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Musica Poetica Do Sentido Uma Onto Logo
Musica Poetica Do Sentido Uma Onto Logo
por
Werner Aguiar
Orientador:
Prof. Dr. Manuel Antônio de Castro
Rio de Janeiro
2004
Folha de Aprovação
Werner Aguiar
! Tese! submetida! ao! corpo! docente! da! Faculdade! de! Letras! da! Universidade!
Federal!do!Rio!de!Janeiro!8!UFRJ,!como!parte!dos!requisitos!necessários!à!obtenção!!
do!grau!de!Doutor.!
Aprovada!por:!
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! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Manuel!Antônio!de!Castro!–!Orientador!
!
! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Emmanuel!Carneiro!Leão!
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! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Luiz!Rohden!
!
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! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Marco!Lucchesi!
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! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Ronaldes!de!Melo!e!Souza!
!
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! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Antonio!José!Jardim!e!Castro!
!
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! !________________________________________________________________!!
Prof.!Dr.!Márcio!dos!Santos!Gomes!
!
Rio!de!Janeiro!
2004!
ii
Ficha Catalográfica
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!
!!Aguiar,!Werner.!
!
!!!!!!!Música:! poética! do! sentido.! Uma! onto8logo8fania! do! real! /!
Werner!Aguiar!–!Rio!de!Janeiro,!2004.!
!
!!!!!!!vii,!286!f.:!il.!
!
!!!!!!!!Tese! (Dourorado! em! Ciência! da! Literatura! 8! Poética)! –!
Universidade!Federal!do!Rio!de!Janeiro!8!UFRJ,!Faculdade!de!Letras,!
2004.!
!
!!!!!!!!Orientador:!Manuel!Antônio!de!Castro!
!
1. Música.!!2.!Poética.!!3.!Hermenêutica!e!filosofia!!4.!
Linguagem!!5.!Mito!
!!I.!Castro,!Manuel!Antônio!de!(Orient.).!!II.!Universidade!Federal!do!
Rio!de!Janeiro.!!Faculdade!de!Letras.!!III.!Título.!
!
!
iii
Dedicatória
Com amor
Pelo muitas vezes prolongado sacrifício e suporte nos tempos de presença ausente
iv
Agradecimentos
A Antônio Jardim,
pelo irromper luminoso na obscuridade do caminho
Ao meu orientador,
Manuel Antônio de Castro
pela liberdade e generosidade intelectual
A Martin Heidegger,
pelo pensar poético
A Capes – UFRN
pelo apoio do PICD,
sem o qual o caminho seria desnecessariamente muito mais difícil
Índice
Resumo ........................................................................................................................ vi
Abstract ....................................................................................................................... vii
Introdução
Entre o pensar poético e o poetar pensante................................................................... 1
Capítulo I
A situação dominante da compreensão do real ............................................................ 6
Capítulo II
O originário como possibilidade essencial no horizonte do perguntar ....................... 53
Verdade como exatidão e correspondência............................................................ 55
A verdade como medida, identidade e representação ............................................ 63
A verdade e a causalidade técnica ......................................................................... 71
Verdade e falsidade – a relação alétheia e psêudos .............................................. 79
A relação alétheia – lógos ...................................................................................... 96
Capítulo III
Música e hermenêutica no horizonte do mito ........................................................... 112
Pensamento e hermenêutica: a articulação da compreensão .............................. 112
Hermes, hermenêutica e o limiar da unidade....................................................... 118
Musas, angelos e a relação hermenêutica............................................................ 124
Hermenêutica, compreensão e sentido ................................................................. 128
Música e Hermes: unidade do lógos .................................................................... 142
Hermes e Hermenêutica: a música como onto-logo-fania do real ...................... 156
Capítulo IV
Música e Memória .................................................................................................... 162
Verdade e Memória .............................................................................................. 162
Música e Memória ................................................................................................ 185
Capítulo V
Ser e Sentido ............................................................................................................. 200
Música e verdade .................................................................................................. 200
Música, pensamento, ser e sentido ....................................................................... 216
Conclusão
Entre questões e problemas ...................................................................................... 248
Apêndice I
Textos originais e versões consultadas ..................................................................... 254
Capítulo I .............................................................................................................. 254
Capítulo II ............................................................................................................. 254
Capítulo III ........................................................................................................... 259
Capítulo IV ........................................................................................................... 265
Capítulo V............................................................................................................. 268
Apêndice II
Alfabeto Grego ......................................................................................................... 270
Bibliografia ................................................................................................................... 271
Sites pesquisados .................................................................................................. 278
Índice Remissivo .......................................................................................................... 279
vi
Resumo
tipo de tentativa objetualizante não é diferente de tantas outras, como as das ciências
aquilo o que é e como é. Portanto, logo de início trata-se de tomar o cuidado de não
percorrer as vias e des-vios daquilo que não cessa de originar-se porque não cansa de
mas, antes e acima de tudo, a consideração da reunião do sentido mesmo (lógos) com
sentido daquilo que nele e por ele se põe e opõe. Em seu poetar pensante pelo e no
do ser como força que re-percute as relações originárias com o próprio homem e a
e de toda criação poética do sentido. Nesse percutere a música poetiza o sentido de caos
Abstract
The interest in reflecting around the question of music in its originary and
fundament of what is manifest in real having the activity of music as the starting point.
This type of objectifying attempt is not different from so many others, like the ones
from natural sciences and from the very own philosophy, attemps which define the
chronological-causal provenance of what is and how it is. Therefore, right from start we
philosophy of science if we are to in-sist on the stance in the midst of the originary, if
we wish to roam the ways and deviations of which does not cease to originate because it
The meaning of being bestow itself as the meaning of the real. This self
bestowing of meaning is not the result of some kind of combination of positive or either
negative values, but before anything else it is the consideration of the very meaning’s
reunion (lógos) to being and not-being, its con-figuration as world and non-world, the
indissociability of meaning from that which in it and through it pose and o-ppose. In its
strength which re-sound the originary relations with man and phýsis. For in every re-
percussion of music, it also percusses the concretion of every invention and creation of
poetics of meaning. In this percutere music poetizes the meaning of chaos and cosmos,
strikes man from his pre-positions and co-moves him to cast himself to the openness of
pensante
oferece mais do que simples obstáculos. O que se oferece nessa topo-logia não são
meros acidentes que, por mais intransponíveis que pareçam, ainda assim poderiam ser
nunca é algo que impede ou atrapalhe seu movimento e sua pro-gressão. Pois, o pro-
manifesta e, por isso, dá-se sempre o seu re-gresso ao lugar de origem. Assim, o pro-
cálculo, nunca se dá numa sucessão linear de causas e efeitos, mas implica sempre, em
certo grau, um recuo do passo para aquém e para além do que se apresenta como e-
vidente.
tempo e à serenidade próprios de toda questão digna de ser pensada. Por isso, o caminho
mais difícil não é aquele que articula e operacionaliza incontáveis representações e seus
sistemas de cálculo, mas sim aquele que ainda assim pretende, num resguardo
caminhar é a música. Falar sobre música é algo que cada vez mais se institucionaliza e,
respeito da música até mesmo implica, em certa medida, na sua trivialização, pois não é
comportamento frente ao que se pro-posiciona como seu objeto de estudo. Por isso, em
considerando-a sempre desde uma perspectiva externa e acima dela. Com que
isso diz respeito à presunção que graça em toda parte de que são mais capazes e mais
bem equipados para estabelecer a verdade da música, aquilo que em toda parte e em
consiste em escutar as palavras inauditas que a música diz e nomeia poeticamente. Mas
o que é isto que a música poeticamente diz e nomeia? Nomear é algo que depende do
nome. Numa experiência mais antiga do pensar meditativo, nome se diz nomem, ónoma
e contém a raiz gno, donde provém a palavra gnósis, uma das palavras gregas para
conhecimento ou saber.1 Nomear, portanto, diz o mesmo que tornar conhecido. Desse
modo, o que a música diz e nomeia, desvela o que e como o que ela diz é experimentado
1
Cf. Autenrieth, G. An homeric dictionay. Projeto Perseus.
3
desencobrimento ocorra uma experiência. Por isso, o nomear que a música diz conduz à
memória. É que a palavra grega para nome – ónoma – é uma assimilação de enuma,
cuja redução aponta para o radical mn, como no ablativo latino nomne. Esse radical
Ora, esse mesmo radical dá origem tanto à memória e às musas, como por
com musas e memória tanto da nomeação que torna conhecido e desencoberto, como
aquela que mantém em reserva, sem nome e encoberto. O nomear que a música
pronuncia é um dizer que revela e que ao mesmo tempo vela. Escutar o que a música diz
pela topo-logia mais difícil, mas aí mesmo encontra o solo mais fértil.
Mas, então, se somente a música é capaz de dizer poeticamente o que ela diz,
modo, um pensar poético, para aí também, com a música, com-por a fulgurância do real
Assim, a topo-logia que o pensamento aqui segue é aquela que se abre e se dis-
põe entre o pensar poético e o poetar pensante. Como tal, o caminho não pretende tomar
2
Cf. Pokorny, p. 321. In: Database query to Indogermanisches Etymologisches Woerterbuch.
4
correto do ponto de vista científico. Pois, o pensamento que escuta o dizer da música
não delibera sobre ela como um espécime para experimentos e para o trabalho
científicos. A escuta faz questão, então, de preservar o âmbito poético que a música
instaura. Mas que âmbito é esse? Afinal, o que é que a música instaura?
Certamente a música não fabrica coisas que serão muito úteis à humanidade,
muito embora seja crescente o número de aplicações que as mais variadas disciplinas
científicas para ela professam. De certo que se pode a todo instante especular e
especificar sobre esta ou aquela função da música e de suas obras. De certo, porém,
também é o fato de que a música vive a transcender tudo que lhe é imposto e lhe é
alheio. Por isso, nunca há realmente a garantia de que com a música se possa fazer isto
ou aquilo. Mas, se não é possível obter uma garantia total com a música, cabe
calcular, mas sim no sentido de escutar. Por isso, o sentido do que a música diz e
nomeia também não pode ser pré-disposto pelo pensamento. Este é que se pré-dispõe a
Daí novamente que, para se nutrir do solo fértil que se abre e se dis-põe entre o pensar
música poetiza e nomeia. Não é o sentido que a estética enquanto disciplina filosófica
determina, mas sim o sentido que a própria música poetiza e nomeia. Certamente, não é
difícil para ninguém compreender que a música faz sentido. Fazer aqui é
poiésis. A música diz e nomeia o que o pensamento quer escutar: uma poética do
sentido. É preciso, pois, silêncio para se escutar o sentido que a música poetiza. Afinal,
diz, mas escutando o sentido que a música poetiza, ouvindo o lógos que nela e com ela
permanecendo próximo a poesia, deseja estar junto à origem. Pois, “dificilmente o que
3
Hölderlin, A migração, IV, 167. Apud. Heidegger, 1990:63.
Capítulo I
real
Gadamer, 2002:240-1.
metafísica, vive-se por toda parte sob um determinado modo de compreensão do real
Esse modo de operação intelectual se encontra identificado com a filosofia tal qual esta
estabelecê-lo como conceito. Este deve permitir explicar a realidade na medida em que
se passa então a operar uma adequação do real aos seus parâmetros. As evidências da
4
Vattimo, 1989:92.
7
de novas filosofias do estilo até agora vigente. Esquecemos que já na época da filosofia
grega se manifesta um traço decisivo da Filosofia: é o desenvolvimento das ciências em meio
ao horizonte aberto pela Filosofia. O desenvolvimento das ciências é, ao mesmo tempo, sua
independência da Filosofia e a inauguração de sua autonomia. Este fenômeno faz parte do
acabamento da Filosofia. Seu desdobramento está hoje em plena marcha, em todas as esferas
do ente. Parece a pura dissolução da Filosofia; é, no entanto, precisamente o seu acabamento.
Basta apontar para a autonomia da Psicologia, da Sociologia, da Antropologia Cultural,
para o papel da Lógica como Logística e Semântica. A Filosofia transforma-se em ciência
empírica do homem, de tudo aquilo que pode tornar-se objeto experimentável de sua
técnica, pela qual ela se instala no mundo, trabalhando-o das múltiplas maneiras que
oferecem o fazer e o formar. Tudo isto realiza-se em toda parte com base e segundo os
padrões da exploração científica de cada esfera do ente.5
Não é necessário ser profeta para reconhecer que as modernas ciências que estão se
instalando serão, em breve, determinadas e dirigidas pela nova ciência básica que se chama
cibernética6.
Essa ciência corresponde à determinação do homem como ser ligado à práxis na
sociedade. Pois ela é a teoria que permite o controle de todo o planejamento possível e de
toda a organização do trabalho humano. A cibernética transforma a linguagem num meio de
troca de mensagens. As artes transformam-se em instrumentos controlados e controladores
da informação.7
5
Heidegger, 1991:72.
6
Cibernética: ciência que tem por objeto o estudo comparativo dos sistemas e mecanismos de controle
automático, regulação e comunicação nos seres vivos e nas máquinas. ing. cybernetics (1948) 'id.', emprt.
ao gr. kubernétikê (sc. tekhnê) 'arte de pilotar, arte de governar'; o fr. cybernetique (1834) 'estudo dos
meio de governo', tem a mesma origem grega; na acp. atual o voc. foi introduzido no ing. (1948), depois
aceito por todas as línguas de cultura, pelo matemático norte-americano Norbert Wiener (1894-1964); In:
Dicionário Houaiss Eletrônico.
7
Heidegger, 1991:72.
8
de que o pensamento ainda possa se colocar a caminho de pensar o real desde sua
questão mais radical e originária, a questão que pergunta pelo próprio ser. Por isso,
tendo em vista essa questão primordial, todo e qualquer questionamento aqui passa
inicialmente pela rejeição de que a música, em sua dimensão poética de sentido, se baste
comunicação e das técnicas de marketing. Essa rejeição é a atitude básica pela qual se
Ocidental, ainda que no seu apogeu metafísico e no curso de seu processo, como um
todo não reúne ainda as condições de questionar seus próprios fundamentos. Isto,
porém, em todo esse questionamento, por mais que aqui ele possa somente e sempre se
dar a partir da própria Cultura Ocidental, isto não deve impedir que se ouse um salto
vigor das origens. Ao contrário, ousar este salto, em que pese toda a ciência e a técnica,
música no modo ocidental de compreensão do real, toda a análise e estética, ousar este
plenitude de diversas maneiras na Cultura Ocidental, porém, todas possuem uma raiz
fascinado por si próprio. Esse fascínio por si mesmo já se apresenta como uma
que outras forças estão em jogo, que estão em cultivo, no sentido de uma formação
(paidéia) cultural do ocidente. Por isso, de modo geral, a educação chamará cada vez
mais a atenção para a necessidade de uma conformação cultural que privilegie o que
está posto como evidente, isto é, aquilo que se pode comprovar através da primazia do
olho e da visão mediante sua disposição no claro. Essa disposição vai aos poucos
subtrair o espaço originário de mythos e lógos. Esse espaço originário, cujo âmbito
8
Bárbaroi.
9
Mythos.
10
Lógos.
11
Épos.
12
Verdade.
13
Certeza.
14
Heidegger, 1992b:70. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 257.
10
nova disposição mental, o mythos será cada vez mais colocado num plano pejorativo e
demeritório, de modo a fazer aparecer em seu lugar a vidência como a faculdade que
representa o modo de ser adequado a conceitualização do mundo. Por isso, não tarda
para que o próprio lógos seja convertido no modo ou no veículo por excelência dessa
conceitualização. Essa nova situação mental, que pode com certeza ser caracterizada
como intelectual, altera completamente o éthos grego, uma vez que toda proferição
manifestativa anterior e tudo que a ela está relacionado permanecerá fora do domínio de
Com isso, o modo grego de se relacionar com e compreender o real, isto é, seu
referencial se dá ao modo da audição e não da visão, esses dois se articulam num con-
junto. O que ocorre com a mudança de primazia da audição para a visão não é uma mera
apreensão do real exclusivamente pelos sentidos. Há nessa mudança uma outra mais
essencial, processada lentamente e que na verdade vai configurar uma nova disposição
15
O que se pretende aqui é abordar a mudança do modo de compreender o real que separa mythos e lógos
opondo-os um ao outro. Nessa oposição, o que fica claro mais tarde nesse capítulo e que será explorado
mais aprofundadamente no capítulo II é que lógos passa a ser compreendido como razão, inclusive se
tornando fundamento para a interpretação do homem como animal racional ou aquele que detém a
capacidade do discurso. Dessa maneira, a discussão sobre os sentidos audição e visão é apenas uma etapa,
um passo na aproximação para a questão principal. Portanto, a discussão aqui não é realizada com o
intuito de estabelecer o real através deste ou daquele sentido da percepção, mas fundamentalmente como
um modo de abordar a passagem do mítico para o racional como situação determinante de toda uma
maneira de compreender o real. Pode-se pensar com isso, então, a mudança de uma situação de
compreensão para uma outra, determinada a partir da conceituação.
11
O processo a que se alude aqui é o da transição de uma sociedade oral para uma
cultura escrita de leitores. Há nesse processo questões que por sua importância precisam
olho como sentido primordial dessa cultura letrada. A explicitação da exigência do olho
e da visão, por mais óbvia que pareça, necessita um melhor aprofundamento no sentido
por Platão.
deixe a dicussão toda cair por completo num mal-entendido produzido por preconceitos.
O primeiro diz respeito ao fato de toda avaliação que se tem do não-letrado como
iletrado ocorrer, como está pressuposto, num sistema de valores. Neste, o juízo de valor
em relação às culturas não-letradas impõe sobre elas uma depreciação cuja origem
provém do entendimento de que a cultura letrada se encontra num grau mais elevado. O
indivíduos de hoje não se pode de maneira alguma confundir com a condição “não-letrada”
ou “pré-letrada” de sociedades humanas que precederam a nossa.16
oralidade ainda se manifesta num volume imensurável, não sendo, portanto, possível
taxar a cultura grega arcaica de iletrada, não somente pelos motivos expostos por
é o mythos.17
condição cultural inferior a de uma cultura letrada. Esse é um preconceito que não leva
Entre, digamos, 1100 e 700 a.C., os gregos eram totalmente não letrados: nesse ponto o
testemunho da epigrafia é irrefutável. Mas foi justamente nesses séculos que a Grécia
inventou as primeiras formas de organização social e da produção artística que vieram a ser
a sua glória.
(...) A fortiori, por volta do século X, as cidades da Grécia continental devem ser
estimadas já capazes de comportar formas de existência social que iam muito além do
regime de aldeia. No nível tecnológico, essas comunidades eram capazes de forjar o ferro, e
provavelmente de fundi-lo, façanha muito além dos micênicos. (...) É possível mostrar que
a arquitetura de seus templos, no mais tardar pela altura do século VIII, já antecipava, na
madeira, as concepções e refinamentos da época arcaica, a partir da qual esses avanços
foram, em parte, preservados para nós em pedra. No domínio das artes, esse período viu,
nos seus começos, a invenção e o aperfeiçoamento do estilo geométrico de decoração,
seguido da introdução de motivos naturalísticos no assim chamado período orientalizante, o
qual começou, de forma bem apropriada, ao tempo em que as letras fenícias foram
aproveitadas para uso grego. Por fim, e irrefutavelmente, foi esse o período que alentou a
arte verbal de Homero.
Em vista desses fatos, uma concepção que equipara sofisticação cultural com domínio
da escrita deve ser posta de lado. Uma cultura pode até fundar-se totalmente na
comunicação oral, e ser ainda uma cultura.18
16
Havelock, 1996a:47.
17
Cf. citação na página .
18
Havelock, 1996a:48-9.
13
que a cultura letrada tem ainda um longo caminho a trilhar para que se possa não
considerá-la ainda como um mero acidente na história das sociedades humanas. Não
custa lembrar, mais uma vez, que a cultura grega se dispõe na união entre a palavra
mítica e o lógos. Isso quer dizer que na tradição grega arcaica não ocorre um modo de
oralidade a qual hoje se está tão habituado, mas que essa oralidade está fortemente
marcada pelo poético. É certo que numa primeira abordagem, mythos significa
entende hoje por esse termo, uma vez que, como se verá adiante, na cultura determinada
operado pela escrita, isto é, pelo que nela é código. Todo sentido e uso na e da escrita é
sempre abstrato e conceitual. Ao contrário, mythos, o que se diz com esta palavra,
transcende a esfera da sintaxe e do mero uso gramatical. Mythos nomeia para o grego
arcaico a relação com o sagrado do mundo. Tal nomear é ao mesmo tempo um lógos
compreender as condições específicas dessa relação com o sagrado a fim de que esta, do
mesmo modo que o aspecto poético-oral da Grécia Arcaica, não seja destituída de seu
experiência. “Nós, homens modernos, presumivelmente não temos a mais parca noção o
quão ponderadamente os Gregos experienciaram sua soberba poesia, suas obras de arte
14
– não, experienciaram não, mas deixaram que permanecessem lá, na presença de sua
aparição radiante”.19
letrada no abstrato criam um bloqueio, senão total, quase que intransponível em relação
ao sagrado.
Na citação não está clara uma distinção entre o sagrado e o religioso. Porém,
pode ser sagrada. Apenas a partir da idéia do divino como idéia de todas as idéias é que
Esta Causa primeira e suprema é chamada por Platão, e em seguida por Aristóteles, toV
qei~on, o Divino. Depois que o ser foi interpretado como ideva, o pensamento voltado para o
ser do ente é metafísico, e a metafísica é teológica. Por "teologia" é preciso entender aqui, e
a interpretação pela qual a “causa” do ente é Deus, e a transferência do ser para esta causa,
que contém em si o ser e o faz brotar de si, porque ela é, de tudo aquilo que é, o Ente
máximo.21
19
Heidegger, 1968:19.
20
Eliade, 1992b:17-8.
21
Heidegger, 1994a:26.
15
Desse modo, a fuga dos deuses pode se dar como fuga do sagrado e a religião,
que não distinga o sagrado da religião, esta como um sistema organizado de cultos, ritos
e devoções, repleto de mercadorias espirituais para o pronto consumo dos crentes22, ele,
acepção do sagrado, principalmente por este dar-se ainda numa dimensão outra que a
das religiões modernas. Tal incompreensão é uma das características da indigência dos
tempos de desolação:
A falta de Deus significa que nenhum Deus reúne mais, visível e claramente, os
homens e as coisas em torno de si, ordenando assim, a partir de uma tal reunião, a História
do mundo e a residência humana nesta História. Mas na falta de Deus se anuncia algo ainda
pior. Não só os deuses e Deus fugiram, mas o esplendor da divindade se extinguiu na
História do mundo. O tempo da noite do mundo é o tempo de desespero, porque ele torna-
se cada vez mais estreito. Ele mesmo tornou-se tão estreito que nem sequer é capaz de
admitir a falta de Deus como falta.23
Por isso, pode-se dizer que o sagrado permanecerá na arte mesmo quando
desaparece nas religiões. Ora, a dificuldade que hoje se apresenta a qualquer empenho
uma esfera onde tudo se encontra pré-disposto de modo evidente e às claras para
transpor o limiar daquilo que se manifesta de modo inefável. Esta a real dimensão da
palavra mythos. Se com a palavra mythos não se pode então dizer nada, ou colocado de
outro modo, se com ela diz-se o não-dito, então será possível compreender o modo pelo
qual o lógos se liga ao mythos como o fiel depositário da relação numinosa arcaica com
o mundo. A referência mútua de mythos e lógos não se constitui, pois, num mero acaso,
O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível no
sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois para
os “primitivos”, como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado
equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado
de ser.24
Não se pode compreender a relação grega com as origens desde uma perspectiva
do moderno. Do mesmo modo que não se pode avaliar uma sociedade oral não-letrada
separar sujeito e objeto. Ainda um último traço que se apresenta de modo paralelo entre
essas dimensões de mundo reside no fato de que, assim como ocorrera com o advento
humano”.25 Não seria então uma mera coincidência, nem surpreendente se o advento e a
modo relacionados.
pela audição e pela visão, vão se tornando mais e mais explícitas as relações que esses
24
Eliade, 1992b:18.
25
Idem, p. 19.
17
sentidos possuem com uma tradição oral e o sagrado, de um lado e de outro, com a
sem o qual não lhe é possível desempenhar suas funções com a necessária acuidade.
analogia se estende a mesma noção à audição. No entanto, mesmo o que na visão pode
ganhar brilho, ocorre por proveniência de uma esfera auditiva. “Claridade” [Helle] vem
visível, mas foi transferido na linguagem para o visível, para o campo onde a luz
da linguagem constitui inicialmente uma apreensão do mundo que ganha sentido no que
pode ser dito e ouvido. Por outro lado, tem-se que a visão necessita de algo externa a si
mesma, tal como a claridade originária do audível, como um terceiro elemento, para que
possa ter algum acesso ao que é por ela focalizado. Esta noção de visão na tradição
filosófica inaugurada por Platão está corroborada na passagem da República VI, 507d-
508a28.
26
A relação entre Helle e hallen, claro ou claridade e ressoar ou eco não vige apenas na semelhança
ortográfica no idioma alemão, mas é confirmada por Ernout e Meillet (Dietionnaire étimologicque de la
langue latine): “Aparentado a clamo e calo, clarus deve ter-se aplicado à voz e aos sons, clara vóx etc.
(cf. decláro; clarisònus, tradução do gr. ligúphthoggos); estendeu-se depois às sensações visuais, clara
lux, clarum caelum 'claro, brilhante', depois às coisas do espírito, clara consilìa, exempla etc., e mesmo
aos indivíduos e às coisas: 'ilustre, brilhante, glorioso' (p.opos. a obscúrus), donde a fórmula vir
clarissimus”, apud Dicionário Houaiss Eletrônico, verbete clar-.
27
Heidegger, 2002b:40.
28
Cf citação na p. 28-9.
18
Ora, o que se pretende pensar aqui não se resume de modo algum numa mera
descrição física e psicofísica dos sentidos da audição e da visão. Por isso, o contraste
aqui posto não é entre visão e audição, mas entre a tradição poética grega e a filosófica
inaugurada com Platão. Nesta última, é o próprio Platão que lança mão de uma
de mythos e lógos e outra, determinada pelo próprio Platão através da totalidade da luz
estabelecer limites e fins, de-limitar e de-finir, pode acolher tanto o olhar como o ouvir.
por acolher os contrários e oposições é que ele é “o lugar em que, subtraindo-se a visão,
conhecimento. Para Platão não é possível que algo (horizonte) seja ao mesmo tempo
Por isso, não sendo platônica, mas originariamente ontológica, toda visão e
entre as vicissitudes de ser e não-ser. Pelo fato de nela, a visibilidade, poder se dar o ser
em seu fragmento 34: “Sem compreensão: ouvindo, parecem surdos, o dito lhes atesta:
presentes estão ausentes”.31 Mas estes são os que ouvem só porque esticam as orelhas.32
Por isso mesmo, logo de início se mostrou a situação grega em que mythos e
ouvido que ouve a tradição poética grega, o que se escuta é a música do lógos
música; a audição é musical: nela, na música, o mais alto grau de realização do real.35
ela para que se dê o acesso direto às coisas. Enquanto que a visão pressupõe a luz, que
31
In: Os pensadores originários, p.67.
32
Cf. Leão, 1993:140.
33
Idem, p. 139.
34
Cf. citação na p.9.
35
Cf. Leão, 1993:42-3.
20
vigência do som. Ao contrário da relação positiva que a visão estabelece com a luz, a
modo algum quer dizer que aí se dê uma simples dualidade, uma dicotomia. Pelo
do mundo, tal qual a unidade fundante de som e silêncio. Essa integração é rejeitada
pela ordem vigente a partir de Platão, pois remonta à tradição poética que se quer
superar. A visão depende, de qualquer modo, de um terceiro como fonte externa de luz
permite o sentido como nexo, variando conforme a fonte. A audição não admite
qualquer critério, apenas o sentido do que nela diretamente ocorre. Daí que, o que nela
ocorre não é propriamente um acesso, uma vez que a audição não pode se colocar fora
da dimensão aberta por som e silêncio. Por isso, não há acesso onde ela já se encontra.
mediatamente na audição.
A dificuldade de, após Platão e, mais tarde, após a modernidade, se lidar com o
sagrado e de constituir uma escuta da dimensão aberta por som e silêncio caracterizou a
21
audição apenas como rumor. Gerede, que em alemão quer dizer rumor, o que se ouve
poética, isto é, um ouvir que escuta por que antes de tudo já compreendeu. Desse modo
não há a menor exigência de que o que se ouve, para ser compreendido, deva ser
necessário uma intermediação que ligue o que se ouve ou o que se vê à sua respectiva
Por isso mesmo, o modo de escuta da audição quando dimensionada pela música
é totalmente diferente daquele que ocorre como um ouvir por aí. Basta o simples fato
de, por exemplo, ouvir um concerto de música para que a audição imediatamente seja
transportada para a abertura originária de som e silêncio, daquilo que se ouve por que já
se compreende, sem mais. Sem mais quer dizer, sem intermediações. Só com muito
empenho epistemológico é que se pode querer depreender significações que lhe sejam
36
Cf. nota 54 (Geredete) do tradutor em Heidegger, 1993a:323.
37
Cf. Heidegger: 1993a:223.
38
Heidegger, 1993a:222-3.
22
exteriormente adjudicados. O sentido poetico brota daquilo que se manifesta, sendo isso
o que na música é música. Por outro lado, o ouvir que escuta o dizer (Sage) da
linguagem não pode ser um escutar do rumor do falatório (Gerede), mas o ouvir (hören)
palavra oral exige uma modalidade de atenção que passa diretamente pela escuta. O
A palavra cantada nada tem a ver, pois, com a palavra escrita, pelo menos não
enquanto tomadas cada qual a partir das diferentes tradições aqui em questão. Aliás, é
preciso frisar que a linguagem como linguagem é primordialmente oral e não escrita, de
tal modo que entre o que se escreve e o que se fala ocorre uma diferença fundamental.
entendimento não vai nada além da conceituação mais comum que pressupõe a
39
Torrano, 1995:16.
23
pode ser compreendida sob a perspectiva da “linguagem como ela mesma e a partir dela
mesma”, isto é, a linguagem sem ser processada pelos procedimentos tradicionais de seu
estudo, sem se afastar dela mesma para explicar-se em virtude de algo a ela externo,
seja a partir da atividade humana, seja como um poder do espírito, uma visão de mundo
linguagem como língua é sua vinculação na sentença à oralidade, uma vez que o
“primordialmente oral” na frase pode levar a crer que a linguagem se constitua a partir
esclarecimento permite, além do mais, que se possa então pensar na escrita não como o
fundamento da linguagem, mas apenas como suporte. O suporte não é a linguagem, tão
pouco esta se funda sobre ele. Por isso, é pertinente, por outro lado, que se mantenha o
questionamento que se segue, qual seja, o de saber se, como escrita, ainda é possível
permanecer algo de linguagem ou se, com a escrita apenas como suporte, a palavra
linguagem se refere a algo outro e estranho à cultura grega arcaica? A procedência desse
questionamento ganha cada vez mais força na medida em que com Platão, e depois dele,
a linguagem vai sendo restringida cada vez mais à conceituação e ao papel de suporte, a
A questão que surge agora é se, por outro lado, não é a oralidade também um
linguagem investe a palavra de sua força nomeadora do real, isto é, de sentido do real,
um nomear que não é lingüístico, que não se restringe como representação a cumprir
40
Cf. Heidegger, 1982:119.
24
uma função na cadeia de comunicação, mas que é manifestativo, isto é, mostra o ser
como presença no que também se ausenta. Não que a palavra escrita também não seja
próprio ser, mas a palavra nessa conjuntura arcaica advém no oral. No entanto, a
questão não é simplesmente um advir, pois pensado desse modo o oral também é um
suporte. Ora, sendo tudo ao qual a linguagem se liga e se relaciona pensado como
suporte, seria o caso de supor que Platão realmente teria razão ao conceber a linguagem
expressão que conforma o real à idéia. Mas aí, a linguagem é apenas um instrumento
apenas o modo de justapor o sujeito representante ao objeto por ele representado, uma
é nem um instrumento, muito embora o próprio Torrano se refira ao aedo como aquele
humana, isto é, uma atividade do intelecto do sujeito que representa o mundo como
41
Idem, p.115.
25
junto.
O cuidado aqui deve ser, portanto, o de saber se a noção de linguagem tal qual já
se apresenta com a escrita pode ser reconhecida como grega arcaica.42 Tais
considerações advêm do fato de que, pelo menos no que se refere à transição entre
completamente diferentes.
compreende de um modo inteiramente diferente que uma orientação que exige a visão
como parâmetro. A relação auditiva com o mundo tem uma consideração de espaço e
tempo diversa da visão. O espaço apreendido pela audição é circundante. Quem ouve, o
faz por que se encontra imerso no mundo. Este está em quem ouve, a sua volta, em
para cima ou para baixo, para dentro ou para fora. O mundo desde o local da escuta é
as leis da física instalam uma compreensão imóvel do mundo. Desse modo, todo lugar é
42
Arcaico aqui é compreendido na acepção do sentido etimológico de arkhé como princípio inaugural,
constitutivo e dirigente da palavra poética. Cf. Torrano, 1995:15.
26
dimensão pelo canto do poeta, como fica claro no texto de Torrano.43 O tempo desde a
homogêneo, mas perturba de modo marcante toda e qualquer igualdade do tempo linear.
em torno da qual todos se reúnem, descontinua e rompe o tempo profano dos atos
temporalização do ser no mundo. Desse modo, enquanto o tempo ordinário segue seu
(...) O tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é,
propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente. (...) Todo tempo
litúrgico, representa a reatualização de um evento sagrado que teve lugar num passado
mítico, “nos primórdios”. Participar religiosamente de uma festa implica a saída da duração
temporal “ordinária” e a reintegração do Tempo mítico reatualizado pela própria festa. Por
conseqüência, o Tempo sagrado é indefinidamente recuperável, indefinidamente repetível.
De certo ponto de vista, poder-se-ia dizer que o Tempo sagrado não “flui”, que não
constitui uma “duração” irreversível. É um tempo ontológico por excelência,
“parmenidiano”: mantém-se sempre igual a si mesmo, não muda nem se esgota.44
mundo, sendo neles e com eles que o mundo aparece. A audição aceita tranqüilamente a
43
Torrano, 1995:16.
44
Eliade, 1992b:63-4.
27
concomitância dos sentidos. Isso não é possível na experiência visual dirigida desde a
palavra escrita. Aí, o mundo não pode ser nem circundante, nem seus sentidos
Por isso, toda circumvisão de mundo deve se adequar de início às restrições do campo
abertura plurivalente de som e silêncio aceita uma organização que não é sua, mas que
advém da instauração dos sentidos próprios do mundo. Por outro lado, a visão necessita
reordenar aquilo que a ela se apresenta, de modo a permitir que o apresentado possa ser
visto mediante a luz que lhe é externa. O custo dessa operação é a transformação da
modo a mostrar o evidente. Essa linearidade não somente ordena o espaço, medindo-o e
representando-o com a palavra escrita, mas elimina, como o faz com o espaço, a
cronológica.
mundo. A ordem não está na audição e sim no mundo. A audição, no sentido de ouvir
(hören) é a escuta do que se diz (mostra) e não-diz (se retrai) e silencia. A linguagem
diferente é o papel da luz, já que é esta que determina o que se mostra e o que não se
a luz, do fogo ou do sol, mas sempre a luz é que determina a visão e o conhecimento do
mundo.
Mas a vista e o que é visto, como deves saber, necessitam desse terceiro elemento.
De que jeito?
Por mais que haja vista nos olhos e se esforce por usá-la quem a possui; por mais que
neles haja cores, se não lhes adicionar um terceiro elemento criado pela natureza para esse
fim, sabes perfeitamente que a vista não verá nada e as cores permanecerão invisíveis.
A que elemento te referes? Perguntou.
O que denominamos luz, lhe disse.
(…)
Não é, por conseqüência, de importância secundária esse elemento de ligação entre o
sentido da vista e o fato de ser visto, porém de muito maior valia do que tudo o mais que
liga as outras coisas, a menos que a luz seja algo desprezível.
(...)
Dirás, por conseguinte, continuei, que este sol é que eu denomino filho do bem, gerado
pelo bem como sua própria imagem, e que no mundo visível está nas mesmas relações para
a vista e as coisas vistas como o bem no mundo inteligível para o entendimento e as coisas
percebidas pelo entendimento.
(...)
Como sabes bem, continuei, os olhos, quando não os dirigimos para os objetos cujas
cores sejam iluminadas pala luz do dia mas pelo clarão da lua, vêem confusamente e se
tornam quase cegos, como se carecessem de pureza de visão.
(...)
Mas estou certo de que, quando se voltam para objetos iluminados pelo sol, vêem
distintamente, parecendo que neles mesmos reside a faculdade da visão.46
Portanto, a ordem não é um modo do mundo aparecer aos olhos, mas se encontra
mais que se queira pensar o mundo como revelação aos olhos, esta somente ocorre de
acordo com a intermediação da luz. Por isso toda visão de mundo só pode mesmo ser
sustentada desde uma mediação. Por necessitar da mediação, chega a ser absurdo dizer
que visão vê o mundo, quando o que se vê na verdade é o reflexo desse mundo mediado
45
Platão, 2000:319-22 (514a-517a).
46
Platão, 2000:311-2 (507d-508a; 508c-d).
29
Considera agora a alma sob igual perspectiva: quando se fixa nalgum objeto iluminado
pela verdade e pelo ser, imediatamente percebe e o reconhece, e se revela inteligente;
quando porém se volta para o que é mesclado de trevas, para o que se forma e desaparece,
passa apenas a conjecturar e fica turva, mudando a toda hora de opinião, como se perdesse
por completo a inteligência.
(...)
Ora, o que comunica a verdade aos objetos e ao sujeito cognoscente a faculdade de
conhecer, podes afirmar que é a idéia do bem; é a fonte primitiva do conhecimento e da
verdade, tanto quanto estes podem ser conhecidos; mas, por mais belos que sejam ambos, o
conhecimento e a verdade, se admitires que muito mais belo é esse outro elemento – a idéia
do bem – terás pensado com acerto. Conhecimento e verdade: assim como há pouco nos foi
lícito admitir que a luz e a visão têm analogia com o sol, porém que seria erro identificá-los
com ele, agora podemos considerar o oconheciento e a verdade como semelhantes ao bem,
sem que nenhum, no entanto, possa ser com ele identificado, pois a natureza do bem deve
ser tida em muito maior apreço.47
Numa cultura orientada pela visão nada se admite sem mediação. Daí o
entendimento de que a relação audição/mundo seja ela mesma mediada pelo poeta-
tem a posse do dizer, muito ao contrário, ele é que está possuído pela escuta de um dizer
que não é dele e sim das Musas: musáon Heliconiádon archômeth’aeídein – “pelas
A primeira palavra que se pronuncia neste canto sobre o nascimento dos Deuses e do
mundo é Musas, no genitivo plural. Por que esta palavra e não outra? Dentro da perspectiva
da experiência arcaica da linguagem, por outra palavra qualquer o canto não poderia
começar, não poderia se fazer canto, ter a força de trazer consigo os seres e os âmbitos em
que são. É preciso que primeiro o nome das Musas se pronuncie e as musas se apresentem
como numinosa força que são das palavras cantadas, para que o canto se dê em seu encanto.
(...)
Elas são o princípio do canto, tanto no sentido inaugural, como no dirigente-
constitutivo (arkhé). A exortação “pelas Musas comecemos a cantar” diz também que
tenhamos nelas o princípio por que nos deixe guiar e exprime ainda a vontade de que seja
pela força delas que se cante. Não é nem a voz nem a habilidade humana do cantor que
imprimirá sentido e força, direção e presença ao canto, mas é a própria força e presença das
Musas que gera e dirige o nosso canto.49
47
Platão, 2000:312-3 (508d-509a).
48
Mousa/wn (Elikwnia/dwn a)rxw/meq' a)ei/dein. Hesíodo, Teogonia, v. 1.
49
Torrano, 1995:21.
30
lembre de que Zeus as concebeu com Mnemósyne (Memória) para proclamarem os seu
feitos e suas vitórias sobre os Titãs, isto é, instituindo-se com isso a ordem olímpica do
universo, basta que se lembre disso para que se compreenda o sentido das Musas como
essa ontologia originária, o poeta-cantor não media e sequer é veículo externo ao canto
das Musas, mas ele é com o cantar o próprio canto. Na audição originariamente
50
)A)rxw/meqa.
51
Torrano, 1995:21.
31
mundo, isto é, da pronúncia do mundo conduzida desde o canto das Musas, não há o
Pois, do modo como se pôde chegar a pensar acima, a música do mundo desde o
canto das Musas se manifesta justamente como mythológos, instaura no mundo, não
fora dele e de modo mediado, a localização sagrada da escuta da dimensão aberta por
som e silêncio. Assim, não há qualquer intermediário, qualquer coisa que como terceiro
porque os gregos arcaicos mantém uma relação sagrada com a palavra-cantada como
intelecto como vidência é que a linguagem chega a ser reduzida ao que determina a
essência de toda a visão: a mediação. A pergunta que deve ficar ainda em suspenso
questiona se a linguagem é ela mesma, sob tais circunstâncias, ainda linguagem, ou se,
somente a partir desse momento, alguma coisa de outro é que se torna linguagem no
repetição dessa afirmação serve ainda para aprofundar uma outra diferença entre a
espaço e do tempo, a idéia como elemento mediador não admite o erro ou o engano.
Para que a visão veja o que se conforma à idéia, tudo que se vê deve se adequar, de um
32
conformidade com a luz que intermedeia. Assim, o que aparece, o que se revela à visão,
o faz em conformidade com a luz. Não se admira, portanto, que a noção de verdade
também se encontre determinada desde a relação intermédia que a luz tem para com a
visão e o mundo. Pois, se o mundo se revela para a visão, ele o faz mediante a verdade
mudando-se a fonte de luz, muda-se a verdade do que se apresenta aos olhos como
mundo.
Não é a ajlhvqeia52 que forma o objeto próprio do “mito da caverna?” Certamente não.
E, contudo permanece certo que este miro contém a “doutrina” de Platão sobre a verdade.
