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“Há um sentimento profundo e interior que nos leva a prosseguir nesta luta para
encontrar
os nossos mortos. Não há cura para esta dor, mas ficamos aliviados ao levar para a
sepultura parentes queridos.”
O desabafo do Professor e Coronel do Exército João Luis de Morais - pai de Sonia Maria de
Morais Angel Jones, uma militante política assassinada pela ditadura - em sua intrincada trajetória
para encontrar os restos mortais de outros presos mortos e desaparecidos políticos, foi
pronunciado no Cemitério de Ricardo de Albuquerque no Rio de Janeiro. Neste local, em outubro
de 1991, meses após a identificação de Sonia, enterrada com nome falso no Cemitério de Dom
Bosco em Perus, São Paulo, o Professor Morais e outros membros da diretoria do GTNM/RJ,
buscavam pistas para a identificação de catorze presos políticos que, segundo o levantamento
feito neste mesmo ano na Santa Casa de Misericórdia, no Instituto Médico Legal e no Instituto de
Criminalística, haviam sido enterrados em valas comuns em Cemitérios do Rio de Janeiro junto a
outros 2000 indigentes mortos entre 1971 e 1973, durante a ditadura militar.
Um desabafo que este pai, depois de 17 anos de busca do corpo de sua filha, pode fazer. Um
desabafo que muitos poucos brasileiros puderam, até os dias de hoje passados vinte anos do final
da ditadura, pronunciar.[1]
Passados quarenta e dois anos da instauração do regime militar no Brasil, a sociedade brasileira
ainda não esclareceu definitivamente as violações ocorridas durante o período de vigência do
terrorismo de Estado. Até hoje não se tem acesso aos arquivos da ditadura, mesmo que em
dezembro de 2005 tenha sido anunciado pela Ministra da Casa Civil, Dilma Russef, ex-presa
política dos anos 70, que estes estariam, finalmente, à disposição do público no Arquivo Nacional.
A história dos “vencedores” ainda predomina no cenário brasileiro. Muito se tem escrito acerca
deste trágico período que marcou profundamente a sociedade através do terrorismo de Estado e
produziu variados modos de subjetivação, ainda em curso nos dias atuais. Entendemos que:
“... o mundo, os objetos que nele existem, os sujeitos que nele habitam, portanto, a
realidade são produções histórico-sociais, não tendo uma existência em si, uma
essência ou natureza. Eles são, pois, forjados historicamente por práticas que os
objetivam e que são muito bem datadas. A realidade - enquanto produção histórica,
não existindo em si e por si – está sempre sendo construída pelas práticas sociais,
como um trabalho jamais acabado.[2]
No estado de democracia representativa que hoje vivemos no Brasil predominam forças de poder
que impedem o acesso ao conhecimento pleno do acontecido durante o regime militar. Mas,
outras forças, outros movimentos nascidos como forças de resistência no regime de exceção e
fortalecidos por algumas conquistas não esmorecem na luta pelo resgate da memória. Levando
em conta as palavras de Michel Foucault de que: “se cada luta se desenvolve em torno de um foco
particular de poder, há que designar focos, denunciá-los, falar deles publicamente”. Assim, “falar a
esse respeito – forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, denunciar o alvo
– é a primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder”[4]. Forças
que acreditam ser fundamental “pensar a história não como narrativa do superado e sim na
qualidade de arma nos combates do presente”[5].
Desde a metade dos anos 70, em plena ditadura, a luta de familiares de mortos e dasaparecidos
se intensificou para a localização de opositores ao regime, assassinados em nome da segurança
nacional. Na ocasião, esta mobilização teve o apoio das Comissões de Justiça e Paz, de setores
da Igreja e de alguns parlamentares.
No ano de 1974 esta violência foi de tal ordem que não foram constatadas mortes: os atingidos
foram, em sua totalidade, desaparecidos.
Os familiares, por sua vez, tendo travado contato através das infrutíferas buscas nos lugares de
detenção, passaram a se organizar e a participar destes movimentos. Recorriam aos advogados
que utilizavam o habeas corpus, ainda que este instrumento jurídico estivesse suspenso pelas
medidas do regime de exceção e que, inevitavelmente, o pedido fosse rechaçado pelos juízes
militares. O recurso da “insistência” do habeas corpus foi, certamente, utilizado como uma
estratégia não só para denunciar e repudiar a supressão deste direito constitucional, como
também tentar proteger os atingidos diretos. Funcionou como uma espécie de aviso aos
organismos de repressão do conhecimento de alguns sobre estas prisões e uma tentativa de obter
alguma pista sobre a condição de prisioneiro ou de morto/desaparecido. Até então, a expressão
“foragido”, vinda de alguma informação dada pelos órgãos de repressão, estava associada,
inevitavelmente, à trágica condição de desaparecido.
