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J. Krishnamurti

Sobre a Natureza
e o
 Me
 M eio A m b ie
iennte

Tradução
ZILDA HUTCHINSON SCHILD SILVA

EDITORA CULTRIX
SÃO PAULO
J. Krishnamurti

Sobre a Natureza
e o
 Me
 M eio A m b ie
iennte

Tradução
ZILDA HUTCHINSON SCHILD SILVA

EDITORA CULTRIX
SÃO PAULO
Se vocês perderem contato com a natureza, perderão o contato
com a humanidade. Se não houver relacionamento com a natu
reza
reza,, vocês se tornarão assassinos;
assassinos; entã
então,
o, matarão filhote
filh otess de
 foca
 fo ca,, baleias, golfinh
golf inhosos e homens, quer
qu er pelo
pe lo lucro,
lucro, quer
qu er p o r "es
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 po rtee ”, par
p ara
a obte
ob terr alimento,
alimento , ou par
p ara
a ampli
am pliar
ar seus conhec
con hecimimen
en
tos.
tos. Então, a natureza fic fi c a com medo de vocês,
vocês, e perd
pe rdee a beleza
beleza..
Vocês podem dar longas caminhadas nos bosques, ou acampar 
em lugares
lugar es adoráveis,
adoráveis, mas são matadores
m atadores e,e, portanto,
portanto, perderam
a amizade da natureza. Provavelmente não se relacionam com
coisa nenhuma, nem com suas esposas nem com seus maridos.

Diário de Krishnamurti, 4 de abril de 1975


Sumário

Prefácio................................................................................... 9
Poona, 17 de Outubro de 1948 ........................................... 11
 Nova Delhi, 14 de Novembro de 1948 ............................... 15
De  Das Trevas para a L u z .................................................. 23
Do  Diário de Krishnamurti, 6 de Abril de 1975 ............... 25
 Nova Delhi, 28 de Novembro de 1948 ............................... 29
Varanasi, 22 de Novembro de 1964 ................................... 31
Varanasi, 28 de Novembro de 1964 ................................... 35
De Comentários Sobre o Viver, Segunda Série ................. 45
De  A Primeira e Última Liberdade,   Capítulo 3 ................ 49
De  A Liberdade do Conhecido, Capítulo 11 ..................... 51
De Cartas às Escolas Volume 2,   l2 de Novembro
de 1983 ............................................................................. 59
De Cartas às Escolas Volume 2,   15 de Novembro
de 1983 ............................................................................. 63
De Palestras na Europa   1968, Paris, 25 de Abril
de 1968 ............................................................................. 65
De Palestras na Europa   1968, Amsterdã, 22 de Maio
de 1968 ............................................................................. 69
De Krishnamurti para Si Mesmo,  26 de Abril
de 1983 ............................................................................. 77
Brockwood Park, 10 de Setembro de 1970 ....................... 83
Saanen, 13 de Julho de 1975................................................ 87

7
De Krishnamurti para Si Mesmo,  25 de Fevereiro
de 1983 ............................................................................ 89
Brockwood Park, 4 de Setembro de 1980 ......................... 93
Madras, 6 de Janeiro de 1981 ............................................. 97
Saanen, 29 de Julho de 1981 ............................................... 103
De  Das Trevas para a L u z .................................................. 107
De Krishnamurti para Si Mesmo, 6 de Maio de 1983. . . . 109
Madras, 27 de Dezembro de 1981 ..................................... 113
Bombaim, 24 de Janeiro de 1982 ....................................... 119
Ojai, Ie de Maio de 1982...................................................... 121
Madras, 26 de Dezembro de 1982 ..................................... 125
Ojai, 22 de Maio de 1983 ...................................  ................ 127
Brockwood Park, 4 de Setembro de 1983 ........ : .............. 131
Ojai, 24 de Maio de 1984 .................................................... 133
Do  Diário de Krishnamurti, 4  de Abril de 1975 .............. 137
Rajghat, 12 de Novembro de 1984 ..................................... 139
Madras, 29 de Dezembro de 1979 ..................................... 143
Do  Diário de Krishnamurti,   24 de Outubro de 1961........ 147


Prefácio

J iddu Krishnamurti nasceu na índia em 1895 e, aos treze anos


de idade, foi aceito pela Sociedade Teosófica, que o considerou
talhado para o papel de “mestre do mundo”, cujo advento vinha
anunciando. Em pouco tempo Krishnamurti despontaria como
mestre vigoroso, independente e original, cujas palestras e escri
tos não se ligavam a nenhuma religião específica nem eram pró
 prias do Ocidente ou do Oriente, mas de todo o mundo. Repu
diando com firmeza a imagem messiânica, em 1929 ele dissolveu
dramaticamente a ampla organização monista que se constituía
à sua volta e declarou ser a verdade um “território inexplorado”,
do qual não era possível aproximar-se através de nenhuma reli
gião formal, filosofia ou seita.
Pelo resto de sua vida, Krishnamurti rejeitou com vigor a
condição de guru que lhe tentavam impingir. Ele continuou a
reunir grandes multidões em todo o mundo, mas não se atribuía
nenhuma autoridade, não queria ter discípulos e falava sempre
como um indivíduo dirigindo-se a outro. No âmago de seus en
sinamentos encontrava-se a constatação de que mudanças fun
damentais na sociedade só podem ser conseguidas através da
transformação da consciência individual. Krishnamurti acentua
va constantemente a necessidade do autoconhecimento e da com
 preensão das influências restritivas e separatistas das religiões,
 bem como das condicionantes da nacionalidade. Krishnamurti

9
apontava sempre para a urgente necessidade de se manter o es
 pírito aberto e para o “amplo espaço da mente em que há inima
ginável energia”. Esse parece ter sido o manancial de sua cria
tividade e a chave para o poder catalítico que exercia sobre uma
tão grande variedade de pessoas.
Fez palestras, sem cessar, por todos os cantos do mundo até
sua morte, ocorrida em 1986, aos noventa anos de idade. Suas
conferências e diálogos, diários e cartas foram reunidos em mais
de sessenta livros e em centenas de gravações. Desse vasto corpo
de ensinamentos compilou-se esta série de livros-tema. Cada li
vro focaliza um assunto que possui particular relevância e ur
gência em nossa vida diária.

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Poona, 17 de Outubro de 1948

Questionador  Qual o significado do relacionamento correto com


a natureza?

Krishnamurti: Não sei se vocês descobriram seu relacionamento


com a natureza. Não há relacionamento “correto”, há apenas a
compreensão desse relacionamento. O relacionamento correto
implica a mera satisfação de uma fórmula, como acontece com
o pensamento correto. O pensamento correto e o pensar corre
tamente são duas coisas distintas. O pensamento correto é sim
 plesmente conformar-se com o que é certo, com o que é respei
tável, ao passo que pensar corretamente é movimento, é o pro
duto da compreensão, a qual está constantemente passando por
modificações, por mudanças. Analogamente, há uma diferença
entre relacionamento correto e compreender o nosso relaciona
mento com a natureza. Qual é o relacionamento com a natureza
(isto é, com os rios, as árvores, os pássaros que voam ligeiros,
os peixes nas águas, os minerais sob a terra, as cachoeiras e os
lagos rasos)? Qual é o relacionamento com eles? A maioria de
nós não está consciente desse relacionamento. Nós nunca olha
mos para uma árvore, ou, se o fazemos, é com a intenção de
usar essa árvore, quer sentando-nos à sua sombra, quer cortan
do-a para usar como madeira. Em outras palavras, olhamos para
as árvores com objetivos utilitários: nunca olhamos para uma

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árvore sem nos projetarmos, sem usá-la para a nossa própria
conveniência. Tratamos a terra e os seus produtos da mesma
maneira. Não há amor pela terra, há apenas o uso da terra. Se
de fato amássemos a terra, economizaríamos os produtos que ela
nos dá. Ou seja, se quiséssemos entender o nosso relacionamento
com a terra, teríamos de ter muito cuidado com o modo de usar
mos os seus produtos. A compreensão do nosso relacionamento
com a natureza é tão difícil de compreender quanto o nosso re
lacionamento com os vizinhos, a esposa e os filhos. Mas não
ligamos para isso. Nunca nos sentamos para olhar as estrelas, a
lua ou as árvores. Estamos ocupados demais com as atividades
sociais ou políticas. Obviamente, essas atividades são meios de
fuga de nós mesmos; venerar a natureza também é um meio de
fuga. Estamos sempre usando a natureza quer como uma fuga,
quer para fins utilitários — nunca nos detemos de verdade e
amamos a terra ou as coisas que ela nos dá. Não apreciamos os
campos férteis, embora os usemos para nos alimentar e vestir.
 Não gostamos de cultivar a terra com nossas mãos. Temos ver
gonha de fazer trabalhos manuais. Afinal, esse trabalho só é feito
 pelas castas inferiores. Nós, as classes superiores, aparentemente
somos demasiado importantes para usar as próprias mãos: por
tanto, perdemos o nosso relacionamento com a natureza:
Se tivéssemos entendido esse relacionamento, a sua real im
 portância, não dividiríamos a propriedade em sua ou minha; em
 bora tivéssemos um lote de terra e construíssemos uma casa, esta
não seria “minha” nem “sua” no sentido da exclusividade —
seria mais um modo de buscar abrigo. Pelo fato de não amarmos
a terra e os seus produtos mas simplesmente os usarmos, somos
insensíveis à beleza de uma queda d’água, perdemos o contato
com a vida: não nos recostamos no tronco de uma árvore. Já que
não amamos a natureza, não sabemos amar os seres humanos e
os animais. Vão até as ruas e observem como os bois são mal

12
tratados, como a cauda dos bois perdem a forma. Vocês balançam
a cabeça e dizem: “Mas como isso é triste.” Contudo, perdemos
a ternura, a sensibilidade que reage às coisas belas, e é apenas
na renovação dessa sensibilidade que podemos entender o que é
um verdadeiro relacionamento. Essa sensibilidade não surge com
o mero fato de pendurarmos alguns quadros na parede, nem de
 pintarmos uma árvore, nem de colocarmos flores no cabelo; a
sensibilidade só morre quando se deixa de lado essa visão utili
tária. Isso não significa que vocês não possam usar a terra; porém,
vocês devem usá-la como ela deve ser usada. A terra existe para
ser amada, protegida, não para ser dividida como se fosse sua
ou minha. É tolice plantar uma árvore numa área cercada e dizer
que é “minha” . Só quando estamos livres da exclusividade é que
existe a possibilidade de sermos sensíveis, não só à natureza,
mas também aos seres humanos e aos incessantes desafios da
vida.
 Nova Delhi, 14 de Novembro de 1948

 N o mundo à nossa volta, vemos confusão, miséria e desejos


conflitantes e, compreendendo este caos mundial, as pessoas
mais coerentes e sérias — não as que estão fingindo, mas as que
de fato se preocupam — naturalmente verão a importância de
refletir sobre o problema da ação. Há a ação coletiva e a ação
individual; a ação de massa tomou-se uma abstração, um meio
de fuga conveniente para escapar da ação individual. Ao imagi
nar que este caos, esta miséria, este desastre que está constante
mente aumentando possa ser de alguma forma transformado ou
organizado pela ação das massas, o indivíduo toma-se um irres
 ponsável. A massa é por certo uma entidade fictícia, a massa são
vocês e sou eu. Só quando vocês e eu não entendemos a relação
da verdadeira ação é que nos voltamos para a abstração chamada
a massa e, por isso, nos tomamos irresponsáveis em nossa ação.
Para a ação da reforma, procuramos um líder ou nos voltamos
 para a ação coletiva, organizada, que novamente é ação de massa.
Quando procuramos um líder para dirigir a ação, invariavelmente
escolhemos uma pessoa que achamos que nos ajudará a trans
cender os nossos problemas, a nossa miséria. Contudo, pelo fato
de escolhermos um líder a partir da nossa confusão, o próprio
líder está confuso. Não escolhemos um líder diferente de nós
mesmos. Não podemos fazer isso. Só podemos escolher um líder
que, como nós mesmos, está confuso; portanto, esses líderes,

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esses guias e os assim chamados gurus espirituais invariavelmen
te nos levam a maior confusão, a mais miséria. Visto que os
escolhemos a partir da nossa própria confusão, quando seguimos
um líder estamos unicamente seguindo a nossa própria e confusa
 projeção de nós mesmos. Assim sendo, essa ação, embora possa
 produzir um resultado imediato, invariavelmente leva a outro de
sastre.
Portanto, vimos que a ação da massa — embora seja valiosa
em certos casos — está destinada a levar ao desastre, à confusão,
e a acarretar irresponsabilidade da parte do indivíduo, e vimos
que seguir um líder significa também aumentar a confusão. No
entanto, temos de viver. Viver é agir; viver é relacionar-se. Não
há ação sem relacionamento, e não podemos viver isolados. Não
existe o isolamento. A vida é agir e relacionar-se. Portanto, para
entender a ação que não crie mais infelicidade, mais confusão,
temos de entender a nós mesmos, com todas as nossas contradi
ções, nossos traços contraditórios, nossas muitas facetas que es
tão constantemente em luta umas contra as outras. Enquanto não
entendermos a nós mesmos, a ação deverá inevitavelmente levar
a mais conflito, a mais infelicidade.
Assim sendo, nosso problema é agir com entendimento, e
esse entedimento só vem com o autoconhecimento. Afinal, o
mundo é uma projeção de mim mesmo. O mundo é o que eu
sou. O mundo não é diferente de mim, o mundo não está contra
mim. O mundo e eu não somos entidades separadas. A sociedade
sou eu; não há dois processos diferentes. O mundo é uma exten
são de mim mesmo, e, para entender o mundo, tenho de entender
a mim mesmò. O indivíduo não está em oposição à massa, à
sociedade, porque a sociedade é o indivíduo. Sociedade é rela
cionamento entre vocês, eu e o outro. Só há oposição entre in
divíduo e sociedade quando o indivíduo se toma irresponsável.
Portanto, temos um problema a considerar. Há uma crise extraor

16
dinária que atinge todos os países, pessoas e grupos. Qual o re
lacionamento que há entre nós, vocês e eu, e essa crise, e como
devemos agir? Por onde devemos começar para provocar uma
transformação? Como eu disse, se considerarmos a massa não
há saída, visto que a massa implica um líder, e a massa sempre
é explorada pelos políticos, pelo sacerdote e pelos espertos. E
uma vez que vocês e eu fazemos parte da massa, temos de as
sumir a responsabilidade pela nossa ação, ou seja, temos de en
tender a nossa própria natureza, temos de entender a nós mesmos.
Entender a nós mesmos não significa nos isolarmos do mundo,
 porque isolar-se do mundo significa afastar-se e não podemos
viver afastados. Assim sendo, temos de entender a ação no re
lacionamento, e esse entendimento depende da percepção da nos
sa natureza conflitiva e contraditória. Acho que é uma tolice
conceber um estado em que haja paz e para o qual possamos
olhar. Só pode haver paz e tranqüilidade quando entendemos a
nossa natureza e não quando pressupomos um estado que não
conhecemos. Pode haver um estado de paz, mas a simples espe
culação sobre esse estado é inútil.
Para agir corretamente, deve haver pensamento correto; para
 pensar corretamente, deve haver autoconhecimento, e o autoco-
nhecimento só pode existir por meio do relacionamento, não do
isolamento. O pensamento correto só ocorre quando entendemos
a nós mesmos, e desse conhecimento surge a ação correta. A
ação correta é a que surge do entendimento de nós mesmos, não
de uma parte de nós mesmos, mas de todos os aspectos de nós
mesmos, da nossa natureza contraditória, de tudo o que somos.
A medida que entendemos a nós mesmos, há ação correta, e
dessa ação surge a felicidade. Além do mais, queremos felicida
de. Felicidade é o que a maioria de nós está procurando por meio
de várias formas, por meio de várias fugas — fugas através da
atividade social, do mundo burocrático, da diversão, do culto e

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da repetição de frases, do sexo, e de inumeráveis outras fugas.
Vemos que essas fugas não trazem felicidade duradoura; elas
apenas dão um alívio temporário; fundamentalmente, não há
nada verdadeiro nelas, nenhum deleite duradouro. Penso que só
encontraremos esse prazer, esse êxtase, a verdadeira alegria de
sermos criativos, quando entendermos a nós mesmos. Não é fácil
entender a nós mesmos; esse entendimento requer certa vivaci
dade, certa percepção. Essa vivacidade, essa percepção só podem
surgir quando não nos condenamos, não nos justificamos; por
que, no momento em que há uma condenação ou uma justifica
ção, o processo de entendimento se encerra. Quando condenamos
alguém, deixamos de entender essa pessoa, e quando nos iden
tificamos com ela, novamente deixamos de entendê-la. Dá-se o
mesmo conosco. É difícil observar, ficar passivamente conscien
te de quem vocês são; mas dessa consciência advém um enten
dimento, uma transformação do que existe, e só nessa transfor
mação é que se abrem as portas para a realidade.
Então, nosso problema é a ação, o entendimento e a felici
dade. Não há base para o verdadeiro raciocínio a não ser que
conheçamos a nós mesmos. Sem o autoconhecimento não tenho
 base para o pensamento — apenas posso viver num estado de
contradição, como faz a maioria de nós. Para provocar uma trans
formação no mundo, que é o mundo do relacionamento, tenho
de começar por mim mesmo. Vocês podem argumentar que “pro
vocar uma transformação do mundo desse modo exigirá um tem
 po infinitamente longo”. Se estivermos buscando resultados ime
diatos, naturalmente acharemos que a demora será muito grande.
Os resultados imediatos são prometidos pelos políticos; mas re
ceio que para o homem que está em busca da verdade não há
resultados imediatos. E a verdade que transforma, não a ação
imediata; só quando cada um descobrir a verdade haverá felici
dade e paz no mundo. O nosso problema é viver no mundo sem

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 pertencer a ele, e trata-se de um problema de uma busca das
mais sérias, porque não podemos nos recolher, não podemos re
nunciar, porém temos de ter a consciência de nós mesmos. Com
 preender a si mesmo é o começo da sabedoria. Ter consciência
de nós mesmos é entender o nosso relacionamento com as coisas,
 pessoas e idéias. Enquanto não compreendermos a importância
e o significado do nosso relacionamento com as coisas, pessoas
e idéias, a ação que implica o relacionamento inevitavelmente
 provocará conflitos e lutas. Assim, um homem verdadeiramente
sério tem de começar por si mesmo; ele tem de ficar passivamente
consciente de todos os seus pensamentos, sentimentos e ações. No
vamente, não se trata de uma questão de tempo. Não há fim para
o autoconhecimento. Este só existe de momento para momento e,
 portanto, há uma felicidade criativa a cada novo momento.

Quando eu me concentro nas perguntas de vocês, por favor,


não fiquem esperando por uma resposta, uma vez que vocês e eu
iremos refletir juntos sobre o problema e descobrir a resposta. Re
ceio que fiquem desapontados. A vida não nos presenteia com
“sim” ou “não” categóricos, embora preferíssemos isso. A vida é
mais complexa do que isso, ela é muito mais sutil. Portanto, para
descobrirmos a resposta temos de estudar o problema, o que sig
nifica que temos de ter paciência e inteligência para resolvê-lo.

Questionador.  Que lugar a religião organizada ocupa na nossa


sociedade moderna?

Kríshnamurti: Vejamos qual é o significado de religião e qual o


significado de sociedade moderna. O que quer dizer religião? O
que a religião significa para vocês? Não é verdade que significa
uma série de crenças, de rituais, de dogmas, várias superstições,

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 puja,   repetição de palavras, esperanças vagas não realizadas e
frustradas, a leitura de certos livros, a busca de gurus, idas oca
sionais ao templo e assim por diante? Por certo é isso o que a
religião é para a maior parte do nosso povo. Mas isso será reli
gião? Será a religião um costume, um hábito, uma tradição? Na
turalmente, a religião é algo que transcende tudo isso, não é
verdade? A religião implica a busca da realidade, o que nada
tem a ver com crença organizada, templos, dogmas ou rituais,
e, no entanto, nossos pensamentos, a verdadeira estrutura do nos
so ser está enredada, está presa a crenças, superstições, etc. Ob
viamente, o homem moderno não é religioso; portanto, sua so
ciedade não é sadia, equilibrada. Podemos seguir determinada
doutrina, adorar certas imagens ou criar uma nova religião esta
tal, porém é óbvio que todas essas coisas não são religião. Eu
disse que religião é a busca da realidade, mas essa realidade é
desconhecida; não se trata da realidade contida nos livros, não
é a experiência dos outros. Para encontrar essa realidade, para
revelá-la, para convidá-la a fazer parte da nossa vida, temos de
deixar de pensar no conhecido; a importância de todas as tradi
ções e crenças deve ser assimilada, entendida e descartada. Para
tanto, a repetição de rituais não tem sentido.
Portanto, um homem religioso por certo não pertence a ne
nhuma religião, a nenhuma organização; ele não é hinduísta nem
maometano, ele não pertence a nenhuma classe.
Agora, o que é o mundo moderno? O mundo moderno é feito
de técnica e de eficiência em organizações de massa. Há um
avanço extraordinário da tecnologia e uma má distribuição das
necessidades da massa; os meios de produção estão nas mãos de
umas poucas pessoas. Há nações em conflito, sempre repetindo
guerras por questões de soberania governamental, etc. Esse é o
mundo moderno, certo? Há avanço técnico sem avanço psicoló
gico, que é igualmente importante, e, assim, há um estado de

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desequilíbrio; temos extraordinárias conquistas científicas e, ao
mesmo tempo, miséria humana, corações e mentes vazios. Mui-
tas das técnicas que aprendemos têm que ver com construção de
aviões, com matar uns aos outros, e assim por diante. Então, esse
é o mundo moderno, que são vocês mesmos. O mundo não é
diferente de vocês. O seu mundo, que são vocês mesmos, é um
mundo de intelectos cultivados e corações vazios. Se vocês se
analisarem, verão que são o produto da civilização moderna. Vo-
cês sabem fazer uma porção de truques, técnicas e materiais, mas
não são seres humanos criativos. Vocês têm filhos, mas isso não
é ser criativo. Para sermos capazes de criar, temos de ter uma
extraordinária riqueza interior, e essa riqueza interior só pode
existir quando entendemos a verdade, quando somos capazes de
receber a verdade.
A religião organizada e o mundo moderno andam juntos;
ambos cultivam o coração vazio e essa é a parte infeliz da nossa
existência. Somos superficiais, intelectualmente brilhantes, ca-
 pazes de grandes invenções e de produzir os mais destrutivos
meios de liquidarmos uns aos outros, e de criarmos cada vez
mais divisão entre nós mesmos. Mas não sabemos o que significa
amar; não temos uma canção em nosso coração.
Tocamos música, ouvimos o rádio, mas não há canções, de
vez que o nosso coração está vazio. Criamos um mundo total-
mente confuso, miserável, mas nossos relacionamentos são frá-
geis e superficiais. Sim, a religião organizada e o mundo moder-
no andam juntos, portanto ambos levam à confusão, a esta con-
fusão da religião organizada e do mundo moderno provém de
nós mesmos. Ela é a projeção de nós mesmos. Portanto, não
 pode haver transformação no mundo exterior a menos que haja
uma transformação dentro de cada um de nós; e provocar essa
transformação não é problema do perito, do especialista, do líder
ou do sacerdote. E problema nosso, de cada um de nós. Se dei-
xarmos a solução para os outros, nos tomamos irresponsáveis e,
 portanto, nosso coração se tomará vazio. Um coração vazio e
uma mente técnica não constituem um ser humano criativo, e
 pelo fato de termos perdido esse estado criativo, criamos um
mundo que é totalmente miserável, confuso, destruído pelas
guerras, agitado por distinções de classe e por diferenças raciais.
E nossa responsabilidade provocar uma transformação radical
dentro de nós mesmos.
 De Das Trevas para a Luz

Ouça!

A vida é uma só.


 Não tem começo nem fim.
A origem e o objetivo habitam no seu coração.
Você foi apanhado
 Nas trevas do seu grande precipício.

A vida não tem credo, não tem crença,


 Não pertence à nação ou ao santuário,
 Não prende pelo nascimento nem pela morte,
 Nem por ser homem ou mulher.
Você pode juntar as “águas para fazer uma roupa”,
Ou prender “o vento em suas mãos”?

Responda, amigo!

Beba na Fonte da Vida,


Venha,
Eu lhe mostrarei o caminho.
O manto da Vida cobre todas as coisas.