Portanto ele se funda sobre um fato que ele não menciona, a saber, que a ijdeva levanta a
cabeça sobre a ajlhvqeia. O “mito” dá uma imagem daquilo que Platão diz da Idéia do bem:
aujthV kuriva ajlhvqeian kaiV nou~n parascomevnh53 (517 c, 4) “ela é ela mesma a Soberana,
naquilo que ela permite o não-velamento (àquilo que se mostra) e ao mesmo tempo a
percepção (do não-velado)”. A ajlhvqeia passa sob o (ao) jugo da Idéia. Quando Platão diz
da Idéia que ela é a Soberana que concede o não velamento, ele nos reenvia à alguma coisa
que ele não diz, a saber, que doravante a essência da verdade cessa de se deslocar, a partir
de sua própria plenitude de ser, como essência do não-velamento, mas que ela se desloca
para vir coincidir com a essência da Idéia. A essência da verdade abandona seu traço
fundamental anterior: o não-velamento.
Quando por toda parte, em cada uma de nossas relações com as coisas que são, não há
nada que importe mais que o ijdei~n da ijdeva, a apreensão da “e-vidência” pelo olhar, todos
os nossos esforços devem se concentrar de início sobre um único ponto: tornar possível
uma semelhante visão. Aquilo que exige que nós saibamos olhar (considerar) como é
preciso. Quando, na caverna, o homem liberto se desvia das sombras para considerar as
coisas, ele já dirige o seu olhar para aquilo que “tem mais do ser” que de simples sombras:
prov"ma~llon o!nta tetrammevno" ojrqovteron blevpoi54 (515 d, 3-4), “assim voltado para
aquilo que tem mais do ser, ele vê sem dúvida de um modo mais exato”. Passar de um
estado ao outro, é considerar de um modo mais exato. Tudo está subordinado ao ojrqovth",
à exatidão do olhar. Por esta exatidão, a vista e o conhecimento se tornam corretos, de sorte
que finalmente eles visam diretamente a Idéia suprema e se fixam nesta “visada”. Assim
orientada, a percepção se conforma aquilo que deve ser visto. Está lá a “e-vidência”
(Aussehen) daquilo que é. Esta adaptação da percepção, do ijdei~n, à ideva,55 traz uma
oJmoivwsi",56 uma acordo do conhecimento com a própria coisa. Desta preeminência
52
Alétheia.
53
Autê kuria alêtheian kai noun paraschomenê.
54
Pros mallon onta tetrammenos orthoteron blepoi
55
Idein, idéa.
56
Homoiósis.
33
conferida à ideva e ao ijdei~n sobre a ajlhvqeia resulta uma mudança na essência da verdade.
A verdade se torna ojrqovth",57 a exatidão da percepção e da linguagem.
Esta mudança na essência da verdade se faz acompanhar de uma outra mudança que
concerne ao lugar da verdade. Enquanto não-velamento, a verdade é ainda um traço
fundamental do próprio ente. Mas, como exatidão do “olhar”, ela se torna a característica de
um certo comportamento do homem para com as coisas que são.58
necessário ter em conta que, antes de tudo mais, responder é um dizer que ocorre
originariamente pelo ato da fala e somente muito depois por escrito. O sentido de
responder é con-vocado pelo dizer como um apontar para, tornar claro, tornar
audição/mundo está pressuposta em todo dizer, não porque anteceda ao próprio dizer,
mas porque nele se torna manifesta. O dizer torna conhecido para a escuta o próprio
mundo. Quem ouve dizer, ouve o mundo em sua ordem e disposição, e a ele responde
(...) Esta extrema importância que se confere ao poeta e à poesia repousa em parte no
fato de o poeta ser, dentro das perspectivas de uma cultura oral, um cultor da Memória (no
sentido religioso e no da eficiência prática), e em parte no imenso poder que os povos
ágrafos sentem na força da palavra e que a adoção do alfabeto solapou até quase destruir.
Este poder da força da palavra se instaura por uma relação quase mágica entre o nome e a
coisa nomeada, pela qual o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a presença da própria
coisa.61
57
Orthótes.
58
Heidegger, 1994a:20-1.
59
Cf. Buck, 1988:1266.
60
Cf. Buck, 1988:1253.
61
Torrano,1995:17.
34
os povos letrados de hoje já não têm pleno acesso. No caso específico, não há registro
de leis, normas ou regras que possam ser consultadas mediante a recuperação da leitura,
mas o que dispõe o sentido do mundo como o sentido do real é o que chega à audição
pelo dizer. Tanto o som que incorpora o que na fala é dito e não-dito, quanto o que vige
audição a dimensão do real. Daí que no Antigo Alto Alemão “falar” (sprehhan)
significa o mesmo que redōn (dizer)62 ou ainda, derivado do Gótico rōdjan como
um modo de interpretar, esse sentido se reforça ainda mais ao se atentar para o fato de
que “dizer”, em sua raiz indo-européia *sekw-, como “apontar para”, isto é, mostrar,
equivale a palavras como seguir e ver. Nesse sentido, o dizer como interpretação que
mostra implica o ver, ou seja, na tradição imemorial da palavra o ver segue o dizer e,
portanto, o ouvir. Somente com a ênfase e a inclinação na direção de uma cultura escrita
o sentido de que é preciso dizer para ver ganha uma densidade de contornos
realização do acabamento do dizer que manifesta e que interpreta, quer dizer, nela se dá
62
Reden, no alemão moderno.
63
Raten, no alemão moderno.
64
Cf. Buck, 1988:1255.
35
da luz. Em toda mediação, a relação da visão com o mundo, sem ser direta, não
tempo. Analisar quer dizer identificar o que pela luz é iluminado e subtrair a diferença
luz registra a identidade como o exato, como o que o ente é. A visão necessita então
identificar os entes que são e como são a fim de estabelecer a ordem visual do mundo. O
visão analítica se caracteriza como elemento de viabilidade da escrita enquanto esta está
pelos quais o advento da cultura letrada mantém uma estreita relação com a
implícita na transição da sociedade oral para a cultura letrada. Essa questão diz respeito
65
Havelock, 1996a:57-8.
36
justamente a um aspecto decisivo para a mudança da disposição mental que lida com o
não somente da mera transição do ouvido e da audição para o olho e a visão, mas com
de enfoque é que não somente pode se dar o paradoxo de uma “palavra silenciosamente
falada”, mas de modo ainda mais aprofundado, o fato da palavra se converter numa
terminologia impronunciável.
proclamação do mundo na medida em que, como tal, se des-vela auto velando-se. Outra
comunicativo visa a clareza de tudo o que se diz como exatidão do enunciado, des-
instrução. Como instrução que não pode ser jamais pronunciada, a metalinguagem vai
66
Heráclito, Fragmento 123. In: Os pensadores originários, p. 91.
37
compreendido. Os signos que tal linguagem apresenta já não são mais os signos que o
instruções, como num acender e apagar das luzes conforme se pressiona um interruptor.
escrita não faz mais do que transformar a própria linguagem no que se poderia
hoje, faz-se de maneira amarelada, talvez até mesmo sob a forma “instrucionada” de
metalinguagem em si não sabe nada, nem quer saber nada do homem e do real. O seu
que se torna também objeto não dele, mas do caráter instrucional da metalinguagem
autônoma.
demarcar com bastante precisão o que pretende rejeitando a tradição poética da Grécia
67
Platão, 2000:311-2.
38
que, tal qual o sol, que ilumina de forma indubitável as coisas vistas pelos olhos, por
(...) Platão desenvolve a seguinte questão: Em que a coisa vista e o ato de ver são eles
aquilo que eles são em sua relação? O que é que estende o arco que os une? Que jugo
(zugovn, 508a, I) os mantém reunidos? A resposta, que o “mito da caverna” está carregado
de traduzir em representações sensíveis, nos é assim dada sob a forma de imagem: é o sol,
fonte de luz, que confere à coisa vista sua visibilidade. Mas a vista não vê o visível senão
enquanto o olho é hJlioeidev"68, “de natureza solar” (Sonnenhaft), que ele é o poder de
participar ao modo de ser do sol, quer dizer à sua luminosidade. O olho é ele mesmo
“luminoso”, ele se dá ao parecer, e é assim que ele pode acolher e perceber aquilo que
aparece. Para quem vê através dela, esta imagem sugere relações designadas como seguida
por Platão (VI, 508e, I ss.): tou~to toivnun toV thVn ajlhvqeian parevcon toi~"
gignwskomevnoi" kaiV tw~/ gignwvskonti thVn duvnamin ajpodidovn thVn tou~ ajgaqou~ ijdevan
favqi ei[nai.69 “Aquilo que, portanto, permite o não-velamento das coisas conhecidas, mas
dá também ao conhecedor o poder (de conhecer), revela que isto é a Idéia do Bem”.70
precisa viger à todo custo de modo a criar as condições de rejeição da tradição poética
grega em prol da concepção filosófico-científica do real. Ora, para que se leve à cabo a
da idéia do bem como guia e orientação do real, é preciso, antes de mais nada, que
ambas as coisas, o que sai de cena e o que assume o seu lugar, atuem no mesmo palco,
como essência da poesia é a condição sine qua non para a compreensão da crítica de
68
Helioeidés.
69
Touto toinun to tên alêtheian parechon tois gignôskomenois kai tôi gignôskonti tên dynamin apodidon
tên tou agathou idean phathi einai.
70
Heidegger, 1994a:15-6.
39
comum, como o parâmetro tanto de uma coisa, como de outra, tanto da tradição poética,
Mas, quando [o poeta] nos dirige qualquer fala como sendo de outra pessoa, não
poderemos dizer que se esforça para deixar sua linguagem, tanto quanto possível, parecida
com a da pessoa por ele mesmo anunciada antes que nos iria falar?
(...)
Ora, imitar alguém, ou pela palavra ou pelo gesto, não é representar a pessoa imitada?
Sem dúvida.
Sendo assim, num caso como esse, ao que parece, tanto Homero como os demais
poetas procedem em suas narrativas por imitação.71
Como condição sine qua non para a crítica da poesia, a concepção da essência da
poesia como mímesis não é passível de discussão e/ou contestação, pois é preciso que se
viabilize as condições necessárias para que, uma vez que ambas as coisas, a poesia e a
idéia do bem, figurem agora no mesmo plano, Platão possa dar prosseguimento ao seu
uma mímesis duas vezes afastada da idéia. Para tal, usará a figura do pintor em
que o que este faz por imitação simples, isto é, fabrica leitos e mesas segundo uma idéia
permanente do que estas sejam, aquele o faz em sua pintura de um modo duplamente
71
Platão, 2000:147 (393c).
40
Qual?
O que pode fazer tudo quanto faz particularmente cada obreiro.
Falas de um homem extraordinário e miraculoso!
Ainda é cedo; daqui a pouco dirás que ele é muito maior. Pois esse mesmo obreiro não
é apenas capaz de aprontar móveis, como faz tudo o que nasce da terra, dá forma a todos os
seres vivos, a ele próprio e ao que mais houver, além de ser o autor da terra, do céu e dos
deuses, e de quanto existe no céu e embaixo da terra, no Hades.
[596d] Referes-te a um sofista admirável, me falou.
Não acreditas? perguntei; então, me dize: achas mesmo que pode haver um artista
nessas condições? E em que circunstâncias tudo isso poderia ser fabricado, e em quais não
poderia? Não percebes que tu próprio, de certo modo, serias capaz de criar tudo isso?
(...)
Não é difícil (...), a prova pode ser feita a qualquer hora e em pouco tempo, porém
muito mais depressa se te resolveres a tomar um espelho e o levares contigo por toda parte:
num abrir e fechar de [596e] olhos farás o sol e tudo o que há no céu; num segundo, a terra;
rapidamente farás a ti mesmo e os outros animais, os móveis, as plantas e tudo o mais que
enumeramos há pouco.
Não há dúvida, (...); porém tudo isso não passa de aparência; carece de existência real.
Ótimo! (...); bateste no que eu queria; mas entre esses obreiros, quero crer, há de estar
também incluído o pintor.
(...)
Porém decerto dirás, segundo creio, que ele não faz de verdade tudo o que faz. Mas de
certo modo o pintor também faz alguma espécie de leito. Ou não fará?
(...)
[597a] II - E o carpinteiro? Não afirmaste agora mesmo que ele não constrói a idéia do
que dissemos ser o leito, mas apenas um determinado leito?
(...)
Ora, se ele não faz o que é, não poderá fazer o que tem existência real, senão apenas o
que parece existir, sem, de fato, existir. E se alguém se abalançasse a afirmar que o trabalho
do carpinteiro ou de qualquer outro artesão tem existência, de maravilha estaria falando a
verdade.
[597b] (...)
E não queres (...) estudar comigo esses casos, para procurarmos o imitador e dizer em
que consiste a imitação?
(...)
Assim, tais leitos se nos apresentam sob três formas: uma, que se encontra na natureza,
obra, segundo penso, de Deus. (...)
(...)
Outra, feita pelo carpinteiro.
(...)
E outra mais, a do pintor (...)
(...)
Logo, pintor, carpinteiro, Deus: aí temos os três mestres das três espécies de leito.
[597c] (...)
[597e] Quer parecer-me, disse, que a designação mais acertada [ao pintor] seria a de
imitador daquilo que os outros são os obreiros.
(...) Dás, assim, o nome de imitador ao que produz o que se acha três pontos afastado
da natureza.
(...)
Ora, exatamente como ele, encontra-se o poeta trágico, por estar, como o imitador, três
graus abaixo do rei e da verdade, o que, aliás, se dá com todos os imitadores.72
72
Platão¸ 2000:434-7.
41
Não há uma teoria platônica da arte na República. O que há é uma teoria do real
mas de vários outros fenômenos. A mímesis é o denominador comum que permite que
tudo possa ser alinhado de acordo e em correspondência com a idéia do bem. A teoria
de Platão é, definitivamente, uma teoria e como tal ela versa sobre real. Com o
aparecimento de uma teoria do real, é o próprio real que pela primeira vez aparece de
acordo com a teoria. Não sendo uma teoria da arte, mas sim uma teoria do real, a
mundo não pode haver nem lugar nem vez para o concreto do mundo. Dar lugar à
a mensagem das Musas pelo vigor que é próprio das Musas. Esse vigor é sempre maior
que toda teoria do real, pois tal coisa perde consistência na relação dirigida desde a
dimensão oral de mundo. Entretanto, teoria do real é uma expressão que denota
justamente o oposto do que diz. Toda teoria do real enuncia o real dimensionado desde a
teoria, sendo que o que em verdade se diz não é uma teoria do real, mas um real da
teoria. Em toda teoria do real, o que se encontra de antemão pré-escrito é o real e isso de
um modo que tal pré-escrita pertence à teoria, não ao real. Entretanto, a mesma sentença
do real”, nada mais diz do que o sentido da teoria disposto desde a dimensão do mundo.
No entanto, Platão quer justamente alterar esse modo de compreensão e para tal precisa
mundo. Abstrair o mundo nada mais é do que instituir o real mediado desde a idéia do
bem.
42
Nessa perspectiva, não sendo A República nem uma teoria do estado, nem uma
teoria política, não sendo uma teoria da educação e sequer da arte, mas, sobretudo uma
teoria que afirma o que é e como é o ente, dali para diante, real e irreal, concebido desde
a adequação (verdade) à idéia do bem, que não é nenhum Deus, mas aquilo que pela
primeira vez brilha, tal qual o sol, no intelecto de um sujeito que se separou do mundo,
um sujeito que conhece e deseja conhecer o conhecido, nessa perspectiva, Platão, para
garantir a fundação de uma nova tradição precisa de todo modo assegurar em primeiro
Por isso, toda a tradição poética da Grécia Arcaica, que se manifestava numa
para com ela, nenhum nada de teoria epistemo-lógica poderia se fazer valer de maneira
Esta transição não é fácil, nem ocorre localizadamente em Platão como se fosse
essenciais para que ela se dê de um modo absolutamente irreversível. Pelo fato de tais
73
Havelock, 1996b:42.
43
condições já se apresentarem favoráveis à época de Platão é que ele pode então, ousa-se
aqui dizer, de maneira quase sofística, atribuir à dimensão poética um estatuto que
jamais lhe pertencera ou lhe caracterizara e, com isso, não apenas fundar uma teoria do
real, mas de quebra, uma teoria da arte. Não é senão por isso que Aristóteles e toda a
tradição filosófica ocidental irão se debruçar sobre a arte desde o estatuto da mímesis.
Pois o que não se comenta e nem Platão chega a qualquer tempo dizer, trata justamente
da questão que permanece em aberto, qual seja, que em nenhum momento na República,
pressuposto. Entretanto, como esse é o mesmo pressuposto que relaciona a idéia do bem
ao que se manifesta no mundo sensível, chegando mesmo a conferir o seu sentido, então
se compreende por que Platão se torna refém de sua própria criatura. No entanto, não só
ele é refém, mas toda tradição filosófica ocidental e toda compreensão vigente do real
que dimensiona toda a circunstância do ser desde a imitação do que se encontra modelar
do que é e do que não é real. A necessidade aqui é aquela exigida desde a verdade como
correção. Portanto, se há uma idéia do bem, seja ela qual for, importa apenas que ela
raciocinante da alma”, diz Platão.74 À idéia do bem se deve aderir à garantia de que por
imitação o real a corresponda corretamente. A não correspondência, por menor que seja,
não é, obviamente, algo que possa ser cotejado e, portanto, validado desde a
comparação com o que vige na idéia. Daí que em toda noção que busca uma
74
Platão, 2000:445 (602e).
44
necessariamente encontrar o que deve ser taxado como falso, ou seja, como não correto,
do pintor e por analogia, a respeito do poeta: “Ora, se ele não faz o que é, não poderá
fazer o que tem existência real, senão apenas o que parece existir, sem, de fato, existir”.
Ou ainda: “porém tudo isso não passa de aparência; carece de existência real”.75
No exemplo usado por Platão, o que carece de existência real, o que parece sem
existir, nada mais é do que a tradição poética da Grécia Arcaica. Esta determinação não
serve apenas para o modo de se relacionar oralmente com o mundo dos gregos arcaicos,
mas se torna referência para o modo pelo qual toda a tradição filosófica ocidental
carência do real na poesia se dá como parte do processo que visa substituir a tradição
poética do concreto pela concepção abstrata do intelecto. Para Platão a poesia corrompe
o intelecto:
Para falar-vos à puridade, pois decerto não ireis denunciar-me aos poetas trágicos e aos
demais cultivadores da poesia imitativa, o que me parece é que todas essas composições
corrompem o claro entendimento dos ouvintes, a menos que estes disponham do antídoto
adequado: o conhecimento de sua verdadeira natureza.76
intelecto e cuja vidência mira a verdadeira natureza da poesia a partir da luz que a
ilumina: a idéia. A verdadeira natureza é aquilo que se mostra revelado pela luz e
portanto, está em conformidade com essa luz. O pressuposto de Platão é que somente o
que, tal qual o sol, vige na luz suprema é a forma essencial que dá sentido ao real. A
75
Cf. nota 74, p. 41.
76
Platão, 2000:433 (595b).
45
sustentar a argumentação de que o poeta, da mesma maneira que o pintor, imita algo
poesia possa não ser mimética. Para Platão, tudo é resultado da imitação, seja da forma,
para ele primordial, da idéia ou da imitação do que já fora imitado pelo artesão. A
tempo que as demais coisas. E não poderia ser diferente, pois para Platão o método de
A idéia é abstração por excelência. Nela não há espaço, nem tempo, somente os
conceitos imóveis e permanentes. Ora, para que tal “idéia” possa vingar, não é possível
que no espaço e no tempo sensíveis haja uma situação que quebre a homogeneidade do
conceito. O espaço e o tempo sagrados são, pois, uma ameaça à instituição de um real
veneno para o intelecto, o alvo de Platão não é exatamente a poesia em si, mas algo que
nela subjaz como mais fundamental e poderoso na sociedade grega. O que subjaz na
poético. Por ser oral, isto é, por se dar na recíproca relação de dizer e escutar, de som e
reciprocidade e de co-pertencimento entre ser e coisa, entre ser e o que povoa de ser o
próprio mundo.
46
entendimento, o que ele tem em vista é o entendimento dos ouvintes. O que ele oferece
como antídoto não é uma outra audição, mas a visão clara do e-vidente que se afigura
no intelecto pela razão. O que se afigura na razão intelectiva não é a pintura do leito,
nem o leito que o artesão fabrica, mas tão só e unicamente a idéia permanente do que é
o leito, isto é, do que é o ente, do ser do ente, e nada mais. Nada mais aqui significa: o
inclusive do nada. Para que tal coisa possa em última instância ser visualizada é preciso
mundo para construir uma visão abstrata do real. Para Platão, somente aquilo que não
está sujeito à ação do espaço e do tempo oralizado e ouvido, mas sim o que se apreende
desde o conceito inespacial e a-temporal da idéia é que tem existência real. A existência
deve se dar como um puro ser sem qualquer concreção. Pois, o que é concreto está
também de ser profano, o concreto corre sempre o risco de ser de um modo ou de outro,
inclusive o de não mais ser. Ser e não ser, para Platão e para toda tradição de
pensamento posterior, é algo confuso que só pode se dar na percepção de quem ouve e
portanto, não julga, mas é conduzido pelo mundo sensível tal qual ele se apresenta.
efetuam, operam o julgamento do que é e do que não é o real mediante a luz racional do
47
conceito, da idéia e por isso, chegam à verdade do ser como correspondência ao que é
Platão ocorre não somente por que de um lado tudo é uma mímesis, mas também,
porque de outro lado tudo se torna objeto de uma comunicação pura e simples. A
III, passa da descrição do tipo de história narrada pelo poeta para pensar sua atividade
como uma técnica de comunicação verbal. Essa mudança assinala na verdade uma
mudança de paradigma a respeito do que vem a ser a própria linguagem. Se com o poeta
ar’ou panta hoas hypo mythológon è poietôn lêgetai diégesis ousa tynchánei è
diégesis como relato, para pensá-la como narrativa, então, fica claro que o que está na
mira de Platão é o modo pelo qual o conteúdo do que está na narração é apreendido por
quem ouve. Pelo fato da narrativa manifestar um tempo e um espaço sagrados, isto é,
77
Cf. Torrano, 1995:14-20.
78
a)=r' ou) pa/nta o(/a\s u(po\ muqolo/gwn h)\ poihtw=n le/getai dih/ghsij ou)=sa tugxa/nei h)\ gegono/twn h)\ o)/ntwn h)\
mello/ntwn. Platão, 2000:146 (392d).
48
afigura na idéia. É preciso separar o homem desse evento poético a fim de que o sistema
das idéias se viabilize. Por isso, a meta inicial perseguida na República e que propiciará
governante.
as coisas belas ao conhecimento da beleza per se. Ora, as coisas belas são sem dúvida
nenhuma concretas, mas como sentido do mundo manifesto no evento poético não
dizem respeito ao que a beleza em si mesma seja e sim à multiplicidade das coisas do
mundo. Essa situação terá de ser revista mediante a reflexão racional abstrata a fim de
se chegar ao conceito de beleza, não somente para as coisas que foram manifestas pelo
79
Havelock, 1996b:219-20. A descrição de Platão do guardião que conquistou o autodomínio é a
seguinte, de acordo com a tradução do próprio Havelock: “a probidade diz respeito à ação interior, e não à
exterior, a si próprio e aos componentes do eu, reservando os componentes específicos no seu eu aos seus
respectivos papéis, impedindo que os tipos de psyche interfiram uns nos outros; obrigando um homem a
pôr ordem nas suas várias qualidades, a assumir o comando de si mesmo, organizar-se e se tornar um
amigo de si próprio... tornando-se, sob todos os aspectos, uma única pessoa em vez de muitas”. Cf.
Platão, 2000:221-2 (443c ss)
49
canto do poeta, mas fundamentalmente como a forma permanente da beleza. Para Platão
Para o estabelecimento de uma teoria do real como um puro ser é necessário que
se separe do mundo o próprio homem, a fim de que como sujeito, isto é, alguém que
tem consciência de si próprio, possa vir a conhecer os entes que também do mundo
foram retirados, isto é, daqui por diante os objetos incontaminados pelo distanciamento
do mundo. Por isso, a linguagem agora tem sua essência na léxis e não mais no lógos. A
linguagem já não pode mais manifestar nada, mas deve ser instrumento proposicional
que executa a correspondência operada por aquele que conhece (sujeito) ao que por ele
corpos, expressos em equações que “são” e não mudam. Platão defende a invenção de
da memória oral.
Em primeiro lugar, diz ele, comece a pensar não na velocidade na qual esse objeto
específico que se vê está se movendo ou no seu tamanho; pense sobre velocidade e tamanho
como coordenadas em geral; em segundo, não me diga “veja, A está se levantando mais
rapidamente do que B”; em vez disso, tente dizer: a velocidade temporariamente
corporificada em A é duas vezes maior do que a temporariamente corporificada em B; e
então diga: as velocidades desses corpos estão numa determinada proporção com relação a
uma velocidade comum teórica; e isso fará refletir acerca de quais são as leis ou fórmulas
segundo as quais as velocidades aparentes variam. Desse modo, a astronomia invisível
torna-se um artifício para pensar em termos do que (a) é puramente abstrato e (b) pode ser
enunciado numa sintaxe atemporal como aquilo que sempre “é” e nunca “não é”.
50
Eis aqui uma nova estrutura do discurso e um novo tipo de vocabulário apresentado à
mente européia. Nós o aceitamos sem discussão hoje como o discurso de homens
instruídos. Não nos ocorre que houve um tempo quando precisou ser descoberto, definido e
enfatizado para que pudéssemos fácil e complacentemente herdá-lo. Essa descoberta
pertence exclusivamente a Platão, muito embora ele esteja construindo sobre um grande
esforço nessa mesma direção que o precedera. O fato de que os vocábulos gregos que
pudemos traduzir aqui como “movimento” ou “corpo” já existissem não significa nada. Foi
sua relação sintática que mudou, e quando o fez, o vocábulo foi privado da particularidade e
se ampliou de modo a abarcar as dimensões de um conceito. No uso pré-platônico (se
excetuarmos alguns pré-socráticos) os vocábulos jamais haviam sido empregados sujeitos
ao atemporal é. Eles haviam simbolizado o vôo de uma flecha ou o corpo de um homem em
particular quando se apresentavam adequadamente na série narrativa, e agora vão significar
apenas “todo e qualquer movimento” e “todo e qualquer corpo do cosmos”, sem
especificação. Eles foram abstraídos e integrados com base em todas as figuras de corridas
e vôos de flechas ou homens, de corpos de lutadores e cadáveres mortos. Eles haviam se
transformado em “invisíveis”.80
conceitos universais, aqueles que são perenes, atemporais e inespaciais. Tome-se para
O que diz o poema? Algo que não pode se dar nem no espaço e nem no tempo.
Afinal, como algo que falta pode ter preseça? Como a ausência pode ser presente?
verso diga algo que na verdade é absurdo. A falta sendo presente se destitui do seu
caráter de ausência. Por outro lado, se o que está presente é a ausência, considerado na
o ponto de vista conceitual o que diz o verso é algo impossível, uma vez que presença e
ausência são “conceitos” que se excluem mutuamente. Na poesia, entretanto, eles são
80
Havelock, 1996b:275.
81
Barros, 2000:67.
51
pouco mais a seu respeito, qualquer um logo compreende e atesta com sua própria vida
a revelação do que o poema diz. E o que o poema diz? Diz que em mim o que falta está
mais presente. Estar mais presente quer dizer que a falta se faz mais presente do que o
presente. Quantas não são as situações em o poema aqui não dimensiona o real de modo
ausência são os que mais se fazem presentes um ao outro. Não é a falta de algo
necessidade da presença daquilo que como ausência não se possui. O que há então de
absurdo e irreal no poema que o conceito não possa aceitar sua concomitância se o que
o poema diz pode ser dito desde as coisas que se têm por mais elevadas até aquelas que
a própria natureza do que poesia e conceito são. A poesia diz, refere-se a coisas as quais
o conceito não pode levar em consideração pelo simples fato se estar afastado do real,
pelo simples fato de no conceito e por ele se operar a exclusão do que no real se dá
como real. O conceito é a consideração apenas do real como o que nele se dá como
conceito e nada mais. Mas, ainda é possível uma última e derradeira argumentação: a de
metafísica, que a linguagem possa ainda se dar como anúncio de outras possibilidades?
desligado, do sim-não, do é ou não-é, ainda é possível pensar para além disso tudo uma
tal coisa como o sentido “figurado” na medida em que este pode chegar até mesmo a
horizonte do perguntar
Gadamer, 2002:238.
uma vigência outra que não aquela estabelecida pela ciência e pela técnica através dos
levam a cabo tal projeto na plenitude de possibilidades da metafísica? Afinal, desde que
dizer que apenas “imita” o real, mas que não tem “realidade” própria? Que estatuto
retira a ficção, a imaginação do que se diz para opô-la ao real como irreal? Em que
ainda: que importância tem tudo isso e em que isso ajuda no empreendimento de um
82
Barros, 2000:67.
54
Para que se possa não responder, mas sim, tematizar questões como essas, um
caminho pode ser o de perguntar pelo “dispositivo” conceitual que na Cultura Ocidental
operou o próprio real como conceito, um tal “dispositivo” que se apresenta de modo
inseparável dos conceitos de idéa, linguagem, sujeito, objeto e causalidade, entre outros.
Esse “dispositivo” central para a Cultura Ocidental não é outra coisa senão aquilo que se
da obra já e sempre sob uma determinada perspectiva do que seja a verdade. Fala-se
Discursa-se muito a respeito da verdade da obra, não somente em relação aos seus
fundamentos e não apenas sob a perspectiva de sua natureza técnica ou teórica, mas
também no que se refere às suas possíveis funções. Por isso, entre tantas “aplicações”,
Até que ponto o necessário enquadramento da obra num contexto funcional que lhe é
atribuído por outras instâncias pode realmente conduzir não apenas à compreensão do
que a obra é, mas à sua verdade? Até que ponto, por exemplo, ao se empenhar tanto em
compreender a música como um objeto significativo cuja função seja atribuída pela
obra?
55
uma determinada compreensão de obra. Nessa possibilidade sempre vigente não estará
Por isso, em se tratando de obra, de arte, de música, de poesia, seria bom tomar o
cuidado exigido a fim de não precipitar a assunção de pressupostos e de não forçar obra,
arte, música, poesia a caberem num universo conceitual que não apenas lhes é estranho,
mas que lhes é árido e hostil. Pois, em todas essas determinações e possibilidades de
obrigação de se adequar a obra a algum fator externo a ela mesma, uma propriedade que
lhe possa conferir um estatuto de realidade e validade. Num real assim concebido, vale
como estatuinte de seu valor, seja esse um valor “teórico” ou “prático”, o que já está
previamente decidido e nunca chega mesmo a ser questionado é a própria verdade como
Por isso, trata-se aqui também de questionar, retornando ao dizer do poeta como o dizer
que regula sua linguagem como algo “figurado” até que se tematize convenientemente
homem e o real. Não obstante tal momento histórico de plenitude metafísica, o projeto
uma determinada decisão sobre a verdade que ocorrera ainda no mundo grego. Tal
decisão não se deu como uma preferência qualquer por isto ou por aquilo, mas no que
nela foi decidido jogou-se com todo o modo vigente de constituição histórica do
homem.
Por isso, mesmo situações cotidianas das mais simples se deixam contaminar
mais e mais por aquilo que se estabelece a partir do universo de relações armadas pela
ciência e pela técnica. Desse modo, se o que se diz ou se o que provém da opinião
uma situação que aponta para um determinado modo de recolher o sentido do real. Pois
possibilidade, uma possibilidade que nem mais chega mesmo a ser possibilidade na
medida em que para a constatação dos seus efeitos, técnica e ciência necessitam
necessidade radical e essencial de manter tudo como presença no des-velado que com
Platão se induz uma teoria do real. Teoria do real significa aqui colocar o real às claras,
no des-velado e aí fazê-lo permanecer. Portanto, por mais que se tenha em conta uma
fato de se forçar o real a permanecer no des-velado. Forçar aqui quer dizer, des-aderir o
real abolindo qualquer alteração não prevista ou não programada e com isso
57
evento poético.
Com isso, mesmo que de modo incipiente, Platão inaugura o paradigma do real
daquele que conhece e que se empenha em conhecer. A luz do saber quer dizer então o
sujeito do mundo e por essa separação estabelecer o critério pelo qual o sujeito pode
afirmar suas enunciações como conhecimento do mundo ou não. Quem conhece, o faz
isto é, o real como efeito do que se produz originalmente na razão. O critério aqui é o da
sentido do real.
Esta interpretação da verdade vige como o não-dito no que o próprio Platão diz.
não-velamento, isto é, trazer ao desvelado o que está velado, ao desoculto o que está
oculto. A versão de alétheia como verdade se constituiu via o latim veritas, porém, já aí
a verdade significa algo bastante diverso da alétheia grega originária. “Na Idade Média
imóveis, observam o jogo de sombras projetado pela luz do fogo numa parede oposta.
Um deles é solto, podendo então se virar, ver o fogo e os objetos cujas sombras antes
eram projetadas na parede. Conduzido para fora da caverna e em plena luz do dia, fica
ofuscado por ela e nada consegue ver. Depois de algum tempo, entretanto, acostumado à
luz, passa a ver agora tanto os objetos que cintilam à luz do dia, tornando-se entes,
como também vê o próprio sol, que não só ilumina os entes, mas faz tudo crescer e
germinar. Este homem, liberto e cheio de visões, volta à caverna para também libertar
assim resumida:
(...) Os prisioneiros estão algemados pelos seus sentidos exteriores. A libertação libera
seu sentido interno, o pensar. O pensar é a capacidade contemplativa da alma. Enquanto a
cobiça e a coragem, outras duas capacidades da alma, se enredam no mundo dos sentidos, o
pensar se solta disso e permite uma contemplação das coisas como realmente são. O sol,
para cuja visão o pensar se alça, é o símbolo da verdade mais alta. Mas o que é essa
verdade? Platão diz: o bem. Mas o que é o bem? O bem é como o sol. Isso significa duas
coisas. Primeiro, ele deixa ver as coisas, possibilita a cognoscibilidade das coisas e com
isso também o nosso conhecimento. Segundo, ele faz surgir, crescer e germinar tudo o que
é. O bem possibilita o triunfo da visibilidade, da qual os que ainda moram na caverna
83
Aquino, Quaestiones de veritate. Apud Heidegger: 2002b:6
84
Heidegger: 2002b:5-6. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 257.
59
lucram, pois o fogo, oriundo do sol, pelo menos permite que vejam o jogo de sombras; o
bem faz com que exista alguma coisa e que esse algo se mantenha no ser.85
Essa interpretação diz, em primeiro lugar, que a idéia do bem é a causa de tudo,
pelo menos de tudo que é belo e direito. Em segundo lugar, a delineia como algo
conhecimento, uma vez que a idéia do bem é a causa suprema. E em terceiro lugar, a
compreensão de Platão implica que a verdade não está nas coisas, nem no ser humano,
que nela se deixa transparecer é o que pode vir a ser conhecido pelo homem. O
movimento do homem liberto da caverna em direção a luz do sol diz respeito justamente
uma atemporalidade da causa suprema. A idéia do bem não possui nem espaço, nem
Distanciando-se e distinguindo-se dos múltiplos efeitos ela pode ser a causa permanente
e imutável, um puro ser. Mas a verdade, se considerada a via latina, não quer dizer
tornou fundamental para toda a tradição ocidental, uma vez que a palavra grega para
verdade é alétheia – não-velamento – uma palavra negativa que diz algo positivo. O alfa
85
Safranski, 2000:262.
86
Platão, 2000:323 (517b-c).
60
privativo significa negação de léthe, isto é, não apenas do velamento, do que se oculta,
mas do esquecimento. Esse sentido de alétheia é ainda para Platão o sentido do que é
num salto que escamoteia justamente aquilo que o próprio Platão pela primeira vez
chegou a pensar. O texto em grego de Platão diz que a idéia do bem – tou agathou idea87
– é Kuría alétheian kai noun paraschoméne88, isto é, a idéia do bem é mestre em manter
do bem é pánton háute orthón te kai kalón aitía90, isto é, ela é causa de tudo aquilo que
é correto e belo91, condicionando o modo de ser de tudo que tem a idéia do bem por
correção, uma vez que, como fruto cuja causa é a idéia do bem, o não-velamento é
correto e belo. Por isso, já na via latina a veritas pode ser interpretada por adequação
entre o intelecto e a coisa, isto é, por exatidão. Por mais que em Platão as referências
entre correção, beleza, verdade e percepção possam ser cruzadas (percepção correta e
fundamentação na idéa como o ser do ente. O ser na idéa se torna presença e pode desse
87
tou= a)gaqou= i)de/a.
88
kuri/a a)lh/qeian kai\ nou=n parasxome/nh.
89
A tradução de Heidegger é um pouco diferente: “a Soberana que permite o não-velamento, mas
também a percepção”. In: Heidegger: 1994a:22.
90
pa/ntwn a(/uth o)rqw=n te kai\ kalw=n ai)ti/a.
91
Heidegger traduz da seguinte maneira: “a Causa (quer dizer aquilo que torna possível a essência) de
tudo aquilo que é exato como de tudo aquilo que é belo”. In: Heidegger, 1994a:22.
92
Cf. Heidegger, 1994a:22-4 a respeito do conceito de verdade em Aristóteles, Tomás de Aquino,
Decartes e Nietzsche.
61
(...) A i)de/a não é um primeiro plano da a)lh/qeia, onde as coisas viriam tomar figura,
mas o fundo onde se funda sua possibilidade. Mesmo assim, entretanto, a i)de/a reivindica
ainda alguma coisa do ser original, mais desconhecido, da a)lh/qeia.
A verdade não é mais, como não-velamento, o traço fundamental do próprio ser; mas,
torna-se exatidão em razão de sua escravização à Idéia, ela é doravante o traço distintivo do
conhecimento do ente.
Desde então existe um esforço para a “verdade” no sentido da exatidão do olhar e de
sua direção. Desde então, em todas as posições fundamentais adotadas a respeito do ente, a
obtenção de um olhar correto para a Idéia torna-se decisiva.93
diante, toda a tradição se concentra tão somente no ente, no que permanece no des-
velado. Há nesse novo enfoque algo paradoxal na medida em que empenhando-se por
fazer o ser vigir total e permanentemente no des-velado, a tradição ocidental acaba por
sua total ocultação, na medida em que pode a ocultação viger no esquecimento de léthe.
velado como o correto ou o belo, trata-se apenas de uma ambivalência conceitual. Ela
diz somente que a alétheia possui mesmo para Platão dois sentidos, mas que no entanto,
não são opostos, nem contraditórios e muito menos podem ser ambíguos na medida em
que têm como pano de fundo a idéa. Isso quer dizer que ambas as possibilidades têm em
causa uma única noção pela qual o ser, tratado como presença no desvelado, está em
desvelado deve produzir o grau máximo de exatidão para com a idéa. A verdade é tão
bela quanto for precisa e é tão precisa quanto mais corresponder a idéa. É o que conta a
alegoria da caverna. A percepção dos seus moradores não é verdadeira, pois apreendem
93
Heidegger, 1994a:24-5.
62
somente cópias imperfeitas das coisas lançadas na parede pela luz imperfeita do fogo no
seu interior. A percepção não pode ser então verdadeira porque nada disso que vige na
caverna é verdadeiro, nem as sombras, nem a chama do fogo, uma mera cópia
imperfeita da verdadeira fonte de luz. Mas voltando-se para essa verdadeira fonte de
luz, aquela que não somente ilumina, mas faz crescer e germinar, a percepção pode se
tornar precisa e ver aquilo que na idéa permanece desvelado como verdade. A verdade é
parâmetro de medida do conhecimento se dá não como verdade, mas como certeza. “Por
ethos da ciência moderna passou a ser o fato de que ela só admite como condição
satisfatória de verdade aquilo que satisfaz o ideal de certeza”.94 Nesse sentido, verdade
também é o método na medida em que este permite refazer sempre e do mesmo modo o
ciência moderna que permite refazer com exatidão o caminho já percorrido, implica que
há uma necessidade de decidir de antemão uma certa noção de verdade a fim de que se
opere uma restrição ao que figura no método como verdade. Figurar como verdade quer
caminho pode ser sempre refeito de modo exato. Isso constitui a noção de conhecimento
no ocidente como o que pode ser verificado: conhecimento é, portanto, certeza e esta é
verdade.
94
Gadamer, 2002:62.
63
De certo modo, mesmo não sendo a ciência grega a mesma coisa que a ciência
conhecimento e conhecido. “Para Platão existe uma verdade absoluta das idéias”96 e por
humano. Explica-se porque ele deve então se esforçar para chegar até ela. “Platão iguala
o des-velado ao o que é (entes), de tal modo que o desvelamento como tal nunca vem à
tona. Isso é provado pelo fato de que ele não inquire o velamento que deveria se
contrapor ao desvelamento”.97 Mas aqui, onde o que vige no desvelado e ser são o
mesmo, o que aparece somente é o ente e isso porque a verdade em Platão vê o seres
mas sempre trata somente do que está envolvido no des-velamento dos seres como tal.
tema”.98
Mas a rigor, a verdade não pode realmente ser tomada em toda sua envergadura
poética que com Platão se ensejou rejeitar. A rejeição dessa tradição se dá como
isso, onde a verdade não vige como certeza é vedada a possibilidade da ciência e da
técnica, ao menos como instâncias de totalização do real. Mesmo que muito depois de
95
Cf. Gadamer. 2002:61.
96
Safranski, 2000:264.
97
Heidegger, 2002b:89.
98
Idem, ibidem, p. 90.
64
verdade ter se transformado num valor de referência pelo qual se ordena o real.
é alterado. A relatividade da verdade pode ser algo respectivo a cada teoria ou a cada
concepção. Ela só não pode, no entanto, ser relativa a si mesma. Isto seria tomado como
o ocidente após Platão não tem mais como admitir e não pôde ainda dar o passo além.
ele tem do real. Desse modo, mesmo sendo relativa a cada sujeito individual, a verdade
Ocidental99, estes se articulam desde a noção de verdade como certeza, certeza de que o
real pode ser totalmente mensurado e por isso, totalmente organizado; certeza de que
tudo pode ser identificado e posto à parte de toda diferença e que, portanto, tudo pode
sujeito, seja ele individual ou coletivo. A verdade como certeza é o mecanismo que faz
sentido antropológico-cultural.
99
Evidentemente, esses não são princípios exclusivos da Cultura Ocidental. No entanto, como mostra
Antonio Jardim, somente na Cultura Ocidental esses princípios são ontogênicos, são princípios
originantes. Cf. Castro, 1997:31-2.
65
ambas, a mensuração calculadora eleva idéia do bem a uma dimensão superior que diz
em sua pureza de linguagem, uma linguagem a que nada de concreto mais corrsponde.