Se sobre as mortes dos militantes políticos predominavam as falsas versões sobre as prisões e
tortura e alguns cadáveres eram entregues às famílias, sobre os desaparecidos, cuja única pista
era a da designação de “foragido” nos documentos oficiais, a prática utilizada era a de ocultação
dos cadáveres. Entretanto, alguns poucos foram identificados por terem sido enterrados como
indigentes[6] e com nomes falsos.
Ainda que os sinais apontassem na direção de que tivessem sido desaparecidos, os familiares
mantinham sempre uma expectativa de reencontro. Com a lei da Anistia, promulgada em 1979,
confirmou-se o que os familiares e amigos temiam: os que estavam no exílio, na clandestinidade e
nas prisões voltaram ao convívio social. Entretanto, muitos opositores não voltaram jamais. A lei
da Anistia, que o movimento social queria ampla, geral e irrestrita efetivou-se, mas foi parcial e
restrita, resultado do pacto estabelecido entre as forças políticas dominantes na época. Sobre a lei
mantém-se uma interpretação hegemônica, a de extensão da anistia para os que praticaram os
chamados “crimes conexos”, entendidos como os praticados pelos torturadores. A eficácia desta
interpretação, que prevaleceu durante tantos anos e que hoje começa a ser desconstruída pelos
movimentos sociais com apoio de alguns renomados juristas, foi a de impedir que torturadores e
responsáveis fossem punidos.[7] Ou seja, a Lei de Anistia no Brasil, como em outros países da
América Latina, tem servido para proteger os torturadores e responsáveis pelos crimes de lesa
humanidade: tortura, morte e desaparecimento.
A partir das denúncias de ex-presos políticos de que notórios torturadores estavam ocupando
cargos públicos, em 1985 foi fundado - por ex-presos políticos, familiares de mortos e
desaparecidos e pessoas sensíveis à causa dos direitos humanos - o GTNM/RJ que tem como um
de seus principais objetivos a luta pelo esclarecimento do que ocorreu na ditadura militar. Assim,
as circunstâncias dos desaparecimentos e mortes entram definitivamente na agenda dos
movimentos sociais; outros GTNM e Associações de Mortos e Desaparecidos foram criados no
Brasil durante os anos 90.
“Um dia recebemos a visita de uma pessoa dizendo que meu pai
tinha morrido enforcado e
não soubemos mais nada. Agora queremos ter a certeza de que seus ossos
estão aqui para que seja enterrado por nós,
mesmo depois de tanto tempo.” Denise Teixeira Gomes, filha de José Teixeira Gomes,
morto em junho de 1971, enterrado como indigente no Cemitério de Ricardo de
Albuquerque, RJ.
No Rio de Janeiro em maio de 1991, o GTNM/RJ iniciou uma pesquisa nos arquivos de tres
instituições, no Instituto Médico Legal, no Instituto de Criminalística e na Santa Casa de
Misericórdia, e denunciou publicamente a existência de valas clandestinas onde teriam sido
enterrados presos políticos: no Cemitério de Ricardo de Albuquerque, no de Cacuia, no de Santa
Cruz, todos na periferia do Rio de Janeiro. No primeiro, foram localizados 14 militantes políticos,
sendo dois deles desaparecidos. Nos outros dois cemitérios, dois militantes foram enterrados
como indigentes. Em setembro do mesmo ano foi iniciado o trabalho de exumação de cerca de
2100 ossadas encontradas na vala clandestina de Ricardo de Albuquerque, trabalho que contou
com o apoio voluntário de dois médicos legistas, indicados pelo Conselho Regional de Medicina, e
uma antropóloga da Universidade Estadual do Rio de Janeiro[8], sob supervisão da Equipe
Argentina de Antropologia Forense. Estes médicos, portanto, não eram funcionários do estado do
Rio de Janeiro, cujos govenantes não se comprometeram nesta investigação. Por motivos de total
falta de condições e recursos este trabalho de organização e catalogação de ossadas foi
suspenso em 1993. Este material está guardado no Hospital de Bonsucesso à espera de apoio do
Estado para prosseguir na identificação das ossadas. Este trabalho de identificação, segundo a
Equipe Argentina de Antropologia Forense, está seriamente comprometido: as ossadas
encontram-se misturadas umas às outras o que não aconteceu com as do Cemitério de Perus.