23
 Do  Diário de Krishnamurti,
6 de Abril de 1975

 N ã o é igual àquele azul extraordinário do Mediterrâneo: o azul


do Pacífico é etérico, especialmente quando sopra uma brisa sua
ve do oeste e se dirige o carro ao longo da estrada da costa,
mmando para o norte. O azul do Pacífico é muito delicado, ofus
cante, claro e repleto de alegria. Ocasionalmente, vocês verão
 baleias esguichando água ao rumarem para o norte; às vezes,
verão suas enormes cabeças aflorando. Havia um cardume inteiro
esguichando água: devem ser animais muito fortes. Naquele dia,
o mar parecia um lago, calmo e totalmente silencioso, sem uma
única onda; não havia agitação naquele azul-claro. O mar estava
adormecido e vocês o observavam com admiração. A casa tinha
vista sobre o mar [tratava-se da casa em que ele estava morando,
em Malibu], É uma bela casa, com um jardim tranqüilo, um
gramado verde e flores. E uma casa espaçosa, banhada pelo sol
da Califórnia. Os coelhos também gostavam dela: vinham bem
cedo pela manhã e, no final da tarde, comiam as flores e os
amores-perfeitos, os malmequeres e as plantinhas floridas recém-
 plantadas. Não se conseguia mantê-los do lado de fora apesar da
cerca de arame em toda a volta do jardim, e matá-los seria um
crime. No entanto, um gato e uma coruja de celeiro devolveram
a ordem ao jardim; o gato preto passeava pelo jardim e a coruja

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se empoleirava nos densos eucaliptos durante o dia. Vocês po
diam vê-la, imóvel, de olhos fechados, redonda e grande. Os
coelhos desapareceram e o jardim floriu e o Pacífico azul fluía
sem esforço.
Só o homem traz desordem ao universo. Ele é impiedoso e
extremamente violento. Onde ele está, traz infelicidade e confu
são para si mesmo e para o mundo ao redor. Ele provoca o des
 perdício e destrói, e não tem compaixão. Não há ordem nele e,
assim, o que ele toca se toma sujo e caótico. Sua política tor-
nou-se um gangsterismo primoroso de poder, de fraude, pessoal
ou nacional, de grupo contra grupo. Sua economia é restrita e,
assim, não é universal. Sua sociedade é imoral, quer na liberdade,
quer sob tirania. Ele não é religioso, embora acredite, adore e
 pratique intermináveis rituais sem sentido. Por que ele ficou as
sim, tomando-se cruel, irresponsável e tão completamente ego
cêntrico? Por quê? Há centenas de explicações, e aqueles que
explicam isso, sutilmente, com palavras que nasceram do conhe
cimento contido em muitos livros e por meio de experiências
com animais, são apanhados no ninho da tristeza, da ambição,
do orgulho, da angústia humanas. A descrição não é o descrito;
a palavra não é o objeto. Será porque o homem está procurando
causas externas, o ambiente condicionando o homem, na espe
rança de que a mudança exterior transforme o homem interior?
Será porque ele está tão apegado aos seus sentidos, dominado
 por suas exigências imediatas? Será porque vive tão completa
mente no movimento do pensamento e do conhecimento? Ou
será porque ele é tão romântico, sentimental, que se tomou de
sumano com seus ideais, pretextos e pretensões? Será porque ele
sempre é dominado, um seguidor, ou porque se toma um líder,
um gum?
Essa divisão em exterior e interior é o começo de seu conflito
e infelicidade, ele é apanhado nessa contradição, nessa tradição
etema. Preso nessa divisão sem sentido, ele está perdido e se
toma um escravo dos outros. O exterior e o interior são a ima-
ginação e a invenção do pensamento; como o pensamento é frag-
mentário, ele provoca desordem e conflito, o que é divisão. O
 pensamento não pode criar a ordem, que é uma conseqüência
natural da virtude. A virtude não é uma repetição contínua de
memória, de prática. O conhecimento do pensamento significa
reter o tempo. O pensamento, por sua própria natureza e estru-
tura, não pode abranger todo o fluxo da vida, como um movi-
mento total. O conhecimento do pensamento é um vislumbre
dessa totalidade; ele não pode ter consciência dessa falta de
opção enquanto ficar como o que percebe, como o que está fora
olhando para dentro. O conhecimento do pensamento não tem
lugar na percepção. O pensador é o pensamento; o que percebe
é o que é percebido. Só então há um movimento espontâneo na
nossa vida diária.

27
 Nova Delhi, 28 de Novembro de 1948

Parece-me que é importante entender que um conflito, de qual


quer tipo que seja, não gera o pensamento criativo. Até enten
dermos o conflito e a sua natureza, e o que significa estar em
conflito, lutar meramente com um problema ou com uma forma
ção ou ambiente particular é totalmente inútil. Assim como todas
as guerras causam deterioração e produzem, invariavelmente, no
vas guerras e mais infelicidade, lutar demais com o conflito re
sulta em mais confusão. Portanto, o conflito em nós, projetado
 para o exterior, cria confusão no mundo. Assim sendo, é neces
sário entender o conflito e ver que conflitos, de qualquer tipo,
não geram pensamentos criativos em seres humanos sadios. E,
no entanto, toda nossa vida é gasta em luta, e pensamos que essa
luta é parte necessária da existência. Há conflito dentro de nós
e com o ambiente, sendo o ambiente a sociedade que, por sua
vez, é a nossa ligação com as pessoas, as coisas e as idéias. Essa
luta é considerada inevitável e pensamos que é essencial ao pro
cesso da existência. Ora, isso será verdade? Há algum modo de
viver que exclua a luta, em que haja possibilidade de entendi
mento sem o habitual conflito? Eu não sei se vocês notaram que,
quanto mais lutam com um problema psicológico, mais confusos
e enredados ficam, e que só quando cessam de lutar, quando
desistem de todo processo de pensamento, surge o entendimento.

29
Assim sendo, temos de perguntar se o conflito é essencial e pro-
dutivo.
Estamos analisando o conflito em nós mesmos e com o am-
 biente. O ambiente é o que somos em nós mesmos. Vocês e o
ambiente não são dois processos diferentes; vocês são o ambiente
e o ambiente é vocês — e esse é um fato óbvio. Vocês nasceram
num grupo particular de pessoas, quer na índia, na América, na
Rússia ou na Inglaterra; e esse mesmo ambiente com suas in-
fluências de clima, tradição, costumes sociais e religiosos formou
vocês — e são esse ambiente. Para descobrir se há algo mais do
que o mero resultado do ambiente, terão de estar livres do am-
 biente, livres do seu conhecimento. Isso é óbvio, não é verdade?
Se analisarem cuidadosamente a si mesmos, verão que por terem
nascido neste país, são climática, social, religiosa e economica-
mente seu produto ou resultado. Ou seja, vocês são condiciona-
dos pelo ambiente. Para descobrir se há algo mais, algo maior
que o simples resultado de uma condição, vocês têm de estar
livres dessa condição. Ser condicionados simplesmente a indagar
se há algo mais, se há algo maior do que o mero produto do
ambiente não tem sentido. Obviamente, temos de estar livres da
condição, do ambiente, e só então podemos descobrir se existe
algo mais. Afirmar que há ou não algo mais, por certo é um
raciocínio falso. Temos de descobrir e, para descobrir, temos de
fazer experiências.

Portanto, ao considerar essas questões, por favor tenhamos


em mente que estamos começando juntos uma jornada de des-
coberta; assim sendo, não corremos o risco de que haja a ligação
entre mestre e discípulos. Vocês não estão aqui como especta-
dores a me verem brincar. Estamos todos brincando; portanto,
nenhum de nós está explorando o outro.

30
Varanasi, 22 de Novembro de 1964

S e vocês não estão em comunhão com coisa nenhuma, são seres


humanos mortos. Vocês têm de estar em comunhão com o rio,
com os pássaros, com as árvores, com a luz extraordinária do
entardecer, com a luz da manhã sobre as águas; têm de estar em
comunhão com o vizinho, com suas esposas, com seus filhos,
com seus maridos. Por comunhão entendo a não-interferência do
 passado, de modo que possam olhar outra vez para tudo de um
modo novo — e essa é a única maneira de estar em comunhão
com algo; portanto, que vocês morram para tudo o que for pas
sado. Isso será possível? Temos de descobrir e não perguntar
“como devo fazer isso?” — o que é uma pergunta tola! As pes
soas sempre perguntam: “Como devo fazer isso?” Isso mostra a
mentalidade das pessoas; elas não compreenderam nada, apenas
querem obter um resultado.
Portanto, pergunto se vocês alguma vez estão em contato
com alguma coisa, e se alguma vez estão em contato com vocês
mesmos — não com o seu Self superior e inferior, e com todas
as inúmeras divisões que o homem criou para fugir. E vocês têm
de descobrir — e não serem ensinados como chegar a essa ação
total. Não há “como”, não há método, não há sistema; ninguém
 pode contar-lhe coisa alguma. Vocês têm de trabalhar para des
cobrir por si. Sinto muito. Não me refiro àquela palavra trabalho;
as pessoas gostam de trabalhar; essa é uma das nossas fantasias:

31
a de que temos de trabalhar para obter algo. Não neste caso;
quando estão num estado de comunhão, não há trabalho; tudo
está aí, o perfume está aí, vocês não precisam trabalhar para
senti-lo.
Sendo assim, perguntem a si mesmos, se é que posso pedir-
lhes isto, se estão em comunhão com algo — se estão em co
munhão com uma árvore. Vocês já estiveram em comunhão com
uma árvore? Sabem o que significa observar uma árvore sem ter
nenhum pensamento, nenhuma lembrança interferindo na sua
observação, em seus sentimentos, na sua sensibilidade, no seu
estado nervoso de atenção, de tal forma que só exista a árvore
e não exista nem mesmo vocês observando a árvore? Provavel
mente, nunca fizeram isso; para vocês, uma árvore não tem sig
nificado. A beleza de uma árvore não tem nenhuma importância
 porque, para vocês, beleza significa sexualidade. Portanto, vocês
têm de excluir a árvore, a natureza, o rio, as pessoas. E não estão
em contato nem mesmo com vocês mesmos! Estão em contato
com as próprias idéias, as próprias palavras, como seres humanos
em contato com as cinzas. Sabem o que acontece quando estão
em contato com as cinzas? Vocês estão mortos, foram reduzidos
a cinzas.
A primeira coisa de que é preciso tomar consciência, por
tanto, é da necessidade de descobrir a ação total que não criará
confusão em nenhum nível da existência, o que significa estar
em comunhão, em comunhão com vocês mesmos, não com o
seu Eu superior, não com o Atman, com Deus e com tudo isso,
mas estar de fato em contato com vocês mesmos, com a sua
cobiça, com a sua inveja, com a sua brutalidade, com a sua de
cepção, e então movimentar-se a partir daí. Descobrirão, a partir
de si mesmos — descobrirão, não ouvirão contar, o que não teria
sentido — que só existe ação total quando há completo silêncio
mental.

32
Vocês sabem que, no caso da maioria de nós, a mente é
inquieta, ela está constantemente tagarelando consigo mesma,
em solilóquios ou falando sobre algo ou tentando falar consigo
mesma para se convencer de algo; ela está sempre em movimen
to, é ruidosa. E a partir desse ruído, nós agimos. Toda ação nas
cida do ruído cria mais ruído, mais confusão. Mas, se observarem
e aprenderem o que significa comunicar-se, o que significa di
ficuldade de comunicação, de não-verbalização da mente — que
é a que comunica e a que recebe a comunicação —, irão então
em sua ação mover-se naturalmente, livremente, com facilidade,
sem nenhum esforço, para esse estado de comunhão. E nesse
estado de comunhão — se investigarem mais a fundo — desco
 brirão que não só estão em comunhão com a natureza, com o
mundo, com tudo ao seu redor, mas também em comunhão com
vocês mesmos.
Estar em comunhão consigo mesmo significa estar em com
 pleto silêncio, de tal forma que a mente possa ficar silenciosa
mente em comunhão consigo mesma acerca de tudo. A partir
daí, há ação total. Só a partir do vazio há ação total e criativa.

33
Varanasi, 28 de Novembro de 1964

D e acordo com descobertas recentes dos antropólogos, o ho-


mem aparentemente vive neste planeta há cerca de dois milhões
de anos. E há cerca de dezessete mil anos, o homem gravou nas
cavernas cenas de luta, de batalhas, de interminável tristeza da
existência — batalha entre o bem e o mal, entre a brutalidade e
aquilo que ele busca incessantemente: o amor. E, ao que parece,
o homem não resolveu seus problemas — não me refiro a pro-
 blemas de matemática, científicos ou de engenharia, mas aos
problemas humanos de relacionamento, de como viver pacifica-
mente neste mundo, de como estar em contato íntimo com a
natureza e ver a beleza de um pássaro num galho de árvore sem
folhas.
Chegando aos tempos modernos, nossos problemas, os pro-
 blemas humanos estão aumentando cada vez mais; tentamos re-
solver esses problemas de acordo com certos padrões de mora-
lidade, de comportamento e de acordo com vários comprometi-
mentos de ordem intelectual. De acordo com nossos compromis-
sos, padrões de comportamento, fórmulas religiosas e sanções,
tentamos resolver nossos problemas, nossas angústias, nosso de-
sespero, nossa inconsistência e as contradições da nossa vida.
Adotamos determinada atitude como comunistas, socialistas,
como isso ou como aquilo; e a partir dessa atitude, por assim
dizer, dessa plataforma, tentamos resolver nossos problemas gra

35
dativamente, um depois do outro — é isso o que fazemos na
nossa vida.
A pessoa pode ser um grande cientista, mas o cientista do
laboratório é diferente do cientista em casa: uma pessoa patriota,
amargurada, zangada, ciumenta, que compete com os outros
cientistas por mais fama, popularidade e dinheiro. Ele não está
nem um pouco preocupado com os problemas humanos; preo
cupa-se com a descoberta de várias formas da matéria e com a
verdade de tudo isso.
Como seres humanos comuns, não como peritos ou especia
listas em algum setor particular de atividade, também estamos
comprometidos com certo padrão de comportamento, com certos
conceitos religiosos ou com o veneno do nacionalismo e, a partir
disso, lutamos para resolver o número sempre crescente dos pro
 blemas.
Vocês sabem que as palavras e a leitura são intermináveis.
Palavras sempre podem ser substituídas, e a construção das fra
ses, a beleza da linguagem, a razão ou a irracionalidade do que
está sendo dito persuade ou dissuade vocês. Contudo, ler, acu
mular palavras e ouvir palestras ou discursos não é importante,
mas, antes, resolver o problema — o problema humano, o seu
 problema — não gradativamente, não à medida que surge, nem
de acordo com as circunstâncias, pressões e tensões da vida mo
derna, porém, a partir de uma atividade totalmente diferente. Há
 problemas humanos de cobiça, de inveja, de espírito mental
obtuso, de corações feridos, da apavorante insensibilidade do ho
mem, da brutalidade, da violência, do desespero profundo e da
ansiedade. Durante os dois milhões de anos que vivemos, tenta
mos resolver esses problemas de acordo com diferentes fórmulas,
sistemas, métodos, gurus, pontos de vista e perguntas. E, no en
tanto, continuamos ainda presos no infindável processo da an
siedade, da confusão e do desespero sem fim.

36
Será que existe um meio de resolver os problemas comple
tamente, de maneira a não tomarem a surgir e, se surgirem, de
maneira a podermos enfrentá-los, a resolvê-los, e eliminá-los
imediatamente? Será que há um modo integral de vida que não
dê origem a problemas? Há algum modo de vida — não o modelo
de um caminho, de um método, de um sistema, mas um modo
integral de viver — que não apresente problemas em momento
algum ou que, se eles se apresentarem, possam ser resolvidos de
imediato? Uma mente que carregue o fardo de um problema se
toma obtusa, pesada, estúpida. Eu não sei se vocês observaram
a própria mente, e se observaram a mente de suas esposas, ma
ridos e vizinhos. Quando a mente tem quaisquer tipos de pro
 blemas, esses mesmos problemas — mesmo os de matemática,
não importa quão complexos, penosos, intrigantes, intelectuais
sejam — tomam a mente obtusa. Pela palavra problema  entendo
uma questão difícil, um relacionamento difícil, um assunto difícil
que continue sem solução e com o qual se permanece dia após
dia. Então, estamos perguntando se há um modo de viver, se há
um estado mental que, por entender a totalidade da existência,
não tenha problemas, e que, quando surgir um problema, possa
resolvê-lo imediatamente. Pois quando permanecemos com um
 problema nem que seja por um dia, por um minuto, ele toma a
mente pesada, obtusa, e a mente não tem sensibilidade para ana
lisar, para observar.
Haverá uma ação total, um estado da mente que resolva todo
 problema assim que ele surge, e que, em si mesma, não tem
nenhum problema, em nenhuma profundidade, consciente ou in
consciente? Eu não sei se já fizeram essa pergunta a si mesmos
alguma vez. E provável que não, porque a maioria de nós é tão
triste, tão presa pelos problemas da existência cotidiana — ga
nhando o sustento e atendendo às exigências da sociedade que
 psicologicamente gera uma estrutura de ambição, de cobiça, de

37
consumismo — que não temos tempo para questionar. Esta ma-
nhã, vamos investigar esse assunto, e depende de vocês a pro-
fundidade do questionamento, a clareza do mesmo e a intensi-
dade da observação.
Aparentemente, vivemos há dois milhões de anos — uma
idéia assustadora! E, provavelmente, viveremos outros dois mi-
lhões de anos como seres humanos apanhados na eterna dor da
existência. Haverá um modo, algo que livre o homem inteira-
mente disso, de modo que não viva nem por um segundo em
ansiedade? Que não invente uma filosofia que o satisfaça na sua
ansiedade? Que não crie uma fórmula que possa aplicar a todos
os problemas que surgirem, aumentando dessa forma esse pro-
 blema? Existe! Há um estado mental que pode resolver imedia-
tamente os problemas e, portanto, a mente, em si mesma, não
tem problemas, conscientes ou inconscientes.
Iremos analisar isso. E embora o orador vá usar palavras e
 penetrar tanto quanto possível através da comunicação das pa-
lavras, vocês têm de ouvir e entender. Vocês são seres humanos,
não indivíduos, porque vocês ainda estão no mundo, que é a
massa; vocês fazem parte desta terrível estrutura da sociedade.
Só há individualidade quando há um estado mental em que a
mente não tem problemas, quando ela se separou completamente
da estrutura social do consumismo, da cobiça e da ambição.
Dizemos que há um estado da mente que pode viver sem
nenhum problema ou que pode resolver instantaneamente qual-
quer problema que apareça. Vocês viram como é importante não
carregar um problema consigo, mesmo por um dia ou por um
segundo. Pelo fato de a maioria de vocês terem problemas sem
solução, quanto mais lhe derem espaço para desenvolverem raí-
zes, mais a mente, o coração e a sensibilidade serão destruídos.
Assim, é imperativo que o problema seja resolvido imediata-
mente.

38
É possível, depois de ter vivido durante dois milhões de anos
às voltas com o conflito, com a infelicidade e com a recordação
de muitos dias passados, é possível a mente livrar-se disso de
forma que fique completa, inteira, e não seja destruída? E para
descobrirmos isso, temos de analisar o tempo, porque os proble
mas e o tempo estão intimamente relacionados.
Portanto, iremos analisar o tempo. Ou seja, depois de termos
vivido por dois milhões de anos, será que temos de continuar
vivendo mais dois milhões de anos com tristeza, sofrimento, an
siedade, luta, morte? Será isso inevitável? A sociedade está pro
gredindo, está evoluindo desse modo — evoluindo por meio da
guerra, da pressão, da batalha entre Oriente e Ocidente, das várias
lutas da nacionalidade, do Mercado Comum, dos bloqueios deste
 poder e daquele tipo de poder. A sociedade está se movendo, se
movendo, se movendo: lentamente, e, em certo sentido, está
adormecida, mas está se movendo. Pois bem, talvez em dois
milhões de anos, a sociedade se transforme em algum tipo de
estado onde se possa viver com outro ser humano sem compe
tição, mas com amor, com gentileza, com tranquilidade, com um
notável senso de beleza. Mas teremos de esperar dois milhões
de anos para chegar a isso? Não devemos ficar impacientes?
Estou usando a palavra impaciente  no sentido correto: ser im
 pacientes, não ter paciência com o tempo. Ou seja: não pode
mos resolver tudo, não em termos de tempo, mas imediata
mente?
Pensem nisso. Não digam que é impossível ou que é possível.
O que é o tempo? Há o tempo cronológico, o tempo marcado
 pelo relógio — este é óbvio, é necessário; quando vocês tiverem
de construir uma ponte, terão de ter tempo, mas qualquer outra
forma de tempo, isto é, “terá de ser”, “eu farei”, “eu não devo”;
tudo isso é falso; é apenas uma invenção da mente, que diz “eu
farei isto”. Se não houver amanhã — e o amanhã não existe — 
então, toda a atitude de vocês será diferente. E, na verdade, não
existe esse tempo — quando vocês estão com fome, quando que
rem fazer sexo ou quando estão repletos de desejo, vocês não
têm tempo, vocês querem isso imediatamente. Assim, entender
o tempo significa solucionar os problemas.
Por favor, analisem a felação íntima entre problema e tempo.
Por exemplo: há a tristeza. Vocês sabem o que é tristeza — não
a tristeza suprema, mas a tristeza de estarem sozinhos, a tristeza
de não conseguirem algo que desejam, a tristeza de não verem
com clareza, a tristeza da frustração, a tristeza de terem perdido
alguém a quem pensam amar e a tristeza de não conseguirem
compreendê-lo. E, além dessa tristeza, há uma tristeza ainda
maior: a do tempo. Porque é o tempo que alimenta a tristeza.
Atentem para isto, por favor. Aceitamos o tempo, que é o pro
cesso gradual da vida, o modo gradativo de evoluir, a mudança
gradativa disto para aquilo, da raiva para um estado gradativo
de não-raiva. Aceitamos o processo gradativo da evolução, e di
zemos que ele faz parte da existência, da vida, que é o plano de
deus, ou o plano dos comunistas, ou outro plano qualquer. Acei
tamos o fato, e não vivemos com isso idealmente, mas de ver
dade.
Ora, para mim, essa é a maior tristeza: permitir que o tempo
dite a mudança, a mutação. Terei de esperar dez mil anos ou
mais, terei de passar por esta miséria, pelo conflito por mais dez
mil anos, e lenta e gradativamente mudar pouco a pouco, esperar
meu tempo, mover-me devagar? Aceitar isso e viver nesse estado
é a maior tristeza.

Será possível acabar imediatamente com a tristeza? Esse é


o verdadeiro centro da questão. Porque assim que eu resolver a
tristeza — a tristeza no sentido mais profundo dessa palavra — 
tudo acabou. Porque uma mente triste nunca saberá o que signi
fica amar.

Portanto, tenho de aprender imediatamente algo sobre a tris


teza, e o próprio ato de aprender é um completo desvio do tempo.
Ver algo imediatamente, ver o falso imediatamente é a ação da
verdade que liberta vocês do' tempo.
Vou me aprofundar um pouco nessa questão da visão. Há
 pouco, quando entramos, havia um papagaio verde, brilhante, de
 bico vermelho, pousado num galho desfolhado da árvore, desta
cando-se em contraste com o azul do céu. Nós nem o observa
mos; estávamos ocupados demais, concentrados e perturbados
demais; portanto, não vimos a beleza desse pássaro no galho
desfolhado, destacando-se recortado contra o azul do céu. O ato
de ver é imediato — não se trata de “eu vou aprender a ver”. Se
disserem “vou aprender” já introduziram o fator tempo no as
sunto. Portanto, não observem só esse pássaro, mas também aten
tem para o trem, para o som da tosse, essa tosse nervosa que
estamos ouvindo durante todo o tempo aqui — ouçam esse ruído,
ouçam-no como um ato imediato. E procurem ver com toda a
clareza, sem a interferência do pensador — ver esse pássaro, ver
quem somos, de verdade, sem se voltarem apenas a teorias sobre
o Super-Atman e tudo mais; procurem perceber de fato quem
somos.
Ver implica uma mente sem opinião, uma mente que não
tem fórmulas. Se houver uma fórmula na sua mente, vocês nunca
verão esse pássaro — esse papagaio no galho recortado contra
o céu — nunca verão a beleza total. Vocês dirão, “sim, é um
 papagaio dessa ou daquela espécie, e o galho pertence a esta ou
àquela árvore, e o céu é azul por causa da luz”, mas nunca verão
a totalidade dessa coisa extraordinária. E perceber a totalidade
dessa beleza não implica tempo. Da mesma forma, para perceber
a totalidade da tristeza, não deve haver consideração de tempo.

Por favor, analisem isto de outra maneira. Vocês sabem que


não temos amor — compreender isto é terrível. Na verdade, não
temos amor; temos sentimentos; temos as emoções, a sensuali
dade, a sexualidade; temos lembranças de algo que pensamos
que seja amor. Mas, na verdade, não temos amor. Porque amor
significa ausência de violência, ausência de medo, de competi
ção, de ambição. Se tivessem amor, vocês nunca diriam “esta é
a minha família”. Vocês podem ter uma família e dar a ela o
melhor de vocês mesmos, mas ela não será “a sua família” —
o que seria opor-se ao mundo. Se vocês amam, se há amor, há
 paz. Se amassem, teriam educado seus filhos ensinando-os a não
serem patriotas, a não terem só uma profissão técnica, a não
tratar unicamente de seus pequenos negócios; vocês não teriam
nacionalidade. Não haveria divisões de religião, se vocês amas
sem. Mas, visto que essas coisas na verdade existem — não como
teoria, mas concreta e brutalmente — neste mundo horrível, isso
demonstra que não há amor. Até mesmo o amor de uma mãe
 pelo filho não é amor. Se a mãe de fato amasse o filho, vocês
acham que o mundo seria assim? Ela cuidaria para que ele tivesse
a alimentação certa, a educação correta, para que ele fosse sen
sível, para que apreciasse a beleza, para que não fosse ambicioso,
invejoso nem tivesse cobiça. Assim, a mãe, conquanto ela ache
que ama seu filho, não o ama.
Desse modo, não temos esse amor.

Portanto, o que vocês vão fazer? Se responderem: “Diga-nos,


 por favor, o que fazer”, não compreenderam absolutamente nada.