Se a idéia da mesa é aquela forma que permanece diante de todas as cópias concretas, a
aritmética a articula numa pura e completa abstração. A forma da mesa é constituída por
o “mal-estar” causado pelas impressões sensíveis da poesia. Permite-se com isso que a
contradições do real. Por isso, com a medida que calcula é impossível manter opiniões
contraditórias.
E o imitador? Adquirirá pela simples prática o conhecimento do que ele pinta, se é belo
e está certo, ou formará opinião justa pela conveniência forçosa com o entendido na
matéria, que lhe daria instruções de como deva proceder?
Nem uma coisa, nem outra.
Nesse caso, o imitador não disporá nem do conhecimento, nem da opinião certa com
respeito à beleza ou à utilidade daquilo que ele imita?
Parece que não.
Quão extraordinária, nesse caso, deve ser a sabedoria do imitador sobre os temas de
sua composição!
Não é das maiores, realmente.
[602b] De qualquer forma continuará a imitar, muito embora não saiba a razão de ser
útil ou imprestável alguma coisa. Ao que tudo indica, o que parece belo às multidões que
nada entendem de coisa nenhuma, isso é o que ele imita.
Nem poderá ser de outra maneira.
Então, como parece, ficamos mais ou menos de acordo que não é digno de referência o
que o imitador conhece daquilo que ele imita, e que a imitação não é coisa séria, mas
100
Cf. Havelock, 1996b:225.
66
simples brincadeira, e também que as pessoas que se ocupam com a poesia trágica em
versos épicos ou iâmbicos, são imitadores por excelência.
Perfeitamente.
[602c] V – Por Zeus! lhe disse; essa imitação não se encontra três vezes afastada da
verdade? Ou não?
Isso mesmo.
E mais: em que parte do homem ela exerce a influência de que realmente dispõe?
A que te referes?
É o seguinte: como sabemos, a mesma grandeza não nos parece igual, conforme seja
vista de longe ou de perto, não é isso mesmo?
Certo.
Como, também, o mesmo objeto se nos afigura quebrado ou reto, quando visto dentro
ou fora da água, [602d] côncavo ou convexo, por efeito da ilusão visual produzida pelas
cores, provocando tudo isso na alma grande confusão. É graças a esse defeito de
constituição de nossa natureza que se impõe a arte do desenho sombreado, a do charlatão e
quejandas invenções que se baseiam no prestígio da magia.
Sem dúvida.
E as artes da medida, do número e do peso, não se afirmam como poderosos recursos
contra essa ilusão, a fim de não predominar em nós a aparência da grandeza ou da
pequenez, da quantidade ou do peso, mas a própria faculdade de calcular e medir?
Como não?
[602e] Tudo isso é trabalho da porção raciocinante da alma.
Sem dúvida.
No entanto, para essa mesma faculdade, a despeito de suas medidas e das provas de
que certas coisas são maiores ou menores do que outras, diferentes ou iguais, essas mesmas
coisas podem, por vezes e ao mesmo tempo, parecer contrárias.
Certo.
Porém, já não dissemos que a mesma pessoa não poderia formular opiniões contrárias
a respeito das mesmas coisas?
E com todo o direito o afirmamos.
[603a] Sendo assim, a parte da alma que julga à revelia da medida não pode ser a
mesma que o faz de acordo com ela.
Não, de fato.
Mas a faculdade que entende na medida e no cálculo é a mais importante parte da
alma.
Como não?
Como a que se lhe opõe terá de ser o que de mais inferior existe em nós.
Forçosamente.
Por querer chegar a essa conclusão foi que eu disse que a Pintura e, de modo geral, as
artes imitativas, no desempenho de suas atividades se encontram muito longe da verdade e,
por outro lado, [603b] são companheiras, amigas e associadas da porção do nosso íntimo
mais afastada da razão e em que nada se encontra de são e verdadeiro.101
e ao cálculo. É pelo cálculo da medida que se pode distinguir o que parece distorcido e
ou contraditório. De certo modo, essa mesma função da razão já pode ser encontrada no
lema dos Argonautas: navergar é preciso, viver não é preciso102, em que a precisão
101
Platão, 2000:443-5 (602a-603b).
102
Plo/ien a)na/gkh zaVhn ou)k a)na/nkh – Plóien anánke zaen anánke.
67
sua compreensão como “lei, regra estabelecida (thémis) que o que é não seja desprovido
Ora, o navegar, pode-se deduzir da explicação acima dada para a)na/gkh é alguma coisa
que tem acabamento, que é, nesse sentido perfeito, chega a um termo, ou se projeta na
direção de um fim, na direção de uma realização, é inevitável que culmine numa realização.
O sucesso dessa realização, dessa perfeição, por sua vez, só é possível com a instauração de
um fator que assegure a sua consecução, a sua realização. Se, por um lado, esse fator pode
ser entendido, a partir da realização da citação acima, como a manutenção do mesmo, se
impõe que pensemos o que vem a ser esse mesmo. O mesmo não é a mera realização e sim
a condição de possibilidade para que essa realização se realize. Nada assegura a sua
realização, mas o que pode ser assegurado é que o caminho percorrido seja percorrido com
algumas precauções. Uma delas é que, sem dúvida, esse caminho, ou melhor, essa lei, seja
miticamente divina. No entanto, se a a)na/gkh, na sua relação com qemij, é o
estabelecimento de uma lei divina que assegura que "o que é não seja desprovido de
acabamento", para que tal acabamento se dê fica implícita que outras regras se imponham,
que se estabeleça uma ordem, que se estabeleça, enfim, alguma medida para a)na/gkh, ou
melhor que a)na/gkh seja o estabelecimento da medida para que o plo/ien se realize enquanto
tal.106
Com Platão, não apenas coisas como o navegar necessitam da medida, mas toda
téchne pressupõe a medida como uma téchne da razão. Por isso, téchne também é o
fabricar leitos e mesas. A medida penetra todo o âmbito da téchne. Ora, a crítica de
Platão ao pintor e aos poetas é justamente quanto ao que considera estarem afastados da
das coisas por eles “retratados” ou narrados. O poeta, afinal, não conhece
103
a)na/gkh.
104
Marques, 1990:76.
105
Idem, ibidem.
106
Castro, 1997:35-6.
68
“absolutamente nada das respectivas profissões” – Peri oudenos toutôn epaïôn tôn
technón107 – isto é, o poeta não possui qualquer perícia no que é próprio da téchne. Para
É, pois, pela medida e pelo cálculo que se pode ascender à parte mais elevada da
alma sob a forma da razão e é por ela que a razão, calculando e organizando o real,
do que não tem vigência real. Ora, a identidade assim posta é já uma coisa muito
Parmênides – “... pois o mesmo é pensar e ser” – ...to gar auto noêin estín te kai
einai.108
Neste caso, coisas diferentes, pensar e ser, são pensados como o mesmo. O que isto
quer dizer? Algo absolutamente diverso em comparação com aquilo que ordinariamente
conhecemos como a doutrina da metafísica, que a identidade faz parte do ser. Parmênides
diz: “O ser faz parte da identidade”. (...) É preciso que reconheçamos: muito antes da
identidade se formular como princípio, fala ela mesma, e precisamente, através de um dito
que dispõe: Pensar e ser têm seu lugar no mesmo e a partir desse mesmo formam uma
unidade.
(...) ser pertence – com o pensar – ao mesmo. O ser é determinado a partir de uma
identidade, como um traço desta identidade. Pelo contrário, a identidade, mais tarde
pensada na metafísica, é representada como um traço do ser. Portanto, não podemos querer
determinar a partir da identidade representada metafisicamente aquela que Parmênides
nomeia.109
isso, a identidade de ser e pensar pode ser entendida a partir de uma unidade, uma
107
Peri\ o)udeno\j tou/twn e)pai/+wn tw=n texnw=n. Platão, República, 598c. Na versão inglesa de Paul Shorey
disponível no site do Projeto Perseus: “though he himself has no expertness in any of these arts”.
108
To ga/r a)uto noei=n e)sti/n te kai\ ei)=nai. Os pensadores originários, p. 44-5.
109
Heidegger, 1991:140-1.
69
verdade aqui aparece então como o tal nexo, aquilo que na Cultura Ocidental opera a
identidade como unidade. Assim, uma tal unidade é posta não pelo pertencimento em
comum que cada coisa tem com outra, mas através da operação do intelecto, da porção
não de um mútuo pertencimento. Ocorre que, com o desprezo pelo mútuo pertencimento
no plano abstrato da idéia. Por isso, tal unidade só pode mesmo ser representada. Ora, a
da alma. É por ela que o homem pode ser, sem existir. Não é esta a condição posta pelo
cogito cartesiano, em que o pensar se constitui como condição do existir? Com o cogito
Decartes sela de uma vez por todas o destino histórico do Ocidente encaminhado desde
pode então subsistir independentemente dele. O mundo passa a ser constituído pelos
Intelecção do mundo quer dizer: o que um sujeito que é, é capaz de representar dele: a
idéia. Nesse sentido o pensar desprovido de existência cartesiano vinga suas raízes na
dessa cisão toda identidade como unidade medida é antes de tudo uma re-presentação da
70
idéia. E da mesma forma que o ser é privado de sua relação com a existência, a verdade
deixa de ser um acontecimento da apropriação mútua de ser e ente para viger como
A idéia desarticula ser e existência, pois somente assim pode se constituir numa
Não é uma mera coincidência, então, que a visão essencializada na vidência do intelecto
110
Parástasis.
111
Castro, 1997:64-7.
71
seja o modo preponderante de cognição do real e que a escrita venha a ser o instrumento
a idéa do mesmo e inadequado plano em que Platão concebe a tradição poética para
elevá-la à condição de epistéme. O ato final consiste, pois, na oposição de uma téchne
uma téchne epistemoniké, ou seja, uma oposição que indica a transição de uma arte
controlar, organizar e representar o real. Aristóteles consolida esse ato final do seguinte
modo:
[981a][1]A experiência parece muito similar a ciência e arte, mas na verdade é através
da experiência que os homens adquirem ciência e arte; (...). Arte é produzida quando
através de muitas noções de experiência um único julgamento universal é formado com
respeito a tais objetos. Possuir um julgamento (…) é um problema de experiência; mas
julgar (...) é uma questão da arte.112
com ciência contrapondo-as à experiência. Se, no entanto, se deixar falar a língua grega,
constata-se que o que foi traduzido por arte diz-se em grego téchne, e ciência, por sua
vez, epistéme. Pensando agora com a língua grega, o texto de Aristóteles adquire outro
112
Aristóteles, Metafísica, 981a. Tradução a partir da versão inglesa de Hugh Tredennick, com apoio do
original em grego, disponível no site do Projeto Perseus. Vide originais no Apêndice I, p. 258.
72
do que aquilo que na razão se determina como a forma, idéia ou essência que pode
pertencer ou ser atribuída a mais coisas, um conceito que dá às próprias coisas a sua
como tal que o que através dele se forma deve ser válido para todos. O juízo universal
adquire um status lógico e ontológico. Por isso, possuir um julgamento pode ser algo
que se depreende das várias experiências, porém, julgar é algo que em si mesmo
Poderia parecer, por finalidades práticas, que a experiência não é de modo algum
inferior à te/xnh113; de fato, nós vemos homens de experiência terem mais sucesso do que
aqueles que possuem teoria sem a experiência. A razão para isso é que a experiência é o
conhecimento do que é particular, mas a te/xnh é dos universais; e ações e efeitos
produzidos são todos relativos ao particular. Pois não é o homem que o médico cura, exceto
incidentalmente, mas Callias ou Sócrates ou alguma outra pessoa nomeada similarmente,
que é incidentalmente um homem da mesma forma. [20]Assim, se um homem possui a
teoria sem a experiência, e conhece o universal, mas não conhece o particular nele contido,
ele freqüentemente fracassará em seu tratamento; pois é o particular que deve ser tratado.
Entretanto, nós consideramos que o conhecimento e a proficiência pretence à te/xnh
especialmente e não à experiência, e nós aceitamos que os texni/taj114 são mais sábios que
os homens de experiência (o que implica que em todos os casos a sabedoria depende
especialmente do conhecimento); e isso é porque este primeiro conhece a causa, enquanto
que este último não. Pois, o experiente conhece o fato, mas não a causa. Pela mesma razão
nós consideramos que os a)rxite/ktonaj115 em toda profissão são mais estimáveis e
conhecem mais e são mais sábios que os xeirotexnw=n 116 [981b][1] porque eles sabem as
razões das coisas que são feitas.117
A palavra téchne no grego pode significar tanto arte quanto técnica. Também
não há uma distinção terminológica para arte e artesanato, por isso qualquer artefato
também é produzido mediante uma téchne. Nesse sentido, para Aristóteles os mestres da
arché (a)rxi-te/ktonaj), estes também uma espécie de technítas, são superiores aos
technítas das mãos (cheírios – xeiro-texnw=n), não porque saibam fazer (poíein) as
113
Téchne.
114
Technítas – artistas, artesãos ou técnicos.
115
Architektonas.
116
Cheirotchnôn.
117
Aristóteles, Metafísica 981a-b. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p.
258.
73
coisas, mas porque eles possuem uma epistéme e conhecem as aitíai. Como não poderia
deixar de ser no caso de Aristóteles, a distinção de uma e outra téchne se dá por meio de
uma classificação, a saber, uma téchne poietiké e uma téchne epistemoniké. Aristóteles
declara, na mais perfeita sintonia com Platão, o estatuto de superioridade da téchne que
tem a epistéme e não a poíesis por horizonte de articulação. Já nesse sentido, no caso de
Platão, a atividade que exerce tanto o pintor quanto o carpinteiro é a uma téchne, mas
conhecimento da causa, claramente indicados no texto como os áneu tes emperías lógon
echónton,118 isto é, os technítai. Estes são os mesmos aos quais Platão atribui o
saber, o eidos. No texto, Aristóteles fala daqueles que possuem perícia (sophóteroi)
porque conhecem as causas (aitíai). Portanto, a téchne não pode ser a arte no sentido da
poíesis,119 pois Platão mesmo já a definira como mímesis, conceito ratificado na Poética
de Aristóteles e por isso a arte é na verdade uma poiétikes téchnes, como o próprio título
da obra de Aristóteles diz. Por ser mimética, a arte está duas vezes afastada da idéa e
conceito. A téchne é o conhecimento exato que o artesão pode empregar no seu ofício.
âmbito da idéa, de tal modo que a téchne em toda a Cultura Ocidental se torna
118
a)/neu th=j e)mpeiri/aj lo/gon e)xo/ntwn.
119
poi/hsij.
74
conhecimento, uma epistéme do eidos. Desse modo a técnica media o eidos e todo ente
que é em geral, quer seja material ou imaterial, quer seja físico ou espiritual.
Em contraste ao e)/mpeiroj, o texni/thj é aquele a)/neu th=j e)mpeiri/aj e)/xei to\n lo/gon120
(cf. Met. I, 1, 981a21), “que, sem ser acostumado com qualquer procedimento em
particular, conhece o ei)=doj”. Ele é aquele que kaqo/lou gnwri/zei121 (cf. a2f.) o ser em
questão, “conhece o ser em sua generalidade”, mas que através do to\ e)n tou/t%
122
kaq’e(/kaston a)gnoei= (cf. a22), “não é familiarizado com o que em cada caso o ser é por
si mesmo”, o ser que é esse o(/lon é um e(/n entre outros. Para te/xnh, assim, o que é decisivo é
prestar atenção, olhar, i.e., revelar. Portanto, Aristóteles pode dizer: <a)rxite/ktonej> ta\j
123
aiti/aj tw=n poioume/non i)/sasin (981b1f.), “O arquiteto conhece as causas do que é para
ser construído”. O seguinte é assim manifesto ao mesmo tempo: a aiti/a, ou o kaqo/lou, são
inicialmente não o tema de uma mera observação. Eles na verdade se sobressaem como
ei)=doj, mas não de um tal modo a serem tema de uma investigação especial. O
conhecimento da aiti/a está inicialmente presente apenas em conexão com o próprio
fabricar; i.e., os aiti/a estão inicialmente presentes apenas como o porque-portanto de tal e
tal procedimento. Ei)=doj está primeiramente presente somente na te/xnh ela mesma. Mas,
porque na te/xnh, ei)=doj é precisamente tornado proeminente, portanto ma=llon ei)de/nai124
(a31f.), “saber mais,” é atribuído aos texni=tai, e eles são pensados como sendo sofw/teroi
do que os meros e)/mpeiroi.125
a conexão entre eidos e téchne. A téchne será a mediação entre a causa, isto é, entre a
idéa e o que no real se manifesta como sua mímesis, isto é, sua imitação e sua
Aristóteles a téchne mantém uma relação com a verdade como certeza. A téchne como
a correspondência com o eidos operada pela verdade. Desse modo, a verdade é o fio
120
Aneu tês empeirías echêi tis tón lógon.
121
Katholou gnôrizêi.
122
To d' en toutôi kath' hekaston agnoêi.
123
Architektones tas aitias tôn poioumenôn isasin.
124
Mallon eidenai.
125
Heidegger, 1997:62-3. Heidegger interpreta nessa passagem o texto de Aristóteles – Metafísica I, 1.
Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 258.
75
transformação, a téchne pode ser agora descolada da poi/hsij e passar a ter uma
Por isso, em toda parte pode se falar de uma arte cientificamente amparada ou dos
modo as outras causas, isto é, é por ela que ocorre a articulação das quatro causas. A
determina a causa como o que é eficiente. Eficiente é o que se caracteriza pelo poder de
produzir um efeito real. A causa é eficiente na medida em que produz o real. A causa
eficiente é pensada como o ourives, isto é, o technítes, aquele cujo saber e perícia
doutrina de Aristóteles não conhece uma causa chamada eficiente e nem usa uma
126
Heidegger, 2001:13.
127
Idem, ibidem.
76
palavra grega que lhe corresponda”.128 Pois, causa é em grego aiti/on e não quer dizer o
mesmo que a versão latina causa – de cadere, cair, “aquilo que faz com que algo caia
desta ou daquela maneira num resultado”129 – e sim, responsável130 ou aquilo pelo que
A prata é aquilo de que é feito um cálice de prata. Enquanto uma matéria (u(/lh)
detreminada, a prata responde pelo cálice. Este deve à prata aquilo de que consta e é feito.
O utensílio sacrificial não se deve, porém, apenas à prata. No cálice, o que se deve à prata
aparece na figura de cálice e não de um broche ou anel. O utensílio do sacrifício deve
também o que é ao perfil (ei)=doj) de cálice. Tanto a prata, em que entra o perfil do cálice,
como o perfil, em que a prata aparece, respondem, cada uma, a seu modo, pelo utensílio do
sacrifício.
Responsável por ele é, no entanto, sobretudo um terceiro modo. Trata-se daquilo que o
define, de maneira prévia e antecipada, pondo o cálice na esfera do sagrado e da libação.
Com ele, o cálice circunscreve-se, como utensílio sacrificial. A circunscrição finaliza o
utensílio. Com este fim, porém, não termina ou deixa de ser, mas começa a ser o que será
depois de pronto. (...)
Por fim, um quarto modo responde ainda pela integração do utensílio pronto: o
ourives. Mas, de forma alguma, como uma causa efficiens, fazendo com que, pelo trabalho,
o cálice seja efeito de uma atividade.131
reunir tudo isso numa só coisa, isto é, num lógos, para Aristóteles, algo ainda muito
diferente de uma eficácia da ação, mas sim uma reunião que faz aparecer
algo à presença e fazê-lo permanecer no des-velado. E é somente por isso que ele não é
apenas um áneu tes emperías – aquele que é sem experiência – mas também e
128
Idem, p.15.
129
Idem, p.14.
130
Liddell & Scott, s/d, verbete aiti/on.
131
Heidegger, 2001:14.
132
Cf. Liddell & Scott, s/d, verbete te/loj.
133
Cf. Aristóteles, Metafísica 981a.
77
verá adiante, o lógos aí já não é pensado como uma reunião originária, mas como uma
reunião de coisas que se dão por meio da razão. Por isso mesmo, o lógos traduzido por
que também é tomado por “razão”. Como apofântico, o lógos enseja um juízo racional.
ser somente verdadeiro e medir-se exclusivamente no fato de revelar um ente tal qual
ele é”.134 Esse traço acentua a tradução de télos como finalidade ou propósito, de tal
maneira que a atividade do technítes deixa de ser o modo de reunião das diversas
formas de responder e dever, para se constituir, do mesmo modo que matéria e forma,
de acordo com uma razão calculante. O acordo é o que torna o juízo verdadeiro como
de télos como “fim”, a finalidade passa a dominar o modo de integração das quatro
causas e assim, a técnica se converte, tal como o technítes, num meio para um fim.
Nesse sentido, a deposição da causa efficiens como aquela que reúne num conjunto com
ela mesma todas as outras, implica que toda a causalidade técnica possa se dar a partir
de uma causa finalis. Uma substituição assim abre espaço para que a técnica finalmente
possa ser uma vigência independente do próprio homem. Por isso, o empenho cada vez
mais crescente em dominar a própria técnica. “Esse querer dominar torna-se tanto mais
situação extremada que se acerca do homem no sentido de que não apenas os utensílios,
134
Gadamer, 2002:60.
135
Heidegger, 2001:12.
78
transforma numa dis-ponibilidade. Nesse caso, fica mais patente que a técnica não
apenas não está mais sob o controle do homem, mas que se torna uma ameaça na
medida em que este também está dis-ponível como os demais utensílios. Assim, uma tal
fim, mas, com isso, o uso técnico de tudo e de todos que confere uma uniformidade ao
real, isto é, torna o real dis-ponível, sempre à mão. Em toda dis-ponibilidade vige a
exploração do que se apresenta como tal e, desse modo, ocorre sua consumação. Pois,
dis-por quer dizer retirar algo de sua abertura de mundo e fazê-lo viger numa posição
em que possa ocorrer sua consumação numa finalidade. Por isso, o tornar-se dis-ponível
conforme uma idéia prévia de um “para quê”, de uma causa finalis absoluta e autônoma
que norteia toda medida, toda identidade e toda representação do que é dis-posto, de tal
modo que se não há ou se não se encontra um “para quê” do que é dis-posto, também
não se pode chegar a vislumbrar um “por quê”. Quando uma tal imbricação de razão e
uma pretensão em fazer algo viger como presença apenas. Por isso, quando se diz que
79
“tudo possui uma causa” ou “nada é sem fundamento”, remete-se à causa o status de
origem, uma origem que em si mesma possui apenas e sempre uma única finalidade, a
de uma coisa tal qual ela é. Desse modo, o ser na causalidade é tomado como presença e
por isso, não somente diz do ser o que é, mas “como é”. O “como é” explicita o ser
lançado na luz do des-velado para aí conservá-lo. Desse modo, dizer que algo é “como
não leva propriamente tão em conta a causa como modo de conhecer a coisa, mas sim
como modo de prever e controlar a coisa. Nesse sentido, causalidade técnica quer então
mas mantém uma relação fundamental com léthe136. Esta relação pode ser pensada
primeiro caso, está claro que a-létheia aponta para léthe, ocultação ou encobrimento,
na segunda diretriz, a-létheia diz ao mesmo tempo uma negação de léthe, isto é, o des-
136
Léthe.
80
Em ambas as diretrizes em que se pensa inicialmente esta palavra está claro também que
tradução, a verdade não possui nada de negativo, pelo contrário, ela é uma palavra que
ser como presença. Por isso, posteriormente, e conforme Platão pensara, eliminando
também a ausência de qualquer conflito. A verdade, nesse sentido, está para além de
qualquer conflito de tal modo que ela mesma deve se dar de modo não conflitante. No
entanto, a a-létheia não apenas em suas duas diretrizes iniciais se apresentou como um
conflito a partir das possibilidades de enfoque vigentes na própria palavra, mas como
permanente conflito.
subjacente à verdade passa à condição de mera oposição. Mera oposição quer aqui dizer
uma oposição cuja essência se funda na exclusão. A verdade como veritas, em virtude
de sua natureza como certeza e precisão não pode admitir uma oposição que se dê
internamente, mas polariza com o falso ou a falsidade uma oposição excludente. Por
137
Heidegger, 1992b:16.
81
certeza do ser como presença passa a reger toda enunciação do real através do princípio
do terceiro excluído: ser ou não-ser, não havendo terceira possibilidade. A veritas opõe-
excludentes. Muito embora esta seja uma determinação da verdade configurada sob
medida na conjuntura imperial romana, o fato é que uma tal configuração da verdade já
dessa relação e do domínio total da racionalidade sobre o real, não apenas a verdade se
encontra alienada de sua íntima relação com o encobrimento, mas também o falso
encontra sua determinação somente pela oposição excludente à verdade. Desse modo, a
palavra grega psêudos deixa de possuir uma intimidade com alétheia para através da
transformação que pensa pela primeira vez a verdade como orthótes e homoiósis. Desse
modo, psêudos, pensado não mais de modo grego como “dissimulação”, passa a viger
como falsum. Psêudos – dissimulação – não sendo correção, nem semelhança, opõe-se à
verdade como veritas. Na romanização da Grécia, psêudos é falsum, aquilo que cai e
palavra não pode ser suficientemente compreendida tomando-se apenas o que mesmo a
filosofia grega diz, uma vez que nela já se encontra a pressuposição da alétheia como
psêudos, mas também a própria compreensão configurada pela filosofia grega a partir
do rompimento com a tradição mitopoética. Por isso, é preciso perguntar por aqueles
cujo testemunho da relação grega com a verdade também testifica a respeito de sua
intimidade com psêudos. Um desses testemunhos diz: enth' allous men pántas elánthane
dákrua leíbon138 – “Mas então ele (Ulisses) derramou lágrimas, sem que os outros o
apresenta como encoberto, mas sim como um modo do ser. Pois, o radical láth-140 que
aparece nas palavras elánthane e láthe é pertinente ao verbo lantháno141, que diz “eu
138
e)/nq )a)/llouj me\n pa/ntaj e)la/nqane da/krua lei/bwn. Homero, Odisséia, VIII, 93.
139
la/qe bio/saj. Lema estóico. Apud. Heidegger, 1992b:23-4.
140
la/q-
141
lanqa/nw.
142
laqw=n ou laqo/n.
143
Heidegger, 1992b:27-8. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 259.
83
Ora, o que se nomeia com o encobrimento não é, então, uma representação que
adéqua com precisão um determinado objeto ao que um sujeito da razão calcula como
correto. Nada está mais distante da experiência originária grega da verdade do que sua
há tal coisa como um des-velado per se; este pressupõe radicalmente o velamento como
sua contra-parte essencial. Por isso, a palavra grega psêudos, muito embora não
ou filosófico basta para caracterizar a intimidade com que o grego antigo pensa a
relação de alétheia e psêudos. Dessa forma, será necessário que se deixe mais uma vez o
testemunho chega hoje com a palavra “pseudônimo”. Esta palavra é composta por
entanto, quem usa um pseudônimo não tem sua identidade falsificada, mas sim
destinado a encobrir uma ação ou conjunto de ações que não são destinadas de modo
adotado por um autor ou naquele designado a uma determinada operação. Por isso, a
tradução de psêudos como falso ilude o que com esta palavra está realmente em jogo.
Ora, na medida em que psêudos permite cobrir alguma coisa tal qual um pseudônimo de
especificamente recôndito, desvelando de certo modo algo que pertence a esse âmbito
que encobre, revela algo e, desse modo, o que se entende “normalmente” por “nome
84
falso” não é algo assim tido como “incorreto”. Assim, psêudos não somente é um modo
Caieiro” não se apresenta justamente como o nome que ao encobrir “Fernando Pessoa”
como dissimulação? O uso do pseudônimo não torna patente o autor muito mais de si
mesmo do que o uso de seu nome “correto?” Desse modo, o pseudônimo não torna
simplesmente o autor um desconhecido, mas antes, chama atenção para sua essência
coberta. O cobrir envolvido em psêudos mantém, então, uma profunda intimidade com
alétheia na medida em que nele também acontece não apenas um modo de encobrir,
mas também de deixar aparecer, sem que isso represente nada de “correto” ou
Nesse sentido, pode-se agora, como que com ouvidos renovados, escutar o testemunho
de Homero e de Hesíodo a esse respeito. Na Ilíada, II 348ss, Nestor diz que para os
gregos não há esperança em retornar do campo de batalha de Tróia antes que eles
psêudos hypóschesis ei te kai oukí144. Nestor aqui faz referência à promessa de Zeus de
144
pri\n kai\ Dio\j ai)gio/xoio gnw/menai ei)/ te yeu=doj u(po/sxesij ei)/ te kai\ ou)ki. Tradução baseada na
edição inglesa de Samuel Butler: “was out ere they have learned whether Zeus be true or a liar”.
Disponível no site do Projeto Perseus.
85
O verso 349 diz gnómenai psêudos hypóschesis ei te kai ouki, isto é, conclui que
será preciso ir à luta para “saber se a promessa de Zeus é ou não é falsa”. No entanto, é
preciso pensar não somente a relação entre psêudos e hypóschesis, mas também a
conexão entre o que se diz nesse trecho e os versos subseqüentes (350-3). Por isso, ao
menos por enquanto, deve-se preservar psêudos de uma tradução por “falso”, uma
tradução tão apressada quanto moderna. Ao fazê-lo, pergunta-se, então, o que determina
que a promessa de Zeus possa ser psêudos ou não? Como promessa, hypóschesis é um
schésis vem de schêin, aoristo de écho, indicando não apenas o sentido de “posse”, mas
também o sentido de manter e guardar. Tanto um como outro são enfatizados pelo
prefixo hypó- sob, debaixo de, embaixo – reforçando a idéia de subordinação. Como
promessa, hypóschesis pode ser então compreendida como um dar ou fazer que ao
145
Homero, 2002:87 (Livro II, vv. 350-4).
146
e)pide/ci' e)nai/sima sh/mata fai/nwn.
86
reserva encontra sua essência no sinal – séma147. Pois, o sinal é aquilo que, mostrando-
se a si mesmo, deixa algo outro aparecer. Como sinal, os relâmpagos atirados por Zeus à
direita são um presságio, isto é, mesmo que sejam auspiciosos, eles continuam a
reservar e velar o que ainda está por vir na batalha contra Tróia. A promessa como o que
se apresenta enquanto presságio, enquanto sinal é psêudos. Isto quer dizer: na medida
em que deixa algo aparecer no sinal, Zeus mantém algo des-encoberto. Porém, ao
mesmo tempo o próprio sinal reserva e guarda, uma vez que nunca mostra a si mesmo
do mesmo modo que deixa o outro aparecer. O sinal encobre. Por isso, como já se pôde
pessoa. Homero fala de psêudos não com respeito à vontade e à razão calculante de um
sujeito, mas a respeito de um evento que ocorre em meio aos entes. Um exemplo poderá
esclarecer melhor:
(...) Nós dizemos que uma casa na vizinhança está obstruindo a vista das montanhas.
Dissimular como ob-struir é em primeiro lugar um encobrimento ao modo de uma
cobertura. Nós cobrimos, e.g., uma porta que não deve ser vista na sala e a disfarçamos
colocando um armário na sua frente. Dessa mesma maneira um sinal que aparece, um gesto,
um nome, uma palavra, também podem disfarçar alguma coisa. O armário colocado antes
da porta não apenas se apresenta como esta coisa e não apenas disfarça a porta ao cobrir por
cima – i.e., encobrindo – a parede na qual esse lugar possui uma abertura, mas, mais
propriamente, o armário pode ser disfarce ao ponto que ele finge que não há porta alguma
na parede. O armário disfarça a porta e, por ser colocado antes dela, distorce o “real” estado
da parede.148
auspicioso, mas que também esconde o verdadeiro disastre retido e mantido em segredo
aos gregos, embora já a eles designado. Quer dizer, não apenas psêudos como um modo
147
sh/ma.
148
Heidegger, 1992b:32. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 259.
87
Levando-se em conta psêudos não como “falso”, e tão pouco apenas como
traduzida por “sem mentira e engano”, “verdadeiro”, “sincero” ou “leal”, pode ganhar
uma conotação bastante diferente em virtude de sua relação com pseudés, isto é, com o
pseudés, pode-se então pensar os versos de Hesíodo ainda numa outra perspectiva:
Neréa d’apseudéa kai alethéa151 – “Nereu, aquele que não dissimula nem esconde
nada”, isto é, aquele que não dissimula porque não encobre152. Hesíodo dá seu
ídmen pseudea polla légein etýmoisin homóia, ídmen d’, eût’ethélomen, alethéa
149
Hesíodo, 1995:119.
150
a)-yeudh/j.
151
Nhre/a d' a)yeude/a kai\ a)lhqe/a.
152
A palavra kai/ nesse verso não promove simplesmente a adição ou a repetição de termos, mas, como
conjunção, realiza uma união, uma relação de implicação entre encobrir e dissimular. Cf. discussão em
Heidegger, 1992b:33.
88
gerúsasthai – “sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos, e sabemos, se queremos,
Dizer mentiras símeis aos fatos é furtá-los à luz da Presença, encobri-los. As mentiras
são símeis aos fatos enquanto só os tornam manifestos como manifestação do que os
encobre. As mentiras são símeis (=homoia) quando se dissimula a unidade que, por estar na
raiz da similitude, une simultaneamente em um só lugar o símil e o ser-mesmo. Símil (lat.
similis) e o grego homoia tem a mesma raiz etimológica, que indica como idéia
fundamental a unidade. Por meio também desta raiz podemos aprender e pensar a
similitude que une as mentiras e os fatos, unidade-similitude em que a mentira e o ser-
mesmo se dão como símeis. Ao dar-se como símil, o ser-mesmo se dissimula pela
simulação desta similitude que, na força do assemelhar e do simular, apresenta-o como
simulacro (mentira símil). O Símil mesmo é já Outro ao dar-se como símil, pois aí o ser-
mesmo se oculta sob a similitude que o une ao Outro. Assim, na unidade desta similitude,
estão unidos as mentiras e os fatos, pois os fatos enquanto símeis, ocultam-se eles mesmos
sob a similitude com outra coisa, – subtraindo-se enquanto ipseidade.154
Não uma mera oposição tal como o antagonismo excludente de veritas e falsum, de
referências diretas e cruzadas que aí se manifestam vem à tona a unidade do dizer das
Musas e do próprio dizer do poeta, isto é, a unidade de divinos e mortais. No dizer de tal
grega arcaica como evento do dizer, os que se espelham o fazem porque se especulam
houver antes de tudo um especular. Esse especular não possui de maneira alguma o
sentido de uma investigação científica ou racional, tal qual se está por demais habituado
153
i)/dmen yeu/dea polla\ le/gein e)tu/moisin o(moi=a, i)/dmen d', eu)=t' e)qe/lwmen, a)lhqe/a ghru/sasqai Hesíodo,
1995:106.
154
Torrano, 1995:24-5.
89
algo que fica só na teoria, sem tomar medidas práticas ou ainda um resumir-se a
de algo ou de alguém. Especular é uma palavra que provém de modo mais próximo da
romana de manter sentinela a partir da observação desde um lugar alto. Porém, o radical
como specìes – “aspecto, aparência, forma, figura; vista, espetáculo, imagem; aspecto,
torre etc.” *spek- está presente de modo determinante também em palavras como
spectrum,i – “visão, espectro, fantasma, imaginação”. *spek- ainda pode se dar como
observar atentamente, ter os olhos fixos em”, nos derivados spectabìlis,e – “que está à
contemplativo, teórico”(...).155
A experiência grega de palavras formadas palo radical *spek coleta ainda outras
skópos159 – destinar, apontar para160. O jogo de espelhos aberto pelo eixo mortais e
imortais reflete a experiência não apenas do olhar, mas ao fazê-lo com cuidado destina
não é um ato exclusivo dos imortais enquanto divinos, mas o por em obra do mútuo
destinar de mortais e imortais. Esta experiência foi colhida também pelo antigo alto
que se observa com cuidado. É o que refletem, pois, as palavras formadas por hinsehen:
hinsehend – olhar aí, e hinsicht – aspecto, respeito. Desse modo, mortais e imortais se
espelham não apenas no sentido de refletir uma imagem ou aspecto, mas ao fazê-lo,
unidade do inefável com aquele mesmo que sobre a terra e sob o céu está investido da
155
Verbete espec- in: Houaiss Eletrônico.
156
Cf. Pokorny, p. 984.
157
ske/ptomai.
158
Cf. Liddell & Scott, s/d.
159
skopo/j.
160
Pokorny, p. 984.
161
Idem, ibidem.
91
próprio não somente é “luminoso” e “celeste”, isto é, na qualidade de “deus”, aquilo que
celeste mantém para o homem uma fisionomia familiar porquanto com ele se opõe. Na
oposição não se polariza tão somente a natureza física de céu e terra pela oposição
no tempo e no espaço.
como o estranho. No caminhar sobre esta terra o homem não tem ao seu alcance nem o
162
Benveniste, 1995b:182.
163
Martins Terra, 1999:301.
92
céu, nem o sol, nem as nuvens e nem as águas do céu, muito embora ele sempre
reconheça a fisionomia quando estes se lhe apresentam. Não estar ao alcance mantém o
instauração ganha sentido pela escuta da mensagem do divino, isto é, o apelo pelo qual
que brilha o sentido penetrar no conhecido, no que sempre já está ao alcance. Por isso,
“os imortais são acenos dos mensageiros da divindade”.164 Na ausência que se faz
sentido como algo simplesmente dado, isto é, ao alcance de uma disponibilidade sem
distância, mas antes, na escuta vigilante e cuidadosa do que brilha e cintila como o
Por isso, uma tal oposição, longe de ser apenas uma disposição de pólos
múltiplas dimensões e perspectivas do real. O que se diz com essa oposição é que em
164
Heidegger, 2001:156.
93
extraordinárias de dar-se e retrair-se do que sempre vige como numinoso. A alétheia diz
o real como lugar e tempo de aparição do numinoso, quer dizer, deixa o real
do sentido do ser.
possibilidades metafísicas, pode parecer estranho que se venha pensar a música numa
dimensão de sentido assim constituída. Um tal modo de pensar não só parece não ter
assim pode até mesmo se constituir como um contraponto, mas dificilmente é possível
Ocidental. E isto porque no ofuscamento de tanta luz – luz do saber, luz da ciência, luz
da razão – não apenas se pretende iluminar os âmbitos mais recônditos da vida e do real,
por excelência de produção do saber, é preciso considerar que em toda manifestação que
extrapola toda a capacidade de iluminação da ciência. Por mais que se definam os sons,
inclusive os musicais, por suas propriedades físico-acústicas, por mais que se decrete as
características físico-químicas da cor nas telas das obras pictóricas, por mais que se
pretenda abarcar todo o domínio da arte através do domínio técnico e tecnológico, o que
origem. Ora, a origem não é um objeto científico e muito menos filosófico. A origem
também não pode ser determinada como algo teológico, já que a própria teologia se dá
como metafísica. A origem como origem simplesmente não pode ser determinada, ao
relação arcaica de origem e originado. Por isso, os versos de Hesíodo testemunham uma
experiência que
Poiésis é o nome arcaico não para o discurso que se estrutura através de uma métrica ou
de uma determinada maneira de se contruir uma rima. Mesmo isso está muito aquém da
165
Torrano, 1995:19.
95
manifestação do verso como poesia. A palavra grega poiésis diz, de maneira arcaica,
isto é, de modo originário e fundante, não apenas o que se produz como efeito, mas o
produzir mesmo como a realização da passagem do não-ser para o ser. Realizar quer
dizer aqui tornar real, permitir o real livremente se manifestar. Em toda livre
manifestação do real a poiésis é o evento mais radical da alétheia. Para quem ouve a
realização da passagem do não-ser para o ser, este é o evento sagrado por excelência.
Não será diferente então com a música, a manifestação arcaica das relações
especulares primordiais. Como tal, não há uma verdade da música como verdade da
obra, mas há, sim, verdade na música. Isto quer dizer, a música dá-se alétheia. Na
experiência arcaica a palavra não é somente um discurso, mas precisa ser cantada, isto
Mas sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o tempo retornarem
à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida com que
vieram à luz pela primeira vez. (...) Na solidária colaboração dos homens com a Divindade,
o rei-cantor na antiga Babilônia devia entoar, nas festas de Ano Novo, o poema narrativo de
como a ordem cósmica divina e humana surgiu prevalecendo sobre as anteriores trevas
amorfas, e por meio desta declamação do canto prover que o novo círculo do Ano, o novo
ciclo do Mundo, tendo retornado às suas fontes originais, se refizessem de novo no Novo
Ano. – Este poder ontopoético que a palavra cantada teve multimilenarmente se faz
presente nas culturas orais se faz presente na poesia de Hesíodo como um poder
ontofântico. O mundo, os seres, os Deuses (tudo são Deuses) e a vida aos homens surge no
canto das Musas no Olimpo, canto divino que coincide com o próprio canto do pastor
Hesíodo, a mostrar como surgiu e a fazer surgir o mundo, os seres, os Deuses e a vida aos
homens.166
palavras cantadas, isto é, como palavras musicais. Note-se que a palavra no poema não
é apenas palavra. A música que vige na palavra do poema quer dizer aqui o modo
166
Idem, p. 20.
96
– “vis infâmias e ventres só”167 – para entrar na relação com o sentido manifesto no
sagrado e inspirar um canto divino que glorie futuro e passado, impelindo a hinear o ser
dos venturosos sempre vivos e a elas, Musas, primeiro e por último sempre cantar168.
Por isso mesmo, a verdade não pertence às obras como também não pertence às
Musas. A alétheia não é um bem que se possua. Nada mais não-grego do que
compreender a verdade como um conceito que se possui. Isso poderia soar como uma
afirmação de que a verdade a ninguém pertence, mas uma tal perspectiva serve de
se pretender entrar numa relação com a compreensão grega da alétheia, deixar-se levar
pelo conceito de uma verdade relativa só distancia ainda mais a possibilidade de se fazer
uma experiência com a alétheia na medida em que esta habita a origem. Em que pese o
fato de nos ser impossível uma recuperação ipsis literis do pensamento grego originário
– e nem seria aqui o caso – o intuito de se realizar uma aproximação com esse
pensamento reside no fato de que em sua proximidade se possa ainda pensar o a-ser-
música para além e para aquém da esfera comum da técnica e da ciência. Nessa esfera e
167
Hesíodo, 1995:107, v. 26.
168
Cf. Idem, v. 31-4.
