, a qual Hermes traduz em revelação de sua essência. Originalmente, música era
uma dádiva de Hermes, e nos sons de syrinx ela assim permanece. Esta não é música
Apolônica.232

De fato, Apolo reconhece a realização de Hermes como algo que difere de tudo

conhecido:

Mas aproxime-se agora, diga-me isso, desembaraçado filho de Maia: esteve essa coisa
maravilhosa com você desde o seu nascimento, ou algum deus ou mortal a deu a você – um
nobre presente – ou ensinou a você canção tão celestial? Pois prodigioso é esse novo-
proferido som que eu ouço, semelhante ao qual eu juro que nem homem nem deus algum
habitando no Olimpo jamais conhecera além de você, oh furtivo filho de Maia. Que
habilidade é essa? Que música de irresistíveis preocupações? Qual o caminho até ela? Pois
em verdade aqui três num todo se apresentam ao mesmo tempo que se pode escolher:
alegria, e amor, e doce sono.233

A lira não apenas é uma invenção surpreendente. A surpresa de Apolo é ainda

mais contundente em razão de uma música jamais ouvida antes surgir exatamente de

Hermes. Porém, a condição inaugural dessa música, retirando o seu vigor da natureza

originária da lira, espelha a atividade do próprio Hermes. Em sua ação, o inaugural se

apresenta de modo essencial porque lhe é constitutivo. O vislumbre hermenêutico é

duplo na medida em que o olhar translúcido de Hermes sobre a tartaruga primigênia

conduz à realização da lira e, finalmente, da música primigênia, em virtude da qual o

próprio Apolo, seguidor das Musas Olímpicas, com as bênçãos de Zeus alça Hermes a

sua condição de possibilidade mais plenamente manifesta:

E embora seja eu um seguidor das Musas Olímpicas que amam danças e os caminhos
luminosos da canção – canto cheio de som e a vibração encantadora das flautas – ainda

232
Kerényi, 1986:26-7, a respeito da passagem do Hino a Hermes, 449. Tradução nossa a partir da versão
inglesa transcrita no Apêndice I, p. 266.
233
Hino a Hermes, 439-449. Tradução nossa da versão inglesa de Hugh G. Evelyn-White. Projeto
Perseus. Cf. Apêndice I, p. 266.
149

assim nunca eu me tive o cuidado por qualquer desses feitos de habilidade nos festejos da
juventude, como eu agora tenho por isso: eu estou cheio de admiração, oh filho de Zeus,
por sua doce execução musical. Mas agora, já que você, embora pequenino, tem habilidade
tão gloriosa, sente-se, caro menino, e respeite as palavras de seus anciãos. Pois agora você
terá renome entre os deuses imortais, você e sua mãe também. Isso eu direi a você
francamente: por essa lança de madeira de salgueiro eu certamente farei de você um líder
renomado entre os deuses imortais, e afortunado, e te darei dons preciosos e não te
enganarei do princípio ao fim.234

Da fúria por Hermes ter roubado o seu gado, Apolo passa à admiração pelo filho

Maia. A consideração do que Hermes é conduz a ação de Apolo. No primeiro momento,

a simples identificação entre o roubo e Hermes é o fato que dirige a ira de Apolo, a

ponto deste ameaçar jogá-lo no Tártaro.235 No segundo momento, porém, um misto de

surpresa e alegria arrebata Apolo. Sua surpresa é dupla, na medida em que se

surpreende com a música que houve e com o fato de Hermes ser aquele que a realiza de

acordo com sua própria invenção. Para Apolo, agora é inevitável perceber Hermes em

identidade com a música. E é tão somente por essa identidade que poderá Hermes

conceder a Apolo o seu próprio dom, do mesmo modo que fizera Apolo ao nomeá-lo

como “renomado líder entre os deuses imortais”. Diz Hermes a Apolo:

Você me examina cuidadosamente, oh grande arqueiro, ainda assim eu não tenho


ciúmes de que você devesse tomar posse de minha arte: esse dia você o conhecerá (...)mas
desde que, como parece, seu coração está tão fortemente determinado a tocar a lira, cantar,
e tocar sobre ela, e se dá a si mesmo à alegria, toma este presente de mim, e você, meu
amigo, confira glória sobre mim.236

Em Hermes, Apolo reconhece aquilo que já no Hino fora explicitado e que ele

mesmo pôde testemunhar:

Repentinamente ele começou a tocar a lira mais alto, recitando um prelúdio – e o som
que o acompanhava era encantador – sobre os deuses imortais e a terra sombria, como eles
eram no princípio, e que prerrogativas cada um tinha. E a primeira dentre os deuses que ele
celebrou com sua canção foi Mnemósyne, Mãe das Musas, pois o filho de Maia era um

234
Hino a Hermes, 450-463. Tradução nossa da versão inglesa transcrita na p. 267.
235
Hino a Hermes, 255.
236
Idem, 464-466; 475-478. Tradução nossa da versão inglesa transcrita na p. 267.
150

discípulo dela. E todos eles, todos os deuses imortais, de acordo com a idade e como cada
um nasceu, o glorioso filho de Zeus recitou, cantando-os todos em ordem, tocando sua lira
em seu braço.237

Somente em virtude da concessão primeira de Mnemósyne pode Hermes ele

mesmo dar posse a Apolo de sua arte. Discípulo de Mnemósyne, Hermes encontra-se em

unidade com as Musas. Discípulo aqui significa no caso de Hermes estar convicto em

Mnemósyne. Ela é fonte tanto das Musas como, de um outro modo, de Hermes, na

medida em que por sua convicção ela o possui. A grande deusa Mnemósyne é fonte

tanto do que se mostra como do que se encobre. Só ela possui o poder tanto de velar

como o de re-velar o sentido do mundo. “Passado e futuro, (...) pertencem do mesmo

modo ao reino noturno do Esquecimento até que a Memória de lá os recolha e faça-os

presentes pelas vozes das Musas”.238 Nessa perspectiva, Mnemosyne outorga a Hermes,

de outro modo, a mesma voz que de modo radical redime do Esquecimento: Hermes

pode, por isso mesmo, ser aquele que tanto redime, como também aquele que conduz

para o Esquecimento. O jogo aberto de velamento e des-velamento é explicitado pelo

próprio Hermes diante de Zeus. Este, após ouvir Apolo a respeito do roubo de seu gado,

recebe Hermes, que se defende assim iniciando: “Zeus, meu pai, realmente eu te falarei

a verdade; pois eu sou verdadeiro e não posso contar uma mentira”.239 Ao se examinar,

porém o texto grego, verdade e mentira não são aqui excludentes, simplesmente por não

tratarem da oposição em que comumente se encontram na concepção moderna do

pensamento. O texto grego diz:

zeu= pa/ter, h)= toi e)gw/ soi a)lhqei/hn katale/cw


nhmerth/j te ga/r ei)mi kai\ ou)k oi)=da yeu/desqai

237
Idem, 425-433. Tradução nossa da versão inglesa transcrita na p. 267.
238
Torrano, 1991:27.
239
Hino a Hermes, 368-9. Tradução nossa da versão inglesa de Hugh G. Evelyn-White. “Zeus, my father,
I will speak truth to you; for I am truthful and I cannot tell a lie.”
151

Zeu páter, ê toi ego soi aletheíen kataléxo


nemertés te gár eimi kai ouk oida psêudesthai

Examinando melhor o que as palavras aletheíen, oida e psêudesthai significam,

poderíamos alcançar uma interpretação bastante diferente da tradução corrente. A

primeira palavra a ser pensada aqui,, significa comumente, mentira. Antecedida por ouk

oida – não saber – porém, o sentido da segunda oração já apareceria como algo diverso,

dizendo: “pois eu sou verdadeiro e não sei mentiras”. Ora, uma coisa é não poder contar

mentiras, muito embora o texto não revele em virtude de que Hermes não pode contar

uma mentira. Pois, mesmo que se leve em consideração que nemertés, o primeiro termo

da frase, indique a acepção de “verdadeiro”, ainda assim, nemertés não se mostra de

modo algum como impedimento para que se venha aqui ou ali contar mentiras. Porém,

não contar mentiras por que não pode, mas porque não sabe fazê-lo é ainda uma outra

coisa bem diferente. Há nesse “não saber mentiras” uma impossibilidade radical,

mesmo se se considerar que psêudesthai seja tomado em sua acepção mais corriqueira.

Quer queira, quer não, o saber a mentira determina, esse sim, quem pode ou não contar

mentiras. Por isso ao se tomar Hermes como um enganador, aquele que confunde, será

preciso pensar de que modo ele confunde e engana, já que não sabe contar mentiras.

Para isso, é necessário em primeiro lugar rever o que nemertés diz, uma vez que

na acepção corrente traduz-se por “verdadeiro”. Ocorre, todavia que verdade em grego

se diz alétheia, daí a necessidade de não se deixar influenciar a tradução de nemertés

pela tradição do pensamento que o verte como verdadeiro, mas sim como aquele que

não erra, que é incapaz de erros. Ora, na tradição filosófica do ocidente, como se viu

anteriormente240, o erro se liga ao falsum pela posição que se ocupa a priori por

oposição a uma verdade imperial. Por isso, abandonar a interpretação filosófica da


240
Cf. p. 137ss.
152

verdade impõe o passo e o ritmo necessário para uma compreensão originária da

afirmação de Hermes. Desse modo, tomar nemertés como “infalível ou incapaz de erro”

pode colocar desde já o pensamento da frase de Hermes numa compreensão livre das

concepções tradicionais que igualam verdade e semelhança, verdade e correção, para

lançá-lo em meio à compreensão do que é a verdade como uma dinâmica. É desde esta

perspectiva da verdade como a livre dinâmica de alétheia, em contraposição à noção de

oposições artificialmente forjadas a partir das posições pré-estabelecidas do imperium,

que se pode também desconfiar que a palavra psêudesthai queira dizer apenas e tão

somente “mentira”. Pois, prestando atenção ao o fato de que numa concepção ainda não

metafísica, ou melhor, numa concepção ainda mitológica, psêudesthai não pode

significar aquilo que se opõe a alétheia, chega-se então a pensar o sentido de mais além

do que simplesmente “mentira”, chega-se a pensá-la como “enganar por mentiras”, e

desse modo, seria possível alcançar uma outra compreensão, mais originária e, por isso

mesmo, mais inquietante da segunda frase como: “pois, incapaz de erros eu sou e não

sei enganar por meio de mentira”.

Interpretada desse modo e tendo o acosso da tradição filosófica e lingüística no

encalço de todos os percalços do pensar, a afirmação proferida por Hermes se torna

inquietante, já que de acordo com a primeira frase, ele diz que “falará realmente a

verdade”. Na constituição do Ocidente como idéa, em que a verdade como orthótes e

homoiósis escamoteia as identidades e diferenças de inteligível e sensível, de que

maneira poderia a primeira sentença, que afirma o proferir da verdade, entrar em

compatibilidade com a segunda, que diz que mesmo incapaz de erros, ele não sabe

enganar por meio de mentira? A princípio, se não se pode enganar por meio de

mentiras, muito menos por meio do falar a verdade. Essa incompatibilidade não possui
153

solução metafísica possível e por isso, se tomada desde essa perspectiva, deve ser logo

descartada. Além disso, percebe-se que não apenas a primeira sentença é incompatível

com a segunda, mas também a segunda frase possui uma contradição. Aqui Hermes não

afirma coisa alguma a respeito da mentira, mas, ao contrário, ele profere duas negações

que se implicam. A primeira diz da incapacidade de errar, isto é, da não-capacidade ou

da ausência de capacidade para o erro. A segunda negação diz respeito a não saber

enganar por meio de mentira, o que de maneira alguma quer dizer que Hermes não saiba

enganar, habilidade que aliás o próprio Apolo lhe reconhece a maestria. Levando em

conta essas considerações, a frase poderia agora figurar da seguinte maneira: “pois não

sendo capaz de erro, não sei enganar por meio de mentira”. Não ser capaz é o indicativo

de que Hermes não possui as qualidades necessárias ao desempenho do erro e por isso

não engana pela mentira. Enganar não é algo então que Hermes faça por meio de

mentiras, mas por meio do que ele explicitamente afirma na primeira frase:

Zeu páter, ê toi ego soi aletheíen kataléxo

“Zeus, meu pai, realmente eu te falarei a verdade”. Para efeito de clareza, pode-

se dividir essa frase em duas partes. A primeira: Zeu páter, ê toi ego; a segunda: soi

aletheíen kataléxo. Essa divisão está bastante demarcada pelo uso de toi e soi, ambas as

formas do pronome sý241, segunda pessoa do singular “tu”, que na sentença indica para

quem Hermes se dirige: Zeu páter. Na primeira parte da sentença, Hermes diz a Zeu

páter: ê toi egó. Tomando a tradução de ê não como “realmente”, mas como a

confirmação de uma asserção, essa primeira parte da sentença pode ser pensada como

uma afirmação do tipo – “a ti asseguro eu” – e, portanto, pode ser compreendida como a

241
su/
154

confirmação de Hermes perante Zeus de que ele fará um soi aletheín kataléxo. Diz

então Hermes: “Zeus, pai, a ti asseguro soi aletheín kataléxo”.

Soi aletheín kataléxo. A tradução corrente – “te falarei a verdade”. Retomando o

sentido da segunda parte da sentença, enganar não é algo que Hermes faça por meio de

mentiras, mas por meio do que ele explicitamente afirma na primeira frase: “Zeus, pai, a

ti asseguro te falarei a verdade”. Mas... será? Afinal, que verdade pode ser essa se na

segunda frase, como se chegou a pensar acima, Hermes diz tão somente que não engana

por mentiras, que não é capaz de errar, mas não nega que seja capaz de enganar? A

tentativa da presente tradução resultou até aqui numa incompatibilidade entre a

explicitação do dizer a verdade e a latência da possibilidade de enganar. Essa

incompatibilidade, porém, só se institui como vigência a partir de uma perspectiva em

que a verdade é tomada no sentido do verum e que exclui o engano como possibilidade.

Além disso, aceitando-se a tradução corrente de kataléxo por falar, permanece

incontornável a incompatibilidade de ambas as partes da sentença de Hermes, uma vez

que a própria alétheia conserva-se refém de uma interpretação metafísica. Afinal, que

há de mais comum do que falar a verdade por oposição excludente ao falar a mentira?

Por mais esforço que haja no sentido de re-pensar a sentença de Hermes, no

entendimento de kataléxo como falar, é o falar que convoca alétheia. Enquanto não se

inverter essa formulação, não há, ainda, de modo bem disposto a possibilidade de se

compreender o que a sentença diz de realmente essencial nem a respeito de Hermes,

nem sobre. Ir além de uma interpretação filológica de kataléxo requer que se discuta

aqui, não as possibilidades estatístico-terminilógicas do grego para indicar o ato da fala

enquanto proferição enunciativa, mas que se vá mais a fundo no fato de ser kataléxo a

palavra-chave da sentença de Hermes na medida em que é a palavra de Hermes e por


155

isso, remete o pensamento para além do falar. Pois, uma vez que o próprio falar é um

modo do légein,242 resta perguntar em que sentido o próprio légein vai mais além do que

o falar? O légein possui, de um lado, o próprio falar, mas na medida em que seu vigor se

manifesta como a essência do lógos. Esse vigor do légein, antes mesmo do falar, possui

o sentido de pousar, colher e reunir. Kataléxo reforça ainda mais a noção de que ao

mesmo tempo em que o légein colhe e reúne, ele o faz porque pousa e dispõe.

Kataléxo, por outro lado, como a palavra de Hermes remete-o ainda uma vez

mais para suas origens ctônico-titânicas – este o sentido de kata em composição com a

variação léxo (de légo) – ao mesmo tempo em que o coloca no diá-logo com Zeus em

sua forma mais essencial: a manifestação da unidade do lógos. Em sua manifestação

mais essencial, Hermes não diz porém de si mesmo, mas em virtude mesmo dessa

unidade diz a Zeus: soi aletheín kataléxo – te disporei e reunirei a a-létheia. Nesse

sentido, pode se antever que a sentença, que apresentava uma incompatibilidade de suas

partes, inicia uma reconciliação e daí em diante pode ser compreendida de um modo

totalmente diferente: “Zeus, pai, a ti asseguro te dispor e reunir a . Somente porque

Hermes pronuncia essa frase desse modo, é que ele pode então concluir a sentença

dizendo não ser capaz de erros e não saber enganar por meio de mentira.

E é somente nesse sentido disposto pela primeira frase que Hermes manifesta

sua convicção e seu pertencimento a Mnemósyne. Ao desarmar o espírito de Apolo com

a execução da lira243, Hermes apresenta uma teogonia completa. O fato aqui é que não

se trata apenas de uma mera enumeração, mas fundamentalmente, trazendo consigo a

lira como manifestação de sua natureza essencial, isto é, como manifestação da unidade

242
le/gein.
243
Hino a Hermes, 425-433.
156

das identidades e diferenças, do titânico e do olímpico, do caos e do cosmos, Hermes,

com sua música, poetiza a ordem do universo. Uma tal poesia se dá como produção do

sentido do mundo de tal modo impressionante que Apolo não o transforma, mas

reconhece nele, Hermes, o líder entre os deuses imortais. Ainda, do mesmo modo que

Hesíodo começa com o louvor às Musas, o deus Hermes inicia sua ordem musical do

mundo numa anterioridade ainda mais aquém em direção à fonte: a grande deusa

Mnemósyne, filha de Ouranos e Gaia.

A Grande Deusa Mnemosyne (...) pode ser comparada a uma fonte (Quelle) por
diversas razões. (Não é sem sentido que ela tenha uma nascente – Quelle – em Lebadeia;
também é significante que suas filhas sejam figuras análogas a Deusas de nascentes.) Ela é
memória como o fundamento cósmico da auto-recordação a qual, semelhante a uma
nascente eterna, nunca cessa de fluir. Ela até mesmo concede, de novo precisamente através
da Musas, agradáveis, curativos lapsos de memória (Teogonia 55); nesses não se esquece a
si mesmo, mas apenas o que é destinado a ser esquecido. Por essa razão as bênçãos de
Mnemosyne auxiliam os mortos e os poetas: os primeiros ela não permite desidratarem-se,
nos seguintes ela origina o transbordamento. No Hino ela aparece como a Deusa que está
colocada sobre Hermes como um daimon do destino. Esse é o significado do texto original:
he gar lache Majados huion (“Pois ele foi ordenado o filho de Maia”). É o destino de
Hermes que para si mesmo e para aqueles com ele não haja chance de se perderem. Ele
jamais pode escapar da memória. Ele é possuído por ela, e a leva como o conhecimento
herdado de todas as fontes primordiais do ser.244

A sentença por Hermes proferida a Zeus é a pronúncia de sua própria destinação

pela memória à a-létheia. Nessa destinação, Hermes está livre do erro, mas não da

errância: este o sentido mais intimamente ligado à própria a-létheia. Pois, no erro pode

se dar a mentira, na errância apenas a manifestação do lógos: a-létheia.

Hermes e Hermenêutica: a música como onto-logo-fania do real

O vigor dessa manifestação originária Hermes concretizou por Mnemósyne a

unidade do real como música. Essa unidade, reunida na lira, se constituiu na própria

divindade do deus.

244
Kerényi, 1986:31-2. Tradução nossa da versão inglesa transcrita na p. 267-8.
157

A lira na mão de uma criança primordial expressa a qualidade musical do mundo


completamente à parte da intenção do poeta. Esta é a primeira e a mais destacada
característica do próprio Hermes. O poeta Homérico percebeu a natureza musical do
universo como essencialmente Hermética e a localizou na paleta de cores Hermética do
espectro do mundo. Há toda probabilidade de que o poeta não tenha procurado essa música
primeva, mas sua mais elevada forma Apolônica. Se, entretanto, o menino montando um
golfinho (...) tem uma lira em sua mão, nós somos levados a pensar não meramente a
respeito de suas relações com Apolo Delphinios, mas de uma conexão mais geral e primária
que existiu antes de todos os nomes específicos: a conexão de água, criança e música. 245

A divindade de Hermes consiste, pois, justamente em que ao nascer como

criança divina, em sua capacidade como Eros Proteurhytmos, acontece o próprio

sentido da criação do universo como rítmico-musical. Com Hermes, a música se dá e

desencadeia uma onto-logo-fania do real na medida em que remete a proveniência do

sentido para dimensões primevas de constituição do homem no mundo. Isso já ficou

claro com o episódio da tartaruga transformada em lira, a reunião em Hermes do

titânico e do olímpico e a ascendência de Mnemósyne como o próprio daimon de

Hermes.

No sentido de uma onto-logo-fania do real, encontra-se numa primeira dessas

dimensões primevas a palavra. Tal força nomeadora da palavra já era conhecida pelos

antigos gregos. Essa força nomeadora se dá pela constituição da palavra como dimensão

na qual o real manifesta sentido. A palavra constitui uma dimensão originária de

nomeação do real em comunhão com o próprio som. Nesse sentido, o som se apresenta

numa pré-abertura do homem ao sentido. Antes de qualquer significação, o som se

articula desde uma dimensão primeva de sentido. A primordialidade do som em sua

relação com o sentido se dá não porque dele se obtenha o sentido, mas

fundamentalmente porque o som, colocando-se ainda além da atrelagem de qualquer

significação arbitrada, se presta docilmente à manifestação do sentido em sua vigência

de proto-compreensão. O sentido, articulando o som, figura numa dimensão de pré-

245
Kerényi, 1993:58. Tradução nossa da versão inglesa transcrita na p. 268.
158

compreensão do homem. Ora, na medida em que a palavra modula o próprio som,

constitui com este o poder de fazer aparecer e de manifestar sentido do real. Do mesmo

modo que não há mito sem rito, não há palavra sem som. Na tradição metafísica do

ocidente foram estas duas substituições fundamentais: o mito pela filosofia e o som da

palavra pelo suporte da escrita. A poesia mítica, no entanto, marcada pela oralidade

como o traço fundamental da constituição de sentido do real e das coisas com o som,

mantém em unidade o poeta, aquele que profere a palavra como aquilo mesmo que dá

suporte à experiência numinosa do mundo, e o músico, aquele que manifesta o vigor da

própria nomeação do real através do som em sua dimensão originária de constituição de

sentido.

Nesta comunidade agrícola e pastoril anterior à constituição da pólis e à adoção do


alfabeto, o aedo (i.e., o poeta-cantor) representa o máximo de poder da tecnologia da
comunicação. Toda visão de mundo e consciência de sua própria história (...) é, para este
grupo social, conservada e transmitida pelo canto do poeta. É através da audição deste
canto que o homem comum podia romper os restritos limites de suas possibilidades físicas
de movimento e visão, transcender suas fronteiras geográficas e temporais, que de outro
modo permaneceriam infranqueáveis, e entrar em contato e contemplar figuras, fatos e
mundos que pelo poder do canto se tornam audíveis, visíveis e presentes. O poeta, portanto,
tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias
espaciais e temporais, um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemósyne) através
das palavras cantadas (Musas). (...) Portanto, o canto (as Musas) é nascido da Memória (...)
e do mais alto exercício de Poder (...). (...) A extrema importância que se confere ao poeta e
à poesia repousa em parte no fato de o poeta ser, dentro das perspectivas de uma cultura
oral, um cultor da Memória (...), e em parte no imenso poder que os povos ágrafos sentem
na força da palavra e que a adoção do alfabeto solapou até quase destruir. Este poder da
força da palavra se instaura por uma relação quase mágica entre o nome e a coisa nomeada,
pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a presença da própria coisa.246

O sentido não é um a posteriori que advém das relações arbitradas de

significante e significado. Tudo que se abre para a compreensão é sustentado pelo

sentido. O sentido é aquilo que pode ser articulado na abertura da compreensão, sendo

essa abertura hermenêutica:

246
Torrano, 1995:16-7
159

Sentido é a perspectiva em função da qual se estrutura o projeto pela posição prévia,


visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se torna compreensível como algo.
(...) Sentido é um existencial da pre-sença e não uma propriedade colada sobre o ente, que
se acha por "detrás" dela ou que paira não se sabe onde, numa espécie de "reino
intermediário".247

Na referência do som a sua dimensão primeva de compreensão se dá a radical

articulação do sentido. Pois é o som que antes de tudo se articula, em sua oposição

complementar ao silêncio, desde uma possibilidade existencial inerente a ele mesmo e à

linguagem: a escuta.

Não é por acaso que dizemos que não "compreendemos" quando não escutamos
"bem". A escuta é constitutiva do discurso. E, assim como a fala está fundada no discurso, a
percepção acústica também se funda na escuta. Escutar é o estar aberto existencial da pre-
sença enquanto ser-com os outros. Enquanto escuta da voz do amigo que toda pre-sença
traz consigo, o escutar constitui até mesmo a abertura primordial e própria da pre-sença
para o seu poder-ser mais próprio. A pre-sença escuta porque compreende. (...)
É com base nessa possibilidade de escutar, existencialmente primordial, que se torna
possível ouvir. Trata-se de um fenômeno ainda mais originário do que aquilo que a
psicologia determina "imediatamente" como ouvir, ou seja, a sensação dos sons e a
percepção dos tons. Também o ouvir possui o modo de ser de uma escuta compreensiva.
"Em primeiro lugar", nós nunca escutamos ruídos e complexos acústicos. Escutamos o
carro rangendo, a motocicleta. Escuta-se a coluna marchando, o vento do Norte, o pica-pau
batendo, o fogo crepitando.
É indispensável uma atitude artificial e complexa para se "ouvir" um "ruído puro".
Entretanto, o fato de ouvirmos primeiramente motocicletas e carros constitui um
testemunho fenomenal de que a pre-sença, enquanto ser-no-mundo, já sempre se detém
junto ao que está à mão dentro do mundo e não junto à "sensações", cujo turbilhão tivesse
de primeiro ser formado para propiciar o trampolim de onde o sujeito pudesse pular para
finalmente alcançar o "mundo". Sendo, em sua essência, compreensiva, a pre-sença está,
desde o início, junto ao que ela compreende.248

Articulado desde a escuta, o som não representa, isto é, não instala a sujeição do

real e das realizações como subjetividade representante de uma objetividade

representada. O som apresenta, manifesta a compreensão, o sentido do real. No entanto,

como manifestação da compreensão e do sentido, o som não é um mero ruído, isto é,

não basta haver som para automaticamente se dar o sentido. Não é o som que pressupõe

o sentido, mas antes é este, que em sua manifestação deixa o som aparecer como som.

247
Heidegger, 1993:208.
248
Heidegger, 1993:222-3.
160

Por isso, mesmo onde a palavra falta como palavra a música vai justamente se constituir

como dinâmica da manifestação primeva do sentido na medida em que o conserva como

sentido do ser na pureza do som. Pureza do som aqui se trata da renúncia que o poético

exige em relação à dominação da palavra. Em toda dominação terminológica da palavra

se perde e se deixa escapar o sentido do ser como esquecimento. Nesse sentido, não

apenas onde a palavra falta se dá a ausência da vigência de ser, mas também onde a

palavra se encontra dominada em sua extrema aplicação terminológica, aí também a

vigência do que é se esvai. O poético é a renúncia a ter poder sobre a palavra e sobre a

coisa que ela nomeia. O poético se dá sempre, então, como o passo aquém da mera

vocalização dos sons como palavra para, como música, constituir um outro mélos do

real, um canto da manifestação do sentido do que se apresenta como vigência

primordial. Por isso, o recusar-se a “dizer” da música, antes mesmo de se poder pensá-

lo como um calar das palavras, permanece como a pronúncia essencial de todo dizer que

mostra e faz brilhar, isto é, preserva o que na palavra é essencial: a nomeação do sentido

do ser. Em toda nomeação do sentido do ser o poético canta a renúncia da palavra como

música.

Pensando, articulando, abraçando, amando, assim é a saga do dizer: inclinar-se quieto,


alegre, uma reverência de júbilo, um elogio, um louvor: laudare. Laudes é o nome latino
para canção. Dizer uma canção é cantar. Cantar é recolher na canção um dizer. Não
reconhecendo o sentido elevado do canto como saga de um dizer, o canto não passa de um
converter em sons o dito e a escrita.249

O que no canto como música se dá é a preservação da palavra como

recolhimento de um dizer. Esse dizer é uma saga, um mostrar e apontar, e ao mesmo

tempo um deixar aparecer o que brilha como sentido. O recolhimento que dispõe é o

lógos e o que mostra é alétheia. Nesse sentido, a música repõe a dimensão do sagrado

249
Heidegger, 2003:181.
161

sentido do mundo na medida em que o configura no limiar do in-ex-plicável, do

inaudito. A música transige para o nada que é tudo, a música dá-se cosmogonia do

sentido. Nela se dá o sentido de um modo originário, livre dos a-postos, im-postos e

pre-postos, penduricalhos e entulho de uma concepção redutora do real pela filosofia e

pela ciência. Na música se dá a ruptura da dominação da palavra como terminologia

para articular o ser como um dizer indizível, mas pleno de sentido. O que na música se

dá como música é a recusa da reivindicação da coisa pela palavra. Desse modo, toda

palavra é musical na medida em que renunciar o caráter representacional da coisa. Por

isso, na música se primordializa a saga da palavra como ressonância do ser.


Capítulo IV

Música e Memória

A linguagem (...) é filha da Memória, ou seja: deste divino


Poder trazer à Presença o não-presente, coisas passadas e futuras.
Ora, ser é dar-se como presença, como aparição (alétheia), e a
aparição se dá sobretudo através das Musas, estes poderes divinos
provenientes da Memória. O ser-aparição portanto dá-se através da
linguagem, ou seja: por força da linguagem e na linguagem. O ser-
aparição é o desempenho (= a função) das Musas. E o desempenho
das Musas é ser-aparição. (...) Enquanto filhas de Memória é que as
Musas fazem revelações (alétheia) ou impõem o esquecimento
(lesmosyne). Este poder sobre o ser e o não-ser, este poder decidir
entre a revelação e o esquecimento, – é em verdade a raiz originante
de todo poder, porque este é o poder que configura o mundo e que em
cada momento e em cada situação configura portanto todas as
possibilidades de existência do homem no mundo assim configurado.

Torrano, 1995:29, 31.

Verdade e Memória

Procura-se aqui fazer uma experiência com a música. Não somente isso, mas se

busca percorrer o caminho de uma experiência com música, poética e sentido. Note-se,

primeiramente, que não é uma experiência de ou da, muito menos uma experiência de

alguém, mas antes uma experiência com. Isto quer dizer: qualquer experiência que aqui

se tente necessita da con-juntura de homem, música, poética e sentido. Em segundo

lugar, dado que a experiência de que aqui se fala parte da con-juntura, isto é, da reunião

em unidade, não é possível compreender tal experiência com como algo que se efetue

unilateralmente desde um sujeito em direção a um objeto. Numa pós-modernidade não

menos impregnada de metafísica, toda experiência com significa em geral, antes e acima

de tudo, uma supradeterminação de tudo e de todos desde as perspectivas e desde os

encaminhamentos da relação sujeito-objeto em seu mais completo vigor. Em que pese

uma suposta superação historiográfica da modernidade pelo pós, permanece


163

historicamente determinante o unidimensionamento do mundo a partir dessa relação.

Por mais atual que seja, nenhuma historiografia pode superar o que historicamente se

abre e se envia como destino. Nesse destino histórico a humanidade se torna cada vez

mais hespérica, in-vocando e e-vocando em toda sua envergadura seus princípios de

constituição, entre os quais os que aqui já foram tematizados, os da medida, identidade e

representação, princípios alavancados na e pela conceituação da verdade como correção

e semelhança.

Entretanto, aqui se está a empreender uma tentativa de pensar música, poética e

sentido desde o impensado na origem. Este impensado permanece como aquilo que a

origem manifesta de inaugural e que nenhuma historiografia, por mais bem

documentada que seja, é capaz de medir através de um registro plenamente identificável

e re-presentável. O inaugural da origem nunca se deixa re-presentar, isto é, nunca se

deixa apropriar por um sistema de redução lógica e racional, sob pena de não mais ser

inaugural. Na origem apenas e tão somente se presenta o que origina e o que perdura

como originado, de tal modo que pensar a origem é sempre um pensar memorável. Na e

pela memória das origens dá-se o pensar do que é digno de ser pensado. Isto quer dizer,

“a memória do poetar pensante e do pensar poético é a memória original das origens

originantes”.250 Por isso, a experiência com de que aqui se trata não pode se dar nos

moldes do que um sujeito da razão faz com um objeto do conhecimento. Toda

experiência com o que se dá de modo inaugural, isto é, com o que in-voca e e-voca a

origem, o que não cessa de originar, é fundamentalmente diferente da aquisição e do

acúmulo de conhecimentos a respeito de um mero objeto. Ao contrário do que cada vez

mais se intenta na chamada pós-modernidade, “nenhum de nós tem em mãos o poder de

250
Souza, 2001/2:31.
164

decidir se a tentativa de nos colocarmos na possibilidade de uma tal experiência será

bem-sucedida, e em que extensão o que talvez seja bem-sucedido consiga alcançar cada

um de nós em particular”251. Por isso, a experiência que aqui se empreende com música,

poética e sentido não tem qualquer compromisso com a efetuação de um efeito, seja ele

mal ou bem-sucedido. Com esta experiência não se pretende uma operação que coloque

em sucessão ação e resultado e, portanto, não tem qualquer compromisso com o êxito.

Não se trata simplesmente de virar as coisas do avesso e se colocar na contramão do

comportamento dominante em relação a toda e qualquer experiência. Por isso, também

não se tem qualquer compromisso com o fracasso. Somente onde domina totalmente a

causalidade é que se pode estar comprometido com êxito ou fracasso. Assim, na

comum-união da unidade de música, poética e sentido, a experiência do homem com

estes não é mais um experimento de laboratório, entre outros tantos, determinados desde

o controle e parâmetros prévios. Esta experiência não se funda, pois, desde um sistema

de causa e efeito, da causalidade da causa eficiente, uma vez que parâmetros de controle

ou controle de parâmetros pressupõem de antemão a separação entre homem e música,

não sua unidade. Somente quando impera esta separação é que pode a música ser apenas

um resultado da ação do homem. Na unidade de que aqui se fala, entretanto, já é mais

do que suficiente o perdurar da vigência da experiência como unidade de homem,

música, poética e sentido. Imbricando-se numa unidade, con-vocam-se mutuamente

numa co-respondência recíproca.

Por isso, qualquer separação implica na destituição da experiência con-junta de

homem, música, poética e sentido. No entanto, estas e tantas outras instâncias de

251
Heidegger, 2003:122.
165

comum-união de sentido se desarticulam desde a prototípica separação do inteligível e

do sensível, da experiência intelectiva e da experiência sensível.

A construção platônica da metafísica se articula no tríptico da República, plasticamente


travejado pela configuração imagética do "sol", da "linha segmentada" e da "caverna". A
conexão interna destas imagens traduz uma representação matemática do grau de aspiração
do saber acerca do ser. (...)
O denominador comum às imagens do tríptico da República é a separação do sensível
e do inteligível, de que decorrem as oposições do corpo e da alma, da matéria e do espírito,
da aparência e da essência, da realidade e da idealidade, e de todos os pares de dualidades
antagônicas, que se impuseram à tradição onto-teo-lógica do pensamento ocidental-
europeu.252

Esta não é uma mera separação, pois este separar não somente designa promover

a des-união, mas sobretudo determinar o predomínio de um sobre o outro, do inteligível

sobre o sensível. Somente com essa separação e a conseqüente determinação do

predomínio de uma experiência sobre a outra é que se pode chegar a se formular a

própria separação de homem e mundo, o predomínio daquele sobre este e o desdobrar-

se e estender-se desse predomínio como estrutura válida e validatória para toda e

qualquer realidade como a relação modelar sujeito-objeto. Nessa relação o único modo

de manifestação de sentido se baseia no sistema de re-presentação. O real não mais deve

ser inter-pretado, mas sim medido e calculado e a partir disso, dis-posto numa e por uma

re-presentação do intelecto como modo de assegurá-lo como algo sempre dis-ponível253.