Entretanto, o GTNM/RJ não esmoreceu em sua luta para a identificação. Ao longo dos anos tem
pressionado os sucessivos governos para que assumam o compromisso histórico de
esclarecimento utilizando as tecnologias que possam identificar estes desaparecidos. Além disso,
tem como proposta a construção de um Memorial no lugar da vala de Ricardo de Albuquerque
para guardar estas ossadas, divulgar os dados sobre os desaparecidos e homenagear àqueles
que foram atingidos pela violência da ditadura.
Ainda em 1991, no Instituto de Criminalística Carlos Éboli, o GTNM/RJ conseguiu ter acesso á
fotografias de perícia de local que expunham claramente as marcas de torturas sofridas pelos
militantes mortos. Estes registros desmentiam as versões oficiais falsas de que estas pessoas
teriam morrido em tiroteios, atropelamentos ou suicídio, versões que até então predominavam
junto à opinião pública e que faziam parte de uma certa história oficial que se impunha a toda a
sociedade brasileira. O impacto das evidências de assassinato sob tortura repercutiu fortemente
na sociedade através da divulgação da imprensa e, em especial, sobre os familiares e
companheiros de mortos. Concomitante à dor de confirmar o brutal acontecimento, de mergulhar
imaginariamente, de forma solidária, no sofrimento padecido pela pessoa querida, um certo alívio
ao ver diante de si a também brutal verdade, que o Estado havia sequestrado por tantos anos
apresentando uma versão encobridora, mentirosa.
Durante dois anos foram identificados na vala comum somente dois desaparecidos[16] e tres
de cova rasa[17]. Dificuldades com o responsável técnico da investigação[18], que ora alegava
falta de recursos, ora não facilitava informações aos familiares, levaram a interrupção dos
trabalhos apesar dos esforços dos familiares e pressões dos movimentos de direitos humanos.
A mobilização para a exumação e identificação dos anos 90 chegou do Pará, estado em que a
Guerrilha do Araguaia foi implantada nos anos 70. Nesta localidade, várias investigações foram
feitas, vários cemitérios indicados, entretanto, dos 59 militantes aí desaparecidos, apenas uma
delas teve seu corpo exumado e identificado[19].
A distância que os anos tem imposto a este início do processo de esclarecimento dos
desaparecimentos na busca intensiva dos familiares dos restos mortais, da exumação e
identificação, apontam o descaso dos sucessivos governos com a construção da memória, com a
política de reparação integral e da justiça em nosso país. Em 1995, após anos de reivindicação
dos movimentosde direitos humanos, foi criada pelo governo federal a lei 9140/95, que
reconheceu formalmente a responsabilidade do Estado nas mortes e desaparecimentos e instituiu
uma Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, encarregada de levantar, analizar os casos e
investigar as circunstâncias. Mais de dez anos após a constituição desta Comissão pouco se
avançou no esclarecimento das mortes e desaparecimentos. E os familiares, como nas situações
expostas anteriormente, ficaram mais uma vez com o ônus da prova em suas mãos. Mais uma
vez, lhes foi imposto o sofrimento de lidar com a perda, de tentar descobrir as circunstâncias,
geralmente assustadoras, em que se deram os desaparecimentos, de enfrentar as condições mais
adversas no perverso tratamento dado pelo Estado às questões relativas ao esclarecimento das
violações dos direitos humanos na ditadura militar. O depoimento abaixo expõe claramente o
modo perverso a que os familiares têm sido submetidos pós-ditadura militar, ainda que tenha sido
o único caso que, mais recentemente, recebeu apoio do governo do estado de São Paulo.
O último militante identificado, dentre tantos sem identificação - 2005
DESTRINCHANDO OSSOS[20]
É comum após um desastre ou catástrofe natural, nos depararmos com alguém que aguarda a
localização ou a identificação de seu familiar durante dias e às vezes meses. Os sentimentos que
assomam são de angústia e impotência.Uma vez resolvida a questão, vem a sensação de alívio,
mas por baixo da pele permanece insistentemente a marca daqueles dias tenebrosos.