97
não pensa mais tanto quanto raciocina, que já não se lança e se aventura tanto quanto se
agarra às operações conceituais. Por isso, qualquer iniciativa que objetive conceber a
verdade tal qual mais um outro conceito de operação do real, nada mais faz do que se
afastar da origem para se ater ao que lhe é modernamente familiar. Ora, o sentido do
isso, em termos do pensamento que pensa o a-ser-pensado da origem, nada mais não-
grego do que um conceito da verdade. Porém, a alétheia não é algo que se encontre
Nós refletimos muito raramente sobre o fato de que os mesmos Gregos aos quais a
palavra e a fala foram concedidas primordialmente podiam, pela mesma razão, manter-se
em silêncio igualmente de um modo único. Pois, “manter-se em silêncio” não é meramente
não dizer nada. Sem algo essencial a dizer, não se pode manter-se em silêncio. Somente no
interior de uma fala essencial, e através dela apenas, pode prevalecer o silêncio essencial,
nada tendo em comum com o segredo, a ocultação ou “limitações mentais”.169
Para o grego não é preciso sintetizar qualquer conceito a esse respeito, uma vez
refelxão é atravessada pela ambigüidade dessa questão: para ser o que é, o que é precisa
ser como o que é, sob pena de omitir a diferença entre ser e ente.
A verdade se dá na obra como nas Musas. Verdade e obra, assim como verdade
e Musas não se determinam a partir de uma relação de posse, mas se dão conjuntamente
169
Heidegger, 1992b:73. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 259.
98
densidade ao ser no homem, mas o homem também ganha densidade no ser. “O evento
dizer: “o homem está entregue como propriedade (vereignet) ao ser e (..) o ser é
apropriado (zugeeignet) ao homem”.171 Por isso, só se pode pensar o ser como o que se
como sua morada se lhe manifesta o ser como sentido e o sentido do ser. “O ser
acontecer não é um acidente ou uma propriedade do ser, mas é o próprio ser. Nem o
homem, nem o ser podem conceber-se como um <<em si>>, que depois se encontram
Dizemos demasiado pouco do ser em si mesmo quando, ao dizer o ‘ser’, deixamos fora
o seu estar presente ao homem, passando assim por alto que este último também entra a
constituir o ‘ser’. Também do homem dizemos sempre demasiado pouco quando, ao dizer
‘ser’ (não ser do homem), pomos o homem por si mesmo e só num segundo tempo o pomos
em relação com o ‘ser’. Mas também dizemos demasiado, se entendemos o ser como aquilo
que abarca tudo em si e representamos o homem apenas como um ente particular entre
outros (plantas, animais) e imediatamente o pomos em relação com o ser; na realidade, já
na essência do homem está constitutivamente contida a relação com que (precisamente
devido a tal relação, que é um relacionar-se no sentido de ter necessidade) é determinado
como ser e, por conseguinte, está despojado do seu pretenso ‘em si e por si’.174
Fica claro então por que o homem na esfera do ser nunca se encontra
propriamente como um sujeito tal como na esfera da ciência e da técnica, bem como o
ser nunca poderá se dar como objeto. Nesse sentido, o daímon a que Heráclito se refere
170
Vattimo, 1989:107.
171
Heidegger, 1991:144-5.
172
Fragmento 119. In: Os pensdores originários, p. 91.
173
Vattimo, 1989:107.
174
Heidegger, Zur Seisnsfrage, apud Vattimo, 1989:107.
99
modo pleno, não somente a ambigüidade da diferença ontológica, já que remete para o
acha latente, oculto, isto é, não aparente, não manifesto. Ora, em grego nomeia-se o que
se oculta e não se manifesta com a palavra léthe. Até mesmo no português léthe
conservou-se na palavra “latente” através do radical lat- do verbo latino lateo – estar
escondido. Isto quer dizer que o evento apropriador de ser e homem se dá numa relação
como uma ocorrência que apenas se manifesta, mas que nesse mesmo manifestar ocorre
respeito disso, pois o ato genesíaco atravessa toda experiência que ele faz com o mundo.
175
Hesíodo, 1995:117, vv. 226-7.
100
mas apenas assinala que Léthe é filha de Eris, nascida irmã de Limós, palavra
modernamente traduzida por Fome. No entanto, esta tradução não somente é moderna,
mas em virtude disso mesmo, soa inapropriada. Apenas por não se levar em conta a
compreender não somente Limós por fome, mas também Léthe por esquecimento, isto é,
seus efeitos sobre o homem que sustentam a identidade de Léthe e Limós, mas sua
alienado de si mesmo, deixa de habitar em meio a sua própria essência. Com Léthe os
gregos nomeiam o que deixa de ser percebido como presença. Através de sua ligação
com lantháno, Léthe é o que escapa ao olhar e à atenção. Do mesmo modo, Limós não
diz somente e modernamente “fome”, mas através de sua raiz indo-européia *lei176,
liga-se a lei/pw – deixar, deixar desaparecer. Por isso, Limós não quer dizer a não
provém do verbo liázomai, que significa apartar-se, recuar ou ainda mergulhar, descer,
desaparecer e nesse sentido, furtar-se e escapar177. Limós, do mesmo modo que Léthe,
caracteriza-se como ausência, como o que se retrái e se retira, isto é, um ser ausente.
A relação entre Léthe e Limós, porém, não é de modo algum experienciada pelos
gregos como um experimento lingüístico. Os gregos não realizam com estas palavras
qualquer cálculo ou operação conceitual, mas dizem, antes, na Teogonia que ambas são
nascidas irmãs, filhas de Éris – a deusa “Conflito”. Éris é ela mesma filha de Nyx – a
176
Buck, 1988:332; Pokorny, p. 661-2.
177
Cf. Pokorny, p. 661-2.
101
afasta mais uma vez a possibilidade de se fazer uma experiência com a compreensão
grega de alétheia, uma vez que nada mais indica do que aquilo que se tentou até o
momento evitar, isto é, que Léthe e Limós tomadas tão somente por esquecimento e
fome sejam meros indicadores de estados fisiológicos e psicológicos aflitivos que numa
perspectiva extrema levam o homem à sua alienação como destruição. Porém, uma tal
lógica apenas transforma a questão toda em algo muito simplório para aquilo que o
próprio Ocidente toma como base da gênese de sua configuração cultural. Nesse
maneira pode a Noite ser alguma coisa ruinosa ou destruidora? Em que medida pode
Reduzir a nada quer dizer desprover ou privar do ser, para os gregos, retirar a presença.
Desse modo Nyx é holoé por que deixa tudo que se dá como presença desaparecer no
perspectiva em que o conflito não é uma profunda falta de entendimento entre partes,
mas se delineia como aquilo mesmo que mantém a complementaridade dos opostos.
178
Cf. Ilíada, XVI 567.
179
Cf. Odisséia, II 100, III 238, XIX 145; Ilíada, XVI 849.
102
originário não se apresenta como algo a ser resolvido, mas como o que se produz pela
iluminação do intelecto é que se pode pretender destituir o sentido do ser de suas forças
lógos são substituídos por epistéme e ratio ocorre a pressuposição de que nem Éris, nem
Nyx têm qualquer vínculo com o que se dispõe como presença e como sentido.
em que este pensamento se dá como origem, não há um isolamento lógico e racional das
estudo. Somente num pensamento afastado da origem, ou seja, moderno, é que se pode
pensamento originário, porém, não há ainda um desequilíbrio que pende para a pura
Éris, Nyx, Léthe e Alétheia não são definições terminológicas de conceitos e estados
do panteão de uma religião grega. Mas, justamente pela vigência de mythos e lógos,
103
pensamento grego como aquilo que não cessa de originar-se e, portanto, permanece o
mais atual.
Nessa narrativa, a palavra Aidós, traduzida aqui por “assombro”181, se opõe a látha.
se manifesta como sentido vige a essência do homem, isto é, o ser se dá como lógos
através de alétheia. Sendo pensado quer como termor respeitoso, quer como reverência,
Aidós propele, arremete e confia algo ao homem. O que por Aidós se impulsiona sobre o
homem é arete – enébalen aretán182. Esta palavra essencial, do mesmo modo que
outras, não pode ser moderna e exclusivamente compreendida de acordo com uma
180
Píndaro, Ode Olímpica, VII, 43-7 apud Heidegger, 1992b:74. Tradução nossa a partir da versão
inglesa transcrita no Apêndice I, p. 259.
Ai)dw/j. Pode ser compreendida como “reverência” como em William J. Slater, Lexicon to Pindar
181
indo-européia ar-185 em sua forma básica não apenas integra ao âmbito de sentido de
areté palavras derivadas como arma, harmonia e arte, como também por meio de
surgimento – aquilo que é próprio da phýsis. Nesse sentido, pode-se então compreender
por que areté se relaciona com phyá,188 forma poética de Píndaro para phýsis e que diz
“surgir no desoculto”, sentido consonante ao que também ainda diz a)ei/rw – levantar-se
por si mesmo, responsabilizar-se pelo que lhe é o mais próprio. O surgir no des-oculto é
183
Heidegger, 1992b:75. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 260.
184
a)rtu/w.
185
The American Heritage Dictionary of the English Language.
186
*a)/rw.
187
a)ei/rw.
188
fu/a.
105
e a ele concede, a)reta/. O assombro como essência do Ser conduz o homem à revelação dos
entes. Mas oposto à ai)dw/j, lá mantém-se firme la/qa, o encobrimento a que chamamos
esquecimento.189
o sentido daquilo que não se mostra, daquilo que se esconde. O que é próprio de léthe, a
retração, é constitutivo da essência de alétheia. Por isso mesmo, léthe não pode ser
do lógos ocorre uma retração como um encobrimento. Uma tal mútua apropriação de
189
Heidegger, 1992b:75-6. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 260.
190
la/qaj a)te/kmarta ne/foj.
191
a)nqrw/poisi Promaqe/oj.
192
Hölderlin, Brot und Wein, 1, vv. 13-8. In: hoelderlin-gesellschaft.de. Tradução nossa. Cf. original na p.
260.
106
vem e com ela o que lhe é próprio. O que lhe é próprio nos diz Hölderlin: entusiástica.
Desse modo, não apenas a noite traz o encobrimento, mas nele a presença do
cheio do deus, possuído e inspirado pelo deus. O que “brilha e se admira ali” é o que
deixa a noite repleta do desconhecido, por isso “estrangeira entre os homens”. Há aqui
uma ambigüidade que se reverte: em léthe, o encobrimento que retrai e retira, a ausência
brilha como o desconhecido e como o estranho. Outro não é o sentido da noite como
homens antes mesmo que tal se torne uma necessidade. Desse modo, a noite não é algo
que se configura desde uma perspectiva antropomórfica. Ela mesma, porém, é quem
confere densidade ao ser diurno dos homens, seja com a imaginação e o sonho, seja
oferece ao homem um apoio a fim de que, na mais pura ambigüidade, este possa, sem
adormecimento, mas também sem repouso [Schlummerlos], ousar a própria vida. Este
apoio nada mais é do que a palavra fluída [strömende Wort], para os gregos, lógos.
Para os Gregos a palavra como muªqoj, e)/poj, r(h=ma e lo/goj é aquilo pelo qual o Ser se
consigna ao homem a fim de que ele possa preservá-lo em sua própria essência, como o que
é consignado a ele e possa, de sua parte, encontrar e reter sua essência como homem através
de tal preservação. Portanto, o destino “ter a palavra”, lo/gon e)/xein, é a característica
essencial da humanidade que veio a ser histórica como a humanidade Grega.
(...)
Somente onde uma humanidade é confiada a essência ter a palavra, lo/gon e)/xein,
somente aí ela permanece designada a preservação do desencobrimento dos entes, Somente
onde essa desgnação permanece e onde o desencobrimento aparece antecipadamente como
o Ser mesmo, somente aí o encobrimento também prevalece de um modo que nunca pode
ser o mero contrário e o simples oposto a revelação, i.e., nos modos de dissimulação,
distorção, erro, engano e falsificação.
Em virtude de haver um modo ainda mais original de encobrimento a ser distinguido
de tudo isso, os Gregos o nomearam com uma palavra a qual, em distinção a yeu=doj e
a)pa/th e sfa/llein, imediatamente se apreende na relação com a raiz original:
encobrimento como lh/qh.194
193
Hölderlin, Brot und Wein, vv. 19-36. In: hoelderlin-gesellschaft.de. Tradução nossa. Cf. original na p.
260-1.
194
Heidegger, 1992b:78-9. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 261.
108
possa encontrar uma determinação que serve de apoio para o homem a partir do caráter
noturno do esquecimento, de léthe. O desconcerto assinalado por Píndaro diz que léthe
tira o pensamento que pensa adiante o deslocando para longe das ações do caminho
mesmo modo, Hölderlin assinala a noite como estrangeira entre os homens por que não
se dá naquilo que é mais caro aos homens que ao deus supremo, isto é, como o dia
prudente. O paralelo entre orthan hodón e a prudência do dia dizem uma e a mesma
coisa, que a léthe deixa o desencoberto e sua revelação decair no ausente de uma uma
ausência velada. Não há para Hölderlin uma existência puramente dioturna, uma
existência que seja apenas e tão somente industriosa e engenhosa. Não somente não há
uma existência assim de tal modo exclusiva e orientada para os caminhos retilíneos do
dia, como no poema se acena com uma possibilidade não apenas contrapositiva da noite
em relação ao dia, mas originária. Por isso, a noite se constitui como o lapso em que os
reside justamente no fato de, por oposição aos caminhos diretos e à prudência do amado
dia, poder encontrar a habitação da palavra no caráter caótico e errante da noite. Numa
perspectiva moderna esse desconcerto beira o absurdo, já que caos significa confusão, a
195
pragma/twn o)rqa\n o(do\n.
109
(...) xa/oj significa primeiramente o bocejar, o abismo tenaz, o aberto que primeiro se
abre no lugar em que tudo é tragado. O abismo não permite suporte a qualquer coisa
distinta e fundamentada. E portanto, para toda experiência, que apenas conhece o que é
mediado, caos parece ser algo sem diferenciação e assim, mera confusão. O “caótico” nesse
sentido, entretanto, é apenas o aspecto inessencial do que “caos” significa. Pensado em
termos da natureza fu/sij, caos persiste como a tenacidade da qual o aberto se abre de modo
que possa conceder sua presença limítrofe a todas as diferenciações.197
Nesse sentido, Hölderlin chama Caos “o sagrado” [der Heilige] e por isso, é
não podendo ir adiante, finda, mas justamente como aquilo que origina e permite ser
formado. Como o limite originante o sagrado [der Heilige] transpassa o que surge e se
retrai (phýsis) “desde o sumo do éter até o fundo do abismo” de modo inteiro e intacto
[heil], isto é, em seu todo. Para os gregos, o todo em que se dá o limite originante do
como fundo de reserva dos orthan hodón e se torna constituivo via cháos, Nyx e léthe da
experiência fundante da verdade como alétheia. Para o grego arcaico e para os poetas, a
196
Hölderlin, Wie Wenn am Feiertage, vv. 19-27. In: Heidegger, 2000a:68-70. Tradução nossa. Cf.
original na p. 261.
197
Heidegger, 2000a:85. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 261.
110
verdade é em seu todo uma ex-periência que integra em seus limites tanto o que se
manifesta como presença com todas as vias de acesso, como o que se ausenta com todos
Heráclito: ouk emou Allá tou lógou akousantas homolegéin sophón éstin hén pánta
aqui se falou, no qual não apenas vige a origem, mas no pensamento originário, o
próprio lógos. O lógos está no limite entre o que se orienta como direção nos caminhos
digressão dos caminhos do caos primevo, no que se retrai e retira a toda e qualquer
alétheia e léthe, de tal modo que o que dele provém, a palavra, se torna o que pode
conferir sentido e iluminar os entes com o ser, mas ao mesmo tempo foge a qualquer
padrão de uso que se pretenda impor como modelo uniforme de significação. Sendo o
lógos em unidade com o limite de alétheia e léthe, é possível dizer que tudo é um sem
que isso se torne uma igualdade medida e re-presentada de tudo e de todos. Na medida
em que se possa pensar o lógos em unidade com o limite originante de alétheia e léthe,
a palavra que dele provém nunca fica, então, reduzida a mera significação, mas
198
“Auscultando não a mim mas o Lógos, é sábio concordar que tudo é um. Heráclito, Fragmento 50. In:
Os pensadores originários, p. 71.
111
mito
Kerènyi, 1993:3, 4.
Trata-se aqui de deixar que uma questão venha ao pensamento como tema.
Deixar que uma questão venha a ser tema para o pensamento significa permitir que ela
mostre o vigor que lhe é próprio. Aqui, o tema para o pensamento é a mais originária de
todas as questões. Diz respeito ao “o que é”. A pergunta pelo “o que é” é a mais
originária de todas as questões por se tratar, antes de qualquer coisa, da pergunta pelo
ser. Por isso, deixar que a questão do ser venha a se tornar temática para um diálogo
frutífero com a música e a poética tem em conta permitir que o pensamento teime
naquilo que lhe é mais originário, isto é, naquilo mesmo que se dá como seu vigor e sua
origem.
pergunta pelo ser como o horizonte de toda questão digna de ser pensada na medida que
em virtude mesmo de sua hegemonia, qualquer que seja, essa cultura não admite
respeito ao grau com que a linguagem se transforma num aparato tecnológico que deve
cumprir funções e objetivos bem delimitados, uma vez que ela mesma se encontra
proposicional. Daí, se para a Grécia Arcaica a palavra mythos possuía uma tal força de
tecnologia da informação a que quase nada mais pode resistir. Não obstante a
hegemonia desse “pensamento”, deixar que a questão mais originária seja uma vez mais
tema para um pensamento que teima é para nós levantar não apenas a questão mais
presente, mas acima de tudo, a questão que mais radicalmente aponta para o futuro.
Pois, levantar a questão que pergunta pelo sentido do ser cuida em primeiro lugar de
manter no horizonte do pensamento aquilo que lhe provê alimento, em outras palavras,
aquilo mesmo que o provoca a pensar e que é digno de ser pensado. Por isso, o
114
pensamento é teimoso, in-siste em não perder de seu horizonte aquilo que lhe é
temático.
Considerando o que foi dito, não parece que seja difícil a qualquer um
modo, a rearticulação da questão que interroga pelo ser dispõe a própria necessidade do
pensamento na medida que sendo convocado pelo ser, mantém com ele uma estreita
Enquanto questão pelo sentido do ser, a questão de que se trata aqui é tríplice,
isto é, se des-dobra em três, a saber: o que é música, o que é poética, o que é sentido. O
música, poética e sentido, mantendo no horizonte de todas as questões aquilo que lhes é
mais temático, isto é, a própria questão do ser, requer de imediato que se evite a
tentação das simplificações. Des-dobrar não é simplificar, isto é, não é abolir ou negar a
reforçar as dobras da questão pelo ser. Em todo esforço em se des-dobrar a questão aqui
temática, o que se pretende é fazer aparecer caminhos pelos quais o pensamento possa
trilhar e assumi-los em toda sua força de envergadura. Também não se trata, de modo
plexo, de sua dobra. Trata-se antes de permitir uma aproximação com aquilo e a partir
daquilo que na questão vige como mistério e, por isso mesmo, se dá como fonte
115
seu tema.
horizonte da questão que pergunta pelo ser. Por isso, não será possível a imposição de
outros limites que não sejam aqueles configurados desde a própria questão do ser. A
medida desses limites não se encontra, portanto, nas definições, nas delimitações dessa
pensamento teimoso que caminha em virtude e no vigor de seu tema. Nesse sentido,
desaparecimento do horizonte da questão que pergunta pelo ser como a sua mais
originária medida.
maior plenitude. Operar o pensamento científico quer dizer, delimitar o que pode ou
deve ser conhecido através do modo como pode ou deve ser conhecido. Entretanto, ao
horizonte dimensionado desde a pergunta pelo ser, há que se evitar, além das
abertura de mundo.
116
que sempre re-siste como mistério. Essa suspensão advém da própria condição
hermeneuticamente.
199
Heidegger, 1999a:5, 12. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 262.
117
sentido do ser, considera-o em toda sua ambigüidade e não lhe impõe resistências que
não sejam dele mesmo advindas. Por isso, quando dizemos que o pensamento que teima
tríplice questão de música, poética e sentido, tendo como pano de fundo a própria
questão do ser, dizemos isso considerando que o pensamento se empenha por e numa
que dele provém o seu alimento e por ele é con-vocado. O pensamento que pensa se
mantém dócil ao ser e não somente compreende a ambigüidade de pensar o ser, mas
fundamentalmente a ambigüidade de pensar toda questão que toma o ser por horizonte,
como aquilo que é próprio da inter-pretação. Quer dizer, o pensamento que se empenha
conhecimento da vida e do ser do outro como objeto. Não há, pois, na hermenêutica
qualquer característica de intencionalidade, uma vez que ela não é fruto da consciência
nós mesmos somos. Pos isso, a hermenêutica não se apresenta como mais um modo
200
Heidegger, 2000b:74
118
hermenêutica e o Dasein, que nós mesmos somos, aflora no sentido de que ela é “ela
Hermes, de que modo sua caracterização pode se dar como caracterização do próprio
hermenêutica mantém quase nenhuma relação com o deus. Resta para nós, saber se isso
filosófica ocidental, mas fundamentalmente com aquela tradição que permanece latente
no próprio mito.
201
Idem, 12.
119
deuses porque Zeus o tenha designado para tal, mas é angelos porque seu modo
essencial de ser é aquele que transita livremente entre os mundos. Esses mundos são
mundos opostos, porém, complementares. Para que se entenda melhor quem é Hermes e
o mundo que ele instala, isto é, o sentido de Hermes, transcrevemos abaixo a passagem
Musa, cantai Hermes, o filho de Zeus e Maia, senhor de Cyllene e Arcadia rica em
rebanhos, o condutor da sorte mensageiro dos imortais a quem Maia revelou, a ninfa de
cabelos ricamente cacheados, quando ela se uniu em amor com Zeus, [5]º - uma deusa
tímida, pois evitando a companhia dos sagrados deuses, viveu no interior de uma profunda,
sombria gruta. Lá o filho de Cronos costumava se deitar com a ninfa de cabelos cacheados,
invisível aos imortais e aos mortais, ao silenciar da noite enquanto o sono profundo
continha os pálidos braços de Hera. [10]º E quando o espírito do grande Zeus estava por se
completar, e a décima lua estava já no céu, ela produziu sua criança, de muitos artifícios,
gentilmente astuto, um salteador, um ladrão de gado, um condutor de sonhos, [15]º um
vigilante da noite, um ladrão nos caminhos, aquele que brevemente estava por mostrar
maravilhas dentre os deuses imortais. Nascido com o amanhecer, ao meio-dia ele tocou a
lira, e à noite roubou o gado do arqueiro Apolo no quarto dia do mês, pois naquele dia
nobre Maia o revelou, mas ele saltou e buscou os bois de Apolo.203
comum, a dúvida de como um ladrão pode ao mesmo tempo ser aquele que mostra
ser o mensageiro dos imortais, o condutor da sorte. Como alguém pode congregar em si
202
Friedrich, Paul. The meaning of Aphrodite, apêndice 8, p. 205. Chicago: University of Chicago Press,
1978, apud Palmer, 1980. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 262.
203
Hino a Hermes, 1-22. Traduzido por nós da versão inglesa de 1914 de Hugh G. Evelyn-White, Projeto
Perseus. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 262-3.
120
talvez a principal face dessa ambigüidade hermenêutica resida no fato de muitas vezes
olímpico.204 O fato de Hermes se manifestar como uma criança primeva aponta para
individual. Na hierarquia da poesia homérica cada relação dos deuses com todo o resto
se encontra imutavelmente fixa. O fato de Hermes se manifestar ora como criança, ora
como adulto é possível, portanto, apenas fora da hierarquia olímpica. No Hino a Hermes
os aspectos mais primitivos da divindade e que antecedem a ordem olímpica são com
ela alinhados de tal modo que “a figura de Hermes nunca perdeu aquele caráter mais
204
Cf. Kerényi, 1993:52.
205
Kerényi, 1986:17-8. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita na p. 263.
206
Kerényi, 1993:53.
121
portanto, que Hermes transite com facilidade entre os mundos e possa perfeitamente ser
tanto o mensageiro dos deuses, como aquele que é mais próximo dos homens. “Hermes,
tu, mais do que todos os outros deuses, és o mais querido para ser companhia do
homem...”207 Hermes gosta de se associar aos homens para garantir um desejo ou para
não possuir habitação permanente; ele está sempre a caminho entre aqui e acolá”.209
Hermes é, pois, o deus dos caminhos. Pelo fato de estar sempre a caminho entre aqui e
acolá, Hermes vige enquanto pode ser engendrado pelo caminho. Hermes não é o deus
partida e de chegada muito bem definidos. Para o viajante, toda jornada se converte em
mero meio para um fim. Não há qualquer relação dele com o caminho. Este é apenas
outro. Cada passo no caminho se trata apenas de tomar posse do destino ao modo de um
de chegada e o que foi previamente definido como destino. Desse modo, o destino na
207
Homero, Ilíada, Livro XXIV, 334-35.
208
Cf. Kerényi, 1986:9.
209
Otto, Walter F., The homeric gods, apud Palmer, 1980.
122
firmes no solo, ele sempre adere a uma base sólida. Qualquer movimento que haja é
medida em que transcende os mundos, em que passa com facilidade e rapidez do mundo
demarca seu caráter transcendente e por isso, Hermes é aquele que empreende jornadas.
Sua condição entre-mundos o volatiliza e altera a paisagem ao seu redor. Hermes está
210
Kerényi, 1986:14-5. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita na p. 263.
123
existência humana como reunião de vida e morte. Na força da reunião dos opostos, na
vigência do mistério dessa reunião, Hermes não é um deus da luz e da claridade, muito
Um homem que está acordado no campo aberto à noite, ou aquele que medita sobre
caminhos silenciosos, experimenta o mundo de maneira diferente do que durante o dia. A
proximidade desaparece, e com ela a distância, tudo está igualmente longe e perto, próximo
a nós e ainda assim misteriosamente remoto. O espaço perde suas medidas. Há sussurros e
sons e não sabemos onde estão nem o que são... Não existe mais uma distinção entre o
morto e o vivo, tudo é animado e inanimado, a um só tempo vigilante e sonolento.211
mensageiro e por isso é a divindade mais próxima dos mortais do que qualquer outro
vida ensolarada do cotidiano. “Esse mistério da noite visto de dia, essa escuridão
Hermes consiste em justamente estar no limiar. Mas o que é isto – o limiar? Limiar é
aquilo que constitui o limite. Entretanto, o limite de algo não tem nada de objetual, pois
não é algo que se interponha entre uma coisa e outra. O limite de um país e outro, por
exemplo, não é algo que chega a se caracterizar sem que se tome como determinante
211
Otto, Walter F., The homeric gods, apud Palmer, 1980. Cf. original na p. 263.
212
Ibid.
124
ambos os países. No entanto, se de um lado ambos os países são pressupostos para que
haja todo e qualquer limite, por outro lado, é justamente o limite que enseja a diferença
mesmo modo, céu e terra compõem em sua identidade e diferença o limite entre ambos.
O limite, portanto, pressupõe céu e terra, mas ao mesmo tempo, permite que eles se
Como aquele que tem sua vigência essencial no limiar do entre-mundos, Hermes
necessitam, não há mediação entre eles, pois o limiar a ambos pertence. O limiar é, pois
liminaridade em que Hermes habita não é, pois, um terceiro elemento entreposto aos
mundos que ele transcende, mas sim a realização da unidade desses mundos, no caso de
Hermes, mais notadamente, pelo que se pode depreender da estrutura do mito, a unidade
própria vigência da unidade, podemos dizer que com Hermes o proclamar das musas
ganha mundo.
vem a ser o mensageiro. Pois, se Hermes não desempenha um papel mediador, em que
125
conta, em primeiro lugar, que não se pensa aqui o mito desde uma perspectiva
sua vigência, ainda mais em se tratando de uma divindade que, como vimos
angelos, mensageiro das musas, isto é, proclama ou anuncia as musas ou o que elas
A palavra musa vem do grego mou~sa, que, por sua vez, pode tanto se originar do
radical mn-, com grau zero de apofonia, ou do mesmo radical, com grau flexionado de
apofonia mon-. A este se junta o sufixo tja (iode, alfa) em que o iode sibiliza a consoante
dental. (...) Desse modo pode-se com tranqüilidade estabelecer uma vinculação entre musa
e memória, além da vinculação explícita de explícito parentesco. A palavra musa surge do
mesmo radical da palavra memória, no grego. No português, a palavra memória se
constituiu, via latim, a partir do mesmo radical grego só que a partir do seu grau normal
men- em que o n, acabou por se transformar, por acomodação fonética, em m, em m.
Como já foi descrito acima, o radical mn, no seu grau flexionado mon-, traz consigo a
idéia de unidade; já o afixo -tja, tem a terminação -ja, terminação caracterizadamente
formadora de substantivos da primeira declinação. As musas, portanto, trazem consigo a
substantivação da unidade. Isto é: é por elas e com elas que se possibilita a unidade, ao
menos enquanto perspectiva.213
213
Castro, 1997:170-1.
126
Sabe-se que as Musas foram engendradas por Zeus, filhas de Mnemósine a fim
foi e do que será, e por ela é que as Musas cantam Zeus. No cantar das Musas é essa
unidade que está em jogo na medida em que sem a memória não se poderia chegar à
unidade, tudo seria des-uno e sem sentido. Portanto, o sentido do canto das Musas não é
outra coisa senão a unidade mesma. Esta, por outro lado, é aquilo que possibilita o
próprio sentido.
angelos, que se torne justamente aquele que não somente conduz as almas de um mundo
de que sua angelia pronuncia a unidade dos mundos. Ninguém melhor do que Hermes,
aquele que ao se volatilizar transita rápida e velozmente entre mundos, é capaz de portar
que realiza a unidade porquanto a pronuncia como angelia. A angelia que Hermes
E isso acontece mesmo que o homem não dê qualquer atenção particular ao fato de que
ele já está sempre escutando a esta mensagem.
O homem é usado para ouvir a mensagem.
(...) o homem encontra-se numa relação.
E a relação é chamada hermenêutica porque traz notícias dessa mensagem.
Essa mensagem reivindica no homem que ele responda a ela...
... para escutar e pertencer a ela como homem.
(...)
O homem é o mensageiro da mensagem pela qual o desvelamento da duplicidade fala a
ele.214
Hermes realiza a unidade. Essa perspectiva aponta para o acontecimento em que, como
homem não somente situa Hermes como o “mais querido” pelos mortais, como o oposto
num entre-mundos tal como Hermes. Esta é uma dimensão de abertura para o ser em
que “não se age tanto quanto se re-age, não se fala tanto quanto se ouve, não se
214
Heidegger, 1982:29, 40. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 264.
215
Heidegger, 1982:41. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 264.
128
Desde o início desse trabalho nos movemos no empenho por pensar as questões
de música, poética e sentido desde o horizonte mais amplo da questão que pergunta pelo
seu tema, esse modo de questionar deve se manter aquém e além das delimitações da
uma limitação incompatível com o questionar que pergunta pelo ser. Impor uma
infensa ao limiar por transformá-lo em objeto. O limiar, entretanto, dá-se como limiar
cosmos.
questiona o ser ou que tem a questão do ser como o horizonte em que se dá o perguntar.
216
Palmer, 1980.
129
Como vigência do limiar, a compreensão não tem nada de objetual, isto é não se
enseja acima de tudo sua concreção. A concreção da compreensão advém, desse modo,
da maneira pela qual o ser é interrogado ou ainda, da maneira pela qual a pergunta tem
por horizonte a questão que interroga pelo ser. No pensamento que teima pensar o seu
tema, a questão não é uma mera pergunta em virtude de uma simples curiosidade ou de
Que significa perguntar por algo? Em primeiro lugar perguntar “por” algo não é o
mesmo que perguntar “sobre” algo. O perguntar “sobre” algo implica que isso pelo qual
pergunto está em um nível inferior ao meu perguntar, por isso pergunto “sobre”. Tem um
significado semelhante ao perguntar “acerca” de algo. Todavia, trata-se em todo caso de
algo que eu desconheço e por isso pergunto, mas que pode chegar a ser conhecido e
dominado por mim. No caso, por exemplo, de um cientista que se pergunta “sobre” as
propriedades de umas amostras selenitas, ou de um jornalista que pergunta “sobre” os
acontecimentos ocorridos na última conferência “sobre” o desarmamento. Neste perguntar
“sobre” algo está implícito um “para”, uma finalidade. É ir atrás de algo para conseguir um
propósito determinado. Ordinariamente nosso buscar cotidiano se move nesse nível que
poderíamos chamar de pragmático. É uma dimensão “cativante” na vida do homem:
efetivamente, por um lado possui toda a riqueza que proporcionam a busca e a inquietude e
por outro assegura à referida busca o domínio possível do buscado. É “cativante” ainda
mais porque mantém o homem prisioneiro de seu próprio perguntar.
Perguntar “por” algo possui um sentido muito diferente. Meu perguntar se move no
nível daquilo pelo qual pergunto. É, porém, isso pelo que me pergunto me corresponde
diretamente a mim. Todavia não é um perguntar-me “sobre” mim mesmo, mas é “por” algo
que me incumbe. Notemos por exemplo a diferença que há quando perguntamos sobre
alguém e quando perguntamos por alguém. No primeiro caso nos movemos ao nível da
cortesia ou no mais da curiosidade. Em compensação, quando perguntamos por alguém que
nos incumbe o fazemos perguntando por tal pessoa. Por exemplo, um médico não pergunta
“sobre” os seus pacientes, mas “por” eles. Um sacerdote não pergunta “sobre” os seus
paroquianos, mas “por” eles. Uma mãe não pergunta “sobre” seus filhos, mas “por” eles. 217
O pensamento que teima pensar o seu tema vige num empenho “pela” sua
ao questionamento que pergunta pelo ser. Nesse sentido, a compreensão se dá num nível
217
Capurro, 1971. Tradução nossa. Cf. original no Apêndice I, p. 264-5.
130
comprometido em que ao perguntar pelo ser, por ele somos incumbidos. Por isso, “o
homem é usado para ouvir a mensagem”. Perguntar “pelo” ser ou ainda, perguntar pela
música, poética e sentido tendo a pergunta pelo ser como horizonte realiza uma
real, mas se volta antes para o mistério de sua origem tomando-o radicalmente como
mistério. Tomar radicalmente o mistério como mistério quer dizer assumir o risco da
como raiz, o que se passa é algo inteiramente diferente na medida em que se dá uma
dimensionado desde a questão que pergunta “pelo” ser necessita radicalmente pensar
Nosso perguntar “por” tem uma origem. Este pode se referir a uma determinada
situação que “lhe deu origem”. “Dar origem” possui então o sentido de um começo
histórico-fático. Por exemplo: eu comecei a perguntar pelo critério do sentido da linguagem
movido por tal circunstância, em tais condições, etc. Com isto assinalo os motivos que
deram origem ao meu perguntar, indico, pois seu “desde onde”. Todo perguntar humano
tem seu “desde onde” nesse sentido, e bem sabemos até que ponto pode condicionar o
referido começo toda a busca posterior.
Porém, se bem falamos de “dar origem”, convém todavia que reservemos a palavra
origem para indicar com ela o “desde onde” radical de nosso perguntar. Com efeito este
acontece em mim sem ser desde mim. Este último me indica a faticidade do perguntar que
implica um saber que pergunta (um saber que já sabe) e ao mesmo tempo um saber que
pergunta (e todavia não sabe). É então, nesse poder do negativo, nesse mistério que move o
perguntar como sua origem, donde se enraíza a força do perguntar.
Desse modo, porque me incumbe, a origem do perguntar questiona o meu mesmo
perguntar pela origem. Este “giro” não é um jogo gramatical, mas revela o sentido do
“desde onde” de nosso perguntar. A origem se mostra assim como não mediatizável
plenamente, pois não é posto por mim, como im-prescindível, pois acontece desde ela,
como não assegurável, pois me questiona. Meu perguntar não se orienta em direção a uma
doutrina ou ciência que pudesse adquirir desde si mesmo. Meu poder perguntar se converte
por outro lado em poder responder.218
218
Capurro, 1971. Tradução nossa. Cf. original na p. 265.
131
unívoca de se perguntar pelo ser ou ainda de se perguntar por aquilo que tem a pergunta
se está aquém e já se está além de uma metafísica do ser, já se está aquém e além de
aquilo que abriga a origem. Não é incomum, pois, que se remeta a origem das coisas à
toda determinação do real como práxis vige o atual. Na medida em que a práxis norteia
em que a práxis nos convoca desde o cotidiano mais próximo e em plena consonância
pensar a origem das coisas. Esta situação apenas espelha a conversão do próprio pensar
num operar de razões a fim de determinar desde onde as coisas recebem onticamente
132
desde uma configuração da práxis como efetividade de produção. Nesse sentido o real
apenas como uma práxis atualizada pela ciência e pela técnica, suprime-se o negativo
sentido desaparece. Nesse horizonte em que tudo se dá de modo pré-disposto por uma
separação de presença e retraimento, de ser e nada levada à cabo nessa operação possui
em seu âmago uma decisão bastante precisa a respeito do sentido da verdade na forma
pelo significado e a total dependência do real ante a práxis pelo fator de semelhança e
compreensão constituídas como ressalva daquilo que se mostra como claro e evidente.
incompleto por manifestar o projeto sempre inacabado do ser. O vigor de sua vigência
Desse modo, é muito difícil estabelecer um “discurso natural” sobre o real, na medida
em que todo discurso na tradição ocidental implica numa enunciação apofântica. Todo
torna patente na medida em que o real, que se mostra como claro e evidente, é ao
Uma tal hermenêutica se dá no mesmo sentido em que Hermes conjunta em seu modo
de habitar o entre-mundos.
ordem por eles instalada tem por medida a atualização. O real, porém, manifesta a
origem não como aquilo que num dia e num determinado lugar historiograficamente
veio a ser como um ente através de sucessivas atualizações. O real manifesta a origem
como aquilo que não cessa de originar, como aquilo que não cessa de abrir
das possibilidades do ser no tempo. Por isso, o real é a concretização mais íntima do
134
próprio ser em suas possibilidades mais essencialmente historiais e assim, a origem não
possui nada de natural, uma vez que este, deixado a si mesmo, jamais chegaria a
realizar-se. O real como concretização do ser no tempo não se encontra estancado numa
medida em que se mostra e se oculta. O real manifesta, desse modo, uma poética do
sentido.
origem pode tão tacitamente estar no que é natural ou se a aceitação pura e simples das
“natural”, seja pela ciência, seja pela cultura ou pela doxa, o que permanece esquecido é
o questionamento que repõe o vigor da pergunta pela origem. O que deve ser posto,
então, a título de esclarecimento é a questão que pergunta desde onde e desde quando a
ciência, a cultura e a doxa são os modos naturais da Cultura Ocidental olhar e divisar
A questão que pergunta pela origem é aquela envia o pensamento para além da
objeto. É que nos modos “naturais” do Ocidente olhar as coisas, a relação sujeito-objeto
deve causar espanto, entretanto, o fato de algo tão artificialmente forjado, como a
condicionamento ocorre uma insuficiência do discurso, seja ele qual for, ante a própria
fundam, admite a mais profunda ambigüidade e coexistência dos opostos, dos díspares,
No vigor originário do real, a pergunta pela origem como pergunta pelo próprio
dispõe para o homem suas possibilidades mais próprias, lança-o no aberto, no abismo
insondável e infinito de seu próprio ser, o dis-põe num nada criativo. Esse espaço aberto
solidariamente ao homem.
dimensão poética ganha sentido. Como pergunta pela origem a questão requer
vez que essa armação configura o discurso sobre a origem desde aquilo que
cronologicamente veio em primeiro lugar. Na busca incessante por aquilo que veio
primeiro, a origem já se encontra pré-definida pelo absoluto, seja pela Idéa em Platão,
seja pelo Cogito em Decartes, seja pela Razão a priori do sujeito em Kant, pelo Espírito
sempre a instância do absoluto que dimensiona, desde a época de Platão, aquilo que é o
Idéa, Cogito, Razão, Espírito Absoluto, Vontade de Potência são as várias pré-
há que se ter em conta que se configura um perfil bastante específico e restrito do real.
verdade na acepção da veritas latina não é relativa às coisas, nem ao real e muito menos
relatividade, esta esbarra no fato da veritas pré-dispor o modo pelo qual se pretende
controlar o real. No imperium as posições são determinadas pela ação que resulta num
fallere da parte que é dominada. No pensamento latino, a ação acabada de fallere como
comportamento comum dos romanos em relação às coisas em geral é governado pela lei
do imperium, pelo im-parare – estabelecer, fazer arranjos, organizar. Aquele que cai,
lei ou a ordem dada desde um pre-ceito. Por isso, a justiça é imperial na medida em que
segue a lei – ius, iubeo – de tal modo que o iustum ordena e comanda sobre aquele que
Mas, se por um lado o falsum é o erro, isto é, aquele que cai e não sustenta sua
posição diante do imperium, por outro lado, a verdade como verdade imperial diz
justamente o contrário. A palavra verdade, que provém do latim veritas possui o radical
ver de origem indo-européia. Este radical, aparecendo nas palavras alemãs wehren, die
Wehr e das Wehr querem dizer respectivamente, resistir, defender e obstruir. O radical
ver indica manter e segurar a posição, permanecer firme, isto é, manter-se acima e no
comando, não cair, não fallere ou não se tornar falsum, estabelecer o certo. O erro é
definido, portanto, de antemão pela lei de quem impera, pelo verum e desse modo o
verum não precisa de lei, somente o falsum. Assim, a oposição essencialmente moral da
dominante, não permite, entretanto que haja um inter-câmbio das posições previamente
sua hermenêutica essencial. Por isso, a origem só pode ser compreendida como aquilo
que ocupa a posição primeira e não como abertura da co-pertença entre origem e
originado.
Schopenhauer. Não há, portanto, espaço para se pensar a unidade e, muito menos, a
138
representação. Nesse domínio, verum é a constante que permanece, o correto, aquilo que
se encontra dirigido para o que é superior e está dirigido desde o alto. Verum é rectum,
seja, de uma palavra usada para a ação levada a cabo nas feiras e mercados quando da
os interessados, entre vendedor e comprador, de tal modo que somente através desse
processo é que se pode chegar ao real valor da mercadoria. Não é por acaso que Hermes
é para os gregos o deus mensageiro, intérprete dos deuses, patrono dos comerciantes
bem como dos ladrões, da astúcia e da inventividade. Com Hermes e sua hermenêutica,
ao ermo, ao desabitado, ao lugar em que não se ocupa posição prévia, portanto, não se
219
Cf. Heidegger, 1992b:48.
139
questionamento pelo ser, a pergunta pela origem se abre para lugar onde acontece:
A pergunta pela origem (está) na origem da pergunta. (Está) indica que não está à
maneira de um ente. O dizer “na” não afirma imanência contraposta à transcendência, assim
como tampouco (está) implica quietude contraposta a movimento. Ao indicar a origem do
perguntar mostramos a pergunta desde sua origem.