Não é este, definitivamente, o sentido que se tem em conta aqui com a referência

ao fazer uma experiência com a música. Meditando o sentido desse “com” de outro

modo, pode-se então compreender a experiência aqui mencionada como trazer ao vigor

de manifestação os que con-juntamente se co-respondem na experiência. Na vigência da

experiência dos que con-juntamente se co-respondem acontece essencialmente um pro-

duzir. Os gregos chamaram isto com a palavra poiésis. Um tal acontecer não se diz um
252
Souza, 1999:85-6.
253
Cf. Heidegger, 2001:39-60.
166

acontecer como, tão pouco se diz aqui que na vigência é que acontece a poiésis. Ao

contrário, numa tentativa de superação das estruturas gramaticais da língua da

metafísica se diz aqui que a vigência, que não é uma presença pura, mas implica

também um modo de retraimento, acontece um pro-duzir. Nessa tentativa de ir além do

mero aspecto lingüístico da língua implica também que não há em foco nenhuma

causalidade eficiente ou final, mas um modo de co-respondência entre o poético e o

vigente, de tal maneira que não importa aqui em que ordem um e outro possa aparecer

na proferição. Por isso, na mais plena co-respondência, a poiésis também acontece a

vigência da experiência de comum-unidade de homem, música, poética e sentido.

Na e pela memória das “origens originantes” o acontecer poético se dá como

instauração da comum-unidade, aqui, a saber, de homem, música, poética e sentido.

Somente assim, o próprio sentido chega a se constituir como a mais pura referência e

manifestação dessa comum-união. Desse modo, esse fazer dessa experiência como um

modo essencial de realização do real exige sempre e em primeiro lugar um colocar-se

na e em experiência, de tal modo que não se parte da mera separação dos opostos, mas

sim da união originária de todas as oposições fundantes de mundo, como referências de

dimensionamento do mundo, de céu e terra, mortais e imortais. Nesse

dimensionamento, ao contrário de Platão e toda a tradição onto-teo-lógica da metafísica,

os poetas nunca deixaram de pro-duzir, quer o saibam ou não; esse fazer não se dá num

ato de subjulgar o real à vontade do intelecto de um sujeito, mas permanece a realização

originária da poiésis.

Com a poiésis não há idéia alguma pura e simplesmente dada na razão que possa

ser uma abstração apenas e nem a idéia como modelo de cálculo assegurador

unidimensiona todo o real como sua imitação imperfeita. Com a poiésis dá-se ser num
167

puro dar-se à presença. Por isso mesmo, é preciso levar a sério que um tal dar-se à

presença também reserve um dar-se ausência. Com a poiésis dá-se vigência da presença

em toda sua envergadura e isso quer dizer, naquilo em que na constituição da vigência

também permanece como latência. Por isso, o poeta da poiésis

(...) vai ter de envesgar seu idioma ao ponto


de alcançar o murmúrio das águas nas folhas
das árvores.
Não terá mais o condão de refletir sobre as
coisas.
Mas terá o condão de sê-las.
Não terá mais idéias: terá chuvas, tardes, ventos,
passarinhos... 254

A poiésis não é, pois, a re-presentação de um conceito, muito menos a mímesis

do que figura no intelecto de um sujeito. O testemunho dado pelo poeta diz a poiésis

como a passagem do não-ser para o ser, um testemunho há muito assinalado pelo

próprio Platão: “Todo dixar-viger o que passa e procede do não-vigente para a vigência

é poiésis, é pro-dução”.255 O dizer dessa passagem dá-se manifestação do ser. Isto quer

dizer: a poiésis manifesta o ser. Manifestar traz à presença o que se desvela. Ao ser

como presença pertence o desvelamento, em grego, alétheia. Desse modo, realizando a

passagem do não-ser para o ser, a poiésis acontece a verdade. Mais uma vez, é preciso

compreender que se a poiésis acontece a verdade, esta também acontece aquela. A

verdade mesma está em acontecimento, um acontecimento que para acontecer precisa

transitar da latência para a ilatência em plena con-juntura com a poiésis. Nessa con-

juntura de verdade e poiésis o trazer ao desvelamento nunca ocorre uma simples

anulação do velamento. Somente por se estar demasiadamente habituado e predisposto a

254
Barros, 1998:17.
255
Banquete, 205b, cit. e traduzido por Heidegger, 2001:16.
168

se compreender o real através de oposições excludentes é que se pode chegar a pensar a

alétheia como oposição excludente de léthe.

O desencoberto é originariamente o que é mantido a salvo do encobrimento retraente e


assim é assegurado no desvelamento e como tal é não-iludido. O desencoberto não vem à
presença indeterminadamente, como se o véu do encobrimento tivesse simplesmente sido
levantado. O desencoberto é o não-ausente, sobre o qual um encobrimento retraente já não
mais se mantém. O vir à presença é em si mesmo um emergir, isto é, um vir ao
desencobrimento, de tal modo que o emergido e o desencoberto são tomados no
desencobrimento, resguardados por ele e assegurados nele.256

Isto quer acima de tudo dizer que o que emerge e chega como des-encoberto no

des-encobrimento aí se mantém precisamente por sua relação com o encobrimento. O

desvelamento não consiste propriamente numa negação do velamento, mas sim na

afirmação daquilo que no velamento constitui, em última instância, sua essência mais

íntima – o guardar em vigília. Des-velar não é a pura e simples eliminação do velar, mas

também sua permanência essencial.

Nós devemos pensar o des-velamento exatamente do modo como pensamos des-


carregar (incendiar) ou des-dobrar. Des-carregar significa trazer à ignição [zur Zündung
bringen]; desdobrar significa deixar aparecer as dobras da diversidade primeiramente em
sua multiplicidade. Nossa tendência inicial é entender o desvelamento e a desocultação em
oposição à ocultação, assim como desembaraçar é oposto ao embaraçar. O desvelamento,
entretanto, não resulta simplesmente em algo desvelado como não-velado. Ao contrário, o
des-velamento [Ent-bergen] é ao mesmo tempo re-colhimento [Ent-bergen], assim como
dis-seminação, que não é oposto à semeadura257, ou como in-flamar [Entflammen], o qual
não elimina a flama [Flamme], mas a traz a sua essência. O des-velamento [Entbergen] é ao
mesmo tempo a favor do re-colhimento [Bergung] do des-oculto [Unverborgenen] na des-
ocultação da presença, isto é, no Ser. Em tal recolhimento emerge primeiramente o
desoculto como um ente. Des-velamento – isto agora diz ao mesmo tempo trazer a um re-
colhimento: a saber, conservar o des-oculto na desocultação. A palavra “des-velamento”,
cuja abrangência apenas uma extensa meditação pode mostrar, contém em seu sentido
completo igualmente e essencialmente esse momento enfatizado de recolhimento, apesar de
“desocultação” nomear apenas a remoção da ocultação. A palavra “des-velamento” é
essencialmente e deliberadamente ambígua naquilo que ela expressa uma duplicidade com
uma unidade intrínseca: de um lado, como desvelamento é a remoção da ocultação e
precisamente a remoção primeiramente da ocultação retraente (lh/qh) e então também da
distorção e deformação (yeu=doj); por outro lado, entretanto, como desvelamento é um re-
colhimento abrigador, isto é, um tomar e preservar na desocultação.
“Desvelamento”, entendido em sua essência completa, significa o recolhimento
abrigador desvelante do desvelado na desocultação. Ele mesmo é de uma essência oculta.

256
Heidegger, 1992b:132. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 268.
257
Grifo nosso. Frase adicionada na tradução inglesa do original alemão.
169

Nós vemos isso primeiro tendo em vista lh/qh e seu permanecer, que retira para a ausência e
aponta para um desaparecer e um retirar-se.258

O conflito (Éris)259 está presente na alétheia, sendo essencializado por léthe e

rememorado na descendência de Nýx.260 A ascendência de Nýx nesse conflito carrega o

vigor das origens.261 Esse conflito é originário e instaurador de ser, portanto, poético. O

pensar rememorante, “o pensar que remonta à fonte e relembra a origem (denken an =

Andenken)”262 dá-se aqui como a própria permanência de léthe como latência. A relação

conflitante e complementar de alehtéia e léthe é a saga mito-lógica da interdependência

e do mútuo confiar de latência e i-latência, de ausência e vigência. O des-velamento do

velado re-memora o pertencimento a sua essência. Esta diz antes de tudo que o que

permanece no desvelado conserva como possibilidade mais própria o caráter que lhe

advém desde a essência e desde o comportamento de léthe, a saber, o próprio preservar.

Pois, o ser dos entes dando-se ser – por diferença ao ente – deixa mostrar o próprio ente

e nunca o próprio ser. Por isso, na proximidade com o ente é o ser, como o mais

próximo, que desaparece e se retira. Não obstante o ser se dar num mostrar e aparecer,

isto é, aquilo que é próprio da des-ocultação, permanece o fato de que a des-ocultação

mesma pertence ao que os gregos nomeiam como phýsis, o auto-surgimento encobridor,

o des-velar auto-velante.

Reconhecidamente, Aristóteles chama o genuíno ser (Met a1) ta\ fanerw/tata


263
pa/ntwn, aquilo que, de todas as coisas, é o mais aparente, naquilo em que ele já se

258
Heidegger, 1992b:133. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 268-9.
259
Cf. Capítulo II, p. 101ss.
260
Assinala-se que a relação de descendência entre Nýx, Éris e Léthe implica que uma manifeste a
essência da outra. Sobre isso, Torrano nos diz: “Uma lei onipresente na Teogonia é que a descendência é
sempre uma explicitação do ser próprio e profundo da Divindade genitora: o ser próprio dos pais se
explicita e torna-se manifesto na natureza e atividade dos filhos” (Torrano, 1995:31).
261
Cf. Kerényi, 2000:16-19.
262
Souza, 2001/2:31.
263
Tà phanerótata pánton.
170

mostrou antecipadamente em todas as coisas e em todos os lugares. Mas ta\ fanerw/tata


264
pa/ntwn retém a determinação diferenciada ta th= fu/sei fanerw/tata pa/ntwn (933b11),
que aparece de tal modo que seu aspecto é determinado com base no auto-surgimento:
fu/sij.
Conseqüentemente, no início da metafísica, ambos são retidos: aparência no sentido de
um auto-mostrar-se a uma percepção ou “espírito”. Aqui reside o motivo para o caráter
transicional peculiarmente problemático que marca a metafísica em seu início e a deixa se
tornar o que é: de um lado, no que se refere ao início, a última luz da primeira origem e, por
outro lado, no que se refere a sua continuação, a incepção do esquecimento da origem e o
princípio de seu encobrimento. Devido o tempo subseqüente interpretar o pensamento
Grego apenas em termos das posições metafísicas posteriores, i.e., à luz do Platonismo ou
Aristotelismo, e desde então através disso interpretar Platão e Aristóteles de modo
medieval, ou de modo Leibniziano-Hegeliano moderno, ou mesmo de maneira neo-
Kantiana, então agora é quase impossível recordar a essência primordial da aparência no
sentido do surgimento, i.e., pensar a essência da physis. Conseqüentemente, a referência
essencial entre fu/sij e a)lh/qeia também permanece encoberta. Na medida em que ela
jamais é mencionada, parece até mesmo muito estranho. Mas se a fu/sij significa aparecer,
um surgimento, e nada que se possa significar por ratio ou “natureza”, e se, fu/sij é uma
palavra equiprimordial para o que é nomeado por a)lh/qeia, por quê, então, o poema
didático de Parmênides não deveria portar o título peri\ fu/sewj,265 “Sobre o surgir no des-
oculto”?266

O que phýsis e alétheia equiprimordialmente nomeiam é o ser. Nesse nomear

preservam o ser em toda sua envergadura, isto é, em seu dar-se e em seu retrair-se.

Desse modo, com alétheia o que se des-vela completamente nunca é propriamente o ser,

mas a dinâmica do seu sentido. Esse des-velar-se por completo quer também dizer: re-

colher-se ao abrigo e retrair-se. Esse manter-se em recolhimento e abrigo, em

conservação e preserva não é, no entanto, conseqüência de alétheia, mas dá-se em con-

juntura com o ser. Por isso, a relação essencial entre alétheia e léthe pode ser

experienciada pelos poetas gregos arcaicos de modo claro e simples, podem

compreender alétheia com base na sua referência ao encobrimento retraente de léthe. E

é com base nessa relação essencial que alétheia perfaz ainda uma outra referência

essencial.

264
Ta te phýsei phanerótata pánton.
265
Perì physeos.
266
Heidegger, 1992b:139. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 269.
171

Mas se lh/qh, não importa como seja concebida, é originalmente a contra-essência de


a)lh/qeia, e se a lh/qh como encobrimento retraente corresponde uma perda no sentido de
esquecimento, então um manter e um preservar devem também originalmente se manter em
correspondência a a)lh/qeia. Onde a)lh/qeia vem à presença, aí existe um manter daquilo
que é salvo da perda.267

Os gregos, na voz de Homero, nomeiam esse manter e preservar numa passagem

da Ilíada (358ss) que narra a morte, os rituais e funerais de Patroclos, amigo de Aquiles.

O trecho narra especificamente a instituição de jogos de guerra em honra do próprio

Aquiles e que devem começar por uma corrida de carruagens.

sh/mhne de\ te/rmat' )Axilleu\j


thlo/qen e)n lei/w? pedi/w?: para\ de\ skopo\n ei(=sen
nti/qeon Foi/nika o)pa/ona patro\j e(oi=o,
w(j memne/w?to dro/mouj kai\ a)lhqei/hn a)poei/poi.

Aquiles no plaino
liso a meta lhes mostra, distante. Por árbitro,
põe Fênix, quase-um-deus, companheiro do pai,
a vigiar a corrida e atestar a verdade.268

O verso 361 pode ser ainda traduzido numa versão um tanto menos moderna. A

palavra memnéo269 provém de mimnésko270. O vigiar se refere ao prestar atenção à

corrida, não para atestar a verdade, mas para que se possa declarar como proclamação –

apoeípoi271 – o des-velamento – aletheíen272 – do resultado. Um tal vigiar assim é um

manter em lembrança ou, como diz o verbo mémnemai do qual mimnésko se deriva, um

manter conservado e preservado no desvelado. O manter em lembrança ou em memória

de mémnemai se dá como a própria conservação e preservação do que chega à alétheia.

O que se mantém e se conserva na e com a memória se torna a própria con-dição de se


267
Heidegger, 1992b:130. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 269.
268
Homero, 2002b:409. Ilíada, XXIII, 358-61.
memne/w.
269

mimnh/skw.
270

271
a)poei/poi.
272
a)lhqei/hn.
172

manter e se conservar a salvo da perda a manifestação do ser, o dar-se da alétheia.

Nesse sentido, a manifestação do ser se dá como memória. A memória, assim,

originariamente é sempre a memória do ser em virtude de sua própria manifestação. E

isto quer dizer: o que chega ao desvelado e aí se mantém como memória do ser preside

a própria poiésis enquanto o trazer e vir do sentido do ser no desvelamento de sua

presença. Nesse sentido, a origem essencial da poesia para o grego é Mnemósyne: nela a

alétheia acontece como a livre e primordial salvação e conservação do ser; sem ela o

próprio poetizar careceria do que poetizar uma vez que com a subtração da memória se

dá a própria subtração do ser. Para este se orienta toda poética como realização da

passagem do não-ser para o ser.

Por isso mesmo, o poeta não invoca as Musas, filhas da Memória, apenas como

um aspecto decorativo de sua poesia. Também não o faz por ser uma regra formular

para a conservação oral. Não é o oral nada de deficiente ou inferior ao signo grafado

para que necessite de fórmulas que garantam a conservação do que nele é dito. Muito ao

contrário, se conservação há em qualquer oralidade é porque esta vige como a instância

originária de manifestação, salvação e preservação da memória do ser através da palavra

e do dizer. Não é a palavra que necessita de conservação por meio de fórmulas, mas é

ela que deixa vir ao sentido e aí conserva o brilho manifestativo da memória do ser. O

ser não necessita de modo algum de objetos para sua concretização, mas a palavra para

isso lhe é vital. Tão pouco o poeta invoca a deusa Mnemósyne e suas Musas

simplesmente em virtude de uma introdução solene. Porém, o que há de proclamação

solene273 na invocação das Musas é a própria invocação da memória do ser que se

concretiza na palavra poética.

273
Cf. Castro, 1997:177-9, a respeito dos sentidos da palavra música.
173

(...) a proferição da palavra poética é o dito [der Spruch] e a canção [das Lied] do Ser
ele mesmo, e o poeta é apenas o e(rmhneu/j, o intérprete da palavra. O poeta não invoca a
deusa, mas ao contrário, mesmo antes de dizer sua primeira palavra é ele quem é invocado
e já mantém-se no interior do apelo do Ser versus o retraimento “demônico” do
encobrimento.274

O proclamar solene das Musas invocantes-invocadas aponta para a unidade275

como essência de toda solenidade, pois solene quer dizer: o que é con-sagrado. A con-

sagração é a sagração con-junta da própria unidade: unidade de memória e verdade

como unidade do ser, unidade do dar-se e retrair-se, de léthe e alétheia, e também de

deusa e poeta. Na unidade de tudo que é solenemente con-sagrado como unidade o ser

aparece como daimónion de todo ordinário. Esta palavra mal interpretada no ocidente

cristão mantém, na verdade, uma relação com o divino enquanto instauração do sagrado

em meio ao ordinário e remonta ao radical indo-europeu *dei276. Ora, o que este radical

diz é a presença do des-conhecido como o que brilha no conhecido, isto é, a presença do

extra-ordinário como o mistério subjacente ao ordinário. Na tradição mitopoiética o

sagrado se apresenta como ruptura do espaço e do tempo homogêneos. Essa ruptura

como o dar-se do extra-ordinário necessita radicalmente do ordinário para a

manifestação do mistério, não como algo a ser elucidado e esclarecido, mas do mistério

enquanto mistério, isto é, enquanto vigência retraente, como ilatência latente ou latência

ilatente. Por isso, coisas das mais simples e ordinárias deixam figurar o aspecto

misterioso do sagrado e do extra-ordinário, coisas como uma pedra ou uma árvore

podem perfeitamente ser o próprio advento do mistério.

O misterioso é aquilo do qual tudo que é ordinário surge, aquilo no qual tudo que é
ordinário é suspenso sem jamais decair, e aquilo para o qual tudo que é ordinário retorna.

274
Heidegger, 1992b:127. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 269.
275
Cf. Castro, 1997:179-84.
276
Cf. Capítulo II, p. 92.
174

277
To\ daimo/nion é a essência e o essencial fundamento do misterioso. Ele é o que se
apresenta no ordinário e toma nisto sua moradia. Apresentar-se no sentido de apontar e
mostrar é em Grego dai/w (dai/ontej – dai/monej)278.
Estes não são “demônios” concebidos como maus espíritos se debatendo; ao contrário,
eles determinam antecipadamente o que é ordinário, sem derivar-se do ordinário. Eles
indicam o ordinário e apontam para ele.279

Na proximidade do ente escapa o que é mais próximo, o ser. No entanto, é este

que configura todas as possibilidades do ente. Nessa ambigüidade o ser brilha nos entes

como a familiaridade da fisionomia do des-conhecido. Daío provém da raiz dao e quer

dizer iluminar, aparecer como luminoso. O luminoso vem ao encontro do olhar apenas

enquanto este apreende a fisionomia do que brilha e se ilumina. Por isso, o que vem ao

encontro do olhar como aspecto e fisionomia o faz antes de qualquer coisa porque o que

brilha é nada mais, nada menos do que a manifestação do sentido. Somente porque o ser

brilha, isto é, se manifesta em primeiro lugar como sentido, é que o próprio olhar é

capaz de apreender o aspecto.

Aspecto em grego é eidos, mas como idéa foi pensado como o que se configura

na imagem modelar racional e calculada do real no intelecto. No entanto, aspecto

enquanto eidos não pode em grego ser pensado como uma vigência oriunda do cálculo

racional do intelecto, mas o aspecto daquilo que cheio de sentido manifesta o ser. Por

isso, o que vige em plenitude de sentido diz uma e a mesma coisa, a saber, plenitude de

ser. Manifestar o sentido é, portanto, a conjunção da unidade de alétheia e lógos de tal

modo que a tradição poética grega está confiada não à imagem modelar do que se

formou no intelecto calculante e racional, mas à saga da palavra. Antes mesmo de

adquirir uma vigência puramente intelectiva, se é que isto é possível, a poiésis des-vela

o ser pelo e no dizer manifestativo, isto é, aponta para o aspecto, o perfil (eidos) que
277
Tò daimónion.
278
Daío (daíontes – daímones)
279
Heidegger, 1992b:102. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 270.
175

brilha como sentido do ser. Por isso, a poiésis é uma onto-logo-fania, a unidade do ser,

do dizer e do manifestar, a unidade originária do trivium originário de phýsis, lógos e

alétheia. Este trivium constitui o ethos grego. A preservação e a conservação dessa

unidade originária do sentido, a essa salvaguarda chamam os poetas Mnemósyne, e a sua

proclamação sagrada, Musas.

A Memória, nesse sentido, não é um fenômeno bio-fisio-lógico que possa ser

classificado ou qualificado como efeito da vida humana. Sendo conservação e

preservação do ser, a Memória simplesmente não se encaixa no esquema re-

presentacional de causa e efeito das ciências naturais, a despeito da exploração

crescente da bio-tecnologia. É que toda ciência objetiva acima de tudo dispor o que se

apresenta no des-velado como um dispositivo que representa tecnologicamente a

memória como um conjunto de operações bio-fisio-lógicas. Essa representação bio-

fisio-lógica do dispositivo técnico da memória segue o curso pré-determinado da

medida e da identidade.

A memória se mede, como na teoria da informação, em “bit”, quer dizer, o número de


opções sim/não que são necessárias para eleger um conjunto, por exemplo, de signos
disponíveis. Sendo a base dois (pois há somente duas opções) o número de “bit” é a
potência a que tem de ser elevada essa base para que dê como resultado o número de
signos. Ou, expresso ao contrário, o “bit” é o logaritmo do número de signos dado. No caso
de 32 signos, por exemplo, seria 5 bit, ou seja 2 com a potência 5 = 32. A capacidade que
tem a conciência de perceber, por exemplo, sinais acústicos, luminosos, etc., se considera
aproximadamente 160 bit e a capacidade de memória se considera em aproximadamente 10
com a potência 6 bit.280

Trata-se de uma re-presentação que ilustra perfeitamente o tipo de sentido que se

pretende alcançar num raciocínio abstrato puro. A abstração consiste em se estabelecer

o sentido do que quer que seja, inclusive da memória, através da re-presentação do

conceito elaborado lógica e racionalmente. Nessa re-presentação se dá antes de tudo

280
Capurro, 1983. Tradução nossa. Cf. original na p. 270.
176

uma pré-determinação do sentido da memória, isto é, a memória é tomada como registro

ou local de armazenamento de registros no cérebro e como tal, é uma propriedade do

sistema nervoso central cujas disfunções e patologias químico-orgânicas podem, por

exemplo, levar à perda de “informações”, isto é, de bits de memória. A memória na re-

presentação tecno-bio-fisio-lógica não passa de local de armazenamento de bits de

informação e jamais poderá ser a salvação e conservação do próprio ser em sua

manifestação de dar-se e retrair-se. Já aí mesmo reside um grande inconveniente: o bit

de informação só pode ser sim ou não, zero ou um. Não há meio termo, muito menos os

dois termos simultaneamente. Isto contrariaria por completo as leis da razão que se

potencializam desde Platão como instância de dimensionamento do real.

Há que se assinalar, no entanto, que esta forma é apenas a mais grosseira das

armações de sentido de mundo a partir do predomínio unidimensional da técnica

moderna. Não apenas isso, mas se trata da mais grosseira redução da linguagem do

sentido do ser à mera precisão da significação terminológica. Essa mais grosseira re-

presentação da memória como local de armazenamento e recuperação da linguagem

como pura informação é o primeiro e mais evidente reflexo do domínio das ciências da

natureza enquanto sistemas de representação sobre a concepção moderna de mundo. A

violência dessa representação se dá como tal apenas por ser gritante o caráter

instrumental da técnica como mecanismo de controle que busca comprometer o homem

cada vez mais com o desencobrimento281 apenas.

Pelo projeto matemático da natureza (...) e pelo questionamento experimental da


natureza que corresponde a esse projeto, a natureza é provocada a dar respostas segundo
relações determinadas; é, por assim dizer, obrigada a falar (zur Rede gestellt). A natureza é
obrigada a manifestar-se numa objetividade calculável (Kant).282

281
Cf. Heidegger, 2001:24.
282
Heidegger, 1995b:25-6.
177

O caráter instrumental da técnica tem a finalidade de conferir a utilidade e o

controle sobre os meios de produção e seu conhecimento, sendo esse caráter

instrumental operatório e abstrato. A representação antropológica-instrumental da

técnica é exata e por isso passa a uma vigência de pensamento que se faz lei. Como tal,

dificulta qualquer objeção em virtude de seu caráter de exatidão.283 Esta é uma exatidão,

porém, que não co-responde a divinação da Memória. Divinar aqui quer dizer: trazer ao

brilho do aspecto o que se des-vela no desoculto como sentido do ser. Em toda forçação

ao exato na armação de mundo pela técnica não há espaço, nem tempo mais para a

divinação e, portanto, para o sagrado. A conversão de toda memória em bit de

informação pretende exaurir por completo qualquer possibilidade que divinando, escape

ao zero/um, ao sim/não, que escape à estrutura representacional do mundo e de

asseguramento do real.

O poeta, no entanto, como poeta da Memória do ser manifesta uma outra

instauração de mundo:

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá


mas não pode medir os seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem
nos encantos de um sabiá

Quem acumula muita informação perde o condão de


adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam.284

Esse divinar é o condão não de refletir sobre as coisas, mas de sê-las, como o

próprio poeta disse anteriormente. Não se pode de modo algum, entretanto, confundir

aqui esse refletir com o próprio pensar. Aqui, refletir significa calcular, isto é, o modo

283
Cf. Heidegger, 1995b:17-20.
284
Barros, 2000, p. 53.
178

de toda representação técnica moderna assegurar o real como pre-visibilidade. Não é

diferente, desde o encaminhamento subjacente a Platão – a mudança do sentido da

verdade, como des-encobrimento que preserva a latência, para a verdade como correção

e semelhança – que a ciência moderna se apresente como teoria do real285 a partir do

cálculo da medida.

Uma frase de Max Planck diz: “real é o que se pode medir”. Isso significa: a decisão
do que deve valer, como conhecimento certo para a ciência (...), depende da possibilidade
de se medir e mensurar a natureza, dada em sua objetidade e, em conseqüência, das
possibilidades dos métodos e procedimentos de medida e quantificação. Esta frase de
Planck só é correta por expressar algo que pertence à essência da ciência moderna e não
apenas das ciências naturais. O cálculo é o procedimento assegurador e processador de toda
teoria do real. Não se deve, porém, entender cálculo em sentido restrito de se operar com
números. Em sentido essencial e amplo, calcular significa contar com alguma coisa, ou
seja, levá-la em consideração e observá-la, ter expectativas, esperar dela alguma outra
coisa. Nesse sentido, toda objetivação do real é um cálculo, quer corra atrás dos efeitos e
suas causas, numa explicação causal, quer, enfim, assegure em seus fundamentos, um
sistema de relações e ordenamentos.286

Esse enquadramento forçoso do que é teoria e do que é o real intima e provoca a

memória a co-res-ponder como “bit”, isto é, como objeto representado, como

informação armazenada e passível de recuperação. Nesse sentido, o próprio homem

permanece refém de toda intimação e provocação da técnica na medida em que ele

mesmo se torna agente desse provocar e desse intimar.

Por isso, na modernidade do ocidente a memória não somente é tratada como um

fenômeno bio-fisio-lógico, mas em virtude da própria dualidade vigente entre físico e

psíquico não apenas nas ciências naturais287, mas fundamentalmente na própria cisão

sensível/inteligível efetuada por Platão, a memória é também categorizada como um

fenômeno psico-lógico da subjetividade humana.

285
Cf. Heidegger, 2001:40.
286
Heidegger, 2001:49-50.
287
Cf. Capurro, 1983.
179

O “descobrimento” freudiano do inconsciente sinaliza com uma dimensão fundamental


do existir humano, mas em vez de concebê-la desde a rede de relações temporais do homem
com o mundo, uma rede que chamamos linguagem, a concebe (em suas explicitações
teóricas) desde a subjetividade moderna.288

A concepção moderna da subjetividade se funda na verdade como o que

corresponde ao que vige pelo cálculo e pela razão na auto-consciência e da consciência

do sujeito. O sujeito é, pois “aquilo o que subsiste no fundo, o que subsiste como

fundamento, para um enunciado sobre ele”289. Desse modo, a memória possui o seu

correspondente à representação bio-fisio-lógica como uma re-presentação psíquica e a

dualidade físico-psíquica do homem pode perfeitamente ser intimada ao real como o

que se pode medir e calcular.

No entanto, todo cálculo que identifica e re-presenta o faz mediante o que está

dado de antemão. Nesse sentido, por exemplo, calcula-se e re-presenta-se a natureza

como fonte de energia. Mas a natureza mesma é ambígua, uma vez que entregue a si

mesma jamais poderia decidir sobre essa possibilidade e, no entanto, ao mesmo tempo,

essa é uma possibilidade que primeiramente à própria natureza pertence, a saber, o

abrir-se à possibilidade de aparecer e surgir no des-oculto como fonte de energia. Sem

tal condição prévia, cálculo e re-presentação nada poderiam calcular e re-presentar a

respeito da natureza como fonte de energia. Muito embora se tenha em conta cálculo e

representação como as atividades mais elevadas e próprias do “espírito”, ainda assim

não se pode contornar o fato de que ele mesmo é um surgimento que se funda na própria

phýsis e com ela se mantém em conflito e tensão.290 Por isso, o surgir da natureza como

fonte de energia chega até esta possibilidade, não pela técnica, mas antes de tudo pela

288
Capurro, 1983. Tradução nossa. Cf. original na p. 270.
289
Heidegger, 1999b:21.
290
Cf. Heidegger, 2000a:116-7.
180

abertura de constituição de sentido que se dá em meio ao que a própria existência é.

Nessa abertura o mundo se funda sobre a terra e a terra irrompe no mundo, isto é, o que

se constitui como sentido do ser se funda sempre sobre o que sendo fundante se retrai e

se recusa na latência. O irromper da terra no mundo como fonte de energia chega ao

sentido do ser na linguagem. É esta que concretiza o perdurar no des-velamento do que

se des-vela na natureza como energia. Nesse sentido, o predomínio técnico da teoria do

real não funda absolutamente nada, ao contrário, depende do que lhe é prévia e

independentemente dele trazido e oferecido como des-velado na linguagem para então

só depois restringir toda e qualquer interpretação do des-velado como exatidão e

funcionalidade. O surgir da natureza só ganha sentido na linguagem, de tal forma que a

linguagem se constitui no aberto em que mundo e terra se entregam mutuamente ao

combate de presença e retraimento291. Nesse embate que acontece no âmago da saga da

linguagem vige a deveniência indizível de ser como preparação da própria saga.

Se se imaginar, por um instante, um campo antes que existissem homens e

animais, seria possível pensar que o campo fosse o mesmo tal qual o é hoje.292

Colocando-se nele, por exemplo, lebres que agora encontram raízes para se

alimentarem, o mesmo campo se constitui daí em diante como algo diferente, a saber,

como fonte de alimento. Porém, a própria lebre não sabe nada do campo, nem mesmo o

sabe como fonte de alimento. Isto quer dizer: não sabe o campo como possibilidades de

ser e existir. Não o sabe, não por que lá no campo não viva, não se alimente, não se

reproduza e não chegue em algum tempo a morrer. No entanto, o viver, o alimentar-se,

o reproduzir e o morrer não alcançam a lebre como sentido, mas apenas como pré-

291
Cf. Heidegger, 1990:46ss.
292
A ilustração do campo é transportada aqui do filósofo alemão Erich Rothacker (Gedanken über M.
Heidegger, 1973) citado por Capurro, 1983.
181

determinações de uma configuração comportamental que para a ciência moderna se

circunscreve ao âmbito pura e exclusivamente da re-presentação bio-fisio-lógica. Tais

pré-determinações, se tomadas no sistema de intelecção e re-presentação darwinística,

precisariam de milhões, talvez bilhões de anos para se alterarem em alguma extensão.

Este confinamento de possibilidades não é nenhuma maldade da natureza para com o

pobre animal, mas diz antes de tudo de uma ausência: a ausência da linguagem. A

linguagem funda o mundo por que deixa o ser se des-velar como sentido. Pois, somente

no que na linguagem é linguagem é que se pode viver, alimentar-se, reproduzir e até

mesmo morrer e isso, por que somente na linguagem estas coisas ganham o sentido

existencial de sabê-las. O des-velamento do sentido do ser na linguagem é de tal ordem

que é apenas nela que inclusive se pode chegar mesmo a calcular e re-presentar o real.

Pois, é a linguagem que permite que o campo, outrora apenas um campo, possa agora,

com a introdução da lebre, ser levado em conta também como fonte de alimento para a

vida zoo-lógica. A linguagem nomeia o ser e isto quer dizer: a linguagem traz ao des-

velamento o que brilha como aspecto, não como imagem per se, mas como “o perfil que

uma coisa é e se mostra, a visão que é e se oferece”293 como sentido de mundo, seja este

uma intelecção calculável e re-presentacional ou não. Mas aquém e além de toda

representação do intelecto, a linguagem pro-duz, isto é, poetiza o sentido do ser e nela o

homem chega a constituir mundo. “Pois a verdade”, a manifestação do ser, “acontece na

medida em que se poetiza”.294

Mas a Poesia não é nenhum errante inventar do que quer que seja, não é nenhum
oscilar da mera representação e imaginação no irreal. O que a poesia, enquanto projeto
clarificante, desdobra na desocultação e lança na ruptura da forma, é o aberto que ela faz

293
Heidegger, 2001:45.
294
Heidegger, 1990:58.
182

acontecer e, decerto, de tal modo que, só agora o aberto em pleno ente traz este à luz e à
ressonância.295

Se a poesia é o projeto clarificante, isto é, se traz o ente ao aberto da existência

em que se dá o conflito de mundo e terra na linguagem, então o que é o mais próprio da

linguagem é então, não uma mera comunicação e expressão de coisas, idéias,

sentimentos ou situações, mas o próprio advento do ser dos entes como sentido que

neles se con-stitui. Por isso, pode-se dizer, ao contrário, que “onde nenhuma linguagem

advém, como no ser da pedra, da planta ou do animal, também aí não há abertura

alguma do ente e, conseqüentemente, também nenhuma abertura do não-ente e do

vazio”.296 Por isso, também não há aí nenhuma instauração do poético como o projeto

fundante e clarificador do que é mais próprio da linguagem.