Traçando este paralelo, e destacando os aspectos emocionais envolvidos, venho lembrar a saga
que vivemos há 34 anos, inicialmente buscando descobrir e entender como ocorreu sua morte, e
posteriormente vivendo com a expectativa constante de identificação dos restos mortais de meu
irmão Flavio Molina. Foi assassinado sob tortura nas salas do DOI-CODI em São Paulo em 1971,
no período mais repressivo da ditadura civil-militar. Nos autos de sua prisão estão registradas
suas identidades: a falsa, que utilizava na clandestinidade e a verdadeira. Apesar disto, a família
não foi informada e seu corpo sepultado ilegalmente, como indigente, no cemitério de Perus,
ocultado por sua falsa identidade. Com este artifício, fez-se desaparecer um corpo.
Há 15 anos um processo movido contra a União Federal pela prisão ilegal, tortura, morte,
ocultação de cadáver e sepultamento ilegal, se arrasta em apelações procrastinatórias
consumindo a família.
Nos últimos 25 anos convivemos com os labirintos das ossadas. Tivemos o impacto de uma vala
aberta, repleta de sacos de ossos, na solidão de um tempo remoto. Deparamos-nos com a visão
de ossadas jogadas ao acaso, em salas inapropriadas sujeitas a vazamentos de lama e esgoto,
que nos obrigou a impetrar medida cautelar visando garantias de preservação das ossadas em
1999, com sentença favorável julgada somente agora. Estivemos frente a frente com um
esqueleto montado, numa entrevista kafkiana que visava indícios de reconhecimento. Buscamos
a identificação de seus ossos em laboratórios no Brasil e no exterior, num total de 8 instituições.
Para cada uma enfrentamos a expectativa dos exames e a decepção dos resultados.
Enfrentamos a inépcia, a soberba e a suspeita de corrupção.
A convivência constante com a angústia que devorava nossas mentes e a saúde do corpo
mostrava a outra face de uma tortura pretérita, que permanecia latente não escolhendo a hora
para manifestar-se. O crime continuado tornava a morte uma presença constante marcando
velórios surrealistas na ausência do corpo.
O resultado de uma luta tão intensa merece a comemoração de uma vitória. Atingir o objetivo
perseguido, mesmo sendo a conseqüência de um fato tão trágico, só traz o alívio de uma angústia
que nunca terminava. A identificação de Flavio poderá ser vista como um marco: a indicação de
que com uma verba pequena, com um laboratório brasileiro competente e com autoridades
infelizmente ainda pressionadas, poderemos ter as identificações, após tantos anos, de dezenas
de outros assassinados e desaparecidos, cujos familiares estão morrendo.(...)
Identificações possíveis, porém com providências urgentes a serem tomadas, que dependem
principalmente de esforços da União Federal. Os sepultamentos com identidades trocadas ou em
locais ignorados, evidenciam a absoluta necessidade de informações corretas, as quais existem
nos arquivos secretos das Forças Armadas, tão reclamados, e nunca disponibilizados. Estas
informações possibilitariam buscas concretas em outros cemitérios de vários estados do país,
como por exemplo, Ricardo de Albuquerque no Rio de Janeiro, cuja vala comum contém cerca de
2.500 corpos, 14 militantes políticos sepultados como indigentes. A idade avançada dos familiares
de desaparecidos, em breve irá impossibilitar a obtenção de material para exames comparativos
de DNA. Torna-se obrigatório o desenvolvimento do projeto de um banco de DNA de parentes de
desaparecidos políticos. Projeto este que já existe, de conhecimento da Secretaria de Direitos
Humanos do Ministério da Justiça, mas nunca saiu do papel. Se em decorrência dos últimos fatos
não houver mudanças neste panorama, corremos todos os familiares de desaparecidos políticos,
o risco de vivermos a outra metade de nossas vidas em ações estéreis, procurando provas e
destrinchando ossos.
O depoimento de um familiar - reconfortado com o fato de ter podido, finalmente, dar uma
sepultura ao seu irmão - reinscreve a cena, controi realidades invisibilizadas, mobiliza esperanças
de outros familiares e de atores sociais investidos na recuperação da história, propõe
encaminhamentos concretos para o impasse de um problema que se arrasta há mais de trinta
anos. Este depoimento/acontecimento dá passagem ao desejo de que a memória histórica possa
ser construída de forma coletiva. Memória que já não mais fala desde a posição dos “vencedores”.