Pergunto-me pela origem: foi dito que esta pergunta me incumbe, mas que não é um
perguntar-me solipsista já que nesse caso a origem da pergunta estaria posta por mim e foi
mostrado que a pergunta acontece em mim, mas não desde mim.
A pergunta acontece em mim como linguagem. Pois bem, o lugar próprio da
linguagem enquanto linguagem é o diálogo. O perguntar como “logos” se abre ali
originariamente ao “diá” que o possibilita e se faz diá-logo. Esta orientação do perguntar
em direção a sua origem a veríamos já ao interpretar o sentido radical da pergunta pelo
critério de sentido da linguagem. Esta pergunta nos fazia saltar de um nível pragmático ao
abismo do perguntar que se expõe (posto que ele incumbe). Pois bem, este salto realiza pelo
(dia) outro, na linguagem (logos) e por isso acontece como diálogo.220
A questão que pergunta por música, poética e sentido tendo por horizonte a
questão que interroga pelo ser ocorre em mim como linguagem. Novamente, é preciso
cercar-se de cuidados para que a essa altura não se coloque em risco o caminho
linguagem que em mim ocorre. O perigo aqui reside no fato de rapidamente se esquecer
como uma relação em que não se ocupa posição prévia. Dito de outro modo, o diá-logo
não ocupa previamente uma posição e por isso, qualquer possibilidade de critério, isto é,
220
Capurro, 1971. Tradução nossa. Cf. original na p. 265.
140
que se vai dialogar na linguagem não se encontra ainda colocado às claras. O diá-logo
reclama para si, pois, um inter-câmbio em que de acordo com o seu desdobramento é
compreensão dessa afirmação em direção ao que aqui se põe como questão temática
para o pensamento, poderíamos proferir essa frase ainda de outro modo: “a (nossa)
221
Heidegger, 2000a:56-7. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 265-6.
141
temporalidade acontece, de maneira mais próxima e direta, o diálogo com o próprio ser.
Hölderlin não deixou de assinalar esse horizonte: “Desde que nós somos um diálogo...”.
que há o tempo, isto é, há o tempo desde que este, co-originariamente como diá-logo,
inaugura a existência. Por isso, “ambos – ser um diálogo e ser histórico”, no sentido da
dimensão disposta pelo tempo “ – são igualmente antigos, eles se pertencem, eles são o
num tempo cronologizado, mas acima de tudo reside no originário da origem. O que é
apenas na medida em que esta vige de modo não arbitrário. Pensa-se com isso, então, o
“pré” numa outra constituição que não aquela de uma simples predeterminação de toda
222
Heidegger, 2000a:57. Tradução nossa.
142
mecânica metafísica. Pensa-se o “pré” não numa constituição em que se tome o sentido
prótos, do que está à frente enquanto essencial, primeiro. Ora, o que é primeiro em
não será absurdo se dizer que o modo antecipatório da hermenêutica da faticidade possa
ser pronunciado não apenas como pré-compreensão, mas de maneira mais fundamental
No entanto, ainda se deve perguntar: o que é essa unidade do diá-logo que pelo
existência? Mais ainda: o que é unidade e o que é diá-logo? Ambas as questões podem
ser pensadas com a profundidade necessária se prestarmos atenção para o que diz
Heráclito no seu Fragmento 50: “Auscultando não a mim, mas o Logos, é sábio
concordar que tudo é um”.223 De imediato, percebe-se que o um, ou o uno mantém uma
estreita referência para com o lógos. A referência aqui não é uma mera justaposição de
elementos, mas uma referência mútua e recíproca. Nessa perspectiva, a escuta do lógos
Com o mito de Hermes, já se pôde circular em torno do que aqui agora se diz de
maneira mais explícita. Mas, para que ainda se possa aprofundar a questão de música,
poética e sentido, tendo como horizonte a pergunta pelo ser, tendo em vista a realização
de identidade e diferença, ainda será preciso realizar um percurso pelo modo como se dá
a relação de Hermes com o próprio lógos e desse com as Musas, a fim de que se
223
Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In: Os pensadores originários, p. 75.
143
conceda aqui mais claramente pensar a estreita relação entre o lógos e a unidade. Pois, é
em virtude dessa estreita relação que se pode avançar a compreensão da própria música
Como guia das almas, Hermes tem sua vigência essencial no entre-mundos e aí
unidade de identidade e diferença. Essa unidade não tem nada de uma tranqüilidade
por isso mesmo realiza-se como estável. O entre-mundos de Hermes aparece tanto mais
da unidade, uma vez que na tensão recíproca das diferenças Hermes pode instituir a
em jogo não é apenas o posicionamento antagônico dos opostos e contrários, mas mais
a envergadura de tensão das diferenças entre terra e Hades, entre divinos e mortais, ser e
não-ser, se apresenta, pois, como aquilo que mais se retrái. Por isso mesmo, o dar-se da
hermenêutica, o nome do circular pelas diferenças desse limiar. Nesse sentido, Hermes
é aquele que manifesta e conduz o lógos, não apenas por ser angelos, mas
determinante, mas como uma decorrência de sua co-incidência com o lógos. Hermes e
lógos são, desse modo, o mesmo. Tomando esse sentido como referência, a
manifestando Hermes como sua essência, ela não se apresenta circunscrita a um mero
por isso não importa aqui qual é a mensagem e muito menos o que ela quer dizer. Estas
inicialmente se manifesta é aquela que une portador e a própria mensagem de tal modo
com-unica. Assinala-se com isso que não se trata de uma mera transmissão de dados ou
antes de por-se em comum, dividir, partilhar; ter relações com; conversar, misturar.
Nada disso tem a ver com uma ciência ou tecnologia da informação que, ao contrário,
Hermes com o lógos, a hermenêutica se dá, pois, como aquela situação existencial em
145
que, através do que se compreende agora com o mito de Hermes, a mensagem e o lógos
comum-unidade com o próprio logos. Não é, pois, outro o sentido da frase “O diálogo e
no horizonte do tempo.
A palavra mythos, longe de ser uma terminologia com a qual se possa designar
do sentido do mundo na medida em que ele mesmo é posto em relação com o próprio
torna portador da mensagem das musas. Em mais uma ocasião pode-se testemunhar a
força de recolhimento do lógos na unidade do hèn pánta, de tal sorte que o poeta-aedo e
Hermes são, por sua vez, um e o mesmo. É que na máxima envergadura da mensagem, a
um mero acaso que a unidade do real possa se concretizar no seu grau mais originário
através daquilo que as Musas proferem pelo dom de Mnemósyne, isto é, Música, bem
Seu primeiro encontro no mundo Homérico traz algo muito primitivo à luz,
mitologicamente falando. A natureza fortuita desse encontro é típica de Hermes, e é
primitivo apenas na medida em que possibilidade e acaso são parte intrínseca do caos
primevo. Na verdade Hermes transfere essa peculiaridade do caos primevo – acaso – para
dento da ordem Olímpica. Hermes encontra uma tartaruga, uma criatura de aparência
primeva, pois até mesmo a mais jovem tartaruga poderia, por sua aparência, ser descrita
224
Cf. citação p. 141.
146
como a criatura mais antiga no mundo. Ela é um dos mais antigos animais conhecidos pela
mitologia. Os chineses vêm nela a mãe, a verdadeira mãe de todos os animais. Os hindus
mantém Kashyapa em honra, o “homem-tartaruga” pai de seus deuses mais antigos, e
dizem que o mundo repousa sobre as costas de uma tartaruga, uma manifestação de Vishnu:
habitando as regiões mais inferiores, ela suporta todo o corpo do mundo. O nome italiano
tartaruga mantém viva a designação datada da alta antiguidade, de acordo com a qual a
tartaruga sustenta a camada mais baixa do universo, chamada de Tartarus
(Tartarou~co").225
Desse encontro fortuito surge, por invenção de Hermes, a lira com a qual
possibilidade e acaso. Esses aspectos marcantes de um caos originário não apenas são
introduzidos por Hermes na ordem do Olimpo, mas por ser sua a invenção da lira, não
seria de modo algum absurdo dizer que no seu aparecimento incorpora-se nela
igualmente esse traço de possibilidade e acaso como seu constituinte. Hermes recolhe
Hermes é a reunião de caos e cosmos como a unidade mitológica originária. Porém, não
Hermes, mas é ela mesma, além do delfim, uma das formas do próprio Apolo.226 Por
outro lado, delphin é uma variação posterior de delphi,227 ou Delphi, nome do local
onde foi erguido o Templo de Apolo e onde este colocou o seu famoso oráculo. No
entanto, não se trata de uma mera coincidência o fato de o símbolo mais característico
225
Kerényi, 1993:57. Tradução nossa da versão inglesa transcriata na p. 266.
226
Kerényi, 1993:57.
227
Cf. entrada no Projeto Perseus.
228
Representação do deus Hermes, ger. constituída pela cabeça, pescoço e parte do tronco, erguida sobre
um pedestal prismático e alto ou sobre uma hermeta, e us. pelos antigos gregos como marco indicador nas
encruzilhadas, ao longo de estradas, nos ginásios etc. In: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa.
147
nome que o oráculo de Apolo: “A herma original ficava na montanha onde a criança
Hermes nasceu numa caverna. Esta caverna era um lugar do caos primevo, a natureza
do qual é indicado no nome “Delphi”229. Desse modo Apolo aponta com seu oráculo
para Hermes na medida em que este aponta para aquele com a lira. Nessa mútua
referência vige a mais pura possibilidade de reunião entre Hermes e Apolo. Por isso,
através da lira, Hermes concede a Apolo o dom de sua música inaudita ao mesmo tempo
Hino, quando Zeus, após ouvir a defesa de Hermes diante da acusação de Apolo,
gado de Apolo:
(...) ele [Zeus] ordenou a ambos que se unissem em espírito e procurassem o gado, e
Hermes o condutor a guiar o caminho.230
característica, como mostrará posteriormente o Hino (475-78), mas para que isso
Apolo seu irmão (ambos são filhos de Zeus) como o seu mais antagônico. No Hino,
Hermes já declarara que poderia, se quisesse, pilhar231 os tesouros de Apolo. Ele possui
latência, esse poder sofre refreio pela unidade com Apolo. No horizonte aberto por essa
229
Kerényi: 1993:56.
230
Hino a Hermes, 391-392. A mesma fórmula (homophrona thumon echontas) é utilizada por Hesíodo
para indicar a união de Mnemósyne e Zeus, a origem das Musas (Teogonia, 53-62).
231
Idem, 175-81.
148
mútua referência circula uma intimidade de Hermes e Apolo em que, pela lira, se dá a
“Alegria e amor e doce sono” são, de acordo com Apolo, as dádivas dessa arte
Hermética, a qual Hermes traduz em revelação de sua essência. Originalmente, música era
uma dádiva de Hermes, e nos sons de syrinx ela assim permanece. Esta não é música
Apolônica.232
De fato, Apolo reconhece a realização de Hermes como algo que difere de tudo
conhecido:
Mas aproxime-se agora, diga-me isso, desembaraçado filho de Maia: esteve essa coisa
maravilhosa com você desde o seu nascimento, ou algum deus ou mortal a deu a você – um
nobre presente – ou ensinou a você canção tão celestial? Pois prodigioso é esse novo-
proferido som que eu ouço, semelhante ao qual eu juro que nem homem nem deus algum
habitando no Olimpo jamais conhecera além de você, oh furtivo filho de Maia. Que
habilidade é essa? Que música de irresistíveis preocupações? Qual o caminho até ela? Pois
em verdade aqui três num todo se apresentam ao mesmo tempo que se pode escolher:
alegria, e amor, e doce sono.233
mais contundente em razão de uma música jamais ouvida antes surgir exatamente de
Hermes. Porém, a condição inaugural dessa música, retirando o seu vigor da natureza
próprio Apolo, seguidor das Musas Olímpicas, com as bênçãos de Zeus alça Hermes a
E embora seja eu um seguidor das Musas Olímpicas que amam danças e os caminhos
luminosos da canção – canto cheio de som e a vibração encantadora das flautas – ainda
232
Kerényi, 1986:26-7, a respeito da passagem do Hino a Hermes, 449. Tradução nossa a partir da versão
inglesa transcrita no Apêndice I, p. 266.
233
Hino a Hermes, 439-449. Tradução nossa da versão inglesa de Hugh G. Evelyn-White. Projeto
Perseus. Cf. Apêndice I, p. 266.
149
assim nunca eu me tive o cuidado por qualquer desses feitos de habilidade nos festejos da
juventude, como eu agora tenho por isso: eu estou cheio de admiração, oh filho de Zeus,
por sua doce execução musical. Mas agora, já que você, embora pequenino, tem habilidade
tão gloriosa, sente-se, caro menino, e respeite as palavras de seus anciãos. Pois agora você
terá renome entre os deuses imortais, você e sua mãe também. Isso eu direi a você
francamente: por essa lança de madeira de salgueiro eu certamente farei de você um líder
renomado entre os deuses imortais, e afortunado, e te darei dons preciosos e não te
enganarei do princípio ao fim.234
Da fúria por Hermes ter roubado o seu gado, Apolo passa à admiração pelo filho
a simples identificação entre o roubo e Hermes é o fato que dirige a ira de Apolo, a
surpreende com a música que houve e com o fato de Hermes ser aquele que a realiza de
acordo com sua própria invenção. Para Apolo, agora é inevitável perceber Hermes em
identidade com a música. E é tão somente por essa identidade que poderá Hermes
conceder a Apolo o seu próprio dom, do mesmo modo que fizera Apolo ao nomeá-lo
Em Hermes, Apolo reconhece aquilo que já no Hino fora explicitado e que ele
Repentinamente ele começou a tocar a lira mais alto, recitando um prelúdio – e o som
que o acompanhava era encantador – sobre os deuses imortais e a terra sombria, como eles
eram no princípio, e que prerrogativas cada um tinha. E a primeira dentre os deuses que ele
celebrou com sua canção foi Mnemósyne, Mãe das Musas, pois o filho de Maia era um
234
Hino a Hermes, 450-463. Tradução nossa da versão inglesa transcrita na p. 267.
235
Hino a Hermes, 255.
236
Idem, 464-466; 475-478. Tradução nossa da versão inglesa transcrita na p. 267.
150
discípulo dela. E todos eles, todos os deuses imortais, de acordo com a idade e como cada
um nasceu, o glorioso filho de Zeus recitou, cantando-os todos em ordem, tocando sua lira
em seu braço.237
mesmo dar posse a Apolo de sua arte. Discípulo de Mnemósyne, Hermes encontra-se em
unidade com as Musas. Discípulo aqui significa no caso de Hermes estar convicto em
Mnemósyne. Ela é fonte tanto das Musas como, de um outro modo, de Hermes, na
medida em que por sua convicção ela o possui. A grande deusa Mnemósyne é fonte
tanto do que se mostra como do que se encobre. Só ela possui o poder tanto de velar
presentes pelas vozes das Musas”.238 Nessa perspectiva, Mnemosyne outorga a Hermes,
de outro modo, a mesma voz que de modo radical redime do Esquecimento: Hermes
pode, por isso mesmo, ser aquele que tanto redime, como também aquele que conduz
próprio Hermes diante de Zeus. Este, após ouvir Apolo a respeito do roubo de seu gado,
recebe Hermes, que se defende assim iniciando: “Zeus, meu pai, realmente eu te falarei
a verdade; pois eu sou verdadeiro e não posso contar uma mentira”.239 Ao se examinar,
porém o texto grego, verdade e mentira não são aqui excludentes, simplesmente por não
237
Idem, 425-433. Tradução nossa da versão inglesa transcrita na p. 267.
238
Torrano, 1991:27.
239
Hino a Hermes, 368-9. Tradução nossa da versão inglesa de Hugh G. Evelyn-White. “Zeus, my father,
I will speak truth to you; for I am truthful and I cannot tell a lie.”
151
primeira palavra a ser pensada aqui,, significa comumente, mentira. Antecedida por ouk
oida – não saber – porém, o sentido da segunda oração já apareceria como algo diverso,
dizendo: “pois eu sou verdadeiro e não sei mentiras”. Ora, uma coisa é não poder contar
mentiras, muito embora o texto não revele em virtude de que Hermes não pode contar
uma mentira. Pois, mesmo que se leve em consideração que nemertés, o primeiro termo
modo algum como impedimento para que se venha aqui ou ali contar mentiras. Porém,
não contar mentiras por que não pode, mas porque não sabe fazê-lo é ainda uma outra
coisa bem diferente. Há nesse “não saber mentiras” uma impossibilidade radical,
mesmo se se considerar que psêudesthai seja tomado em sua acepção mais corriqueira.
Quer queira, quer não, o saber a mentira determina, esse sim, quem pode ou não contar
mentiras. Por isso ao se tomar Hermes como um enganador, aquele que confunde, será
preciso pensar de que modo ele confunde e engana, já que não sabe contar mentiras.
Para isso, é necessário em primeiro lugar rever o que nemertés diz, uma vez que
na acepção corrente traduz-se por “verdadeiro”. Ocorre, todavia que verdade em grego
pela tradição do pensamento que o verte como verdadeiro, mas sim como aquele que
não erra, que é incapaz de erros. Ora, na tradição filosófica do ocidente, como se viu
anteriormente240, o erro se liga ao falsum pela posição que se ocupa a priori por
afirmação de Hermes. Desse modo, tomar nemertés como “infalível ou incapaz de erro”
pode colocar desde já o pensamento da frase de Hermes numa compreensão livre das
lançá-lo em meio à compreensão do que é a verdade como uma dinâmica. É desde esta
que se pode também desconfiar que a palavra psêudesthai queira dizer apenas e tão
somente “mentira”. Pois, prestando atenção ao o fato de que numa concepção ainda não
significar aquilo que se opõe a alétheia, chega-se então a pensar o sentido de mais além
desse modo, seria possível alcançar uma outra compreensão, mais originária e, por isso
mesmo, mais inquietante da segunda frase como: “pois, incapaz de erros eu sou e não
inquietante, já que de acordo com a primeira frase, ele diz que “falará realmente a
compatibilidade com a segunda, que diz que mesmo incapaz de erros, ele não sabe
enganar por meio de mentira? A princípio, se não se pode enganar por meio de
mentiras, muito menos por meio do falar a verdade. Essa incompatibilidade não possui
153
solução metafísica possível e por isso, se tomada desde essa perspectiva, deve ser logo
descartada. Além disso, percebe-se que não apenas a primeira sentença é incompatível
com a segunda, mas também a segunda frase possui uma contradição. Aqui Hermes não
afirma coisa alguma a respeito da mentira, mas, ao contrário, ele profere duas negações
da ausência de capacidade para o erro. A segunda negação diz respeito a não saber
enganar por meio de mentira, o que de maneira alguma quer dizer que Hermes não saiba
enganar, habilidade que aliás o próprio Apolo lhe reconhece a maestria. Levando em
conta essas considerações, a frase poderia agora figurar da seguinte maneira: “pois não
sendo capaz de erro, não sei enganar por meio de mentira”. Não ser capaz é o indicativo
de que Hermes não possui as qualidades necessárias ao desempenho do erro e por isso
não engana pela mentira. Enganar não é algo então que Hermes faça por meio de
mentiras, mas por meio do que ele explicitamente afirma na primeira frase:
“Zeus, meu pai, realmente eu te falarei a verdade”. Para efeito de clareza, pode-
se dividir essa frase em duas partes. A primeira: Zeu páter, ê toi ego; a segunda: soi
aletheíen kataléxo. Essa divisão está bastante demarcada pelo uso de toi e soi, ambas as
formas do pronome sý241, segunda pessoa do singular “tu”, que na sentença indica para
quem Hermes se dirige: Zeu páter. Na primeira parte da sentença, Hermes diz a Zeu
páter: ê toi egó. Tomando a tradução de ê não como “realmente”, mas como a
confirmação de uma asserção, essa primeira parte da sentença pode ser pensada como
uma afirmação do tipo – “a ti asseguro eu” – e, portanto, pode ser compreendida como a
241
su/
154
confirmação de Hermes perante Zeus de que ele fará um soi aletheín kataléxo. Diz
sentido da segunda parte da sentença, enganar não é algo que Hermes faça por meio de
mentiras, mas por meio do que ele explicitamente afirma na primeira frase: “Zeus, pai, a
ti asseguro te falarei a verdade”. Mas... será? Afinal, que verdade pode ser essa se na
segunda frase, como se chegou a pensar acima, Hermes diz tão somente que não engana
por mentiras, que não é capaz de errar, mas não nega que seja capaz de enganar? A
que a verdade é tomada no sentido do verum e que exclui o engano como possibilidade.
que a própria alétheia conserva-se refém de uma interpretação metafísica. Afinal, que
há de mais comum do que falar a verdade por oposição excludente ao falar a mentira?
entendimento de kataléxo como falar, é o falar que convoca alétheia. Enquanto não se
inverter essa formulação, não há, ainda, de modo bem disposto a possibilidade de se
nem sobre. Ir além de uma interpretação filológica de kataléxo requer que se discuta
enquanto proferição enunciativa, mas que se vá mais a fundo no fato de ser kataléxo a
isso, remete o pensamento para além do falar. Pois, uma vez que o próprio falar é um
modo do légein,242 resta perguntar em que sentido o próprio légein vai mais além do que
o falar? O légein possui, de um lado, o próprio falar, mas na medida em que seu vigor se
manifesta como a essência do lógos. Esse vigor do légein, antes mesmo do falar, possui
o sentido de pousar, colher e reunir. Kataléxo reforça ainda mais a noção de que ao
mesmo tempo em que o légein colhe e reúne, ele o faz porque pousa e dispõe.
Kataléxo, por outro lado, como a palavra de Hermes remete-o ainda uma vez
mais para suas origens ctônico-titânicas – este o sentido de kata em composição com a
variação léxo (de légo) – ao mesmo tempo em que o coloca no diá-logo com Zeus em
mais essencial, Hermes não diz porém de si mesmo, mas em virtude mesmo dessa
unidade diz a Zeus: soi aletheín kataléxo – te disporei e reunirei a a-létheia. Nesse
sentido, pode se antever que a sentença, que apresentava uma incompatibilidade de suas
partes, inicia uma reconciliação e daí em diante pode ser compreendida de um modo
Hermes pronuncia essa frase desse modo, é que ele pode então concluir a sentença
dizendo não ser capaz de erros e não saber enganar por meio de mentira.
E é somente nesse sentido disposto pela primeira frase que Hermes manifesta
a execução da lira243, Hermes apresenta uma teogonia completa. O fato aqui é que não
lira como manifestação de sua natureza essencial, isto é, como manifestação da unidade
242
le/gein.
243
Hino a Hermes, 425-433.
156
com sua música, poetiza a ordem do universo. Uma tal poesia se dá como produção do
sentido do mundo de tal modo impressionante que Apolo não o transforma, mas
reconhece nele, Hermes, o líder entre os deuses imortais. Ainda, do mesmo modo que
Hesíodo começa com o louvor às Musas, o deus Hermes inicia sua ordem musical do
mundo numa anterioridade ainda mais aquém em direção à fonte: a grande deusa
A Grande Deusa Mnemosyne (...) pode ser comparada a uma fonte (Quelle) por
diversas razões. (Não é sem sentido que ela tenha uma nascente – Quelle – em Lebadeia;
também é significante que suas filhas sejam figuras análogas a Deusas de nascentes.) Ela é
memória como o fundamento cósmico da auto-recordação a qual, semelhante a uma
nascente eterna, nunca cessa de fluir. Ela até mesmo concede, de novo precisamente através
da Musas, agradáveis, curativos lapsos de memória (Teogonia 55); nesses não se esquece a
si mesmo, mas apenas o que é destinado a ser esquecido. Por essa razão as bênçãos de
Mnemosyne auxiliam os mortos e os poetas: os primeiros ela não permite desidratarem-se,
nos seguintes ela origina o transbordamento. No Hino ela aparece como a Deusa que está
colocada sobre Hermes como um daimon do destino. Esse é o significado do texto original:
he gar lache Majados huion (“Pois ele foi ordenado o filho de Maia”). É o destino de
Hermes que para si mesmo e para aqueles com ele não haja chance de se perderem. Ele
jamais pode escapar da memória. Ele é possuído por ela, e a leva como o conhecimento
herdado de todas as fontes primordiais do ser.244
pela memória à a-létheia. Nessa destinação, Hermes está livre do erro, mas não da
errância: este o sentido mais intimamente ligado à própria a-létheia. Pois, no erro pode
unidade do real como música. Essa unidade, reunida na lira, se constituiu na própria
divindade do deus.
244
Kerényi, 1986:31-2. Tradução nossa da versão inglesa transcrita na p. 267-8.
157
Hermes.
dimensões primevas a palavra. Tal força nomeadora da palavra já era conhecida pelos
antigos gregos. Essa força nomeadora se dá pela constituição da palavra como dimensão
nomeação do real em comunhão com o próprio som. Nesse sentido, o som se apresenta
245
Kerényi, 1993:58. Tradução nossa da versão inglesa transcrita na p. 268.
158
constitui com este o poder de fazer aparecer e de manifestar sentido do real. Do mesmo
modo que não há mito sem rito, não há palavra sem som. Na tradição metafísica do
ocidente foram estas duas substituições fundamentais: o mito pela filosofia e o som da
palavra pelo suporte da escrita. A poesia mítica, no entanto, marcada pela oralidade
como o traço fundamental da constituição de sentido do real e das coisas com o som,
mantém em unidade o poeta, aquele que profere a palavra como aquilo mesmo que dá
sentido.
sentido. O sentido é aquilo que pode ser articulado na abertura da compreensão, sendo
246
Torrano, 1995:16-7
159
articulação do sentido. Pois é o som que antes de tudo se articula, em sua oposição
linguagem: a escuta.
Não é por acaso que dizemos que não "compreendemos" quando não escutamos
"bem". A escuta é constitutiva do discurso. E, assim como a fala está fundada no discurso, a
percepção acústica também se funda na escuta. Escutar é o estar aberto existencial da pre-
sença enquanto ser-com os outros. Enquanto escuta da voz do amigo que toda pre-sença
traz consigo, o escutar constitui até mesmo a abertura primordial e própria da pre-sença
para o seu poder-ser mais próprio. A pre-sença escuta porque compreende. (...)
É com base nessa possibilidade de escutar, existencialmente primordial, que se torna
possível ouvir. Trata-se de um fenômeno ainda mais originário do que aquilo que a
psicologia determina "imediatamente" como ouvir, ou seja, a sensação dos sons e a
percepção dos tons. Também o ouvir possui o modo de ser de uma escuta compreensiva.
"Em primeiro lugar", nós nunca escutamos ruídos e complexos acústicos. Escutamos o
carro rangendo, a motocicleta. Escuta-se a coluna marchando, o vento do Norte, o pica-pau
batendo, o fogo crepitando.
É indispensável uma atitude artificial e complexa para se "ouvir" um "ruído puro".
Entretanto, o fato de ouvirmos primeiramente motocicletas e carros constitui um
testemunho fenomenal de que a pre-sença, enquanto ser-no-mundo, já sempre se detém
junto ao que está à mão dentro do mundo e não junto à "sensações", cujo turbilhão tivesse
de primeiro ser formado para propiciar o trampolim de onde o sujeito pudesse pular para
finalmente alcançar o "mundo". Sendo, em sua essência, compreensiva, a pre-sença está,
desde o início, junto ao que ela compreende.248
Articulado desde a escuta, o som não representa, isto é, não instala a sujeição do
não basta haver som para automaticamente se dar o sentido. Não é o som que pressupõe
o sentido, mas antes é este, que em sua manifestação deixa o som aparecer como som.
247
Heidegger, 1993:208.
248
Heidegger, 1993:222-3.
160
Por isso, mesmo onde a palavra falta como palavra a música vai justamente se constituir
sentido do ser na pureza do som. Pureza do som aqui se trata da renúncia que o poético
se perde e se deixa escapar o sentido do ser como esquecimento. Nesse sentido, não
apenas onde a palavra falta se dá a ausência da vigência de ser, mas também onde a
vigência do que é se esvai. O poético é a renúncia a ter poder sobre a palavra e sobre a
coisa que ela nomeia. O poético se dá sempre, então, como o passo aquém da mera
vocalização dos sons como palavra para, como música, constituir um outro mélos do
primordial. Por isso, o recusar-se a “dizer” da música, antes mesmo de se poder pensá-
lo como um calar das palavras, permanece como a pronúncia essencial de todo dizer que
mostra e faz brilhar, isto é, preserva o que na palavra é essencial: a nomeação do sentido
do ser. Em toda nomeação do sentido do ser o poético canta a renúncia da palavra como
música.
tempo um deixar aparecer o que brilha como sentido. O recolhimento que dispõe é o
lógos e o que mostra é alétheia. Nesse sentido, a música repõe a dimensão do sagrado
249
Heidegger, 2003:181.
161
inaudito. A música transige para o nada que é tudo, a música dá-se cosmogonia do
para articular o ser como um dizer indizível, mas pleno de sentido. O que na música se
dá como música é a recusa da reivindicação da coisa pela palavra. Desse modo, toda
Música e Memória
Verdade e Memória
Procura-se aqui fazer uma experiência com a música. Não somente isso, mas se
busca percorrer o caminho de uma experiência com música, poética e sentido. Note-se,
primeiramente, que não é uma experiência de ou da, muito menos uma experiência de
alguém, mas antes uma experiência com. Isto quer dizer: qualquer experiência que aqui
lugar, dado que a experiência de que aqui se fala parte da con-juntura, isto é, da reunião
em unidade, não é possível compreender tal experiência com como algo que se efetue
menos impregnada de metafísica, toda experiência com significa em geral, antes e acima
Por mais atual que seja, nenhuma historiografia pode superar o que historicamente se
abre e se envia como destino. Nesse destino histórico a humanidade se torna cada vez
e semelhança.
sentido desde o impensado na origem. Este impensado permanece como aquilo que a
deixa apropriar por um sistema de redução lógica e racional, sob pena de não mais ser
inaugural. Na origem apenas e tão somente se presenta o que origina e o que perdura
como originado, de tal modo que pensar a origem é sempre um pensar memorável. Na e
pela memória das origens dá-se o pensar do que é digno de ser pensado. Isto quer dizer,
originantes”.250 Por isso, a experiência com de que aqui se trata não pode se dar nos
experiência com o que se dá de modo inaugural, isto é, com o que in-voca e e-voca a
250
Souza, 2001/2:31.
164
bem-sucedida, e em que extensão o que talvez seja bem-sucedido consiga alcançar cada
um de nós em particular”251. Por isso, a experiência que aqui se empreende com música,
poética e sentido não tem qualquer compromisso com a efetuação de um efeito, seja ele
mal ou bem-sucedido. Com esta experiência não se pretende uma operação que coloque
em sucessão ação e resultado e, portanto, não tem qualquer compromisso com o êxito.
não se tem qualquer compromisso com o fracasso. Somente onde domina totalmente a
estes não é mais um experimento de laboratório, entre outros tantos, determinados desde
o controle e parâmetros prévios. Esta experiência não se funda, pois, desde um sistema
de causa e efeito, da causalidade da causa eficiente, uma vez que parâmetros de controle
não sua unidade. Somente quando impera esta separação é que pode a música ser apenas
251
Heidegger, 2003:122.
165
Esta não é uma mera separação, pois este separar não somente designa promover
qualquer realidade como a relação modelar sujeito-objeto. Nessa relação o único modo
ser inter-pretado, mas sim medido e calculado e a partir disso, dis-posto numa e por uma
Não é este, definitivamente, o sentido que se tem em conta aqui com a referência
ao fazer uma experiência com a música. Meditando o sentido desse “com” de outro
modo, pode-se então compreender a experiência aqui mencionada como trazer ao vigor
duzir. Os gregos chamaram isto com a palavra poiésis. Um tal acontecer não se diz um
252
Souza, 1999:85-6.
253
Cf. Heidegger, 2001:39-60.
166
acontecer como, tão pouco se diz aqui que na vigência é que acontece a poiésis. Ao
metafísica se diz aqui que a vigência, que não é uma presença pura, mas implica
mero aspecto lingüístico da língua implica também que não há em foco nenhuma
vigente, de tal maneira que não importa aqui em que ordem um e outro possa aparecer
Somente assim, o próprio sentido chega a se constituir como a mais pura referência e
manifestação dessa comum-união. Desse modo, esse fazer dessa experiência como um
na e em experiência, de tal modo que não se parte da mera separação dos opostos, mas
os poetas nunca deixaram de pro-duzir, quer o saibam ou não; esse fazer não se dá num
originária da poiésis.
Com a poiésis não há idéia alguma pura e simplesmente dada na razão que possa
ser uma abstração apenas e nem a idéia como modelo de cálculo assegurador
unidimensiona todo o real como sua imitação imperfeita. Com a poiésis dá-se ser num
167
puro dar-se à presença. Por isso mesmo, é preciso levar a sério que um tal dar-se à
presença também reserve um dar-se ausência. Com a poiésis dá-se vigência da presença
em toda sua envergadura e isso quer dizer, naquilo em que na constituição da vigência
do que figura no intelecto de um sujeito. O testemunho dado pelo poeta diz a poiésis
próprio Platão: “Todo dixar-viger o que passa e procede do não-vigente para a vigência
é poiésis, é pro-dução”.255 O dizer dessa passagem dá-se manifestação do ser. Isto quer
dizer: a poiésis manifesta o ser. Manifestar traz à presença o que se desvela. Ao ser
passagem do não-ser para o ser, a poiésis acontece a verdade. Mais uma vez, é preciso
transitar da latência para a ilatência em plena con-juntura com a poiésis. Nessa con-
254
Barros, 1998:17.
255
Banquete, 205b, cit. e traduzido por Heidegger, 2001:16.
168
Isto quer acima de tudo dizer que o que emerge e chega como des-encoberto no
afirmação daquilo que no velamento constitui, em última instância, sua essência mais
íntima – o guardar em vigília. Des-velar não é a pura e simples eliminação do velar, mas
256
Heidegger, 1992b:132. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 268.
257
Grifo nosso. Frase adicionada na tradução inglesa do original alemão.
169
Nós vemos isso primeiro tendo em vista lh/qh e seu permanecer, que retira para a ausência e
aponta para um desaparecer e um retirar-se.258
vigor das origens.261 Esse conflito é originário e instaurador de ser, portanto, poético. O
Andenken)”262 dá-se aqui como a própria permanência de léthe como latência. A relação
velado re-memora o pertencimento a sua essência. Esta diz antes de tudo que o que
permanece no desvelado conserva como possibilidade mais própria o caráter que lhe
Pois, o ser dos entes dando-se ser – por diferença ao ente – deixa mostrar o próprio ente
e nunca o próprio ser. Por isso, na proximidade com o ente é o ser, como o mais
próximo, que desaparece e se retira. Não obstante o ser se dar num mostrar e aparecer,
o des-velar auto-velante.
258
Heidegger, 1992b:133. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 268-9.
259
Cf. Capítulo II, p. 101ss.
260
Assinala-se que a relação de descendência entre Nýx, Éris e Léthe implica que uma manifeste a
essência da outra. Sobre isso, Torrano nos diz: “Uma lei onipresente na Teogonia é que a descendência é
sempre uma explicitação do ser próprio e profundo da Divindade genitora: o ser próprio dos pais se
explicita e torna-se manifesto na natureza e atividade dos filhos” (Torrano, 1995:31).
261
Cf. Kerényi, 2000:16-19.
262
Souza, 2001/2:31.
263
Tà phanerótata pánton.
170
preservam o ser em toda sua envergadura, isto é, em seu dar-se e em seu retrair-se.
Desse modo, com alétheia o que se des-vela completamente nunca é propriamente o ser,
mas a dinâmica do seu sentido. Esse des-velar-se por completo quer também dizer: re-
juntura com o ser. Por isso, a relação essencial entre alétheia e léthe pode ser
é com base nessa relação essencial que alétheia perfaz ainda uma outra referência
essencial.
264
Ta te phýsei phanerótata pánton.
265
Perì physeos.
266
Heidegger, 1992b:139. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 269.
171
da Ilíada (358ss) que narra a morte, os rituais e funerais de Patroclos, amigo de Aquiles.
Aquiles no plaino
liso a meta lhes mostra, distante. Por árbitro,
põe Fênix, quase-um-deus, companheiro do pai,
a vigiar a corrida e atestar a verdade.268
O verso 361 pode ser ainda traduzido numa versão um tanto menos moderna. A
corrida, não para atestar a verdade, mas para que se possa declarar como proclamação –
manter em lembrança ou, como diz o verbo mémnemai do qual mimnésko se deriva, um
mimnh/skw.
270
271
a)poei/poi.
272
a)lhqei/hn.
172
isto quer dizer: o que chega ao desvelado e aí se mantém como memória do ser preside
presença. Nesse sentido, a origem essencial da poesia para o grego é Mnemósyne: nela a
alétheia acontece como a livre e primordial salvação e conservação do ser; sem ela o
próprio poetizar careceria do que poetizar uma vez que com a subtração da memória se
dá a própria subtração do ser. Para este se orienta toda poética como realização da
Por isso mesmo, o poeta não invoca as Musas, filhas da Memória, apenas como
um aspecto decorativo de sua poesia. Também não o faz por ser uma regra formular
para a conservação oral. Não é o oral nada de deficiente ou inferior ao signo grafado
para que necessite de fórmulas que garantam a conservação do que nele é dito. Muito ao
e do dizer. Não é a palavra que necessita de conservação por meio de fórmulas, mas é
ela que deixa vir ao sentido e aí conserva o brilho manifestativo da memória do ser. O
ser não necessita de modo algum de objetos para sua concretização, mas a palavra para
isso lhe é vital. Tão pouco o poeta invoca a deusa Mnemósyne e suas Musas
273
Cf. Castro, 1997:177-9, a respeito dos sentidos da palavra música.
173
(...) a proferição da palavra poética é o dito [der Spruch] e a canção [das Lied] do Ser
ele mesmo, e o poeta é apenas o e(rmhneu/j, o intérprete da palavra. O poeta não invoca a
deusa, mas ao contrário, mesmo antes de dizer sua primeira palavra é ele quem é invocado
e já mantém-se no interior do apelo do Ser versus o retraimento “demônico” do
encobrimento.274
como essência de toda solenidade, pois solene quer dizer: o que é con-sagrado. A con-
deusa e poeta. Na unidade de tudo que é solenemente con-sagrado como unidade o ser
aparece como daimónion de todo ordinário. Esta palavra mal interpretada no ocidente
cristão mantém, na verdade, uma relação com o divino enquanto instauração do sagrado
em meio ao ordinário e remonta ao radical indo-europeu *dei276. Ora, o que este radical
manifestação do mistério, não como algo a ser elucidado e esclarecido, mas do mistério
enquanto mistério, isto é, enquanto vigência retraente, como ilatência latente ou latência
ilatente. Por isso, coisas das mais simples e ordinárias deixam figurar o aspecto
O misterioso é aquilo do qual tudo que é ordinário surge, aquilo no qual tudo que é
ordinário é suspenso sem jamais decair, e aquilo para o qual tudo que é ordinário retorna.
274
Heidegger, 1992b:127. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 269.
275
Cf. Castro, 1997:179-84.
276
Cf. Capítulo II, p. 92.
174
277
To\ daimo/nion é a essência e o essencial fundamento do misterioso. Ele é o que se
apresenta no ordinário e toma nisto sua moradia. Apresentar-se no sentido de apontar e
mostrar é em Grego dai/w (dai/ontej – dai/monej)278.
Estes não são “demônios” concebidos como maus espíritos se debatendo; ao contrário,
eles determinam antecipadamente o que é ordinário, sem derivar-se do ordinário. Eles
indicam o ordinário e apontam para ele.279
que configura todas as possibilidades do ente. Nessa ambigüidade o ser brilha nos entes
dizer iluminar, aparecer como luminoso. O luminoso vem ao encontro do olhar apenas
enquanto este apreende a fisionomia do que brilha e se ilumina. Por isso, o que vem ao
encontro do olhar como aspecto e fisionomia o faz antes de qualquer coisa porque o que
brilha é nada mais, nada menos do que a manifestação do sentido. Somente porque o ser
brilha, isto é, se manifesta em primeiro lugar como sentido, é que o próprio olhar é
Aspecto em grego é eidos, mas como idéa foi pensado como o que se configura
enquanto eidos não pode em grego ser pensado como uma vigência oriunda do cálculo
racional do intelecto, mas o aspecto daquilo que cheio de sentido manifesta o ser. Por
isso, o que vige em plenitude de sentido diz uma e a mesma coisa, a saber, plenitude de
modo que a tradição poética grega está confiada não à imagem modelar do que se
adquirir uma vigência puramente intelectiva, se é que isto é possível, a poiésis des-vela
o ser pelo e no dizer manifestativo, isto é, aponta para o aspecto, o perfil (eidos) que
277
Tò daimónion.
278
Daío (daíontes – daímones)
279
Heidegger, 1992b:102. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 270.
175
brilha como sentido do ser. Por isso, a poiésis é uma onto-logo-fania, a unidade do ser,
crescente da bio-tecnologia. É que toda ciência objetiva acima de tudo dispor o que se
medida e da identidade.
280
Capurro, 1983. Tradução nossa. Cf. original na p. 270.
176
de informação só pode ser sim ou não, zero ou um. Não há meio termo, muito menos os
dois termos simultaneamente. Isto contrariaria por completo as leis da razão que se
Há que se assinalar, no entanto, que esta forma é apenas a mais grosseira das
moderna. Não apenas isso, mas se trata da mais grosseira redução da linguagem do
sentido do ser à mera precisão da significação terminológica. Essa mais grosseira re-
como pura informação é o primeiro e mais evidente reflexo do domínio das ciências da
violência dessa representação se dá como tal apenas por ser gritante o caráter
281
Cf. Heidegger, 2001:24.
282
Heidegger, 1995b:25-6.
177
técnica é exata e por isso passa a uma vigência de pensamento que se faz lei. Como tal,
dificulta qualquer objeção em virtude de seu caráter de exatidão.283 Esta é uma exatidão,
porém, que não co-responde a divinação da Memória. Divinar aqui quer dizer: trazer ao
brilho do aspecto o que se des-vela no desoculto como sentido do ser. Em toda forçação
ao exato na armação de mundo pela técnica não há espaço, nem tempo mais para a
informação pretende exaurir por completo qualquer possibilidade que divinando, escape
asseguramento do real.
instauração de mundo:
Os sabiás divinam.284
Esse divinar é o condão não de refletir sobre as coisas, mas de sê-las, como o
próprio poeta disse anteriormente. Não se pode de modo algum, entretanto, confundir
aqui esse refletir com o próprio pensar. Aqui, refletir significa calcular, isto é, o modo
283
Cf. Heidegger, 1995b:17-20.