Só na medida em que a linguagem nomeia pela primeira vez o ente é que um tal
nomear traz o ente à palavra e ao aparecer. Semelhante nomear nomeia o ente para o seu ser
a partir deste. Um tal dizer é um projetar do clarificado, no qual se diz com que
consistência o ente vem ao aberto. Projetar é a libertação de um lançar e é como tal lançar
que a desocultação se ajusta ao ente enquanto tal. O dizer projetante (Ansagen) torna-se ao
mesmo tempo a recusa de toda confusão, na qual o ente se vela e se recusa.
O dizer projetante é Poesia: fábula do mundo e da terra, a fábula do espaço de jogo do
seu combate e, assim, do lugar de toda a proximidade e afastamento dos deuses. A Poesia é
a fábula da desocultação do ente.297

Mas não somente de um outro ente, ao modo de símbolo e alegoria, mas do ente

que a própria obra poética é. Nisso reside o dado máximo de con-creção do real, a saber,

que a poiésis aconteça o ser em sua plenitude de sentido.

Por isso, a memória como fenômeno psico-lógico não leva em conta que o

homem não re-memora a re-presentação das coisas, mas sim as coisas mesmas como

manifestação do sentido do ser. As coisas se apresentam no espaço aberto da linguagem

295
Heidegger, 1990:58.
296
Heidegger, 1990:59.
297
Heidegger, 1990:59.
183

a que se chama de existência. Como tal, a existência é exclusivamente humana. A pedra

é, o animal é e até mesmo Deus é, mas somente o homem existe. Existir quer dizer saber

de sua existência como um ser-para-a-morte. Somente o homem sabe que seu ser sobre

esta terra finda com sua própria morte. Por isso, a existência, esse ser que se encontra

entre duas ausências298, é na e com a inguagem a própria essência do homem.

Só se pode dizer ec-sistência da Essência do homem, isto é, do modo humano de “ser”,


pois somente o homem, até onde alcança nossa experiência, foi introduzido no destino da
ec-sistência. Por isso também a ec-sistência nunca pode ser pensada como uma espécie
particular entre outras espécies de seres vivos, suposto, naturalmente, que foi destinado ao
homem pensar a Essência de seu ser e não, apenas, fazer relatórios sobre a natureza e a
história de sua constituição e de suas atividades. Assim, na Essência da ec-sistência, se
funda também o que, em comparação com o “animal”, se atribui ao homem, como
animalitas. O corpo do homem é algo Essencialmente diferente de um organismo animal.
Não se supera o erro do biologismo, ajuntando-se ao corpo do homem a alma e à alma, o
espírito e ao espírito, o existentivo, nem por se proclamar mais alto do que antes, o apreço
pelo espírito, para, logo a seguir, reduzir tudo à vivência da vida, garantindo-se numa
advertência, que, com seus conceitos rígidos, o pensamento destrói o fluxo da vida e o
pensamento do Ser deturpa a existência. Que a fisiologia e a química fisiológica possam
investigar o homem, como organismo, à sua maneira, ainda não prova que a Essência do
homem esteja nesse “orgânico”, isto é, no corpo explicado cientificamente. Isso é tão pouco
exato, como julgar-se que na energia atômica reside a Essência da natureza. Pois pode
muito bem ser que a natureza esconda sua Essência precisamente no lado em que se presta
ao controle técnico do homem. Assim como a Essência do homem não consiste em ter ele
um organismo animal, assim também não se pode eliminar ou compensar essa
determinação insuficiente da essência do homem, dotando-o de uma alma imortal ou da
força da razão ou do caráter da pessoa. Sempre, em todos esses casos, se passa à margem –
e em razão do mesmo projeto metafísico – da Essência do homem.299

Por isso, a memória não se deixando apreender pelo bio-fiso-lógico, também não

se permite reduzir ao psico-lógico. A memória não é assim a recuperação dos bits re-

presentacionais dos objetos de um mundo separado do sujeito. Nem a memória, nem o

esquecimento estão sob o arbítrio da vontade racional. A memória independe da

vontade do sujeito e isto quer dizer, independe daquilo que na tradição onto-teo-lógica

da metafísica subsiste como fundamento. Por isso, se são as coisas que pela memória se

298
Capurro, 1983.
299
Heidegger, 1995a:41-2.
184

apresentam como coisas, é por que em primeiro lugar o homem já se encontra

previamente numa abertura de mundo na linguagem.

(...) não é possível reduzir este fenômeno ao nível “psicológico” no sentido de que se
trata meramente do esquecimento ou recordação de representações intrapsíquicas do mundo
exterior, nem tão pouco ao nível “psicológico” (...) no sentido de uma característica do
comportamento humano.
Memória e esquecimento devem considerar-se (...) como fundados na abertura mesma
da existência humana, uma abertura (...) que é muito diferente do estar aberto de um
recipiente, o qual não constitui com sua abertura uma rede de relações, nem é capaz de
abrir-se ao presente como presente. Esta abertura humana implica em poder estar aberto ao
passado como passado, o qual possibilita toda a recordação. O homem constitui desde o seu
presente a diferença de passado e futuro.300

Em toda re-presentação bio-fisio-lógica ou psico-lógica a Memória não advém

propriamente a uma temporalidade. Como se discutiu nos Capítulos I e II, a re-

presentação do conceito é inespacial e atemporal. Se por um instante, num esforço se

pudesse imaginar uma coisa qualquer, um rio, por exemplo, absolutamente desprovido

do tempo, este sequer chegaria a se constituir como tal, isto é, jamais chegaria à

vigência de ser. É o tempo que permite que homem e coisa se manifestem como tais.

Nesse sentido, a temporalidade se dá como horizonte do ser. A temporalidade permite

engendrar a manifestação da diferença como o próprio advento do ser do ente. Tempo e

diferença estão numa mútua e essencial referência. Não é possível, portanto, acercar-se

de uma compreensão do tempo como horizonte do ser sem sua referência à diferença,

pois é esta que ao se manifestar no tempo deixa aparecer o que é o próprio ente. O

tempo manifesta a diferença do ser. Como reunião da temporalidade, a Memória reúne e

desencadeia toda possibilidade de dar-se da diferença, não somente entre passado,

presente e futuro, mas principalmente da diferença entre ser e ente. Por isso mesmo,

como possibilidade mais própria da existência humana na sua abertura poética de

300
Capurro, 1983. Tradução nossa. Cf. original nas p. 270.
185

linguagem, a Memória como manifestação do presente e do ausente em seu sentido

próprio se mostra como fenômeno ontológico.

Por diferença à concepção “ordinária” ou “unidimensional” do tempo, vemos que


originariamente o homem se abre à dimensão do passado como algo que ele não pode
eliminar e que é conservado na abertura da existência humana de tal maneira que inflige
constantemente o presente e também o futuro. Desde essa recordação do ausente e desde
sua presença no presente perguntava Hölderlin em vistas ao futuro: “para que poetas em
tempos de escassez”.301

Talvez a própria resposta esteja cifrada no mesmo poema: “para que no tempo

vacilante, na obscuridade algo nos seja um apoio”302. Este apoio não é de modo algum

um porto seguro das re-presentações e dos conceitos com os quais se pretende controlar

e assegurar o real, pondo-o como algo medido e calculado. Muito pelo contrário, a

estrofe em que aparece esse verso de Hölderlin narra a noite, não uma noite de sono,

nem mesmo uma noite de vigília em que pretensamente tudo se quer ver, mas uma noite

sagrada, aquela em que por ser sagrada mais uma vez convém que seja con-sagrado não

somente coroas, mas também o canto.303

Música e Memória

Na con-sagração dessa noite no canto acerca-se dos primórdios, do que não

cessa de originar.

Carrego meus primórdios num andor.


Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.304

301
Capurro, 1983. Tradução nossa. Cf. original nas p. 270-1.
302
Hölderlin, Brot und Wein, 2 vv. 13-4.
303
Hölderlin, Brot und Wein, 2, v. 10.
304
Barros, Livro sobre o nada, p. 47.
186

O canto con-sagrado na noite é memória das origens. A memória ressoa no canto

as origens. Esse ressoar das origens em meio ao que no canto é canto diz música. Esta,

conjuntamente à poesia, à dança e ao drama é o ventre da memória305. Na origem não

reside apenas a palavra, mas o seu criançamento. Este criançamento de modo algum diz

de uma imaturidade ou de uma ingenuidade pressupostamente atribuída à criança. O

poema passa muito longe aqui de uma noção da infantilidade de um sujeito que ainda

não se encontra “desenvolvido”, do indivíduo que se encontra ainda na fase da infância

e, portanto, numa condição imatura. Criançamento nomeia aqui o processo sempre

vigente de latência da origem como permanente referência da palavra. Não é por acaso

que Hermes é para os gregos uma criança divina; também não é acaso que Apolo,

Dionísio e o próprio Zeus apareçam e se presenteiem aos gregos arcaicos como crianças

divinas.306 A criança nada mais é além do dar-se da proximidade para com a origem, o

que se dá como fonte de todo começo. Esta referência à origem como criançamento diz

o que na palavra está sempre incipiente, diz o que incessantemente está a se principiar.

Mas porque é origem, ela se dá necessariamente de tal modo que se oculta a si mesma.
Pois uma origem se manifesta por seu dar-se adiante. Mas o que é mais próximo a esse dar-
se adiante é o que dele brotou. A origem o liberou de si mesma, mas de tal modo que a
origem não se mostra a si mesma naquilo que ela liberou, mas antes oculta a si mesma e
retrai-se atrás dele.307

A origem permanece latente e, por isso, em tensão com aquilo que ela origina,

com o que vige como i-latente. Criançamento aqui diz então, um retorno que inicia, um

remeter-se à origem para novamente principiar. Diz também e, sobretudo, o reenvio de

toda perspectiva de sentido às instâncias latentes-fundantes da palavra enquanto o que

vem à voz como desvelamento, com i-latência do sentido. No criançamento da palavra o


305
Heidegger, 1968:11.
306
Cf. Kerényi, 1992:25-69.
307
Heidegger, 2000a:116. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 271.
187

sentido do ser é um andor, isto é, uma instauração do sagrado. Nessa instauração, o que

con-sagra o sentido é o canto e o que nele é o canto, isto é, música. Nos cantos da

memória se dá a con-sagração do a-ser-pensado.

Mnemósyne, filha de Céu e Terra, tornou-se como esposa de Zeus em nove noites a
mãe das Musas. (...) Evidente que esta palavra significa algo mais que apenas aquilo que a
Psicologia determina como capacidade demonstrável de reter uma representação mental do
passado. A Memória [Gädachtnis] pensa rememorantemente [denkt an] o pensado [das
Gedachte]. No entanto, como o nome da Mãe das Musas significa “Memória”, não um
pensar arbitrário de qualquer coisa possível de ser pensada. A Memória é a reunião do
pensamento naquilo que em todo lugar e em primeiro lugar quer ser pensado. A Memória é
a reunião do pensar que comemora [Andenken]. Ela salva [birgt] por si e vela [verbirgt] em
si aquilo que a cada vez e antes de tudo ao pensar é, em tudo que se desdobra e nos apela
como tendo ser [Wesendes] e tendo sido [Gewesendes] concedido: Memória, a Mãe das
Musas: o pensar rememorante [Andenken] do que se destina ao pensar [zu-Denkende] é a
fonte-fundante da poesia.308

A con-sagração do a-ser-pensado, habitação na origem do que latente vige no i-

latente, no originado. A memória de todas as memórias é também e a um só tempo a

memória em que se dão as mais fundas possibilidades de todo esquecimento. A

memória ontológica manifesta e, por isso mesmo, retrai e oculta a con-juntura

interdependente de origem e originado, de ocultação e desocultação. Pois a origem nada

mais é do que a ocultação que des-oculta e o originado a des-ocultação que oculta. Na

tensão recíproca de origem e originado advém a par-úsia auto-velante do ser. Esta par-

úsia se concretiza na tensão recíproca do surgimento que, eclodindo, gestando e

engendrando um real multi-forme, retira-se no in-forme que a tudo re-siste. Na re-

sistência do in-forme é a linguagem que in-siste criançar o ser dos i-latentes nas fontes

latentes. O que na linguagem é essa in-sistência em direção ao re-sistente, o que para ele

in-site tender-se nunca foi pelos gregos nomeado com palavra semelhante ou

correspondente a linguagem. Mas, o sentido desse mútuo tender-se e per-sistir-se de

latência e i-latência, de origem e de originado, da mútua im-plicação de memória e

308
Heidegger, 1984:7. Tradução nossa. Cf. original na p. 271.
188

esquecimento, de surgimento e retraimento, isso o compreenderam os gregos com a

palavra lógos. O lógos, sentido tensional do ser e do não-ser.

Nesse conflito, a habitação do próprio ser como possibilidade de

engendramento. O mito de Zeus e Mnemósyne é a mais perfeita narrativa desse

engendramento, na medida em que traz e traciona o sentido em toda re-tração fugidia do

dar-se da origem como originado e do simultâneo retrair-se do originado à origem. Com

a palavra lógos não se cunhou uma de-finição qualquer que se pudesse posteriormente

sobre ela se estabelecer uma ciência. É que em toda a ciência como permanência do

conhecimento há uma dupla negação da origem, por mais paradoxal que possa parecer.

A primeira negação consiste em se negar precisamente com a ciência a auto negação da

origem enquanto fonte que se retira e retrai. Por isso mesmo, nega-se, portanto, o

originado como o que foi da origem e por ela mesma liberado. É que em toda ciência do

conhecimento se faz necessário um constante posicionar do originado em relação à

própria origem de tal modo que dele ela nunca saia de tela. Nega-se, portanto, com a

ciência do conhecimento a liberação e o estar lançado do originado. Esta negação

converge para a apreensão do conhecimento como o conjunto do que é conhecido e

nisso consiste uma marcação de posição. No entanto, o lógos não é posicionamento fixo

de normas que regulam a relação de origem e originado, mas antes, a reunião e dis-

posição de origem e originado, de latente e i-latente como sentido do próprio ser. Dis-

por aqui quer dizer ao mesmo tempo um dis-tender, um des-dobrar de origem e

originado. O “e” aqui também quer dizer “em” e por isso, o dis-tender não é apenas um

des-dobramento, mas também um des-dobramento porquanto um oferecer – dis-tender

– que se nega como oferecimento – dis-tender. Por isso, lógos não é uma palavra que

possa significar qualquer coisa para a ciência do conhecido se compreendida em sua


189

perspectiva originária de apreensão do sentido do desvelar auto-velante do ser. Nessa

perspectiva, latência e i-latência compõem a reunião do que se dis-põe e dis-põe o que

se reúne. O lógos traz o ser como vigência do sentido, mas não exclui do sentido do ser

o seu retraimento, sua ocultação, sua não-vigência.

Mnemósyne sacraliza a incumbência a si dispensada de com-por o lógos do real

como sentido de uma vigência que se manifesta não somente como des-velamento

cósmico do ser, mas que mantém em contínuo aprofundamento ctônico a referência

caótica das origens enquanto pura possibilidade de engendramento. A perpetuação da

memória de Zeus reside justamente na dependência que liga seu feito olímpico vitorioso

sobre os titãs à sua latência caótica obscura e subterrânea. Em Zeus e com ele se dá o

criançamento que matura e a maturação que acriança e que a cada vez se aprofunda na

proximidade da origem. Mnemósyne diz, portanto não somente respeito de um

movimento de superação do olímpico sobre o titânico, do cosmos sobre o caos, mas

essencializa o ctônico sob o olímpico e o caótico sob o cósmico.

A memória de Zeus não pode então ser puramente uma coisa ou outra, mas antes

a mais pura imbricação de uma e outra. Isto quer dizer, que na mais extrema oposição

dos opostos toda precisão da significação cede a toda amplitude e diversidade do

sentido. A sagrada incumbência sempre a ser refeita por Mnemósyne é a preservação,

um manter a salvo da sacrossanta memória da radical abertura de sentido entre os mais

extremos e opostos como a pura ambigüidade multiforme do sentido do ser. A memória

diz que só o ser configura sentido, mas que com o ser mesmo dá-se o inaudito de seu

próprio retraimento e inapreensibilidade como com-ponente integrante e inexpurgável

do sentido.
190

O parentesco de música e memória vai, portanto, muito além da simples

radicação lingüística. A palavra música não somente apresenta uma raiz comum com a

memória através da palavra Musa, mas é ela a musa de todas as musas309. Não se quer

dizer com isso que se queira instaurar aqui mais uma hierarquia das artes, a exemplo de

tantas outras na tradição filosófica ocidental. Muito ao contrário, isso quer dizer que na

música se dá a manifestação de sentido de um modo que a perfaz completamente e que

permite que nela se entreveja o que se apresenta como essencial em todas as artes. Por

isso, a afirmação de que “as artes são todas musicais e são arte na medida de sua

musicalidade”310, não as diminui em relação à música e tão pouco as aumenta em valor.

Nelas se manifesta o que na música é o mais pobre, o mais simples, aquilo que nem

mesmo é, mas tão-somente se dá, sem mais: o poético por excelência, “o mais alto grau

de realização de qualquer real”311. A música é o sagrado nome da realização do real.

Nessa realização do real, nessa poiésis do ser, a proximidade para com a origem

é sem dúvida o mais desconcertante e por isso, ao mesmo tempo, o mais grávido de

sentido. Aí acontece o mais radical criançamento da palavra, na medida em que na

música está em obra o acontecimento apropriante da verdade como essência de toda

linguagem, o trazer do ser à plenitude de sua realização, sua manifestação de sentido.

Carrego meus primórdios num andor.


Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.

309
Leão, 1991:43.
310
Ibid.
311
Ibid.
191

Abrir um descortínio para um arcano.312

Lá mesmo onde a palavra falta abre-se um descortínio para um arcano. Não quer

isto dizer que não havendo terminologia com a qual se possa nomear algo, a própria

coisa deixa de ser. Na verdade, aqui se pensa algo di-ferente da compreensão comum da

palavra como termo, vocábulo ou unidade de um determinado léxico. A di-ferença é

aqui posta como dimensão aberta pela re-ferência mútua e fundante de Memória, Musas

e Música. O que se funda aqui não é de modo algum um fundamento, não é de modo

algum um conjunto de princípios e leis básicas de funcionamento de um sistema de

intelecção racional e re-presentação do real que se reúne num agrupamento de

conhecimentos. O que se funda aqui é o que brota e eclode no próprio retraimento des-

encobridor das origens. Nesse des-encobrimento retraente permanece a vigência

vigorosa do que se consente ao pensamento como o a-ser-pensado. A essa vigência o

pensamento não é apenas um questionar, mas muito mais que isso, um escutar.

Caracterizar o pensamento como escuta é algo que soa muito estranho e também não
chega a atingir a clareza aqui necessária. Mas justamente o que constitui o próprio da escuta
é de só receber definição e clareza daquilo que pelo consentimento apresenta um sentido.
Algo já se mostra aqui: a escuta assim descrita é o consentimento entendido como o que se
apropria no dizer e sua saga, com a qual a essência da linguagem está aparentada.
Conseguindo visualizar a possibilidade de uma experiência pensante com a linguagem,
podemos adquirir mais clareza sobre em que sentido o pensamento é escuta do
consentimento.313

O faltar da palavra muito menos quer dizer então o próprio faltar da linguagem.

Língua e linguagem não são equivalentes. Esta não se reduz àquela. Ao contrário, até

mesmo para se chegar a pensar os léxicos das línguas e as unidades dos léxicos como

terminologia e vocábulo é preciso que antes de tudo a própria linguagem já se tenha

consentido com escuta de todo pensamento. Isto vale também para a própria palavra na
312
Barros, Livro sobre o nada, p. 47.
313
Heidegger, 2003:139.
192

medida em que se dá como consentimento da linguagem como di-ferença entre ser e

ente, isto é, a dimensão inaudita do real outorgada como palavra da linguagem.

A palavra é ela mesma a relação que a cada vez envolve de tal maneira a coisa dentro
de si que a coisa “é” coisa.
(...) “Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar” indica a relação entre palavra e
coisa desde que se tome a palavra como sendo ela mesma a relação, à medida que cada
coisa se atém ao ser e ali se mantém.
Dissemos (...) que a “palavra” não apenas está em relação com a coisa, mas que a
palavra leva cada coisa enquanto ente que está sendo para esse “é”, nele a sustentando, a ele
se relacionando, nele propiciando à coisa a garantia de ser coisa.314

A linguagem consente a palavra como relação que traz a coisa a seu ser. Em todo

consentimento da linguagem se dá uma experiência radicalmente diferente daquela que

determina a linguagem como comunicação e expressão de idéias, sentimentos e

situações, quer dizer, diferente da concepção de linguagem como uma posse e um ato do

sujeito do conhecimento. No entanto, como é estranha essa posse, já que na medida em

que é a própria linguagem que se apodera do “sujeito” negando-lhe até mesmo a decisão

de descartá-la e não mais possuí-la. Mesmo que não se escreva mais nenhuma linha,

mesmo que não se profira mais nenhuma palavra, a linguagem veda ao homem a

possibilidade de des-possuí-la. Nesse sentido, seria muito mais esclarecedor dizer que

não é o homem que possui a linguagem, mas sim o contrário, a linguagem é que possui

o homem. Essa posse deve ser então algo que extrapola a própria concretização do ato

da fala, algo tão radical que vige até mesmo nas acepções etimológicas da palavra.315 É

que como consentimento que se dá e que dispõe o próprio à escuta antes mesmo que um

questionar, a linguagem se dá como um vigência pré-significativa.

Se devemos pensar a essência da linguagem, a linguagem haverá de primeiro


consentir-se ou mesmo já ter-se consentido para nós. A linguagem deve ao seu modo dar
indícios de si mesma – a sua essência. A linguagem vigora como essa indiciação. Já sempre

314
Heidegger, 2003:136, 146.
315
Cf. Buck, 1988:1261-62.
193

escutamos a linguagem, embora não pensemos nisso. Se não escutássemos por toda parte a
indiciação da linguagem, não poderíamos usar nenhuma palavra da linguagem. A
linguagem vigora como essa indiciação. A essência da linguagem dá notícia de si mesma
como indício, como a linguagem de sua essência.316

Somente pelo fato da linguagem se consentir ao homem numa vigência pré-

significativa é que ele não pode de modo algum despojar-se dela. Isto quer dizer, que a

linguagem constitui sentido mesmo antes que o próprio homem possa dela se apossar

como mera significação terminológica, como mera justaposição de unidades de um

determinado léxico, como mera parabola, palavra. Por isso, a linguagem se mantendo

aquém da posse de um discurso simplesmente alegórico preserva o ser como advento

mais essencial do sentido. Por isso, também, o poeta pode criançar as palavras a ponto

de chegar a instância pré-significativa do sentido e da linguagem como habitação e

morada do ser. Por isso, o estame do som não é de modo algum a freqüência de

vibrações do ar re-presentada num cálculo numérico qualquer, mas a remissão essencial

do sentido inaudito da linguagem, o garatujar do que não se tem. Somente aí se dá o

descortínio de um arcano, do mistério da adveniência do ser como sentido pré-

significativo, isto é, como aquilo que não se pode dizer, nem mostrar e que, no entanto,

configura tanto as possibilidades de ser, dizer e mostrar, como de não-ser, silenciar e

ocultar.

A música pro-clama a memória da escuta do pensamento que a linguagem

consente como a casa do ser. Na renúncia da palavra a música não se dá como sua

negação, mas como sua vizinhança mais próxima e também mais essencial, pois nela se

dimensiona a di-ferença do sentido como vigência pré-significativa. Referindo-se ao

poema A palavra de Stefan George e sua inserção no seu livro Das neue Reich,

Heidegger diz:

316
Heidegger, 2003:140.
194

A última seção chama-se: A canção. A canção não é entoada posteriormente. É no


entoar que ela começa a ser a canção que ela é. O poeta da canção é o cantador. Poesia é
canto. Seguindo o exemplo dos antigos, Hölderlin gostava de chamar a poesia de “canto”.
No hino há pouco redescoberto Friedensfeier (Festa da paz), Hölderlin canta assim no
começo da oitava estrofe:

Tanta experiência, por quantas manhãs,


Tem feito o homem, desde que somos uma conversa
E escutamos uns aos outros; em breve, somos, porém canto.

“Escutar uns aos outros” – uns e outros – homens e deuses. O canto é a festa da
chegada dos deuses, a chegada quando tudo se aquieta. O canto não é o contrário da
conversa, mas seu vizinho mais próximo; pois também canto é linguagem.317

O que no canto se afigura como canto se diz de modo mais amplo e mais

originário música. Seguindo o caminho aberto pelo próprio Heidegger, pode-se ainda

dizer que o canto, a saber, a música não é linguagem, mas dá-se linguagem. Pois, assim

como não é possível com a ciência da filologia ou da lingüística dizer o que é a

linguagem, isto é, no sentido de ultrapassá-la como o próprio fundamento a partir do

qual estas ciências têm de partir para se configurarem como tais, também não é possível

que ciência ou técnica alguma se coloque como o fundamento amparador da música. Ao

contrário, por nela se dar o que na linguagem se manifesta de modo essencial e

originário, é a música que pode em primeiro lugar ser amparo e fundamento para

qualquer ciência musicológica e suas mais diversas técnicas e tecnologias. Pois, sendo a

poesia canto, ela se dá acima de tudo – música.

Tal qual Hermes em sua relação de pertencimento à memória, a música vocaliza

os primórdios das fontes no estame do som, a música avança para o começo. A música

nadifica o sujeito cheio de conhecimento e na organização de uma espacio-

temporalidade próprias insta a consagração do divino. A consagração do próprio

Hermes se deu pela música. A música se institui como uma cosmogonia originária,

sagra o mundo à unidade divina da memória, con-sagra a unidade do sentido. O sentido


317
Heidegger, 2003:141.
195

é a sagrada dimensão da qual, ao modo da música, a palavra pode chegar a articular o

engendramento originário do real. A música densifica e avoca o real em toda sua

ambigüidade, instaura a compreensão da arte como a dinâmica própria de produção

poética de sentido do real.

Do mesmo modo que Hermes leva a memória como o conhecimento herdado de

todas as fontes primordiais do ser, a música, em sua relação mais inaugural com o deus,

se dá em memória do ser. Ela é a própria instituição da memória e por isso repõe as

possibilidades originárias de estabelecimento não de uma única, mas de múltiplas

dimensões de espaço e tempo. Nela se dá a confluência de possibilidades de

espacialização e temporalização cuja orientação final é sempre a manifestação própria e

autônoma do sentido.

A música é a manifestação da memória enquanto deusa da ambigüidade

ontológica. Tal ambigüidade não é um predicativo ou uma qualidade da memória, mas

antes a manifestação mais direta do desvelar auto-velante do ser, isto é, a manifestação

do ser em sua dinâmica de alétheia. Desse modo, tanto música como memória são

ambas ascenantes-mensageiras tal qual Hermes, cujo aceno se dá em re-ferência direta

ao ser, sem interpostos e intermediações. Por isso, em toda envergadura de para-doxo,

concretizam a mensagem do ser por manifestarem o real em sua máxima condição de

ambigüidade. Com Hermes, o real fica patente na co-pertinência de todas as identidades

em meio a todas as diferenças em virtude de sua ambigüidade radical. Esta ambigüidade

já tinha sido assinalada por Heráclito e chegou até hoje através de um fragmento de seu

pensar poético: phýsis krýptesthai philei – “surgimento já tende ao encobrimento”.318

Em sua vigência para-doxal é a memória, enquanto o próprio vigor do real, que

318
Phýsis kriptesthai phílei. Heráclito, Fragmento 123, p. 91.
196

configura a unidade de sentido e verdade de todo acontecimento no tempo. O real

manifesta, não a memória do tempo, mas o tempo da memória. A memória conjunta

todo e qualquer tempo. A memória é a música do real. Em seu silêncio originário soam

as res-sonâncias do que é, do que foi e do que será. A música é o tempo da memória

feito ato, o tempo para-doxal.

Desse modo é que a música pode ser compreendida como a musa de todas as

musas.319 Pois na música o que está sempre lançado como projeto é o formar. Enquanto

rythmós320 a forma é sempre musical. Uma forma que não se exaure, mas que se mantém

formante, dinâmica em sua plenitude de eclosão. Em toda eclosão do real, a música é

co-memoração da origem. Como memória, não fala as sentenças das línguas, mas canta

o som silencioso do lógos. No canto da memória soa o poético. Há no poético um modo

radical de entendimento que exige antes de tudo a atenção especial do escutar. Como

tal, é apenas na circularidade de seu entorno, de memória e de escutar, que se apreende

seu sentido. Na sonância e ressonância do poético a memória configura seu entorno

consonante e dissonante ao entorno do próprio escutar. Nas tensões, re-tensões e dis-

tensões do círculo da memória, a música musica a poética do sentido. Todo sentido só é

sentido na medida e na proporção da produção do poético que a música realiza no

círculo da memória, no percurso ontopoiético de seu entorno. Se se quiser apreendê-lo,

ele se retrai. Se se quiser defini-lo, ele se esvai. Pois, o sentido poético se manifesta na

medida em que se retrai, presentifica na medida em que se esvai. É que na vertigem da

memória a música anuncia o sentido da memória mesma em seu entorno mais íntimo,

sua união essencial com a ocultação e o esquecimento. Se por um lado, a memória

319
Leão, 1992:43.
320
Cf. Benveniste, 1991:361-370.
197

articula toda possibilidade de sentido poético que a música realiza, por outro, só o faz

porque a memória mesma, que pronuncia a unidade, é em unidade com o que se oculta e

se dissimula. Esse é o sentido para o qual a sentença de Hermes aponta ao

compatibilizar psêudesthai e através de kataléxo. A música manifesta o sentido poético

mais essencial enquanto, na unidade de memória e esquecimento, neste conflito radical

de tensão e de contrários, dá a conhecer aquilo que lhe é mais próprio, mais íntegro e

singular.

No lógos a música concretiza em obra a dinâmica de a-létheia em virtude

mesmo de seu íntimo parentesco com a memória. A música como musa de todas as

musas é a própria con-cretização de memória e esquecimento em seu mútuo velar e

desvelar, em sua dinâmica de verdade. Nessa dinâmica a música produz o sentido e o

faz porque trata sempre de, na época do último e ulterior modo de realização da

metafísica, pela memória, lembrar de uma primeira e primordial possibilidade de dar-se

do real, da qual até mesmo a metafísica teve de partir: o sentido do ser. Esta se constitui

como primeira possibilidade não por vir antes numa ordem cronológica, historiográfica,

evolutiva e causal. Esta se constitui como primeira possibilidade por ser uma vigência

nascente e originária de constituição de sentido de todos os empenhos e desempenhos

de ser-no-mundo.

A música, filha da memória, faz con-vir o vigor e a vigência do lógos. A música

explicita o que na memória se põe em movimento: a reunião e convergência do pensar

sobre o que em todo lugar exige ser pensado em primeiro lugar. A música com-põe e re-

com-põe todo passo de volta para a memória como fonte e solo de onde brota e frutifica

a poiésis, pois a poiésis leva adiante o dizer do ser. A música com-põe o sentido do real,

na obra concretiza as relações e referências abertas pelo jogo de espelhos do mundo. A


198

música como o lógos da memória pronuncia as palavras inexprimíveis e não-pensadas

por todas as línguas, com-pondo o sentido do real, o vigor originário da referência na

qual a linguagem remete o homem à memória do ser. Porém, tornando-se obra, a música

explicita o ventre da memória como poiésis, re-compõe as tensões imemoriais entre

terra e mundo pela memória da co-pertença de ser e não-ser; a música re-compõe a

pronúncia da identidade e diferença do real. A música é, assim, a arte do tempo não por

constituir uma memória do tempo, mas por con-cretizar o tempo da memória.

A música faz o homem retornar para aquilo mesmo que o mantém e para ele se

inclina. A música manifesta o que na memória se reúne. A música mantém em unidade

a reunião de poesia e pensamento. Nesse sentido, a música, como lógos-mousikós,321

constitui um modo originário do passo de volta para a reunião essencial que a memória

con-cretiza de pensar e o não-pensado. A música con-cretiza a memória na medida em

que ex-põe todo afastamento de um pensamento ex-plicativo, representacional, em

direção a um pensamento co-memorativo, que celebra na reunião da memória a unidade

de todo real. A música con-forma o pensar com aquilo que é pensado e não pensado. Tal

coisa é a reunião essencial da memória. A música traduz a pronúncia de um lógos

originário, narra o mistério de todo manifestar-se na co-memoração do pensamento

sobre o ainda não-pensado. A música fala. Fala essencialmente, pois em seu lógos não

vigoram os termos, nem as expressões do senso comum e do bom senso. Ao contrário,

preservando-se dos termos e preservando as palavras, a música com-põe, na

conservação da relação referencial e imemorial de palavra e coisa, a nomeação

vigorosamente essencial que constitui na memória, o mundo, em seu jogo de espelhos

circular e co-habitante no presente, de passado e de futuro. Por ser a memória o âmbito,

321
Cf. Castro, 1997:182.
199

ao contrário, em que vige o lógos do extra-ordinário, a música fala continuamente em

memória do ser, lança o homem no aberto do real que com ele con-cresce, o faz retornar

àquilo pelo qual ilumina e é iluminado em todo agradecimento: o pensamento. Pois, em

todo agradecimento que pensa e em todo pensar que agradece se encontra, na sua força

de reunião, a memória. Dando ouvidos à música dessa reunião originária, Hölderlin

cantou, assim, o lógos da memória: “pouco saber, mas muita alegria foi dada aos

mortais”.
Capítulo V

Ser e Sentido

A pedra, a vida, o poeta, a poesia, o caminho, tudo fala do


mesmo: da presença do mistério sem nome da realidade. (...) O
mistério sem nome da realidade não tem onde estar. Não se acha em
parte alguma, nem no sujeito nem no objeto, nem dentro nem fora. Ao
contrário, é nele que estão todas as coisas, é dele que tudo tem o
espaço de seus lugares e o tempo de sua hora e vez, é dele que tudo
recebe o sentido de sua essência.

Leão, 1991:175.

Música e verdade

Na tradição da Cultura Ocidental determinada pela filosofia como metafísica e

pela ciência, a questão da verdade da obra está, de um lado, posta pela estética como

teoria da arte e por outro, pela análise e pela história da música. Tanto nessas

disciplinas, como noutras de âmbito musicológico, já está sempre definido de antemão

um determinado sentido da verdade, a saber, aquele que a toma em seu sentido de

correção, correspondência ou exatidão e que a determina como semelhança.

Mesmo quando essas disciplinas ou regiões do real são tomadas em seu inter- ou

trans-relacionamento com outras ciências, na medida em que se quer fundar o

conhecimento da música a partir delas, deve-se então, ainda de modo inquestionado,

aceitar o pressuposto da verdade como correção e semelhança. Isto porque a ciência e

suas disciplinas técnicas necessitam essencialmente determinar o real como objeto,

fazer aquele corresponder a este. No sentido de uma teoria que observa o real, a ciência

contempla o real de modo a assegurá-lo. Isso é o que diz a palavra latina contemplatio,

separar e dividir uma coisa num setor e aí cercá-la e circundá-la.322 A ciência põe o real.