42
Mas vocês têm de perceber a importância, a imensidão, a urgên
cia de resolverem a questão; não amanhã, não no dia ou na hora
seguintes, mas agora. E, para isto, vocês precisam de energia.
Só para enxergarem imediatamente — o catalisador que toma o
líquido sólido ou que o vaporiza não faz efeito se não lhe derem
tempo, nem que seja um segundo. Toda a nossa existência, todos
os nossos livros, toda a nossa esperança é amanhã, amanhã. Toda
essa aceitação do tempo é a maior tristeza.
Portanto, a questão do que fazer depende de vocês, não do
orador de quem estão esperando uma resposta. Não há resposta.
E nisso está a beleza da questão. Vocês podem sentar-se de per
nas cruzadas, respirar corretamente, ou colocar-se de cabeça para
 baixo durante os dez mil anos que estão por vir. A menos que
tenham feito essa pergunta a si mesmos — não superficial, não
oral, não intelectualmente, mas com todo o seu ser — vocês
viverão com ela durante dois milhões de anos. Esses dois milhões
de anos podem ser apenas o amanhã. Portanto, os problemas e
o tempo estão intimamente relacionados — compreendem agora?
Uma mente que exige uma resposta para esta questão não
só tem de entender que ela é o resultado do tempo, mas também
de negar a si mesma para que possa estar fora da estrutura do
tempo, da sociedade. Se vocês ouviram, se realmente ouviram
com vontade de entender, com intensidade, vocês terão chegado
à seguinte conclusão — não só verbal mas efetivamente — de
que não estão mais presos nas garras do tempo. A mente, embora
seja o resultado de dois milhões de anos ou mais, está livre,
 porque viu todo o processo e entendeu imediatamente. Podemos
chegar a essa conclusão — que é óbvia. Quando entendemos
isso, passa a ser uma brincadeira de criança. Embora vocês todos
sejam adultos, no momento em que virem isso, dirão: “O que eu
tenho feito com a minha vida!” Então, a mente não tem decepção,
não sofre pressões.
Quando a mente não tem problemas, não tem tensões, não
é condicionada, essa mente tem espaço, um espaço infinito tanto
na mente como no coração; é só nesse espaço infinito que pode
haver criação. Pelo fato de a tristeza, o amor, a morte e a criação
serem substância dessa mente, essa mente está livre da tristeza,
está livre do tempo. E assim, essa mente está num estado de
amor e, quando há amor, há beleza. Nesse sentido de beleza,
nesse sentido de vastidão, de espaço infinito, há criação. E ainda
mais além — “além” não no sentido de tempo — no de uma
sensação de amplo movimento.
Agora, vocês estão todos ouvindo o que digo na esperança
de captarem algo verbalmente, mas não captarão — não mais do
que podem captar o amor ao ouvir alguém falando sobre amor.
Para entender o amor, vocês têm de começar bem perto, ou seja,
dentro de vocês. E então, quando entenderem, quando derem o
 primeiro passo — e este mesmo primeiro passo é o último — ,
então poderão ir bem longe, mais longe do que os foguetes que
vão para a lua, para Yênus ou para Marte. O todo destas coisas
é a mente religiosa.
 De  Comentários Sobre o Viver,
Segunda Série

O avião superlotado voava a mais de vinte mil pés de altitude


sobre o Atlântico, sobre o grosso tapete de nuvens. Acima, o céu
era de um azul intenso, o sol estava atrás de nós e voávamos
rumo ao oeste. As crianças, cansadas de brincar correndo de um
lado para outro do corredor, dormiam cansadas. Depois de uma
longa noite, todos os outros passageiros estavam acordados, fu
mando e bebendo. Na parte da frente do avião, um homem con
tava a um outro pormenores do seu negócio, enquanto uma mu
lher sentada no banco de trás descrevia para outra as coisas que
havia comprado, numa voz afetada, e se indagava sobre a quantia
que teria de despender na alfândega. Naquela altitude, o vôo era
suave, não havia solavancos, embora o vento soprasse forte abai
xo de nós. As asas do avião brilhavam na luz clara do sol e os
 propulsores giravam regularmente com uma velocidade fantás
tica; o vento atingia o avião por trás e voávamos a mais de tre
zentas milhas por hora.
Do outro lado do corredor estreito, dois homens conversa
vam, e era difícil não ouvir o que estavam dizendo, pois falavam
em voz alta. Eram homens grandes, e um deles tinha o rosto
vermelho e maltratado pelas condições do clima. Ele falava sobre
o trabalho de matar baleias, mencionando o perigo desse traba-

45
lho, os lucros implícitos e a assustadora violência do mar. Algu
mas baleias pesavam centenas de toneladas. Era proibido matar
fêmeas com filhotes, e só era possível matar certo número de
 baleias em determinado período de tempo. Ao que parecia, a
matança desses monstros enormes era feita de um modo bastante
“científico”; cada grupo tinha determinada função a cumprir e
era tecnicamente treinado para desempenhá-la. O cheiro do navio
 principal era quase insuportável, mas as pessoas se acostumavam
com ele, assim como nos acostumamos com quase tudo. Além
disso, quando tudo corria bem, havia um lucro considerável. O
homem começou a falar sobre o estranho fascínio da matança,
 porém, naquele momento, trouxeram os aperitivos, e o tema da
conversa foi mudado.
Os seres humanos gostam de matar, seja uns aos outros, seja
um inofensivo gamo de olhos claros na floresta, ou um tigre que
atacou o gado. Na estrada, passa-se deliberadamente por cima
de uma serpente; arma-se uma armadilha para pegar um lobo ou
um coiote. Pessoas bem vestidas e risonhas saem com suas po
derosas armas e matam os pássaros que cantam chamando uns
aos outros. Um menino mata um ruidoso gaio azul com sua es
 pingarda de ar comprimido e os adultos ao seu redor nunca de
monstram tristeza nem censura; ao contrário, dizem que o garoto
atira bem. Matar pelo assim chamado esporte, para obter alimen
to, pelo país, pela paz — não há muita diferença nesses modos
de matar. A justificativa não é a resposta. Só há uma resposta;
não matar. No Ocidente, pensamos que os animais existem para
saciar nossa fome, ou para o prazer de matar, ou para tirarmos
sua pele. No Oriente, durante séculos, foi ensinado e repetido
 pelos pais: não matem, sejam misericordiosos, tenham compai
xão. Aqui, os animais não têm alma, portanto, podem ser mortos
impunemente; lá, os animais têm alma, portanto, pensem nisso
e procurem sentir amor. Aqui, é considerado normal comer ani-
mais e pássaros; trata-se de algo aprovado pela Igreja e pela
 propaganda; lá não é, e o homem ponderado, religioso, por tra
dição e cultura, jamais come essa carne. Mas isso também está
sendo rapidamente alterado. Aqui, sempre matamos em nome de
Deus e do país, e agora esse hábito foi adotado em todos os
lugares. A matança está se espalhando; quase que da noite para
o dia as culturas antigas estão sendo postas de lado e a eficiência,
a inquietação e os meios de destmição estão sendo cuidadosa
mente mantidos e fortalecidos.
A paz não depende do político nem do sacerdote, do advo
gado ou do policial. A paz é um estado mental quando há amor.
s

 De A Primeira e Ultima Liberdade,


Capítulo 3

Q u a l é o seu relacionamento com a infelicidade, com a confusão


em vocês e no mundo exterior? Por certo, esta confusão, esta
infelicidade não surgem por si mesmas. Vocês e eu a criamos,
não uma sociedade capitalista ou comunista ou fascista; contudo,
vocês e eu'as criamos em nosso relacionamento uns com os ou
tros. O que vocês são por dentro foi projetado para fora, para o
mundo: o que vocês são, o que pensam e o que sentem, o que
fazem na vida do dia-a-dia é projetado para o exterior e isso
constitui o mundo. Se vocês estiverem interiormente infelizes,
confusos, perplexos, devido à projeção que se torna o mundo,
que se torna a sociedade, porque o relacionamento entre vocês
e eu, entre eu e os outros é a sociedade — a sociedade é o
 produto do nosso relacionamento — e se o nosso relaciona
mento é confuso, egocêntrico, estreito, limitado, nacional, pro
 jetamos isto e trazemos o caos para o mundo.
O que vocês são o mundo é. Portanto, o seu problema é o
 problema do mundo. Por certo, este é um fato simples e funda
mental, não é?

49
Por que motivo a sociedade está se desfazendo, está entrando
em colapso, do modo como está? Um dos principais motivos é
que o indivíduo, você, deixou de ser criativo. Explicarei o que
quero dizer. Vocês e eu nos tornamos imitativos; estamos co
 piando, interior e exteriormente. Exteriormente, quando apren
demos uma técnica, quando nos comunicamos uns com os outros
no nível verbal, naturalmente tem de existir certa imitação, uma
cópia. Eu copio as palavras. Para me tomar engenheiro, primeiro
eu tenho de aprender a técnica, em seguida, tenho de usá-la para
construir uma ponte. Tem de haver certo nível de cópia, de imi
tação na técnica exterior, mas, quando há imitação interior, psi
cológica, por certo deixamos de ser criativos. Nossa educação,
nossa estrutura social, nossa assim chamada vida religiosa, estão
todas baseadas na imitação; ou seja, eu me enquadro em certa
fórmula social ou religiosa. Deixei de ser um indivíduo real. Psi
cologicamente, tornei-me uma simples máquina de repetição,
com certas respostas condicionadas, independentemente de se
rem elas dos hindus, dos cristãos, do budista, do alemão ou do
inglês. Nossas respostas são condicionadas de acordo com o pa
drão da sociedade, seja ela oriental ou ocidental, religiosa ou
materialista. Portanto, uma das causas fundamentais da desinte
gração da sociedade é a imitação, e um dos fatores de desinte
gração é o líder, cuja essência é a imitação.
 De  A Liberdade do Conhecido,
Capítulo 11

Estivemos analisando a natureza do amor, e chegamos a um


 ponto que, na minha opinião, precisa ser mais observado, precisa
de uma consciência maior do assunto. Descobrimos que, para a
maioria das .pessoas, o amor significa conforto, segurança, uma
garantia de satisfação emocional contínua durante toda a vida.
Então, alguém como eu aparece e pergunta: “Isso será realmente
amor?”, e lhes pede para olharem para dentro de si mesmos. E
vocês tentam não olhar porque isso é muito perturbador — vocês
 prefeririam discutir sobre a alma, a situação política ou econô-
mica — mas quando são obrigados a olharem para dentro de si
mesmos, compreendem que o que sempre pensaram fosse o amor
não é o amor; é uma gratificação, uma exploração mútua.
Quando digo “o amor não tem passado nem futuro” ou
“quando não há centro, há amor”, essa é a minha realidade, mas
não a de vocês. Vocês podem citar e transformar o que digo
numa fórmula, mas isso não tem valor. Vocês têm de ver por si
mesmos, mas, para fazer isso, é preciso haver liberdade para
analisar, liberdade em relação a toda condenação, a todo julga-
mento, a todo acordo ou desacordo.
Agora, olhar — ou ouvir — é uma das coisas mais difíceis
da vida; olhar e ouvir são o mesmo. Se os olhos de vocês estão

51
cegos pelas suas preocupações, vocês não podem ver a beleza
do pôr-do-sol. A maioria de nós perdeu o contato com a natureza.
A civilização está tendendo cada vez mais para a vida em grandes
cidades. Estamos cada vez mais nos tomando um povo urbano,
vivendo em apartamentos apertados e com pouco espaço para
olhar para o céu pela manhã e à tarde; por este motivo, estamos
 perdendo o contato com grande quantidade de coisas belas. Não
sei se vocês notaram como são poucos os que observam um
 pôr-do-sol, a aurora ou o luar; ou o reflexo da luz sobre a água.
Por termos perdido o contato com a natureza, é claro que
tendemos a desenvolver as capacidades intelectuais. Lemos um
grande número de livros, visitamos vários museus e comparece
mos a vários concertos, assistimos à televisão e participamos de
muitos outros divertimentos. Citamos interminavelmente idéias
de outras pessoas e falamos bastante sobre arte. Por que depen
demos tanto da arte? Trata-se de um meio de fuga, de estímulo?
Se estivessem diretamente em contato com a natureza, se obser
vassem o movimento do vôo dos pássaros, se vissem a beleza
de cada movimento no céu, observassem as sombras das mon
tanhas ou a beleza do rosto dos outros, precisariam ir aos museus
ver um quadro? Talvez seja porque vocês não sabem como olhar
 para todas as coisas à sua volta: por isso, recorrem a alguma
droga para estimulá-los a ver melhor.
Há a história de um mestre espiritualista que costumava falar
todas as manhãs a seus discípulos. Certa manhã, ele subiu à pla
taforma e estava para começar a palestra quando um passarinho
surgiu, pousou na janela e começou a cantar; cantou com todo
o coração. Depois, parou e levantou vôo. E o mestre disse: “A
 palestra desta manhã terminou.”
Parece-me que uma das maiores dificuldades de vocês é en
xergar por si mesmos, com clareza, não só as coisas exteriores
mas a vida interior. Quando dizemos que vemos uma árvore,
uma flor ou uma pessoa, nós de fato os vemos? Ou apenas vemos
a imagem que a palavra criou? Isto é, quando vocês olham para
uma árvore ou para uma nuvem numa tarde repleta de luz e de
alegria, de fato enxergam isso, não só com os olhos e intelec
tualmente, mas total e completamente?
Vocês já fizeram a experiência de olhar para alguma coisa
concreta como uma árvore sem nenhuma das associações, sem
nenhum conhecimento que adquiriram sobre ela, sem nenhum
 preconceito, julgamento, sem nenhuma palavra formando uma
tela entre vocês e a árvore, impedindo-os de vê-la como de fato
é? Tentem fazer isso e atentem para o que de fato acontece quan
do observam a árvore com todo o seu ser, com a totalidade da
energia que lhes é peculiar. Com essa intensidade de observação,
notarão que fião existe nenhum observador, há somente atenção.
Quando vocês ficam desatentos existe observador e observado.
Quando estão olhando para algo com atenção total, não há espaço
 para os conceitos, as fórmulas ou as lembranças. É importante
entender, porque vamos analisar algo que requer uma análise
muito cuidadosa.
A mente que observa uma árvore, as estrelas ou as águas
cintilantes de um rio com total abandono de si mesma é a única
que sabe o que é beleza; e, quando estamos enxergando, estamos
num estado de amor. Em geral, conhecemos a beleza por meio
da comparação ou do que o homem construiu, o que significa
que atribuímos a beleza a algum objeto. Vejo o que imagino ser
uma bela construção e essa beleza que aprecio se deve ao meu
conhecimento de arquitetura e à comparação com outras cons
truções que vi. Mas agora pergunto a mim mesmo: “Há beleza
sem objeto?”; quando há um observador que é censor, que ex
 perimenta, que pensa, não há beleza, porque a beleza é algo ex
terior, algo que o observador vê e julga. Mas quando não há
observador — e isto requer uma boa dose de meditação, de aná
lise — existe a beleza sem o objeto.
A beleza está no total abandono do observador e do obser
vado, e só pode haver abandono de si mesmo quando há total
austeridade — não a austeridade do sacerdote com suas regras
rígidas e com suas sanções, normas e obediência, não a austeri
dade das roupas, das idéias, da alimentação e do comportamento
 — mas a austeridade de ser completamente simples, o que é
humildade total. Então, não há conquista, não há escada a subir;
há apenas o primeiro passo, e o primeiro passo é o passo eterno.
Digamos que vocês estão caminhando sozinhos ou acompa
nhados, e que param de falar. Estão cercados pela natureza e não
há cães uivando, não há ruído de carros passando, nem mesmo
o rufiar das asas de um pássaro.
Vocês estão em completo silêncio e a natureza ao redor tam
 bém está totalmente silenciosa. Neste estado de silêncio, tanto
no observador como no observado — quando o observador não
está traduzindo o que vê em pensamentos — nesse silêncio, há
uma qualidade diferente de beleza. Não há natureza nem obser
vador. Há um estado mental total, completo, único; estão sozi
nhos, não em isolamento, mas em tranqüilidade, e essa tranqüi-
lidade é a beleza. Quando vocês amam, há observador? Só existe
observador quando o amor é desejo e prazer. Quando o desejo
e o prazer não estão associados ao amor, esse amor é forte. Como
a beleza, ele é algo totalmente novo todos os dias. E como eu
disse, não há hoje nem amanhã.
Só quando vocês olharem para algo sem nenhuma idéia pre
concebida e sem nenhuma imagem, serão capazes de estar em
contato direto com tudo na vida. E todos os nossos relaciona
mentos são realmente imaginários — ou seja, baseados numa
imagem formada pelo pensamento. Se eu tenho uma imagem de
vocês e se vocês têm uma imagem de mim, é claro que não nos
vemos uns aos outros como de fato somos. O que vemos é a
imagem que temos de cada um dos outros, o que nos impede de
entrar em contato com eles, e por isso nossos relacionamentos
não dão certo.
Quando digo que conheço vocês, quero dizer que conhecia
vocês ontem. Não os conheço agora. Tudo o que conheço é a
imagem que tenho de vocês. Essa imagem é formada pelo que
vocês disseram me elogiando ou insultando; ela é formada pelo
que fizeram por mim; é formada de todas as lembranças que
tenho de vocês. E a imagem que vocês têm de mim foi criada
do mesmo modo; e são unicamente essas imagens que se rela-
cionam, que nos impedem de nos comunicarmos uns com os
outros de verdade.
Duas pessoas que vivem juntas durante muito tempo criam
uma imagem do outro que as impede de realmente se relaciona-
rem. Se entendermos os relacionamentos podemos cooperar, mas
 provavelmente a cooperação não pode existir por meio de ima-
gens, de símbolos, de conceitos ideológicos. Só quando enten-
demos o verdadeiro relacionamento entre nós e os outros há pos-
sibilidade de amar; e não há amor quando nos baseamos em
imagens. Portanto, é importante entender, não intelectualmente,
mas efetivamente em sua vida diária, como criaram uma imagem
da esposa, do marido, do vizinho, do filho, do país, dos líderes,
dos políticos, dos deuses — vocês nada têm a não ser imagens.
Essas imagens criam a distância entre vocês e o que obser-
vam; e nessa distância há conflito. Portanto, agora vamos des-
cobrir juntos se é possível nos livrarmos da distância que cria-
mos, não só fora de nós mas também dentro, a distância que
afasta as pessoas em todos os seus relacionamentos.
A própria atenção que vocês dão a um problema é a energia
que soluciona esse mesmo problertia. Quando vocês — como
um todo — lhe dão total atenção, não existe observador. Há
apenas o estado de atenção que é energia total, e essa energia
total é a mais elevada forma de inteligência. Naturalmente, esse
estado mental tem de ser completamente silencioso, e esse silên
cio, essa quietude, surge quando há total atenção, não a tranqui
lidade disciplinada. Esse silêncio total no qual não há observador
nem o objeto observado é a forma mais elevada de uma mente
religiosa. Mas o que acontece nesse estado não pode ser dito
com palavras porque o que é dito com palavras não é o fato.
Para descobrir por vocês mesmos, terão de fazer a experiência.
Todo problema está relacionado com todos os outros proble
mas, de modo que, se conseguirem resolver completamente um
 problema — não importa qual — verão que serão capazes de
resolver facilmente todos os outros. Estamos falando, é claro, de
 problemas psicológicos. Já vimos que um problema só existe no
tempo, óu seja, quando enfrentamos um assunto de modo incom
 pleto. Então, não só temos de ter consciência da natureza do
 problema e da sua estrutura e analisá-lo completamente, mas
também enfrentá-lo assim que surgir, resolvendo-o imediatamen
te, para que não deite raízes na mente. Se permitirmos que um
 problema perdure por um mês ou por um dia, ou até mesmo por
alguns minutos, ele distorce a mente. Assim, é possível enfrentar
um problema sem nenhuma distorção e nos livrarmos imediata
e completamente dele sem deixar uma lembrança, uma marca na
mente? Estas lembranças são as imagens que levamos conosco,
e elas compõem essa coisa extraordinária chamada vida; portan
to, há contradição e, conseqüentemente, conflito. A vida é muito
real: ela não é uma abstração — e quando você a enfrenta com
imagens há problemas.
Será possível enfrentar todos os assuntos sem esse intervalo
de espaço-tempo, sem essa brecha entre nós e a coisa de que
temos medo? Só é possível quando o observador não tem con
tinuidade, o observador que é o criador da imagem, o observador 
que é uma coleção de lembranças e de idéias, que é um punhado
de abstrações.
Quando vocês olham para as estrelas, são vocês que as estão
olhando no céu; o céu está repleto de estrelas brilhantes, o ar é
fresco, e ali estão vocês, os observadores, pessoas que experi-
mentam, os pensadores, vocês com seus corações feridos, como
centro, criando distância. Vocês nunca entenderão a distância
entre vocês e as estrelas, entre vocês e suas esposas, seus mari-
dos, seus amigos, porque nunca olharam para algo sem a ima-
gem; e é por isso que não sabem o que é amor ou beleza. Vocês
falam sobre o amor, escrevem sobre ele, mas nunca o conhece-
ram, exceto talvez em raros momentos de total abandono. En-
quanto existir um centro criando distância à sua volta, não existe
 beleza nem amor. Quando não existe centro nem circunferência,
há amor. E quando vocês amam, vocês são a beleza.
Quando vocês olham para um rosto diante do seu, estão ob-
servando a partir de um centro, e este gera a distância entre as
 pessoas; é por isso que a nossa vida é tão vazia e árdua. Vocês
não podem cultivar o amor ou a beleza, nem podem inventar a
verdade, mas se estiverem conscientes do que fazem durante todo
o tempo, podem cultivar a consciência. E a partir dessa cons-
ciência começarão a perceber a natureza do prazer, do desejo e
da tristeza, e a total solidão e o tédio do homem; então, come-
çarão a entender essa coisa chamada “distância”.
Saibam que, quando há distância entre vocês e o objeto que
estão observando, não há amor, e, sem amor, por mais que se
esforcem por reformar o mundo ou criar uma nova ordem social,
 por mais que falem sobre melhorias, só criarão ansiedade. Por-
tanto, depende de vocês. Não há líder, não há mestre, não há
ninguém que lhes diga o que fazer. Vocês estão sozinhos neste
mundo imenso e cruel.
 De  Cartas às Escolas Volume 2,
7- de Novembro de 1983

E sta m os bastante seguros de que os educadores têm consciência


do que está acontecendo no mundo. As pessoas estão divididas
 por raças, religiões, política e economia, e essa divisão significa
fragmentação. Essa fragmentação está provocando grande caos
no mundo: guerras, todo tipo de desilusão política e assim por
diante. Há o aumento da violência do homem contra o homem.
Este é o estado atual de confusão no mundo, na sociedade
em que vivemos, e esta sociedade é criada por todos os seres
humanos com suas culturas, suas divisões linguísticas, sua sepa
ração regional. Tudo isso não só está alimentando a confusão,
mas criando ódio, uma boa dose de antagonismo e mais diferen
ças lingüísticas. E isso o que está acontecendo e a responsabili
dade dos educadores é realmente muito grande.

O que esta educação está de fato fazendo? Ela está realmente


ajudando o homem ou seus filhos a ficarem mais preocupados,
mais gentis ou generosos; está ajudando-os a não voltar aos ve
lhos padrões, à velha feiura e à maldade deste mundo? Se o
educador está de fato preocupado, e ele tem de estar, então ele

59
 precisa ajudar o aluno a descobrir seu relacionamento com o
mundo, não com o mundo da imaginação nem do sentimentalis
mo romântico, mas o verdadeiro mundo em que estão ocorrendo
todos os fatos. E também com o mundo da natureza, com o de
serto, com a floresta, ou com as poucas árvores ao seu redor e
com os animais. Felizmente, os animais não são nacionalistas;
eles só caçam para sobreviver. Se o educador e o aluno perderem
seu vínculo com a natureza, com as árvores, com as ondas do
mar, por certo eles perderão seu vínculo com o homem.
O que é a natureza? Há muito falatório e esforço para pro
teger a natureza, os animais, os pássaros, as baleias e os golfi
nhos; para limpar os rios poluídos, os lagos, os campos verdes
e assim por diante. A natureza não é criada pelo pensamento,
como acontece com a religião, como acontece com a crença. A
natureza é o tigre, esse animal extraordinário, com sua energia,
seu grande senso de poder. A natureza é a árvore solitária no
campo, as campinas e o bosque; é o esquilo que se esconde ti
midamente atrás de um arbusto. A natureza é a formiga e a abelha
e todos os seres vivos sobre a terra. A natureza é o rio, não um
rio determinado, seja o Ganges, o Tâmisa ou o Mississipi. A
natureza são todas essas montanhas cobertas de neve, os vales
azuis-escuros e a cadeia de montanhas que se encontra com o
mar... temos de ter sensibilidade para tudo isso, não devemos
destruir nem matar só por prazer.