284
Barros, 2000, p. 53.
178
verdade, como des-encobrimento que preserva a latência, para a verdade como correção
cálculo da medida.
Uma frase de Max Planck diz: “real é o que se pode medir”. Isso significa: a decisão
do que deve valer, como conhecimento certo para a ciência (...), depende da possibilidade
de se medir e mensurar a natureza, dada em sua objetidade e, em conseqüência, das
possibilidades dos métodos e procedimentos de medida e quantificação. Esta frase de
Planck só é correta por expressar algo que pertence à essência da ciência moderna e não
apenas das ciências naturais. O cálculo é o procedimento assegurador e processador de toda
teoria do real. Não se deve, porém, entender cálculo em sentido restrito de se operar com
números. Em sentido essencial e amplo, calcular significa contar com alguma coisa, ou
seja, levá-la em consideração e observá-la, ter expectativas, esperar dela alguma outra
coisa. Nesse sentido, toda objetivação do real é um cálculo, quer corra atrás dos efeitos e
suas causas, numa explicação causal, quer, enfim, assegure em seus fundamentos, um
sistema de relações e ordenamentos.286
psíquico não apenas nas ciências naturais287, mas fundamentalmente na própria cisão
285
Cf. Heidegger, 2001:40.
286
Heidegger, 2001:49-50.
287
Cf. Capurro, 1983.
179
do sujeito. O sujeito é, pois “aquilo o que subsiste no fundo, o que subsiste como
fundamento, para um enunciado sobre ele”289. Desse modo, a memória possui o seu
No entanto, todo cálculo que identifica e re-presenta o faz mediante o que está
como fonte de energia. Mas a natureza mesma é ambígua, uma vez que entregue a si
mesma jamais poderia decidir sobre essa possibilidade e, no entanto, ao mesmo tempo,
respeito da natureza como fonte de energia. Muito embora se tenha em conta cálculo e
não se pode contornar o fato de que ele mesmo é um surgimento que se funda na própria
phýsis e com ela se mantém em conflito e tensão.290 Por isso, o surgir da natureza como
fonte de energia chega até esta possibilidade, não pela técnica, mas antes de tudo pela
288
Capurro, 1983. Tradução nossa. Cf. original na p. 270.
289
Heidegger, 1999b:21.
290
Cf. Heidegger, 2000a:116-7.
180
Nessa abertura o mundo se funda sobre a terra e a terra irrompe no mundo, isto é, o que
se constitui como sentido do ser se funda sempre sobre o que sendo fundante se retrai e
real não funda absolutamente nada, ao contrário, depende do que lhe é prévia e
animais, seria possível pensar que o campo fosse o mesmo tal qual o é hoje.292
Colocando-se nele, por exemplo, lebres que agora encontram raízes para se
alimentarem, o mesmo campo se constitui daí em diante como algo diferente, a saber,
como fonte de alimento. Porém, a própria lebre não sabe nada do campo, nem mesmo o
sabe como fonte de alimento. Isto quer dizer: não sabe o campo como possibilidades de
ser e existir. Não o sabe, não por que lá no campo não viva, não se alimente, não se
o reproduzir e o morrer não alcançam a lebre como sentido, mas apenas como pré-
291
Cf. Heidegger, 1990:46ss.
292
A ilustração do campo é transportada aqui do filósofo alemão Erich Rothacker (Gedanken über M.
Heidegger, 1973) citado por Capurro, 1983.
181
pobre animal, mas diz antes de tudo de uma ausência: a ausência da linguagem. A
linguagem funda o mundo por que deixa o ser se des-velar como sentido. Pois, somente
mesmo morrer e isso, por que somente na linguagem estas coisas ganham o sentido
que é apenas nela que inclusive se pode chegar mesmo a calcular e re-presentar o real.
Pois, é a linguagem que permite que o campo, outrora apenas um campo, possa agora,
com a introdução da lebre, ser levado em conta também como fonte de alimento para a
vida zoo-lógica. A linguagem nomeia o ser e isto quer dizer: a linguagem traz ao des-
velamento o que brilha como aspecto, não como imagem per se, mas como “o perfil que
uma coisa é e se mostra, a visão que é e se oferece”293 como sentido de mundo, seja este
Mas a Poesia não é nenhum errante inventar do que quer que seja, não é nenhum
oscilar da mera representação e imaginação no irreal. O que a poesia, enquanto projeto
clarificante, desdobra na desocultação e lança na ruptura da forma, é o aberto que ela faz
293
Heidegger, 2001:45.
294
Heidegger, 1990:58.
182
acontecer e, decerto, de tal modo que, só agora o aberto em pleno ente traz este à luz e à
ressonância.295
sentimentos ou situações, mas o próprio advento do ser dos entes como sentido que
neles se con-stitui. Por isso, pode-se dizer, ao contrário, que “onde nenhuma linguagem
vazio”.296 Por isso, também não há aí nenhuma instauração do poético como o projeto
Só na medida em que a linguagem nomeia pela primeira vez o ente é que um tal
nomear traz o ente à palavra e ao aparecer. Semelhante nomear nomeia o ente para o seu ser
a partir deste. Um tal dizer é um projetar do clarificado, no qual se diz com que
consistência o ente vem ao aberto. Projetar é a libertação de um lançar e é como tal lançar
que a desocultação se ajusta ao ente enquanto tal. O dizer projetante (Ansagen) torna-se ao
mesmo tempo a recusa de toda confusão, na qual o ente se vela e se recusa.
O dizer projetante é Poesia: fábula do mundo e da terra, a fábula do espaço de jogo do
seu combate e, assim, do lugar de toda a proximidade e afastamento dos deuses. A Poesia é
a fábula da desocultação do ente.297
Mas não somente de um outro ente, ao modo de símbolo e alegoria, mas do ente
que a própria obra poética é. Nisso reside o dado máximo de con-creção do real, a saber,
Por isso, a memória como fenômeno psico-lógico não leva em conta que o
homem não re-memora a re-presentação das coisas, mas sim as coisas mesmas como
295
Heidegger, 1990:58.
296
Heidegger, 1990:59.
297
Heidegger, 1990:59.
183
é, o animal é e até mesmo Deus é, mas somente o homem existe. Existir quer dizer saber
de sua existência como um ser-para-a-morte. Somente o homem sabe que seu ser sobre
esta terra finda com sua própria morte. Por isso, a existência, esse ser que se encontra
Por isso, a memória não se deixando apreender pelo bio-fiso-lógico, também não
se permite reduzir ao psico-lógico. A memória não é assim a recuperação dos bits re-
vontade do sujeito e isto quer dizer, independe daquilo que na tradição onto-teo-lógica
da metafísica subsiste como fundamento. Por isso, se são as coisas que pela memória se
298
Capurro, 1983.
299
Heidegger, 1995a:41-2.
184
(...) não é possível reduzir este fenômeno ao nível “psicológico” no sentido de que se
trata meramente do esquecimento ou recordação de representações intrapsíquicas do mundo
exterior, nem tão pouco ao nível “psicológico” (...) no sentido de uma característica do
comportamento humano.
Memória e esquecimento devem considerar-se (...) como fundados na abertura mesma
da existência humana, uma abertura (...) que é muito diferente do estar aberto de um
recipiente, o qual não constitui com sua abertura uma rede de relações, nem é capaz de
abrir-se ao presente como presente. Esta abertura humana implica em poder estar aberto ao
passado como passado, o qual possibilita toda a recordação. O homem constitui desde o seu
presente a diferença de passado e futuro.300
pudesse imaginar uma coisa qualquer, um rio, por exemplo, absolutamente desprovido
do tempo, este sequer chegaria a se constituir como tal, isto é, jamais chegaria à
vigência de ser. É o tempo que permite que homem e coisa se manifestem como tais.
diferença estão numa mútua e essencial referência. Não é possível, portanto, acercar-se
de uma compreensão do tempo como horizonte do ser sem sua referência à diferença,
pois é esta que ao se manifestar no tempo deixa aparecer o que é o próprio ente. O
presente e futuro, mas principalmente da diferença entre ser e ente. Por isso mesmo,
300
Capurro, 1983. Tradução nossa. Cf. original nas p. 270.
185
Talvez a própria resposta esteja cifrada no mesmo poema: “para que no tempo
vacilante, na obscuridade algo nos seja um apoio”302. Este apoio não é de modo algum
um porto seguro das re-presentações e dos conceitos com os quais se pretende controlar
e assegurar o real, pondo-o como algo medido e calculado. Muito pelo contrário, a
estrofe em que aparece esse verso de Hölderlin narra a noite, não uma noite de sono,
nem mesmo uma noite de vigília em que pretensamente tudo se quer ver, mas uma noite
sagrada, aquela em que por ser sagrada mais uma vez convém que seja con-sagrado não
Música e Memória
cessa de originar.
301
Capurro, 1983. Tradução nossa. Cf. original nas p. 270-1.
302
Hölderlin, Brot und Wein, 2 vv. 13-4.
303
Hölderlin, Brot und Wein, 2, v. 10.
304
Barros, Livro sobre o nada, p. 47.
186
as origens. Esse ressoar das origens em meio ao que no canto é canto diz música. Esta,
reside apenas a palavra, mas o seu criançamento. Este criançamento de modo algum diz
poema passa muito longe aqui de uma noção da infantilidade de um sujeito que ainda
vigente de latência da origem como permanente referência da palavra. Não é por acaso
que Hermes é para os gregos uma criança divina; também não é acaso que Apolo,
Dionísio e o próprio Zeus apareçam e se presenteiem aos gregos arcaicos como crianças
divinas.306 A criança nada mais é além do dar-se da proximidade para com a origem, o
que se dá como fonte de todo começo. Esta referência à origem como criançamento diz
o que na palavra está sempre incipiente, diz o que incessantemente está a se principiar.
Mas porque é origem, ela se dá necessariamente de tal modo que se oculta a si mesma.
Pois uma origem se manifesta por seu dar-se adiante. Mas o que é mais próximo a esse dar-
se adiante é o que dele brotou. A origem o liberou de si mesma, mas de tal modo que a
origem não se mostra a si mesma naquilo que ela liberou, mas antes oculta a si mesma e
retrai-se atrás dele.307
A origem permanece latente e, por isso, em tensão com aquilo que ela origina,
com o que vige como i-latente. Criançamento aqui diz então, um retorno que inicia, um
sentido do ser é um andor, isto é, uma instauração do sagrado. Nessa instauração, o que
con-sagra o sentido é o canto e o que nele é o canto, isto é, música. Nos cantos da
Mnemósyne, filha de Céu e Terra, tornou-se como esposa de Zeus em nove noites a
mãe das Musas. (...) Evidente que esta palavra significa algo mais que apenas aquilo que a
Psicologia determina como capacidade demonstrável de reter uma representação mental do
passado. A Memória [Gädachtnis] pensa rememorantemente [denkt an] o pensado [das
Gedachte]. No entanto, como o nome da Mãe das Musas significa “Memória”, não um
pensar arbitrário de qualquer coisa possível de ser pensada. A Memória é a reunião do
pensamento naquilo que em todo lugar e em primeiro lugar quer ser pensado. A Memória é
a reunião do pensar que comemora [Andenken]. Ela salva [birgt] por si e vela [verbirgt] em
si aquilo que a cada vez e antes de tudo ao pensar é, em tudo que se desdobra e nos apela
como tendo ser [Wesendes] e tendo sido [Gewesendes] concedido: Memória, a Mãe das
Musas: o pensar rememorante [Andenken] do que se destina ao pensar [zu-Denkende] é a
fonte-fundante da poesia.308
tensão recíproca de origem e originado advém a par-úsia auto-velante do ser. Esta par-
sistência do in-forme é a linguagem que in-siste criançar o ser dos i-latentes nas fontes
latentes. O que na linguagem é essa in-sistência em direção ao re-sistente, o que para ele
in-site tender-se nunca foi pelos gregos nomeado com palavra semelhante ou
308
Heidegger, 1984:7. Tradução nossa. Cf. original na p. 271.
188
a palavra lógos não se cunhou uma de-finição qualquer que se pudesse posteriormente
sobre ela se estabelecer uma ciência. É que em toda a ciência como permanência do
conhecimento há uma dupla negação da origem, por mais paradoxal que possa parecer.
origem enquanto fonte que se retira e retrai. Por isso mesmo, nega-se, portanto, o
originado como o que foi da origem e por ela mesma liberado. É que em toda ciência do
própria origem de tal modo que dele ela nunca saia de tela. Nega-se, portanto, com a
nisso consiste uma marcação de posição. No entanto, o lógos não é posicionamento fixo
de normas que regulam a relação de origem e originado, mas antes, a reunião e dis-
posição de origem e originado, de latente e i-latente como sentido do próprio ser. Dis-
originado. O “e” aqui também quer dizer “em” e por isso, o dis-tender não é apenas um
– que se nega como oferecimento – dis-tender. Por isso, lógos não é uma palavra que
se reúne. O lógos traz o ser como vigência do sentido, mas não exclui do sentido do ser
como sentido de uma vigência que se manifesta não somente como des-velamento
memória de Zeus reside justamente na dependência que liga seu feito olímpico vitorioso
sobre os titãs à sua latência caótica obscura e subterrânea. Em Zeus e com ele se dá o
criançamento que matura e a maturação que acriança e que a cada vez se aprofunda na
A memória de Zeus não pode então ser puramente uma coisa ou outra, mas antes
a mais pura imbricação de uma e outra. Isto quer dizer, que na mais extrema oposição
diz que só o ser configura sentido, mas que com o ser mesmo dá-se o inaudito de seu
do sentido.
190
radicação lingüística. A palavra música não somente apresenta uma raiz comum com a
memória através da palavra Musa, mas é ela a musa de todas as musas309. Não se quer
dizer com isso que se queira instaurar aqui mais uma hierarquia das artes, a exemplo de
tantas outras na tradição filosófica ocidental. Muito ao contrário, isso quer dizer que na
permite que nela se entreveja o que se apresenta como essencial em todas as artes. Por
isso, a afirmação de que “as artes são todas musicais e são arte na medida de sua
Nelas se manifesta o que na música é o mais pobre, o mais simples, aquilo que nem
mesmo é, mas tão-somente se dá, sem mais: o poético por excelência, “o mais alto grau
Nessa realização do real, nessa poiésis do ser, a proximidade para com a origem
é sem dúvida o mais desconcertante e por isso, ao mesmo tempo, o mais grávido de
309
Leão, 1991:43.
310
Ibid.
311
Ibid.
191
Lá mesmo onde a palavra falta abre-se um descortínio para um arcano. Não quer
isto dizer que não havendo terminologia com a qual se possa nomear algo, a própria
coisa deixa de ser. Na verdade, aqui se pensa algo di-ferente da compreensão comum da
aqui posta como dimensão aberta pela re-ferência mútua e fundante de Memória, Musas
e Música. O que se funda aqui não é de modo algum um fundamento, não é de modo
conhecimentos. O que se funda aqui é o que brota e eclode no próprio retraimento des-
pensamento não é apenas um questionar, mas muito mais que isso, um escutar.
Caracterizar o pensamento como escuta é algo que soa muito estranho e também não
chega a atingir a clareza aqui necessária. Mas justamente o que constitui o próprio da escuta
é de só receber definição e clareza daquilo que pelo consentimento apresenta um sentido.
Algo já se mostra aqui: a escuta assim descrita é o consentimento entendido como o que se
apropria no dizer e sua saga, com a qual a essência da linguagem está aparentada.
Conseguindo visualizar a possibilidade de uma experiência pensante com a linguagem,
podemos adquirir mais clareza sobre em que sentido o pensamento é escuta do
consentimento.313
O faltar da palavra muito menos quer dizer então o próprio faltar da linguagem.
Língua e linguagem não são equivalentes. Esta não se reduz àquela. Ao contrário, até
mesmo para se chegar a pensar os léxicos das línguas e as unidades dos léxicos como
consentido com escuta de todo pensamento. Isto vale também para a própria palavra na
312
Barros, Livro sobre o nada, p. 47.
313
Heidegger, 2003:139.
192
A palavra é ela mesma a relação que a cada vez envolve de tal maneira a coisa dentro
de si que a coisa “é” coisa.
(...) “Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar” indica a relação entre palavra e
coisa desde que se tome a palavra como sendo ela mesma a relação, à medida que cada
coisa se atém ao ser e ali se mantém.
Dissemos (...) que a “palavra” não apenas está em relação com a coisa, mas que a
palavra leva cada coisa enquanto ente que está sendo para esse “é”, nele a sustentando, a ele
se relacionando, nele propiciando à coisa a garantia de ser coisa.314
A linguagem consente a palavra como relação que traz a coisa a seu ser. Em todo
situações, quer dizer, diferente da concepção de linguagem como uma posse e um ato do
que é a própria linguagem que se apodera do “sujeito” negando-lhe até mesmo a decisão
de descartá-la e não mais possuí-la. Mesmo que não se escreva mais nenhuma linha,
mesmo que não se profira mais nenhuma palavra, a linguagem veda ao homem a
possibilidade de des-possuí-la. Nesse sentido, seria muito mais esclarecedor dizer que
não é o homem que possui a linguagem, mas sim o contrário, a linguagem é que possui
o homem. Essa posse deve ser então algo que extrapola a própria concretização do ato
da fala, algo tão radical que vige até mesmo nas acepções etimológicas da palavra.315 É
que como consentimento que se dá e que dispõe o próprio à escuta antes mesmo que um
314
Heidegger, 2003:136, 146.
315
Cf. Buck, 1988:1261-62.
193
escutamos a linguagem, embora não pensemos nisso. Se não escutássemos por toda parte a
indiciação da linguagem, não poderíamos usar nenhuma palavra da linguagem. A
linguagem vigora como essa indiciação. A essência da linguagem dá notícia de si mesma
como indício, como a linguagem de sua essência.316
significativa é que ele não pode de modo algum despojar-se dela. Isto quer dizer, que a
linguagem constitui sentido mesmo antes que o próprio homem possa dela se apossar
determinado léxico, como mera parabola, palavra. Por isso, a linguagem se mantendo
mais essencial do sentido. Por isso, também, o poeta pode criançar as palavras a ponto
morada do ser. Por isso, o estame do som não é de modo algum a freqüência de
significativo, isto é, como aquilo que não se pode dizer, nem mostrar e que, no entanto,
ocultar.
consente como a casa do ser. Na renúncia da palavra a música não se dá como sua
negação, mas como sua vizinhança mais próxima e também mais essencial, pois nela se
poema A palavra de Stefan George e sua inserção no seu livro Das neue Reich,
Heidegger diz:
316
Heidegger, 2003:140.
194
“Escutar uns aos outros” – uns e outros – homens e deuses. O canto é a festa da
chegada dos deuses, a chegada quando tudo se aquieta. O canto não é o contrário da
conversa, mas seu vizinho mais próximo; pois também canto é linguagem.317
O que no canto se afigura como canto se diz de modo mais amplo e mais
originário música. Seguindo o caminho aberto pelo próprio Heidegger, pode-se ainda
dizer que o canto, a saber, a música não é linguagem, mas dá-se linguagem. Pois, assim
qual estas ciências têm de partir para se configurarem como tais, também não é possível
originário, é a música que pode em primeiro lugar ser amparo e fundamento para
qualquer ciência musicológica e suas mais diversas técnicas e tecnologias. Pois, sendo a
os primórdios das fontes no estame do som, a música avança para o começo. A música
Hermes se deu pela música. A música se institui como uma cosmogonia originária,
todas as fontes primordiais do ser, a música, em sua relação mais inaugural com o deus,
autônoma do sentido.
do ser em sua dinâmica de alétheia. Desse modo, tanto música como memória são
já tinha sido assinalada por Heráclito e chegou até hoje através de um fragmento de seu
318
Phýsis kriptesthai phílei. Heráclito, Fragmento 123, p. 91.
196
todo e qualquer tempo. A memória é a música do real. Em seu silêncio originário soam
Desse modo é que a música pode ser compreendida como a musa de todas as
musas.319 Pois na música o que está sempre lançado como projeto é o formar. Enquanto
rythmós320 a forma é sempre musical. Uma forma que não se exaure, mas que se mantém
co-memoração da origem. Como memória, não fala as sentenças das línguas, mas canta
radical de entendimento que exige antes de tudo a atenção especial do escutar. Como
ele se retrai. Se se quiser defini-lo, ele se esvai. Pois, o sentido poético se manifesta na
memória a música anuncia o sentido da memória mesma em seu entorno mais íntimo,
319
Leão, 1992:43.
320
Cf. Benveniste, 1991:361-370.
197
articula toda possibilidade de sentido poético que a música realiza, por outro, só o faz
porque a memória mesma, que pronuncia a unidade, é em unidade com o que se oculta e
de tensão e de contrários, dá a conhecer aquilo que lhe é mais próprio, mais íntegro e
singular.
mesmo de seu íntimo parentesco com a memória. A música como musa de todas as
faz porque trata sempre de, na época do último e ulterior modo de realização da
do real, da qual até mesmo a metafísica teve de partir: o sentido do ser. Esta se constitui
como primeira possibilidade não por vir antes numa ordem cronológica, historiográfica,
evolutiva e causal. Esta se constitui como primeira possibilidade por ser uma vigência
de ser-no-mundo.
sobre o que em todo lugar exige ser pensado em primeiro lugar. A música com-põe e re-
com-põe todo passo de volta para a memória como fonte e solo de onde brota e frutifica
a poiésis, pois a poiésis leva adiante o dizer do ser. A música com-põe o sentido do real,
qual a linguagem remete o homem à memória do ser. Porém, tornando-se obra, a música
pronúncia da identidade e diferença do real. A música é, assim, a arte do tempo não por
A música faz o homem retornar para aquilo mesmo que o mantém e para ele se
constitui um modo originário do passo de volta para a reunião essencial que a memória
de todo real. A música con-forma o pensar com aquilo que é pensado e não pensado. Tal
sobre o ainda não-pensado. A música fala. Fala essencialmente, pois em seu lógos não
321
Cf. Castro, 1997:182.
199
memória do ser, lança o homem no aberto do real que com ele con-cresce, o faz retornar
todo agradecimento que pensa e em todo pensar que agradece se encontra, na sua força
cantou, assim, o lógos da memória: “pouco saber, mas muita alegria foi dada aos
mortais”.
Capítulo V
Ser e Sentido
Leão, 1991:175.
Música e verdade
pela ciência, a questão da verdade da obra está, de um lado, posta pela estética como
teoria da arte e por outro, pela análise e pela história da música. Tanto nessas
Mesmo quando essas disciplinas ou regiões do real são tomadas em seu inter- ou
fazer aquele corresponder a este. No sentido de uma teoria que observa o real, a ciência
contempla o real de modo a assegurá-lo. Isso é o que diz a palavra latina contemplatio,
separar e dividir uma coisa num setor e aí cercá-la e circundá-la.322 A ciência põe o real.
322
Cf. Heidegger, 2001:46.
201
Ora, tal caracterização da ciência poderia parecer contrária à sua essência. Pois, como
teoria, a ciência seria justamente “teórica”. Prescindiria de qualquer elaboração do real.
Faria de tudo para apreender o real puramente em si.323
Nesse sentido, a ciência moderna não difere muito do per se platônico.324 Ora,
pela ciência também devem se adequar aos pressupostos que dis-põem todo e qualquer
técnicas da música327. A música pode então ser compreendida através dos filtros
323
Heidegger, 2001:48.
324
Cf. Capítulo I, p. 49ss.
325
Heidegger, 2001:48.
326
Ibid.
327
Cf. Aguiar, 1996; Castro, 1997:99-146.
202
sejam estes predispostos em motivos, temas, frases, etc., ou ainda, sínteses, conjuntos,
funções sociais, históricas, antropológicas, etc. Estes são exemplos de modos estético-
Fazer representar quer dizer, fazer corresponder com exatidão ao que figura no conceito
aferição da verdade da obra. Questiona-se, entretanto, como é que isso pode se dar. É
certo que a representação das ciências apreende algo do que é a música, porém apenas
vigência do real como objetidade. Isso não é de modo algum garantia de que o que se
apreende do real como objetidade seja a totalidade do próprio real. Seria absurdo
admitir que o que se dá como real possa ser fundado pela ciência. E mesmo a tarefa de
ex-plicar o real a que a ciência se propõe passa pelo fato de que ela necessita operar
uma redução do real através de fazê-lo sair (ex-) de suas dobras (plicare). Fazê-lo sair
de suas dobras quer dizer, retirar do próprio real aquilo que se manifesta como tal, em
de dar-se do real. Dando-se, o real se retrai. A cada novo modo da ciência iluminar o
real, ele mesmo se recusa e se retrai no ocultamento de sempre novas possibilidades que
ainda sequer teriam sido configuradas. Ora, não se constitui precisamente assim o
decifrou realmente o que a própria vida biológica é, sem inclusive contar o fato de o
203
próprio homem ser cada vez mais reduzido à representação biológica? No entanto, para
próprio genoma permanece uma representação estática, não dando conta inclusive de
temperatura.
Uma outra ainda diz: surgimento já tende ao encobrimento. Em grego se diz: phýsis
A tradução latina de phýsis por natura permanece vigente inclusive nas palavras
nascer, brotar ou eclodir e não o seu acontecimento. Ora, a forma particípio passado é
phýsis como natureza se exclui toda e qualquer dinâmica da alétheia como desvelar
328
Heidegger, 1999b:158.
329
Michelazzo, 1997:28.
204
Para os primeiros pensadores, a phýsis estava presente em tudo que os rodeava, isto é,
nas plantas, no nascimento dos animais, no crescimento dos homens. Todavia, essa
predominância que desabrocha não se restringia a esses fenômenos, uma vez que, pela
proximidade que tinham com ele, apreendiam e conservavam a sua presença em suas
criações, pensamento e linguagem. Phýsis era para esses pensadores o nome do ser. Nada
escapava do seu domínio, nem mesmo os contrastes, uma vez que a phýsis era aquela
unidade originária que congregava tanto aquilo que saía e brotava (movimento), quanto o
que se retinha e permanecia (repouso). Eles não haviam adquirido ainda o nome de
filósofos para separar o real em dois grandes blocos em permanente oposição,
denominando-os de sensível e supra-sensível, material e espiritual, imanente e
transcendente, ou então, conforme os dualismos mais modernos, como realista e idealista,
subjetivo e objetivo. O fundo escuro da caverna e a claridade do sol na pradaria eram, para
eles, formas e manifestações de uma única realidade, porque procediam de uma mesma
fonte.330
tanto do que surge e se manifesta, como daquilo que se recusa e se retrai. Portanto, a
phýsis mantém em reunião um duplo princípio e por isso, ela mesma não somente se dá
como origem, e por isso mesmo, não apenas origina, mas fazendo-o, oculta-se. A phýsis
330
Michelazzo, 1997:29.
331
Souza, 1999:81-2.
205
aquilo que movimenta e faz tanto phýsis como krýptesthai tenderem um para o outro.
modo todo especial. philei vem de philéo e que comumente quer dizer amar ou
considerar com afeição. Sua forma substantivada phílos em composição com sophia
de “amor ou amizade ao saber”. Benveniste, no entanto, levanta uma questão para o que
Aparentemente, nada mais simples do que a relação entre phílos "amigo" e philótes,
philía "amizade". Mas aqui já nos detém o conhecido fato de que phílos em Homero possui
dois sentidos: além do de "amigo", phílos tem valor de possessivo: fivla gouvnata, fivlo"
uiJov" não indicam a amizade, e sim a posse: "seus joelhos", e "seu filho". Enquanto exprime
um possessivo, phílos é usado sem acepção de pessoa e se refere indistintamente seja à
primeira, à segunda ou à terceira pessoa. É uma marca de posse que não implica nenhuma
relação de amizade. Tal é o contraste entre os dois sentidos de phílos.332
de Heráclito pode agora muito bem ser lido: phýsis e krýptesthai confiam-se na medida
e na proporção de uma mútua posse, uma posse que se dá somente entre phýsis e
ex-plicam. Assim, não é possível em toda iluminação do real pela ciência se desfazer
daquilo que a cada vez obscurece. Não é possível para a ciência contornar o que lhe é
332
Benveniste, 1995:333-4.
206
Contudo, pode-se ainda pensar a verdade da obra a partir das objetidades pré-
dis-postas pelas ciências históricas, sociais, antropológicas, etc. Porém, mesmo assim,
passar à representação da obra através de fatores externos a ela. Não que o contexto
histórico ou social não possa ser levado em conta na obra. No entanto, a obra
independentemente de uma apreensão prévia dos contextos da criação. Por isso, é a obra
que primeiramente permite que não apenas o histórico e o social possam aparecer, mas
todo e qualquer contexto. Assim não é o contexto que faz aparecer a obra, mas é a obra
Por isso, a obra não é mais nem menos verdadeira porque se conhece ou se deixa
de conhecer os contextos de sua criação, mas é ela que os admite em seu surgimento
como modos de sua própria possibilidade de instauração do real. Nesse sentido é que a
questão da autoria também não pode ser o parâmetro para o estabelecimento da verdade
da obra. Não se pode afirmar, por exemplo, que se conheça Beethoven pelo domínio de
seus dados e informações biográficos. Sua bio-grafia não tem absolutamente nada de
especial para que faça dele quem é para humanidade histórica. Ao contrário, porém, é a
obra que apresenta e deixa aparecer, confia e outorga a ele sua dimensão e seu destino
históricos. Nesse sentido, não se pode atestar a verdade da obra por sua autoria. Assim,
de algum modo, Oscar Wilde apanha esta mesma questão em seu Prefácio ao Retrato de
Dorian Gray: “revelar a arte e ocultar o artista é a finalidade da arte”. Não se trata,
porém de uma negação do artista, mas também não se trata igualmente de vedar à obra o
vigor e a vigência que lhe são próprios. Por isso, “tão necessariamente quanto o artista é
a origem da obra de arte, de uma outra maneira que aquela em que a obra é a origem do
207
artista, assim tão certo é que a arte é, ainda de um outro modo, a origem ao mesmo
modo, nenhum dos três pode ser tomado isoladamente, sob pena da manifestação a que
arte, a obra não é nenhum meio de expressão das idéias e impressões do artista, mas
antes¸ os três, arte, artista e obra se encontram re-colhidos num lógos que os reúne ao
Por isso, também seria um completo absurdo dizer, por exemplo, que “esta”
a “falsa” obra é e o que consiste como conhecimento da obra “verdadeira”. Não efetuar
a correspondência significa então, não que a obra “falsa” seja realmente “falsa”, mas
que ela é algo de outro, inclusive a possibilidade dela ser uma outra obra.
Leonardo DaVinci e que a adquirira por um preço módico numa grande rede de
entanto, a obra é absolutamente idêntica em cor, traço, dimensão, textura, tela, etc. A
objeção passa a ser então a de que se trata de uma reprodução tecnicamente perfeita. A
“falsidade” da obra consiste agora em que esta na verdade não se trata do original, mas
de uma cópia, mesmo que perfeita. Ora, é preciso atentar para a questão de que a
veracidade ou falsidade da obra não diz nunca respeito a ela mesma, mas ao suporte que
333
Heidegger, 1990:11.
208
a sustenta. Como é possível haver uma Mona Lisa “falsa” por oposição a uma
“verdadeira” se tanto o original como a cópia apresentam o mesmo sentido? Por certo,
permanece o fato de que a obra sempre se coloca aquém e além das correspondências
representacionais que tomam o real a cada vez e exclusivamente como objetidade por
que, antes de qualquer coisa, transcende completamente o âmbito do mero suporte. Pois,
mesmo que se possam realizar representações técnicas das mais diversas a respeito da
com o aspecto fundante da obra, a saber, sua abertura de sentido. Quando se considera o
sentido da obra, nenhuma diferença faz se o sentido se abre pelo “original” ou “pela
cópia”, pois o suporte por si mesmo jamais pode instaurar sentido algum, somente a
obra.
Este exemplo ilumina a diferença entre a obra e suporte. A obra nunca poderá
ser falsa, sob pena de não mais ser aquela obra. Isto quer simplesmente dizer que a obra
não é uma coisa ao molde de outras coisas. A obra instaura um sentido ou sentidos que
só ela inaugura, que somente ela traz à presença, que somente ela, aquela ou esta obra
re-vela e des-oculta. Nesse sentido, a obra pictórica está no quadro apenas na medida
em que este lhe serve de suporte. Isto jamais significa que o quadro seja a obra.
Ora, de um modo ainda mais radical, o mesmo se pode dizer que ocorre com a
que não! Em todas estas coisas somente se dá algo que deixado a si mesmo jamais
chegaria a constituir obra, e isto quer dizer também, jamais chegaria a constituir sentido.
O caráter coisal na obra não deve ser negado; mas este caráter coisal, se pertence ao
ser-obra da obra, tem de pensar-se a partir do caráter de obra da obra. Se assim é, então o
209
caminho para uma definição da realidade com caráter coisal da obra não é um caminho que
leva à obra através da coisa, mas antes, ao invés, um caminho que leva à coisa através da
obra.334
medida em que a obra instala o sentido na coisa é que sua coisalidade mesma ganha o
seu sentido coisal. Do mesmo modo, a obra também não está neste ou naquele conceito
de obra, não está nesta ou naquela forma de obra, não está nesta ou naquela
próprio caráter coisal da obra. Antes, é a obra que em virtude de sua manifestação de
jamais se deixa apreender pelo conceito, pela forma ou pela representação; ela jamais
obra, não obstante ela possa por vezes até mesmo incorporá-los. No entanto, ela só pode
sentido. Toda obra é obra na medida em que inaugura os princípios de sentido que lhes
são próprios.
334
Heidegger, 1990:30.
335
Heidegger, 1990:30-1.
210
toda reprodução técnica da obra, o que se tem sempre e de novo é a própria obra, é ela
sempre e novamente que constitui sentido, pois a obra jamais se deixa reduzir ao mero
suporte. Os modernos meios de reprodução digital atestam sempre o vigor a cada vez
nas mais diversas mídias, teria de se considerar que só haveria uma única Quinta
Sinfonia no sentido daquela cuja execução se deu pela primeira vez. No entanto, desde
que foi composta esta obra foi “reproduzida” milhares de vezes, primeiramente ao vivo,
e só muito depois através dos meios fono-mecânicos e digitais. Por isso, uma cópia da
Quinta Sinfonia de Beethoven pode ser falsa apenas na medida desse ou daquele suporte
e sua legalidade. De modo algum, no entanto, pode a Quinta Sinfonia ser falsa. Mas, em
A obra jamais se deixa apreender pelo seu caráter coisal. Por isso, mesmo a
que com ela se dê também a posse da obra. A música jamais permite que se confunda
obra e suporte. Nela e com ela, a cada vez se explicita a propriedade dos princípios do
sentido como pertencimento e instituição somente da obra, nunca do suporte, seja ele
qual for. Por isso também, “a obra pertence” não aos conceitos formais e às
representações da ciência e da técnica, mas “ao campo que é aberto por ela própria.”336
336
Heidegger, 1990:32.
211
Mesmo na audição (hören) da obra, nunca se chega a possuir a obra. Antes, toda
Nesse sentido, sempre à obra a audição pertence, se há alguma posse, ela é sempre da
Por isso, pergunta-se mais uma vez, em que sentido pode se dar a verdade não
tonalidade assinala que na música a verdade não é uma posse sua, mas o acontecimento
que nela manifesta o sentido, que conduz à presença o sentido do ser, constituindo-se
ela mesma na saga desse sentido. A música proclama a memória do sentido do ser. Este
A obra de arte abre à sua maneira o ser do ente. Na obra, acontece esta abertura, a
saber, o desocultar, ou seja, a verdade do ente. Na obra de arte, a verdade do ente pôs-se em
obra na obra. A arte é o pôr-se-em-obra da verdade.337
Na música se dá a verdade como acontecimento do ser. E isto, não por que ela
mostre este ou aquele ente, mas antes, o ente que ela mesma é enquanto obra. Nesse
sentido, podemos apreender a música como aquela ou esta obra. No entanto, em seu co-
manifesta a radicalização do sentido do ser, um sentido que não é um puro ente, uma
337
Heidegger, 1990:30
212
memória a música nunca é, nem mesmo é um “é”, mas dá-se em memória do sentido do
ser. O seu vigor se manifesta como saga que en-caminha o sentido, isto é, a música
com-põe a re-ferência em que o sentido do ser instaura o real. A música abre as re-
ferências de sentido do ser. Isto leva radicalmente em conta não somente a música a
partir dela mesma, do que nela ocorre, a saber, a verdade, mas fundamentalmente
compreende o sentido sempre como sentido do ser em toda sua envergadura e em toda
sentido é sempre o sentido do ser. Dando-se como sentido, o ser não perdura como algo
totalmente desvelado, mas recusa-se a ser apreendido não apenas como ente, mas
também como ser. Em outras palavras, dando-se, o ser permite o trazer à presença não
ele mesmo, mas o seu sentido. Esse sentido pode se manifestar vez por outra como este
ou como aquele ente, como esta ou como aquela situação, como esta ou como aquela
coisa. Esse sentido pode ainda se manifestar como o sentido mesmo de uma auto-
como possibilidade latente. O lógos pronuncia essa re-ferência. Por isso, “ser significa
pensante da música desencadeia como sentido uma onto-logo-fania do real. Como lógos
da memória a música não é nenhum ente, nenhum objeto ou coisa, mas dá-se uma re-
338
Heidegger, 1999b:158.
213
A palavra para dizer a palavra não se deixa encontrar em nenhum lugar em que o
destino dá aos entes o presente da linguagem nomeadora e inaugural, essa que nomeia o
ente que é e como o ente brilha e brota. A palavra para a palavra, um tesouro na verdade,
nunca foi encontrado na terra do poeta; mas e na terra do pensamento? Quando o
pensamento procura pensar a palavra poética, mostra-se que a palavra, o dizer, não tem
ser.339
A música dá-se lógos que referencia ser e o que brilha como sentido. A música
não é então coisa alguma, mas diz uma radical experiência poética da linguagem. Sua
radicalidade consiste em que aprofunda indizivelmente até mesmo o dizer que a palavra
tornam compreensivas340 quando para elas existe uma palavra disponível.”341 Com o
dizer da palavra, que não é, deixa-se que as coisas sejam, que se tornem compreensivas,
linguagem na música consiste justamente nesse aspecto do dizer, na saga que mostra e
que faz brilhar o que mostra, certamente como coisa que a própria obra é, mas mais
gregos, mas sua relação de co-pertencimento para com o deus vai muito além de uma
compreensão moderna de criador e criatura. Esta relação antes de tudo diz respeito a
não diz este ou aquele sentido do real, mas sim “o” sentido. Por isso, o lógos
radicalmente dá-se música na medida em que deixa advir o próprio sentido, não desta
339
Heidegger, 2003:150.
340
Grifo nosso.
341
Heidegger, 2003:150.
214
ou daquela coisa, mas do que primordialmente permite que a coisa seja. Ora, uma coisa
certamente “é”. No entanto, esse “é” não é ele mesmo uma coisa.
Será que o “é” é ele mesmo coisa, sobreposta sobre a outra, colocada sobre a outra
como um capuz? Nunca encontramos o “é” como uma coisa numa coisa. Com o “é”
acontece o mesmo que com a palavra. Como a palavra também o “é” não pertence às coisas
existentes.
Eis que despertamos da sonolência das opiniões apressadas e visualizamos algo
inteiramente outro.
No que a experiência poética com a linguagem diz da palavra está em jogo a relação
entre o “é” que nada é e a palavra que se acha no mesmo caso, ou seja, não é um ente.
Nem ao “é” e nem à “palavra” convém a natureza de coisa, o ser, e nem tampouco à
relação entre o “é” e a palavra, cuja tarefa consiste em conferir a cada vez um “é”.342
natureza de coisa, sua re-ferência com o ser consiste em con-ferir a cada vez não um
A essência da verdade, a saber, da desocultação é regida por uma recusa. Esta recusa
não é, todavia nenhuma falta e erro, como se a verdade fosse mera desocultação que se
tivesse libertado de todo oculto. Se ela fosse disto capaz, então não seria mais ela mesma. À
essência da verdade como desocultação pertence negar-se sob o modo de dupla
ocultação.344 A verdade é, na sua essência, não-verdade (...).
A verdade manifesta-se justamente como ela mesma, na medida em que o negar-se
ocultante enquanto a recusa confere originalmente a toda a clareira a sua constante
proveniência, ao passo que, enquanto dissimulação, confere originalmente a toda a clareira
a sempre ativa acutilância da ilusão. Sob a designação de negação ocultante procura-se
nomear, na essência da verdade, a reciprocidade adversa que, na essência da verdade, há
entre clareira e ocultação. A essência da verdade é em si mesma o combate originário em
que se conquista o meio aberto, no qual o ente advém e a partir do qual se retira.345
342
Heidegger, 2003:150.
343
Cf. Castro, 1997, Capítulo III.
344
A verdade se oculta e dissimula sua ocultação.
345
Heidegger, 1990:43-4.
215
Por isso, o que na música se apreende como ente é sempre algo que fica
do ser que, dando-se como sentido, nega-se e se oculta. Quando o pensamento pensa o
não-pensado originário de música, poética e sentido, esta experiência acena “para o que
é digno de se pensar, para aquilo que há muito, mesmo que de modo velado, motiva o
poiésis que nela acontece está confiada à essência cosmo-caótica da verdade como
envergadura. Nisso consiste a poiésis, a saber, que a envergadura da verdade diz o curso
em que o ser des-oculta o seu sentido desde sua própria proveniência, a saber, “do
medida em que co-memora o ser. Esse dizer não é uma enunciação propositiva
qualquer, mas em coerência com a memória do ser pronuncia o inaudito do ser até
mesmo em meio ao que pode ser apreendido como ente em toda objetidade.
346
Heidegger, 2003:150-1.
347
Heidegger, 1990:48.
348
Ibid.
216
pensamento ao que lhe pro-voca, aquilo que é digno de ser pensado. Nisso consiste todo
relacioná-los logo se apresentar como algo forçado. No entanto, a excessiva pressa com
expressão, mas como morada do ser que se tenta uma interpretação que contribua de
algum modo, não para o esclarecimento de uma possível relação entre memória, pensar
participes do que é digno de ser pensado. Meditando essa reciprocidade para além e
pensar o ser em seu vigor de concreção do real, aquilo que confere densidade ao real,
suas realizações e não realizações. Para além e para aquém de toda a representação,
349
Heidegger, 1995a:24.