322
Cf. Heidegger, 2001:46.
201

Ora, tal caracterização da ciência poderia parecer contrária à sua essência. Pois, como
teoria, a ciência seria justamente “teórica”. Prescindiria de qualquer elaboração do real.
Faria de tudo para apreender o real puramente em si.323

Nesse sentido, a ciência moderna não difere muito do per se platônico.324 Ora,

em toda expressão lingüística do per se ou em si, caracteriza-se a ciência sempre como

não intervencionista e desinteressada. “E, no entanto, como teoria, no sentido de tratar, a

ciência é uma elaboração do real terrivelmente intervencionista”.325 E isto em virtude de

que a verdade na ciência se dá como o fator operador da verificabilidade como exatidão.

Precisamente com este tipo de elaboração, a ciência corresponde a um traço básico do


próprio real. O real é o vigente que se ex-põe e se des-taca em sua vigência. Este destaque
se mostra, entretanto, na Idade Moderna, de tal maneira que estabelece e consolida a sua
vigência, transformando-a em objetidade. A ciência corresponde a essa regência objetivada
do real à medida que, por sua atividade de teoria, ex-plora e dis-põe do real na objetidade.
A ciência põe o real. E o dis-põe a pro-por-se num conjunto de operações e
processamentos, isto é, numa seqüência de causas aduzidas que se podem prever. Desta
maneira, o real pode ser previsível e tornar-se perseguido em suas conseqüências. É como
se assegura o real em sua objetidade. Desta decorrem domínios de objetos que o tratamento
científico pode, então, processar à vontade. A representação processadora, que assegura e
garante todo e qualquer real em sua objetidade processável, constitui o traço fundamental
da representação com que a ciência moderna corresponde ao real. O trabalho, que tudo
decide e que a representação realiza em cada ciência, constitui a elaboração que processa o
real e que o ex-põe numa objetidade. Com isso, o real se transforma, já de antemão, numa
variedade de objetos para o asseguramento processador das pesquisas científicas.326

O tratamento científico da música ou da arte em nada será diferente. A música e

a arte em geral, para servirem aos propósitos de processamento e representação do real

pela ciência também devem se adequar aos pressupostos que dis-põem todo e qualquer

real como objetidade. É o que de fato ocorre ao se examinar as disciplinas estéticas e

técnicas da música327. A música pode então ser compreendida através dos filtros

conceituais tais como forma e conteúdo, organizando-a através de elementos analíticos,

323
Heidegger, 2001:48.
324
Cf. Capítulo I, p. 49ss.
325
Heidegger, 2001:48.
326
Ibid.
327
Cf. Aguiar, 1996; Castro, 1997:99-146.
202

sejam estes predispostos em motivos, temas, frases, etc., ou ainda, sínteses, conjuntos,

funções sociais, históricas, antropológicas, etc. Estes são exemplos de modos estético-

científicos de se fazer representar a música numa apreensão puramente intelectiva.

Fazer representar quer dizer, fazer corresponder com exatidão ao que figura no conceito

puro. A efetuação desse fazer é operada pela verdade.

Uma obra é tão verdadeira quanto mais corresponder ou se deixar adequar ao

modo de efetuação da representação lógica e racional. Nisto consiste um modo de

aferição da verdade da obra. Questiona-se, entretanto, como é que isso pode se dar. É

certo que a representação das ciências apreende algo do que é a música, porém apenas

na medida em que suas próprias disciplinas sejam modos de corresponder a uma

vigência do real como objetidade. Isso não é de modo algum garantia de que o que se

apreende do real como objetidade seja a totalidade do próprio real. Seria absurdo

admitir que o que se dá como real possa ser fundado pela ciência. E mesmo a tarefa de

ex-plicar o real a que a ciência se propõe passa pelo fato de que ela necessita operar

uma redução do real através de fazê-lo sair (ex-) de suas dobras (plicare). Fazê-lo sair

de suas dobras quer dizer, retirar do próprio real aquilo que se manifesta como tal, em

seu vigor de ambigüidade.

Não se pode esquecer, entretanto, de que a própria ciência é também um modo

de dar-se do real. Dando-se, o real se retrai. A cada novo modo da ciência iluminar o

real, ele mesmo se recusa e se retrai no ocultamento de sempre novas possibilidades que

ainda sequer teriam sido configuradas. Ora, não se constitui precisamente assim o

advento daquilo que se considera como um dos maiores avanços da ciência, a

decodificação do genoma humano? E agora, ao chegar ao fim do princípio, por acaso se

decifrou realmente o que a própria vida biológica é, sem inclusive contar o fato de o
203

próprio homem ser cada vez mais reduzido à representação biológica? No entanto, para

o que agora se aponta é a necessidade de compreender o proteoma, uma vez que o

próprio genoma permanece uma representação estática, não dando conta inclusive de

diferenças ambientais e temporais como, por exemplo, uma simples mudança de

temperatura.

A natureza ama encobrir-se, diz uma tradução do Fragmento 123 de Heráclito.

Uma outra ainda diz: surgimento já tende ao encobrimento. Em grego se diz: phýsis

krýptesthai phílei. Heráclito nomeia com a palavra phýsis o próprio ser328.

Se apreendermos esta palavra no sentido de físico ou natural, ficamos distantes de seu


significado originário, uma vez que essas traduções correntes pertencem a uma tradição
posterior de pensamento, na qual phýsis já havia perdido aquele vigor inicial, e sua
concepção havia sofrido uma restrição no sentido de circunscrever apenas um setor do real.
A este fato, veio se juntar um segundo, que foi a tradução simples e direta de phýsis por
natura, levada a efeito pelos romanos, consolidando de vez o distanciamento da palavra
inicial.329

A tradução latina de phýsis por natura permanece vigente inclusive nas palavras

natureza em português, nature em inglês e Natur em alemão, e parte da compreensão

estática da phýsis e, portanto, representacional. O que prevaleceu na tradição ocidental é

o que se cristalizou na tradução latina de phýsis como natura, particípio passado do

verbo latino nascor e que enfatiza ou exprime o estado já acabado do processo de

nascer, brotar ou eclodir e não o seu acontecimento. Ora, a forma particípio passado é

por excelência a forma modelar de todo sistema de representação porque se determina

desde uma concepção estática, imutável e permanente do real. Na representação da

phýsis como natureza se exclui toda e qualquer dinâmica da alétheia como desvelar

auto-velante para fazê-la permanecer totalmente no desvelado tão somente.

328
Heidegger, 1999b:158.
329
Michelazzo, 1997:28.
204

Para os primeiros pensadores, a phýsis estava presente em tudo que os rodeava, isto é,
nas plantas, no nascimento dos animais, no crescimento dos homens. Todavia, essa
predominância que desabrocha não se restringia a esses fenômenos, uma vez que, pela
proximidade que tinham com ele, apreendiam e conservavam a sua presença em suas
criações, pensamento e linguagem. Phýsis era para esses pensadores o nome do ser. Nada
escapava do seu domínio, nem mesmo os contrastes, uma vez que a phýsis era aquela
unidade originária que congregava tanto aquilo que saía e brotava (movimento), quanto o
que se retinha e permanecia (repouso). Eles não haviam adquirido ainda o nome de
filósofos para separar o real em dois grandes blocos em permanente oposição,
denominando-os de sensível e supra-sensível, material e espiritual, imanente e
transcendente, ou então, conforme os dualismos mais modernos, como realista e idealista,
subjetivo e objetivo. O fundo escuro da caverna e a claridade do sol na pradaria eram, para
eles, formas e manifestações de uma única realidade, porque procediam de uma mesma
fonte.330

O pensamento de Heráclito testemunha a phýsis justamente como fonte e origem

tanto do que surge e se manifesta, como daquilo que se recusa e se retrai. Portanto, a

phýsis mantém em reunião um duplo princípio e por isso, ela mesma não somente se dá

como origem, e por isso mesmo, não apenas origina, mas fazendo-o, oculta-se. A phýsis

mesma enquanto um des-velar oculta e se oculta.

A duplicidade originária da verdade se comprova na sapiência original do pensar


poético. O fragmento 123 de Heráclito enuncia que o ser já de si tende a ocultar-se. A
significação fundamental da philía do philein é o favorecimento mútuo, o afeiçoar-se um ao
outro na tensão harmônica da disjunção conjuntiva ou da conjunção disjuntiva. O desvelar-
se bem quer autovelar-se. O descobrimento e o encobrimento se harmonizam na intimidade
ambivalente de uma reciprocidade gratificante. Eles se respondem e se correspondem, e
mutuamente se favorecem. Que seria do trânsito floral do ser se o autovelar não se retivesse
no ritmo de transe da sua inclinação para o desvelar-se? O autovelamento é o sóbrio
recolher-se no envolvimento do resguardo pródigo de si mesmo. Kryptesthai designa o
resguardar-se no abrigo eônico da physis, preservando a essencial possibilidade do aparecer
emergente do selado segredo do ser. O não findar do emergir é garantido pelo não cessar do
imergir. O desvelar-se não se volta para o autovelar-se, mas se devota a revelar-se
concitado pelo próprio velamento. O excesso anticlinal da ontocriptia solicita a disciplina
sinclinal da ontofania como a única força capaz de o evidenciar e mostrar como
excessividade. O emergir (a partir do autovelamento) se oferece como o favor dispensado
ao autovelar-se. A extroversão e a introversão se compertencem simultaneamente
destinadas na mesma conversão diversiva do que se desoculta, ocultando-se, ou se oculta,
desocultando-se. Anversofania e reversocriptia são um e o mesmo ser que bem quer
ocultar-se. A verdade do ser é, pois, o desvelar autovelante.331

330
Michelazzo, 1997:29.
331
Souza, 1999:81-2.
205

Heráclito nomeou com a palavra philei o co-pertencimento radicalmente

essencial e originário de phýsis e krýptesthai. Esta palavra estabelece a ação, isto é,

aquilo que movimenta e faz tanto phýsis como krýptesthai tenderem um para o outro.

Com philei esse tender-se reciprocamente de phýsis e krýptesthai se nomeia de um

modo todo especial. philei vem de philéo e que comumente quer dizer amar ou

considerar com afeição. Sua forma substantivada phílos em composição com sophia

constituiu a palavra filosofia, cuja significação remonta à interpretação mais superficial

de “amor ou amizade ao saber”. Benveniste, no entanto, levanta uma questão para o que

aqui se discute bastante esclarecedora:

Aparentemente, nada mais simples do que a relação entre phílos "amigo" e philótes,
philía "amizade". Mas aqui já nos detém o conhecido fato de que phílos em Homero possui
dois sentidos: além do de "amigo", phílos tem valor de possessivo: fivla gouvnata, fivlo"
uiJov" não indicam a amizade, e sim a posse: "seus joelhos", e "seu filho". Enquanto exprime
um possessivo, phílos é usado sem acepção de pessoa e se refere indistintamente seja à
primeira, à segunda ou à terceira pessoa. É uma marca de posse que não implica nenhuma
relação de amizade. Tal é o contraste entre os dois sentidos de phílos.332

No sentido agora assinalado, o recíproco tender-se-para de phýsis e krýptesthai

aponta para o encaminhamento, através de philei, de um mútuo confiar-se. O fragmento

de Heráclito pode agora muito bem ser lido: phýsis e krýptesthai confiam-se na medida

e na proporção de uma mútua posse, uma posse que se dá somente entre phýsis e

krýptesthai, uma posse da qual não é possível um se despojar do outro. O surgimento

possui intrinsecamente latente o encobrimento. O encobrimento possui de modo i-

latente o surgimento. No âmbito e no vigor de uma tal posse, ambos se im-plicam e se

ex-plicam. Assim, não é possível em toda iluminação do real pela ciência se desfazer

daquilo que a cada vez obscurece. Não é possível para a ciência contornar o que lhe é

antes de tudo o próprio vigor e vigência de aparecimento.

332
Benveniste, 1995:333-4.
206

Contudo, pode-se ainda pensar a verdade da obra a partir das objetidades pré-

dis-postas pelas ciências históricas, sociais, antropológicas, etc. Porém, mesmo assim,

nada se obtém além da objetidade já pré-dis-posta nessas ciências, além do fato de se

passar à representação da obra através de fatores externos a ela. Não que o contexto

histórico ou social não possa ser levado em conta na obra. No entanto, a obra

continuamente transcende tais circunstâncias a ponto de manifestar seu sentido

independentemente de uma apreensão prévia dos contextos da criação. Por isso, é a obra

que primeiramente permite que não apenas o histórico e o social possam aparecer, mas

todo e qualquer contexto. Assim não é o contexto que faz aparecer a obra, mas é a obra

que deixa o contexto aparecer.

Por isso, a obra não é mais nem menos verdadeira porque se conhece ou se deixa

de conhecer os contextos de sua criação, mas é ela que os admite em seu surgimento

como modos de sua própria possibilidade de instauração do real. Nesse sentido é que a

questão da autoria também não pode ser o parâmetro para o estabelecimento da verdade

da obra. Não se pode afirmar, por exemplo, que se conheça Beethoven pelo domínio de

seus dados e informações biográficos. Sua bio-grafia não tem absolutamente nada de

especial para que faça dele quem é para humanidade histórica. Ao contrário, porém, é a

obra que apresenta e deixa aparecer, confia e outorga a ele sua dimensão e seu destino

históricos. Nesse sentido, não se pode atestar a verdade da obra por sua autoria. Assim,

de algum modo, Oscar Wilde apanha esta mesma questão em seu Prefácio ao Retrato de

Dorian Gray: “revelar a arte e ocultar o artista é a finalidade da arte”. Não se trata,

porém de uma negação do artista, mas também não se trata igualmente de vedar à obra o

vigor e a vigência que lhe são próprios. Por isso, “tão necessariamente quanto o artista é

a origem da obra de arte, de uma outra maneira que aquela em que a obra é a origem do
207

artista, assim tão certo é que a arte é, ainda de um outro modo, a origem ao mesmo

tempo do artista e da obra”.333 A indissociabilidade de arte, artista e obra já configura

um âmbito estranho para os empenhos analíticos da ciência e suas técnicas. Desse

modo, nenhum dos três pode ser tomado isoladamente, sob pena da manifestação a que

se nomeia de artística esvair-se por completo. Como manifestação da con-juntura da

arte, a obra não é nenhum meio de expressão das idéias e impressões do artista, mas

antes¸ os três, arte, artista e obra se encontram re-colhidos num lógos que os reúne ao

próprio sentido do ser. Todos se des-ocultam e se ocultam recíprocamente

Por isso, também seria um completo absurdo dizer, por exemplo, que “esta”

Quinta Sinfonia de Beethoven é falsa enquanto “aquela” é verdadeira. Não é possível

“falsificar” uma obra musical. De acordo com os princípios de correção e semelhança

da verdade moderna, uma falsificação é a não efetuação da correspondência entre o que

a “falsa” obra é e o que consiste como conhecimento da obra “verdadeira”. Não efetuar

a correspondência significa então, não que a obra “falsa” seja realmente “falsa”, mas

que ela é algo de outro, inclusive a possibilidade dela ser uma outra obra.

Um exemplo poderá esclarecer: se alguém diz que possui uma gravura de

Leonardo DaVinci e que a adquirira por um preço módico numa grande rede de

supermercados, imediatamente surge a objeção de que a obra em questão é falsa. No

entanto, a obra é absolutamente idêntica em cor, traço, dimensão, textura, tela, etc. A

objeção passa a ser então a de que se trata de uma reprodução tecnicamente perfeita. A

“falsidade” da obra consiste agora em que esta na verdade não se trata do original, mas

de uma cópia, mesmo que perfeita. Ora, é preciso atentar para a questão de que a

veracidade ou falsidade da obra não diz nunca respeito a ela mesma, mas ao suporte que

333
Heidegger, 1990:11.
208

a sustenta. Como é possível haver uma Mona Lisa “falsa” por oposição a uma

“verdadeira” se tanto o original como a cópia apresentam o mesmo sentido? Por certo,

os modernos testes de carbono 14 podem identificar a obra original, no entanto,

permanece o fato de que a obra sempre se coloca aquém e além das correspondências

representacionais que tomam o real a cada vez e exclusivamente como objetidade por

que, antes de qualquer coisa, transcende completamente o âmbito do mero suporte. Pois,

mesmo que se possam realizar representações técnicas das mais diversas a respeito da

autenticidade da obra, estas mesmas representações paleontológicas jamais se defrontam

com o aspecto fundante da obra, a saber, sua abertura de sentido. Quando se considera o

sentido da obra, nenhuma diferença faz se o sentido se abre pelo “original” ou “pela

cópia”, pois o suporte por si mesmo jamais pode instaurar sentido algum, somente a

obra.

Este exemplo ilumina a diferença entre a obra e suporte. A obra nunca poderá

ser falsa, sob pena de não mais ser aquela obra. Isto quer simplesmente dizer que a obra

não é uma coisa ao molde de outras coisas. A obra instaura um sentido ou sentidos que

só ela inaugura, que somente ela traz à presença, que somente ela, aquela ou esta obra

re-vela e des-oculta. Nesse sentido, a obra pictórica está no quadro apenas na medida

em que este lhe serve de suporte. Isto jamais significa que o quadro seja a obra.

Ora, de um modo ainda mais radical, o mesmo se pode dizer que ocorre com a

música. Por isso, pergunta-se: em que consiste o verdadeiro e o falso na música? Na

autoria? Não! Na partitura? De certo que não! No registro fonográfico? Evidentemente

que não! Em todas estas coisas somente se dá algo que deixado a si mesmo jamais

chegaria a constituir obra, e isto quer dizer também, jamais chegaria a constituir sentido.

O caráter coisal na obra não deve ser negado; mas este caráter coisal, se pertence ao
ser-obra da obra, tem de pensar-se a partir do caráter de obra da obra. Se assim é, então o
209

caminho para uma definição da realidade com caráter coisal da obra não é um caminho que
leva à obra através da coisa, mas antes, ao invés, um caminho que leva à coisa através da
obra.334

A coisalidade da obra jamais é a própria obra. Muito ao contrário, somente na

medida em que a obra instala o sentido na coisa é que sua coisalidade mesma ganha o

seu sentido coisal. Do mesmo modo, a obra também não está neste ou naquele conceito

de obra, não está nesta ou naquela forma de obra, não está nesta ou naquela

representação da obra. Conceito, forma e representação são tão suportes quanto o

próprio caráter coisal da obra. Antes, é a obra que em virtude de sua manifestação de

sentido primeiramente deixa aparecer a seu próprio critério as significações conceituais,

formais e representacionais que lhe podem ser atrbuídas.

A tentativa de apreender o caráter coisal da obra, através dos conceitos habituais de


coisa, fracassou. Não apenas porque estes conceitos de coisa não captam a coisalidade, mas
porque, com a pergunta sobre o seu suporte coisal [dinglichen Unterbau], constrangemo-la
segundo uma apreensão prévia, através da qual barramos o acesso ao ser-obra-da-obra.335

Dessa maneira, não é possível apreender o sentido da e na obra, nem pela

oposição verdadeiro/falso e nem, conseqüentemente e muito menos pela verdade como

exatidão, correspondência e semelhança. Isto implica no fato de que a música também

jamais se deixa apreender pelo conceito, pela forma ou pela representação; ela jamais

pode ser amparada e fundamentada nos pressupostos da ciência como totalizadores da

obra, não obstante ela possa por vezes até mesmo incorporá-los. No entanto, ela só pode

fazê-lo porque é ela que contém e inaugura os princípios de seu des-velamento de

sentido. Toda obra é obra na medida em que inaugura os princípios de sentido que lhes

são próprios.

334
Heidegger, 1990:30.
335
Heidegger, 1990:30-1.
210

A era da reprodutibilidade técnica de maneira nenhuma acentua o caráter coisal

da obra e em nenhum momento destitui a obra de sua originariedade. Ao contrário, em

toda reprodução técnica da obra, o que se tem sempre e de novo é a própria obra, é ela

sempre e novamente que constitui sentido, pois a obra jamais se deixa reduzir ao mero

suporte. Os modernos meios de reprodução digital atestam sempre o vigor a cada vez

inaugural e, portanto, original da obra. A Quinta Sinfonia de Beethoven não é menos

Quinta Sinfonia por se encontrar legal ou ilegalmente reproduzida milhares de vezes em

CDs ou arquivos digitais. Se se pudesse depreciar a obra em virtude de sua reprodução

nas mais diversas mídias, teria de se considerar que só haveria uma única Quinta

Sinfonia no sentido daquela cuja execução se deu pela primeira vez. No entanto, desde

que foi composta esta obra foi “reproduzida” milhares de vezes, primeiramente ao vivo,

e só muito depois através dos meios fono-mecânicos e digitais. Por isso, uma cópia da

Quinta Sinfonia de Beethoven pode ser falsa apenas na medida desse ou daquele suporte

e sua legalidade. De modo algum, no entanto, pode a Quinta Sinfonia ser falsa. Mas, em

todas as suas “reproduções”, é sempre ela que continuamente se devolve ao sentido e

devolve à salvaguarda o próprio sentido.

A obra jamais se deixa apreender pelo seu caráter coisal. Por isso, mesmo a

posse de um manuscrito de uma sinfonia de Beethoven, por exemplo, jamais significa

que com ela se dê também a posse da obra. A música jamais permite que se confunda

obra e suporte. Nela e com ela, a cada vez se explicita a propriedade dos princípios do

sentido como pertencimento e instituição somente da obra, nunca do suporte, seja ele

qual for. Por isso também, “a obra pertence” não aos conceitos formais e às

representações da ciência e da técnica, mas “ao campo que é aberto por ela própria.”336

336
Heidegger, 1990:32.
211

Mesmo na audição (hören) da obra, nunca se chega a possuir a obra. Antes, toda

audição da obra só pode se concretizar na medida em que pertence (gehören) à obra.

Nesse sentido, sempre à obra a audição pertence, se há alguma posse, ela é sempre da

obra sobre a audição.

Por isso, pergunta-se mais uma vez, em que sentido pode se dar a verdade não

da obra, mas na obra? A mudança de tonalidade na questão da verdade da obra para a

verdade na obra diz, em primeiro lugar, da incapacidade da música ser reduzida à

representação do conceito e, portanto, de sua incapacidade de reproduzir e propagar a

idéia da verdade como exatidão e semelhança. Em segundo lugar, essa mudança de

tonalidade assinala que na música a verdade não é uma posse sua, mas o acontecimento

que nela manifesta o sentido, que conduz à presença o sentido do ser, constituindo-se

ela mesma na saga desse sentido. A música proclama a memória do sentido do ser. Este

modo de proclamar diz: manifestar o sentido do ser.

A obra de arte abre à sua maneira o ser do ente. Na obra, acontece esta abertura, a
saber, o desocultar, ou seja, a verdade do ente. Na obra de arte, a verdade do ente pôs-se em
obra na obra. A arte é o pôr-se-em-obra da verdade.337

Na música se dá a verdade como acontecimento do ser. E isto, não por que ela

mostre este ou aquele ente, mas antes, o ente que ela mesma é enquanto obra. Nesse

sentido, podemos apreender a música como aquela ou esta obra. No entanto, em seu co-

pertencimento hermenêutico, em seu co-pertencimento à própria ambigüidade do deus

do entre-mundos, a música se manifesta na medida em que, dando-se obra, ela mesma

como tal se recusa numa inapreensibilidade. A inapreensibilidade da música como ente

manifesta a radicalização do sentido do ser, um sentido que não é um puro ente, uma

total vigência no des-velado, mas que em virtude do parentesco e pertencimento com a

337
Heidegger, 1990:30
212

memória, igualmente salvaguarda e abriga a recusa e o encobrimento. Como lógos da

memória a música nunca é, nem mesmo é um “é”, mas dá-se em memória do sentido do

ser. O seu vigor se manifesta como saga que en-caminha o sentido, isto é, a música

com-põe a re-ferência em que o sentido do ser instaura o real. A música abre as re-

ferências de sentido do ser. Isto leva radicalmente em conta não somente a música a

partir dela mesma, do que nela ocorre, a saber, a verdade, mas fundamentalmente

compreende o sentido sempre como sentido do ser em toda sua envergadura e em toda

sua ambigüidade. Só há sentido e, portanto, possibilidades de compreensão e

interpretação porque o ser se dá e dá as re-ferências de sentido do real. Desse modo, o

sentido é sempre o sentido do ser. Dando-se como sentido, o ser não perdura como algo

totalmente desvelado, mas recusa-se a ser apreendido não apenas como ente, mas

também como ser. Em outras palavras, dando-se, o ser permite o trazer à presença não

ele mesmo, mas o seu sentido. Esse sentido pode se manifestar vez por outra como este

ou como aquele ente, como esta ou como aquela situação, como esta ou como aquela

coisa. Esse sentido pode ainda se manifestar como o sentido mesmo de uma auto-

referência compreensiva e interpretante do ser. Recusando-se e retraindo-se, o ser

constitui a reserva em que sempre se viabiliza a possibilidade de um dar-se do sentido

como possibilidade latente. O lógos pronuncia essa re-ferência. Por isso, “ser significa

entre outros nomes dos primórdios do pensamento ocidental lógos338.” O poetar

pensante da música desencadeia como sentido uma onto-logo-fania do real. Como lógos

da memória a música não é nenhum ente, nenhum objeto ou coisa, mas dá-se uma re-

ferência própria que deixa o ser estabelecer o sentido do real.

338
Heidegger, 1999b:158.
213

A palavra para dizer a palavra não se deixa encontrar em nenhum lugar em que o
destino dá aos entes o presente da linguagem nomeadora e inaugural, essa que nomeia o
ente que é e como o ente brilha e brota. A palavra para a palavra, um tesouro na verdade,
nunca foi encontrado na terra do poeta; mas e na terra do pensamento? Quando o
pensamento procura pensar a palavra poética, mostra-se que a palavra, o dizer, não tem
ser.339

A música dá-se lógos que referencia ser e o que brilha como sentido. A música

não é então coisa alguma, mas diz uma radical experiência poética da linguagem. Sua

radicalidade consiste em que aprofunda indizivelmente até mesmo o dizer que a palavra

mesma diz. “A palavra – nenhuma coisa, nenhum ente; em contrapartida, as coisas se

tornam compreensivas340 quando para elas existe uma palavra disponível.”341 Com o

dizer da palavra, que não é, deixa-se que as coisas sejam, que se tornem compreensivas,

isto é, que cheguem a manifestar sentido. A radicalidade da experiência poética com a

linguagem na música consiste justamente nesse aspecto do dizer, na saga que mostra e

que faz brilhar o que mostra, certamente como coisa que a própria obra é, mas mais

fundamentalmente, no sentido disso que brilha, inapreensível até mesmo ao dizer de

qualquer palavra. O dar-se música diz radicalmente o lógos.

A proximidade da música com Hermes foi narrada mitologicamente pelos

gregos, mas sua relação de co-pertencimento para com o deus vai muito além de uma

compreensão moderna de criador e criatura. Esta relação antes de tudo diz respeito a

que conhecido e des-conhecido, pensado e a-ser-pensado se dão numa referência co-

partícipe de instauração de sentido do real. Na relação essencial com o deus, a música

não diz este ou aquele sentido do real, mas sim “o” sentido. Por isso, o lógos

radicalmente dá-se música na medida em que deixa advir o próprio sentido, não desta

339
Heidegger, 2003:150.
340
Grifo nosso.
341
Heidegger, 2003:150.
214

ou daquela coisa, mas do que primordialmente permite que a coisa seja. Ora, uma coisa

certamente “é”. No entanto, esse “é” não é ele mesmo uma coisa.

Será que o “é” é ele mesmo coisa, sobreposta sobre a outra, colocada sobre a outra
como um capuz? Nunca encontramos o “é” como uma coisa numa coisa. Com o “é”
acontece o mesmo que com a palavra. Como a palavra também o “é” não pertence às coisas
existentes.
Eis que despertamos da sonolência das opiniões apressadas e visualizamos algo
inteiramente outro.
No que a experiência poética com a linguagem diz da palavra está em jogo a relação
entre o “é” que nada é e a palavra que se acha no mesmo caso, ou seja, não é um ente.
Nem ao “é” e nem à “palavra” convém a natureza de coisa, o ser, e nem tampouco à
relação entre o “é” e a palavra, cuja tarefa consiste em conferir a cada vez um “é”.342

A radicalidade do lógos-mousikós343 apresenta de um modo ainda mais essencial

a realização poética do sentido na medida em que, a ele não convindo igualmente a

natureza de coisa, sua re-ferência com o ser consiste em con-ferir a cada vez não um

“é”, mas o sentido desse “é”.

Nesse sentido é que na música se põe-em-obra o acontecimento radical da

verdade, na medida em que a alétheia nomeia o sentido do dar-se e do recusar-se do ser

como o seu sentido mais próprio.

A essência da verdade, a saber, da desocultação é regida por uma recusa. Esta recusa
não é, todavia nenhuma falta e erro, como se a verdade fosse mera desocultação que se
tivesse libertado de todo oculto. Se ela fosse disto capaz, então não seria mais ela mesma. À
essência da verdade como desocultação pertence negar-se sob o modo de dupla
ocultação.344 A verdade é, na sua essência, não-verdade (...).
A verdade manifesta-se justamente como ela mesma, na medida em que o negar-se
ocultante enquanto a recusa confere originalmente a toda a clareira a sua constante
proveniência, ao passo que, enquanto dissimulação, confere originalmente a toda a clareira
a sempre ativa acutilância da ilusão. Sob a designação de negação ocultante procura-se
nomear, na essência da verdade, a reciprocidade adversa que, na essência da verdade, há
entre clareira e ocultação. A essência da verdade é em si mesma o combate originário em
que se conquista o meio aberto, no qual o ente advém e a partir do qual se retira.345

342
Heidegger, 2003:150.
343
Cf. Castro, 1997, Capítulo III.
344
A verdade se oculta e dissimula sua ocultação.
345
Heidegger, 1990:43-4.
215

Por isso, o que na música se apreende como ente é sempre algo que fica

reduzido e subdimensionado ao âmbito de conceitos e representações. Em toda

possibilidade em que a música se oferece como apreensão de uma abertura, reside um

retraimento. O conflito, mãe de léthe, se dá na música como re-ferência à beligerância

do ser que, dando-se como sentido, nega-se e se oculta. Quando o pensamento pensa o

não-pensado originário de música, poética e sentido, esta experiência acena “para o que

é digno de se pensar, para aquilo que há muito, mesmo que de modo velado, motiva o

pensamento. Ela acena para o que se dá, mas não “é”.”346

Nessa beligerância do ser a música dá-se poética do sentido na medida em que a

poiésis que nela acontece está confiada à essência cosmo-caótica da verdade como

abertura e recusa. No acontecer da verdade que está em obra na música, o tornar-se-obra

da obra, além de ser um acontecimento único e inimitável do sentido do ser, o é porque

nela se dá “um modo do passar-a-ser e de acontecer da verdade”347, em toda sua

envergadura. Nisso consiste a poiésis, a saber, que a envergadura da verdade diz o curso

em que o ser des-oculta o seu sentido desde sua própria proveniência, a saber, “do

ainda-não-(des)-ocultado”348. Desse modo, a verdade que se-põe-em-obra na obra é

sempre a verdade do sentido do ser. A música pronuncia o lógos desse sentido na

medida em que co-memora o ser. Esse dizer não é uma enunciação propositiva

qualquer, mas em coerência com a memória do ser pronuncia o inaudito do ser até

mesmo em meio ao que pode ser apreendido como ente em toda objetidade.

346
Heidegger, 2003:150-1.
347
Heidegger, 1990:48.
348
Ibid.
216

Música, pensamento, ser e sentido

A música fala continuamente em memória do ser. A memória reúne o próprio

pensamento ao que lhe pro-voca, aquilo que é digno de ser pensado. Nisso consiste todo

o agradecimento. À primeira vista, memória, pensamento e agradecimento poderiam

parecer coisas absolutamente desconexas, a ponto de que qualquer tentativa de

relacioná-los logo se apresentar como algo forçado. No entanto, a excessiva pressa com

que se admite tal pressuposição é apenas um modo de esquecimento da questão do

sentido do ser que, na tradição metafísica, orientou toda compreensão da linguagem

como mero instrumento de comunicação e expressão, destituindo-a do seu vigor

originário como morada do próprio ser.

O pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz nem


a efetua. O pensamento apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo
próprio Ser. Essa restituição consiste em que, no pensamento, o Ser se torna linguagem. A
linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem.349

É no vigor de constituição da linguagem, não como tecnologia de comunicação e

expressão, mas como morada do ser que se tenta uma interpretação que contribua de

algum modo, não para o esclarecimento de uma possível relação entre memória, pensar

e agradecer – o que de maneira nenhuma se constitui aqui um inter-esse – mas sim no

sentido de tematizar memória, pensamento e agradecimento em suas possibilidades de

mútua referência na medida em que nessa reciprocidade se configuram como co-

participes do que é digno de ser pensado. Meditando essa reciprocidade para além e

para aquém da redução da linguagem à mera representação tecnológica, procura-se

pensar o ser em seu vigor de concreção do real, aquilo que confere densidade ao real,

suas realizações e não realizações. Para além e para aquém de toda a representação,

349
Heidegger, 1995a:24.
217

apresenta-se a possibilidade do concreto como a possibilidade mais própria do ser. O

concreto como realização do ser não prescinde da não realização, pelo contrário, em sua

manifestação ambígua de verdade, é o ser que em primeiro lugar, dando e configurando

sentido, permite o real se manifestar também como não realização. Apenas porque na

longa tradição metafísica se expurgou o negativo através da positividade absoluta da

razão, através da compreensão do ser apenas como presença e fundamento do universo

ôntico350, não quer dizer que o real também não se concretize conjuntamente ao

negativo. Ora, no sentido da verdade do ser, isto é, no sentido do abandono da

concepção do ser como fundamento entitativo em favor da latência que joga na

patência, o negativo não é um nada absoluto, mas a retração do próprio ser e seu

recolhimento ao silêncio da linguagem. Se na restituição pelo pensamento da essência

do homem ao ser o ser se torna linguagem, então é no silêncio fundante da linguagem

que o próprio ser se recolhe e se abriga. Nesse recolhimento, nessa renúncia, se dá “a

transformação do dizer e sua saga na ressonância, quase velada, extasiante e cancioneira

de um dizer indizível.”351

“Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar”. Pensando que aqui se nomeia a
relação entre coisa e palavra e, com isso, a relação da linguagem com cada ente enquanto
tal, já chamamos o poético para a vizinhança do pensamento. Esse pensamento não percebe
nisso nada de estranho. Pois justamente a relação entre coisa e palavra , e isso na
configuração de ser e dizer, foi uma das primeiras coisas que o pensamento ocidental
colocou em palavras. Essa relação avassalou o pensamento de tal maneira que se
pronunciou numa única palavra. Essa palavra diz: lo/goj. Essa palavra é ao mesmo tempo
nome para ser e dizer.
Ainda mais avassalador para nós é constatar que nessa palavra não se fez nenhuma
experiência pensante com a linguagem em que a linguagem viesse à linguagem num modo
apropriado a essa relação. (...) A experiência poética (...) nomeia algo muito antigo com o
que o pensamento já se deparou e ao qual ele se mantém de tal forma vinculado que se
tornou para nós o fato mais corriqueiro e assim também o mais desconhecido.
(...) Todavia só podemos presumir porque a essência da linguagem em parte alguma
vem à linguagem como linguagem da essência. Muito indica que a essência da linguagem
recusa-se vir à linguagem, isto é, a vir àquela linguagem em que se pronunciam enunciados
sobre a linguagem. Se em toda parte a linguagem faz essa recusa, então essa recusa

350
Cf. Souza, 2001/2:28.
351
Heidegger, 2003:183.
218

pertence à essência da linguagem. Isto significa que não é somente na fala cotidiana que a
linguagem se resguarda em si mesma mas que esse resguardo se deve ao fato de a
linguagem resguardar em si mesma a sua proveniência e, assim, negar a sua essência para
os nossos hábitos representacionais.352

Somente porque o ser se torna linguagem, nega também sua essência para toda

representação. Em sua proximidade com o pensamento, a poesia dá-se escuta do sentido

dessa negação como o silêncio do ser e, também, da linguagem. A música traduz as

palavras impronunciáveis e, portanto, sagradas desse silêncio. Não que em sua tradução

elas passem à pronúncia. Pelo contrário, na sua tradução a música as mantém

impronunciáveis e, assim, as conserva no seu vigor próprio de resguardo da essência da

linguagem. “Esse seria o modo mais próprio de a essência da linguagem vir à

linguagem.”353 Ora, no lugar em que se resguarda a essência da linguagem, resguarda-se

a latência i-latente e a i-latência latente do ser, preserva-se a memória do ser como a

dinâmica de sua verdade e constitui-se a vizinhança de pensamento e poesia, da

apropriação mútua de ser e homem como evento essencial de toda pro-dução. Nessa

vizinhança, a memória salvaguarda e preserva o ser, salvaguarda e preserva o seu

destino, a saber, “aquilo que o âmbito do aberto da verdade do ser nos dispensa.”354

Desse modo, em toda fúria do desejo e da provocação técnica, mantém-se a salvo, em

memória a dócil referência de presença e produção.355 O que se mantém em memória, a

salvo e resguardado é também o que salva e resguarda. Por isso, a música em sua

poética de sentido nunca se comporta, nem se deixa reduzir ao modo de uma

representação, mas em memória do ser mantém a salvo e resguardada a essência da

linguagem como aquilo que o ser mesmo se torna e se dá. Nem natureza, nem cultura

352
Heidegger, 2003:143-4.
353
Heidegger, 2003:144-5.
354
Michelazzo, 1997:175.
355
Cf. Michelazzo, 1997:177.
219

podem com-portar o que se diz e se mostra na música, pois em sua manifestação como

manifestação originária do sentido do ser, a própria dualidade sujeito-objeto se dissolve.