A natureza faz parte da nossa vida. Crescemos a partir da


semente, a terra, e somos parte de tudo isso; mas estamos rapi
damente perdendo o senso de que somos animais como os outros.
Vocês podem ter algum sentimento por aquela árvore? Olhem
 para ela, vejam a sua beleza, ouçam o som que ela produz; sejam
sensíveis à plantinha, à pequena semente, àquela trepadeira que
cresce na parede, à luz que banha as folhas e às sombras. Vocês
têm de ter consciência de tudo isto e certo senso de comunhão
com a natureza que os cerca. Vocês podem viver numa cidade,
mas há árvores esparsas. Uma flor num jardim próximo pode ser
maltratada, sufocada por ervas daninhas, mas olhem para ela,
sintam que vocês fazem parte de tudo isso, parte de tudo o que
vive. Se vocês ferirem a natureza estarão ferindo a si mesmos.
Vocês sabem que tudo isso já foi dito antes de vários modos,
mas parece que não prestamos muita atenção. Será porque esta
mos tão envolvidos com a nossa própria rede de problemas, com
nossos próprios desejos, nossas próprias necessidades de prazer
e de sofrimento, que não olhamos em volta, que nunca olhamos
 para a lua? Olhem para ela. Olhem com os olhos e com os ou
vidos, com o olfato. Olhem. Olhem como se fosse pela primeira
vez. Se puderem fazer isso, verão aquelas árvores, aquele arbus
to, aquela folha de grama pela primeira vez. Então, poderão ver
o professor, a mãe e o pai, o irmão e a irmã pela primeira vez.
Há uma sensação estranha ligada ao fato: o encanto, a estranheza,
o milagre de uma nova manhã que nunca houve antes nem haverá
depois. Entrem realmente em comunhão com a natureza; não
fiquem verbalmente presos à sua descrição, mas sejam parte dela;
 permaneçam conscientes; sintam que pertencem a tudo isso; pro
curem ser capazes de amar tudo isso, de admirar um gamo, um
lagarto na parede, aquele tronco de árvore caído ao chão. Olhem
 para a estrela vespertina ou para a lua nova, sem fazer uso das
 palavras, sem dizer apenas que é bonita, voltando-lhe as costas
depois, atraídos por outra coisa qualquer, mas observem essa
estrela única e a lua nova e delicada como se fosse pela primeira
vez. Se houver essa comunhão entre vocês e a natureza, vocês
comungarão com o homem, com o menino sentado ao seu lado,
com o seu mestre, ou com os seus pais. Todos nós perdemos o
senso de relacionamento em que não há apenas a expressão ver
 bal de afeto e de preocupação, mas também esse senso de co-
munhão que não se expressa por meio de palavras. E a sensação
de que estamos todos unidos, de que todos somos seres humanos
indivisos, indestrutíveis, de que não pertencemos a nenhum gru-
 po ou raça particular, ou a alguns conceitos idealísticos, mas
somos todos seres humanos e estamos vivendo nesta terra ex-
traordinária e bela.

O educador deve falar sobre tudo isso não apenas verbal-


mente; ele mesmo tem de sentir o mundo — o mundo da natureza
e o mundo do homem. Esses mundos estão relacionados entre
si. O homem não pode fugir disso. Quando destrói a natureza,
está destruindo a si mesmo. Quando mata outro homem, está
matando a si mesmo. O inimigo não é o outro, mas vocês mes-
mos. Naturalmente, viver nesta harmonia com a natureza, com
a terra, cria um mundo diferente.
 De  Cartas às Escolas Volume 2,
15 de Novembro de 1983

V o cês aprendem bastante por meio da observação — obser-


vando as coisas à sua volta, observando os pássaros, as árvores,
observando o céu, as estrelas, a constelação de Órion, da Ursa
Maior, a estrela vespertina. Vocês simplesmente aprendem
observando as coisas à sua volta, mas também observando as
 pessoas: como elas andam, gesticulam, as palavras que usam, o
modo como se vestem.
Vocês não só olham para o que está fora, mas também ana-
lisam a si mesmos, por que pensam isto ou aquilo, como se com-
 portam, como vivem a vida diária, por que os pais querem que
façam determinada coisa. Estão observando, não estão resistindo.
Se resistirem, não aprenderão. Se chegarem a algum tipo de con-
clusão, a alguma opinião que pensam ser correta, e se apegarem
a ela, naturalmente nunca aprenderão. Para aprender é preciso
ser livre, e tem de haver curiosidade, certa vontade de querer
saber por que os outros se comportam de determinada maneira,
 por que as pessoas estão zangadas, por que vocês se aborrecem.

Os pais de vocês, especialmente no Oriente, lhes dizem que


devem se casar, e arranjam o casamento; eles lhes dizem qual

63
deve ser a sua carreira. Assim, o cérebro aceita o modo fácil, e
o modo fácil nem sempre é o correto. Pergunto-me se notaram
que ninguém mais gosta do trabalho que faz, exceto talvez alguns
cientistas, artistas, arqueólogos. Mas o homem comum raramente
gosta do que está fazendo. Ele é impelido pela sociedade, pelos
 pais ou pela necessidade de ter mais dinheiro. Desse modo, pro
curem aprender observando com muito cuidado o mundo exte
rior, o mundo fora de vocês, e o mundo interior — ou seja, o
seu mundo.
 De  Palestras na Europa 1968,
Paris, 25 de Abril de 1968

S ó pode haver relacionamentos quando há total abandono do


ego, do “eu” . Quando não existe o eu, então vocês se relacionam,
 pois também não existe separação. Provavelmente, não sentimos
isso — a total negação (não intelectualmente, mas verdadeira-
mente), o término total do eu. E talvez seja isso que a maioria
de nós está procurando, sexualmente ou por meio da identifica-
ção com algo maior. Mas também isso, esse processo da identi-
ficação com algo maior, é produto do pensamento; e o pensa-
mento é velho (como o ego, o eu, é do passado), sempre é velho.
Então, surge a pergunta: como é possível abandonar por com-
 pleto esse processo de isolamento, esse processo que está cen-
tralizado no eu? Como se deve fazer isso? Vocês entenderam a
 pergunta? Como o eu (cuja atividade diária está repleta de medo,
de ansiedade, de desespero, de tristeza, de confusão e de espe-
rança) — como este eu, que se separa de outro, por meio da
identificação com deus, com seu condicionamento, com sua so-
ciedade, com sua atividade social e moral, com o Estado e assim
 por diante — , como ele deve morrer, desaparecer para que o ser
humano possa estar relacionado? Porque, se não estamos rela-
cionados, iremos viver em guerra contra os outros. Talvez não
haja matança uns dos outros porque isso está se tomando muito
 perigoso, exceto em países longínquos. Como podemos viver de
forma que não haja separação, de forma que realmente possamos
cooperar com o todo?
Há tanto a fazer no mundo: eliminar a pobreza; viver com
felicidade; viver com prazer em vez de com ansiedade e medo;
criar um tipo totalmente diferente de sociedade, uma moralidade
que esteja acima de toda moralidade. Mas isso só pode acontecer
quando todo tipo de moralidade da sociedade moderna for ne-
gada. Há muitas coisas a fazer, mas que não podem ser feitas se
o processo de constante isolamento continuar. Falamos de
“meu”, dos “meus” e do “outro”— o outro está atrás da parede,
o meu e os meus deste lado. Assim, de que modo essa essência
da resistência, que é o eu, pode ser totalmente “abandonada”?
Porque essa é de fato a questão fundamental em todo relaciona-
mento, pois vemos que o relacionamento entre as imagens não
é nenhum relacionamento; e quando há este tipo de relaciona-
mento, tem de haver conflito, temos de lutar uns contra os outros.
Quando vocês fizerem a si mesmos essa pergunta, inevita-
velmente dirão: “Preciso viver num vazio, num estado de vazio?”
Fico cogitando se vocês sabem o que é ter uma mente comple-
tamente vazia. Vocês viveram num espaço criado pelo “eu” (que
é um espaço muito pequeno). O espaço que o “eu” — que é um
 processo de isolamento — abriu entre as pessoas é o único espaço
que conhecemos — o espaço entre nós e a circunferência —, a
fronteira que o pensamento construiu. E nesse espaço nós vive-
mos, nesse espaço há divisão. Vocês dizem: “Se eu relaxar, se
eu deixar de lado o meu centro, viverei num vazio.” Mas vocês
alguma vez de fato abandonaram o ego, de tal forma que ele
deixe de existir? Vocês alguma vez viveram neste mundo, foram
ao escritório com esse espírito, viveram com sua esposa ou com
seu marido? Se viveram desse modo, então sabem que há um
estado de relacionamento em que não há eu, que não é uma
utopia, que não é algo com o que sonhamos, nem uma experiên-

66
cia mística, não-sensorial, mas algo que de fato pode ser reali
zado — viver numa dimensão em que há relacionamento com
todos os seres humanos.
Mas isso só pode acontecer quando entendemos o que é
amor. E para ser, para viver nesse estado, temos de entender o
 praz
 pr azer
er do pensam
pen samenento
to e de todo o seu mecanismo
meca nismo.. Então, todo
o complicado mecanismo que construímos para nós mesmos à
nossa volta pode ser percebido à primeira vista. Não temos de
 passa
 pa ssarr por
po r todo esse
ess e processo
proce sso analítico,
analíti co, ponto por
po r ponto. Toda
análise é fragmentária; portanto, não há resposta seguindo por
esse caminho.
Há o grande e complexo problema da existência com todos
os seus medòs, ansiedades, esperanças, felicidade passageira e
 prazere
 pra zeres,s, mas uma
um a análise
aná lise não irá resolvê-lo.
resol vê-lo. O que o resolver
reso lveráá
será captar tudo rapidamente, como um todo. Vocês sabem que
só entendem algo quando olham — não com o olhar treinado e
demorado, o olhar experiente de um artista, de um cientista ou
do homem que qu e se exercitou na “maneira de olhar” . Vocês o verão
quando olharem para par a ele com toda a atenção; vocês verão o todo
num único relance. E então verão que estão do lado de fora. fora. Fora
do tempo; o tempo parou e, portanto, a tristeza acabou. Um ho
mem que está triste ou com medo não está relacionado. Como
 pode
 pod e um home ho memm que está
es tá buscan
bus cando
do o poder
pod er ter um relacio
rela ciona
na
mento? Ele pode pod e ter uma família, dormir com a mulher, mas mas não
está relacionado. Um homem que esteja competindo com outro
não tem nenhum
nenh um relacionamento. E toda a nossa estrutura social, social,
com sua imoralidade, está baseada nisso. Estar fundamental e
essencialmente relacionado significa acabar com o eu que au
menta a separação e a tristeza.

67
 De  Palestras na Europa 1968,
Amsterdã, 22 de Maio de 1968

Q u a n d o observamos
observamos o que está acontec
acontecendo
endo no mundo,
mundo, o caos,
caos,
a confusão e a violência entre os homens, que nenhuma religião
ou ordem social — ou talvez desordem — foi capaz de evitar;
quando observamos as atividades dos políticos, dos economistas,
dos reformadores
reforma dores sociais,
sociais, em todo o mundo,
mundo, vemos que eles acar-
retaram cada vez mais confusão, cada vez mais infelicidade. As
religiões, essas crenças organizadas, certamente não ajudaram
de nenhuma maneira a trazer a ordem, uma felicidade profunda
duradoura ao homem. Mas também nenhuma das utopias, quer
do comunismo, quer daqueles grupos minoritários
minoritários que formaram
comunidades, trouxe uma clareza profunda e duradoura ao ho-
mem. Precisamos de uma grande revolução por todo o mundo;
é necessária uma
um a grande mudança. Não estamos falando
falando de uma
revolução exterior, mas de uma revolução interior no nível psi-
cológico, que obviamente é a única — se é que podemos usar
essa palavra — salvação para o homem. As ideologias trouxeram
a brutalidade, trouxeram várias formas de matança, de guerras;
as ideologias, conquanto nobres, são de fato bastante ignóbeis.
É preciso que haja uma total mudança na estrutura das células
do nosso cérebro, na própria estrutura do pensamento. E para
levar a cabo essa mudança
muda nça profunda e duradoura, essa revoluçã
revoluçãoo

69
ou mudança, precisamos de uma grande dose de energia. Preci
samos de um impulso, de uma intensidade mantida constante
mente, não do interesse casual ou do entusiasmo passageiro que
traz consigo certa qualidade de energia que logo se dissipa... E
essa energia o homem espera obter por meio da resistência, da
constante disciplina, da d a imitação, do conformismo... No entanto,
a resistência, o conformismo, a disciplina, a simples adaptação
a uma idéia não deram
de ram ao homem a energia e a força necessárinecessárias.
as.
Assim, temos de descobrir algo diferente que traga essa energia
necessária.
 Na
 N a atual estru
est rutu
tura
ra d a sociedade,
socieda de, no nosso relacionam
relaci onamento
ento
entre os homens, quanto mais ma is agimos, menos energia
energi a temos.
temos. Pois
nessa ação háh á contradição, fragmentação e, assim, assim, essa ação pro
voca o conflito e, portanto, desperdício de energia. Temos de
encontrar essa energia, que é revigorante, que é constante, que
não se dissipa. Penso que há uma ação que provoca essa quali
dade vital e necessária para uma profunda revolução radical na
mente. Para a maioria de nós, a ação — isto é, “fazer”, estar em
atividade — acontece de acordo com uma idéia, uma fórmula,
um conceito. Se observarem diariamente suas próprias ativida
des,
des, seu próprio
próprio movimento em ação, verão que formularam uma
idéia ou uma ideologia e agem de acordo com ela. Portanto, há
uma divisão entre a idéia do que devem fazer, ou do que devem
ser, ou de como devem agir e a verdadeira ação; vocês podem
ver isso em vocês mesmos com toda a clareza. Portanto, a ação
é sempre a aproximação da fórmula, do conceito, do ideal. E há
uma divisão, uma separação entre o que deveria ser e o que é,
o que provoca a dualidade, e, portanto, há conflito.
Por favor, não ouçam simplesmente uma série de palavras
 — as palavras
pala vras não
nã o têm
tê m sentido por si mesmas,
me smas, as pala
p alavra
vrass nunc
nu ncaa
 provoc
 pro vocara
aramm nenh
ne nhumumaa transfo
tran sforma
rmação
ção radica
rad icall no homem; vocês
 podem
 pod em acumu
acu mular
lar palav
p alavras,
ras, transfo
tran sformá
rmá-las
-las numa
nu ma guirlanda,
guirlanda , como
com o
faz a maioria de nós, e viver de palavras, mas elas são cinzas,
elas não trazem a beleza à vida. As palavras não trazem o amor,
e se vocês estiverem apenas ouvindo uma série de palavras ou
de idéias, receio que irão embora de mãos vazias. Mas se ouvi-
rem, não apenas o orador, mas seus próprios pensamentos, se
atentarem para o ritmo de suas vidas, para o que está sendo dito,
não como algo fora de vocês, mas que de fato está ocorrendo
dentro de vocês, verão a realidade — ou a falsidade — do que
está sendo dito. Temos de ver o que é verdadeiro e o que é falso
 para nós, não o que é verdadeiro e falso para outra pessoa. E,
 para descobrir, vocês terão de ouvir, terão de dar atenção, afeto,
cuidado, o que significa ser muito sérios, e a vida exige que
sejamos sérios, porque só para a mente muito séria há vida —
há fartura de vida. Mas não há fartura de vida para o curioso,
 para o intelectual, para o emotivo, nem para o sentimental.

 Necessitamos de uma grande energia para levar a cabo essa


mudança psicológica em nós mesmos como seres humanos por-
que temos vivido por um tempo demasiado longo num mundo
imaginário, num mundo de violência, de desespero, de ansiedade.
Para viver humanamente, sadiamente, é preciso mudar. Para mu-
dar dentro de nós mesmos e dentro da sociedade, temos neces-
sidade dessa energia radical, pois o indivíduo não é diferente da
sociedade — a sociedade é o indivíduo e o indivíduo é a socie-
dade. E para fazer essa mudança radical e necessária na estrutura
da sociedade, que é corrupta, que é imoral — é preciso que haja
mudança no coração e na mente. Para fazer essa mudança, vocês
 precisam de grande energia, e essa energia é negada, pervertida
ou distorcida quando vocês agem de acordo com uma idéia, que
é o que fazemos na nossa vida cotidiana. O conceito é baseado
na história do passado, ou em alguma conclusão; portanto, não
é nenhuma ação; é aproximação de uma fórmula.
Assim, perguntamos se existe uma ação que não seja baseada
numa idéia, numa conclusão formada por coisas mortas que já
aconteceram.

Essa ação existe. Afirmar isso não é a criação de outra idéia.


Temos de descobrir essa ação por nós mesmos, e, para descobrir,
temos de começar bem no início do nosso comportamento hu
mano, da qualidade humana da nossa mente. Isto é, nós nunca
estamos sós; podemos estar andando sozinhos pela floresta, mas
nunca estamos sós. Vocês podem estar com a família, em socie
dade, mas a mente humana está tão condicionada pelas experiên
cias do passado, pelo conhecimento, pela lembrança, que não
sabe o que é estar sozinha. E temos medo de ficar sozinhos por
que ficar sozinhos implica — não é verdade? — estarmos fora
da sociedade. E, para sermos estranhos à sociedade, temos de
estar livres dela. A sociedade requer que vocês ajam de acordo
com uma idéia; isso é tudo o que a sociedade sabe; isso é tudo
o que os seres humanos conhecem — conformar-se, imitar, acei
tar, obedecer. E quando aceitamos a tradição, quando nos con
formamos com o modelo que a sociedade estabeleceu (o que
significa que os seres humanos estabeleceram), então somos par
tes desse todo condicionado da existência humana, que desper
diça sua energia no esforço contínuo, no conflito constante, na
confusão e na infelicidade. Será possível que seres humanos se
libertem dessa confusão, desse conflito?
Essencialmente, esse conflito acontece entre a ação e o que
essa ação deveria ser. E observamos em nós mesmos, como de
vemos observar, de que modo o conflito absorve constantemente
a nossa energia. Toda a estrutura social — que tem de ser com
 petitiva, agressiva, comparando uma pessoa com outra, aceitando
uma ideologia, uma crença e assim por diante — é baseada no
conflito, não só dentro de nós mesmos mas também fora de nós.
E dizemos, “se não há conflito em nós mesmos, se não há luta,
 batalha, nos tomaremos como os animais, nos tomaremos pre
guiçosos”, o que não é verdade. Não conhecemos outros tipos
de vida a não ser a que vivemos, que é a luta constante desde o
momento em que nascemos até morrer; isso é tudo o que sabe
mos.
Se nós a observamos, podemos ver que grande desperdício
de energia ela é. E temos de nos separar dessa desordem social,
dessa imoralidade social — o que significa que temos de ser sós.
Embora vocês vivam na sociedade, não estão aceitando mais sua
estrutura de valores — a brutalidade, a inveja, o ciúme, o espírito
de competição — e então estão sozinhos, e quando estão sós,
vocês são maduros. A maturidade não depende da idade.
Em todo o mundo há revolta, mas essa revolta não acontece
através do entendimento de toda estrutura da sociedade, que são
vocês mesmos. Essa revolta é fragmentária; isto é, podemos nos
revoltar contra determinada guerra, ou lutar e matar outro ser na
nossa guerra favorita, ou ser um crente religioso que pertence a
determinada cultura ou grupo — católico, protestante, hindu, ou
qualquer outro. Mas revoltar-se significa revoltar-se contra toda
a estmtura, e não contra um fragmento particular dessa estrutura,
dessa cultura. Para entender toda essa estrutura, primeiro temos
de ter consciência dela; primeiro, temos de observá-la, temos de
nos tomar conscientes dela — isto é, temos de estar conscientes
dela sem escolha. Você pode escolher determinada parte da so
ciedade e dizer: “Gosto disso, não gosto daquilo, isto me agrada
e aquilo não me agrada.” Então, estará apenas se conformando
com algum padrão particular e resistindo a outro padrão; portan
to, ainda está preso à luta. Primeiramente, é importante ver o
quadro desta existência humana como um todo, a existência diá
ria da nossa vida. Vê-la — não como idéia, não como conceito,
mas de fato estar consciente dela como se está consciente de
estar com fome. A fome não é uma idéia, não é um conceito;
ela é um fato. Do mesmo modo, ver esse caos, essa infelicidade,
essa luta interminável, quando se está consciente de toda a coisa
sem ter escolha; ao se fazer isso, não há mais conflito; então
estamos fora da estrutura social porque a mente se isolou do
absurdo da sociedade.

Você sabe, homem, que cada um de nós, não importa onde


vivamos, quer descobrir um estado mental, um modo de viver
que não seja trabalhoso, que não seja uma luta. Estou certo de
que todos nós — não importa a nossa humildade ou a nossa
inteligência — queremos encontrar um modo de viver ordenado,
repleto de beleza e de amor profundo. Essa tem sido a busca do
homem por milhares de anos. E em vez de encontrar o que ele
exteriorizou, o que pôs para fora, ele criou deuses, salvadores,
sacerdotes com suas idéias; e, assim, perdeu o rumo. Temos de
negar tudo isso, negar totalmente a idéia de que conheceremos
a felicidade por meio de outra pessoa, segundo outra pessoa.
 Ninguém no mundo ou no céu pode lhe dar essa vida. Temos de
trabalhar para tê-la — incessantemente.

Pense no que entendemos por atitude. Por que almejamos


determinada atitude? O que significa atitude? Tomar uma posi
ção, chegar a uma conclusão. Tenho uma atitude para com tudo
o que existe, o que significa que, depois de estudar, depois de
examinar, depois de planejar, depois de sondar a questão, eu

74
cheguei a uma conclusão. Cheguei a este ponto, a esta atitude,
o que significa que a própria idéia de uma atitude é resistência;
 portanto, isso em si mesmo é uma violência. Não podemos tomar
uma atitude com relação à violência ou à hostilidade. Isso sig-
nifica que a estaríamos interpretando de acordo com nossa pró-
 pria conclusão, com a nossa fantasia, com a nossa imaginação,
com o nosso entendimento. O que perguntamos é o seguinte: é
 possível perceber essa hostilidade em nós, esse criar inimizade
em nós mesmos, essa violência, essa brutalidade em nós mesmos,
sem tomar uma atitude para enxergar o fato como ele é? No
momento em que vocês têm uma atitude já estão prejulgando;
tomaram um partido e, portanto, não estão olhando, não estão
entendendo o fato dentro de vocês mesmos.