Memória que quer romper a produção do esquecimento, quer ganhar mundo, quer falar por si.
Mas, assim como é importante a alegria que esta tardia conquista proporciona, é fundamental
levar em conta a produção do esquecimento em sua dinâmica, em seus efeitos. Pois sabemos, e
no caso das violências extremadas como é a experiência do desaparecimento, que só podemos
esquecer aquilo que conhecemos. O quando, como, onde, por quê e por quem, são perguntas
que assomam insistentemente como um desafio à construção de outras subjetividades, de uma
outra sociedade. Perguntas que não querem calar enquanto não houver uma resposta para o
destino de um e de todos os desaparecidos.
Discutindo as formas de esquecimento hoje em curso na América Latina, Paola Mendez aponta
duas delas: a do esquecimento passivo, como uma estratégia de evitação do conhecimento sobre
o que aconteceu, como uma “ignorância sabiamente mantida”, ainda que sejam realizadas ações.
Mas, ações que omitem o acontecido e que são construídas para “virar a página” em prol da
chamada “unidade e reconciliação nacional”. O esquecimento ativo refere-se a uma dimensão
oposta: enfrentar e elaborar a experiência de forma coletiva, o que implica em reconhecer o
acontecimento, coletivizá-lo, reparar as vítimas e seus descendentes assim como castigar os
responsáveis.[21]
Como exemplo disso, alguns documentos oficiais e confidenciais daquele período ilustram
claramente os mecanismos criados para desqualificar, criminalizar os opositores. O documento de
1971, carimbado como “reservado” do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), é claro
neste sentido:
“ A imprensa noticia e os Orgãos de Informação costumam referir-se aos bandos terroristas e
subversivos que agem no território nacional, como “Organização”. É comum ler-se que a
organização VPR, a organização ALN, etc, realizou esta ou aquela AÇÃO...A conotação que o
termo “organização” sugere é o de uma verdadeira “instituição”, algo assim como as Nações
Unidas... dando ao público uma visão distorcida e permitindo queo bando terrorista se apresente
ao público como coisa organizada, bem estruturada, solidificada, baseada em filosofia, doutrina e
propósitos profundamente fundamentados, como se fosse uma Instituição de Amparo à Infância
ou Associação de Pais de Família.“
Vale dizer que este documento de 1971 foi repassado para todos os órgãos de informação no
Brasil, tendo havido plena aquiescência de todos eles para sua definitiva implantação. Um deles,
além de concordar, afirmava que no Uruguai já havia uma “legislação especial proibindo aos
órgãos de imprensa a menção do nome Tupamaros, usando como substituto os termos:
sediciosos, insurretos”. [22]
Estratégias utilizadas institucionalmente, muitas delas sem máscaras, como a acima citada, dá
atribuições simbólicas degradantes aos opositores. Estratégias de eliminação, negação, censura,
desvalorização, criminalização, constrangimento, de incitação do medo, utilizadas no exercício de
um certo poder.
Vale a interrogação: passadas quase três décadas do exercício da violência de Estado sob a
forma das ditaduras latino-americanas, estaríamos “liberados” destas experimentações do terror?
Que manifestações de silêncio imposto, processo de produção de esquecimento, estariam hoje
em funcionamento?
Por que o Estado brasileiro ainda mantém fechado o acesso às informações necessárias para o
esclarecimento deste período? Vários países do cone sul da América Latina avançaram no sentido
de colocar a público estas informações, entendendo que com esta iniciativa possam ampliar e
fortalecer as bases da democracia e construir uma nova história.
O que mantém a lógica do silenciamento, do sequestro ao direito de acesso ás informações?
Estas são perguntas que atravessam permanentemente uma prática clínica ocupada com as
repercussões das violações dos direitos humanos ontem e hoje.
As experiências de violência, tortura e morte da época da ditadura têm sido silenciadas ao longo
destes anos apesar do clamor dos movimentos sociais para tornar público o que ocorreu naquele
período. A Lei 9140/95 que prevê a responsabilização do Estado pelas violências e a elucidação
das mortes e desaparecimentos, não tem sido levada a cabo em sua integralidade. Aos familiares
foi entregue apenas um documento e uma reparação simbólica. Constituída por esta lei, a
Comissão responsável pela tarefa de esclarecimento tem se defrontado com variados
impedimentos para a apuração dos fatos.