O canto não é natureza


nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.356

Pois, a poiésis como essência de todo agir e manifestar, a poiésis como pro-

dução do sentido da verdade do ser não apenas elide sujeito e objeto, mas igualmente

artista, obra de arte e arte357. Não apenas isso, mas na medida em que a obra como obra

essencialmente poética instaura e inaugura a cada vez o sentido, destina ao mesmo

tempo uma salvaguarda. O que se destina à salvaguarda é sempre um modo de

instauração do sentido do ser, sentido do que dá sempre e novamente vigência ao

vigente, dá origem e início. O ser principia e em seu principiar, porque poético, pro-duz,

leva à diante a saga do começo do que é e se dá como sentido à salvaguarda.

A essência da arte é Poesia. Mas a essência da Poesia é a instauração da verdade.


Entendemos aqui este instaurar em sentido triplo: instaurar como oferecer, instaurar como
fundar e instaurar como começar. No entanto, a instauração só é real na salvaguarda. Por
isso, corresponde a cada modo de instaurar um modo de salvaguardar.358

Por isso, também o sentido da interpretação não pode jamais ser aquele da

efetuação da mera justaposição de significados ao que se apresenta. Considerada apenas

nessa efetuação, permanece impensado em toda justaposição o sentido do inter da

interpretação. Aí residem os vários modos da compreensão como salvaguarda do

poético. Esses modos são tão variados quanto as possibilidades que se oferecem, que se

fundam e que começam em toda manifestação poética do sentido do ser, pois é este que

356
Andrade, 2002:117. Procura da poesia, vv. 16-20.
357
Cf. Heidegger, 1990:11.
358
Heidegger, 1990:60.
220

sempre se põe em obra na medida em que a poesia dá-se: por-em-obra-da-verdade359.

Em toda a instauração do sentido e da verdade do ser em obra, oferta-se à compreensão

a excessividade do silêncio do ser que cala as diversas enunciações e deixa brilhar e

resplandecer o sentido de sua fisionomia como o desconhecido e digno de ser pensado.

O sentido desse silêncio excede as relações pré-dis-postas, im-postas e com-postas com

que o sujeito representa o real como objeto. Por isso, o sentido que se põe no poético

nunca é algo que se encontra de antemão dis-ponível, mas se manifesta na medida em

que se dá o poético por-se-em-obra-da-verdade. Desse modo, jamais há uma técnica e

uma razão suficientes que assegurem definitivamente o poético como algo estável e

estático. A imobilidade estática da representação não pertence ao poético, nem o

domina, mas sim a estabilidade dis-posta pelo conflito e pela tensão doada pelo próprio

vigor do ser. A interpretação dá-se então no e com o caminhar de cada um com o outro

nas peripécias das diferenças abertas em virtude do sentido e da verdade do ser em meio

a toda e qualquer identidade. Na interpretação a compreensão com-põe a cada vez o

sentido e a verdade do ser, pois dela e com ela se apropria mutuamente. A interpretação

con-duz a compreensão ao poetar pensante e ao pensar poético. Na música, esse poetar

pensante diz que nada nunca é com-posto, mas que tudo está em constante com-posição.

Pois, “a memória do poetar pensante e do pensar poético é a memória primordial das

origens originantes.”360

A fonte não é o passado, mas o futuro do rio que se viaja de si para si mesmo,
cavalgando a sua própria foz. E o salto originário (Ursprung) do silêncio da léthe não é
simplesmente o inefável do misticismo teológico, mas exatamente o inexaurível impulso de
efabulação da silenciosa voz que assinala e cala o inenarrável rapto do acontecimento
criptofântico da fons et origo da alétheia.361

359
Cf. Heidegger, 1990:60.
360
Souza, 2001/2:31.
361
Souza, 2001/2:31.
221

Inspirada por Hermes, a música dá-se o circular que percorre os caminhos em

meio ao que se com-põe e dis-põe no e pelo sentido do ser. Dessa maneira, a

salvaguarda da obra é antes de tudo a salvaguarda do que aqui e acolá não estava

programado e do que ainda não havia sido pensado. A salvaguarda é a memória tanto do

a-ser-pensado como do a-ser-pro-duzido. Na salvaguarda soa o poético sempre de modo

mais claro e ressonante. A salvaguarda do poético é um pro-jeto que se destina à

humanidade histórica362, abre-se como livre oferta das possibilidades que o próprio ser,

em sua referência apropriante à essência do homem, doa. Na livre abertura dessa oferta,

o homem que aí se encontra lançado, encontra o próprio ser na sua ambigüidade:

O projeto poemático provém do nada, no ponto de vista de que nunca aceita a sua
oferta a partir do habitual e do que até então havia. Todavia, nunca vem do nada, na medida
em que o que por ele é lançado é só a determinação retida do próprio ser-aí histórico.
Doação e fundação têm em si o caráter não mediatizado do que chamamos princípio
(Anfang). Com efeito, a imediatidade do princípio, a peculiaridade do salto a partir do não-
mediatizável, não exclui, mas antes inclui que o princípio se prepare muito longamente e de
uma forma inteiramente inconspícua.363

O inconspícuo silenciar do ser, dando-se linguagem admite o fato do homem

nem sempre escutar o soar do poético, o que não significa que ele não esteja em

constante acontecimento, pois é o evento marcante do próprio modo de habitar do

homem. Esse silenciar revela então que não depende da vontade da razão calculante a

determinação da “exatidão” do poético, mas é este que em primeiro lugar admite e

autoriza que a própria razão se manifeste em seu destino histórico. Esse destino

histórico enviado desde os gregos diz que a pro-dução não pertence ao homem, que esta

não é produto de uma razão calculante ou de uma razão suficiente, mas que manifesta a

saga como poesia da mútua apropriação de ser e homem. A poesia como essência de

362
Cf. Heidegger, 1990:60.
363
Heidegger, 1990:61.
222

todo agir diz que o homem não é uma substância na qual e para a qual várias coisas

acontecem, mas que ele mesmo é um evento que se refaz repetindo e retraçando o

passado histórico364.

Na transcendência poética da música frente a todos os ordenamentos e modos de

calcular e assegurar o real, a música mesma possui as mais diversas funções e, ao

mesmo tempo, nenhuma função. Do mesmo modo, pode ser empregada e utilizada em

variadas situações e ocasiões e, no entanto, não tem utilidade nenhuma. Com a música

não se tem em nenhum momento assegurado o que se pode ou não fazer. Pois, é o

projeto poemático que se destina ao homem como salvaguarda que na música diz o

sentido de todo agir como o sentido fundante do que se principia na doação e

oferecimento do próprio sentido do ser. “O princípio (...) contém sempre a plenitude

inexplorada do abismo intranqüilizante, isto é, do combate com o familiar.”365 Já na

aurora do pensamento ocidental, Parmênides é convidado pela deusa inominada e que,

portanto, se recusa no silenciar da linguagem que o próprio ser se torna, Parmênides é

convidado a trilhar o caminho que está para além e para fora do caminho dos homens,366

no extremo horizonte onde a con-fluência e di-fluência das sendas da noite e dia se

circun-ferem e circun-fluem.367 Tal qual um portal etérico que mantém em contraponto

moldura e umbral, a passagem poética cripto-onto-fântica situa-se na in-fluência e na

pro-fluência dos conlitos e tensões.

A duplicidade originária do pensar poético se confirma na compertinência primordial


do ser e do aparecer. No Poema de Parmênides, o homem sapiente (eidóta phota) não é tão-
somente quem percorre o percurso do sol no próprio carro do deus (daímonos) (frg m1,3),
mas principalmente quem se encaminha rumo à concruz do dia e da noite. As divinas

364
Inwood, 2002:4.
365
Heidegger, 1990:61.
366
Parmênides, I vv. 22-8. In: Os pensadores originários, p. 44-5.
367
Parmênides, I vv.11-4. Os pensadores originários, p. 44.
223

Helíades conduzem o pensador aos confins do horizonte extremo, aonde o céu e a terra se
circunferem. Esta viagem sui generis não é para baixo, uma incursão na interioridade
ctônica (katábasis), nem para cima, uma excursão na exterioridade urânica (anábasis).
Verdadeira ciência iniciática, a peregrinação relatada no Proêmio não tem início nem fim,
mas se revela no meio da travessia. O aonde se vai sempre se volta ao donde se parte (frg.
5). A deusa inominável, que revela ao pensador o autêntico saber acerca do duplo domínio
do ser e do aparecer, permanece inominada, não se confundindo com as divindades
noturnas nem com as diurnas. A revelação não se restringe à indicação de uma via de mão
única, mas se traduz na exortação de que é preciso conhecer a verdade da essência
(alétheia) e, ao mesmo tempo, reconhecer a validade da aparência (doxa) (frg. 1, 29-32). A
deusa sublinha e enfatiza que é de modo justo e autêntico que as aparências (dokounta)
perpassam e permeiam a totalidade do que existe, instituindo o fulgor do suntuoso domínio
dos entes que se mostram gloriosamente presentes no portentoso ilumínio da transparência
conjuntiva de tudo (frg. 1, 31-32). O ser e o aparecer ainda não se encontram separados no
éon parmenídeo. A essência e a aparência se compertencem. Quem se inicia no
conhecimento hierofanicamente revelado tem de assumir a vigília ontológica que o capacite
a considerar, não apenas um, mas, sim, os três caminhos (hodói) da iniciação gnosiológica:
1o) a senda do ser; 2o) a vereda do nada; 3o) a via da aparência. Não se consegue a sabedoria
se apenas se persegue a perfeição esférica do ser. Sábio é quem se dispõe numa experiência
conjunta com o ser, o não-ser e o aparecer.368

A obra faz brotar o aparecimento e concretização de novas possibilidades. Esse

surgimento nos remete para o fato de que não é a música que se configura a partir dos

diversos modos de asseguramento do real da metafísica, mas que a possibilidade de

haver alguma instância de asseguramento do real advém em primeiro lugar da própria

potência musal da música. Por isso, nunca devemos perguntar o que se pode fazer com a

música. Com ela não se pode fazer rigorosamente nada na medida em que a dimensão

funcional da utilidade já se encontra previamente configurada pelas instâncias de

asseguramento e totalização do real – pela técnica e pela ciência. No entanto, justamente

aí é que pode surgir a pergunta essencial: se não se pode fazer nada com a música, será

então que a música não poderá fazer algo com o homem?

A resposta a essa pergunta pode começar a ser delineada na co-memoração do

pensar poético ou do poetar pensante. Pois, não é senão em virtude de que antes de

qualquer coisa a música – e não as diversas regiões técnicas e científicas – doa e oferece

o dimensionamento do sentido do ser porque o próprio ser tornando-se linguagem, doa-

368
Souza, 1999:82-3.
224

se música. Desse modo, o fazer musical não se dá primeiramente pela conquistas

operadas nas esferas da técnica e da ciência, pelas cisões e de-cisões efetivadas no seio

da separação sujeito-objeto ou da dicotomia sensível-inteligível, mas é a música que

constitui o dizer inaudito que silenciosamente pronuncia o sentido do habitar poético do

homem como o sentido e verdade do ser, como doação de ser ao sentido. A música em

sua poética do sentido dá-se: sentido do ser. Na poética do sentido do ser a música

manifesta a estranheza do que é mais familiar e a familiaridade do que é mais estranho.

Pois, na ambigüidade do ser a música com-põe o vigor de suas realizações.

O desconhecido destina-se ao que é familiar para o homem e estranho para o deus a


fim de manter-se resguardado como desconhecido. O poeta, porém, na palavra cantante, faz
apelo a todas as claridades que instauram a fisionomia do céu e a todas as ressonâncias de
seus cursos e ares, trazendo à luz e ao som o que assim se faz apelo. O poeta, quando é
poeta não descreve o mero aparecer do céu e da terra.369

Pois,

O canto não é natureza


nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.370

Desse modo, a música, por dar-se poética do sentido, também diz, isto é, em sua

saga, mostra, deixa aparecer, libera clareando-encobrindo, propiciando o que se chama

de mundo371. O vigor dessa saga como doação do próprio ser se manifesta como

sentido. Não há primeiramente um sentido, como também não há primeiramente o som

tão pura e simplesmente dado, mas é em virtude da doação do ser e linguagem que som

e sentido chegam a estabelecer propriamente uma referência. Por isso mesmo, ainda que

o som venha a se com-por na música, o sentido que aí acontece advém da doação do

próprio ser como sentido. Assim, a música não diz com as palavras, mas com a
369
Heidegger, 2001:176-7.
370
Andrade, 2002:117. Procura da poesia, vv. 16-8.
371
Cf. Heidegger, 2003:157.
225

preservação e resguardo delas. Ao preservar as palavras do decaimento terminológico

do uso comunicativo da linguagem pelo modo assegurador e calculador do real operado

pela técnica, a música mesma guarda a sagrada memória do co-pertencimento de ser e

pensar como agradecimento por uma dádiva, ou como diziam o gregos, como cháris372.

Assim, é como graça ou favor recebido que o homem refere sua essência no pensar

poético e no poetar pensante à doação do ser. Na dádiva do que se oferece nessa doação

“o poeta faz apelo àquilo que no desocultamento se deixa mostrar precisamente como o

que se encobre e, em verdade, como o que se encobre.”373 Ora, o que se deixa mostrar

no que se dá como oferecimento e ao mesmo tempo se retrai no encobrimento é o ser.

Em toda poética está em jogo a re-velação do ser em sua dinâmica de alétheia, uma

dinâmica que mostra e ao mesmo tempo encobre. O que se doa na doação dá-se o que se

deixa ver. Em todo deixar ver, para o que se deixa ver é necessário que o que se dá se

retire para o encobrimento. O ser garante à poesia um modo de dizer privilegiado, na

medida em que as imagens poéticas, isto é, aquilo que se deixa ver no dizer poético são

imaginações.

Imaginações e não meras fantasias ou ilusões. Imaginações entendidas não apenas


como inclusões do estranho na fisionomia do que é familiar mas também como inclusões
passíveis de serem visualizadas. O dizer poético das imagens reúne integrando claridade e
ressonância374 dos muitos aparecimentos celestes numa unidade com a obscuridade e a
silenciosidade do estranho.375

A música em sua poética do sentido empenha o homem na incumbência do ser.

Claro e obscuro, ressonância e silêncio são indiciações do sentido do ser em sua força

de vigência e retração. Nesse incumbir, em que a ambigüidade do ser não se manifesta

372
Cf. acepção In: Lidell-Scott, versão on-line, Projeto Perseus.
373
Heidegger, 2001:177.
374
Sobre a relação entre claridade e ressonância, cf. Capítulo I, p. 17ss.
375
Heidegger, 2001:177.
226

como uma simples duplicidade de ou isto ou aquilo, nem isto e aquilo, mas como a

riqueza eclosivo-circunferente que percorre a envergadura do arco da abertura dis-posta

pelas indiciações contrárias e complementares, a co-memoração não é apenas um mero

festejar, como se festeja com alívio a conclusão bem sucedida de uma tarefa ou de um

dever. Na incumbência do homem ser o que é e habitar como habita, a saber, poeta e

poeticamente, a música dá-se a própria co-memoração na medida em que, sendo solene

proclamação, demarca a reunião no presente que consagra passado e futuro. O vigor do

habitar poético do homem que Hölderlin trouxe à saga da palavra – ...poeticamente o

homem habita...376 – se constitui no fato da poesia deixar habitar em sentido originário.

O habitar, contudo, só acontece se a poesia acontece com propriedade e, na verdade,


(...) como a tomada de uma medida para todo o medir. Ela mesma é a medição em sentido
próprio e não mera contagem com medidas previamente determinadas no intuito de efetivar
projetos. A poesia não é, portanto, nenhum construir no sentido de instauração e edificação
de coisas construídas.377

Não dramatizes, não invoques,


não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.378

A poesia não subsiste nem ganha vigência pelos objetos de um desmedido abuso

de medição e asseguramento do real por parte do sujeito. Ao contrário, na medida em

que o poético enseja o pensamento que medita o sentido, permite que as próprias coisas

ganhem sentido pela doação do ser que na poesia acontece e apropria. Na apropriação

376
Cf. Hölderlin, No azul sereno floresce..., vv. 31-2.
377
Heidegger, 2001:178.
378
Andrade, 2002:117. Procura da poesia, vv. 21-32.
227

que acontece no poético não se dá tão somente a consciência das meras coisas, pois

“ainda não pensamos o sentido quando estamos apenas na consciência”379. A poesia não

tem qualquer compromisso com a consciência. Esta, por sua vez, vigora, em tempos

modernos, como o modo proeminente do pensamento representativo e explicativo.

Como tal, a consciência se im-põe por uma hegemonia da representação frente

ambigüidade aberta pelas e nas indiciações do ser como linguagem.

Encalçando os passos de Hölderlin, Heidegger refuta o princípio estético-metafísico da


unidade orgânica da obra de arte, afirmando que o poematizado é o dito e o não-dito do
poema. O autêntico diálogo poético-pensante se processa no intercâmbio contrapontístico
da lavra do silêncio e da palavra poética fundamental. Na poematização, o que
primordialmente se manifesta, desocultando-se e, simultaneamente, ocultando-se na
dimensão clara e aberta é o sagrado, o poema não poematizável. Todos os poemas são
variações em torno do poema continuamente em véspera de ser escrito, que é o poema da
mais pura lavra da latência do silêncio. O pensar que remonta à fonte e relembra a origem
(Denken an = Andenken) é o mais difícil, mas também o único que recorda e pensa em
memória do ser. Poeta é quem mostra a abertura do sagrado, nomeando a fulguração
ofuscante ou a ofuscação fulgurante da clareira do ser.380

Pronunciando a saga de som e silêncio a música manifesta doação de sentido.

Ora, é no sentido da memória das origens que o ser doa possibilidade. O a-ser-pro-

duzido mantém em reserva e latência a realização da passagem poética do não-ser para

o ser. Este se apresenta como o mais completo, profundo e abrangente entre-mundos

hermenêutico. Por isso, o perdurar do vigor da latência do vir a ser constitui a poesia

como a medida para toda e qualquer medida. Isto quer dizer, a poesia é um construir em

sentido inaugural, pois deixa em primeiro lugar o ser dizer a saga de seu vigor e de sua

vigência em sua referência para com o homem e com o sentido. Pois, se não é a

representação das coisas que nos chega pela memória, senão as coisas mesmas, isto

ocorre em virtude de que em primeiro lugar o ser já se manifestou como sentido e em

seu sentido e verdade. Esta manifestação, que ao mesmo tempo pronuncia o retraimento

379
Heidegger, 2001:58.
380
Souza, 2001/2:31.
228

do próprio ser (a-létheia), se diz na linguagem do ser, poiésis. Na medida em que o ser,

em referência e apropriação para com o homem se manifesta poeticamente, o habitar

humano não será, então, diferente, pois na concruz aberta pela manifestação poética se

dá o conflito e o embate contínuo de todos os empenhos e desempenhos, de todas as

realizações e não realizações.

Esse o sentido de co-memorar, memorar em conjunto de passado e futuro,

refazendo e retraçando as possibilidades de realização do ser. Refazer e retraçar não são

apenas ações que expressam uma repetição pura e simples, mas acenam nessa repetição

com as possibilidades futuras. Tanto no passado, como no futuro, tanto no

conhecimento adquirido, como no que ainda está por se conhecer, a música reúne

nossos projetos de ser nas ondas do não ser e do vir a ser381. Na encruzilhada do não-ser

e do vir a ser, a possibilidade mais extrema de toda interpretação da compreensão

poética do mundo. Na via cruciforme de toda interpretação que deixa ressoar a claridade

do poético, a saga do silêncio dimensiona a escuta do sentido como música.

Penetra surdamente no reino das palavras.


Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície inata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e se consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas do chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:

381
Leão, 1992:43.
229

Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.382

Deixando a linguagem mesma pronunciar na saga das línguas o vigor da

habitação do ser, isto é, o vigor do seu sentido, é preciso antes de tudo levar realmente

em consideração o que até aqui foi ex-posto. Nesse contexto, claro está que o

pensamento não se deixa entender através das acepções metafísicas que o reduzem à

operatividade lógica e racional do intelecto do sujeito.

Pensamento não se refere aqui às atividades de representação, combinação e


computação no cérebro de um mamífero esperto que “de repente descobriu o
conhecimento” e se transformou em sujeito da história pelos “sistemas de produção” ou que
morreu para a história pela simbolização do Grande Outro. Pensamento diz aqui a
experiência instauradora de história, do dar-se da realidade enquanto se retrai e retira nas
realizações. Ora, dar-se na medida e na proporção que se retrai, constitui a parúsia inerente
ao mistério da realidade. De Hölderlin vararam até nós as palavras pensadas num instante
de poesia: “pouco saber mas muita alegria foi dada aos mortais”. Não é, pois, o saber, é o
mistério que faz pensar o pensamento. Nós pensamos quando não sabemos.383

O não saber que advém como mistério não somente faz o pensamento pensar. O

fazer pelo fazer já se apresenta numa apreensão do mistério do não saber desde uma

panorâmica por demais moderna, determinada desde a relação sujeito-objeto. No intuito

de conservar uma atitude mais prudente quanto às pré-determinações correntes de

apreensão do real, pode-se dizer então que o mistério não exatamente faz, mas dá o que

pensar. Esse “dar” aqui é muito significativo na medida em que se pode “compreender”

o mistério como aquilo mesmo que se dando, isto é, surgindo e dando o que pensar,

institui o próprio pensar. O pensamento continuamente se debruça então sobre algo que

lhe retira o chão firme, um retirar que transparece já mesmo ao se proferir o surgimento

382
Andrade, 2002:118. Procura da poesia, vv. 33ss
383
Leão, 1993:108.
230

do mistério. Ora, sendo a um só tempo surgimento e mistério, então o que surge é

justamente o que se encobre. No entanto, ao contrário do que ensina a lógica e a razão, o

mistério não está aí pura e simplesmente para ser desvendado e resolvido. Levando a

sério a tensão de surgimento e encobrimento que se dá com e como mistério e sua

patente contradição, não é a impossibilidade de pensar que se apresenta, mas sim a

perspectiva essencial do pensamento. Pois, levando-se a sério o mistério como

surgimento encobridor, abandona-se ao mesmo tempo uma interpretação técnica do

pensamento em favor de seu “elemento” mais próprio, a saber, o ser.

Para aprendermos a experimentar em sua pureza (...) essa Essência do pensar, devemos
libertar-nos da interpretação técnica do pensamento. Seus primórdios remontam até Platão e
Aristóteles. Para eles o pensamento é, em si mesmo, uma techne, o processo de calcular a
serviço do fazer e operar. Nesse processo já se toma o cálculo em função e com vistas à
práxis e a poiesis. Por isso, quando considerado em si, o pensamento não é prático. A
caracterização do pensamento como theoria, e a determinação do conhecimento como
atitude “teórica” já se processam dentro da interpretação “técnica” do pensar. É um esforço
relativo, visando preservar, também para o pensamento, a autonomia face ao fazer e ao agir.
Desde então, a “filosofia sente, constantemente, a necessidade de justificar sua existência
diante das “ciências”. E crê fazê-lo, da forma mais segura, elevando-se à condição de
ciência. Ora, esse esforço é o abandono da Essência do pensamento.
Diferentemente das ciências, o rigor do pensamento não reside apenas na exatidão
artificial, isto é, técno-teórica dos conceitos. O rigor do pensamento se edifica na medida
em que seu dizer permanece, exclusivamente, no elemento do Ser e deixa vigorar a
simplicidade de suas múltiplas dimensões.384

O mistério a ser pensado como fonte do próprio pensamento, isto é, como o que

dá a e o pensar, se constitui desse modo no dar-se retraente do ser, em sua dinâmica de

alétheia, de verdade. Dizer, portanto, verdade do ser significa dizer o pertencimento de

ser e verdade ao mesmo. O ser se dá: verdade; o ser se dá, portanto: linguagem. No dar-

se verdade e não sendo, porém, coisa alguma ao modo de um ente, o ser mesmo se dá

como o mistério a ser pensado, aquilo mesmo que con-voca o pensamento a pensar,

dando o que pensar. O pensamento pensa assim em memória do ser, isto é, o

pensamento se encontra con-vocado pela radical ambigüidade da verdade do ser como a

384
Heidegger, 1995a:26-7.
231

fundante possibilidade do sentido. Por isso, pode-se dizer que o sentido é a

manifestação do que ganha vigência, isto é, daquilo que sendo pelo vigor do ser se dá:

linguagem. Em memória do ser, isto é, na salvaguarda e preservação da verdade do ser,

o pensamento se constitui, do mesmo modo que a poesia, numa vigília que con-suma “a

manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, [poetas e pensadores] a tornam

linguagem e a conservam na linguagem”.385 O pensar constitui uma unidade com o

poetar na medida em que, trazendo o ser à linguagem, pronuncia o lógos da memória, a

essencial e radical preservação e conservação da unidade originária de ser, sentido,

verdade e linguagem. Desse modo, o pensar se constitui numa unidade com a própria

memória. Esta unidade de pensar e memória foi preservada na experiência dos idiomas

Indo-Europeus:

Muitas das palavras para “lembrar” pertencem a um grupo herdado, de uma raiz Indo-
Européia que também é comum em palavras para “mente” e para “pensar”, e muitas outras
fora desse grupo estão relacionadas com outras palavras para “mente” e “pensar”. Em outro
grupo herdado “lembrar” ou “memória” (Indo-Iraniano, Latim) alterna com “ser ansioso,
cuidar” (Grego, Germânico).386

O parentesco entre memória e pensar se consolida ainda mais ao se tomar o

radical indo-europeu *mem-, a mesma raiz que “pensar”, como no sânscrito man-.387

Ambos mantém uma proximidade com o grego mna- que forma o verbo mémnemai e

diz, como se viu anteriormente, manter conservado e preservado no desvelado, isto é, a

conservação e preservação do que chega a e pela alétheia. A referência im-plícita de

pensar e memória se ex-plicita na sua raiz comum. Entretanto, a experiência do pensar

também se liga a agradecer, cujos gregos verteram como cháris, e se reteve no Inglês

Antigo thanc e no Antigo Alto Alemão danc.


385
Heidegger, 1995a:25.
386
Buck, 1988:1228. Cf. original na p. 271.
387
Ibid.
232

O agradecimento [Gedanc] significa a mente, o coração, o fundo do coração


[Herzensgrund], a essência mais íntima do homem que alcança o exterior de modo mais
pleno e no seus limites mais extremos, e tão decisivamente que a idéia de um mundo
interior e exterior não aparece.
(...)
O agradecimento [Gedanc], o fundo do coração, é a reunião de tudo o que se nos
refere, tudo que cuidamos, tudo que nos toca na medida em que nós somos, como seres
humanos. O que nos toca no sentido de definir e determinar nossa natureza, aquilo pelo
qual cuidamos, podemos chamar de contíguo e contato.388

A raiz comum de pensar e memória ex-plicita sua relação im-plicante. A palavra

alemã Gedächtnis ainda hoje faz chegar ao dizer da fala essa reunião originária: “a

palavra alemã para dizer memória, Gedächtnis, compõe-se do prefixo “Ge” =

concentração, reunião e “dächtnis”, formada pelo particípio “gedacht” do verbo pensar

“denken”.”389 A memória como reunião de pensar e agradecer ultrapassa por completo a

noção moderna de pensamento como cálculo, como modo de asseguramento do real,

isto é, como o modo de articulação representacional em que se pode previamente contar

com o real, pré-dispondo-o numa sucessão infinita de objetos para um sujeito.

Apenas porque nós estamos essencialmente reunidos em contigüidade é que podemos


permanecer concentrados naquilo que é ao mesmo tempo passado, presente e está por vir. A
palavra “memória” originalmente significa essa incessante concentração na contigüidade.
No seu sentido narrativo original, memória significa tanto quanto devoção [An-dacht]. Essa
palavra possui o tom especial do piedoso e da piedade, e designa a devoção da prece,
apenas porque denota a relação completamente compreensiva da concentração sobre o
sagrado e o gracioso. O agradecimento [Gedanc] se desdobra na memória, a qual persiste
como devoção.390

A saga da palavra Gedächtnis através de Gedanc desloca a memória de sua

exclusiva compreensão metafísica que a denomina como a capacidade de reter coisas

que estão no passado391 e que impõe ao pensamento a identificação final do ser com a

388
Heidegger, 1968:144. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 271.
389
Nota 2 do tradutor, In: Heidegger, 2001:118.
390
Heidegger, 1968:145. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 272.
391
Heidegger, 1968:145.
233

objetividade392, para conservar latente o seu sentido originário de con-vocação do

pensamento pelo que se dá em todo agradecimento.

Mas se nós compreendermos memória sob a luz da antiga palavra Gedanc, então a
conexão entre memória e agradecimento se nos torna clara de uma vez. Pois, em dar
agradecimento, o pensamento recorda onde ele permanece reunido e concentrado, pois aí
ele pertence. Esse pensamento que co-memora é o agradecimento original.393

Muito diferente, então, da redução do pensamento ao mero cálculo, o

pensamento autêntico não apenas é aquele que agradece, mas o pensar que pensa aquilo

que autenticamente dá a pensar, isto sim é o autêntico agradecimento. O agradecimento

autêntico é aquele que pensa o que é digno de ser pensado e o que se constitui na

própria pro-vocação do pensar. Na pro-vocação do pensar se dá o sentido do ser como o

evento do des-velamento. A reunião na memória de pensar e agradecer diz a saga do

sentido do ser como des-ocultação, isto é, como verdade.

Memória é, aqui, a concentração do pensamento que, concentrado, permanece junto ao


que foi propriamente pensado porque queria ser pensado antes de tudo e antes de mais
nada. Memória é a concentração do pensar da lembrança daquilo que, antes de tudo e antes
de mais nada, cabe pensar.394

Como salvaguarda do des-encobrimento a memória é a salvação e a preservação

do sentido do ser. O ser se abriga na memória, o pensar concentrado da lembrança do

que cabe pensar. Abrigando o sentido do ser em evento des-encobridor a memória é a

fonte da poesia. A palavra alemã Dichtung – poesia – conta a saga desse pensar

concentrado. Nela também se concentra o pensamento co-memorativo do ser na medida

em que ocorre um condensar – dichten. A poesia diz a saga do sentido do ser com a qual

a memória densifica o real, dando-lhe contorno. Por isso, na poesia, em seu modo

392
Vattimo,1988:133.
393
Heidegger, 1968:145. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 272.
394
Heidegger, 2001:118.
234

próprio de ser, se dá também o pensar porque apreende-se aí a abertura do ser em sua

máxima envergadura. Esta abertura sendo proveniente da mútua apropriação de ser e

homem não se vê jamais comprometida com este ou aquele modo de imposição

asseguradora do real, pois ela mesma não é um ato puramente da vontade. Por isso,

jamais há uma razão que calcule suficientemente esta abertura, pois não é mesmo

possível contar com o ser. E não é possível pelo simples fato do ser, ele mesmo que dá

ser e que de certo modo se constitui como referência até mesmo de tudo que não é, o ser

mesmo não é. O ser não se dá como um “é”. Dar-se como poderia significar que o ser

teria como seu traço fundamental a identidade, a identidade com o que é, com a coisa,

enfim, com o próprio “é”. No entanto, o ser não pode manifestamente ser o mesmo que

o “é”. Isto quer dizer: ao ser não convém a natureza de coisa. Por isso, na medida em

que se pensa concentradamente o sentido não do “é”, como sempre fez a metafísica,

mas do ser, logo se depara com o fundo abissal daquilo que pensado metafisicamente

como o que provê ser a todo e qualquer ente, não tem qualquer fundamento. A questão

do fundamento é sempre uma questão da metafísica e como tal tem a própria questão do

ser relegada ao mais profundo esquecimento. O esquecimento se evidencia na medida

em que também é possível pensar o ser nem como fundamento do ente, nem como

alguma coisa que por detrás possua um outro que lhe dê fundamento. Com a questão do

ser os sistemas lógicos de causa e efeito perdem sua vigência, já que o princípio da

identidade, um dos primeiros princípios da metafísica, pode então se transformar, tendo

em vista a mútua apropriação de ser e homem. Ser e homem se encontram referenciados

numa unidade indissolúvel. O nome dessa referência atende pelo que diz o lógos. Esta

referência dá-se ao mesmo tempo abertura e sentido dessa comum-união e desse comum

pertencer. Ora, na medida em que o lógos diz a reunião de ser e homem, não é possível
235

pensar nem o ser como um “é”, nem o homem como substância. A identidade aqui não é

entre ser e “é”, e homem e substância, mas se constitui, paradoxalmente, na di-ferença

que se abre em meio a essa reunião originária concretizada no lógos. “É certo que a

metafísica representa o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente. Todavia, ela não

pensa a diferença entre eles. A metafísica não questiona a Verdade do Ser em si

mesmo”.395 Desse modo, o homem mesmo é evento, isto é, o homem com o ser

pertencem à dimensão do acontecimento, constituindo não um fato acabado, mas um

acontecimento formante, pois nunca cessa de apropriar mutuamente ser e homem. Nessa

mútua apropriação, o homem “é um evento, não uma substância na qual e para a qual

várias coisas acontecem.”396 Chama-se poiésis o sentido desse acontecimento-

apropriador, o seu sentido, a pro-dução. Em todo pro-duzir como poiésis se concretiza a

verdade da abertura e do sentido do ser para o qual e com o qual a cada vez o homem se

apropria e deixa apropriar-se, isto é, mutuamente escuta e pertence. A razão veda aqui

qualquer possibilidade de pensamento que não se traduza num cálculo assegurador e por

isso, veda o acesso ao que não sendo, não tem fundamento.