Analisar a si mesmos sem uma atitude, sem uma opinião,


sem julgamentos, é uma das tarefas mais árduas. Nesta análise,
há clareza, e esta clareza não é uma conclusão, não é uma atitude
que desfaz toda a estrutura da brutalidade e da hostilidade.
 De Krishnamurti para Si Mesmo,
26 de Abril de 1983

V im o s um pássaro morrer; um homem atirou nele. Era belo,


ao voar com seu bater rítmico de asas, com tanta liberdade e
destemor. E o tiro o acertou: ele caiu no chão e a vida se esvaiu
do seu corpo. Um cão veio apanhá-lo enquanto o homem recolhia
outros pássaros mortos. O homem conversava com um amigo e
 parecia totalmente indiferente. Só estava preocupado em abater
muitos pássaros e, no que lhe dizia respeito, isso era tudo. Os
homens estão matando seres vivos em todo o mundo. Esses ma
ravilhosos e grandes animais marinhos, as baleias, são mortos
aos milhões, e também o tigre e tantos outros animais, que agora
são espécies em perigo de extinção. O único animal a ser temido
é o homem.
Há algum tempo, quando me hospedava na casa de um amigo
nas montanhas, um homem veio contar ao meu anfitrião que um
tigre matara uma vaca na noite anterior; perguntou se gostaría
mos de ver o tigre naquela noite. Podia fazer uns arranjos cons
truindo uma plataforma em uma árvore e amarrando a ela uma
cabra. O balido do animalzinho atrairia o tigre, e poderíamos
vê-lo. Ambos nos recusamos a satisfazer a nossa curiosidade de
forma tão cruel. Mas, posteriormente, naquele mesmo dia, o an
fitrião sugeriu que fôssemos de carro até a floresta para ver o

77
tigre, se isso fosse possível. Ao entardecer, saímos num carro
aberto e o motorista nos levou para dentro da floresta. Natural
mente, não vimos nada. Escurecia rapidamente e os faróis dian
teiros estavam acesos; quando demos a volta, lá estava ele, sen
tado exatamente no meio do caminho à nossa espera. O animal
era muito grande, o desenho do seu pêlo era belíssimo e seus
olhos brilhavam refletindo a luz dos faróis. O animal aproximou-
se urrando do carro, ia passar a uns poucos centímetros da minha
mão estendida para fora; o anfitrião advertiu: “Não toque nele,
isso é muito perigoso; seja rápido porque o tigre é mais ligeiro
do que a sua mão.” Mas podia-se sentir a energia desse grande
animal, sua vitalidade; era como um grande gerador de energia.
Quando passou, sentimos uma grande atração por ele, que desa
 pareceu na floresta. [Krishnamurti conta seu encontro com o tigre
com mais detalhes em seu  Diário .]
Aparentemente, o amigo vira muitos tigres e, quando jovem,
matara um desses animais; desde então, estava arrependido do
fato terrível. Agora, todas as formas de crueldade estão se espa
lhando pelo mundo. Provavelmente, o homem nunca foi tão cruel
e violento como nos dias de hoje. As igrejas e os padres do
mundo pregam sobre a paz na terra; desde a mais elevada hie
rarquia cristã até o padre da aldeia mais pobre dão palestras sobre
como levar uma boa vida sem ferir nem matar. Especialmente
os budistas e hinduístas de outrora diziam: “Não mates a mosca,
não mates ninguém, pois na próxima geração pagarás por isso.”
Essa é uma afirmação bastante rude; no entanto, alguns manti
veram aceso esse espírito, essa intenção de não matar nem ferir
outro ser humano. Mas a matança por meio das guerras continua.
O cão mata instantaneamente a lebre. O homem atira no outro
com suas máquinas mortíferas maravilhosas, ou talvez ele mes
mo leve um tiro. E esses assassinatos têm continuado milênio
após milênio. Alguns matam por esporte, outros por ódio, raiva,

78
ciúme; o assassinato organizado pelas nações com seus belos
armamentos continua. Ficamos imaginando se algum dia o ho
mem poderá viver pacificamente nesta bela terra, sem matar um
ser vivo, sem ser morto ou sem matar outro homem; vivendo
 pacificamente com alguma divindade e amor em seu coração.
 Nesta parte do mundo a que chamamos Ocidente, os cristãos
talvez tenham matado mais do que quaisquer adeptos de outra
religião. Estão sempre falando sobre a paz na terra. Contudo,
 para termos paz, temos de viver pacificamente, e isso parece
impossível. Há argumentos contra e a favor da guerra, afirmando
que o homem sempre foi um assassino e sempre o será; há os
que afirmam que ele pode mudar e não matar mais. Esta é uma
velha história. A matança interminável transformou-se num há
 bito, numa fórmula aceita, a despeito de todas as religiões.
Outro dia, estávamos observando uma águia de cauda ver
melha voando alto no céu, circulando sem esforço, sem mover
as asas, voando pelo mero prazer de voar, planando nas correntes
de ar. Outra águia veio fazer-lhe companhia, e ambas ficaram
voando juntas por bastante tempo. Eram criaturas maravilhosas
no céu azul, e feri-las de qualquer modo seria um crime contra
o céu. Naturalmente, o céu não existe; o homem o inventou por
esperança, pois sua vida se transformou num inferno, num con
flito incessante do nascimento até a morte, num vaivém contínuo,
ganhando dinheiro, trabalhando sem parar. Esta vida se transfor
mou num remoinho, num trabalho de luta etema. Imaginamos
se o homem, se um ser humano, alguma vez poderá viver paci
ficamente nesta terra. O conflito tem sido o seu modo de vida
 — dentro e fora de si mesmo, na área da psique e na sociedade
que essa psique criou.
E provável que o amor tenha desaparecido totalmente deste
mundo. Amar implica generosidade e carinho, implica não ferir
ninguém, não fazer o outro se sentir culpado, mas significa ser 
generoso, amável, e comportar-se de tal maneira que suas pala
vras e pensamentos nasçam da compaixão. É claro que vocês
não podem ser compassivos se pertencerem a religiões organi
zadas — grandes, poderosas, tradicionais, dogmáticas —, que
insistem na fé. Deve haver liberdade para amar. Esse amor não
é o prazer, o desejo, uma lembrança de coisas que ficaram no
 passado. O amor não é o oposto do ciúme, do ódio e da raiva.
Tudo isso pode parecer utópico, idealístico, algo a que o
homem pode só aspirar. Mas se acreditarem assim vocês conti
nuarão a matar. O amor é tão real, tão forte quanto a morte. Isso
não tem nada que ver com imaginação nem com sentimento,
nem com romanticismo e, naturalmente, tampouco tem que ver
com poder, posição, prestígio. O amor é tão tranqüilo quanto as
águas do mar e tão forte quanto o oceano; é como as corredeiras
de um rio abundante fluindo incessantemente, sem começo nem
fim. Mas o homem que mata os cachalotes ou as enormes baleias
está preocupado com sua sobrevivência. Ele dirá: “Eu vivo disso,
esse é o meu comércio.” Ele não se preocupa nem um pouco
com o que chamamos de amor. É provável que ame a família
dele — ou pense que a ama — e não está muito preocupado com
o modo como ganha o sustento. Talvez este seja um dos motivos
 pelos quais o homem vive uma vida fragmentada; ele nunca pa
rece gostar do que está fazendo — embora talvez algumas poucas
 pessoas gostem. Se nos sustentássemos por meio de um trabalho
do qual gostássemos, a situação seria diferente — entenderíamos
a vida como um todo. Nós dividimos a vida em fragmentos: o
mundo dos negócios, o mundo artístico, o mundo científico, o
mundo político e o mundo religioso. Parecemos pensar que todos
os mundos são separados e que devem ser mantidos assim. Dessa
forma, nos tomamos hipócritas, fazendo algo feio, corrupto, no
mundo dos negócios, voltando depois para casa para viver tran-

80
qüilamente com a nossa família; isso alimenta a hipocrisia, um
 padrão duplo de vida.
Esta de fato é uma terra maravilhosa. Aquele pássaro pou
sado na árvore mais alta tem estado ali todas as manhãs, tomando
conta do mundo, observando se chega um pássaro maior do que
ele e que possa matá-lo, olhando para as nuvens, para as sombras
errantes e para o grande crescimento desta terra, estes rios, flo
restas e todos os homens trabalhando da manhã até a noite. No
mundo psicológico, se pensássemos nisso, teríamos de ficar tris
tes. Também ficamos cogitando se algum dia o homem mudará
ou apenas mudarão uns poucos, muito poucos. Afinal, qual é o
relacionamento da minoria com a maioria? Ou qual é o relacio
namento da maioria com a minoria? A maioria não se relaciona
com a minoria. Mas a minoria precisa ter um relacionamento.
Sentado naquela rocha, olhando para o vale abaixo com um
lagarto ao seu lado, você não ousa se mover, caso contrário, o
lagarto poderia se perturbar ou ficar com medo. E o lagarto tam
 bém está observando. E assim o mundo continua: inventando
deuses, seguindo a hirarquia dos deuses importantes. E toda a
simulação e a vergonha das ilusões provavelmente continuará,
os milhares de problemas tomando-se cada vez mais complexos
e intrincados. Só a inteligência do amor e da compaixão pode
resolver todos o problemas da vida. Essa inteligência é o único
instrumento que nunca fica embotado, inútil.
 Brockwood Park,
10 de Setembro de 1970

Com preendemos que há uma divisão na vida, em mim, em vo


cês. Vocês e eu somos fragmentos. Somos feitos de muitos frag
mentos. Um dos fragmentos é o observador e o resto dos frag
mentos é o que é observado. O observador toma-se consciente
dos fragmentos, mas o observador é também um dos fragmentos;
ele não é diferente do resto dos fragmentos. Portanto, vocês terão
de descobrir quem é o observador, o experimentador, o pensador.
De que é feita, como surgiu essa divisão entre observador e ob
servado? O observador, dizemos, é um dos fragmentos. Por que
ele se separou, assumiu o papel de quem analisa, de quem está
consciente, de quem pode controlar, mudar, suprimir e tudo o
mais? O observador é o censor... o resultado de condicionamen
tos sociais, ambientais, religiosos e culturais. Ou seja, as divisões
culturais lhe disseram que você é diferente do objeto que está
observando... Você é o eu superior e aquele é o eu inferior; você
é o iluminado e o objeto não é. Agora, o que lhe deu essa auto
ridade de chamar a si mesmo de iluminado? Terá sido porque
se tomou o censor? E o censor diz: “Isto está certo, isto está
errado, isto é bom, isto é mau, tenho de fazer isto, não devo fazer
aquilo” — o que é o resultado do seu condicionamento, do con
dicionamento da sociedade, da cultura, da religião, da família,
de toda a raça, e assim por diante.

83
Assim, o observador é o censor, condicionado segundo o seu
ambiente. E ele assumiu a autoridade do analista. E o resto dos
fragmentos também está assumindo a sua autoridade; cada frag
mento tem sua própria autoridade, e assim há luta. Dessa manei
ra, há conflito entre o observador e o observado. Para ficar livre
desse conflito, você tem de descobrir se pode olhar sem os olhos
de censor. Isso significa estar consciente, ter consciência de que
os olhos do censor são o resultado do seu condicionamento. E
 podem esses olhos olhar com liberdade, olhar inocente e livre
mente?

Pode a mente livrar-se de todo esse condicionamento?... Es


tou condicionado pela cultura que existe há milhares de anos...
Podem as células cerebrais livrar-se de todo condicionamento
como o observador, como uma entidade que se conforma, como
uma entidade que está condicionada pelo ambiente, pela cultura,
 pela família, pela raça? Se a mente não está livre do condicio
namento, ela nunca poderá estar livre do conflito e, portanto, da
neurose... A menos que sejamos inteiramente livres, somos um
 povo desequilibrado. A partir do nosso desequilíbrio, fazemos
todo tipo de travessuras.
Portanto, a maturidade é a liberdade do condicionamento. E
essa liberdade, obviamente, não é o resultado do observador, que
é a própria fonte de toda memória, de todo pensamento. Acaso
 posso olhar com olhos que nunca sofreram a influência do pas
sado? E isso é sensatez. Você pode olhar para a nuvem, para a
árvore, para a sua esposa, o seu marido, o seu amigo sem uma
imagem? Ter consciência de que você tem uma imagem é a pri
meira coisa, não é verdade? Ter consciência de que está olhando
 para a vida através de uma fórmula, através de uma imagem,
através de conceitos que são todos fatores de distorção. E ter 

84
consciência disso sem opção. E enquanto o observador está cons-
ciente dessas coisas, há distorção. Portanto, você pode olhar, a
mente pode observar sem o censor? Pode ouvir sem nenhuma
interpretação, sem nenhuma comparação, sem julgamento, sem
avaliação — pode ouvir a brisa, o vento, sem nenhuma interfe-
rência do passado?
Saanen, 13 de Julho de 1975

O pensamento é a resposta da memória à experiência e ao co-


nhecimento; portanto, estamos sempre atuando no campo do co-
nhecimento. Este não modificou o homem. Tivemos milhares de
guerras; milhões de seres humanos sofreram, choraram, e conti-
nuamos insistindo em guerras! O conhecimento da guerra não
nos ensinou nada, exceto, talvez, como matar, com mais eficácia,
numa escala mais ampla. O conhecimento não modificou o ho-
mem; aceitamos a divisão, as nacionalidades. Aceitamos essa
divisão, embora ela inevitavelmente traga conflito entre as na-
ções; aceitamos a injustiça, a crueldade que o pensamento trouxe
 por meio do conhecimento. Estamos destruindo espécies de ani-
mais: cinquenta milhões de baleias foram mortas desde o início
deste século. O homem destrói tudo aquilo em que toca. Portanto,
o pensamento que é a resposta à memória, à experiência e ao
conhecimento não modificou o homem, embora tenha criado um
mundo tecnológico extraordinário.

Só quando a mente compreende a limitação, a estreiteza, a


finitude do pensamento ela pode fazer a pergunta: o que é a
verdade? Isso está claro? Eu não aceito a verdade dada pelos
filósofos — eles fazem o jogo deles. Filosofia significa o amor 

87
da verdade, não o amor do pensamento. Portanto, não há auto
ridade — Platão, Sócrates, Buda. E o cristianismo não se apro
fundou no assunto. Ele brincou com palavras e símbolos, fez do
sofrimento e de todo o resto uma paródia. Portanto, a mente
rejeita tudo isso.

Então, qual é a verdade?... Vocês têm de suar sangue, têm


de entregar-se de coração à questão, não só aceitar alguma tolice.
Vocês têm a capacidade de investigar, não a capacidade cultivada
 pelo tempo, como aprender um a técnica, mas a capacidade que
surge quando se preocupam de verdade em descobrir a verdade,
quando buscam profundamente, quando essa descoberta for uma
questão de vida ou morte — vocês entendem?

88
 De Krishnamurti para Si Mesmo,
25 de Fevereiro de 1983

H á uma árvore perto do rio e nós a estamos observando dia


após dia por algumas semanas, na hora do nascimento do sol. À
medida que o sol surge lentamente no horizonte, acima das ár
vores, essa árvore particular toma-se subitamente dourada. Todas
as suas folhas estão brilhantes e cheias de vida, e, à medida que
você as observa enquanto as horas passam, essa árvore, cujo
nome não importa — o que importa é a bela árvore —, a obser
vação parece difundir uma qualidade extraordinária por toda a
terra, sobre o rio. E quando o sol nasce e se eleva um pouco
mais, as folhas começam a se agitar, a dançar. E cada hora parece
dar a essa árvore uma qualidade diferente. Antes de o sol nascer,
ela transmite uma sensação sombria, silenciosa, distante, repleta
de dignidade. E quando o dia começa, as folhas banhadas de luz
dançam e dão aquela sensação peculiar que temos ao ver uma
grande beleza. Ao meio-dia, sua sombra se aprofunda e você
 pode sentar-se protegido do sol, sem nunca se sentir solitário,
tendo a árvore como companhia. E quando está sentado ali, há
um relacionamento de profunda segurança e liberdade que só as
árvores podem conhecer.
Ao entardecer, quando o céu poente está iluminado pelo pôr-
do-sol, a árvore gradualmente se tom a escura, negra, fechando-se

89
em si mesma. O céu se toma vermelho, amarelo, verde, mas a
árvore fica quieta, oculta, e descansa durante a noite.
Se vocês se relacionarem com co m ela, vocês se relacionarão
relacionarão com
a humanidade. Então, vocês serãoserão responsáveis porp or aquela árvore
árvore
e pelas árvores do mundo. Mas se não se relacionarem com as
coisas vivas desta terra, poderão perder todo vínculo que têm
com a humanidade, com os seres humanos. Nunca olhamos em
 profund
 prof undida
idade
de pa
para
ra a qua
qualid
lidade
ade da árvore;
árvor e; nun
nunca ca a tocamos
tocam os de
verdade, nunca sentimos sua solidez, seu tronco áspero, nunca
ouvimos o som que faz parte da árvore. Não o som do vento
 passando
 pass ando po
porr entre
ent re as folhas, não o som da brisabr isa matuti
ma tutina
na que
agita as folhas, mas o seu próprio som, o som do tronco e o som
silencioso
silencioso das raízes. Vocês têm de ser extraordinariamente sen-
síveis para ouvir o som. Este som não é o ruído do mundo, não
é o ruído da tagarelice da mente, não é a vulgaridade das dis-
cussões e dos conflitos humanos, mas o som como parte do uni-
verso.
É estranho que tenhamos tão pouco relacionamento com a
natureza, com os insetos, com o sapo que salta e com a coruja
que se esconde nas montanhas, chamando seu companheiro.
 Nunca
 Nun ca parece
par ecemos
mos sensíveis
sensívei s às coisas vivas da terra. Se pudermos
puderm os
criar uma profunda e duradoura relação com a natureza, nunca
mataremos animais
anim ais para saciar nosso
nosso apetite,
apetite, nem faremos o mal,
nem dissecaremos um macaco, um cão, uma cobaia para nosso
 benefício. Descob
Des cobrire
riremo
moss outros meios papara
ra nos
n os curar
cur ar de nossas
doenças, para curar nosso corpo. Mas a cura da mente é algo
totalmente diverso.
Essa cura acontece gradualmente, se vocês forem um com a
natureza, com aquela laranja na árvore, com a folha de grama
que irrompe através do cimento e com as montanhas cobertas,
escondidas pelas nuvens.
Isso não é imaginação sentimental ou romântica, mas a rea
lidade de um relacionamento com tudo o que vive e se move
sobre a terra. O homem matou milhões de baleias e ainda con
tinua matando-as. E tudo o que tiramos de sua matança pode ser
adquirido por outros meios. Mas, aparentemente, o homem gosta
de matar coisas:
coisas: o gamo em fuga, a maravilhosa gazela
gaze la e o grande
grande
elefante. Gostamos de matar
mat ar uns aos outros. A matança
ma tança de outros
seres humanos nunca parou através da história da vida do homem
nesta terra.
terra. Se pudermos — e devemos fazer isso — , estabelecer
estabelecer
um profundo, permanente e duradouro relacionamento com a
natureza, com as verdadeiras árvores, os arbustos, as flores, a
grama e as nuvens que se movimentam ligeiras, então nunca
mais mataremos nenhum outro ser humano, por nenhuma razão. razão.
Assassinato organizado é guerra.
 Brockwood Pa
Park
rk,,
4 de Setembro de 1980

Questionador. Por que sempre há morte e sofrimento no equilí-


 brio da naturez
nat ureza?
a?

Krishnamurtv.   Por que o homem matou cinqüenta milhões de


 baleias?
 balei as? Cinqüe
Cin qüenta
nta milhões
milh ões — vocês
você s entend
ent enderam
eram?? E ainda
ain da con-
co n-
tinuamos matando todo tipo de espécies — os tigres, os chitas,
os leopardos
leopardos e os elefantes estão se extinguindo
extinguindo — eles são mor-
tos pela sua carne, pelas suas presas; vocês conhecem o fato.
 Não será o homem
hom em um animal
anim al muito mais perigoso
perig oso do que o
resto dos animais? E vocês querem saber por que há morte e
sofrimento na natureza. Vocês vêem um tigre matar uma vaca
ou um gamo. Esse é o modo natural de vida; no entanto, no
momento em que interferimos nele, ele se transforma numa ver-
dadeira crueldade. Vocês viram filhotes de baleia ser abatidos
com uma pancada na cabeça? Quando houve
houve um grande protesto
protesto
contra esse fato, as uniões disseram que temos de viver desta
maneira. Vocês sabem de tudo isso.
Sendo assim, quando começaremos a entender o mundo à
nossa volta e o mundo dentro de nós? O mundo interior é tão
enormemente complexo que preferimos entender primeiro o
mundo da natureza... Se começássemos por nós mesmos, não

93
matando, não ferindo, não sendo violentos, não sendo naciona-
listas, mas sentindo amor pela humanidade como um todo, talvez
tivéssemos um relacionamento apropriado entre nós e a natureza.
Agora, estamos destruindo a terra, o ar, o mar, as criaturas do
mar porque somos o maior perigo para o mundo, com nossas
 bombas atômicas — vocês sabem, todo esse tipo de coisas.

Questionador. O senhor diz que somos o mundo, contudo o mun-


do parece estar rumando para uma destruição em massa. Uma
minoria de pessoas integradas poderá superar a maioria?

Krishnamurti: Vocês são a minoria? Não, eu não estou brincan-


do. Somos a minoria? Ou há alguém entre nós que esteja total-
mente livre de tudo isso? Ou estamos parcialmente contribuindo
 para o ódio dos outros? Psicologicamente. Vocês talvez não se-
 jam capazes de impedir a Rússia ou a América do Norte, a In-
glaterra ou o Japão de atacarem outro país, mas psicologicamente
estamos livres de nossa herança comum, que é nosso naciona-
lismo tribal, glorificado? Estamos livres da violência? A violên-
cia existe onde existe um muro ao nosso redor. Por favor, pro-
curem entender tudo isso. E construímos muros em volta de nós,
muros de dez pés de altura e de quinze pés de espessura. E todos
nós estamos cercados de muros. E disso surge a violência, o
senso de imensa solidão. Assim a minoria e a maioria são vocês.
Se um grupo de nós fundamentalmente tivesse se transformado
 psicologicamente, vocês nunca fariam essa pergunta, porque en-
tão seríamos algo totalmente diferente.

Questionador:  Se há verdade e ordem supremas, por que elas


 permitem que a humanidade se comporte de modo tão chocante?
Krishnamurti:   Se existe uma tal entidade suprema, ela deve ser
muito estranha porque nos criou e então fazemos parte dela —
está certo? E se fosse organizada, sadia, racional, piedosa, não
seríamos como somos. Vocês podem aceitar o processo evolu-
cionário do homem, ou acreditarem que o homem apareceu su-
 bitamente criado por deus. E deus, essa entidade suprema, é or-
dem, é bondade, é compaixão e todo o resto, todos os atributos
que nós lhe dermos. Assim, vocês têm essas duas escolhas; que
há uma entidade suprema que fez o homem de acordo com sua
imagem, ou que existe um processo evolucionário do homem,
que a vida criou a partir das pequenas moléculas, e assim por
diante, até chegar ao momento presente.
Se vocês aceitarem a idéia de deus, da pessoa suprema na
qual existe a ordem total, vocês fazem parte dessa entidade, então
essa pessoa deve ser extraordinariamente cmel, certo? — ex-
traordinariamente intolerante para nos fazer comportar do modo
como estamos fazendo, destruindo uns aos outros.
Ou há a outra idéia, a de que o homem criou o mundo como
ele é; seres humanos fizeram este mundo, o mundo social, o
mundo do relacionamento, o mundo tecnológico, o mundo da
sociedade — nosso relacionamento uns com os outros. Nós —
não deus, nem alguma entidade suprema —, nós fizemos o mun-
do. Somos responsáveis por este horror que temos perpetuado.
E confiar num agente exterior determinado para transformar tudo
isso? Esse jogo tem sido jogado por milênios, e vocês ainda são
os mesmos! Talvez um pouco mudados, um pouco mais gentis,
um pouco mais tolerantes — no entanto, a tolerância é algo ter-
rível.
 Madras, 6 de Janeiro de 1981

Questionador   O senhor falou de nos insurgirmos contra a so-


ciedade corrupta e imoral. Para mim, é importante obter mais
explicações.

Krishnamurti: Em primeiro lugar, estamos certos sobre o que a


 palavra corrupção   implica? Há a corrupção física da poluição
do ar, nas cidades, nas cidades industriais. Estamos destmindo
o mar, estamos matando milhões de baleias e de filhotes de ba-
leias. Há a poluição física no mundo e há sua superpopulação.
Então há a corrupção política, religiosa e assim por diante. A
que profundidade esta corrupção está no cérebro humano, nas
atividades humanas? Temos de ser muito claros quando falamos
sobre corrupção, sobre o que queremos dizer com essa palavra
e em que nível estamos falando sobre ela.
Há corrupção por todo o mundo. E mais ainda, infelizmente,
nesta parte do mundo — passando dinheiro por baixo da mesa,
tendo de subornar para obter entradas — vocês conhecem todos
os jogos que há neste país. O verbo corromper   significa dissol-
ver; corrupção não só de comunidades e estados contra outras
comunidades e estados, mas basicamente corrupção do cérebro
e do coração. Assim, temos de ser claros sobre o nível em que
falamos sobre corrupção: no nível financeiro, no nível burocrá-
tico, no nível político ou no nível religioso — os quais estão

97
repletos de superstição de todos os tipos, sem nenhum sentindo,
apenas uma série de palavras que perderam todo o significado,
tanto no mundo cristão como no mundo Oriental. A repetição de
rituais, vocês sabem que ela continua. Isso não será corrupção?
Por favor, falemos sobre isso.
Acaso os ideais não são uma forma de corrupção? Podemos
ter ideais, digamos, por exemplo, o ideal da não-violência. Quan
do vocês têm ideais de não-violência que tentam pôr em prática,
nesse meio tempo vocês são violentos. Certo? Dessa forma, essa
não é a corrupção de um cérebro que desconsidera a ação para
acabar com a violência? Isto parece muito claro.
Acaso existe corrupção quando não existe nenhum amor,
mas só prazer, com o seu sofrimento? Há excesso de resistência
em todo o mundo contra essa palavra; estando associada ao sexo,
ao prazer, à ansiedade, ao ciúme e ao apego, isso não será cor
rupção? O apego não será em si mesmo uma corrupção? Quando
estamos apegados a um ideal, a uma casa ou a uma pessoa, as
conseqüências são o ciúme, a ansiedade, a possessividade, o do
mínio.
Assim, a questão se resume basicamente na sociedade em
que vivemos, que é essencialmente baseada no relacionamento
com o outro. Se não há amor, apenas exploração mútua, conforto
sexual mútuo e várias espécies de conforto, esse relacionamento
inevitavelmente terá de provocar corrupção. Assim, o que farão
a respeito? Essa é de fato a questão. O que farão, como seres
humanos que vivem neste mundo, que é um mundo maravilhoso?
A beleza da terra, a sensação da qualidade extraordinária de uma
árvore — estamos destruindo a terra, estamos nos destruindo:
 portanto, o que vocês farão como seres humanos que vivem aqui?
Cada um de nós terá de tomar cuidado para não se tomar cor
rupto. Criamos a abstração a que chamamos sociedade. Se o nos
so relacionamento, de uns com os outros, for destrutivo — luta,
 batalha, dor, desespero constante — criaremos inevitavelmente
um ambiente que representará tudo o que somos. Assim sendo,
o que faremos a respeito, cada um de nós? Será esta corrupção,
este senso de falta de integridade uma abstração? Será uma idéia
ou um fato real que queremos mudar? Depende de vocês.

Questionador: Existe de fato esta coisa chamada transformação?


O que há para ser transformado?

Krishnamurti: Quando vocês estão observando, olhando ao redor


de vocês, a sujeira na rua, os políticos e o modo como se com
 portam, a sua própria atitude diante de suas esposas e filhos, e
assim por diante — nesse momento, há transformação. Vocês
entendem? Pôr algum tipo de ordem na vida diária, isso é trans
formação, não algo extraordinário, no mundo exterior. Isto é —
quando não estamos pensando clara, objetiva, sadia e racional
mente —, temos de ter consciência disso, e mudar, destruir esse
 pensamento. Isso é transformação. Se estou com ciúme, tenho
de analisar esse sentimento, e não deixá-lo tomar vulto. Mude-o
imediatamente. Isso é transformação. Quando vocês são ganan
ciosos, violentos, ambiciosos — seja tentando tomar-se algum
tipo de deus ou de homem santo, seja nos negócios — , procurem
ver esse negócio da ambição como um todo, segundo o modo
como a ambição está criando um mundo desumano. Não sei se
estão conscientes de tudo isto. A competição está destmindo o
mundo, que está se tomando cada vez mais agressivo. Se estiverem
conscientes, mudem-no imediatamente. Isso é transformação.