217
concreto como realização do ser não prescinde da não realização, pelo contrário, em sua
sentido, permite o real se manifestar também como não realização. Apenas porque na
ôntico350, não quer dizer que o real também não se concretize conjuntamente ao
patência, o negativo não é um nada absoluto, mas a retração do próprio ser e seu
de um dizer indizível.”351
“Nenhuma coisa que seja onde a palavra faltar”. Pensando que aqui se nomeia a
relação entre coisa e palavra e, com isso, a relação da linguagem com cada ente enquanto
tal, já chamamos o poético para a vizinhança do pensamento. Esse pensamento não percebe
nisso nada de estranho. Pois justamente a relação entre coisa e palavra , e isso na
configuração de ser e dizer, foi uma das primeiras coisas que o pensamento ocidental
colocou em palavras. Essa relação avassalou o pensamento de tal maneira que se
pronunciou numa única palavra. Essa palavra diz: lo/goj. Essa palavra é ao mesmo tempo
nome para ser e dizer.
Ainda mais avassalador para nós é constatar que nessa palavra não se fez nenhuma
experiência pensante com a linguagem em que a linguagem viesse à linguagem num modo
apropriado a essa relação. (...) A experiência poética (...) nomeia algo muito antigo com o
que o pensamento já se deparou e ao qual ele se mantém de tal forma vinculado que se
tornou para nós o fato mais corriqueiro e assim também o mais desconhecido.
(...) Todavia só podemos presumir porque a essência da linguagem em parte alguma
vem à linguagem como linguagem da essência. Muito indica que a essência da linguagem
recusa-se vir à linguagem, isto é, a vir àquela linguagem em que se pronunciam enunciados
sobre a linguagem. Se em toda parte a linguagem faz essa recusa, então essa recusa
350
Cf. Souza, 2001/2:28.
351
Heidegger, 2003:183.
218
pertence à essência da linguagem. Isto significa que não é somente na fala cotidiana que a
linguagem se resguarda em si mesma mas que esse resguardo se deve ao fato de a
linguagem resguardar em si mesma a sua proveniência e, assim, negar a sua essência para
os nossos hábitos representacionais.352
Somente porque o ser se torna linguagem, nega também sua essência para toda
palavras impronunciáveis e, portanto, sagradas desse silêncio. Não que em sua tradução
apropriação mútua de ser e homem como evento essencial de toda pro-dução. Nessa
destino, a saber, “aquilo que o âmbito do aberto da verdade do ser nos dispensa.”354
salvo e resguardado é também o que salva e resguarda. Por isso, a música em sua
linguagem como aquilo que o ser mesmo se torna e se dá. Nem natureza, nem cultura
352
Heidegger, 2003:143-4.
353
Heidegger, 2003:144-5.
354
Michelazzo, 1997:175.
355
Cf. Michelazzo, 1997:177.
219
podem com-portar o que se diz e se mostra na música, pois em sua manifestação como
Pois, a poiésis como essência de todo agir e manifestar, a poiésis como pro-
dução do sentido da verdade do ser não apenas elide sujeito e objeto, mas igualmente
artista, obra de arte e arte357. Não apenas isso, mas na medida em que a obra como obra
vigente, dá origem e início. O ser principia e em seu principiar, porque poético, pro-duz,
Por isso, também o sentido da interpretação não pode jamais ser aquele da
poético. Esses modos são tão variados quanto as possibilidades que se oferecem, que se
fundam e que começam em toda manifestação poética do sentido do ser, pois é este que
356
Andrade, 2002:117. Procura da poesia, vv. 16-20.
357
Cf. Heidegger, 1990:11.
358
Heidegger, 1990:60.
220
que o sujeito representa o real como objeto. Por isso, o sentido que se põe no poético
uma razão suficientes que assegurem definitivamente o poético como algo estável e
domina, mas sim a estabilidade dis-posta pelo conflito e pela tensão doada pelo próprio
vigor do ser. A interpretação dá-se então no e com o caminhar de cada um com o outro
nas peripécias das diferenças abertas em virtude do sentido e da verdade do ser em meio
sentido e a verdade do ser, pois dela e com ela se apropria mutuamente. A interpretação
pensante diz que nada nunca é com-posto, mas que tudo está em constante com-posição.
origens originantes.”360
A fonte não é o passado, mas o futuro do rio que se viaja de si para si mesmo,
cavalgando a sua própria foz. E o salto originário (Ursprung) do silêncio da léthe não é
simplesmente o inefável do misticismo teológico, mas exatamente o inexaurível impulso de
efabulação da silenciosa voz que assinala e cala o inenarrável rapto do acontecimento
criptofântico da fons et origo da alétheia.361
359
Cf. Heidegger, 1990:60.
360
Souza, 2001/2:31.
361
Souza, 2001/2:31.
221
salvaguarda da obra é antes de tudo a salvaguarda do que aqui e acolá não estava
programado e do que ainda não havia sido pensado. A salvaguarda é a memória tanto do
humanidade histórica362, abre-se como livre oferta das possibilidades que o próprio ser,
em sua referência apropriante à essência do homem, doa. Na livre abertura dessa oferta,
O projeto poemático provém do nada, no ponto de vista de que nunca aceita a sua
oferta a partir do habitual e do que até então havia. Todavia, nunca vem do nada, na medida
em que o que por ele é lançado é só a determinação retida do próprio ser-aí histórico.
Doação e fundação têm em si o caráter não mediatizado do que chamamos princípio
(Anfang). Com efeito, a imediatidade do princípio, a peculiaridade do salto a partir do não-
mediatizável, não exclui, mas antes inclui que o princípio se prepare muito longamente e de
uma forma inteiramente inconspícua.363
nem sempre escutar o soar do poético, o que não significa que ele não esteja em
homem. Esse silenciar revela então que não depende da vontade da razão calculante a
autoriza que a própria razão se manifeste em seu destino histórico. Esse destino
histórico enviado desde os gregos diz que a pro-dução não pertence ao homem, que esta
não é produto de uma razão calculante ou de uma razão suficiente, mas que manifesta a
saga como poesia da mútua apropriação de ser e homem. A poesia como essência de
362
Cf. Heidegger, 1990:60.
363
Heidegger, 1990:61.
222
todo agir diz que o homem não é uma substância na qual e para a qual várias coisas
acontecem, mas que ele mesmo é um evento que se refaz repetindo e retraçando o
passado histórico364.
mesmo tempo, nenhuma função. Do mesmo modo, pode ser empregada e utilizada em
variadas situações e ocasiões e, no entanto, não tem utilidade nenhuma. Com a música
não se tem em nenhum momento assegurado o que se pode ou não fazer. Pois, é o
projeto poemático que se destina ao homem como salvaguarda que na música diz o
convidado a trilhar o caminho que está para além e para fora do caminho dos homens,366
364
Inwood, 2002:4.
365
Heidegger, 1990:61.
366
Parmênides, I vv. 22-8. In: Os pensadores originários, p. 44-5.
367
Parmênides, I vv.11-4. Os pensadores originários, p. 44.
223
Helíades conduzem o pensador aos confins do horizonte extremo, aonde o céu e a terra se
circunferem. Esta viagem sui generis não é para baixo, uma incursão na interioridade
ctônica (katábasis), nem para cima, uma excursão na exterioridade urânica (anábasis).
Verdadeira ciência iniciática, a peregrinação relatada no Proêmio não tem início nem fim,
mas se revela no meio da travessia. O aonde se vai sempre se volta ao donde se parte (frg.
5). A deusa inominável, que revela ao pensador o autêntico saber acerca do duplo domínio
do ser e do aparecer, permanece inominada, não se confundindo com as divindades
noturnas nem com as diurnas. A revelação não se restringe à indicação de uma via de mão
única, mas se traduz na exortação de que é preciso conhecer a verdade da essência
(alétheia) e, ao mesmo tempo, reconhecer a validade da aparência (doxa) (frg. 1, 29-32). A
deusa sublinha e enfatiza que é de modo justo e autêntico que as aparências (dokounta)
perpassam e permeiam a totalidade do que existe, instituindo o fulgor do suntuoso domínio
dos entes que se mostram gloriosamente presentes no portentoso ilumínio da transparência
conjuntiva de tudo (frg. 1, 31-32). O ser e o aparecer ainda não se encontram separados no
éon parmenídeo. A essência e a aparência se compertencem. Quem se inicia no
conhecimento hierofanicamente revelado tem de assumir a vigília ontológica que o capacite
a considerar, não apenas um, mas, sim, os três caminhos (hodói) da iniciação gnosiológica:
1o) a senda do ser; 2o) a vereda do nada; 3o) a via da aparência. Não se consegue a sabedoria
se apenas se persegue a perfeição esférica do ser. Sábio é quem se dispõe numa experiência
conjunta com o ser, o não-ser e o aparecer.368
surgimento nos remete para o fato de que não é a música que se configura a partir dos
potência musal da música. Por isso, nunca devemos perguntar o que se pode fazer com a
música. Com ela não se pode fazer rigorosamente nada na medida em que a dimensão
aí é que pode surgir a pergunta essencial: se não se pode fazer nada com a música, será
pensar poético ou do poetar pensante. Pois, não é senão em virtude de que antes de
qualquer coisa a música – e não as diversas regiões técnicas e científicas – doa e oferece
368
Souza, 1999:82-3.
224
operadas nas esferas da técnica e da ciência, pelas cisões e de-cisões efetivadas no seio
homem como o sentido e verdade do ser, como doação de ser ao sentido. A música em
sua poética do sentido dá-se: sentido do ser. Na poética do sentido do ser a música
Pois,
Desse modo, a música, por dar-se poética do sentido, também diz, isto é, em sua
de mundo371. O vigor dessa saga como doação do próprio ser se manifesta como
tão pura e simplesmente dado, mas é em virtude da doação do ser e linguagem que som
e sentido chegam a estabelecer propriamente uma referência. Por isso mesmo, ainda que
próprio ser como sentido. Assim, a música não diz com as palavras, mas com a
369
Heidegger, 2001:176-7.
370
Andrade, 2002:117. Procura da poesia, vv. 16-8.
371
Cf. Heidegger, 2003:157.
225
pensar como agradecimento por uma dádiva, ou como diziam o gregos, como cháris372.
Assim, é como graça ou favor recebido que o homem refere sua essência no pensar
poético e no poetar pensante à doação do ser. Na dádiva do que se oferece nessa doação
“o poeta faz apelo àquilo que no desocultamento se deixa mostrar precisamente como o
que se encobre e, em verdade, como o que se encobre.”373 Ora, o que se deixa mostrar
Em toda poética está em jogo a re-velação do ser em sua dinâmica de alétheia, uma
dinâmica que mostra e ao mesmo tempo encobre. O que se doa na doação dá-se o que se
deixa ver. Em todo deixar ver, para o que se deixa ver é necessário que o que se dá se
medida em que as imagens poéticas, isto é, aquilo que se deixa ver no dizer poético são
imaginações.
Claro e obscuro, ressonância e silêncio são indiciações do sentido do ser em sua força
372
Cf. acepção In: Lidell-Scott, versão on-line, Projeto Perseus.
373
Heidegger, 2001:177.
374
Sobre a relação entre claridade e ressonância, cf. Capítulo I, p. 17ss.
375
Heidegger, 2001:177.
226
como uma simples duplicidade de ou isto ou aquilo, nem isto e aquilo, mas como a
festejar, como se festeja com alívio a conclusão bem sucedida de uma tarefa ou de um
dever. Na incumbência do homem ser o que é e habitar como habita, a saber, poeta e
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.378
A poesia não subsiste nem ganha vigência pelos objetos de um desmedido abuso
que o poético enseja o pensamento que medita o sentido, permite que as próprias coisas
ganhem sentido pela doação do ser que na poesia acontece e apropria. Na apropriação
376
Cf. Hölderlin, No azul sereno floresce..., vv. 31-2.
377
Heidegger, 2001:178.
378
Andrade, 2002:117. Procura da poesia, vv. 21-32.
227
que acontece no poético não se dá tão somente a consciência das meras coisas, pois
“ainda não pensamos o sentido quando estamos apenas na consciência”379. A poesia não
tem qualquer compromisso com a consciência. Esta, por sua vez, vigora, em tempos
Ora, é no sentido da memória das origens que o ser doa possibilidade. O a-ser-pro-
hermenêutico. Por isso, o perdurar do vigor da latência do vir a ser constitui a poesia
como a medida para toda e qualquer medida. Isto quer dizer, a poesia é um construir em
sentido inaugural, pois deixa em primeiro lugar o ser dizer a saga de seu vigor e de sua
vigência em sua referência para com o homem e com o sentido. Pois, se não é a
representação das coisas que nos chega pela memória, senão as coisas mesmas, isto
seu sentido e verdade. Esta manifestação, que ao mesmo tempo pronuncia o retraimento
379
Heidegger, 2001:58.
380
Souza, 2001/2:31.
228
do próprio ser (a-létheia), se diz na linguagem do ser, poiésis. Na medida em que o ser,
humano não será, então, diferente, pois na concruz aberta pela manifestação poética se
apenas ações que expressam uma repetição pura e simples, mas acenam nessa repetição
conhecimento adquirido, como no que ainda está por se conhecer, a música reúne
nossos projetos de ser nas ondas do não ser e do vir a ser381. Na encruzilhada do não-ser
poética do mundo. Na via cruciforme de toda interpretação que deixa ressoar a claridade
381
Leão, 1992:43.
229
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.382
habitação do ser, isto é, o vigor do seu sentido, é preciso antes de tudo levar realmente
em consideração o que até aqui foi ex-posto. Nesse contexto, claro está que o
pensamento não se deixa entender através das acepções metafísicas que o reduzem à
O não saber que advém como mistério não somente faz o pensamento pensar. O
fazer pelo fazer já se apresenta numa apreensão do mistério do não saber desde uma
apreensão do real, pode-se dizer então que o mistério não exatamente faz, mas dá o que
pensar. Esse “dar” aqui é muito significativo na medida em que se pode “compreender”
o mistério como aquilo mesmo que se dando, isto é, surgindo e dando o que pensar,
institui o próprio pensar. O pensamento continuamente se debruça então sobre algo que
lhe retira o chão firme, um retirar que transparece já mesmo ao se proferir o surgimento
382
Andrade, 2002:118. Procura da poesia, vv. 33ss
383
Leão, 1993:108.
230
mistério não está aí pura e simplesmente para ser desvendado e resolvido. Levando a
Para aprendermos a experimentar em sua pureza (...) essa Essência do pensar, devemos
libertar-nos da interpretação técnica do pensamento. Seus primórdios remontam até Platão e
Aristóteles. Para eles o pensamento é, em si mesmo, uma techne, o processo de calcular a
serviço do fazer e operar. Nesse processo já se toma o cálculo em função e com vistas à
práxis e a poiesis. Por isso, quando considerado em si, o pensamento não é prático. A
caracterização do pensamento como theoria, e a determinação do conhecimento como
atitude “teórica” já se processam dentro da interpretação “técnica” do pensar. É um esforço
relativo, visando preservar, também para o pensamento, a autonomia face ao fazer e ao agir.
Desde então, a “filosofia sente, constantemente, a necessidade de justificar sua existência
diante das “ciências”. E crê fazê-lo, da forma mais segura, elevando-se à condição de
ciência. Ora, esse esforço é o abandono da Essência do pensamento.
Diferentemente das ciências, o rigor do pensamento não reside apenas na exatidão
artificial, isto é, técno-teórica dos conceitos. O rigor do pensamento se edifica na medida
em que seu dizer permanece, exclusivamente, no elemento do Ser e deixa vigorar a
simplicidade de suas múltiplas dimensões.384
O mistério a ser pensado como fonte do próprio pensamento, isto é, como o que
ser e verdade ao mesmo. O ser se dá: verdade; o ser se dá, portanto: linguagem. No dar-
se verdade e não sendo, porém, coisa alguma ao modo de um ente, o ser mesmo se dá
como o mistério a ser pensado, aquilo mesmo que con-voca o pensamento a pensar,
384
Heidegger, 1995a:26-7.
231
manifestação do que ganha vigência, isto é, daquilo que sendo pelo vigor do ser se dá:
o pensamento se constitui, do mesmo modo que a poesia, numa vigília que con-suma “a
verdade e linguagem. Desse modo, o pensar se constitui numa unidade com a própria
memória. Esta unidade de pensar e memória foi preservada na experiência dos idiomas
Indo-Europeus:
Muitas das palavras para “lembrar” pertencem a um grupo herdado, de uma raiz Indo-
Européia que também é comum em palavras para “mente” e para “pensar”, e muitas outras
fora desse grupo estão relacionadas com outras palavras para “mente” e “pensar”. Em outro
grupo herdado “lembrar” ou “memória” (Indo-Iraniano, Latim) alterna com “ser ansioso,
cuidar” (Grego, Germânico).386
radical indo-europeu *mem-, a mesma raiz que “pensar”, como no sânscrito man-.387
Ambos mantém uma proximidade com o grego mna- que forma o verbo mémnemai e
também se liga a agradecer, cujos gregos verteram como cháris, e se reteve no Inglês
alemã Gedächtnis ainda hoje faz chegar ao dizer da fala essa reunião originária: “a
que estão no passado391 e que impõe ao pensamento a identificação final do ser com a
388
Heidegger, 1968:144. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 271.
389
Nota 2 do tradutor, In: Heidegger, 2001:118.
390
Heidegger, 1968:145. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 272.
391
Heidegger, 1968:145.
233
Mas se nós compreendermos memória sob a luz da antiga palavra Gedanc, então a
conexão entre memória e agradecimento se nos torna clara de uma vez. Pois, em dar
agradecimento, o pensamento recorda onde ele permanece reunido e concentrado, pois aí
ele pertence. Esse pensamento que co-memora é o agradecimento original.393
pensamento autêntico não apenas é aquele que agradece, mas o pensar que pensa aquilo
autêntico é aquele que pensa o que é digno de ser pensado e o que se constitui na
fonte da poesia. A palavra alemã Dichtung – poesia – conta a saga desse pensar
em que ocorre um condensar – dichten. A poesia diz a saga do sentido do ser com a qual
a memória densifica o real, dando-lhe contorno. Por isso, na poesia, em seu modo
392
Vattimo,1988:133.
393
Heidegger, 1968:145. Tradução nossa a partir da versão inglesa transcrita no Apêndice I, p. 272.
394
Heidegger, 2001:118.
234
asseguradora do real, pois ela mesma não é um ato puramente da vontade. Por isso,
jamais há uma razão que calcule suficientemente esta abertura, pois não é mesmo
possível contar com o ser. E não é possível pelo simples fato do ser, ele mesmo que dá
ser e que de certo modo se constitui como referência até mesmo de tudo que não é, o ser
mesmo não é. O ser não se dá como um “é”. Dar-se como poderia significar que o ser
teria como seu traço fundamental a identidade, a identidade com o que é, com a coisa,
enfim, com o próprio “é”. No entanto, o ser não pode manifestamente ser o mesmo que
o “é”. Isto quer dizer: ao ser não convém a natureza de coisa. Por isso, na medida em
que se pensa concentradamente o sentido não do “é”, como sempre fez a metafísica,
mas do ser, logo se depara com o fundo abissal daquilo que pensado metafisicamente
como o que provê ser a todo e qualquer ente, não tem qualquer fundamento. A questão
do fundamento é sempre uma questão da metafísica e como tal tem a própria questão do
em que também é possível pensar o ser nem como fundamento do ente, nem como
alguma coisa que por detrás possua um outro que lhe dê fundamento. Com a questão do
ser os sistemas lógicos de causa e efeito perdem sua vigência, já que o princípio da
numa unidade indissolúvel. O nome dessa referência atende pelo que diz o lógos. Esta
referência dá-se ao mesmo tempo abertura e sentido dessa comum-união e desse comum
pertencer. Ora, na medida em que o lógos diz a reunião de ser e homem, não é possível
235
pensar nem o ser como um “é”, nem o homem como substância. A identidade aqui não é
que se abre em meio a essa reunião originária concretizada no lógos. “É certo que a
metafísica representa o ente em seu ser e pensa assim o ser do ente. Todavia, ela não
mesmo”.395 Desse modo, o homem mesmo é evento, isto é, o homem com o ser
acontecimento formante, pois nunca cessa de apropriar mutuamente ser e homem. Nessa
mútua apropriação, o homem “é um evento, não uma substância na qual e para a qual
verdade da abertura e do sentido do ser para o qual e com o qual a cada vez o homem se
apropria e deixa apropriar-se, isto é, mutuamente escuta e pertence. A razão veda aqui
qualquer possibilidade de pensamento que não se traduza num cálculo assegurador e por
Mas só quando nós refletimos sobre o que no pensamento grego primevo lo/goj diz
para Heráclito, se tornou claro, que esta palavra nomeia ao mesmo tempo ser e fundamento,
ambos a partir de sua pertença recíproca. Aquilo que Heráclito designa por lo/goj diz ele
ainda por outros nomes, o que são expressões condutoras do seu pensamento: fu/sij, o que
se-abre-a-partir-de-si, que simultaneamente está presente como ocultar-se; ko/smoj, que em
grego simultaneamente expressa ordem, injunção e ornamento, que como brilho e esplendor
expõe à revelação; por fim Heráclito nomeia aquilo que se lhe atribui lo/goj como o mesmo
de ser e fundamento: aiw/n. A palavra é difícil de se traduzir. Diz-se: o tempo do mundo. É
o mundo, que mundifica e temporaliza, quando ele como ko/smoj (Frg. 30) traz a injunção
do ser a um resplandecer exaltante. Nós podemos após o que foi dito nos lo/goj, fu/sij,
ko/smoj, ouvir aquele indito, que nós nomeamos destino do ser.
O que diz Heráclito do aiw/n? O fragmento 52 reza: aiw/n pai=j e)sti pai/cwn, pesseu/wn
paido/j h( basilhi/h. Destino do ser, isso é uma criança, jogando, jogando ao tabuleiro; uma
criança e o reino – isto é a a)rxh/ o fundar governante instituinte, o ser ao ente. O destino do
ser: uma criança, que joga.
395
Heidegger, 1995a:39.
396
Inwood, 2002:4.
236
Por conseguinte também existem crianças crescidas. A maior, criança régia pela
suavidade do seu jogo, é aquele segredo do jogo, no qual o homem e o seu tempo de vida
trazido, é posto na sua essência.397
Porque é que a grande criança tida em vista por Heráclito no aiw/n joga o jogo do
mundo? Ela joga, porque ela joga.
O “porque” afunda-se no jogo. O jogo é sem “porque”. Ele joga, enquanto joga.
Permanece apenas o jogo: o supremo e o mais profundo.
Mas este “apenas” é tudo, o um, único.398
poesia concretiza o destino do ser. Mas esse destino não pode ser confundido com um
mero negativo. Ora, o ser não pode negar o que dá: ser, mas pode recusar-se num
retraimento. Portanto, o ser permanece no acontecimento que apropria o ente para sua
que esse pertencer manifesta a diferença entre ser e ente. Contudo, na abertura do
O homem é manifestamente um ente. Como tal, faz parte da totalidade do ser, como a
pedra, a árvore e a águia. Pertencer significa aqui ainda: inserido no ser. Mas o elemento
distintivo do homem consiste no fato de que ele, enquanto ser pensante, aberto para o ser,
está posto em face dele, permanece relacionado com o ser e assim lhe corresponde. O
homem é propriamente esta relação de correspondência, e é somente isto. “Somente” não
significa aqui limitação, mas plenitude.399
mesmo apropriado pelo ser. O pertencer [gehören] que aí ocorre é antes e acima de tudo
um escutar [hören]. Ora, ecoa até hoje o que diz o Fragmento 50 de Heráclito:
“Auscultando não a mim mas o Lógos, é sábio concordar que tudo é um”.400 Ser
pensante aberto e referenciado ao ser, o homem escuta o que no pensamento lhe restitui
ao ser como essência: o lógos. Somente por isso e em virtude disso o homem pode em
397
“A partir do extraordináro o homem, infantil, como a partir do homem, criança”. Fragmento 79. In:
Pensadores originários, p. 79.
398
Heidegger, 1999b:163.
399
Heidegger, 1991:142.
400
Heráclito, 1991:71.
237
primero lugar escutar o ser: porque o ser se torna linguagem. A linguagem: ser, a casa
do ser, dá-se também: morada do homem. Morada não quer dizer de modo algum um
lugar como outro qualquer, mas antes de tudo demorar-se, ficar, morar, viver com. Isto
significa que somente e na medida em que o homem se demora e se detém, fica e vive
com a linguagem, ele mesmo encontra e ganha o próprio sentido do ser, porquanto, na
echon” como aquela que manifesta o daimon do homem, isto é, aquilo que sendo o mais
simples, enseja o mais sagrado. Por isso, também, a morada, que nas perspectivas pós-
Esta “é tanto a palavra para o dizer como para o ser.”401 Desse modo, nesse co-
pertencimento de ser e linguagem, o homem só é homem por que na habitação desse co-
pertencimento ele se demora. Essa demora diz que o homem não controla em absoluto o
transcorrer de sua morada, mas que é a partir dela que pode chegar a compreender a
Por isso, jamais se corresponde ao apelo do ser que dá-se: linguagem, porque se
escuta este ou aquele sujeito, seja Heráclito, seja um eu singular ou coletivo, mas
porque antes de tudo se ausculta o lógos, se escuta, porque pertence àquilo mesmo que o
401
Heidegger, 2003:188.
402
Gadamer, 2002:178.
238
acontecimento em cuja ausculta tudo é um, em virtude de que, antes de tudo, no lógos o
demora. Desse modo, a demora que temporaliza a essência do homem como finitude se
fisionomia ambígua de familiaridade e ocultação, mostra o que a saga do dizer, seja ele
da palavra, seja ele da música, diz como concreção do real. O concreto do real se diz
enquanto se diz.
A linguagem viva não tem consciência de sua própria estrutura, gramática, sintaxe,
etc., portanto, de tudo aquilo que a ciência da linguagem tematiza.
(...)
(...) Quanto mais vivo o ato de linguagem, tanto menos consciência temos dele. Assim,
o esquecimento de si próprio da linguagem nos mostra que o seu verdadeiro sentido é o que
nela se diz, o que constitui o mundo comum, onde vivemos e onde se insere também a
grande corrente da tradição, que nos alcança por meio da literatura de línguas estrangeiras,
vivas ou mortas. O verdadeiro sentido da linguagem é aquilo que adentramos quando a
ouvimos: o dito.403
responder de uma escuta que pertence, mas somente para os enunciados de sua
presunção como medida e fundamento de tudo que há. O pensamento do sujeito não é
jamais parte de outra coisa que não o sujeito mesmo. “Penso, logo existo”, se apresenta
o mais, impõe a vigência de uma identidade pura calcada em si mesma. Nada tem a ver
com um pensamento originário que pensa o sentido sempre com o outro, com o sagrado,
isto é, com a diferença e com o que pronuncia a diferença. Também os poetas, por mais
403
Gadamer, 2002:178-9.
239
de asseguramento do real. Talvez não tanto por que como “sujeitos individuais” não
queiram continuamente fazer aparecer tudo e todos como corpos celestes em órbita da
esfera do eu, mas por que a poiésis antes de tudo e independentemente da autoria
concretiza a ética do acontecer poético que apropria mutuamente ser e homem. Como
essência de todo agir, a poiésis concede sempre a escuta primordial da unidade de ser e
lógos, diz que “no homem impera um pertencer ao ser; este pertencer escuta o ser
porque a ele está entregue como propriedade”404. Isto quer dizer, que o homem mesmo é
apropriado na linguagem muito antes que, como sujeito da razão, ele se aproprie dela.
que existe porque em primeiro lugar pensa, o próprio pensar pensa porque restitui a
profere, antes de tudo, a referência entre ser e homem como a referência primeva de ser
e ente. Assim, na medida em que o sujeito pensa o real a partir de uma identidade pura
essência ao ser significa que dando-se linguagem o ser con-voca todo pensar, mesmo
De outro modo não há pensar. Pensar sobre a linguagem quer dizer que o pensar já foi
antes de tudo alcançado pela linguagem. “Só podemos pensar dentro de uma linguagem
404
Heidegger, 1991:142.
240
enigma profundo que a linguagem propõe a pensar”.405 Por isso mesmo, mesmo numa
instala no instante em que começa a brilhar em nós o que o texto não diz, mas quer dizer
em tudo que nos diz”.406 Desse modo, nenhum enunciado, por mais conciso que seja,
possui uma autonomia tal que constitua sentido apenas a partir de si mesmo, mas a
partir daquilo que, dizendo, também não diz. A vigência essencial das referências de
sentido é o vigor que é próprio a cada enunciado como a vigência latente da essência da
em meio a toda ressonância. Pois, não é possível dizer o que a música traz à saga de seu
dizer a não ser pelo seu próprio dizer e mostrar. A música mostra o sentido que somente
ciência e a técnica possam enunciar. Permanece o fato de que estas enunciações jamais
ser.
Nesse sentido, a música jamais pode “ser” abstrata. Somente a obra pode “ser” e
mesmo assim, o que ela é nada tem a ver com a abstração. No entanto, é o que mais se
ouve e se diz por todos os lados, desde a experiência do senso comum até os gabinetes e
salas das academias. A proposição da música como abstração só pode ser enunciada,
música é a mais abstrata de todas as artes”. Exemplos de tal proposição não faltam na
abstrato como o caráter musical que a torna incapaz de “representar” uma outra coisa.
Apenas quando a música está associada a palavras ou a cena, por exemplo, é que
No entanto, de outro modo, deve-se afirmar aqui que o que na palavra é palavra
e no que nas artes é arte, é sempre a remissão do inaudito pronunciado pela música
como memória do ser. O que se diz aqui trata de levar a sério o que é a música em sua
pronúncia de memória do sentido do ser. O que se diz aqui é que a música mesma, em
seus laços imemoriais com lógos e memória proclama o sentido do ser. O que se afirma
aqui é que a saga da memória do sentido do ser se pronuncia na e com a própria música
e não através de uma representação de algo outro através dela. O que se diz aqui é que
na unidade imemorial de lógos e música, o ser não somente se torna linguagem, mas
com isso, torna-se música. Na medida em que se torna música, assegura o resguardo da
Representação aqui não é compreendida de acordo com o uso do senso comum que a
opõe ao abstrato. De um lado, a música não representa porque não remete para outras
porque nela nada há de abstrato. Isto quer dizer: a abstração, como se mostrou nos
capítulos anteriores é por excelência a operação que dis-põe o real como representação
esta não é em relação ao primeiro, mas ao segundo sentido. Afinal, desde uma
242
perspectiva de relações intramundanas, mesmo a obra musical pode aqui ou acolá, ainda
outras coisas do real. O que no entanto, nunca ocorre é que ela possa acontecer,
uma pura abstração racional e, portanto, como uma representação no segundo sentido.
A palavra abstrato vem do latim, abstraho que diz do que se retira, do se apresenta
idealmente ou do que se representa. Em última instância, abstrato diria de uma
representação à qual não corresponde nenhum dado sensorial ou concreto. Enquanto
representação, a abstração implica sempre um outro, e institui sempre uma necessidade de
correspondência. O abstrato traz consigo a necessidade de se perguntar o que ele abstrai, de
onde ele se retira, o que ele representa. A abstração implica também, por outro lado, a
identidade enquanto operacionalizador, na medida em que não é capaz de configurar o
sentido desde sua própria vigência.407
Desse modo, somente onde nunca se questiona a música, nem o que é abstração,
tampouco o que é representação, é que se pode afirmar que a música é a mais abstrata
de todas as artes. Porém, em todo questionamento que pergunta pela música e que se
deixa incumbir pela questão que é digna de ser pensada, aparece em primeiro lugar que
a música diz o aparecimento do ser dando-se como uma poética do sentido. A música
pro-duz o sentido em virtude do próprio ser tornar-se aquilo mesmo que ela resguarda
sentido. Ora, não é esta a experiência ao mesmo tempo mais comum e mais extra-
ordinária que a música constitui? Que é afinal esse realizar outra coisa senão um
concretizar? Dando-se a música: poética do sentido concresce a cada vez o que chega ao
407
Castro, 1997:224-5.
408
Castro, 1997:229.
243
música dá-se lógos da poiésis. Tudo que ela pro-duz ganha sentido porque densifica o
real como concreção e não como abstração. De outro modo, nada seria pro-duzido na
poética do sentido, dá-se também a poesia como apropriação de ser e homem. Nessa
sentido.
Por isso, também é preciso atender ao apelo que o próprio ser, que não é, apela
retraindo-se como origem, mesmo que nesse tornar-se não se pronuncie nenhuma
palavra sequer. Pois, para tudo que é próprio da linguagem como o proferir da palavra,
também é próprio da linguagem o fato de o que se diz ter sentido.410 Desse modo, nem a
palavra, nem o signo e nem o sentido são aqueles que dão proveniência à linguagem,
mas é esta que em primeiro lugar, em seu vigor de morada do ser, concretiza o que a
palavra, o signo e o sentido podem chegar a ser. Por isso, o ser tornando-se linguagem
diz algo sobre a própria linguagem que agora já não mais pode passar desapercebido:
409
Castro, 1997:231-2.
410
Cf. Heidegger, 2003:161.
244
obra de linguagem. Linguagem, não sendo, não pode também ser igual à obra literária.
em que ele mesmo se apropria e é apropriado como evento, ilumina aquilo que nessa
Dessa maneira, também não é possível dizer que a poesia é isto ou aquilo. Toda
vez que se tenta proferir enunciações propositivas a seu respeito, sempre se abstrai o
faz em dócil atenção ao apelo doador do ser, aquele que antes de tudo deseja em
pro-dução. Poesia, então, não é isto ou aquilo porque simplesmente poesia não é. Pois,
da mesma maneira, já não é mais possível obscurecer olhos e ouvidos, ofuscar o próprio
não é mais possível deixar de assinalar a diferença entre poesia e obra poética, e dizer: a
poesia não é, dá-se. A poesia dá-se: essência de todo agir porquanto resguarda em
memória do próprio ser as referências imemoriais entre ser e pro-duzir. A poesia diz o
Desse modo, a obra musical não é menos poética que uma obra de poesia escrita
por um poeta. Antes, a obra musical essencializa e aprofunda mais ainda a renúncia ao
245
controle e asseguramento da palavra que poderia ocorrer. Pois, renunciar a palavra aqui
“é uma renúncia em sentido próprio e não apenas um deixar de dizer o dizer.”411 Pois
dizer, antes de mais nada é sempre mostrar e deixar aparecer o sentido poético do ser,
evento apropriador de ser e homem. Toda vez que isso ocorre, dá-se o ser poeticamente
e com ele o homem habita poeticamente. Nenhuma palavra escrita ou falada é por si só
medida que é esta que em primeiro lugar concede o dom que se dá como dádiva do
referências entre ser e sentido. Na música se des-encobre um modo mais radical do que
vigência poética do sentido a música transporta o dizer para uma outra tonalidade:
O dizer pede uma outra articulação, um outro mélos, um outro tom. O próprio poema
testemunha que a renúncia do poeta está sendo experienciada nesse sentido, que a renúncia
diz à medida que o poeta canta a renúncia. Esse poema é na verdade uma canção. (...)
411
Heidegger, 2003:181.
412
George, Stefan. A canção. Parte final, apud Heidegger, 2003:181.
413
Heidegger, 2003:181.
246
E isto, quer o canto tenha palavras ou não, quer as pronuncie ou não. Desse
modo, a música mesma também não é, mas dá-se. Por isso, não se pode mais confundir
No empenho aqui em curso, a saber, o de fazer uma experiência não apenas com
a música como um mero objeto posto por um sujeito do conhecimento, mas antes uma
experiência con-junta de música, poética e sentido em que o próprio homem não pode
realiza a passagem do não-ser para o ser, como a realização mais própria do que é
música. “Poesia é canto”.414 No entanto, o que se ouve aqui vai muito além da
numa definição das mais simples, a arte de compor ou escrever versos. Porém, em toda
definição da poesia como arte, o que nunca se chega a pensar por que nunca questiona e
muito menos escuta, é justamente a proveniência do que é arte. Toda definição estética
permanece surda para o que realmente se diz com poesia e arte, de tal modo que não
pode nunca escutar que talvez não seja a poesia proveniente do artístico, mas muito ao
que seja a arte, quanto mais agora, se se remeter a arte ao poético como fonte de sua
proveniência. O que decorre de toda incerteza metafísica sobre a arte são incursões
enunciativas que aprofundam sua incompreensão, não apenas a respeito da própria arte,
414
Heidegger, 2003:141.
247
No percurso até aqui caminhado, assim como a música não é uma mera
conhecimento, também a poesia não tem em toda essa discussão como ser a mera
como sentido. Portanto, sentido aqui não é o mesmo que significado. Sentido é sempre o
sentido do ser, sentido do que chega à vigência. O vir à vigência como dar-se do ser não
reservada do ser, de modo que seu retraimento como encobrimento vigora como sua
constituição mais própria. Da mesma forma, então, o sentido do ser também se dá como
Ora, isso revela nada mais, nada menos do que a con-dição ambígua do ser. Pois,
se por um lado o ser não é, mas dá-se, esse dar-se se manifesta “como desvelar do
presencializar415”, por outro “o que é, antes de tudo é o Ser416”. Por isso, em re-ferência
à ambigüidade dispensada pelo próprio ser e vertendo a saga indizível que resguarda a
essência em que o ser se torna linguagem, “a música realiza a mágica que toca
415
Souza, 2001/2:29.
416
Heidegger, 1995a:24.
417
Cf. Leão, 1992:43.
Conclusão
pensar poético e o poetar pensante. Nesse modo de trilhar pelas questões do pensamento
não parece haver conclusão possível. Afinal, conforme o próprio pensamento chegou a
não é, mas dá-se e isto na medida em que o próprio ser, cujo apelo se dá na escuta do
lógos, o próprio ser não é, mas dá-se. Por outro lado, a mesma escuta ao apelo do
ainda mais radical que aquele do próprio Hermes. Nesses caminhos entre-mundos o ser
não apenas se torna linguagem – que também não é, mas dá-se – como o acontecimento
radicalmente poético, uma vez que com ele se manifesta o sentido do próprio real como
aquilo mesmo que está sempre a con-crescer. Nesse sentido, uma conclusão que se
problemas como questões. A pro-dução poética de sentido nunca se atém aos meros
eclodir das sempre novas e diferentes possibilidades de ser, mesmo ali onde o cálculo e
que caminha entre o pensar poético e o poetar pensante está sempre a empreender o
transito entre problemas e questões. Na apresentação das soluções que parecem óbvias
pensada.
Com isso, é preciso assinalar que não se quis aqui, de modo algum, promover
que tanto ciência como a filosofia serem modos da metafísica se cumprir em sua
plenitude. Em segundo lugar, que não é possível ainda para nenhum de nós
Ocidental, nela se dê o ponto de partida onde já de antemão nos encontramos. Por isso,
não se trata mesmo de um ataque, mas antes da defesa da dimensão poética como co-
própria música como aquele que possui a legitimidade de sua própria realização. Quer
queira, quer não, nenhuma metafísica elaborou qualquer discurso legítimo sobre a
música. Somente a música diz o que diz. Esta a legitimidade de seu dizer é substantiva
sentido.
contrário de toda metafísica, também não pretendem e nunca pretenderam operar uma
do real, mesmo porque isto simplesmente significaria o seu total esgotamento enquanto
poética do sentido. Ora, enquanto poética do sentido a música só pode mesmo proferir
sempre e outra vez novos sentidos. O poético não está comprometido com o já
estabelecido, mas com o que realiza a concretização do próprio ser. Este é sempre um
Isto quer dizer também que a música não tem o menor compromisso com
soluções. Soluções são ótimas para os problemas. Estes nada têm a ver com a música.
Não tendo compromisso com soluções, muito menos tem a música qualquer relação
objeto disposto numa funcionalidade qualquer é que se pode deixar de fazer música para
não somente a música apresenta uma série de problemas, mas ela mesma se torna o
418
Heidegger, 1990:60.
251
então se dispor numa escuta criativa o suficiente para pensar uma escuta da dimensão
por estarem desde sua proveniência ideal repletos e super-povoados dos mais diversos
discursos proposicionais. Pois, onde se fala demais, pouco espaço sobra para a escuta
essencial. Falar demais quer dizer não tanto o excesso de proposições e enunciações do
que a música é e de como ela deve ser compreendida, como o modo pelo qual se dá toda
representação. Portanto, basta apenas uma proposição para que todo o vigor da vigência
ambígua da produção poética de sentido da música seja numa tacada só submetida aos
transita entre o pensar poético e o poetar pensante, que caminha de problemas para
uma quantidade enorme de proposições, mas sob barulho ensurdecedor das diversas
representações racionais, mesmo que levada a cabo por uma única enunciação.
Por isso, se há alguma conclusão que possa aqui ser apresentada e reiterada é a
lógico. Como operador lógico destituiu-se o vigor da questão que pergunta pelo ser
252
substituindo-a pela relação lógica entre as mais diversas variáveis, sejam estas sujeito,
sejam objeto.
um lugar em que ela permaneceu no auge de sua vigência e de seu vigor e isso de um
ser. Mas a dimensão poética não se instaura desde as frases e sentenças bem
sem ser dita, sem ser pronunciada, a questão pelo ser é sempre aquela que põe e é
sempre diz respeito ao mistério do ser, do não-ser e do vir a ser. Este modo intrigante de
dizer sem dizer se instaura no e com o poético. Por isso, a dimensão poética é aquela em
que não somente o ser está em constante tema, mas, por isso mesmo, é a dimensão onde
também, embora o pensamento não seja ele mesmo um poetar, busca permanecer junto
ao poético na medida em que ele mesmo suplanta a obviedade das soluções em direção
ao dizer originário da linguagem como o dizer inaudito que pergunta por sua questão
originária.
Desse modo, para concluir, ainda é preciso dizer apenas mais uma coisa. Em
elucidativa ou não que ela possa ser ou pretender ser, toda pronúncia aqui deve a cada
vez romper consigo mesma e com o que ela tentou fazer. Em nome de preservar o que
253
poeticamente a música leva adiante como sentido, toda e qualquer fala necessita lutar
para se tornar supérflua. Pois toda fala transborda e ultrapassa aquilo mesmo que a
própria música, sem dizer, diz. “O último, mas também o passo mais difícil de toda
presença pura do poema.”419 Por isso, não somente o exercício de pensamento aqui deve
finalmente calar ante ao que a música diz, mas fundamentalmente, que a música possa
419
Heidegger, 2000a:222. Tradução nossa.