Mas só quando nós refletimos sobre o que no pensamento grego primevo lo/goj diz
para Heráclito, se tornou claro, que esta palavra nomeia ao mesmo tempo ser e fundamento,
ambos a partir de sua pertença recíproca. Aquilo que Heráclito designa por lo/goj diz ele
ainda por outros nomes, o que são expressões condutoras do seu pensamento: fu/sij, o que
se-abre-a-partir-de-si, que simultaneamente está presente como ocultar-se; ko/smoj, que em
grego simultaneamente expressa ordem, injunção e ornamento, que como brilho e esplendor
expõe à revelação; por fim Heráclito nomeia aquilo que se lhe atribui lo/goj como o mesmo
de ser e fundamento: aiw/n. A palavra é difícil de se traduzir. Diz-se: o tempo do mundo. É
o mundo, que mundifica e temporaliza, quando ele como ko/smoj (Frg. 30) traz a injunção
do ser a um resplandecer exaltante. Nós podemos após o que foi dito nos lo/goj, fu/sij,
ko/smoj, ouvir aquele indito, que nós nomeamos destino do ser.
O que diz Heráclito do aiw/n? O fragmento 52 reza: aiw/n pai=j e)sti pai/cwn, pesseu/wn
paido/j h( basilhi/h. Destino do ser, isso é uma criança, jogando, jogando ao tabuleiro; uma
criança e o reino – isto é a a)rxh/ o fundar governante instituinte, o ser ao ente. O destino do
ser: uma criança, que joga.

395
Heidegger, 1995a:39.
396
Inwood, 2002:4.
236

Por conseguinte também existem crianças crescidas. A maior, criança régia pela
suavidade do seu jogo, é aquele segredo do jogo, no qual o homem e o seu tempo de vida
trazido, é posto na sua essência.397
Porque é que a grande criança tida em vista por Heráclito no aiw/n joga o jogo do
mundo? Ela joga, porque ela joga.
O “porque” afunda-se no jogo. O jogo é sem “porque”. Ele joga, enquanto joga.
Permanece apenas o jogo: o supremo e o mais profundo.
Mas este “apenas” é tudo, o um, único.398

A memória mantém a salvo o segredo em que o ser, sem-fundamento, dá ser. A

poesia concretiza o destino do ser. Mas esse destino não pode ser confundido com um

mero negativo. Ora, o ser não pode negar o que dá: ser, mas pode recusar-se num

retraimento. Portanto, o ser permanece no acontecimento que apropria o ente para sua

ambigüidade. Essa apropriação se diz no pertencimento do ente ao ser na medida em

que esse pertencer manifesta a diferença entre ser e ente. Contudo, na abertura do

homem ao ser é que se manifesta o sentido dessa apropriação:

O homem é manifestamente um ente. Como tal, faz parte da totalidade do ser, como a
pedra, a árvore e a águia. Pertencer significa aqui ainda: inserido no ser. Mas o elemento
distintivo do homem consiste no fato de que ele, enquanto ser pensante, aberto para o ser,
está posto em face dele, permanece relacionado com o ser e assim lhe corresponde. O
homem é propriamente esta relação de correspondência, e é somente isto. “Somente” não
significa aqui limitação, mas plenitude.399

O homem co-responde ao ser na medida em que a ele pertence. O homem é ele

mesmo apropriado pelo ser. O pertencer [gehören] que aí ocorre é antes e acima de tudo

um escutar [hören]. Ora, ecoa até hoje o que diz o Fragmento 50 de Heráclito:

“Auscultando não a mim mas o Lógos, é sábio concordar que tudo é um”.400 Ser

pensante aberto e referenciado ao ser, o homem escuta o que no pensamento lhe restitui

ao ser como essência: o lógos. Somente por isso e em virtude disso o homem pode em

397
“A partir do extraordináro o homem, infantil, como a partir do homem, criança”. Fragmento 79. In:
Pensadores originários, p. 79.
398
Heidegger, 1999b:163.
399
Heidegger, 1991:142.
400
Heráclito, 1991:71.
237

primero lugar escutar o ser: porque o ser se torna linguagem. A linguagem: ser, a casa

do ser, dá-se também: morada do homem. Morada não quer dizer de modo algum um

lugar como outro qualquer, mas antes de tudo demorar-se, ficar, morar, viver com. Isto

significa que somente e na medida em que o homem se demora e se detém, fica e vive

com a linguagem, ele mesmo encontra e ganha o próprio sentido do ser, porquanto, na

consumação da sua referência ao ser no pensamento, o próprio ser se torna linguagem.

Pode-se então compreender a sentença quase oracular de Aristóteles “zóon logon

echon” como aquela que manifesta o daimon do homem, isto é, aquilo que sendo o mais

simples, enseja o mais sagrado. Por isso, também, a morada, que nas perspectivas pós-

modernas da sociedade planetária ocidental aparece reduzida a um detalhe da crise

habitacional, a morada extra-ordinária do homem diz de maneira mais antiga: lógos.

Esta “é tanto a palavra para o dizer como para o ser.”401 Desse modo, nesse co-

pertencimento de ser e linguagem, o homem só é homem por que na habitação desse co-

pertencimento ele se demora. Essa demora diz que o homem não controla em absoluto o

transcorrer de sua morada, mas que é a partir dela que pode chegar a compreender a

concretização do ser no tempo como mundo, como sentido.

Em todos os nossos pensamentos e conhecimentos sempre já fomos precedidos pela


interpretação do mundo feita na linguagem, e essa progressiva integração do mundo chama-
se crescer. Nesse sentido, a linguagem representa o verdadeiro vestígio de nossa finitude. A
linguagem já sempre nos ultrapassou.402

Por isso, jamais se corresponde ao apelo do ser que dá-se: linguagem, porque se

escuta este ou aquele sujeito, seja Heráclito, seja um eu singular ou coletivo, mas

porque antes de tudo se ausculta o lógos, se escuta, porque pertence àquilo mesmo que o

ser se torna. Nessa ausculta permanece o acontecimento da reunião primordial, isto é, o

401
Heidegger, 2003:188.
402
Gadamer, 2002:178.
238

acontecimento em cuja ausculta tudo é um, em virtude de que, antes de tudo, no lógos o

ser se re-une à linguagem como morada em que a própria essência do homem se

demora. Desse modo, a demora que temporaliza a essência do homem como finitude se

dá como sentido do mundo. O sentido manifesta, isto é, mostra e faz brilhar a

fisionomia ambígua de familiaridade e ocultação, mostra o que a saga do dizer, seja ele

da palavra, seja ele da música, diz como concreção do real. O concreto do real se diz

enquanto se diz.

A linguagem viva não tem consciência de sua própria estrutura, gramática, sintaxe,
etc., portanto, de tudo aquilo que a ciência da linguagem tematiza.
(...)
(...) Quanto mais vivo o ato de linguagem, tanto menos consciência temos dele. Assim,
o esquecimento de si próprio da linguagem nos mostra que o seu verdadeiro sentido é o que
nela se diz, o que constitui o mundo comum, onde vivemos e onde se insere também a
grande corrente da tradição, que nos alcança por meio da literatura de línguas estrangeiras,
vivas ou mortas. O verdadeiro sentido da linguagem é aquilo que adentramos quando a
ouvimos: o dito.403

Não há sujeito na linguagem. A conversão da linguagem em linguagem do

sujeito, em expressão de sua razão calculante é a condenação do ser ao esquecimento na

medida em que no autoritarismo auto-suficiente do sujeito não há espaço para o co-

responder de uma escuta que pertence, mas somente para os enunciados de sua

presunção como medida e fundamento de tudo que há. O pensamento do sujeito não é

de modo algum a restituição da memória do ser como agradecimento autêntico, pois

jamais parte de outra coisa que não o sujeito mesmo. “Penso, logo existo”, se apresenta

na primeira hora da modernidade como a expressão da presunção do sujeito sobre tudo

o mais, impõe a vigência de uma identidade pura calcada em si mesma. Nada tem a ver

com um pensamento originário que pensa o sentido sempre com o outro, com o sagrado,

isto é, com a diferença e com o que pronuncia a diferença. Também os poetas, por mais

403
Gadamer, 2002:178-9.
239

contaminados que possam estar pelas conceituações tradicionais da historiografia de

estilo e de autoria, jamais convertem a linguagem num mero instrumento de prescrição e

de asseguramento do real. Talvez não tanto por que como “sujeitos individuais” não

queiram continuamente fazer aparecer tudo e todos como corpos celestes em órbita da

esfera do eu, mas por que a poiésis antes de tudo e independentemente da autoria

concretiza a ética do acontecer poético que apropria mutuamente ser e homem. Como

essência de todo agir, a poiésis concede sempre a escuta primordial da unidade de ser e

lógos, diz que “no homem impera um pertencer ao ser; este pertencer escuta o ser

porque a ele está entregue como propriedade”404. Isto quer dizer, que o homem mesmo é

apropriado na linguagem muito antes que, como sujeito da razão, ele se aproprie dela.

Portanto, mesmo que na Modernidade o sujeito possa se autodenominar como aquele

que existe porque em primeiro lugar pensa, o próprio pensar pensa porque restitui a

essência do homem à memória do ser como o agradecimento autêntico, aquele que

profere, antes de tudo, a referência entre ser e homem como a referência primeva de ser

e ente. Assim, na medida em que o sujeito pensa o real a partir de uma identidade pura

calcada em si mesmo, a poiésis manifesta o co-pertencimento que na linguagem acentua

a diferença ontológica como evento apropriador de ser e homem. Pensar a restituição da

essência ao ser significa que dando-se linguagem o ser con-voca todo pensar, mesmo

aquele inaugural da Modernidade, como um pensar sobre a linguagem e sobre o sentido.

De outro modo não há pensar. Pensar sobre a linguagem quer dizer que o pensar já foi

antes de tudo alcançado pela linguagem. “Só podemos pensar dentro de uma linguagem

e é justamente o fato de que nosso pensamento habita a linguagem que constitui o

404
Heidegger, 1991:142.
240

enigma profundo que a linguagem propõe a pensar”.405 Por isso mesmo, mesmo numa

enunciação categórica com vigor suficientemente inaugural de uma época, permanece

porque perdura e demora no dito a vigência do não-dito. Pois, “a compreensão só se

instala no instante em que começa a brilhar em nós o que o texto não diz, mas quer dizer

em tudo que nos diz”.406 Desse modo, nenhum enunciado, por mais conciso que seja,

possui uma autonomia tal que constitua sentido apenas a partir de si mesmo, mas a

partir daquilo que, dizendo, também não diz. A vigência essencial das referências de

sentido é o vigor que é próprio a cada enunciado como a vigência latente da essência da

linguagem. Por isso, na música, em memória do ser, preserva-se a latência do não-dito

em meio a toda ressonância. Pois, não é possível dizer o que a música traz à saga de seu

dizer a não ser pelo seu próprio dizer e mostrar. A música mostra o sentido que somente

ela diz, independentemente das representações estéticas, históricas ou analíticas que a

ciência e a técnica possam enunciar. Permanece o fato de que estas enunciações jamais

concretizam, isto é, fazem crescer o que a música continuamente fala em memória do

ser.

Nesse sentido, a música jamais pode “ser” abstrata. Somente a obra pode “ser” e

mesmo assim, o que ela é nada tem a ver com a abstração. No entanto, é o que mais se

ouve e se diz por todos os lados, desde a experiência do senso comum até os gabinetes e

salas das academias. A proposição da música como abstração só pode ser enunciada,

entretanto, na medida em que não há suficiente questionamento a respeito do que é

música, muito menos do que é o abstrato. Essa insuficiência de questionamento se

traduz sempre na ausência de questionamento. O abstrato é sempre o lugar em que se

deposita a música como entulho em virtude de sua inapreensibilidade como ente. “A


405
Gadamer, 2002:176.
406
Leão, 1977:214.
241

música é a mais abstrata de todas as artes”. Exemplos de tal proposição não faltam na

história da estética, principalmente quando se considera a música do gênero

instrumental. Nesse sentido, se opõe abstração à representação, isto é, pensa-se o

abstrato como o caráter musical que a torna incapaz de “representar” uma outra coisa.

Apenas quando a música está associada a palavras ou a cena, por exemplo, é que

poderia representar idéias, sentimentos, coisas e situações.

No entanto, de outro modo, deve-se afirmar aqui que o que na palavra é palavra

e no que nas artes é arte, é sempre a remissão do inaudito pronunciado pela música

como memória do ser. O que se diz aqui trata de levar a sério o que é a música em sua

pronúncia de memória do sentido do ser. O que se diz aqui é que a música mesma, em

seus laços imemoriais com lógos e memória proclama o sentido do ser. O que se afirma

aqui é que a saga da memória do sentido do ser se pronuncia na e com a própria música

e não através de uma representação de algo outro através dela. O que se diz aqui é que

na unidade imemorial de lógos e música, o ser não somente se torna linguagem, mas

com isso, torna-se música. Na medida em que se torna música, assegura o resguardo da

essência da linguagem em toda sua força de retração.

Na co-memoração do sentido, a música não representa absolutamente nada.

Representação aqui não é compreendida de acordo com o uso do senso comum que a

opõe ao abstrato. De um lado, a música não representa porque não remete para outras

instâncias os princípios de sua realização. De outro lado, não representa justamente

porque nela nada há de abstrato. Isto quer dizer: a abstração, como se mostrou nos

capítulos anteriores é por excelência a operação que dis-põe o real como representação

lógica e racionalmente calculada. Se há alguma resistência da música à representação,

esta não é em relação ao primeiro, mas ao segundo sentido. Afinal, desde uma
242

perspectiva de relações intramundanas, mesmo a obra musical pode aqui ou acolá, ainda

que não de forma absolutamente determinante para a configuração do sentido, convocar

outras coisas do real. O que no entanto, nunca ocorre é que ela possa acontecer,

enquanto dimensão do evento apropriador da verdade, isto é, do sentido do ser, como

uma pura abstração racional e, portanto, como uma representação no segundo sentido.

A palavra abstrato vem do latim, abstraho que diz do que se retira, do se apresenta
idealmente ou do que se representa. Em última instância, abstrato diria de uma
representação à qual não corresponde nenhum dado sensorial ou concreto. Enquanto
representação, a abstração implica sempre um outro, e institui sempre uma necessidade de
correspondência. O abstrato traz consigo a necessidade de se perguntar o que ele abstrai, de
onde ele se retira, o que ele representa. A abstração implica também, por outro lado, a
identidade enquanto operacionalizador, na medida em que não é capaz de configurar o
sentido desde sua própria vigência.407

Desse modo, somente onde nunca se questiona a música, nem o que é abstração,

tampouco o que é representação, é que se pode afirmar que a música é a mais abstrata

de todas as artes. Porém, em todo questionamento que pergunta pela música e que se

deixa incumbir pela questão que é digna de ser pensada, aparece em primeiro lugar que

a música diz o aparecimento do ser dando-se como uma poética do sentido. A música

pro-duz o sentido em virtude do próprio ser tornar-se aquilo mesmo que ela resguarda

como memória do ser, a saber, a essência da linguagem. Portanto, a música realiza o

sentido. Ora, não é esta a experiência ao mesmo tempo mais comum e mais extra-

ordinária que a música constitui? Que é afinal esse realizar outra coisa senão um

concretizar? Dando-se a música: poética do sentido concresce a cada vez o que chega ao

concreto do real. A música, como o próprio pensamento, “participa da constituição da

densidade própria ao real”408.

407
Castro, 1997:224-5.
408
Castro, 1997:229.
243

A música é uma linguagem substantiva e, assim, desprovida enquanto linguagem, da


possibilidade de representar, de medir, de identificar outra coisa que não seja ela própria.
Desse modo, ela é ontologicamente retrátil à analogia, à análise e à idéia. Ela, sendo, realiza
sempre, enquanto linguagem substantiva, a concreção da unidade, a concentração na
unidade e é desse modo que ela é capaz de acionar o real. A música se realiza sendo.409

Esse modo de constituir a densidade do real manifesta o vigor da poiésis. A

música dá-se lógos da poiésis. Tudo que ela pro-duz ganha sentido porque densifica o

real como concreção e não como abstração. De outro modo, nada seria pro-duzido na

música e ela, em si mesma, seria completamente sem sentido. Dando-se a música:

poética do sentido, dá-se também a poesia como apropriação de ser e homem. Nessa

apropriação acontece a abertura em que o sentido pode chegar a se realizar como

sentido.

Por isso, também é preciso atender ao apelo que o próprio ser, que não é, apela

tornando-se linguagem: a constituição do sentido. O real se apresenta não como o

somatório de coisas em si oferecidas a um sujeito da razão, mas na abertura fulgurante

em que ser e homem, apropriando-se mutuamente, iluminam os entes em seu sentido. O

sentido é a concretização do real no vigor do ser tornando-se linguagem e ele mesmo

retraindo-se como origem, mesmo que nesse tornar-se não se pronuncie nenhuma

palavra sequer. Pois, para tudo que é próprio da linguagem como o proferir da palavra,

também é próprio da linguagem o fato de o que se diz ter sentido.410 Desse modo, nem a

palavra, nem o signo e nem o sentido são aqueles que dão proveniência à linguagem,

mas é esta que em primeiro lugar, em seu vigor de morada do ser, concretiza o que a

palavra, o signo e o sentido podem chegar a ser. Por isso, o ser tornando-se linguagem

diz algo sobre a própria linguagem que agora já não mais pode passar desapercebido:

que a linguagem mesma não é, mas dá-se.

409
Castro, 1997:231-2.
410
Cf. Heidegger, 2003:161.
244

Por isso é preciso também distinguir e apontar a diferença entre linguagem e

obra de linguagem. Linguagem, não sendo, não pode também ser igual à obra literária.

No entanto, a obra literária só se manifesta como tal, porque em primeiro lugar o

homem habita poeticamente a casa do ser, a linguagem, e na reunião de ser e linguagem

em que ele mesmo se apropria e é apropriado como evento, ilumina aquilo que nessa

reunião constitui sentido.

Dessa maneira, também não é possível dizer que a poesia é isto ou aquilo. Toda

vez que se tenta proferir enunciações propositivas a seu respeito, sempre se abstrai o

real do âmbito e do vigor de sentido concretizado na reunião de ser e linguagem,

renunciando-se as referências essenciais inauditas abertas nessa reunião originária, para

ensejar a tentativa de se apossar da palavra como terminologia asseguradora capaz de

representar algo abstratamente constituído no intelecto racional e que se alça ao real

forçando uma vigência calculada. No entanto, a poesia que põe-em-obra-a-verdade, o

faz em dócil atenção ao apelo doador do ser, aquele que antes de tudo deseja em

primeiro lugar co-responder na apropriação mútua com o homem ao evento histórico da

pro-dução. Poesia, então, não é isto ou aquilo porque simplesmente poesia não é. Pois,

da mesma maneira, já não é mais possível obscurecer olhos e ouvidos, ofuscar o próprio

pensamento obliterando-o na sua restituição da essência do homem ao próprio ser, já

não é mais possível deixar de assinalar a diferença entre poesia e obra poética, e dizer: a

poesia não é, dá-se. A poesia dá-se: essência de todo agir porquanto resguarda em

memória do próprio ser as referências imemoriais entre ser e pro-duzir. A poesia diz o

sentido de todo pro-duzir.

Desse modo, a obra musical não é menos poética que uma obra de poesia escrita

por um poeta. Antes, a obra musical essencializa e aprofunda mais ainda a renúncia ao
245

controle e asseguramento da palavra que poderia ocorrer. Pois, renunciar a palavra aqui

“é uma renúncia em sentido próprio e não apenas um deixar de dizer o dizer.”411 Pois

dizer, antes de mais nada é sempre mostrar e deixar aparecer o sentido poético do ser,

seu tornar-se linguagem concretizando as referências de sentido do real iluminadas pelo

evento apropriador de ser e homem. Toda vez que isso ocorre, dá-se o ser poeticamente

e com ele o homem habita poeticamente. Nenhuma palavra escrita ou falada é por si só

suficientemente autônoma a ponto de se sobrepor à referência de todas as referências, na

medida que é esta que em primeiro lugar concede o dom que se dá como dádiva do

sentido. A música concretiza essencialmente a poética do sentido ao preservar às

palavras, renunciando-as e renunciando não somente o controle que as calcula e as

parametriza, mas renunciando de modo fundamental o cálculo assegurador de toda

representação. Essa renúncia não é de modo algum um calar-se, mas permanece um

dizer de maneira ainda mais essencial porque preserva de forma intangível as

referências entre ser e sentido. Na música se des-encobre um modo mais radical do que

predomina na palavra na medida em que nela, na música, ocorre sua renúncia. Na

vigência poética do sentido a música transporta o dizer para uma outra tonalidade:

O dizer pede uma outra articulação, um outro mélos, um outro tom. O próprio poema
testemunha que a renúncia do poeta está sendo experienciada nesse sentido, que a renúncia
diz à medida que o poeta canta a renúncia. Esse poema é na verdade uma canção. (...)

“O que eu ainda penso e ainda abraço


O que eu ainda amo traz o mesmo traço.”412

Pensando, articulando, abraçando, amando, assim é a saga do dizer: um inclinar-se


quieto, alegre, uma reverência de júbilo, um elogio, um louvor: laudare. Laudes é o nome
latino para canção. Dizer uma canção é cantar. Cantar é recolher na canção um dizer. Não
reconhecendo o sentido elevado do canto como a saga de um dizer, o canto não passa de
um converter em sons o dito e a escrita.413

411
Heidegger, 2003:181.
412
George, Stefan. A canção. Parte final, apud Heidegger, 2003:181.
413
Heidegger, 2003:181.
246

E isto, quer o canto tenha palavras ou não, quer as pronuncie ou não. Desse

modo, a música mesma também não é, mas dá-se. Por isso, não se pode mais confundir

música e obra musical.

No empenho aqui em curso, a saber, o de fazer uma experiência não apenas com

a música como um mero objeto posto por um sujeito do conhecimento, mas antes uma

experiência con-junta de música, poética e sentido em que o próprio homem não pode

ser indiferentemente posto de lado, chegou-se a pensar o poético, a pro-dução que

realiza a passagem do não-ser para o ser, como a realização mais própria do que é

música. “Poesia é canto”.414 No entanto, o que se ouve aqui vai muito além da

compreensão corriqueira do senso comum e mesmo do que a estética e as diversas

disciplinas científicas representam.

Na perspectiva do senso comum e das disciplinas da metafísica, poesia pode ser,

numa definição das mais simples, a arte de compor ou escrever versos. Porém, em toda

definição da poesia como arte, o que nunca se chega a pensar por que nunca questiona e

muito menos escuta, é justamente a proveniência do que é arte. Toda definição estética

permanece surda para o que realmente se diz com poesia e arte, de tal modo que não

pode nunca escutar que talvez não seja a poesia proveniente do artístico, mas muito ao

contrário, que a arte é que provém do poético.

No entanto, predomina na compreensão estética da arte uma incerteza quanto ao

que seja a arte, quanto mais agora, se se remeter a arte ao poético como fonte de sua

proveniência. O que decorre de toda incerteza metafísica sobre a arte são incursões

enunciativas que aprofundam sua incompreensão, não apenas a respeito da própria arte,

mas, sobretudo, a respeito do poético.

414
Heidegger, 2003:141.
247

No percurso até aqui caminhado, assim como a música não é uma mera

abstração re-presentacional posta pelo poder de raciocínio do intelecto de um sujeito do

conhecimento, também a poesia não tem em toda essa discussão como ser a mera

representação de sentimentos, idéias, coisas, situações, etc., assentadas sobre versos

metrificados e em rima ou não. O poético nomeia a chegada do ser ao seu aparecimento

como sentido. Portanto, sentido aqui não é o mesmo que significado. Sentido é sempre o

sentido do ser, sentido do que chega à vigência. O vir à vigência como dar-se do ser não

expurga, como se pensou anteriormente, o retraimento como condição mais própria e

reservada do ser, de modo que seu retraimento como encobrimento vigora como sua

constituição mais própria. Da mesma forma, então, o sentido do ser também se dá como

retraimento, como encobrimento do sentido. Na tensão de dar-se e retrair-se o ser

instaura poeticamente o real.

Ora, isso revela nada mais, nada menos do que a con-dição ambígua do ser. Pois,

se por um lado o ser não é, mas dá-se, esse dar-se se manifesta “como desvelar do

presencializar415”, por outro “o que é, antes de tudo é o Ser416”. Por isso, em re-ferência

à ambigüidade dispensada pelo próprio ser e vertendo a saga indizível que resguarda a

essência em que o ser se torna linguagem, “a música realiza a mágica que toca

profundamente as vibrações” de ser e não ser, tornando “presente a compertinência de

todas as diferenças”417. Calando as diversas pronúncias dos entes, faz aparecer a

pronuncia poética do sentido numa onto-logo-fania do real.

415
Souza, 2001/2:29.
416
Heidegger, 1995a:24.
417
Cf. Leão, 1992:43.
Conclusão

Entre questões e problemas

Os caminhos de pensamento aqui percorridos trilharam o solo fértil entre o

pensar poético e o poetar pensante. Nesse modo de trilhar pelas questões do pensamento

não parece haver conclusão possível. Afinal, conforme o próprio pensamento chegou a

pensar em co-respondência a um apelo do mistério, a poiésis não é, mas dá-se; a música

não é, mas dá-se e isto na medida em que o próprio ser, cujo apelo se dá na escuta do

lógos, o próprio ser não é, mas dá-se. Por outro lado, a mesma escuta ao apelo do

mistério convoca o pensamento igualmente a pensar que “o que é, antes de tudo é o

ser.” Na escuta do lógos-poiétikos e do lógos-mousikós tanto música como poética

manifestam, assim, a mais extrema ambigüidade do sentido do ser, um entre-mundos

ainda mais radical que aquele do próprio Hermes. Nesses caminhos entre-mundos o ser

não apenas se torna linguagem – que também não é, mas dá-se – como o acontecimento

que apropria mutuamente ser e homem, mas esse acontecimento se dá de modo

radicalmente poético, uma vez que com ele se manifesta o sentido do próprio real como

aquilo mesmo que está sempre a con-crescer. Nesse sentido, uma conclusão que se

pretenda coerente em relação à própria ambigüidade do ser, necessita assinalar o próprio

pro-jeto inconcluso do ser. A constituição do sentido nunca é algo acabado e concluso,

mas reserva poeticamente s

Portanto, uma conclusão num caminho do pensar soa apenas como um

interrupção forçada em que se adequa a escuta do que convoca o próprio pensar às

necessidades formais acadêmicas. Estas se conformam de antemão às próprias

necessidades de produção metafísica do conhecimento. Aqui se dá, ainda de um outro

modo, um ambigüidade, na medida em que o próprio pensamento que escuta o apelo do


249

mistério busca compor-se em meio às pré-determinações da produção acadêmica.

Chama a atenção nesse embate a exigência acadêmica de se tratar questões como

problemas e a própria co-respondência do pensamento à escuta do mistério ao tratar

problemas como questões. A pro-dução poética de sentido nunca se atém aos meros

problemas. Ao contrário, a poética vê questões a serem pensadas aí mesmo onde as

soluções parecem unânimes. O poetar pensante está a escuta de um incessante brotar e

eclodir das sempre novas e diferentes possibilidades de ser, mesmo ali onde o cálculo e

a representação já bateram o martelo da solução dos problemas. Por isso, o pensamento

que caminha entre o pensar poético e o poetar pensante está sempre a empreender o

transito entre problemas e questões. Na apresentação das soluções que parecem óbvias

renasce para o pensamento a possibilidade de fazer aparecer novamente suas questões

essenciais e temáticas. O óbvio é o daímon do pensar poético e do poetar pensante. No

mais simples, comum e acabado problema, manifesta-se sempre a cada vez a

possibilidade misteriosa e sagrada do extraordinário de toda questão digna de ser

pensada.

Com isso, é preciso assinalar que não se quis aqui, de modo algum, promover

um ataque à metafísica, à ciência e muito menos à filosofia. Primeiramente, em razão de

que tanto ciência como a filosofia serem modos da metafísica se cumprir em sua

plenitude. Em segundo lugar, que não é possível ainda para nenhum de nós

simplesmente ultrapassar a metafísica sem que, após toda a tradição da Cultura

Ocidental, nela se dê o ponto de partida onde já de antemão nos encontramos. Por isso,

não se trata mesmo de um ataque, mas antes da defesa da dimensão poética como co-

originária do ser do homem no mundo. Durante os dois mil e quinhentos anos de

tradição filosófica, a música foi submetida a todo tipo de discurso e experimento


250

estético e científico. O que não se leva propriamente a sério, no entanto, é o discurso da

própria música como aquele que possui a legitimidade de sua própria realização. Quer

queira, quer não, nenhuma metafísica elaborou qualquer discurso legítimo sobre a

música. Somente a música diz o que diz. Esta a legitimidade de seu dizer é substantiva

no sentido de que se refere às suas próprias dimensões de configuração poética de

sentido.

Assim, é preciso ressaltar ainda que os modos de compreensão artísticos, ao

contrário de toda metafísica, também não pretendem e nunca pretenderam operar uma

totalização hegemônica e planetária do real. Ao contrário das diversas disciplinas

metafísicas, a música jamais teve a presunção de assegurar os modos de compreensão

do real, mesmo porque isto simplesmente significaria o seu total esgotamento enquanto

poética do sentido. Ora, enquanto poética do sentido a música só pode mesmo proferir

sempre e outra vez novos sentidos. O poético não está comprometido com o já

estabelecido, mas com o que realiza a concretização do próprio ser. Este é sempre um

pro-jeto inconcluso e formante. Assim, “a verdade, que se abre na obra, nunca é

atestável nem deduzível a partir do que até então havia.”418

Isto quer dizer também que a música não tem o menor compromisso com

soluções. Soluções são ótimas para os problemas. Estes nada têm a ver com a música.

Não tendo compromisso com soluções, muito menos tem a música qualquer relação

com problemas. Apenas onde a educação musical compreende a música como um

objeto disposto numa funcionalidade qualquer é que se pode deixar de fazer música para

se ater à resolução de problemas. Nos modos de produtividade em série da educação,

não somente a música apresenta uma série de problemas, mas ela mesma se torna o

418
Heidegger, 1990:60.
251

maior de todos os problemas. Os modelos de formação educacional não conseguem

então se dispor numa escuta criativa o suficiente para pensar uma escuta da dimensão

proto-compreensiva da música. Nenhum modelo, como tal, é destinado à escuta e isso

por estarem desde sua proveniência ideal repletos e super-povoados dos mais diversos

discursos proposicionais. Pois, onde se fala demais, pouco espaço sobra para a escuta

essencial. Falar demais quer dizer não tanto o excesso de proposições e enunciações do

que a música é e de como ela deve ser compreendida, como o modo pelo qual se dá toda

e qualquer proposição. Esse modo decididamente é aquele do cálculo e da

representação. Portanto, basta apenas uma proposição para que todo o vigor da vigência

ambígua da produção poética de sentido da música seja numa tacada só submetida aos

ditames da compreensão lógico-racional do mundo. A dificuldade do pensamento que

transita entre o pensar poético e o poetar pensante, que caminha de problemas para

questões é sempre escutar o lógos-poiétikos, o lógos-mousikós não em meio ao ruído de

uma quantidade enorme de proposições, mas sob barulho ensurdecedor das diversas

representações racionais, mesmo que levada a cabo por uma única enunciação.

Por isso, se há alguma conclusão que possa aqui ser apresentada e reiterada é a

da própria necessidade do pensamento. Que necessidade é essa e porque requer sua

aproximação do pensamento em direção ao poético? A necessidade diz respeito que o

pensamento pensa em memória do ser. A resposta parece simples, no entanto, o

aprisionamento da linguagem à metafísica proposicional transformou essa simplicidade

em sinônimo de irrelevância em virtude de que, no próprio modo de encaminhamento

da linguagem, a questão do ser foi remetida ao esquecimento. O ser, na melhor das

hipóteses, tornou-se para a linguagem metafisicamente determinada um operador

lógico. Como operador lógico destituiu-se o vigor da questão que pergunta pelo ser
252

substituindo-a pela relação lógica entre as mais diversas variáveis, sejam estas sujeito,

sejam objeto.

Não obstante o soterramento da questão do ser sob toda tradição metafísica, há

um lugar em que ela permaneceu no auge de sua vigência e de seu vigor e isso de um

modo absolutamente intrigante, na medida em que vigente e vigorosa, sequer precisou

ser tácita e explicitamente pronunciada. Esse lugar é a dimensão poética. Em toda

dimensão poética de produção do sentido, o tema é sempre e novamente o da questão do

ser. Mas a dimensão poética não se instaura desde as frases e sentenças bem

estruturadas e previamente delimitadas da representação metafísica e racional. Por isso,

sem ser dita, sem ser pronunciada, a questão pelo ser é sempre aquela que põe e é

colocada em movimento nas diversas manifestações poéticas do sentido, pois aí ela

sempre diz respeito ao mistério do ser, do não-ser e do vir a ser. Este modo intrigante de

dizer sem dizer se instaura no e com o poético. Por isso, a dimensão poética é aquela em

que não somente o ser está em constante tema, mas, por isso mesmo, é a dimensão onde

se dá o resgate primordial da essência da linguagem, pois aí ela se mantém preservada

de toda contaminação lógico-racional e operatória da proposição metafísica. Por isso,

também, embora o pensamento não seja ele mesmo um poetar, busca permanecer junto

ao poético na medida em que ele mesmo suplanta a obviedade das soluções em direção

ao dizer originário da linguagem como o dizer inaudito que pergunta por sua questão

originária.

Desse modo, para concluir, ainda é preciso dizer apenas mais uma coisa. Em

toda a discussão a respeito da instauração poética de sentido da música, por mais

elucidativa ou não que ela possa ser ou pretender ser, toda pronúncia aqui deve a cada

vez romper consigo mesma e com o que ela tentou fazer. Em nome de preservar o que
253

poeticamente a música leva adiante como sentido, toda e qualquer fala necessita lutar

para se tornar supérflua. Pois toda fala transborda e ultrapassa aquilo mesmo que a

própria música, sem dizer, diz. “O último, mas também o passo mais difícil de toda

interpretação consiste em seu desaparecimento, juntamente com suas elucidações, ante à

presença pura do poema.”419 Por isso, não somente o exercício de pensamento aqui deve

finalmente calar ante ao que a música diz, mas fundamentalmente, que a música possa

livremente iluminar o que aqui se cala.

419
Heidegger, 2000a:222. Tradução nossa.
Apêndice I

Textos originais e versões consultadas

Capítulo I

Heidegger, 1992b:70. (p. 9)

The Greeks distinguish themselves from other peoples and call them ba/rbaroi, ones
who have a strange sort of speech which is not muªqoj, not lo/goj, not eÃpoj. For the Greeks,
the opposite to “barbarism” is not “culture”; it is dwelling within muªqoj and lo/goj. There
has been “culture” only since the beginning of the modern period; it began the moment
veritas became certitude, when man posit himself for himself and made himself, by his own
“cultivation,” cultura, and by his own “creative work” a creator, i.e., a genius. The Greeks
are not familiar with the likes of either “culture” or “genius.” So it is curious that even
today the best classical philologists ramble on about the “cultural genius” of the Greeks.
From the standpoint of the Greeks, what is called “culture” in the modern period is an
organization of the “spiritual world” produced by the willful power of man. “Culture” is the
same in essence as modern technology; both are in a strict Greek sense unmythical.
Thought in Greek way, “cukture” and “technology” are forms of barbarism, no less than is
“nature” in Rousseau.