Questionador.  O senhor diz que, se um indivíduo mudar, ele


 pode transformar o mundo. No entanto, apesar da sua sincerida
de, de seu amor, de sua clareza e desse poder que não pode ser 
descrito, o mundo passou de mau para pior. Existe algo como o
destino?

Krishnamurti: O que é o mundo? O que é o indivíduo? O que


os indivíduos fizeram que influenciou o mundo? Hitler influen
ciou o mundo. Certo? Mao Tsé-tung, Stálin, Lênin e Lincoln
influenciaram o mundo e também, de forma totalmente diferente,
Buda. Uma pessoa matou milhões e milhões de pessoas. Todos
os fomentadores de guerras, todos os generais mataram, mata
ram, mataram. Isso afetou o mundo. Nos últimos cinco mil anos
de história, desde o período em que começou a haver registros
históricos, houve uma guerra a cada ano, que afetou milhões de
 pessoas. E, então, vocês têm o Buda: ele também influenciou a
mente humana, o cérebro humano, por todo o Oriente. E houve
os que corromperam as pessoas. Assim, quando perguntamos se
a mudança individual pode provocar transformação na sociedade,
acho que esta é a pergunta errada a ser feita.
Estaremos de fato preocupados com a transformação da so
ciedade? Se analisarem a questão com seriedade, estaremos real
mente preocupados? Essa sociedade corrupta, imoral, baseada
na competição e na desumanidade — a sociedade em que esta
mos vivendo —, estão vocês profundamente interessados em mu
dar isso, mesmo como um único ser humano? Se estiverem, não
analisaram o que é a sociedade. Sociedade é uma palavra? E
uma realidade, ou é uma abstração? Vocês entendem? Uma abs
tração do relacionamento humano. É o relacionamento humano
que é a sociedade. Esse relacionamento, com todas suas com
 plexidades, contradições e ódios — vocês podem alterar tudo
isso? Podem. Podem parar de ser cruéis, vocês sabem, e tudo o
mais. O que o relacionamento de vocês é, o ambiente de vocês
também é. Se o seu relacionamento é possessivo e egoísta, vocês
estão criando algo ao redor de vocês que também será igualmente

100
destrutivo. Assim, o indivíduo é você; vocês são como o resto
da humanidade. Não sei se compreendem isto. Psicologicamente,
interiormente, vocês sofrem. Vocês estão ansiosos, são solitários,
competitivos; tentam ser algo, e este é o fator comum por todo
o mundo. Todo ser humano no mundo está fazendo isso; portan-
to, vocês são de fato como o resto da humanidade. Se perceberem
isso, e se provocarem um modo diferente de viver em si mesmos,
estão influenciando a consciência da humanidade como um todo.
Isso se forem de fato sérios e se dedicarem a fundo. Se não
fizerem isto, está certo, vocês decidem.

101
Saanen, 29 de Julho de 1981

Questionador   Como a idéia “vocês são o mundo e são inteira-


mente responsáveis pela humanidade como um todo” pode ser
 justificada numa base racional, objetiva e benéfica?

Krishnamurti: Não tenho certeza se pode ser racionalizada numa


 base objetiva, benéfica. Mas examinaremos primeiro, antes de
dizermos que não pode!
Em primeiro lugar, a terra em que vivemos é a nossa terra
 — certo? Não é a terra inglesa, a terra francesa, ou alemã, russa,
indiana, chinesa; é a nossa terra, em que estamos todos vivendo.
Este é um fato. Mas o pensamento a dividiu racial, geográfica,
cultural e economicamente. Essa divisão está causando confusão
no mundo — isso é óbvio. Não se nega isso. Essa afirmação é
racional, objetiva, sadia. Esta é a nossa terra em que todos esta-
mos vivendo, mas nós a dividimos — por segurança, por vários
motivos patrióticos, políticos, ilusórios que, finalmente, trarão a
guerra.
 Nós também dissemos que toda consciência humana é se-
melhante. Todos nós, seja qual for a parte do mundo em que
vivamos, passamos por uma grande dose de sofrimento, de dor,
de ansiedade, de incerteza, de medo. E, uma vez ou outra, talvez
até com freqüência, temos prazer. Este é o chão comum sobre o
qual estão todos os seres humanos, certo? Este é um fato irrefu-

103
tável. Podemos tentar nos esquivar dele, podemos tentar dizer
que não é, que sou um indivíduo e assim por diante, mas quando
olhamos para a questão objetivamente, de modo impessoal, des
cobrimos que a nossa consciência, psicologicamente, é como a
consciência de todos os seres humanos. Vocês podem ser altos,
 podem ser loiros, ter cabelos castanhos; eu posso ser branco ou
 preto, ou cor-de-rosa, ou de qualquer cor — mas, por dentro,
estamos todos passando por um período difícil. Todos temos uma
sensação de solidão desesperada. Vocês podem ter filhos, um
marido, família, mas, quando estão sozinhos, têm a sensação de
que não têm relacionamento com coisa nenhuma. Sentem-se to
talmente isolados. A maioria de nós tem essa sensação. Este é o
solo comum de toda humanidade. E seja lá o que for que aconteça
no campo dessa consciência, nós somos os responsáveis. Isso é,
se eu sou violento, estou adicionando violência a essa consciência
que é comum a todos nós. Se eu não sou violento, não estou
adicionando nada a ela; estou trazendo um fator totalmente novo
a essa consciência. Desse modo, sou profundamente responsável:
ou contribuo para essa violência, para essa confusão, ou, como
reconheço no fundo do meu coração, no meu sangue, nas pro
fundezas do meu ser que eu sou o resto do mundo, que eu sou
a humanidade, que eu sou o mundo, que o mundo não é separado
de mim, então me tomo totalmente responsável. E óbvio! Isto é
racional, objetivo, sensato. A outra hipótese é insanidade — cha
mar a si mesmo um hindu, um budista, um cristão e tudo o mais
 — estes são apenas rótulos.
Quando se tem o sentimento de que a realidade, a verdade
de que todo ser humano que vive nesta terra é responsável não
só por si mesmo, mas por tudo o que está acontecendo, como
traduzir isso para a vida diária? Esse sentimento de vocês não é
uma conclusão intelectual, um ideal, etc. Então ele não tem rea
lidade. Mas se a verdade é que estão pisando no chão comum a

104
toda a humanidade, e se se sentem totalmente responsáveis, en
tão, qual é a ação de vocês diante da sociedade, diante do mundo
em que estão de fato vivendo? O mundo, como existe agora, está
cheio de violência. Suponham que eu compreenda que sou to
talmente responsável por ela. Qual é a minha ação? Devo me
 juntar a um grupo de terroristas? É claro que não. A competiti
vidade clara entre as nações está destruindo o mundo. Quando
me sinto responsável por isso, naturalmente deixo de ser com
 petitivo. E o mundo religioso, bem como o econômico, o mundo
social, está baseado num princípio hierárquico. Também tenho
este conceito de estrutura hierárquica? Obviamente não, porque
aquele que diz “eu sei” está adotando uma posição superior e
tem um status. Se vocês querem esse status vão procurá-lo; mas
estão contribuindo para a confusão do mundo.
Portanto, há ações reais, objetivas, sensatas quando vocês
 percebem, quando compreendem, no âmago de seus corações,
que são como o resto da humanidade, e que estamos todos pi
sando no mesmo chão.
 De  Das Trevas para a Luz

A canção da vida

 Não ame o galho que se desenvolveu,


 Nem guarde apenas a sua imagem em seu coração.
Ela morre.

Ame a árvore toda.


Depois, poderá amar o galho bem formado,
A folha tenra e a folha murcha,
O tímido botão e a flor desabrochada,
A pétala que cai e a copa dançante,
A sombra esplêndida do amor pleno.

Ah! Ame a Vida em sua plenitude.


Ela não conhece a dissolução.
 De Krishnamurti para Si Mesmo,
6 de Maio de 1983

vjentado na praia, eu observo as pessoas passando: dois ou três


casais e uma mulher sozinha. Parece que toda a natureza, tudo
à minha volta, desde o mar azul-escuro até aquelas montanhas
rochosas, também está observando. Estamos observando, não es
 perando que alguma coisa aconteça, simplesmente observando,
sem parar. Nessa observação há aprendizado, não o acúmulo de
conhecimento através do aprendizado quase automático; mas a
observação é atenta, nunca superficial, mas profunda, com sua
vidade e ternura; então, não existe observador. Quando existe
um observador, trata-se apenas de observação do passado, e isso
não é observação, é apenas recordação, e diz respeito muito mais
à matéria morta. Observar é algo muito vivo, todo momento é
um vazio. Esses pequenos siris e essas gaivotas, todos esses pás
saros que voam estão observando. Eles procuram uma presa, pro
curam peixes, procuram algo para comer; eles também estão ob
servando. Alguém passa perto de você e fica imaginando o que
você está observando. Você observa o nada e no nada há tudo.*
Outro dia, deparei com um homem que viajara muito, vira
muitas coisas e escrevera uma ou outra coisa — um homem
envelhecido de barba muito bem cuidada. Estava decentemente
vestido, sem a superficialidade d a vulgaridade. Cuidava dos seus

109
sapatos, de suas roupas. Falava muito bem inglês, embora fosse
um forasteiro. E, para o homem que estava sentado na praia ob
servando, ele disse que falara com um grande número de pessoas,
que discutira com alguns professores e eruditos, e que, enquanto
estava na índia, havia conversado com alguns dos pânditas. E,
ao que parece, a maioria deles, segundo ele, não estava preocu
 pada com a sociedade, não se dedicava com profundidade a qual
quer reforma social ou à presente crise da guerra. Ele estava
muito preocupado com a sociedade em que estamos vivendo,
embora não fosse um reformador social. Ele não tinha certeza
de que a sociedade poderia ser mudada, de que ele pudesse fazer
algo a respeito. Mas percebia o que estava acontecendo: a grande
corrupção, o absurdo dos políticos, a insignificância, a vaidade
e a brutalidade que é excessiva no mundo.
Ele disse: “O que podemos fazer por esta sociedade? Não
 pequenas reformas aqui e ali, troca de um presidente por outro,
de um primeiro-ministro por outro — eles todos pertencem mais
ou menos à mesma massa; eles não podem fazer muito porque
representam a mediocridade, ou até mesmo menos do que isso,
a vulgaridade; eles querem se exibir; nunca farão nada. Farão
 pequenas reformas insignificantes aqui e ali, mas a sociedade
continuará existindo a despeito deles.” Ele observara várias so
ciedades e culturas. Fundamentalmente, elas não são tão diferen
tes. Ele parecia ser um homem muito sério mesmo sorrindo, e
falou sobre a beleza deste país, sobre a amplidão, a variedade
dos quentes desertos até as altas Montanhas Rochosas com seu
esplendor. Ouvi-o falar e observei o mar.
A sociedade não pode ser modificada a menos que o homem
mude. Homem, você e os outros criaram essas sociedades por
gerações e gerações; todos nós criamos essas sociedades a partir
da nossa insignificância, da nossa estreiteza, a partir da nossa
limitação, da nossa ganância, da nossa inveja, da nossa brutali

110
dade, da nossa violência, da nossa competição e assim por diante.
Somos responsáveis pela mediocridade, pela estupidez, pela vul
garidade, por toda loucura tribal e pelo sectarismo religioso. A
menos que cada um de nós mude radicalmente, a sociedade nunca
mudará. Ela existe, nós a fizemos, e, depois, ela nos faz. Ela nos
forma assim como a formamos. Ela nos coloca num molde e o
molde se põe numa estrutura que é a sociedade.
Assim, essa ação continua interminavelmente, como o mar
com a maré cheia e vazante, algumas vezes muito lenta, outras
vezes rápida demais, perigosa. Maré cheia e maré baixa; ação,
reação, ação. Esta parece ser a natureza do movimento, a menos
que haja uma ordem profunda em nós mesmos. Essa mesma or
dem trará ordem à sociedade não através da legislação, dos go
vernos e de toda essa azáfama — embora, enquanto houver de
sordem, confusão, a lei e a autoridade que foram criadas pela
nossa desordem continuarão a existir. A lei é uma criação do
homem, como o é a sociedade — o produto do homem é a lei.
Portanto, o interior, a psique cria o exterior de acordo com
a sua limitação; e o exterior, então, controla e molda o interior.
Os comunistas pensaram, e é provável que ainda pensem que,
controlando o exterior, criando determinadas leis, regulamentos,
instituições, certas formas de tirania, eles podem mudar o ho
mem. Mas até agora não foram bem-sucedidos, e nunca' terão
sucesso. Esta também é a atividade do Socialismo. Os capitalistas
fazem isso de outra maneira, mas é tudo a mesma coisa. O in
terior sempre supera o exterior, pois o interior é muito mais forte,
muito mais vital do que o exterior.
Poderá este movimento ter fim — a criação psicológica in
terior do movimento exterior, e o exterior, a lei, as instituições,
as organizações, tentando moldar o homem, o cérebro, no sentido
de agir de certo modo, e o cérebro, o interior, a psique, então
mudando o exterior, e tirando vantagem dele? Este movimento

111
tem continuado desde que o homem está na terra, a crueldade,
a superficialidade, algumas vezes de modo brilhante — sempre
existe o interior superando o exterior, como o mar com suas
marés em fluxo e refluxo. Devemos de fato indagar se esse mo-
vimento pode cessar um dia — ação e reação, ódio e mais ódio,
violência e mais violência. Há um fim quando há apenas obser-
vação, sem nenhum motivo, sem resposta, sem direção.
A direção começa a existir quando há acumulação. Mas, na
observação em que há atenção, consciência, e um grande sentido
de compaixão, há uma inteligência própria. Essa observação e
essa inteligência atuam. E essa ação não é o fluxo nem o refluxo.
 No entanto, ver as coisas sem a palavra, sem um nome, sem
nenhuma reação exige grande atenção; nessa observação há uma
grande vitalidade, há paixão.

112
 Madras, 27 de Dezembro de 1981

Estivemos falando sobre o conflito, e se todos os seres humanos


que viveram nesta terra, com todos os seus amplos tesouros, vi
veram em perpétuo conflito. Não só exteriormente com o am
 biente, com a natureza, mas uns com os outros, e interiormente,
com a assim chamada espiritualidade; nós temos estado em cons
tante conflito. Desde o momento em que nascemos até o mo
mento em que morremos estamos em conflito. E somos instiga
dos a tê-lo; nós nos acostumamos com ele; nós o toleramos.
Descobrimos muitos motivos pelos quais devemos viver em con
flito. Pensamos que a luta e o esforço constantes significam pro
gresso, progresso exterior, ou conquista interior rumo ao objetivo
mais elevado.
Este belo país, a índia, tem montanhas adoráveis, montanhas
maravilhosas, rios caudalosos. Mas depois de milhares de anos
de sofrimento, de luta, de obediência, de aceitação, nos destruin
do mutuamente, nós o reduzimos a isto, à selvageria de seres
humanos irresponsáveis, que não se preocupam com a terra, nem
com as coisas adoráveis da terra, com a beleza do lago, com o
rio que corre ligeiro. Nenhum de nós parece se importar. E tudo
o que nos preocupa são nossos pequenos eus, nossos pequenos
 problemas. Dá vontade de chorar ao ver o que estamos fazendo
com este país e ao ver o que os outros países estão fazendo.

113
A vida se tomou extraordinariamente perigosa, insegura, sem
qualquer sentido. Vocês podem inventar muitos significados,
mas a vida cotidiana atual perdeu todo o seu sentido, exceto para
ganhar dinheiro, ser alguém, ser poderoso e assim por diante.
E não há político, quer da esquerda, quer da direita ou do
centro, que resolva qualquer de nossos problemas. Os políticos
não estão interessados em resolver problemas. Eles apenas se
 preocupam consigo mesmos e em manter sua posição. E os gurus
e religiosos também traíram os homens. Vocês seguiram os Upa-
nishads, os Brahmasutras e o Bhagavad Gita; e há o jogo do guru
de ler esses livros em voz alta para uma audiência de supostos
iluminados, de pessoas inteligentes. Portanto, é possível que vo
cês não possam confiar nos políticos, ou seja, no governo, nem
nas escrituras, tampouco em nenhum guru, porque eles fizeram
este país ser o que é agora. Se procurarmos por outra liderança,
esta também nos levará pelo caminho errado. E visto que não há
ninguém que possa nos ajudar, temos de ser total, completamente
responsáveis pela nossa conduta, pelo nosso comportamento e
 pelas nossas ações.

Este país sempre discutiu a não-violência. Isto tem sido pre


gado repetidas vezes, política e religiosamente, por vários líderes,
mas a não-violência não é um fato, é uma mera idéia, uma série
de palavras. O fato real é que vocês são violentos. Isto é verdade.
E não somos capazes de entender “o que é”, e por isso criamos
esta loucura chamada não-violência. Então surge um conflito en
tre “o que é” e “o que deveria ser”. E enquanto vocês estão
 perseguindo a não-violência, estão semeando a violência durante
todo o tempo. Novamente, isto é muito evidente. Assim, pode
mos olhar juntos para “o que é” sem qualquer fuga, sem quais
quer ideais, sem suprimir ou fugir disso? Somos violentos por 

114
herança dos animais, do macaco e assim por diante. A violência
assume várias formas, não meramente ação brutal; trata-se de
um assunto muito complicado. A violência é imitação, é confor
mismo, é obediência; violência é pretenderem ser o que não são;
essa é uma forma de violência. Por favor, vejam a lógica de tudo
isso. Não é que estejamos fazendo afirmações para que vocês as
aceitem ou as neguem. Estamos descendo por um caminho, numa
floresta, por campos adoráveis, juntos, investigando sobre a vio
lência, como dois amigos que discutem os fatos, sem qualquer
 persuasão, sem qualquer sentido de resolução do problema. Es
tamos falando juntos, estamos analisando juntos. Estamos cami
nhando pelo mesmo caminho, não o seu caminho ou o meu, mas
o caminho da investigação desses problemas.

Assim, nós aprendemos juntos a observar. Vocês não são os


seguidores do palestrista, ele não é o seu guru, graças a deus;
não há superior nem inferior nesta análise. Não existe autoridade.
Quando a sua mente está mutilada devido à autoridade, é muito
difícil analisar a violência. Assim, é importante entender como
observar o que está acontecendo no mundo; a miséria, a confu
são, a hipocrisia, a falta de integridade, as ações brutais que acon
tecem, os terroristas, as pessoas que fazem reféns, e os gurus
que têm seus próprios campos de concentração! Tudo isso é vio
lência. Como alguém pode dizer, “eu sei, sigam-me”? Esta é
uma afirmação escandalosa Assim, estamos observando juntos
o que é a violência, e nos perguntando: o que há para observar?
O que é observar o ambiente em volta de vocês: as árvores, o
lago na esquina, as estrelas, a lua nova, o planeta Vénus solitário,
a estrela vespertina, a glória do pôr-do-sol? Como vocês obser
vam? Vocês não podem observar, não podem olhar, se estiverem
ocupados consigo mesmos, com seus próprios problemas, com
suas idéias, com seu raciocínio complexo, certo? Vocês não po
dem observar se tiverem preconceitos, ou se houver qualquer
tipo de conclusão ou experiência particular à qual se apegam.
Portanto, como vocês observam essa coisa maravilhosa chamada
árvore? Como olham para ela agora, enquanto estão sentados aí,
cercados por estas árvores? Vocês viram suas folhas agitando-se
ao vento, a beleza da luz nas folhas; será que atentaram para
isso? Portanto, vocês podem olhar para uma árvore, ou para a
lua nova, ou para uma única estrela no céu sem usar nenhuma
 palavra? Pois a palavra não é a verdadeira estrela, a verdadeira
lua. Vocês podem deixar o mundo de lado e olhar?
Vocês podem olhar para suas esposas sem usar nenhuma
 palavra, sem todas as lembranças do seu relacionamento, por
mais íntimo que tenha sido, sem nenhuma lembrança? Podem
olhar para suas esposas, para seus maridos, sem a lembrança do
 passado? Já fizeram isso alguma vez? Por favor, vamos aprender
 juntos a observar uma flor. Se souberem como olhar para a flor,
verão que ela contém a eternidade. Não se deixem levar pelas
minhas palavras! Se souberem como olhar para um estrela, para
uma densa floresta, então, nessa observação haverá espaço, ha
verá eternidade. Temos de descobrir juntos como observar suas
esposas os seus maridos sem a imagem que criaram a respeito
dele ou dela. Vocês têm de começar bem perto para irem muito
longe. Se não começarem com o que está perto, nunca irão muito
longe. Se quiserem subir à montanha ou ir à cidade próxima, o
 primeiro passo é importante; como andam, com que graça, com
que facilidade, com que felicidade. Assim estamos dizendo que,
 para ir muito, muito longe — o longe que é a eternidade — ,
vocês terão de começar muito próximo — o próximo é o rela
cionamento com os seus parceiros. Vocês conseguem observar
sua família com visão clara, sem as palavras “minha esposa”, ou
“meu marido”, “meu sobrinho” ou “meu filho”? Sem a palavra,

116
sem todas as mágoas acumuladas e a lembrança de coisas que
 já passaram. Façam isso agora. Observem. E, quando forem ca-
 pazes de observar todas as imagens que construíram em tomo
de si mesmos e em tomo deles, então existirá o relacionamento
correto.
Quando vocês viverem todos os dias com “o que é” e ob-
servarem “o que é”, não só exterior mas interiormente, então
criarão uma sociedade sem conflitos.

117
 Bombaim, 24 de Janeiro de 1982

Iremos analisar juntos o relacionamento entre um ser humano


e a natureza, ou seja, o relacionamento entre vocês mesmos e o
ambiente. O ambiente não é apenas a cidade ou a aldeia ou vila
em que vocês vivem, mas também o ambiente da natureza. Se
vocês não se relacionam com a natureza, não têm relacionamento
com o homem. A natureza são as campinas, os bosques, os rios,
e a terra maravilhosa, as árvores, e a beleza da terra. Se não
tivermos um vínculo com isso, não teremos relacionamento uns
com os outros. Já que o pensamento não criou a natureza, ele
não fez o tigre nem o céu encrespado da noite com as estrelas.
O pensamento não criou as montanhas cobertas de neve contra
o céu azul, o pôr-do-sol e a luz solitária quando não há outras
estrelas. Desse modo, o pensamento não criou a natureza.
A natureza é a realidade. O que criamos entre seres humanos
também é uma realidade, mas uma realidade em que há conflito,
 pois há luta, onde todos estão tentando tomar-se alguém. Tanto
física como interiormente, espiritualmente, se posso usar esta
 palavra. Quando se está tentando ser alguém, tentando adquirir
status  político ou religioso, então não se tem relação com outras
 pessoas, nem com a natureza. Muitos de vocês vivem em cidades
com as multidões, os barulhos e a sujeira do ambiente. É provável
que não tenham entrado muitas vezes em contato com a natureza.
Mas existe um mar esplêndido, e vocês não se relacionam com

119
ele. Vocês talvez olhem para ele, talvez nadem nele, mas a sen-
sação desse mar com a sua enorme vitalidade e energia, a beleza
de uma onda quebrando na praia — não há comunicação entre
esse maravilhoso movimento do mar e vocês mesmos. E, se não
têm relacionamento com isso, como podem ter relacionamento
com outro ser humano? Se não perceberem o mar, a qualidade
da água, das ondas, a grande vitalidade da maré em fluxo e re-
fluxo, como podem ter consciência, ou serem sensíveis ao rela-
cionamento humano? Por favor, é muito importante entender
isso, porque a beleza, se é que podemos falar sobre ela, não está
unicamente na forma física, mas a beleza em essência é essa
qualidade de sensibilidade, a qualidade da observação da natu-
reza.