Apêndice I
Capítulo I
The Greeks distinguish themselves from other peoples and call them ba/rbaroi, ones
who have a strange sort of speech which is not muªqoj, not lo/goj, not eÃpoj. For the Greeks,
the opposite to “barbarism” is not “culture”; it is dwelling within muªqoj and lo/goj. There
has been “culture” only since the beginning of the modern period; it began the moment
veritas became certitude, when man posit himself for himself and made himself, by his own
“cultivation,” cultura, and by his own “creative work” a creator, i.e., a genius. The Greeks
are not familiar with the likes of either “culture” or “genius.” So it is curious that even
today the best classical philologists ramble on about the “cultural genius” of the Greeks.
From the standpoint of the Greeks, what is called “culture” in the modern period is an
organization of the “spiritual world” produced by the willful power of man. “Culture” is the
same in essence as modern technology; both are in a strict Greek sense unmythical.
Thought in Greek way, “cukture” and “technology” are forms of barbarism, no less than is
“nature” in Rousseau.
Capítulo II
In the Middle Ages and later the definition was: veritas est adaequatio rei et intellectus
sive enuntiationes, truth is the bringing of thought or proposition into alignment with the
thing, i.e. into correspondence with the latter, commensuratio, the measuring up to, or the
measuring against, something”.
255
[981a][1] Experience seems very similar to science and art, but actually it is through
experience that men acquire science and art; (…) Art is produced when from many notions
of experience a single universal judgement is formed with regard to like objects. To have a
judgement (…) is a matter of experience; but to judge (…) is a matter of art.
It would seem that for practical purposes experience is in no way inferior to art; indeed
we see men of experience succeeding more than those who have theory without experience.
The reason of this is a that experience is knowledge of particulars, but art of universals; and
actions and the effects produced are all concerned with the particular. For it is not man that
the physician cures, except incidentally, but Callias or Socrates or some other person
similarly named, who is incidentally a man as well. [20] So if a man has theory without
experience, and knows the universal, but does not know the particular contained in it, he
will often fail in his treatment; for it is the particular that must be treated. Nevertheless we
consider that knowledge and proficiency belong to art rather than to experience, and we
assume that artists are wiser than men of mere experience (which implies that in all cases
wisdom depends rather upon knowledge); and this is because the former know the cause,
whereas the latter do not. For the experienced know the fact, but not the wherefore; but the
artists know the wherefore and the cause. For the same reason we consider that the master
craftsmen in every profession are more estimable and know more and are wiser than the
artisans, [981b][1] because they know the reasons of the things which are done;
In contradistinction to the e)/mpeiroj, the texni/thj is the one who a)/neu th=j e)mpeiri/aj
e)/xei to\n lo/gon (cf. Met. I, 1, 981a21), “who, without being used to any particular
procedure, knows the ei)=doj.” He is the one who kaqo/lou gnwri/zei (cf. a2f.) the being in
question, “knows the being in its generality,” but who thereby to\ e)n tou/t% kaq’e(/kaston
a)gnoei= (cf. a22), “is unfamiliar with what in each case the being is for itself,” the being
which is this o(/lon is a e(/n among others. For te/xnh, thus, what is decisive is paying heed,
watching, i.e., disclosure. Therefore Aristotle can say: <a)rxite/ktonej> ta\j aiti/aj tw=n
poioume/non i)/sasin (981b1f.), “The architects know the causes of what is to be built.” The
following is thus manifest at the same time: the aiti/a, or the kaqo/lou, are initially not the
theme of a mere onlooking. They indeed stand out as ei)=doj, but not in such a way as to be
the theme of a special investigation. The knowledge of the aiti/a is initially present only in
connection with fabricating itself; i.e., the aiti/a are present initially only as the because-
therefore of such and such a procedure. The ei)=doj is at first present only in te/xnh itself. But
because in te/xnh the ei)=doj is precisely made prominent, therefore ma=llon ei)de/nai (a31f.),
“to know more,” is attributed to texni=tai, and they are held to be sofw/teroi than the mere
e)/mpeiroi.
256
In Greek experience the Word of Homer says: “He (Odysseus) was in concealment as
the one who shed tears.” Correspondingly, we translate the famous Epicurean admonition…
as “Live unnoticed”; thought in Greek way, it says, “Be in concealment as one conducting
his life”. (…) It is decisive – namely, for an understanding of the primordial essence of
truth, whose Greek name, a)lh/qeia, is related to the word lanqa/nw (…). For precisely the
way lanqa/nw, in the examples just referred to, is the ruling word tells us that what is
named in this word, the “concealed,” had a priority in the experience of beings, and,
specifically, as a character of beings themselves it is a possible “object” of experience. In
the case of the weeping Odysseus, the Greeks do not consider that the others present, as
human “subjects” in their subjective comportment, fail to notice the crying of Odysseus, but
they do think that round about this man and his existence there lies a concealment causing
the others present to be, as it were, cut off from him. What is essential is not the
apprehension on the part of the others but that there exists a concealment of Odysseus, now
keeping the ones who are present far from him. That a being, in this case the weeping
Odysseus, can be experienced and grasped depends on whether concealment or
unconcealment comes to pass.
(...) We say a house in the neighborhood is obstructing the view of the mountains.
Dissembling as ob-structing is first of all a concealing in the manner of covering up. We
cover up, e.g., a door that is not supposed to be seen in the room, and disguise it by placing
a cupboard in front of it. In this way an appearing sign, a gesture, a name, a word, can also
disguise something. The cupboard placed before the door not only presents itself as this
thing and not only disguises the door by covering over – i.e., concealing – the wall which at
this place has an opening, but, rather, the cupboard can be disguising to the point that it
pretends there is no door at all in the wall. The cupboard disguises the door, and by being
placed before it, it distorts the “actual” state of the wall.
We reflect too rarely on the fact that the same Greeks to whom the word and speech
were bestowed primordially could, for that very reason, keep silent in a unique way as well.
For “to keep silent” is not merely to say nothing. Without something essential to say, one
cannot keep silent. Only within essencial speech, and by means of it alone, can there prevail
essencial silence, having nothing in common with secrecy, concealment, or “mental
reservations.”
Pindaro, Ode Olímpica, VII, 43-7, apud Heidegger, 1992b:74. (p. 105)
Awe thrusts up the flourishing of the essence and the joy disposing man to think ahead;
but sometimes there comes over it the signless cloud of concealment, which withholds from
actions the straightforward way and places them outside what is thoughtfully disclosed.
257
)A)reth/ means the emergence and opening up and insertion of man’s fundamental
essence in Being. )A)reth/ is related to fua/ , Pindar’s word for the essence of man as it
emerges into unconcealedness. )A)reth/ and a)rtu/w are of the same stem as the Latin ars,
which became the Roman word for te/xnh, and which we translate by “art.” On the basis of
the insertion, emergence, and openness of man’s essence in a)reth/, he is “resolute,” open,
disclosing, and disclosed towards beings. In such a)reta/, re-soluteness, man is in the literal
sense “de-cided” with regard to the Being of beings; that is, “de-cision” means to be
without a scission from Being.
“Resoluteness” in the modern sense is the fixed ordination of the will upon itself and
belongs metaphysically within the essence of the will to will, the present form of which is
exhibited by the will to power. Resoluteness in the modern sense is metaphysically not
grounded on a)lh/qeia but on the self-assurance of man as subject, i.e., on subjectivity.
Resoluteness, as conceived in the modern way, is the willing of what is willed in its own
will; this will drives it to willing. “Being-driven” is in Latin fanatice. The distinguished
characteristic of modern resoluteness is “the fanatical”. As understood by the Greeks,
however, resoluteness, the self-disclosing opening up toward Being, has another origin of
essence, namely a different experience of Being – one based on ai)dw/j, awe. Awe thrusts to
man, and bestows on him, a)reta/. Awe as essence of Being convey to man the disclosure of
beings. But opposed to ai)dw/j there holds sway la/qa, the concealment we call oblivion.
Jezt auch kommet ein Wehn und regt die Gipfel des Hains auf,
Sieh! und das Schattenbild unserer Erde, der Mond
Kommet geheim nun auch; die Schwärmerische, die Nacht kommt,
Voll mit Sternen und wohl wenig bekümmert um uns,
Glänzt die Erstaunende dort, die Fremdlingin unter den Menschen
Über Gebirgeshöhn traurig und prächtig herauf.
For the Greeks the word as muªqoj, e)/poj, r(h=ma, and lo/goj is that by which Being
assigns itself to man, so that he might preserve it, in his own essence, as what is assigned to
him and might, for his part, find and retain his essence as man by means of such
preservation. Therefore the destiny, “to have the word”, lo/gon e)/xein, is the essential
characteristic of humanity that became historical as the Greek humanity.
(…)
Only where a humanity is entrusted with the essence, to have the word, lo/gon e)/xein,
only there does it remain assigned to the preservation of the unconcealedness of beings.
Only where this assignement holds sway and where unconcealedness appears in advance as
Being itself, only there does concealment also prevail in a way that can never be the mere
contrary and crude opposite to disclosure, i.e., in the modes of dissemblance, distortion,
misguidance, deception, and falsification.
Because there is still a more original mode of concealment to be distinguished from all
that, the Greeks named it with a word which, in distinction to yeu=doj and a)pa/th and
sfa/llein, immediately seizes upon the relation to the original stem: concealment as lh/qh.
(...) xa/oj signifies first of all the yawning, grasping chasm, the open that first opens
itself, wherein everything is engulfed. The chasm affords no support for anything distinct
and grounded. And therefore, for all experience, which only knows what is mediated, chaos
seems to be without differentiation and thus mere confusion. The “chaotic” in this sense,
however, is only the inessential aspect of what “chaos” means. Thought in terms of nature
fu/sij chaos remains that grasping out of which the open opens itself, so that it may grant
its bounded presence to all differentiations.
259
Capítulo III
““Facticity” is the designation we will use for the character of the being of “our”
“own” Dasein. More precisely, this expression means: in each case “this” Dasein in its
being-there for a while at the particular time (…) insofar as it is, in the character of its
being, “there” in the manner of be-ing. Being there in the manner of the be-ing means: not,
and never, to be there primarily as an object of intuition and definition on the basis of
intuition, as an object of which we merely take cognizance and have knowledge. Rather,
Dasein is there for itself in the “how” of its ownmost being. The how of its being opens up
and circumscribes the respective “there” which is possible for a while at the particular time.
Being – transitive: to be factical life! Being is itself never the possible object of a having,
since what is at issue in it, what it comes to, is itself: being.
(…)Hermeneutics has the task of making the Dasein (…)accessible to this Dasein itself
with regard to the character of its being, communicating Dasein to itself in this regard,
hunting down the alienation from itself with which it is smitten. In hermeneutics what is
developed for Dasein is a possibility of its becoming and being for itself in the manner of
an understanding of itself.
(…)The ownmost possibility of be-ing itself which Dasein (facticity) is, and indeed
without this possibility being “there” for it, may be designated as existence. It is with
respect to this authentic be-ing itself that facticity is placed into our forehaving when
initially engaging it and bringing it into play in our hermeneutical questioning. It is from
out of it, on the basis of it, and with a view to it that facticity interpretively explicated. The
conceptual explicate which grows out of this interpretation are to be designated
existentials”.
[1] Muse, sing of , the son of and , lord of and rich in flocks, the luck-bringing
messenger of the immortals whom bare, the rich-tressed nymph, when she was joined in
love with , [5] --a shy goddess, for she avoided the company of the blessed gods, and lived
within a deep, shady cave. There the son of Cronos used to lie with the rich-tressed nymph,
unseen by deathless gods and mortal men, at dead of night while sweet sleep should hold
white-armed fast. [10] And when the purpose of great was fulfilled, and the tenth moon
260
with her was fixed in heaven, she was delivered and a notable thing was come to pass. For
then she bare a son, of many shifts, blandly cunning, a robber, a cattle driver, a bringer of
dreams, [15] a watcher by night, a thief at the gates, one who was soon to show forth
wonderful deeds among the deathless gods. Born with the dawning, at mid-day he played
on the lyre, and in the evening he stole the cattle of far-shooting on the fourth day of the
month; for on that day queenly bare him. [20] So soon as he had leaped from his mother's
heavenly womb, he lay not long waiting in his holy cradle, but he sprang up and sought the
oxen of .
The poet of the "Hymn to Hermes" presents primordial mythological material in a form
that could later be integrated into and become part of the classical tradition. The serenely
scintillating, waggish irony with which he glorifies the Titanic event corresponds also to the
attitude of his hero. What additional information we get here about Hermes does not so
much enlarge his portrait to include new aspects as deepen it towards the Titanic. Since he
is integrated into the world of Zeus, Hermes naturally does not belong to the race of Titans.
Yet as we follow him we sense in him the essence of the pre-Olympian world, even apart
from the fact that he appears as a divine child and that the childhood of the Gods belongs
not to Olympian myth but to a far more ancient mythology. In the Hymn, an Olympian God
grows out of the primal child, and with this development his pre-Olympian history becomes
included in his classical image.
The journeyer is at home while underway, at home on the road itself, the road being
understood not as a connection between two definite points on the earth's surface, but as a
particular world. It is the ancient world of the path, also of the "wet paths" (the hygra
keleutha) of the sea, which are above all, the genuine roads of the earth. For, unlike the
Roman highways which cut unmercifully straight through the country-side, they run
snakelike, shaped like irrationally waved lines, conforming to the contours of the land,
winding, yet leading everywhere. Being open to everywhere is part of their nature.
Nevertheless, they form a world in its own right, a middle-domain, where a person in that
volatized condition has access to everything. He who moves about familiarly in this world-
of-the-road has Hermes for his God, for it is here that the most salient aspect of Hermes'
world is portrayed. Hermes is constantly underway: he is enodios ("by the road") and
hodios ("belonging to a journey"), and one encounters him on every path. He is constantly
in motion; even as he sits, one recognizes the dynamic impulse to move on, as someone has
acutely observed of his Herculean bronze statue. His role as leader and guide is often cited
and celebrated, and, at least since the time of the Odyssey, he is also called angelos
("messenger"), the messenger of the Gods.
Otto, Walter F., The Homeric gods, apud Palmer, 1980 (p. 125)
A man who is awake in the open field at night, or who wanders over silent paths,
experiences the world differently than by day. Nighness vanishes, and with it distance;
everything is equally far and near, close by us and yet mysteriously remote. Space loses its
measures. There are whispers and sounds and we do not know where or what they are…
There is no longer a distinction between what is lifeless and living; everything is animate
and soulless, vigilant and asleep at once.
261
(…) The expression “hermeneutic” derives from the Greek verb hermeneuein. That
verb is related to the noun hermeneus, ehich is referable to the name of the god Hermes by
a playfuk thinking that is more compelling than the rigor of science. Hermes is the divine
messenger. He brings the message of destiny; hermeneuein is that exposition which brings
tidings because it can listen to a message.
(…) For in the source of appearance, something comes toward man that holds the two-
fold of presence and present beings.
That two-fold has always already offered itself to man, although its nature remained
veiled.
Man, to the extent he is man, listens to this message.
And that happens even while man gives no particular attention to the fact that he is
ever listening already to this message.
Man is used for hearing the message.
(…) man stands in a relation.
And the relation is called hermeneutical because it brings the tidings of this message.
This message makes the claim on man that he respond to it…
… to listen and belong to it as man.
(…)
Man is the message-bearer of the message which the two-fold’s unconcealement
speaks to him.
¿Qué significa preguntar por algo? En primer lugar no es lo mismo preguntar "por"
algo que preguntar "sobre" algo. El preguntar "sobre" algo implica que eso por lo cual
pregunto está en un nivel inferior a mi preguntar, por eso pregunto "sobre". Tiene un
significado semejante al preguntar "acerca" de algo. Se trata en todo caso de algo que yo
desconozco todavía, y por eso pregunto, pero que puede llegar a ser conocido y dominado
por mí. En el caso, por ejemplo, de un científico que se pregunta "sobre" las propiedades de
unas muestras selenitas, o de un periodista que pregunta "sobre" los acontecimientos
ocurridos en la última conferencia "sobre" el desarme. En este preguntar "sobre" algo va
involucrado un "para", una finalidad. Es ir tras algo para lograr un propósito determinado.
Ordinariamente nuestro buscar cotidiano se mueve a este nivel que podríamos llamar
pragmático. Es una dimensión "cautivante" en la vida del hombre: en efecto, por un lado
tiene toda la riqueza que proporcionan la búsqueda y la inquietud y por otro asegura a dicha
búsqueda el dominio posible de lo buscado. Es "cautivante" además porque mantiene al
hombre cautivo de su propio preguntar.
Preguntar "por" algo tiene un sentido muy diferente. Mi preguntar se mueve al nivel de
aquello por lo cual pregunto. Es más, eso por lo que me pregunto me atañe directamente a
mí. Sin embargo no es un preguntarme "sobre" mí mismo, sino que es "por" algo que me
incumbe. Notemos por ejemplo la diferencia que hay cuando preguntamos sobre alguien y
262
cuando preguntamos por alguien. En el primer caso nos movemos al nivel de la cortesía o a
lo más de la curiosidad. En cambio cuando preguntamos por alguien que nos incumbe lo
hacemos preguntando por tal persona. Por ejemplo un médico no pregunta "sobre" sus
pacientes sino "por" ellos. Un sacerdote no pregunta "sobre" sus feligreses sino "por" ellos.
Una madre no pregunta "sobre" sus hijos sino "por" ellos.
Nuestro preguntar "por" tiene un origen. Este puede referirse a una determinada
situación que "le dio origen". "Dar origen" tiene entonces el sentido de un comienzo
histórico-fáctico. Por ejemplo: yo comencé a preguntarme por el criterio del sentido del
lenguaje movido por tal circunstancia, en tales condiciones, etc. Con ello señalo los
motivos que dieron origen a mi preguntar, señalo pues su "desde dónde". Todo preguntar
humano tiene su "desde dónde" en este sentido, y bien sabemos hasta qué punto puede
condicionar dicho comienzo toda la búsqueda posterior.
Pero si bien hablamos de "dar origen" conviene sin embargo que reservemos la palabra
origen para señalar con ella el "desde donde" radical de nuestro preguntar. En efecto éste
acontece en mí sin ser desde mí. Esto último me lo señala la facticidad del preguntar que
implica un saber que pregunta (un saber que ya sabe) y al mismo tiempo un saber que
pregunta. (y que todavía no sabe). Es allí, en ese poder de lo negativo, en ese misterio que
mueve al preguntar como su origen, donde se enraiza la fuerza del preguntar.
De ese modo, porque me incumbe, el origen del preguntar cuestiona mi mismo
preguntar por el origen. Esta "vuelta" no es un juego gramatical sino que devela el sentido
del "desde dónde" de nuestro preguntar. El origen se muestra así como no mediatizable
plenamente, pues no es puesto por mí, como in-prescindible, pues acontece desde él, como
no asegurable, pues me cuestiona. Mi preguntar no se orienta hacia una enseñanza o ciencia
que pudiera adquirir desde sí mismo. Mi poder preguntar se vuelve en cambio poder
responder.
La pregunta por el origen (está) en el origen de la pregunta. (Está) señala que no está a
la manera de un ente. El decir "en" no afirma inmanencia contrapuesta a trascendencia, así
como tampoco (está) implica quietud contrapuesta a movimiento. Al señalar el origen del
preguntar mostramos a la pregunta desde su origen.
Me pregunto por el origen: he dicho que esta pregunta me incumbe pero que no es un
preguntarme solipsista ya que en ese caso el origen de la pregunta estaría puesto por mí y
he mostrado que la pregunta acontece en mí pero no desde mí.
La pregunta acontece en mí como lenguaje. Ahora bien, el lugar propio del lenguaje en
cuanto lenguaje es el diálogo. El preguntar como "logos" se abre allí originariamente al
"dia" que lo posibilita y se hace diá-logo. Esta orientación del preguntar hacia su origen la
veíamos ya al interpretar el sentido radical de la pregunta por el el criterio del sentido del
lenguaje. Esa pregunta nos hacía saltar de un nivel pragmático al abismo del preguntar que
se expone (puesto que le incumbe). Ahora bien, este salto se realiza por (dia) el otro, en el
lenguaje (logos) y por eso acontece como diálogo.
Man’s being is grounded in language; but this actually occurs only in conversation.
Conversation, however, is not only a way in which language takes place, but rather
language is essential only as conversation. What we usually mean by “language,” namely, a
263
stock of words and rules for combining them, is only an exterior aspect of language. But
now what is meant by “conversation”? Obviously, the act of speaking with one another
about something. Speaking, then, mediates our coming to one another. But Hölderlin says,
“Since we have been a conversation and able to hear from one another.” Being able to hear
is not merely a consequence of speaking with one another, but is on the contrary the
presupposition of speaking. But even being able to hear is itself in turn based upon the
possibility of the word and has need of it. Being able to talk and being able to hear are co-
original. (…)We are a conversation, that always also signifies we are one conversation. The
unity of a conversation consists in the fact that in the essential word there is always
manifest that one and the same on which we agree, on the basis of which we are united and
so are authentically ourselves. Conversation and its unity support our existence.
His first encounter in the Homeric world brings something very primitive,
mithologically speaking, to light. The fortuitous nature of this encounter is typical of
Hermes, and it is primitive only insofar as chance and accident are an intrinsic part of
primeval chaos. In fact, Hermes carries over this peculiarity of primeval chaos – accident –
into the Olympian order. Hermes meets a tortoise, a primeval-looking creature, for even the
youngest tortoise could, by the looks of it, be described as the most ancient creature in the
world. It is one of the oldest animals known in mythology. The Chinese see in it the
mother, the veritable mother of all animals. The Hindus hold Kasyapa in honour, the
“tortoise-man,” father of their eldest gods, and say that the world rests on the back of a
tortoise, a manifestation of Vishnu: dwelling in the nethermost regions, it supports the
whole body of the world. The Italian name of tartaruga keeps alive a designation dating
from late antiquity, according to which the tortoise holds up the lowest layer of the
universe, namely Tartarus (Tartarou~co").
“Cheerfulness and love and sweet slumber” are, according to Apollo, the gifts of this
Hermetic art, which Hermes translates into a revelation of his essence. Originally, music
was the gift of Hermes, and in the tones of the syrinx it remains so. This is not Apollonic
music.
But come now, tell me this, resourceful son of Maia: [440] has this marvellous thing
been with you from your birth, or did some god or mortal man give it you --a noble gift --
and teach you heavenly song? For wonderful is this new-uttered sound I hear, the like of
which I vow that no man [445] nor god dwelling on Olympus ever yet has known but
you,O thievish son of Maia.
What skill is this? What song for desperate cares? What way of song? For verily here
are three things to hand all at once from which to choose, --mirth, and love, and sweet
sleep.
264
[450] And though I am a follower of the Olympian Muses who love dances and the
bright path of song --the full-toned chant and ravishing thrill of flutes --yet I never cared for
any of those feats of skill at young men's revels, as I do now for this: [455] I am filled with
wonder, O son of Zeus, at your sweet playing. But now, since you, though little, have such
glorious skill, sit down, dear boy, and respect the words of your elders For now you shall
have renown among the deathless gods, you and your mother also. This I will declare to
you exactly: [460] by this shaft of cornel wood I will surely make you a leader renowned
among the deathless gods, and fortunate, and will give you glorious gifts and will not
deceive you from first to last.”
“You question me carefully, O Far-worker; yet I am [465] not jealous that you should
enter upon my art: this day you shall know it. (…)[475] but since, as it seems, your heart is
so strongly set on playing the lyre, chant, and play upon it, and give yourself to merriment,
taking this as a gift from me, and do you, my friend, bestow glory on me.
The Great Goddess Mnemosyne (…) may be compared to a source (Quelle) for several
rea-sons. (It is not meaningless that she has a spring-Quelle-in Lebadeia; it is also
significant that her daughters are figures analogous to the spring Goddesses.) She is
memory as the cosmic ground of self-recalling which, like an eternal spring, never ceases
flowing. She even grants, again precisely through the Muses, pleasant, healing lapses of
memory (Theogony 55); in these one does not forget oneself, but only what is meant to be
forgot-ten. For this reason the blessings of Mnemosyne aid the dead and the poets: the first
265
she does not allow to dry up, the second she causes to flow over. In the Hymn she appears
as the Goddess who is set over Hermes like a daimon of fate. This is the meaning of the
original text: he gar lache Majados huion ("For he was ordained the son of Maia"). It is the
fate of Her-mes that for himself and for those with him there is no chance of losing oneself.
He cannot ever escape from memory. He is possessed by it, and he carries it as inherited
knowledge of all primordial sources of being.
The lyre in the hand of a Primordial Child expresses the musical quality of the world
quite apart from the poet’s intention. It is first and foremost charachteristic of Hermes
himself. The Homeric poet sensed the musical nature of the universe as essentially
Hermetic and located it in Hermes colour-band of the world spectrum. In all probability the
poet was not seeking this primeval music, but its hugher, Apollonian form. If, however, the
boy riding a dolphin (…) has a lyre in his hand, we were driven to think not merely of his
relations with Apollo Delphinios but of a more general, primary connection that existed
before all specific names: the connection of water, child and music.
Capítulo IV
We must think dis-closure exactly the way we think dis-charging (igniting) or dis-
playing (unfolding). Discharging means to release the charge; displaying means to let play
out the folds of the manifold in their multiplicity. Our first tendency is to understand
disclosure or disconcealment in opposition to concealing, just as disentangling is opposed
to entangling. Disclosure, however, does not simply result in something disclosed as
unclosed. Instead, the dis-closure [Ent-bergen] is at the same time an en-closure [Ent-
bergen], just like dis-semination, which is not opposed to the seed, or like in-flaming
[Entflammen], which does not eliminate the flame [Flamme] but brings it into its essence.
Dis-closure [Entbergung] is equally for the sake of an en-closure as a sheltering [Bergung]
of the unconcealed in the unconcealedness of presence, i.e., in Being. In such sheltering
there first emerges the unconcealed as a being. Disclosure – that now means to bring into a
sheltering enclosure: that is, to conserve the unconcealed in unconcealedness. The word
“dis-closure”, the appropriateness of which only a far-reaching meditation could reveal,
constains in its full sense equally essencially this emphasized moment of shelter, whereas
“unconcealedness” names only the removal of concealedness. The word “dis-closure” is
essencially and advisedly ambiguous in that it expresses a two-fold with an intrinsic unity:
on the one hand, as disclosure it is the removal of concealment and precisely a removal first
266
of the withdrawing concealment (lh/qh) and then also of distortion and displacement
(yeu=doj); on the other hand, however, as disclosure it is a sheltering en-closure, i.e., an
assuming and preserving in unconcealedness.
“Disclosure,” understood in its full essence, means the unveiling sheltering enclosure
of the unveiled in unconcealedness. It itself is of a concealed essence. We see this first by
looking upon lh/qh and its holding sway, which withdraws into absence and points to a
falling away and a falling out.
Admittedly, Aristotle calls genuine being (Met. a1) ta\ fanerw/tata pa/ntwn, that
which, of all things, is most apparent, in that it has already shown itself in advance in all
things and everywhere. But ta\ fanerw/tata pa/ntwn retains the distinguishing
determination ta th= fu/sei fanerw/tata pa/ntwn (933b11), that appears in such a way that
its appearance is determined on the basis of self-emergence: fu/sij.
Accordingly, at the beginning of metaphysics, both are retained: appearance in the
sense of a self-showing to a perception or to a “soul”. Here is hidden the reason for the
peculiary unsettling transitional character that marks metaphysics at its beginning and lets it
become what it is: on the one hand, with respect to the beginning, the last light of the first
beginning, and on the other hand, with respect to its continuation, the inception of the
oblivion of the beginning and the start of its concealment. Because the subsequent time
interprets Greek thought only in terms of later metaphysical positions, i.e., in the light of a
Platonism or Aristotelism, and since it thereby interprets Plato and Aristotle either in a
medieval way, or in a Leibnizian-Hegelian modern way, or even in a neo-Kantian way,
therefore it is now nearly impossible to recall the primordial essence of appearance in the
sense of emergence, i.e., to think the essence of physis. Accordingly, the essential relation
between fu/sij and a)lh/qeia also remains concealed. To the extent that it is ever referred to,
it seems very strange. But if fu/sij signifies a coming forth, an emergence, and nothing that
one might mean by ratio or “nature”, and if, then, fu/sij is an equiprimordial word for what
is named by a)lh/qeia, why then should not Parmenides´ didactic poem on a)lh/qeia bear the
title peri\ fu/sewj, “On the Coming Forth into the Unconcealed”?
The utterance of the poetical Word is the speaking and the song of Being itself, and the
poet is merely the e(rmhneu/j, the interpreter of the word. The poet does not invoke the
goddess, but instead, even before saying his first word the poet is already invoked himself
and already stands within the appeal of Being versus the “demonic” withdrawal of
concealment.
267
The uncanny is that out of which all that is ordinary emerges, that in which all that is
ordinary is suspended without surmising it ever in the least, and that into which everything
ordinary falls back. To\ daimo/nion is the essence and essencial ground of the uncanny. It is
what presents itself in the ordinary and takes up its abode therein. To present oneself in the
sense of pointing and showing is in Greek dai/w (dai/ontej – dai/monej).
These are not “demons” conceived as evil spirits fluttering about; instead, they
determine in advance what is ordinary, without deriving from the ordinary itself. They
indicate the ordinary and point toward it.
But because it is the origin, it comes necessarily in such a way that it conceals itself.
For an origin shows itself by its giving forth. But what is closest to this giving forth is that
which has sprung forth from it. The origin has released this out of itself, but in such a way
that the origin does not show itself in what it has released, but rather conceals itself and
withdraws behind it.
Mnemosyne, die Tochter Von Himmel und Erde, wird als Braut des Zeus in neun
Nächten die Mutter der Musen. (...) Offenkundig meint dieses Wort anderes als nur die von
der Psychologie feststellbare Fähigkeit, Vergangenes in der Vorstellung behalten.
Gädachtnis denkt an das Gedachte. Aber als Name der Mutter der Musen meint >>
Gädachtnis<< nicht ein beliebiges Denken von irgendwelchem Denkbaren. Gädachtnis ist
die Versammlung des Denkens auf das, was überall im voraus schon bedacht sein möchte.
Gädachtnis ist die Versammlung des Andenkens. Sie birgt bei sich und verbirgt in sich das,
woran jeweils zuvor zu denken ist bei allem, was west und sich als Wesendes, Gewesendes
zuspricht: Gädachtnis, die Mutter der Musen: das Andenken an das zu-Denkende ist der
Quellgrund des Dichtens.
Capítulo V
Many of the words for “remember” belong to an inherited group, from an IE root that
is also widespread in words for “mind” and for “think”, and several outside this group are
connected with other words for “mind” and “think”. In another inherited group “remember”
or “memory” (Indo-Iranian, Lat.) alternates with “be anxious, care” (Grk., Gmc.).
The thanc means man´s inmost mind, the heart, the heart´s core, that innermost essence
of man which reaches outward most fully and to the outermost limits, and so decisively
that, rightly considered, the idea of a inner and outer world does not arise.
(...) The thanc, the heart´s core, is the gathering of all that concerns us, all that we care
for, all that touches us insofar as we are, as human beings. What touches us in the sense that
it defines and determines our nature, what we care for, we might call contiguos or contact.
269
Der Gedanc bedeutet: das Gemüt, das Herz, der Herzensgrund, jenes Innerste des
Menschen, das am weitesten nach außen und ins Äußerste reicht und dies so entschieden,
daß es, recht bedacht, die Vorstellung eines Innen und Außen nicht aufkommen läßt.
(...) Der Gedanc, der Herzensgrund ist die Versammlung ales dessen, was und angeht,
was und anlangt, woran uns liegt, uns, insofern wir als Menschen sind. das, was uns im
wesenhaft Bestimmenden Sinne anliegt und woran uns liegt, können wir mit einem Wort
das Anliegende oder auch das Anliegen nennen.
But if we understand memory in the light of the old word thanc, the connection
between memory and thanks will dawn on us at once. For in giving thanks, the heart in
thought recalls where it remains gathered and concentrated, that is where it belongs. This
thinking that recalls in memory is the original thanks.
Verstehen wir jedoch das Gedächtnis aus dem alten Wort “ der Gedanc”, dann geht uns
auch sogleich der Zusammenhang zwischen Gedächtnis und Dank auf. Denn im Dank
gedenkt das gemüt dessen, worein es versammelt bleibt, insofern es dahin gehört. Dieses
andenkende Gedenken is der ursprüngliche Dank.
270
Apêndice II
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Índice Remissivo
alétheia, 61, 63, 65, 67, 84, 85, 87, 88, 92, 94, 98, 99, 101, 102, 103, 105, 107, 108, 110, 111, 112, 114, 116, 117,
162, 165, 172, 173, 179, 180, 182, 183, 185, 186, 209, 218, 230, 237, 239, 242, 248, 249
Apolo, 127, 156, 157, 158, 159, 160, 163, 166, 168, 199
audição, 10, 11, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 44, 49, 169, 226
caverna, 30, 34, 35, 40, 41, 50, 61, 62, 65, 157, 176, 218
ciência, 7, 8, 53, 56, 59, 66, 67, 70, 75, 76, 99, 103, 105, 122, 135, 136, 139, 141, 143, 154, 172, 187, 190, 193, 201,
208, 214, 215, 216, 217, 220, 221, 224, 225, 239, 240, 247, 256, 258, 269
claridade, 18, 98, 131, 218, 242, 245
compreensão, 6, 9, 11, 14, 20, 22, 27, 34, 36, 41, 44, 46, 49, 50, 57, 58, 62, 71, 79, 84, 87, 88, 94, 102, 107, 116, 119,
123, 124, 125, 126, 136, 137, 138, 139, 141, 148, 149, 150, 151, 152, 154, 155, 162, 169, 170, 171, 197, 204, 209,
218, 227, 229, 232, 233, 235, 245, 250, 258, 265, 270, 271
conversa, 208
delphin, 156
desencobrimento, 3, 85, 88, 114, 115, 179, 189
des-ocultação, 67, 84, 92, 180, 181, 200, 251
diá-logo, 148, 149, 150, 151, 154, 166, 283
dissimulação, 86, 89, 91, 114, 230
hermenêutica, 20, 119, 123, 124, 125, 127, 130, 132, 135, 137, 139, 141, 142, 146, 147, 151, 152, 153, 154, 155, 170,
298
Hermes, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 134, 135, 136, 137, 141, 142, 144, 147, 152, 153, 154, 155, 156,
157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 166, 167, 168, 199, 208, 209, 211, 229, 237, 268, 280, 281, 282, 284, 285,
286, 296, 297
Hölderlin, 5, 97, 112, 113, 114, 115, 116, 149, 150, 198, 207, 213, 243, 244, 246, 278, 279, 284, 289, 293, 295
identidade, 32, 37, 55, 67, 68, 72, 73, 74, 79, 83, 86, 89, 98, 106, 108, 132, 133, 147, 148, 152, 159, 174, 187, 212,
236, 252, 257, 260
imperium, 145, 146, 147, 162
intelecto, 6, 10, 26, 33, 39, 45, 46, 47, 48, 49, 64, 68, 73, 75, 108, 177, 178, 179, 186, 194, 246, 263, 266
interpretação, 11, 15, 37, 57, 61, 62, 63, 119, 123, 124, 133, 140, 147, 161, 162, 165, 193, 219, 227, 232, 235, 245,
247, 255, 273, 298
medida, 2, 6, 11, 15, 22, 25, 31, 39, 51, 54, 59, 64, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 74, 78, 79, 80, 82, 83, 86, 89, 91, 97,
102, 107, 108, 118, 120, 121, 122, 123, 125, 129, 132, 134, 135, 137, 138, 140, 141, 142, 146, 148, 151, 153, 155,
156, 157, 159, 160, 165, 168, 169, 171, 172, 174, 182, 187, 190, 191, 194, 195, 201, 203, 204, 205, 206, 210, 212,
214, 215, 216, 220, 223, 224, 225, 226, 227, 229, 230, 231, 232, 235, 236, 237, 240, 242, 243, 244, 246, 247, 248,
249, 251, 254, 256, 259, 260, 264, 268, 269, 272
memória, 3, 53, 133, 134, 167, 174, 177, 183, 184, 185, 187, 188, 189, 191, 192, 195, 196, 199, 200, 202, 203, 207,
208, 209, 210, 211, 212, 226, 227, 231, 232, 234, 237, 241, 243, 244, 248, 249, 250, 251, 254, 257, 259, 261, 263,
272, 298
metafísica, 6, 7, 8, 11, 15, 30, 55, 56, 59, 65, 72, 73, 79, 100, 105, 121, 137, 139, 144, 151, 163, 165, 169, 173, 176,
177, 178, 181, 196, 211, 214, 232, 233, 240, 250, 252, 265, 269, 270, 272, 294, 298
mito, 28, 33, 34, 40, 45, 119, 126, 128, 130, 132, 133, 152, 154, 169, 181, 201, 293, 297, 298
Mnemósyne, 24, 32, 155, 157, 160, 166, 167, 168, 169, 184, 187, 200, 201, 202, 203
musas, 3, 31, 32, 104, 120, 132, 133, 134, 155, 203, 210, 211
música, 2, 3, 4, 5, 8, 11, 20, 23, 33, 57, 58, 99, 101, 102, 103, 119, 121, 122, 123, 124, 136, 138, 143, 144, 148, 152,
155, 157, 158, 159, 166, 167, 168, 171, 172, 173, 174, 176, 177, 184, 199, 200, 203, 204, 207, 208, 209, 210, 211,
212, 214, 215, 216, 223, 224, 225, 226, 228, 229, 230, 231, 234, 236, 237, 238, 239, 240, 241, 242, 244, 245, 256,
258, 259, 260, 261, 264, 265, 266, 268, 270, 271, 273, 292
mythos, 10, 11, 13, 14, 16, 19, 20, 108, 109, 110, 120, 155
noite, 16, 112, 113, 114, 115, 126, 127, 131, 198, 199, 235, 239, 241, 246
Nýx, 180
ocultação, 65, 67, 85, 103, 180, 181, 200, 202, 211, 230, 256
oral, 10, 11, 13, 14, 17, 23, 24, 25, 36, 38, 44, 49, 53, 169, 184
oralidade, 12, 13, 14, 17, 23, 24, 25, 27, 34, 39, 169, 184, 297
pensamento, 1, 2, 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, 15, 38, 50, 57, 60, 61, 63, 73, 85, 99, 102, 105, 108, 109, 115, 116, 117, 119,
121, 122, 123, 124, 135, 136, 137, 138, 143, 144, 145, 150, 161, 162, 165, 176, 182, 189, 196, 200, 205, 207, 212,
217, 218, 227, 228, 230, 231, 232, 233, 234, 238, 243, 246, 247, 248, 250, 251, 253, 254, 257, 261, 263, 268, 269,
271, 272, 273, 295, 297
pensar poético, 1, 3, 4, 5, 174, 209, 219, 236, 239, 240, 241, 268, 269, 271, 293
phýsis, 20, 29, 111, 117, 181, 182, 187, 192, 209, 217, 218, 219, 220
282
Platão, 11, 12, 15, 18, 19, 21, 22, 25, 26, 30, 31, 34, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 59, 60, 61,
62, 63, 65, 66, 67, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 77, 78, 79, 85, 86, 105, 108, 144, 145, 178, 179, 182, 188, 190, 191,
247, 294, 295
poetar pensante, 1, 3, 4, 5, 174, 228, 236, 240, 241, 268, 269, 271
poética, 5, 8, 12, 19, 20, 21, 22, 27, 28, 33, 40, 41, 42, 45, 46, 47, 57, 67, 75, 111, 113, 119, 121, 122, 123, 124, 136,
138, 143, 144, 148, 152, 173, 174, 176, 177, 184, 185, 186, 195, 198, 209, 210, 228, 229, 230, 231, 233, 234, 235,
236, 238, 240, 241, 242, 244, 245, 261, 263, 265, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273, 292
poiésis, 5, 56, 100, 177, 178, 179, 184, 187, 195, 204, 212, 231, 235, 245, 253, 257, 261, 268
proto-compreensão, 151, 169
razão, 11, 19, 26, 45, 46, 49, 51, 52, 60, 64, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 75, 76, 81, 83, 88, 92, 99, 103, 138, 158, 167, 174,
178, 188, 191, 196, 233, 236, 238, 247, 252, 256, 262, 269
real, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 16, 17, 20, 25, 26, 36, 39, 41, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 54, 56, 57, 58, 59, 60,
63, 67, 69, 72, 74, 75, 79, 80, 83, 84, 86, 92, 98, 99, 101, 103, 112, 126, 130, 138, 140, 141, 142, 144, 145, 146,
147, 155, 167, 168, 171, 172, 176, 178, 179, 186, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 198, 201, 202, 204, 205,
209, 210, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 220, 221, 222, 227, 229, 232, 235, 236, 238, 239, 241, 243, 247,
250, 251, 256, 257, 260, 261, 262, 263, 264, 266, 267, 268, 270, 296
representação, 1, 25, 45, 58, 67, 68, 73, 74, 75, 79, 82, 83, 88, 133, 147, 174, 176, 187, 189, 190, 192, 194, 200, 215,
216, 217, 218, 220, 224, 226, 232, 234, 236, 244, 246, 259, 260, 261, 264, 266, 269, 271, 272, 298
unidade, 17, 21, 32, 33, 72, 73, 93, 94, 96, 117, 124, 125, 132, 133, 134, 135, 137, 139, 142, 147, 150, 151, 152, 154,
155, 156, 158, 160, 166, 167, 169, 173, 175, 177, 180, 185, 186, 204, 208, 210, 211, 212, 218, 242, 244, 248, 252,
257, 259, 261, 296
283
verdade, 2, 11, 25, 30, 31, 34, 35, 38, 41, 43, 44, 45, 46, 50, 54, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 69, 70, 71,
73, 74, 75, 76, 78, 79, 84, 85, 87, 88, 94, 97, 98, 99, 101, 102, 104, 108, 112, 117, 139, 141, 145, 146, 149, 151,
156, 158, 161, 162, 163, 164, 173, 174, 179, 183, 185, 190, 191, 194, 204, 210, 211, 214, 215, 216, 219, 220, 221,
222, 224, 226, 228, 230, 231, 232, 234, 235, 236, 239, 240, 242, 243, 245, 248, 251, 253, 260, 263, 264, 271, 293,
295
visão, 10, 11, 17, 19, 21, 24, 27, 28, 29, 30, 31, 33, 34, 35, 37, 38, 48, 49, 62, 75, 95, 99, 123, 140, 155, 169, 170, 194
Zeus, 32, 69, 90, 92, 126, 127, 134, 157, 158, 159, 160, 161, 164, 166, 167, 199, 200, 201, 202, 203, 281, 285, 289,
298