Heidegger, 2002a:200 (p. 15)


The default of God means that a God no longer gathers men and things to himself
visibly and unmistakably and from this gathering ordains world-history and man´s stay
within it. However, in the default of Gos notice is given of something even worse. Not only
have the gods and God fled, but the radiance of divinity is extinguished in world-history.
The time of the world´s night is the desolate time because the desolations grows continually
greater. The time has already become so desolate that is no longer able to see the default o
God as a default.

Capítulo II

Heidegger: 2002b:5-6 (p. 59)

In the Middle Ages and later the definition was: veritas est adaequatio rei et intellectus
sive enuntiationes, truth is the bringing of thought or proposition into alignment with the
thing, i.e. into correspondence with the latter, commensuratio, the measuring up to, or the
measuring against, something”.
255

Aristóteles, Metafísica, 981a (p. 73)

[981a][1] Experience seems very similar to science and art, but actually it is through
experience that men acquire science and art; (…) Art is produced when from many notions
of experience a single universal judgement is formed with regard to like objects. To have a
judgement (…) is a matter of experience; but to judge (…) is a matter of art.

Aristóteles, Metafísica 981a-b (p. 74)

It would seem that for practical purposes experience is in no way inferior to art; indeed
we see men of experience succeeding more than those who have theory without experience.
The reason of this is a that experience is knowledge of particulars, but art of universals; and
actions and the effects produced are all concerned with the particular. For it is not man that
the physician cures, except incidentally, but Callias or Socrates or some other person
similarly named, who is incidentally a man as well. [20] So if a man has theory without
experience, and knows the universal, but does not know the particular contained in it, he
will often fail in his treatment; for it is the particular that must be treated. Nevertheless we
consider that knowledge and proficiency belong to art rather than to experience, and we
assume that artists are wiser than men of mere experience (which implies that in all cases
wisdom depends rather upon knowledge); and this is because the former know the cause,
whereas the latter do not. For the experienced know the fact, but not the wherefore; but the
artists know the wherefore and the cause. For the same reason we consider that the master
craftsmen in every profession are more estimable and know more and are wiser than the
artisans, [981b][1] because they know the reasons of the things which are done;

Heidegger, 1997:62-3. (p. 76)

In contradistinction to the e)/mpeiroj, the texni/thj is the one who a)/neu th=j e)mpeiri/aj
e)/xei to\n lo/gon (cf. Met. I, 1, 981a21), “who, without being used to any particular
procedure, knows the ei)=doj.” He is the one who kaqo/lou gnwri/zei (cf. a2f.) the being in
question, “knows the being in its generality,” but who thereby to\ e)n tou/t% kaq’e(/kaston
a)gnoei= (cf. a22), “is unfamiliar with what in each case the being is for itself,” the being
which is this o(/lon is a e(/n among others. For te/xnh, thus, what is decisive is paying heed,
watching, i.e., disclosure. Therefore Aristotle can say: <a)rxite/ktonej> ta\j aiti/aj tw=n
poioume/non i)/sasin (981b1f.), “The architects know the causes of what is to be built.” The
following is thus manifest at the same time: the aiti/a, or the kaqo/lou, are initially not the
theme of a mere onlooking. They indeed stand out as ei)=doj, but not in such a way as to be
the theme of a special investigation. The knowledge of the aiti/a is initially present only in
connection with fabricating itself; i.e., the aiti/a are present initially only as the because-
therefore of such and such a procedure. The ei)=doj is at first present only in te/xnh itself. But
because in te/xnh the ei)=doj is precisely made prominent, therefore ma=llon ei)de/nai (a31f.),
“to know more,” is attributed to texni=tai, and they are held to be sofw/teroi than the mere
e)/mpeiroi.
256

Heidegger, 1992b:27-8. (p. 84)

In Greek experience the Word of Homer says: “He (Odysseus) was in concealment as
the one who shed tears.” Correspondingly, we translate the famous Epicurean admonition…
as “Live unnoticed”; thought in Greek way, it says, “Be in concealment as one conducting
his life”. (…) It is decisive – namely, for an understanding of the primordial essence of
truth, whose Greek name, a)lh/qeia, is related to the word lanqa/nw (…). For precisely the
way lanqa/nw, in the examples just referred to, is the ruling word tells us that what is
named in this word, the “concealed,” had a priority in the experience of beings, and,
specifically, as a character of beings themselves it is a possible “object” of experience. In
the case of the weeping Odysseus, the Greeks do not consider that the others present, as
human “subjects” in their subjective comportment, fail to notice the crying of Odysseus, but
they do think that round about this man and his existence there lies a concealment causing
the others present to be, as it were, cut off from him. What is essential is not the
apprehension on the part of the others but that there exists a concealment of Odysseus, now
keeping the ones who are present far from him. That a being, in this case the weeping
Odysseus, can be experienced and grasped depends on whether concealment or
unconcealment comes to pass.

Heidegger, 1992b:32. (p. 88)

(...) We say a house in the neighborhood is obstructing the view of the mountains.
Dissembling as ob-structing is first of all a concealing in the manner of covering up. We
cover up, e.g., a door that is not supposed to be seen in the room, and disguise it by placing
a cupboard in front of it. In this way an appearing sign, a gesture, a name, a word, can also
disguise something. The cupboard placed before the door not only presents itself as this
thing and not only disguises the door by covering over – i.e., concealing – the wall which at
this place has an opening, but, rather, the cupboard can be disguising to the point that it
pretends there is no door at all in the wall. The cupboard disguises the door, and by being
placed before it, it distorts the “actual” state of the wall.

Heidegger, 1992b:73 (p. 99)

We reflect too rarely on the fact that the same Greeks to whom the word and speech
were bestowed primordially could, for that very reason, keep silent in a unique way as well.
For “to keep silent” is not merely to say nothing. Without something essential to say, one
cannot keep silent. Only within essencial speech, and by means of it alone, can there prevail
essencial silence, having nothing in common with secrecy, concealment, or “mental
reservations.”

Pindaro, Ode Olímpica, VII, 43-7, apud Heidegger, 1992b:74. (p. 105)

Awe thrusts up the flourishing of the essence and the joy disposing man to think ahead;
but sometimes there comes over it the signless cloud of concealment, which withholds from
actions the straightforward way and places them outside what is thoughtfully disclosed.
257

Heidegger, 1992b:75. (p. 106)

)A)reth/ means the emergence and opening up and insertion of man’s fundamental
essence in Being. )A)reth/ is related to fua/ , Pindar’s word for the essence of man as it
emerges into unconcealedness. )A)reth/ and a)rtu/w are of the same stem as the Latin ars,
which became the Roman word for te/xnh, and which we translate by “art.” On the basis of
the insertion, emergence, and openness of man’s essence in a)reth/, he is “resolute,” open,
disclosing, and disclosed towards beings. In such a)reta/, re-soluteness, man is in the literal
sense “de-cided” with regard to the Being of beings; that is, “de-cision” means to be
without a scission from Being.

Heidegger, 1992b:75-6. (p. 107)

“Resoluteness” in the modern sense is the fixed ordination of the will upon itself and
belongs metaphysically within the essence of the will to will, the present form of which is
exhibited by the will to power. Resoluteness in the modern sense is metaphysically not
grounded on a)lh/qeia but on the self-assurance of man as subject, i.e., on subjectivity.
Resoluteness, as conceived in the modern way, is the willing of what is willed in its own
will; this will drives it to willing. “Being-driven” is in Latin fanatice. The distinguished
characteristic of modern resoluteness is “the fanatical”. As understood by the Greeks,
however, resoluteness, the self-disclosing opening up toward Being, has another origin of
essence, namely a different experience of Being – one based on ai)dw/j, awe. Awe thrusts to
man, and bestows on him, a)reta/. Awe as essence of Being convey to man the disclosure of
beings. But opposed to ai)dw/j there holds sway la/qa, the concealment we call oblivion.

Hölderlin, Brot und Wein, 1, vv. 13-8 (p. 107)

Jezt auch kommet ein Wehn und regt die Gipfel des Hains auf,
Sieh! und das Schattenbild unserer Erde, der Mond
Kommet geheim nun auch; die Schwärmerische, die Nacht kommt,
Voll mit Sternen und wohl wenig bekümmert um uns,
Glänzt die Erstaunende dort, die Fremdlingin unter den Menschen
Über Gebirgeshöhn traurig und prächtig herauf.

Hölderlin, Brot und Wein, 2, vv.19-36 (p. 108-9)

Wunderbar ist die Gunst der Hocherhabnen und niemand


Weiß von wannen und was einem geschiehet von ihr.
So bewegt sie die Welt und die hoffende Seele der Menschen,
Selbst kein Weiser versteht, was sie bereitet, denn so
Will es der oberste Gott, der sehr dich liebet, und darum
Ist noch lieber, wie sie, dir der besonnene Tag.
Aber zuweilen liebt auch klares Auge den Schatten
Und versuchet zu Lust, eh' es die Noth ist, den Schlaf,
Oder es blikt auch gern ein treuer Mann in die Nacht hin,
Ja, es ziemet sich ihr Kränze zu weihn und Gesang,
Weil den Irrenden sie geheiliget ist und den Todten,
Selber aber besteht, ewig, in freiestem Geist.
Aber sie muß uns auch,daß in der zaudernden Weile,
258

Daß im Finstern für uns einiges Haltbare sei,


Uns die Vergessenheit und das Heiligtrunkene gönnen,
Gönnen das strömende Wort, das, wie die Liebenden, sei,
Schlummerlos und vollern Pokal und kühneres Leben,
Heilig Gedächtniß auch, wachend zu bleiben bei Nacht.

Heidegger, 1992b:78-9. (p. 109)

For the Greeks the word as muªqoj, e)/poj, r(h=ma, and lo/goj is that by which Being
assigns itself to man, so that he might preserve it, in his own essence, as what is assigned to
him and might, for his part, find and retain his essence as man by means of such
preservation. Therefore the destiny, “to have the word”, lo/gon e)/xein, is the essential
characteristic of humanity that became historical as the Greek humanity.
(…)
Only where a humanity is entrusted with the essence, to have the word, lo/gon e)/xein,
only there does it remain assigned to the preservation of the unconcealedness of beings.
Only where this assignement holds sway and where unconcealedness appears in advance as
Being itself, only there does concealment also prevail in a way that can never be the mere
contrary and crude opposite to disclosure, i.e., in the modes of dissemblance, distortion,
misguidance, deception, and falsification.
Because there is still a more original mode of concealment to be distinguished from all
that, the Greeks named it with a word which, in distinction to yeu=doj and a)pa/th and
sfa/llein, immediately seizes upon the relation to the original stem: concealment as lh/qh.

Hölderlin, Wie Wenn am Feiertage, 3, vv. 19-27. (p. 111)

Jezt aber tagts! Ich harrt und sah es kommen,


Und was ich sah, das Heilige sei mein Wort.
Denn sie, sie selbst, die älter denn die Zeiten
Und über die Götter des Abends und Orients ist,
Die Natur ist jezt mit Waffenklang erwacht,
Und hoch vom Äther bis zum Abgrund nieder
Nach vestem Geseze, wie einst, aus heiligem Chaos gezeugt,
Fühtl neu die Begeisterung sich,
Die Allerschaffende wieder.

Heidegger, 2000a:85. (p. 111)

(...) xa/oj signifies first of all the yawning, grasping chasm, the open that first opens
itself, wherein everything is engulfed. The chasm affords no support for anything distinct
and grounded. And therefore, for all experience, which only knows what is mediated, chaos
seems to be without differentiation and thus mere confusion. The “chaotic” in this sense,
however, is only the inessential aspect of what “chaos” means. Thought in terms of nature
fu/sij chaos remains that grasping out of which the open opens itself, so that it may grant
its bounded presence to all differentiations.
259

Capítulo III

Heidegger, 1999a:5, 12 (p. 118)

““Facticity” is the designation we will use for the character of the being of “our”
“own” Dasein. More precisely, this expression means: in each case “this” Dasein in its
being-there for a while at the particular time (…) insofar as it is, in the character of its
being, “there” in the manner of be-ing. Being there in the manner of the be-ing means: not,
and never, to be there primarily as an object of intuition and definition on the basis of
intuition, as an object of which we merely take cognizance and have knowledge. Rather,
Dasein is there for itself in the “how” of its ownmost being. The how of its being opens up
and circumscribes the respective “there” which is possible for a while at the particular time.
Being – transitive: to be factical life! Being is itself never the possible object of a having,
since what is at issue in it, what it comes to, is itself: being.
(…)Hermeneutics has the task of making the Dasein (…)accessible to this Dasein itself
with regard to the character of its being, communicating Dasein to itself in this regard,
hunting down the alienation from itself with which it is smitten. In hermeneutics what is
developed for Dasein is a possibility of its becoming and being for itself in the manner of
an understanding of itself.
(…)The ownmost possibility of be-ing itself which Dasein (facticity) is, and indeed
without this possibility being “there” for it, may be designated as existence. It is with
respect to this authentic be-ing itself that facticity is placed into our forehaving when
initially engaging it and bringing it into play in our hermeneutical questioning. It is from
out of it, on the basis of it, and with a view to it that facticity interpretively explicated. The
conceptual explicate which grows out of this interpretation are to be designated
existentials”.

Palmer, 1980 (p. 120-1)

1. Hermes moves by night, the time of love, dreams, and theft;


2. he is the master of cunning and deceit, the marginality of illusions and tricks;
3. he has magical powers, the margin between the natural and the supernatural;
4. he is the patron of all occupations that occupy margins or involve mediation:
traders, thieves, shepherds, and heralds;
5. his mobility makes him a creature betwixt and between;
6. his marginality is indicated by the location of his phallic herms not just anywhere
but on roads, at crossroads, and in groves;
7. even his eroticism is not oriented to fertility or maintaining the family but is
basically Aphroditic--stealthy, sly, and amoral, a love gained by theft without
moral concern for consequences; and finally
8. Hermes is a guide across boundaries, including the boundary between earth and
Hades, that is, life and death.

Hino a Hermes, 1-22 (p. 121)

[1] Muse, sing of , the son of and , lord of and rich in flocks, the luck-bringing
messenger of the immortals whom bare, the rich-tressed nymph, when she was joined in
love with , [5] --a shy goddess, for she avoided the company of the blessed gods, and lived
within a deep, shady cave. There the son of Cronos used to lie with the rich-tressed nymph,
unseen by deathless gods and mortal men, at dead of night while sweet sleep should hold
white-armed fast. [10] And when the purpose of great was fulfilled, and the tenth moon
260

with her was fixed in heaven, she was delivered and a notable thing was come to pass. For
then she bare a son, of many shifts, blandly cunning, a robber, a cattle driver, a bringer of
dreams, [15] a watcher by night, a thief at the gates, one who was soon to show forth
wonderful deeds among the deathless gods. Born with the dawning, at mid-day he played
on the lyre, and in the evening he stole the cattle of far-shooting on the fourth day of the
month; for on that day queenly bare him. [20] So soon as he had leaped from his mother's
heavenly womb, he lay not long waiting in his holy cradle, but he sprang up and sought the
oxen of .

Kerényi, 1986:17-8 (p. 123)

The poet of the "Hymn to Hermes" presents primordial mythological material in a form
that could later be integrated into and become part of the classical tradition. The serenely
scintillating, waggish irony with which he glorifies the Titanic event corresponds also to the
attitude of his hero. What additional information we get here about Hermes does not so
much enlarge his portrait to include new aspects as deepen it towards the Titanic. Since he
is integrated into the world of Zeus, Hermes naturally does not belong to the race of Titans.
Yet as we follow him we sense in him the essence of the pre-Olympian world, even apart
from the fact that he appears as a divine child and that the childhood of the Gods belongs
not to Olympian myth but to a far more ancient mythology. In the Hymn, an Olympian God
grows out of the primal child, and with this development his pre-Olympian history becomes
included in his classical image.

Kerényi, 1986:14-5. (p. 125)

The journeyer is at home while underway, at home on the road itself, the road being
understood not as a connection between two definite points on the earth's surface, but as a
particular world. It is the ancient world of the path, also of the "wet paths" (the hygra
keleutha) of the sea, which are above all, the genuine roads of the earth. For, unlike the
Roman highways which cut unmercifully straight through the country-side, they run
snakelike, shaped like irrationally waved lines, conforming to the contours of the land,
winding, yet leading everywhere. Being open to everywhere is part of their nature.
Nevertheless, they form a world in its own right, a middle-domain, where a person in that
volatized condition has access to everything. He who moves about familiarly in this world-
of-the-road has Hermes for his God, for it is here that the most salient aspect of Hermes'
world is portrayed. Hermes is constantly underway: he is enodios ("by the road") and
hodios ("belonging to a journey"), and one encounters him on every path. He is constantly
in motion; even as he sits, one recognizes the dynamic impulse to move on, as someone has
acutely observed of his Herculean bronze statue. His role as leader and guide is often cited
and celebrated, and, at least since the time of the Odyssey, he is also called angelos
("messenger"), the messenger of the Gods.

Otto, Walter F., The Homeric gods, apud Palmer, 1980 (p. 125)

A man who is awake in the open field at night, or who wanders over silent paths,
experiences the world differently than by day. Nighness vanishes, and with it distance;
everything is equally far and near, close by us and yet mysteriously remote. Space loses its
measures. There are whispers and sounds and we do not know where or what they are…
There is no longer a distinction between what is lifeless and living; everything is animate
and soulless, vigilant and asleep at once.
261

Heidegger, 1982:29, 40. (p.129)

(…) The expression “hermeneutic” derives from the Greek verb hermeneuein. That
verb is related to the noun hermeneus, ehich is referable to the name of the god Hermes by
a playfuk thinking that is more compelling than the rigor of science. Hermes is the divine
messenger. He brings the message of destiny; hermeneuein is that exposition which brings
tidings because it can listen to a message.
(…) For in the source of appearance, something comes toward man that holds the two-
fold of presence and present beings.
That two-fold has always already offered itself to man, although its nature remained
veiled.
Man, to the extent he is man, listens to this message.
And that happens even while man gives no particular attention to the fact that he is
ever listening already to this message.
Man is used for hearing the message.
(…) man stands in a relation.
And the relation is called hermeneutical because it brings the tidings of this message.
This message makes the claim on man that he respond to it…
… to listen and belong to it as man.
(…)
Man is the message-bearer of the message which the two-fold’s unconcealement
speaks to him.

Heidegger, 1982:41 (p. 130)

(…) man, as the messenger-bearer of the message of the two-fold’s unconcealement,


would also be he who walks the boundary of boundless.
And on this path he seeks the boundary’s mystery…
… which cannot be hidden in anything other than the voice that determines and tunes
his nature.

Capurro, 1971 (p. 132)

¿Qué significa preguntar por algo? En primer lugar no es lo mismo preguntar "por"
algo que preguntar "sobre" algo. El preguntar "sobre" algo implica que eso por lo cual
pregunto está en un nivel inferior a mi preguntar, por eso pregunto "sobre". Tiene un
significado semejante al preguntar "acerca" de algo. Se trata en todo caso de algo que yo
desconozco todavía, y por eso pregunto, pero que puede llegar a ser conocido y dominado
por mí. En el caso, por ejemplo, de un científico que se pregunta "sobre" las propiedades de
unas muestras selenitas, o de un periodista que pregunta "sobre" los acontecimientos
ocurridos en la última conferencia "sobre" el desarme. En este preguntar "sobre" algo va
involucrado un "para", una finalidad. Es ir tras algo para lograr un propósito determinado.
Ordinariamente nuestro buscar cotidiano se mueve a este nivel que podríamos llamar
pragmático. Es una dimensión "cautivante" en la vida del hombre: en efecto, por un lado
tiene toda la riqueza que proporcionan la búsqueda y la inquietud y por otro asegura a dicha
búsqueda el dominio posible de lo buscado. Es "cautivante" además porque mantiene al
hombre cautivo de su propio preguntar.
Preguntar "por" algo tiene un sentido muy diferente. Mi preguntar se mueve al nivel de
aquello por lo cual pregunto. Es más, eso por lo que me pregunto me atañe directamente a
mí. Sin embargo no es un preguntarme "sobre" mí mismo, sino que es "por" algo que me
incumbe. Notemos por ejemplo la diferencia que hay cuando preguntamos sobre alguien y
262

cuando preguntamos por alguien. En el primer caso nos movemos al nivel de la cortesía o a
lo más de la curiosidad. En cambio cuando preguntamos por alguien que nos incumbe lo
hacemos preguntando por tal persona. Por ejemplo un médico no pregunta "sobre" sus
pacientes sino "por" ellos. Un sacerdote no pregunta "sobre" sus feligreses sino "por" ellos.
Una madre no pregunta "sobre" sus hijos sino "por" ellos.

Capurro, 1971 (p. 133)

Nuestro preguntar "por" tiene un origen. Este puede referirse a una determinada
situación que "le dio origen". "Dar origen" tiene entonces el sentido de un comienzo
histórico-fáctico. Por ejemplo: yo comencé a preguntarme por el criterio del sentido del
lenguaje movido por tal circunstancia, en tales condiciones, etc. Con ello señalo los
motivos que dieron origen a mi preguntar, señalo pues su "desde dónde". Todo preguntar
humano tiene su "desde dónde" en este sentido, y bien sabemos hasta qué punto puede
condicionar dicho comienzo toda la búsqueda posterior.
Pero si bien hablamos de "dar origen" conviene sin embargo que reservemos la palabra
origen para señalar con ella el "desde donde" radical de nuestro preguntar. En efecto éste
acontece en mí sin ser desde mí. Esto último me lo señala la facticidad del preguntar que
implica un saber que pregunta (un saber que ya sabe) y al mismo tiempo un saber que
pregunta. (y que todavía no sabe). Es allí, en ese poder de lo negativo, en ese misterio que
mueve al preguntar como su origen, donde se enraiza la fuerza del preguntar.
De ese modo, porque me incumbe, el origen del preguntar cuestiona mi mismo
preguntar por el origen. Esta "vuelta" no es un juego gramatical sino que devela el sentido
del "desde dónde" de nuestro preguntar. El origen se muestra así como no mediatizable
plenamente, pues no es puesto por mí, como in-prescindible, pues acontece desde él, como
no asegurable, pues me cuestiona. Mi preguntar no se orienta hacia una enseñanza o ciencia
que pudiera adquirir desde sí mismo. Mi poder preguntar se vuelve en cambio poder
responder.

Capurro, 1971 (p. 141)

La pregunta por el origen (está) en el origen de la pregunta. (Está) señala que no está a
la manera de un ente. El decir "en" no afirma inmanencia contrapuesta a trascendencia, así
como tampoco (está) implica quietud contrapuesta a movimiento. Al señalar el origen del
preguntar mostramos a la pregunta desde su origen.
Me pregunto por el origen: he dicho que esta pregunta me incumbe pero que no es un
preguntarme solipsista ya que en ese caso el origen de la pregunta estaría puesto por mí y
he mostrado que la pregunta acontece en mí pero no desde mí.
La pregunta acontece en mí como lenguaje. Ahora bien, el lugar propio del lenguaje en
cuanto lenguaje es el diálogo. El preguntar como "logos" se abre allí originariamente al
"dia" que lo posibilita y se hace diá-logo. Esta orientación del preguntar hacia su origen la
veíamos ya al interpretar el sentido radical de la pregunta por el el criterio del sentido del
lenguaje. Esa pregunta nos hacía saltar de un nivel pragmático al abismo del preguntar que
se expone (puesto que le incumbe). Ahora bien, este salto se realiza por (dia) el otro, en el
lenguaje (logos) y por eso acontece como diálogo.

Heidegger, 2000a:56-7 (p. 143)

Man’s being is grounded in language; but this actually occurs only in conversation.
Conversation, however, is not only a way in which language takes place, but rather
language is essential only as conversation. What we usually mean by “language,” namely, a
263

stock of words and rules for combining them, is only an exterior aspect of language. But
now what is meant by “conversation”? Obviously, the act of speaking with one another
about something. Speaking, then, mediates our coming to one another. But Hölderlin says,
“Since we have been a conversation and able to hear from one another.” Being able to hear
is not merely a consequence of speaking with one another, but is on the contrary the
presupposition of speaking. But even being able to hear is itself in turn based upon the
possibility of the word and has need of it. Being able to talk and being able to hear are co-
original. (…)We are a conversation, that always also signifies we are one conversation. The
unity of a conversation consists in the fact that in the essential word there is always
manifest that one and the same on which we agree, on the basis of which we are united and
so are authentically ourselves. Conversation and its unity support our existence.

Kerényi, 1993:57 (p. 148)

His first encounter in the Homeric world brings something very primitive,
mithologically speaking, to light. The fortuitous nature of this encounter is typical of
Hermes, and it is primitive only insofar as chance and accident are an intrinsic part of
primeval chaos. In fact, Hermes carries over this peculiarity of primeval chaos – accident –
into the Olympian order. Hermes meets a tortoise, a primeval-looking creature, for even the
youngest tortoise could, by the looks of it, be described as the most ancient creature in the
world. It is one of the oldest animals known in mythology. The Chinese see in it the
mother, the veritable mother of all animals. The Hindus hold Kasyapa in honour, the
“tortoise-man,” father of their eldest gods, and say that the world rests on the back of a
tortoise, a manifestation of Vishnu: dwelling in the nethermost regions, it supports the
whole body of the world. The Italian name of tartaruga keeps alive a designation dating
from late antiquity, according to which the tortoise holds up the lowest layer of the
universe, namely Tartarus (Tartarou~co").

Kerényi, 1986:26-7. (p. 150)

“Cheerfulness and love and sweet slumber” are, according to Apollo, the gifts of this
Hermetic art, which Hermes translates into a revelation of his essence. Originally, music
was the gift of Hermes, and in the tones of the syrinx it remains so. This is not Apollonic
music.

Hino a Hermes, 439-449 (p. 150)

But come now, tell me this, resourceful son of Maia: [440] has this marvellous thing
been with you from your birth, or did some god or mortal man give it you --a noble gift --
and teach you heavenly song? For wonderful is this new-uttered sound I hear, the like of
which I vow that no man [445] nor god dwelling on Olympus ever yet has known but
you,O thievish son of Maia.
What skill is this? What song for desperate cares? What way of song? For verily here
are three things to hand all at once from which to choose, --mirth, and love, and sweet
sleep.
264

Hino a Hermes, 450-463 (p. 151)

[450] And though I am a follower of the Olympian Muses who love dances and the
bright path of song --the full-toned chant and ravishing thrill of flutes --yet I never cared for
any of those feats of skill at young men's revels, as I do now for this: [455] I am filled with
wonder, O son of Zeus, at your sweet playing. But now, since you, though little, have such
glorious skill, sit down, dear boy, and respect the words of your elders For now you shall
have renown among the deathless gods, you and your mother also. This I will declare to
you exactly: [460] by this shaft of cornel wood I will surely make you a leader renowned
among the deathless gods, and fortunate, and will give you glorious gifts and will not
deceive you from first to last.”

Hino a Hermes, 464-466; 475-478 (p. 152)

“You question me carefully, O Far-worker; yet I am [465] not jealous that you should
enter upon my art: this day you shall know it. (…)[475] but since, as it seems, your heart is
so strongly set on playing the lyre, chant, and play upon it, and give yourself to merriment,
taking this as a gift from me, and do you, my friend, bestow glory on me.

Hino a Hermes, 425-433 (p. 152)

Suddenly he started playing the lyre


louder, reciting a prelude –
and the sound accompanying him was lovely
about the immortal gods and the dark earth,
how they were in the beginning,
and what prerogatives each one had.
And the first of the gods
that he commemorated with his song
was Mnemosyne, Mother of Muses,
for the son of Maia
was a follower of hers.
And all of them,
all the immortal gods,
according to age
and how each one was born,
the glorious son of Zeus recited,
singing them all in order,
playing his lyre on his arm.

Kerényi, 1986:31-2 (p. 159)

The Great Goddess Mnemosyne (…) may be compared to a source (Quelle) for several
rea-sons. (It is not meaningless that she has a spring-Quelle-in Lebadeia; it is also
significant that her daughters are figures analogous to the spring Goddesses.) She is
memory as the cosmic ground of self-recalling which, like an eternal spring, never ceases
flowing. She even grants, again precisely through the Muses, pleasant, healing lapses of
memory (Theogony 55); in these one does not forget oneself, but only what is meant to be
forgot-ten. For this reason the blessings of Mnemosyne aid the dead and the poets: the first
265

she does not allow to dry up, the second she causes to flow over. In the Hymn she appears
as the Goddess who is set over Hermes like a daimon of fate. This is the meaning of the
original text: he gar lache Majados huion ("For he was ordained the son of Maia"). It is the
fate of Her-mes that for himself and for those with him there is no chance of losing oneself.
He cannot ever escape from memory. He is possessed by it, and he carries it as inherited
knowledge of all primordial sources of being.

Kerényi, 1993:58 (p. 159)

The lyre in the hand of a Primordial Child expresses the musical quality of the world
quite apart from the poet’s intention. It is first and foremost charachteristic of Hermes
himself. The Homeric poet sensed the musical nature of the universe as essentially
Hermetic and located it in Hermes colour-band of the world spectrum. In all probability the
poet was not seeking this primeval music, but its hugher, Apollonian form. If, however, the
boy riding a dolphin (…) has a lyre in his hand, we were driven to think not merely of his
relations with Apollo Delphinios but of a more general, primary connection that existed
before all specific names: the connection of water, child and music.

Capítulo IV

Heidegger, 1992b:132. (p. 170)

The unconcealed is originarily what is saved from withdrawing concealement and


hence is secured in dis-closure and as such is uneluded. The unconcealed does not come
into presence indeterminately, as if the veil of concealement had simply been lifted. The
unconcealed is the un-absent, over which a withdrawing concealement no longer holds
sway. The coming into presence is itself an emerging, that is, a coming forth into
unconcealedness, in such a way that the emerged and the unconcealed are assumed into
unconcealedness, saved by it and secured in it.

Heidegger, 1992b:133 (p. 171)

We must think dis-closure exactly the way we think dis-charging (igniting) or dis-
playing (unfolding). Discharging means to release the charge; displaying means to let play
out the folds of the manifold in their multiplicity. Our first tendency is to understand
disclosure or disconcealment in opposition to concealing, just as disentangling is opposed
to entangling. Disclosure, however, does not simply result in something disclosed as
unclosed. Instead, the dis-closure [Ent-bergen] is at the same time an en-closure [Ent-
bergen], just like dis-semination, which is not opposed to the seed, or like in-flaming
[Entflammen], which does not eliminate the flame [Flamme] but brings it into its essence.
Dis-closure [Entbergung] is equally for the sake of an en-closure as a sheltering [Bergung]
of the unconcealed in the unconcealedness of presence, i.e., in Being. In such sheltering
there first emerges the unconcealed as a being. Disclosure – that now means to bring into a
sheltering enclosure: that is, to conserve the unconcealed in unconcealedness. The word
“dis-closure”, the appropriateness of which only a far-reaching meditation could reveal,
constains in its full sense equally essencially this emphasized moment of shelter, whereas
“unconcealedness” names only the removal of concealedness. The word “dis-closure” is
essencially and advisedly ambiguous in that it expresses a two-fold with an intrinsic unity:
on the one hand, as disclosure it is the removal of concealment and precisely a removal first
266

of the withdrawing concealment (lh/qh) and then also of distortion and displacement
(yeu=doj); on the other hand, however, as disclosure it is a sheltering en-closure, i.e., an
assuming and preserving in unconcealedness.
“Disclosure,” understood in its full essence, means the unveiling sheltering enclosure
of the unveiled in unconcealedness. It itself is of a concealed essence. We see this first by
looking upon lh/qh and its holding sway, which withdraws into absence and points to a
falling away and a falling out.

Heidegger, 1992b:139 (p. 172)

Admittedly, Aristotle calls genuine being (Met. a1) ta\ fanerw/tata pa/ntwn, that
which, of all things, is most apparent, in that it has already shown itself in advance in all
things and everywhere. But ta\ fanerw/tata pa/ntwn retains the distinguishing
determination ta th= fu/sei fanerw/tata pa/ntwn (933b11), that appears in such a way that
its appearance is determined on the basis of self-emergence: fu/sij.
Accordingly, at the beginning of metaphysics, both are retained: appearance in the
sense of a self-showing to a perception or to a “soul”. Here is hidden the reason for the
peculiary unsettling transitional character that marks metaphysics at its beginning and lets it
become what it is: on the one hand, with respect to the beginning, the last light of the first
beginning, and on the other hand, with respect to its continuation, the inception of the
oblivion of the beginning and the start of its concealment. Because the subsequent time
interprets Greek thought only in terms of later metaphysical positions, i.e., in the light of a
Platonism or Aristotelism, and since it thereby interprets Plato and Aristotle either in a
medieval way, or in a Leibnizian-Hegelian modern way, or even in a neo-Kantian way,
therefore it is now nearly impossible to recall the primordial essence of appearance in the
sense of emergence, i.e., to think the essence of physis. Accordingly, the essential relation
between fu/sij and a)lh/qeia also remains concealed. To the extent that it is ever referred to,
it seems very strange. But if fu/sij signifies a coming forth, an emergence, and nothing that
one might mean by ratio or “nature”, and if, then, fu/sij is an equiprimordial word for what
is named by a)lh/qeia, why then should not Parmenides´ didactic poem on a)lh/qeia bear the
title peri\ fu/sewj, “On the Coming Forth into the Unconcealed”?

Heidegger, 1992b:130 (p. 173)

But if lh/qh, no matter how conceived, is originally the counter-essence of a)lh/qeia,


and if to lh/qh as withdrawing concealment there corresponds a losing in the sense of
forgetting, then a keeping and preserving must also originally stand in correspondence to
a)lh/qeia. Where a)lh/qeia comes to presence there holds sway a keeping of that which is
saved from loss.

Heidegger, 1992b:127 (p. 175)

The utterance of the poetical Word is the speaking and the song of Being itself, and the
poet is merely the e(rmhneu/j, the interpreter of the word. The poet does not invoke the
goddess, but instead, even before saying his first word the poet is already invoked himself
and already stands within the appeal of Being versus the “demonic” withdrawal of
concealment.
267

Heidegger, 1992b:102 (p. 176)

The uncanny is that out of which all that is ordinary emerges, that in which all that is
ordinary is suspended without surmising it ever in the least, and that into which everything
ordinary falls back. To\ daimo/nion is the essence and essencial ground of the uncanny. It is
what presents itself in the ordinary and takes up its abode therein. To present oneself in the
sense of pointing and showing is in Greek dai/w (dai/ontej – dai/monej).
These are not “demons” conceived as evil spirits fluttering about; instead, they
determine in advance what is ordinary, without deriving from the ordinary itself. They
indicate the ordinary and point toward it.