120
Ojai, 1° de Maio de 1982

A crise não é a economia, nem a guerra, nem a bomba, nem


os políticos, nem os cientistas; a crise está dentro de nós, a crise
está em nossa consciência. Até entenderem com muita profun
didade a natureza dessa consciência e a questão, pesquisando-a
a fundo e descobrindo por si mesmos se pode haver uma total
mutação nessa consciência, o mundo continuará gerando mais
miséria, mais confusão, mais horror. A nossa responsabilidade
não é algum tipo de ação altruísta, política ou econômica, mas
compreender a natureza de nosso ser — porque nós, seres hu
manos, que vivemos nesta bela e adorável terra, nos tomamos
como ela.
Se vocês estão dispostos, se é responsabilidade de vocês,
 podemos perceber juntos a natureza da nossa consciência, a na
tureza do nosso ser. Esta não é uma conferência, mas vocês e
eu estamos tentando dialogar, não separadamente; estamos ten
tando observar o movimento dessa consciência e o seu relacio
namento com o mundo, quer essa consciência seja individual,
separada ou aquela consciência da humanidade como um todo.
Somos educados desde a infância para ser indivíduos, com almas
separadas — se é que vocês acreditam nesse tipo de coisa. Vocês
foram treinados, foram educados e condicionados a pensar como
indivíduos. Pensamos porque temos nomes separados, formas
separadas — escura, clara, alta, baixa, branca, preta e assim por 

121
diante — e temos nossas tendências e experiências particulares,
que somos indivíduos separados. Agora iremos questionar essa
idéia; nós somos indivíduos?
Isso não significa que somos uma espécie de seres amorfos;
mas somos de fato indivíduos? O mundo todo sustenta a idéia
de que, tanto religiosamente como de outras maneiras, somos
indivíduos separados. E, a partir desse conceito, talvez dessa ilu
são, cada um de nós está tentando se realizar, tomar-se alguém,
competindo com os outros, lutando com as outras pessoas. As
sim, se adotarmos este tipo de vida, inevitavelmente estaremos
nos apegando às nacionalidades, ao tribalismo, à guerra. Por que
nos apegamos ao nacionalismo e à paixão que ele envolve, que
é o que está acontecendo agora? Por que damos tão extraordinária
importância ao nacionalismo que, em essência, é tribalismo? Por
quê? Será que é porque apegar-se a uma tribo, a um grupo, nos
dá certa segurança — não só segurança física mas também psi
cológica, um senso interior de completude, de plenitude? Se for
isso, então a outra tribo sente o mesmo; donde existe divisão e,
 portanto, conflito, guerra.
Se de fato percebemos a verdade disso, não teoricamente, e
se quisermos viver nesta terra, que é a nossa terra, não sua nem
minha, nem americana, nem russa, nem hindu, então, não existe
nenhum nacionalismo. Há apenas a existência humana. Uma vida
 — j—não se trata da sua nem da minha vida; trata-se de viver o
todo da vida. Mas essa tradição de individualidade tem sido per
 petuada pelas religiões, tanto no Oriente quanto no Ocidente.
Ora, será isso assim? Vocês sabem, é muito bom duvidar, é
muito bom ter uma mente que questiona, que não aceita; uma
mente que diz: provavelmente não podemos viver mais desta
maneira, desta maneira brutal e violenta. Dessa forma, a dúvida,
o questionamento tem uma importância extraordinária; não con
vém aceitar apenas o modo de vida que vivemos talvez durante

122
trinta anos, ou o modo como o homem viveu por um milhão de
anos. Assim, estamos questionando a realidade da individualidade.
Ser consciente significa ter percepção, saber, perceber, ob-
servar. O conteúdo da consciência é a sua crença, o seu prazer,
a sua experiência, o conhecimento particular que vocês juntaram,
quer através da experiência externa, quer através dos seus medos,
apegos, dores, da agonia da solidão, da tristeza, da busca de algo
além da mera existência física; tudo isso é a nossa consciência
com seu conteúdo. O conteúdo faz a consciência. Sem conteúdo
não existe a consciência como a conhecemos. Essa consciência,
que é muito complexa, contraditória, com extraordinária vitali-
dade, é de vocês? O pensamento é de vocês? Ou existe um único
 pensamento que não é nem do Oriente nem do Ocidente? Há
apenas um único pensamento, que é comum a toda a humanidade,
quer seja rica, quer pobre. Os técnicos, com sua extraordinária
capacidade, ou os monges que se retiraram do mundo e se con-
sagraram a uma idéia, ainda estão pensando.
Essa consciência será comum a toda a espécie humana? Para
onde quer que vamos, vemos sofrimento, dor, ansiedade, solidão,
loucura, medo, a premência do desejo. Isso é comum, é o chão
em que todos os seres humanos se encontram. A sua consciência
é a consciência da humanidade, do resto da humanidade. Se en-
tendermos a natureza disso — que vocês são o resto da huma-
nidade, embora tenhamos nomes diferentes, embora vivamos em
 partes diferentes do mundo, embora sejamos educados de modos
diferentes, embora sejamos ricos ou muito pobres — quando
olharem por trás da máscara, vocês são o resto da humanidade:
neuróticos, magoados, sofrendo de solidão e desespero, acredi-
tando em algumas ilusões, e assim por diante. Quer vocês se
dirijam para o Oriente, quer para o Ocidente, isso é assim. Vocês
 podem não gostar disso: talvez gostem de pensar que são total-
mente independentes, livres, individuais. Mas, quando analisam
em profundidade, vocês são o resto da humanidade.
 Madras, 26 de Dezembro de 1982

IVIuitos livros foram escritos sobre o mundo exterior a nós:


sobre o ambiente, a sociedade, a política, a economia e assim
 por diante, mas poucos chegaram ao ponto de dizer o que de
fato somos, por que os seres humanos se comportam da maneira
que o fazem — matando uns aos outros, seguindo alguma auto
ridade ou algum livro, alguma pessoa, algum ideal, e não tendo
um relacionamento correto com seus amigos, suas esposas, seus
maridos e seus filhos. Por que nós, seres humanos, nos tomamos
tão vulgares, tão brutais, carecendo completamente de carinho
 para com os outros, negando todo o processo do que é conside
rado amor?
E o homem viveu com guerras durante milhares de anos.
Estamos tentando deter a guerra nuclear, mas nunca deteremos
as guerras. Estas continuam com o povo sendo explorado e o
opressor tomando-se o oprimido. Este é o ciclo da existência
humana com a tristeza, a solidão, a grande sensação de depressão,
o acúmulo de ansiedade, a completa falta de segurança; e não
há relacionamento com a sociedade ou com nossos amigos mais
íntimos. Não há relacionamento sem conflito, sem discussões e
assim por diante. Este é o mundo em que vivemos — estou certo
de que o conhecem.
E por todos esses milênios nosso cérebro tem sido condicio
nado pelo conhecimento. Por favor, não rejeitem nem aceitem o
que o orador diz. Questionem, duvidem, sejam céticos. Acima
de tudo, não se deixem influenciar pelo orador, porque somos
facilmente influenciados, somos muito ingênuos. E se for para
falar seriamente sobre esses assuntos, devemos ter uma mente e
um cérebro livres para examinar, livres de tendências, de qual-
quer conclusão, de qualquer opinião ou obstinação. Temos de
ter um cérebro que esteja constantemente perguntando, duvidan-
do. Só então poderemos ter um relacionamento com os outros e,
assim, poderemos nos comunicar.
Ojai, 22 de Maio de 1983

Procurem ter consciência da beleza de cada dia, de cada nova


manhã, da maravilha do mundo; este é um mundo encantador,
e nós o estamos destruindo, no nosso relacionamento com os
outros e no nosso relacionamento com a natureza, com todas as
criaturas vivas desta terra.

Podemos perguntar: no que pensa um cérebro tranquilo e em


silêncio? E apenas por meio do silêncio que vocês aprendem,
que vocês observam, e não quando estão fazendo um bocado de
ruído. Para observar as montanhas e as belas árvores, para ob-
servar sua família e seus amigos, vocês têm de ter espaço e é
 preciso que haja silêncio. Mas se estiverem tagarelando, conver-
sando, não terão espaço nem silêncio. E precisamos de espaço,
não apenas fisicamente, mas sobretudo psicologicamente. Esse
espaço é negado quando estamos pensando sobre nós mesmos.
E tão simples. Porque quando há espaço, amplo espaço psicoló-
gico, há grande vitalidade. Mas quando esse espaço é limitado
ao nosso pequeno eu, essa grande energia está totalmente contida,
com suas limitações. Portanto, é por isso que a meditação é o
fim do eu.

127
Podemos ouvir isso interminavelmente; mas, se não fizerem
isso, qual é a vantagem de ouvir? Se de fato não estão conscientes
de si mesmos, das palavras, dos gestos, do modo de andar de
vocês, do modo como comem, do motivo por que bebem e fu-
mam, e de tudo o mais que os seres humanos estiverem fazendo
 — se não estão conscientes de todas as coisas físicas, como po-
dem ter consciência do que se passa nas profundezas? Quando
não estamos conscientes, nos tomamos inferiores, burgueses,
medíocres. O significado real da palavra medíocre é   “subir até
a metade do caminho que leva ao alto da montanha”, subir só
até a metade da montanha sem nunca alcançar o topo. Isso é
mediocridade. Ou seja, nunca exigir de nós mesmos a excelência,
nunca exigir de nós mesmos a bondade total nem a liberdade
completa — não a liberdade de fazer o que gostamos, isso não
é liberdade, isso é trivialidade, mas sermos livres de todas as
dores da ansiedade, da solidão, do desespero e de todo o resto.
Dessa maneira, para descobrirmos, para chegarmos a isso,
ou para vivermos para isso, é preciso haver um grande espaço e
silêncio — não o silêncio planejado, não o pensamento dizendo
que preciso ficar em silêncio. O silêncio entre dois ruídos. A paz
não existe entre duas guerras. O silêncio é algo que vem natu-
ralmente quando vocês estão observando, quando estão obser-
vando sem motivo, sem nenhum tipo de exigência, apenas por
observar, e ver a beleza de uma única estrela no céu, ou observar
uma árvore solitária no campo, ou observar seus maridos ou es-
 posas, ou qualquer coisa que observarem. Observar com um
grande silêncio e demoradamente. Então, nessa observação, nes-
se estado de atenção, há algo que está além das palavras, além
de toda medida.
Usamos palavras para medir o imensurável. Desse modo,
temos de ter consciência também da rede de palavras, de como
as palavras nos enganam, de como as palavras significam tanto:
comunismo,  para um capitalista, significa algo terrível. As pala
vras se tornam extraordinariamente importantes. Porém é preciso
ter consciência dessas palavras e viver com a palavra silêncio,
sabendo que a palavra não é o silêncio, mas viver com essa pa
lavra e sentir o peso dessa palavra, o conteúdo dessa palavra, a
 beleza dessa palavra! Assim, começamos a compreender, quando
o pensamento está quieto; a observar que há algo além de toda
imaginação, de toda dúvida e busca. E isso existe — ao menos
 para o orador. Mas o que o orador diz não tem valor para os
outros. Se ouvirem, aprenderem, observarem, se forem totalmen
te livres de todas as ansiedades da vida, haverá uma religião que
 promoverá um a cultura nova, totalmente diferente. Nós não so
mos pessoas cultas. Vocês podem ser espertos nos negócios, po
dem ser tecnologicamente muito capazes, podem ser médicos ou
 professores, mas ainda somos muito limitados.
O fim do eu, do “ego”: ser nada. A palavra nada  significa
“nem uma coisa”. Não uma coisa criada pelo pensamento. Ser
nada: não ter imagem de si mesmo. Mas nós temos uma porção
de imagens de nós mesmos. Não ter nenhum tipo de imagem,
nenhuma ilusão, ser absolutamente nada. A árvore não é nada
 para si mesma. Ela existe. E na sua própria existência é a coisa
mais bonita, como aquelas montanhas; elas existem. Elas não se
tomam alguma coisa, porque elas não podem. Como a semente
de uma macieira; ela é maçã; ela não tenta tomar-se uma pêra,
ou outra fruta — ela é. Vocês entendem? Isto é meditação. Este
é o fim da busca; e a verdade é.
 Brockwood Park,
4 de Setembro de 1983

Jamais encaramos a vida como um grande movimento, com


grande profundidade, amplidão. Reduzimos nossa vida a uma
aventura curta e insignificante. E a vida é realmente a coisa mais
sagrada na existência. Matar alguém é um ato terrível de alguém
sem religião — bem como ficar zangado, ser violento com al-
guém.

Jamais encaramos o mundo como um todo porque somos


fragmentados. Somos tão terrivelmente limitados, tão insignifi-
cantes ! E nunca temos esse sentimento de totalidade, no qual as
coisas do mar, da terra e do céu, a natureza, o universo fazem
 parte de nós. Não se trata de imaginar. Se vocês imaginassem
que nós somos o universo, acharão que estão malucos! Mas, se
vocês acabarem com esse interesse mesquinho, egoísta, e não
tiverem nada disso, a partir daí poderão progredir infinitamente.

131
Ojai, 24 de Maio de 1984

Questionador : Como devemos viver nesta terra sem danificar ou


destruir sua beleza, sem trazer sofrimento e morte para os outros?

Krishnamurti: Vocês já fizeram essa pergunta antes? De verda


de? Não teórica, mas verdadeiramente, fizeram essa pergunta,
ou a enfrentaram? Não fujam dela, não expliquem que o sofri
mento é necessário, e tudo o mais, mas olhem para ela, enfren-
tem-na. Vocês já fizeram essa pergunta? Não em massa, não
 para fazer uma demonstração contra algum político que quer
destruir o National Park, ou isto ou aquilo. Fazer essa pergunta
significa que ela os está incomodando, que se trata de algo tre
mendamente real, não é apenas uma pergunta fantasiosa para
 passar o tempo hoje. Viver nesta terra, com sua extraordinária
 beleza, e não destruí-la; dar um fim à tristeza, e não matar outro
ser humano, não matar um ser vivo. Há uma seita hindu cujo
meio de transporte é andar; eles não tomam trens nem aviões
nem carruagens; e eles usam uma máscara a fim de não matar
nenhum inseto com sua respiração. Alguns membros desse grupo
vieram ver o orador e andaram oitocentas milhas. E eles não
mataram nenhum ser vivo.
E há os que matam: matam por esporte, matam por diversão,
matam pelo lucro — toda a indústria de carnes. Esses que ani
quilam a terra, que espalham no ar gases venenosos, que poluem

133
as águas e que se envenenam uns aos outros. É isso o que estamos
fazendo à terra e a nós mesmos.
Será que podemos viver nesta terra com a sua grande beleza
e não trazer sofrimento ou morte aos outros? Esse é um problema
muito, muito sério. Viver uma vida sem causar sofrimento ou
morte para os outros: isso significa não matar nem um ser hu
mano, e também não matar nenhum animal por esporte, ou para
obter alimento. Vocês entendem tudo isso? Este é o problema.
Havia uma classe de pessoas na índia que jamais comia car
ne. Elas acreditavam que matar era errado. Eram chamadas, na
quela ocasião, de brâmanes. E a civilização ocidental jamais pon
derou sobre se matar é correto, se matar algum ser vivo é justi
ficável. O mundo ocidental destruiu raças inteiros. Certo? A
América do Norte destruiu os índios, varreu-os da face da terra
 porque queria a terra deles, e tudo o mais. Assim, será que po
demos viver nesta terra sem matar, sem guerra? Posso responder
à pergunta, mas, então, que valor terá a resposta para vocês, se
estão matando? Eu não estou defendendo o vegetarianismo. (Um
autor escreveu há certo tempo: “O vegetarianismo está se espa
lhando como uma doença infecciosa por este país!”) Mas vocês
matam um repolho; portanto, onde fica a linha divisória? Vocês
fazem disso um problema? Vocês entenderam a minha pergunta?
Se vocês forem contra a guerra, como determinados seres
humanos, inclusive eu mesmo, se forem contra a guerra, contra
matar outro ser humano por algum motivo, então não podem
enviar uma carta! O selo que compram, a comida que obtêm,
 parte do que pagam vai para o exército, para os armamentos. Se
comprarem petróleo (gasolina, neste país) parte do custo vai para
o exército, e assim por diante. Então, o que faremos? Se não
 pagarem os impostos serão presos. Se não comprarem selos ou
gasolina, não poderão escrever cartas nem viajar. Desse modo,
vocês se recolhem a um canto. E viver num canto parece inútil.
Portanto, o que farão? Dirão: “Não viajarei, não escreverei uma
carta”? Tudo isso ajuda a manter o Exército e a Marinha —
 percebem? — e tudo o que isso produz. Ou a abordagem de
vocês é diferente? Por que matamos? As religiões, especialmente
o cristianismo, mataram muitas pessoas; eles torturaram pessoas,
chamaram-nas de hereges, queimaram-nas. Vocês conhecem
essa história. Também os maometanos fizeram isso. Provavel
mente, os hindus e os budistas foram os únicos que não mataram
 — sua religião os proíbe de fazer isso.
Como se pode viver nesta terra sem matar os outros e sem
causar sofrimento? Analisar esta questão em profundidade, de
fato é algo muitíssimo sério. Há algum aspecto no amor que
responda a esta questão? Se vocês amam outro ser humano, estão
dispostos a matá-lo? Vocês então deixariam de matar, exceto o
que precisam como alimento — os vegetais, as nozes e assim
 por diante — , mas, a não ser por isso, deixariam de matar? Ana
lisem todas essas questões e vivam de modo coerente, pelo amor
de deus; não fiquem apenas falando sobre elas.
O que está dividindo o mundo são os ideais, a ideologia de
um grupo contra outro, essa divisão aparentemente duradoura
entre homem e mulher, e assim por diante. Tentaram solucionar
isso por meio da lógica, da razão, de várias instituições, funda
ções e organizações, e não tiveram nenhum tipo de sucesso. Este
é um fato. O conhecimento tampouco resolveu o problema — o
conhecimento no sentido da experiência acumulada e assim por
diante. E o pensamento por certo não resolve esse problema.
Isso nos conduz, pois, a uma única questão: descobrir o que
é o amor. O amor não é desejo, não é posse, não é uma atividade
egoísta, egocêntrica — eu em primeiro lugar, você em segundo!
Mas, aparentemente, esse amor não tem sentido para a maioria
das pessoas. Podem ter escrito livros sobre ele, mas ele não tem
sentido, portanto as pessoas tentaram inventar essa qualidade,
esse perfume, esse fogo, essa compaixão. E a compaixão tem
sua inteligência, essa é a suprema inteligência. Quando há essa
inteligência que nasce da compaixão, do amor, então todos esses
 problemas são resolvidos de modo simples e tranqüilo. Mas nós
nunca analisamos profundamente a questão. Podemos persegui-
la intelectualmente, verbalmente, mas se vocês fizerem isso com
o coração, com a mente, com sua paixão, a terra continuará bela.
E haverá uma grande sensação de beleza em nós mesmos.
 Do Diário de Krishnamurti,
4 de Abril de 1975

S e vocês perderem o contato com a natureza, perderão o contato


com a humanidade. Se não houver relacionamento com a natu-
reza, vocês se tomarão assassinos; então matarão filhotes de foca,
 baleias, golfinhos e homens, quer pelo lucro, quer por “esporte”,
 para obter alimento, ou para ampliar seus conhecimentos. Então, a
natureza fica com medo de vocês, e perde a beleza. Vocês podem
dar longas caminhadas nos bosques ou acampar em lugares ado-
ráveis, mas são matadores e, portanto, perderam sua amizade.
Provavelmente, não se relacionam com coisa nenhuma, nem com
suas esposas nem com seus maridos; estão demasiado ocupados,
ganhando ou perdendo, com seus pensamentos individuais, seus
 prazeres e suas dores. Vocês vivem em seu próprio isolamento
sombrio, e fugir dele traz mais trevas. O interesse de vocês está
numa curta sobrevivência, irrefletidos, despreocupados ou vio-
lentos. E milhares de pessoas morrem de fome ou são assassi-
nadas por causa da irresponsabilidade de vocês. Vocês deixam
a organização deste mundo para os mentirosos, os políticos cor-
ruptos, para os intelectuais, para os especialistas. Pelo fato de
vocês não terem integridade, vocês criam uma sociedade imoral,
desonesta, uma sociedade baseada no mais completo egoísmo.
E vocês se afastam de tudo pelo que vocês são os únicos res-

137
 ponsáveis, fogem para as praias, para as bosques levando uma
arma por “esporte”.
Vocês podem saber de tudo isso, mas o conhecimento não
gera a transformação. Quando tiverem este senso da totalidade,
vocês terão um forte vínculo com o universo.

138
 Rajghat, 12 de Novembro de 1984

P a r a ter uma mente religiosa, a primeira exigência é a necessi


dade da beleza. Não se trata da beleza de uma forma particular
 — um rosto bonito, um modo bonito de viver e assim por diante.
O que é beleza? Sem ela, não há verdade, não há amor; sem
 beleza não há senso de moralidade. A beleza em si mesma é
virtude. Agora, vamos analisar juntos o que é beleza. O orador
 pode colocá-lo em palavras, mas vocês têm de assumir a respon
sabilidade de analisar por si mesmos o que a beleza é. Será a
 beleza uma pintura, as velhas e maravilhosas esculturas dos egíp
cios, dos gregos, do Mahesha Murthi em Bombaim, e assim por
diante? O que é beleza? O que ela significa para vocês? Será o
vestido com os belos padrões de um sári, o céu bonito do entar
decer ou o céu matutino, a beleza das montanhas, os campos, e
os vales, as campinas, e as correntes, a beleza de um pássaro,
ou de maravilhosas árvores antigas? Assim sendo, a beleza de
 penderá de determinada cultura ou de uma tradição particular?
Os tecelões da índia têm uma tradição: eles criam roupas e de
senhos maravilhosos. Será isso a beleza? Ou a beleza é algo
totalmente diferente? Quando vocês observam grandes monta
nhas com suas neves eternas e vales profundos, as linhas de uma
majestosa e bela montanha em contraste com o azul do céu, quan
do percebem pela primeira ou pela centésima vez, o que de fato
está acontecendo?

139
O que acontece quando vocês vêem o rio na luz da manhã
com o sol acabando de nascer, traçando um caminho dourado
sobre as águas? Quando vocês olham para isso, o que acontece?
Vocês estão repetindo determinado mantra, ou no momento fi
cam completamente silenciosos? A beleza daquela luz sobre as
águas torna secundários todos os seus problemas, todas as suas
ansiedades, anula tudo por alguns segundos ou minutos, ou até
mesmo horas — o que significa que não há eu: o eu, a atividade
egoísta, concentrada em si mesma, e o interesse pessoal, desa
 parecem. Tudo isso é banido pela grande beleza da nuvem repleta
de luz e de dignidade — nesse momento, o eu está ausente. As
sim, a beleza existe quando não há o eu? Não concordem com
isso, não digam que sim com a cabeça, nem digam, “Ele está
certo, que maravilha!” e depois continuem com seu egoísmo,
com a preocupação que sentem apenas com vocês mesmos, nem
falem lógica ou teoricamente sobre a beleza. A beleza é algo que
temos de perceber, não é algo a ser mantido na mente como uma
lembrança. Portanto, beleza é algo mais profundo, muito mais
 profundo e amplo do que uma simples figura, um desenho, um
rosto bonito ou maneiras graciosas. Há beleza apenas quando
não há o eu. E essa é a primeira coisa necessária para entender
o que é uma mente religiosa.
E, para analisar isso, é preciso que haja um cérebro global,
não um cérebro provinciano, sectário e limitado. Ele tem de en
tender o complexo problema humano. Isto é, uma mente holís-
tica, um cérebro que compreenda o todo da existência. Não da
sua existência particular, dos seus problemas particulares, porque
 para onde quer que vocês vão, seja para a América, para a Eu
ropa, para a índia ou para a Ásia, nós, seres humanos, sofremos
 — nós somos sozinhos, ansiosos, medrosos, buscamos o confor
to, somos infelizes, deprimidos, irritados, com algum prazer e
alegria ocasionais e assim por diante.
Um cérebro holístico preocupa-se com a humanidade como
um todo, porque somos todos semelhantes. E também temos de
descobrir por nós mesmos qual é o relacionamento entre a na
tureza e cada um de nós. Isto faz parte da religião. Vocês podem
não concordar, mas considerem a questão, analisem-na. Vocês
têm algum vínculo com a natureza, com o pássaro, com as águas
daquele rio? Todos os rios são sagrados, mas estão ficando cada
vez mais poluídos; podem chamá-los de Ganges, Tâmisa, o Nilo,
o Reno, o Mississipi ou o Volga. Qual é o seu vínculo com tudo
isso — com as árvores, com os pássaros, com todos os seres
vivos a que chamamos natureza? Acaso não fazemos parte de
tudo isso? Acaso não somos o ambiente? Fico cogitando se não
estarei dizendo tolices, se vocês apenas estão me ouvindo por
acaso. Será que isso significa algo para vocês — tudo isso —
ou sou um estranho de Marte falando sobre algo com o que vocês
não têm nenhuma relação? Será que não significa nada? Depende
de vocês.
 Madras, 29 de Dezembro de 1979

E sta m os tendo uma conversa sobre a natureza da mente e sobre


suas extraordinárias capacidades. E, no decorrer de milênios, nós,
seres humanos, reduzimos essa capacidade a um campo muito
estreito e limitado. Tecnologicamente, essa grande energia men
tal criou coisas surpreendentes. As pessoas foram à lua, ao fundo
do mar, e inventaram as coisas mais diabólicas. Os homens tam
 bém criaram grandes benefícios, como a cirurgia e como a me
dicina. Mas esta mesma energia tem sido impedida, limitada,
reduzida, e nossa vida é, basicamente, se a observarmos de perto,
um campo de luta, um campo de conflito, uma área em que os
seres humanos lutam uns contra os outros, destruindo-se; não só
destruímos os seres humanos, mas também estamos explorando
a terra e o mar. A palavra explorar   significa usar o outro para
 proveito próprio. Essa exploração ocorre em todos campos da
vida.
E ficamos imaginando por que os seres humanos vivem do
modó como estamos vivendo — a guerra, o conflito, a confusão,
a infelicidade e a tristeza; o prazer e as alegrias logo se desva
necem. Somos deixados de mãos vazias, ficamos amargurados,
cínicos, céticos em relação a tudo; ou nos voltamos para a tra
dição. Mas, mesmo essa tradição agora está perdendo a sua força,
e se vocês observarem com atenção, a mente agora está vivendo
não só física, mas muito mais psicologicamente, de comentários,
de livros, escrituras, da Bíblia e do Corão. O que acontece a uma
mente que vive apenas em função de livros, não apenas nas es-
colas, nos colégios e nas universidades, mas também na religio-
sidade? Estou usando a palavra religioso  no sentido comum do
termo. Quando vivemos em função de um livro, vivemos de pa-
lavras, de teorias sobre o que os outros disseram. E quando se
vive segundo esse modelo, obviamente terá de haver degenera-
ção. Vocês voltam para os livros, como as religiões organizadas
estão fazendo, e se valem dessa autoridade — brutal, dogmática,
cruel e destrutiva. Vocês vivem em função dos livros, do que
outra pessoa disse, que é o que vocês aceitaram — os comentá-
rios, os comentários sobre os comentários e assim por diante. E
quando defrontam com crises, esta civilização que possivelmente
existiu durante três mil anos ou mais entra em colapso. A dege-
neração acontece, a corrupção em todos os níveis de vida — os
gurus hábeis, os políticos, os homens de negócio, o povo reli-
gioso —, tudo está entrando em colapso.
Já se perguntou a várias pessoas qual é a causa dessa deca-
dência, dessa degeneração, e elas de fato não souberam respon-
der. Elas lhe dão exemplos da degeneração, mas, embora já se
tenha discutido com vários pânditas, eruditos e professores, eles
 parecem não compreender a origem dessa decadência. Eu não
sei se vocês pensaram nisso. Se pensaram no assunto com serie-
dade, seria verdadeiro dizer que viveram das idéias dos outros,
das doutrinas de outras pessoas, das suas crenças? E assim o
resultado, aparentemente, é que, quando se vive uma vida de
segunda mão — uma vida baseada em palavras, em idéias, em
crenças —, a mente, a totalidade da mente, naturalmente definha.
Com a palavra mente designo todos os sentidos em atividade
e com suas reações neurológicas, todas as emoções, todos os
desejos, o conhecimento tecnológico e o cultivo da memória,
que é a capacidade de pensar de forma clara ou confusa. Esta

144
mente tem buscado aquela semente que o homem plantou desde
o início dos tempos, semente que nunca brotou, a semente da
verdadeira religiosidade. Porque, sem esse tipo de religião, não
 pode haver uma nova civilização, nem uma nova cultura. Deve
haver novos sistemas, novas filosofias, novas estruturas sociais;
mas haverá os mesmos padrões repetidos para sempre.
Assim sendo, o que faremos? Vocês como seres humanos
que vivem nesta terra maravilhosa, com suas montanhas belís
simas e com suas paisagens, mares e rios, não se trata de poesia...,
 basta olhar para essas coisas — o que podem fazer juntos para
vencer? — não criar novos sistemas sociais, novas ordens reli
giosas; nem novas crenças, ideais e dogmas; nem novos rituais,
 porque o jogo acabou, e foi repetido inúmeras vezes. Para criar
um mundo diferente, se vocês forem sérios, a bondade terá de
existir. A palavra bom significa ser inteiro, não ser fragmentado;
dizer que um ser humano é bom  significa dizer que não há nele
qualquer senso de divisão. Ele é completo em si mesmo, é inteiro,
sem nenhum conflito.
 Nós estamos analisando juntos o que é a nossa crise presente
 — não apenas econômica, social, mas a crise em nossa cons
ciência, em nosso próprio ser; não a crise de um novo sistema,
não a crise da guerra, etc. Trata-se da crise no âmago da huma
nidade. E de que maneira essa consciência pode ser transforma
da?
O que fará vocês mudarem? Uma crise? Uma pancada na
cabeça? A tristeza? Lágrimas? Tudo isso já aconteceu, em crises
seguidas. Derramamos lágrimas intermináveis e nada parece mu
dar o homem, porque vocês estão confiando em outra pessoa
 para fazer o trabalho; estão confiando nos mestres, nos gurus,
nos livros, nos professores, no povo inteligente, senhor das novas
teorias. Ninguém diz “descobrirei”. Embora toda a história da
humanidade esteja em nós, nunca lemos nosso próprio livro!