Capurro, 1983 (p. 177)

La memoria se mide, como en la teoría de la información, en "bit", es decir el número


de si/no opciones que son necesarias para elegir de un conjunto de, por ejemplo, signos
disponibles. Siendo la base dos (pues sólo hay dos opciones) el número de "bit" es la
potencia a que tiene que ser elevada esa base para que de como resultado el número de
signos. O, expresado al revés, el "bit" es el logaritmo del número de signos dado. En el caso
de 32 signos, por ejemplo, sería 5 bit, o sea 2 con la potencia 5 = 32. La capacidad que tiene
la conciencia de apercibir por ejemplo señales acústicas, luminosas, etc. se considera de
aprox. 160 bit y la capacidad de memoria se considera en aprox. 10 con potencia 6 bit.

Capurro, 1983 (p. 181)

El "descubrimiento" freudiano del inconsciente señala a una dimensión fundamental


del existir humano, pero en vez de concebirla desde la red de relaciones temporales del
hombre con el mundo, una red que llamamos lenguaje, la concibe (en sus explicitaciones
teóricas) desde la subjetividad moderna.

Capurro, 1983 (p. 186)

(...) no es posible reducir este fenómeno al nivel "psicológico" en el sentido de que se


trata meramente del olvido o recuerdo de representaciones intrapsíquicas de las cosas del
mundo exterior ni tampoco al nivel "psicológico" (...) en el sentido de una característica del
comportamiento humano.
Memoria y olvido deben considerarse (...) como fundados en la apertura misma de la
existencia humana, una apertura, que (...) es muy diferente al estar abierto de un recipiente,
el cual no constituye con su apertura una red de relaciones, ni es capaz de abrirse a lo
presente como presente. Esta apertura humana implica el poder estar abierto a lo pasado
como pasado, lo cual posibilita todo recuerdo. El hombre constitye desde su presente al
diferencia del pasado y el futuro.

Capurro, 1983 (p. 187)

A diferencia de la concepción "ordinaria" o "unidimensional" del tiempo, vemos que


originariamente el hombre se abre a la dimensión de lo pasado como algo que él no puede
eliminar y que es conservado en la apertura de la existencia humana de tal manera, que
268

infiere constantemente en el presente y también en el futuro. Desde este recuerdo de lo


ausente y desde su presencia en en el presente preguntaba Hölderlin en vistas al futuro:
"para qué poetas en tiempo escaso".

Heidegger, 2000a:116. (p. 189)

But because it is the origin, it comes necessarily in such a way that it conceals itself.
For an origin shows itself by its giving forth. But what is closest to this giving forth is that
which has sprung forth from it. The origin has released this out of itself, but in such a way
that the origin does not show itself in what it has released, but rather conceals itself and
withdraws behind it.

Heidegger, 1984:7 (p. 189)

Mnemosyne, die Tochter Von Himmel und Erde, wird als Braut des Zeus in neun
Nächten die Mutter der Musen. (...) Offenkundig meint dieses Wort anderes als nur die von
der Psychologie feststellbare Fähigkeit, Vergangenes in der Vorstellung behalten.
Gädachtnis denkt an das Gedachte. Aber als Name der Mutter der Musen meint >>
Gädachtnis<< nicht ein beliebiges Denken von irgendwelchem Denkbaren. Gädachtnis ist
die Versammlung des Denkens auf das, was überall im voraus schon bedacht sein möchte.
Gädachtnis ist die Versammlung des Andenkens. Sie birgt bei sich und verbirgt in sich das,
woran jeweils zuvor zu denken ist bei allem, was west und sich als Wesendes, Gewesendes
zuspricht: Gädachtnis, die Mutter der Musen: das Andenken an das zu-Denkende ist der
Quellgrund des Dichtens.

Capítulo V

Buck, 1988:1228 (p. 234)

Many of the words for “remember” belong to an inherited group, from an IE root that
is also widespread in words for “mind” and for “think”, and several outside this group are
connected with other words for “mind” and “think”. In another inherited group “remember”
or “memory” (Indo-Iranian, Lat.) alternates with “be anxious, care” (Grk., Gmc.).

Heidegger, 1968:144 (p. 234)

The thanc means man´s inmost mind, the heart, the heart´s core, that innermost essence
of man which reaches outward most fully and to the outermost limits, and so decisively
that, rightly considered, the idea of a inner and outer world does not arise.
(...) The thanc, the heart´s core, is the gathering of all that concerns us, all that we care
for, all that touches us insofar as we are, as human beings. What touches us in the sense that
it defines and determines our nature, what we care for, we might call contiguos or contact.
269

Texto original: Heidegger, 1984:157

Der Gedanc bedeutet: das Gemüt, das Herz, der Herzensgrund, jenes Innerste des
Menschen, das am weitesten nach außen und ins Äußerste reicht und dies so entschieden,
daß es, recht bedacht, die Vorstellung eines Innen und Außen nicht aufkommen läßt.
(...) Der Gedanc, der Herzensgrund ist die Versammlung ales dessen, was und angeht,
was und anlangt, woran uns liegt, uns, insofern wir als Menschen sind. das, was uns im
wesenhaft Bestimmenden Sinne anliegt und woran uns liegt, können wir mit einem Wort
das Anliegende oder auch das Anliegen nennen.

Heidegger, 1968:145 (p. 236)

Only we are by nature gathered in contiguity can we remain concentrated on what is at


once present and past and to come. The word “memory” originally means this incessant
concentration on contiguity. In its original telling sense, memory means as much as
devotion. This word possesses the special tone of the pious and piety, and designates the
devotion of prayer, only because it denotes the all-comprehensive relation of concentration
upon the holy and the gracious. The thanc unfolds in memory, which persists as devotion.

Texto original: Heidegger, 1984:158

Das wort “Gedächtnis” meint anfänglich jenes gesammelte Nicht-Ablassen vom


Anliegenden. In seinen anfänglichen Sagen meint Gedächtnis so viel wie An-dacht. Dieses
wort kann nur deshalb den besonderen Ton des Frommen und der Frömmigkeit haben und
die Andacht des Gebetes nennen, weil es schon den wesensweiten Bezug der Sammlung
auf das Heile und Huldvolle meint. Der gedanc entfaltet sich him Gedächtnis, das als die
Andacht wärht.

Heidegger, 1968:145 (p. 235)

But if we understand memory in the light of the old word thanc, the connection
between memory and thanks will dawn on us at once. For in giving thanks, the heart in
thought recalls where it remains gathered and concentrated, that is where it belongs. This
thinking that recalls in memory is the original thanks.

Texto original: Heidegger, 1984:158

Verstehen wir jedoch das Gedächtnis aus dem alten Wort “ der Gedanc”, dann geht uns
auch sogleich der Zusammenhang zwischen Gedächtnis und Dank auf. Denn im Dank
gedenkt das gemüt dessen, worein es versammelt bleibt, insofern es dahin gehört. Dieses
andenkende Gedenken is der ursprüngliche Dank.
270

Apêndice II

Alfabeto Grego

Maíuscula Minúscula Grega Equivalente latina (som) Nome da letra


Grega
A a a alfa
B b b beta
G g g gama
D d d delta
E e e - breve e fechado épsilon
Z z z dzeta
H h e - longo e aberto eta
Q q th theta
I i i iota
K k k kapa
L l l lambda
M m m mi
N n n ni
X x x (csi) csi
O o o - breve e fechado ómicron
P p p pi
R r r ro
S s s sigma
T t t tau
U u u ípsilon
F f f fi
C c x (chi) aspirado como j chi
espanhol
Y y psi psi
W w o - longo e aberto omega
" sigma posto no s sigma final
final das palavras
Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola.
1962 Dicionário de filosofia. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou.

AGUIAR, Werner.
1996 Exercício hermenêutico sobre a essência das questões de música e
estética. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, Escola
de Música.
1999 Música: poética do sentido. Projeto de doutoramento em Ciência da
Literatura/Poética apresentado à Pós-Graduação da Faculdade de
Letras da UFRJ. Manuscrito. Rio de Janeiro.

ANDRADE, Carlos Drummond de.


2002 Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.

ANTÔNIO FREIRE, S.J.


1987 Gramática grega.São Paulo: Martins Fontes.

ARISTÓTELES
s/d Metafísica. Projeto Perseus. In: http://www.perseus.tufts.edu/cgi-
bin/ptext?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0051
1993 Poética. Trad. de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poética.

BAILLY, Anatole.
1950 Dictionaire Grec-Français. Paris: Hachette.

BARROS, Manoel de.


1998 Retrato de artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record
2000 Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record.

BAYER, Raymond.
1995 História da estética. / Historie de l’Esthétique. Trad. de José
Saramago. Lisboa: Editorial Estampa.

BRANDÃO, Junito de Souza.


1997a Mitologia grega. Vol. I, 11ª Ed. Petrópolis: Vozes.
1997b Mitologia grega. Vol. II, 8ª Ed. Petrópolis: Vozes.
1997c Mitologia grega. Vol. III, 7ª Ed. Petrópolis: Vozes.
BENJAMIN, Walter
1985 Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Trad. de S. P.
Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense.
272

BENVENISTE, Émile.
1991 Problemas de lingüística geral I. Campinas: UNICAMP.
1995a O vocabulário das instituições indo-européias. Vol. I. Economia,
parentesco, sociedade. Campinas: UNICAMP.
1995b O vocabulário das instituições indo-européias. Vol. II. Poder,
Direito, Religião. Campinas: UNICAMP.

BUCK, Carl Darling.


1988 A dictionary of selected synonyms in the principal indo-european
languages. Chicago: The University of Chicago Press.

CAPURRO, Rafael.
1971 La pregunta hermeneutica por el critério del sentido del linguaje.
Este artículo fue publicado originariamente en: Stromata
(Buenos Aires) 1971, pp. 105-120. In:
http://www.capurro.de/pregunta.htm. Acessado em 25 de
outubro de 2004.
1983 Poesia y psycoanalisis. Notas pre-analíticas sobre una elegia de
Friedrich Hölderlin. Artigo publicado originalmente em:
Cuaderno de psicoanálisis freudiano (Editor: Ricardo Landeira).
Montevideo, Primavera de 1983, Nr. 4, p. 98-118. Disponível na
Internet: http://www.capurro.de/pan.htm

CARRERA, José Nunes.


1994 Filosofia antes dos gregos. Mem Martins: Publicações Europa-
América.

CASSIRER, Ernst.
2000 Linguagem e mito. / Sprache und Mythos – Ein Beitrag zum Problem
der Goetternamen. Trad. de J. Ginsburg e M. Schnaiderman. São
Paulo: Perspectiva.

CASTRO, Antonio José Jardim e.


1997 Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: UFRJ,
Faculdade de Letras. Tese de doutoramento em Ciência da
Literatura – Poética.

CASTRO, Manuel Antônio de.


1982 O acontecer poético. A história literária. Rio de Janeiro: Antares.
1994 Tempos de metamorfose. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

DETIENNE, Marcel.
1988 Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Trad. de Andréa Daher.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

DROZ, Geneviève.
1992 Os mitos platônicos./Les mythes platoniciens. Trad. de Fernando
Martinho. Mem Martins: Publicações Europa-América.
273

DUARTE, Rodrigo. (org.)


1997 O belo autônomo. Textos clássicos de estética. Belo Horizonte:
Editora da UFMG.

ELIADE, Mircea.
1991 Imagens e símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso.
Trad. Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes.
1992a Mito do eterno retorno. Trad. José A. Ceschin. São Paulo: Mercuryo.
1992b O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
Fontes.

GADAMER, Hans-Georg.
1997 Verdade e método, Vol I. 2ª. edição. Trad. de Flávio Paulo Meurer.
Petrópolis: Vozes.
2002 Verdade e método, Vol. II. Trad. de Ênio Paulo Giachini. Petrópolis:
Vozes.

HAVELOCK, Eric.
1996a A revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências culturais.
Trad. de Ordep Serra. São Paulo: Editora da UNRSP; Rio de
Janeiro: Paz e Terra.
1996b Prefácio a Platão. Trad. de Enid A. Dobránzsky. Campinas: Papirus.

HARVEY, Paul.
1998 Dicionário Oxford de Literatura Clássica. Trad. de Mário da Gama
Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

HEIDEGGER, Martin.
1968 What is called thinking?/Was heisst denken?/ Translated by J. Glenn
Gray. New York: Harper & Row, Inc.
1975 Poetry, Language, Thoght. Translated by Albert Hofstader. New
York: Harper & Row, Inc.
1982 On the way to language./Unterwegs zur Sprache. Translated by Peter
D. Hertz. San Francisco: Harper Collins.
1984 Was heißt Denken. Tübigen: Max Niemeyer Verlag.
1987 Introdução a metafísica. /Einführung in die Metaphysik. Trad.
Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
1990 A origem da obra de arte. /Der Ursprung des Kunstwerks. Trad.
Maria da Conceição Costa. Lisboa: Edições 70.
1991 Conferências e escritos filosóficos. Coleção "Os Pensadores", vol. 5.
São Paulo: Nova Cultural.
1992a Que é uma Coisa?/Die Frage nach dem Ding/. Trad.: Carlos
Morujão. Lisboa: Edições 70.
1992b Parmenides. Trans. By André Schwer and Richard Rojcewicz.
Bloomington: Indiana University Press.
1993a Ser e tempo. Parte I, 4ª edição. Petrópolis: Vozes.
1993b Ser e tempo. Parte II, 3ª edição. Petrópolis: Vozes.
274

1994a A doutrina de Platão sobre a verdade. / Platons Lehre von der


Warheit. Trad. da versão francesa por Antonio Jardim. Rio de
Janeiro: manuscrito.
1994b The fundamental concepts of metaphysics. World, finitude, solitude./
Die Grundbegriffe der Metaphysik. Welt – Endlichkeit –
Einsamkeit. Translated by William McNeill and Nicholas Walker.
Bloomington: Indiana University Press.

1995a Carta sobre o humanismo./Über den Humanismus. Trad. Emmanuel


Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
1995b Língua de tradição e língua técnica. Trad. do francês de Mário Botas.
Lisboa: Veja
1997 Plato’s Sophist. / Platon: Sophistes/. Translated by Richard
Rojcewicz and André Schuwer. Bloomington: Indiana University
Press.
1999a Ontology: the hermeneutics of facticity. Translated by John van
Buren. Bloomington: Indiana University Press.
1999b O princípio do fundamento. /Der Satz vom Grund./ Trad. Jorge Telles
Menezes. Lisboa: Instituto Piaget.
2000a Elucidations of Hölderlin’s poetry. Translated by Keith Hoeller.
Amherst: Humanity Books.
2000b Heráclito: a origem do pensamento occidental. Lógica. A doutrina
heraclítica do logos. Trad.: Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio
de Janeiro: Relume-Dumará.
2001 Ensaios e conferências. Tradução de E. C. Leão, G. Vogel e M. S. C.
Schuback. Petrópolis: Vozes
2002a Off the beaten track. / Holzwege. Translated by Julian Young and
Kenneth Haynes. Cambridge: Cambridge University Press.
2002b The essence of truth: on Plato’s parable of cave allegory and
Theaetetus./Vom Wesen der Wahrheit. Translated by Ted Sadler.
London, New York: Continuum.
2003 A caminho da linguagem. / Unterwegs zur Sprache. Trad. Márcia Sá
Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes.

HESÍODO
1995 Teogonia. Tradução de JAA Torrano. São Paulo: Iluminuras.

HOFSTADTER, A. & KUHNS, R. (Ed.)


1976 Philosophies of art and beauty. Selected readings in aesthetics from
Plato to Heidegger. Chicago: University of Chicago Press.

HÖLDERLIN, Friedrich.
1994 Reflexões. Seguido de Hölderlin, tragédia e modernidade de
Françoise Dastur. Trad. Márcia S. C. Schuback e Antonio
Abranches. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
275

HOMERO
2000 Odisséia. Trad. de Manuel Odorico Mendes. São Paulo:Edusp.
2002a Ilíada. Vols. I. Trad. de Haroldo de Campos. São Paulo: Arx.
2002b Ilíada. Vols. II. Trad. de Haroldo de Campos. São Paulo: Arx.

INWOOD, Michael.
2002 Dicionário Heidegger. / A Heidegger dictionary. / Trad., Luísa
Buarque de Holanda; rev. técnica, Márcia Sá Cavalcante
Schuback. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

KERÈNYI, Carl.
1986 Hermes: guide of souls. / Hermes der Seelenführer./ Translated by
Murray Stein. Dallas: Spring Publications, Inc.
1993 Prolegomena. The primordial child in primordial times. In Essays on
a Science of mythology, pp. 1-69. Translated by R. F. C. Hull.
Princeton: Princeton University Press.
1997 Prometheus: archetypal image of human existence. / Prometheus:
Die menchliche Existenz in griechischer Deutung. Princeton:
Princeton University Press.
2000 The gods of the greeks. New York: Thames & Hudson.

KRELL, David Farrell.


1990 Of memory, reminiscence, and writting. On the verge. Bloomington:
Indiana University Press.

LEÃO, Emmanuel Carneiro.


1977 Aprendendo a pensar, vol. 1. Petrópolis: Vozes.
1991 Aprendendo a pensar, vol. 2. Petrópolis: Vozes.

LIDDELL, Henry George & SCOTT, Robert.


s/d English-Greek Lexicon. Perseus Project. Tufts University.
http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/resolveform
1995 A lexicon. Abridged from Lidell and Scott’s Greek-English lexicon.
Oxford: Oxford University Press.

MARQUES, Márcio Pimenta.


1990 Ocaminho poético de Parmênides. São Paulo: Loyola.

MERLEAU-PONTY, Maurice.
1980 O olho e o espírito. In: Coleção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril
Cultural.

MICHELAZZO, José Carlos.


1999 Do um como princípio ao dois como unidade. Heidegger e a
reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP: Annablume.
276

NUNES, Benedito.
1992 Cultura escrita e oralidade. / Literacy and orality. Trad. Valter Lellis
Siqueira. São Paulo: Editora Ática.

OLSON, David R. & TORRANCE, Nancy (org.)


1997 Linguagem e mito. / Sprache und Mythos – Ein Beitrag zum Problem
der Goetternamen. Trad. de J. Ginsburg e M. Schnaiderman. São
Paulo: Perspectiva.

Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Introdução:


Emmanuel Carneiro Leão. Tradução: Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio
Wrublewsky. Petrópolis: Vozes, 1991.

PALMER, Richard E.
1980 The liminality of Hermes and the meaning of hermeneutics. In:
http://www.mac.edu/faculty/richardpalmer/liminality.html. Acesso
em 20 de outubro de 2004.
1989 Hermeneutica./ Hermeneutics – Interpretation theory in
Schleiermacher, Dilthey, Heidegger and Gadamer. Trad. de Maria
L. R. Ferreira. Lisboa: Edições 70.

PLATÃO.
2000 A República. Trad. de Carlos Alberto Nunes. 3ª. Ed. Belém:
EDUFPA.

PÖGGELER, Otto.
2001 A via do pensamento de Martin Heidegger. / Der denkweg Martin
Heideggers. Trad. de Jorge Telles de Menezes. Lisboa: Instituto
Piaget.

POKORNY, Julius.
s/d Database query to Indogermanisches Etymologisches Woerterbuch.
http://iiasnt.leidenuniv.nl/ied/

SAFRANSKI, Rüdiger.
2000 Heidegger, um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. Trad. de
Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial.

SARAIVA, F. R. dos Santos.


1991 Novíssimo dicionário latino-português. Rio de Janeiro: Livraria
Garnier.

SCHOPENHAUER, Arthur.
s/d O mundo como vontade e representação. / Die Welt als Wille und
Vorstellung. Trad. de M. F. Sá Correia. Porto: RÉS.
277

SCHUBACK, Márcia S. C. (org.)


1999 Ensaios de filosofia. Homenagem a Emmanuel Carneiro Leão.
Petrópolis: Vozes.

SOUZA, Ronaldes de Melo e.


1999 A desconstrução da metafísica e a reconciliação de poetas e
filósofos. In: Globalização e Literatura, Vol. 1, pp. 79-101.
Organização de Luiza Lobo. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
2001/2 A criatividade da memória. Ensaio publicado em Prismas:
historicidade e memória / Francisco Venceslau dos Santos (org.).
Rio de Janeiro: Centro de Observação do Contemporâneo / Caetés.

STEIN, Ernildo.
2001 Compreensão e finitude. Estrutura e movimento da interrogação
heideggeriana. Ijuí: Editora Unijuí.

TERRA, João Evangelista Martins.


1999 O deus dos indo-europeus. Zeus e a proto-religião dos indo-europeus.
São Paulo: Edições Loyola.

TORRANO, JAA.
1995 O mundo como função das Musas. In: Teogonia. A origem dos
deuses. Estudo e tradução. São Paulo: Iluminuras.
1996 O sentido de Zeus. O mito do mundo e o modo mítico de ser no
mundo. São Paulo: Iluminuras.

VATTIMO, Gianni.
1988 As aventuras da diferença. O que significa pensar depois de
Heidegger e Nietzsche. Trad. J. E. Rodil. Lisboa: Edições 70.
1989 Introdução a Heidegger. Trad. de João Gama. Lisboa: Edições 70.
1996 O fim da modernidade. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes.
1999 Para além da interpretação:o significado da hermenêutica para a
filosofia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

VERNANT, Jean-Pierre
1993 Mito y pensamiento en la Grecia Antigua. Barcelona: Ariel Filosofia.
1999’ Mito e tragédia na Grécia Antiga. Jean-Pierre Vernant e Vidal-
Naquet. São Paulo: Perspectiva.

YOUNG, Julian.
2000 Heidegger’s late philosophy. Cambridge: University of Cambridge
Press.
278

Sites pesquisados

The American Heritage® Dictionary of the English Language: Fourth Edition. 2000.
Indo-European Roots Index
http://www.bartleby.com/61/IEroots.html

Columbia Encyclopedia
http://www.bartleby.com/65/

Database query to Indogermanisches Etymologisches Woerterbuch


http://iiasnt.leidenuniv.nl/cgi-
bin/startq.cgi?flags=endnnnl&root=leiden&basename=%5
Cdata%5Cie%5Cpokorny

Folklore and Mythology Electronic Texts


http://www.pitt.edu/~dash/folktexts.html

Heidegger en Catellano
http://personales.ciudad.com.ar/M_Heidegger/

Hoelderlin.gesellschaft.de
http://www.hoelderlin-gesellschaft.de/

Perseus Project
http://www.perseus.tufts.edu/

Philosophical Dictionary. A dictionary of Philosophical Terms and Names.


http://www.philosophypages.com/dy/index.htm

Stanford Encyclopedia of Philosophy


http://plato.stanford.edu/contents.html
279

Índice Remissivo

alétheia, 61, 63, 65, 67, 84, 85, 87, 88, 92, 94, 98, 99, 101, 102, 103, 105, 107, 108, 110, 111, 112, 114, 116, 117,
162, 165, 172, 173, 179, 180, 182, 183, 185, 186, 209, 218, 230, 237, 239, 242, 248, 249
Apolo, 127, 156, 157, 158, 159, 160, 163, 166, 168, 199
audição, 10, 11, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 44, 49, 169, 226

Barros, 53, 54, 56, 178, 190, 199, 204

caverna, 30, 34, 35, 40, 41, 50, 61, 62, 65, 157, 176, 218
ciência, 7, 8, 53, 56, 59, 66, 67, 70, 75, 76, 99, 103, 105, 122, 135, 136, 139, 141, 143, 154, 172, 187, 190, 193, 201,
208, 214, 215, 216, 217, 220, 221, 224, 225, 239, 240, 247, 256, 258, 269
claridade, 18, 98, 131, 218, 242, 245
compreensão, 6, 9, 11, 14, 20, 22, 27, 34, 36, 41, 44, 46, 49, 50, 57, 58, 62, 71, 79, 84, 87, 88, 94, 102, 107, 116, 119,
123, 124, 125, 126, 136, 137, 138, 139, 141, 148, 149, 150, 151, 152, 154, 155, 162, 169, 170, 171, 197, 204, 209,
218, 227, 229, 232, 233, 235, 245, 250, 258, 265, 270, 271
conversa, 208

delphin, 156
desencobrimento, 3, 85, 88, 114, 115, 179, 189
des-ocultação, 67, 84, 92, 180, 181, 200, 251
diá-logo, 148, 149, 150, 151, 154, 166, 283
dissimulação, 86, 89, 91, 114, 230

educação, 10, 45, 271


encobrimento, 39, 81, 84, 86, 87, 88, 91, 92, 93, 98, 105, 106, 108, 110, 111, 112, 113, 114, 179, 180, 182, 185, 190,
205, 210, 217, 219, 220, 227, 242, 247, 251, 266
Éris, 106, 107, 108, 109, 180
escrita, 6, 11, 12, 13, 17, 24, 25, 27, 29, 33, 34, 37, 38, 40, 44, 75, 169, 172, 263, 264, 294, 297
280

faticidade, 123, 139, 141, 150, 151


filosofia, 6, 7, 8, 56, 80, 86, 87, 169, 172, 214, 219, 247, 269, 292, 298
forma, 12, 13, 29, 31, 34, 38, 39, 40, 41, 43, 45, 48, 50, 52, 60, 69, 72, 74, 76, 78, 80, 81, 88, 93, 95, 103, 111, 127,
129, 138, 139, 141, 166, 168, 188, 193, 194, 210, 213, 216, 218, 219, 224, 233, 237, 246, 247, 249, 260, 264, 266
formação, 9, 32, 56, 271
formante, 210, 253, 271

hermenêutica, 20, 119, 123, 124, 125, 127, 130, 132, 135, 137, 139, 141, 142, 146, 147, 151, 152, 153, 154, 155, 170,
298
Hermes, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 134, 135, 136, 137, 141, 142, 144, 147, 152, 153, 154, 155, 156,
157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 166, 167, 168, 199, 208, 209, 211, 229, 237, 268, 280, 281, 282, 284, 285,
286, 296, 297
Hölderlin, 5, 97, 112, 113, 114, 115, 116, 149, 150, 198, 207, 213, 243, 244, 246, 278, 279, 284, 289, 293, 295

identidade, 32, 37, 55, 67, 68, 72, 73, 74, 79, 83, 86, 89, 98, 106, 108, 132, 133, 147, 148, 152, 159, 174, 187, 212,
236, 252, 257, 260
imperium, 145, 146, 147, 162
intelecto, 6, 10, 26, 33, 39, 45, 46, 47, 48, 49, 64, 68, 73, 75, 108, 177, 178, 179, 186, 194, 246, 263, 266
interpretação, 11, 15, 37, 57, 61, 62, 63, 119, 123, 124, 133, 140, 147, 161, 162, 165, 193, 219, 227, 232, 235, 245,
247, 255, 273, 298

Léthe, 84, 106, 107, 108, 109, 180


língua, 24, 76, 177, 295
linguagem, 3, 5, 8, 18, 20, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 29, 31, 33, 35, 39, 42, 50, 51, 52, 53, 55, 56, 57, 58, 69, 75, 118,
120, 139, 148, 149, 170, 173, 188, 191, 192, 194, 195, 197, 198, 201, 204, 205, 206, 207, 208, 212, 218, 228, 229,
232, 233, 234, 238, 239, 240, 241, 244, 245, 246, 248, 255, 256, 259, 261, 262, 263, 266, 268, 272, 273, 295
lira, 127, 155, 156, 158, 160, 166, 168
lógica, 45, 107, 174, 176, 178, 181, 187, 188, 192, 193, 196, 197, 216, 246, 247, 260, 272
lógos, 5, 10, 11, 14, 16, 19, 20, 23, 39, 52, 81, 102, 108, 109, 110, 112, 114, 117, 149, 152, 153, 154, 155, 165, 166,
167, 172, 186, 201, 202, 210, 211, 212, 222, 227, 228, 229, 231, 248, 252, 255, 256, 257, 259, 261, 268, 272
lógos-mousikós, 212, 229, 268, 272
281

medida, 2, 6, 11, 15, 22, 25, 31, 39, 51, 54, 59, 64, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 74, 78, 79, 80, 82, 83, 86, 89, 91, 97,
102, 107, 108, 118, 120, 121, 122, 123, 125, 129, 132, 134, 135, 137, 138, 140, 141, 142, 146, 148, 151, 153, 155,
156, 157, 159, 160, 165, 168, 169, 171, 172, 174, 182, 187, 190, 191, 194, 195, 201, 203, 204, 205, 206, 210, 212,
214, 215, 216, 220, 223, 224, 225, 226, 227, 229, 230, 231, 232, 235, 236, 237, 240, 242, 243, 244, 246, 247, 248,
249, 251, 254, 256, 259, 260, 264, 268, 269, 272
memória, 3, 53, 133, 134, 167, 174, 177, 183, 184, 185, 187, 188, 189, 191, 192, 195, 196, 199, 200, 202, 203, 207,
208, 209, 210, 211, 212, 226, 227, 231, 232, 234, 237, 241, 243, 244, 248, 249, 250, 251, 254, 257, 259, 261, 263,
272, 298
metafísica, 6, 7, 8, 11, 15, 30, 55, 56, 59, 65, 72, 73, 79, 100, 105, 121, 137, 139, 144, 151, 163, 165, 169, 173, 176,
177, 178, 181, 196, 211, 214, 232, 233, 240, 250, 252, 265, 269, 270, 272, 294, 298
mito, 28, 33, 34, 40, 45, 119, 126, 128, 130, 132, 133, 152, 154, 169, 181, 201, 293, 297, 298
Mnemósyne, 24, 32, 155, 157, 160, 166, 167, 168, 169, 184, 187, 200, 201, 202, 203
musas, 3, 31, 32, 104, 120, 132, 133, 134, 155, 203, 210, 211
música, 2, 3, 4, 5, 8, 11, 20, 23, 33, 57, 58, 99, 101, 102, 103, 119, 121, 122, 123, 124, 136, 138, 143, 144, 148, 152,
155, 157, 158, 159, 166, 167, 168, 171, 172, 173, 174, 176, 177, 184, 199, 200, 203, 204, 207, 208, 209, 210, 211,
212, 214, 215, 216, 223, 224, 225, 226, 228, 229, 230, 231, 234, 236, 237, 238, 239, 240, 241, 242, 244, 245, 256,
258, 259, 260, 261, 264, 265, 266, 268, 270, 271, 273, 292
mythos, 10, 11, 13, 14, 16, 19, 20, 108, 109, 110, 120, 155

noite, 16, 112, 113, 114, 115, 126, 127, 131, 198, 199, 235, 239, 241, 246
Nýx, 180

ocultação, 65, 67, 85, 103, 180, 181, 200, 202, 211, 230, 256
oral, 10, 11, 13, 14, 17, 23, 24, 25, 36, 38, 44, 49, 53, 169, 184
oralidade, 12, 13, 14, 17, 23, 24, 25, 27, 34, 39, 169, 184, 297

pensamento, 1, 2, 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, 15, 38, 50, 57, 60, 61, 63, 73, 85, 99, 102, 105, 108, 109, 115, 116, 117, 119,
121, 122, 123, 124, 135, 136, 137, 138, 143, 144, 145, 150, 161, 162, 165, 176, 182, 189, 196, 200, 205, 207, 212,
217, 218, 227, 228, 230, 231, 232, 233, 234, 238, 243, 246, 247, 248, 250, 251, 253, 254, 257, 261, 263, 268, 269,
271, 272, 273, 295, 297
pensar poético, 1, 3, 4, 5, 174, 209, 219, 236, 239, 240, 241, 268, 269, 271, 293
phýsis, 20, 29, 111, 117, 181, 182, 187, 192, 209, 217, 218, 219, 220
282

Platão, 11, 12, 15, 18, 19, 21, 22, 25, 26, 30, 31, 34, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 59, 60, 61,
62, 63, 65, 66, 67, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 77, 78, 79, 85, 86, 105, 108, 144, 145, 178, 179, 182, 188, 190, 191,
247, 294, 295
poetar pensante, 1, 3, 4, 5, 174, 228, 236, 240, 241, 268, 269, 271
poética, 5, 8, 12, 19, 20, 21, 22, 27, 28, 33, 40, 41, 42, 45, 46, 47, 57, 67, 75, 111, 113, 119, 121, 122, 123, 124, 136,
138, 143, 144, 148, 152, 173, 174, 176, 177, 184, 185, 186, 195, 198, 209, 210, 228, 229, 230, 231, 233, 234, 235,
236, 238, 240, 241, 242, 244, 245, 261, 263, 265, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273, 292
poiésis, 5, 56, 100, 177, 178, 179, 184, 187, 195, 204, 212, 231, 235, 245, 253, 257, 261, 268
proto-compreensão, 151, 169

razão, 11, 19, 26, 45, 46, 49, 51, 52, 60, 64, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 75, 76, 81, 83, 88, 92, 99, 103, 138, 158, 167, 174,
178, 188, 191, 196, 233, 236, 238, 247, 252, 256, 262, 269
real, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 16, 17, 20, 25, 26, 36, 39, 41, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 54, 56, 57, 58, 59, 60,
63, 67, 69, 72, 74, 75, 79, 80, 83, 84, 86, 92, 98, 99, 101, 103, 112, 126, 130, 138, 140, 141, 142, 144, 145, 146,
147, 155, 167, 168, 171, 172, 176, 178, 179, 186, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 198, 201, 202, 204, 205,
209, 210, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 220, 221, 222, 227, 229, 232, 235, 236, 238, 239, 241, 243, 247,
250, 251, 256, 257, 260, 261, 262, 263, 264, 266, 267, 268, 270, 296
representação, 1, 25, 45, 58, 67, 68, 73, 74, 75, 79, 82, 83, 88, 133, 147, 174, 176, 187, 189, 190, 192, 194, 200, 215,
216, 217, 218, 220, 224, 226, 232, 234, 236, 244, 246, 259, 260, 261, 264, 266, 269, 271, 272, 298

signo, 38, 184, 262


silêncio, 5, 21, 22, 23, 27, 29, 33, 49, 103, 170, 210, 233, 234, 236, 237, 242, 244, 245

tartaruga, 156, 159, 168, 284


técnica, 6, 7, 8, 42, 50, 56, 57, 59, 67, 75, 77, 78, 80, 82, 84, 103, 105, 120, 122, 136, 140, 141, 188, 189, 190, 191,
192, 208, 225, 234, 236, 240, 241, 247, 258, 292, 295, 296

unidade, 17, 21, 32, 33, 72, 73, 93, 94, 96, 117, 124, 125, 132, 133, 134, 135, 137, 139, 142, 147, 150, 151, 152, 154,
155, 156, 158, 160, 166, 167, 169, 173, 175, 177, 180, 185, 186, 204, 208, 210, 211, 212, 218, 242, 244, 248, 252,
257, 259, 261, 296
283

verdade, 2, 11, 25, 30, 31, 34, 35, 38, 41, 43, 44, 45, 46, 50, 54, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 69, 70, 71,
73, 74, 75, 76, 78, 79, 84, 85, 87, 88, 94, 97, 98, 99, 101, 102, 104, 108, 112, 117, 139, 141, 145, 146, 149, 151,
156, 158, 161, 162, 163, 164, 173, 174, 179, 183, 185, 190, 191, 194, 204, 210, 211, 214, 215, 216, 219, 220, 221,
222, 224, 226, 228, 230, 231, 232, 234, 235, 236, 239, 240, 242, 243, 245, 248, 251, 253, 260, 263, 264, 271, 293,
295
visão, 10, 11, 17, 19, 21, 24, 27, 28, 29, 30, 31, 33, 34, 35, 37, 38, 48, 49, 62, 75, 95, 99, 123, 140, 155, 169, 170, 194

Zeus, 32, 69, 90, 92, 126, 127, 134, 157, 158, 159, 160, 161, 164, 166, 167, 199, 200, 201, 202, 203, 281, 285, 289,
298

Você também pode gostar