145
Tudo está lá, mas nunca nos damos ao trabalho, nem temos a
 paciê
 pa ciênci
nciaa e a per
p ersis
sistên
tênci
ciaa para
pa ra investi
in vestigar.
gar. Preferim
Pref erimos
os viver
viv er neste
caos, nesta miséria.
Portanto, o que fará vocês mudarem? Por favor, perguntem
a si mesmos, mergulhem nessa questão, porque somos vítimas
do hábito. A sua casa está queimando, e, ao que parece, vocês
não prestam atenção. Assim, se não mudarem, a sociedade con
tinuará como está. E surgem então os espertos, dizendo que a
sociedade deve mudar, o que significa uma nova estrutura; e a
estmtura se toma mais importante do que o homem, como todas
as revoluções mostraram.
Depois de considerar tudo isso, há aprendizado, há o des
 pertar
 per tar da intelig
int eligênc
ência,
ia, há certo
cert o senso de ordem
orde m em nossa
no ssa vida,
ou voltaremos à mesma rotina? Se vocês tiverem essa inteligên
cia, essa bondade, esse grande amor, vocês criarão uma nova
sociedade
sociedade maravilhosa, onde todos poderão viver com felicidade felicidade..
Trata-se da nossa terra, não da terra dos indianos, dos ingleses
ou dos russos; é a nossa terra, onde podemos viver felizes, com
inteligência, sem oprimir os outros. Portanto, por favor, dedi
quem-se de corpo e alma a descobrir por que Vocês não mudam
 — mesmo nas pequen peq uenasas coisas. PorPo r favor, prestem
pre stem atenção
atençã o à
vida. Vocês têm capacidades extraordinárias. Elas estão à espera
de que vocês abram a porta.

146
 Do  Diário de Krishnamurti,
24 de Outubro de 1961

A lua acaba de surgir acima das montanhas, envolvida por uma


longa nuvem sinuosa que lhe confere uma forma fantástica. Ela
é enorme, fazendo as montanhas, a terra e os pastos parecerem
minúsculos; onde ela surge, fica mais claro e há menos nuvens;
mas ela logo desaparece
desaparec e atrás de nuvens escuras que prenunciam
chuva. Começa a garoar, e a terra fica feliz; não chove muito
 por
 po r aqui e cada
ca da gota
go ta de água
ág ua é valiosa. A grande
gran de figueira-de-
figuei ra-de-
 bengala
 beng ala,, o tamari
tam arind
ndeir
eiro
o e a mangue
man gueira
ira consegu
con seguem
em sobreviver,
sobreviv er,
mas as plantinhas e a colheita de arroz ficam felizes a cada chu
visco. Infelizmente, até mesmo as pequenas gotas cessam, e ago
ra a lua brilha clara no céu sem nuvens. Está chovendo forte na
costa, mas aqui, onde a chuva é necessária, as nuvens
nuvens carregadas
carregadas
se afastaram. A noite está bonita, e há muitas sombras escuras
de várias formas. A luz é muito brilhante, as sombras
sombras estão tran
quilas e as folhas,
folha s, lavadas
lava das e limpas, estão cintilando. Caminhando
e conversando, a meditação continua sob as palavras e a beleza
da noite.
noite. Ela
El a continua
contin ua em grande profundidade,
profundidade, fluindo
fluindo para fora
e para dentro; ela está explodindo e se expandindo. Estamos
conscientes dela; ela está acontecendo, não a estamos experi
mentando; experiências são limitadoras; a meditação está acon
tecendo.
tecendo. Não h á participação: o pensamento não pode usufruí-la,
usufruí-la,

14
 pois o pensame
pens amento,
nto, seja como
com o for, é algo demasiad
dem asiadoo fútil e au
tomático; a emoção também não pode envolver-se com ela —
ela é ativa demais para o pensamento e a emoção. Tudo ocorre
numa profundeza
profu ndeza desconhecida, para par a a qual não há medida. Mas
existe uma grande tranqüilidade.
tranqüilidade. É surpreendente
surpreendente e nem um pou pou 
co comum.
As folhas escuras estão brilhando e a lua se ergueu mais no
céu: ela segue ramo ao Ocidente e inunda o aposento de luz. A
aurora ainda está longe, faltam várias horas para o amanhecer e
não há ruído; até mesmo o latido dos cães da vila cessou. Ele
está ali, em vigília; o estranho está ali e é necessário acordar,
não dormir. Ficar consciente do que está acontecendo é inten
cional, ter consciência plena do que está acontecendo.
Adormecido, isso pode ser um sonho; uma sugestão do in
consciente, um traque do cérebro; mas, totalmente desperto, essa
estranha e desconhecida diversidade é uma realidade palpável,
um fato e não uma ilusão, um sonho. Ela tem uma qualidade —
se se pode usar esta palavra no caso — de ausência de peso e
uma força impenetrável. Novamente, essas palavras têm certa
importância, definida e comunicável, mas essas palavras perdem
todo o seu significado quando a diversidade tem de ser expressa
em palavras; palavras são símbolos, mas nenhum símbolo poderá
expressar a realidade. Ela está aí a í com tal força incorruptível
incorruptível que
nada poderá destruí-la, pois é inabordável. Vocês podem se apro
ximar de algo com que estão familiarizados; vocês têm de ter a
mesma
mesm a linguagem para pa ra se comunicar, algum tipo de processo de
 pensame
 pens amento,
nto, verbal
verb al e não-verbal
não-v erbal;; acima
aci ma de tudo,
tudo , tem de haver
reconhecimento mútuo. Não há nenhum. Do seu lado, vocês até
 podem
 pod em dizer
dize r que
q ue se trata
trat a disto
d isto ou daquilo,
daquil o, desta
des ta ou daq
d aquel
uelaa qua
qu a
lidade, mas no momento do acontecimento não há verbalização,
 pois o cérebro
cére bro está
est á quieto, sem nen nenhum
hum movimento
movi mento do pen pensa
sa
mento. Mas a diversidade não tem vínculo com coisa nenhuma

1488
14
e todo pensamento é um processo de causa e efeito; assim, não
há entendimento nem relacionamento. É uma chama inacessível,
e vocês só podem olhar para ela mantendo-se a distância. E du
rante a vigília, de repente, ela surge. E com ela vem um inespe
rado êxtase, uma alegria irracional; não há motivo para ela e ela
nunca foi procurada nem perseguida. Semelhante êxtase há na
vigília, e novamente no horário habitual; ela está aí e continua
 por um período mais longo de tempo.

25 de outubro

Há uma erva de caule longo que cresce selvagemente no


 jardim, e há uma floração dourada mas um pouco fosca, balan
çando ao vento, curvando-se até quase quebrar, embora nunca
se quebre, exceto talvez sob um vento forte. Há um grande nú
mero dessas ervas de cor bege-dourada, e quando a brisa sopra
elas começam a dançar, cada ramo em seu próprio ritmo, em seu
 próprio esplendor; e elas são como uma onda quando todas se
movimentam em conjunto. Então sua cor, com a luz do entarde
cer, é indescritível: é a cor do pôr-do-sol, da terra, das montanhas
douradas e das nuvens. As flores ao seu lado são definidas de
mais, cruas demais, exigindo que olhemos para elas. Essas ervas
têm uma delicadeza estranha: elas têm um leve aroma de trigo
e de tempos antigos; são fortes e puras, são repletas de vida
abundante. Uma nuvem vespertina está passando, cheia de luz,
quando o sol se esconde por trás da montanha escura. A chuva
dá à terra certo cheiro dourado e o ar está agradavelmente frio.
As chuvas estão chegando e há esperança para o país.
De repente, acontece: ao voltar ao aposento, esse odor está
lá com um abraço de boas-vindas, tão inesperado. Entramos, mas
logo teremos de sair; estávamos falando sobre alguns fatos, nada
de muito sério. E um choque e uma surpresa encontrar essa di

149
versidade dando as boas-vindas no quarto; está esperando ali
com um convite tão franco, que um pedido de desculpas parece
inútil. Algumas vezes, no Wilbledom Common [ele se lembra
de Londres, onde ficara numa casa em Wimbledon em maio],
 bem distante daqui, embaixo de algumas árvores ao longo de um
caminho por onde seguiam muitas pessoas, ela estava esperando
numa curva do caminho; surpresos, ficamos em pé ali, perto da
quelas árvores, completamente absortos, vulneráveis, sem fala,
sem fazer um só movimento. Não era uma fantasia, uma ilusão;
e outra pessoa que por acaso estivesse ali também a sentiria. Em
algumas ocasiões ela chega, com as boas-vindas do amor abran
gente e é quase inacreditável. Cada vez apresenta um aspecto
novo, uma nova beleza, uma nova austeridade. É assim neste
aposento, algo totalmente novo e completamente inesperado.
Trata-se da beleza que deixa a mente tranqüila e o corpo
imóvel: ela deixa a mente, o cérebro e o corpo intensamente
alertas e sensíveis; faz o corpo tremer e, em alguns minutos, essa
diversidade complacente se vai, tão rapidamente como chegou.
 Nenhum pensamento ou emoção fantasiosa podem conjurar este
acontecimento. O pensamento é insignificante, e o sentimento é
frágil e decepcionante; nenhum deles, por muito que façam, pode
se dar conta destes acontecimentos. Eles são imensuravelmente
grandes, imensos em sua força e pureza de pensamento ou senti
mento; eles têm e não têm raízes. Não devem ser convidados a
ficar, nem retidos: pensamento e sentimento podem fazer qualquer
tipo de truque esperto e fantástico, mas não podem inventar ou
conter a diversidade. Ela existe por si mesma e nada pode tocá-la.

28 de outubro

Entre as folhas verde-escuro, há uma flor vermelha; da va


randa você pode vê-la. Há as montanhas, a areia vermelha do

150
leito dos rios, a grande figueira-de-bengala, e vários tamarindei
ros; no entanto, só se vê essa flor vermelha. Ela é muito vistosa,
colorida. Não há outra cor: as manchas do céu azul, as nuvens
cintilantes de luz, as montanhas cor de violeta, o rico verde dos
campos de arroz, tudo isso desaparece e resta apenas o maravi
lhoso matiz daquela flor. Ela enche todo o céu e o vale: murchará
e morrerá, fenecerá e as montanhas sobreviverão. Mas esta ma
nhã ela é a eternidade, ela está além do tempo e do pensamento;
ela retém todo o amor e a alegria; não há sentimento e absurdos
românticos nela; nem ela é um símbolo qualquer. E ela mesma,
destinada a morrer ao entardecer, embora contenha toda a vida.
 Não é algo sobre o que se raciocine, nem algo irracional, alguma
fantasia romântica: ela é tão real quanto aquelas montanhas e
aquelas vozes chamando umas às outras. E a completa meditação
da vida, e a ilusão só existe quando cessa o impacto desse fato.
Essa nuvem tão cheia de luz é uma realidade cuja beleza não
tem um impacto forte na mente que ela tomou obtusa e insensível
 por influência, hábito, e a duradoura busca pela segurança. A
segurança da fama, do relacionamento, do conhecimento acaba
com a sensibilidade e dá início à deterioração. Essa flor, aquelas
montanhas e o mar azul agitado são um desafio, como as bombas
nucleares são uma ameaça à vida, e só uma mente sensível pode
responder totalmente a eles; só uma resposta íntegra não deixa
marcas de conflito, e o conflito indica uma resposta parcial.
Os assim chamados santos e saniasins contribuíram para a
obtusidade da mente e para a destmição da sensibilidade. Todo
hábito, repetição, ritual fortalecido pela crença e pelo dogma,
 pela resposta sensorial pode ser aprimorado, mas a consciência
alerta, a sensibilidade é outro assunto. A sensibilidade é essencial
 para nos interiorizarmos profundamente. Este movimento de nos
voltarmos para dentro não é uma reação ao que está fora; o ex
terior e o interior são um mesmo movimento — não estão sepa-
rados. A divisão deste movimento em exterior e interior alimenta
a insensibilidade. O fluxo natural do exterior é voltar para o in
terior, e o movimento do interior tem sua própria ação expressa
no exterior, embora não se trate de uma reação ao exterior. Sen
sibilidade é a consciência do todo deste movimento.

31 de outubro

É uma bela noite: o ar é puro, as montanhas são azuis, violeta


e marrons; há abundância de água nos arrozais e eles variam de
um verde vivo até um verde-claro, chegando a um verde-escuro
metálico cintilante; algumas árvores já se confundiram com a
noite, escuras e silenciosas; outras ainda se deixam ver e retêm
a luz do dia. As nuvens são escuras acima das montanhas oci
dentais, e, para o norte e para o leste, as nuvens refletem o sol
do entardecer, que se pôs por trás das pesadas montanhas pur
purinas. Não há ninguém na estrada, os poucos que passam estão
em silêncio e não se vêem brechas no céu azul, as nuvens estão
se juntando para a noite. No entanto, tudo parece estar desperto,
as rochas, o leito seco do rio, os arbustos na luz que se esvai. A
meditação, nesta estrada tranqüila e deserta, chega como uma
chuva suave sobre as montanhas: ela é fácil e natural, tão fácil
e natural quanto a noite que chega. Não há nenhum tipo de es
forço e não há controle sobre a concentração; não há ordem nem
objetivo, não há negação nem aceitação, não há nenhuma conti
nuidade de lembrança na meditação. O cérebro está consciente
de seu ambiente, mas tranqüilo, sem resposta, sem ser influen
ciado, reconhecendo sem reagir. Ele está muito tranqüilo e as
palavras se esvaem com o pensamento. Há essa energia estranha
— chamem-na do que quiserem, isso não tem importância — é
profundamente ativa, sem objetivo nem propósito; é criação sem
tela ou mármore, e é destrutiva; não é algo do cérebro humano,
de expressão e de decadência. Não é abordável, algo a ser clas
sificado e analisado; e o pensamento e o sentimento não são os
instrumentos para compreendê-la. Está inteiramente desvincula
da de tudo e totalmente só em sua amplidão e imensidão. E andar
ao longo dessa estrada escura enseja o êxtase do impossível, não
o êxtase da conquista, da chegada, do sucesso e de todas as exi
gências e respostas imaturas, mas a solidão do impossível. O
possível é mecânico e o impossível pode ser visado, testado e
talvez conquistado, o que, por sua vez, se toma mecânico. Mas
o êxtase não tem causa, não tem razão. Ele simplesmente existe,
não como uma experiência, mas como um fato, não para ser
aceito ou negado, discutido ou analisado. Mas se trata de algo a
se buscar, pois não há caminho para alcançá-lo. Para ele existir
tudo tem de morrer; a morte, a destruição são o amor.
Um trabalhador pobre, esgotado, vestido de andrajos imun
dos está voltando para casa com a sua vaca esquelética.

7 de novembro

As nuvens se adensam, todas as montanhas estão cobertas


pelas nuvens e estas se acumulam em todas as direções. Ameaça
chover e não há nenhuma nesga clara no céu azul. O sol deu
lugar à escuridão e as árvores estão inertes e distantes. Uma velha
palmeira se destaca em constraste com o céu que escurece, e ela
retém toda a luz. O leito dos rios está tranquilo, a areia vermelha
está úmida, mas não há nenhuma canção; os pássaros silencia
ram, abrigando-se entre as folhas grossas. Sopra uma brisa nor
deste e com ela chegam mais nuvens negras e uma lufada de
chuva, embora ela ainda não tenha começado a cair de verdade;
isso acontecerá depois, com fúria cada vez maior. E a estrada à
minha frente está vazia; é vermelha, de solo irregular e arenoso,
cercada pelas montanhas escuras. É uma estrada agradável, quase
não há carros, e os aldeães com seus carros de boi vão de uma
cidade para outra. Os aldeães estão sujos, são esqueléticos, e têm
o estômago fundo, mas são fortes e resistentes; vivem assim por
séculos e nenhum governo irá mudar a situação da noite para o
dia. Mas essas pessoas sorriem, apesar de seus olhos serem tris
tes. Podem dançar depois de um dia de trabalho pesado, e há
vida neles, não estão desesperançadamente abatidos. Não têm
havido boas chuvas no país há muitos anos, e este pode ser um
dos anos afortunados que lhes pode trazer mais alimento e pas
tagens para seu gado magro. E a estrada continua e se junta na
embocadura do vale, com a estrada principal, onde trafegam al
guns ônibus e carros. E nessa estrada, bem ao longe, ficam as
cidades com suas indústrias, suas mansões, seus templos e men
tes obtusas. Mas aqui, na estrada ao ar livre, há solidão e muitas
montanhas repletas de idade e de indiferença.

Andando pela estrada há um completo vazio no cérebro, e


a mente está livre de toda experiência, do conhecimento de on
tem, embora haja milhares de ontens. O tempo, essa criação do
pensamento, parou literalmente, não há movimento anterior nem
posterior; não há chegadas nem partidas, nem estagnação. Não
há espaço e distância: há as montanhas e os arbustos, mas eles
não são tão elevados nem tão baixos. Não há vínculo com coisa
nenhuma, mas há consciência da ponte e da pessoa que passa.
A totalidade da mente, na qual fica o cérebro com seus pensa
mentos e sentimentos, está vazia; e porque está vazia, há energia,
uma energia cada vez mais profunda e ampla, imensurável. Qual
quer comparação depende do pensamento e, portanto, do tempo.

154
A diversidade é a mente sem o tempo; é o hálito da inocência e
da imensidão. As palavras não são a realidade; elas só são meios
de comunicação, contudo, não são a inocência e o imensurável.
O vazio está só.

155
Fontes e Agradecimentos

Extraído do Registro Verbatim de oito palestras públicas em Poona, 17 de


outubro de 1948, em Collected Works o f J. Krishnamurti, copyright ©
1991 Krishnamurti Foundation of America.

Extraído do Registro Verbatim da primeira palestra pública em Nova Delhi, 14 de


novembro de 1948, em Collected Works o f J. Krishnamurti, copyright ©
1991 Krishnamurti Foundation of America.

Extraído de From Darkness to Light, copyright © 1980. K. & R. Foundation.

Extraído de Krishnamurti’s Journal, 6 de Abril de 1975, copyright © 1982


Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Extraído do Registro Verbatim da segunda palestra pública em Nova Delhi,


28 de novembro de 1948, em Collected Works o f J. Krishnamurti, copy
right © 1991 Krishnamurti Foundation of America.

Extraído do Registro Verbatim da segunda palestra pública em Varanasi, 22 de


novembro de 1964, em Collected Works of J. Krishnamurti, copyright ©
1991 Krishnamurti Foundation o f America.

Extraído do Registro Verbatim da quinta palestra pública em Varanasi, 28 de


novembro^e 1964, em Collected Works o f J. Krishnamurti, copyright ©
1991. Krishnamurti Foundation of America.

Extraído de Commentaries on Living, Second Series, copyright © 1958 Krishna


murti Writings, Inc.

Extraído de The First and the Last Freedom, capítulo 3, copyright © 1954
Krishnamurti Writings, Inc.

156
Extraído de Freedomfrom the Known, capítulo 11, copyright © 1969 Krishnamurti
Foundation.

Extraído de Letters to the Schools Volume 2, 15 de novembro de 1983, copy


right © 1985 Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Extraído de Letters to the Schools Volume 2, 15 de novembro de 1983, copy


right © 1985 Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Extraído de Talks in Europe 1968, 25 de abril de 1968, copyright © 1969 The


Krishnamurti Foundation London.

Extraído de Talks in Europe 1968, 22 de maio de 1968, copyright © 1969 The


Krishnamurti Foundation London.

Extraído de Krishnamurti to Himself, 26 de abril de 1983, copyright © 1987


Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada do segundo diálogo público em Brockwood Park,


10 de setembro de 1970, copyright © 1991 Krishnamurti Foundation
Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada da primeira palestra pública em Saanen, 13 de julho


de 1975, copyright © 1991 Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Extraído de Krishnamurti to Himself, 25 de fevereiro de 1983, copyright ©


Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada do segundo encontro público de perguntas e res


postas em Brockwood Park, 4 de setembro de 1980, copyright © 1991
Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada do segundo encontro público de perguntas e res


postas em Madras, 6 de janeiro de 1981, copyright © 1981/1991 Krishnamurti
Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada do primeiro encontro público de perguntas e res


postas em Saanen, 29 de julho de 1981, copyright © 1991 Krishnamurti
Foundation Trust, Ltd.

1
Extraído de From D arkness to Light: The Song o f Life,  copyright © 1980
K. & R. Foundation.

Extraído de Krishnamurti to Himself  6 de maio de 1983, copyright © 1987


Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada da segunda palestra pública em Madras, 27 de


dezembro de 1981, copyright© 1991 Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada da segunda palestra pública em Bombaim, 24 de


 janeiro de 1982, copyright © 1991 Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada da primeira palestra pública em Ojai, l2 de maio


de 1982, copyright © 1991 Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada da segunda palestra pública em Madras, 26 de


dezembro de 1982, copyright © 1991 Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada da quarta palestra pública em Ojai, 22 de maio de


1983, copyright © 1991 Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada da quarta palestra pública em Brockwood Park, 4


de setembro de 1983, copyright © 1991 Krishnamurti Foundation Trust,
Ltd.

Transcrição da fita gravada do primeiro encontro de perguntas e respostas em


Ojai, 24 de maio de 1984, copyright © 1991 Krishnamurti Foundation
Trust, Ltd.

Extraído de Krishnamurti Journal, 4 de abril de 1975, copyright © 1982 Krishna


murti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada da segunda palestra pública em Rajghat, 12 de


novembro de 1984, copyright © 1991 Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Transcrição da fita gravada na terceira palestra pública em Madras, 29 de de


zembro de 1979, copyright © 1991 Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

Extraído de Krishnamurti’s Notebook, outubro de 1961, copyright © 1976


Krishnamurti Foundation Trust, Ltd.

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