Esta lógica discriminatória e preconceituosa, aliada das forças conservadoras e responsáveis pelo
silenciamento, deu sustentação à violência contra aqueles que se opuzeram ao regime militar.
Hoje, com as atuais modulações capitalísticas redirecionou-se e está canalizada mais fortemente
para os setores empobrecidos. A tortura hoje é generalizada e sistemática; o extermínio, o
genocídio de jovens pobres e negros uma marca insuportável nos dias atuais. A violência se
ampliou, intensificou e compõe, como uma rede que pulsa ativamente, o conjunto das relações
sociais. O medo continua se impondo e sendo um componente ativo de controle social.
Ariel Dorfman diz que foram os desaparecidos que contribuíram para as mudanças no panorama
chileno de resgate de memória histórica e justiça. Eles, os desaparecidos, não nos permitem
esquecer. Eles estão sempre aí, presentes, como uma força de resistência, nos lembrando de
que não é possível esquecer. Curiosa imagem que nos permite entender que o silêncio produz
efeitos, dentre eles, o do não esquecimento. E que para esquecer, para virar a página da história,
para produzir mudanças no mundo é indispensável lembrar, incluir o passado, conhecer o que
passou.[23]
“...no basta el mero rescate como labor particular de los cercanos a las víctimas o de los
sobrevivientes a lo acontecido. La dimensión del rescate es ante todo la de un reconocimiento: si
no hay voluntad de memorizar por parte del Estado, no hay posibilidad efectiva de convertir la
memoria en historia. El deber de memoria es un imperativo público, que debe manifestar-se con
políticas de Estado que garanticen la vigilancia conmemorativa, ya que sin una práctica social de
conmemoración, el memorial se transformaría en un objeto sin valor vinculante para el psiquismo
colectivo, siendo su permanencia en la memoria histórica dependiente del arbitrio particular del
poder de turno.[24]
Desta maneira, o GTNM/RJ entende a importância deste processo de esclarecimento das mortes
e desaparecimentos. O processo de exumações e de identificações compõe necessariamente
uma política de resgate da memória, faz parte, definitivamente, de um panorama de ações que os
sucessivos governos em nosso país têm evitado enfrentar. Desta maneira, o Estado realimenta a
impunidade, o esquecimento e favorece o incremento crescente da violência e tortura, agora,
dirigidas aos pobres e aos movimentos sociais. Desconhecimento do ocorrido no passado recente,
violência e tortura, criminalização dos movimentos sociais fazem parte da dinâmica do modelo neo
liberal implantado hoje no mundo, modulação do capitalismo que se utiliza do medo e da
insegurança para fazer funcionar o controle sobre os modos de viver no contemporâneo. E, por
isso mesmo, hoje, fazem parte imprescindível da agenda dos movimentos de direitos humanos
para uma sociedade sem torturas e sem desaparecimentos.
[1] Segundo dados da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, criada pela lei 9 140/95,
foram identificados apenas 8 em uma lista de 160 desaparecidos. Este total é um número
provisório; muitos mortos e desaparecidos não estão integrados a esta listagem por motivos
variados, dentre eles, o medo a represálias e desconhecimento das famílias.
[2]COIMBRA, C – Operação Rio: o mito das classes perigosas. RJ. Oficina do Autor. Niterói, 2001.
p.38
[3] CHAUÌ, M. – “Prefácio” in De Decca, E. - O silêncio dos vencidos. SP. Brasiliense, 1984.
[4] FOUCAULT, M. e DELEUZE, G. Os intelectuais e o poder. In: Microfísica do Poder. RJ, Graal,
1988. p.75/76
[6] -Esta categoria social de indigente foi amplamente utilizada para referir-se aos originários de
setores empobrecidos, abandonados à sorte, que não podiam manter-se sem a ajuda do Estado.
Estes setores foram alvo preferencial dos “Esquadrões da Morte”, constituídos por grupos de
policiais e ex-policiais civis e militares, que desde os anos 50 atuavam na periferia das grandes
cidades. A ação destes grupos, até hoje em funcionamento, teve uma intensificção nos anos 70
durante a ditadura militar. Encarregavam-se de “diminuir os índices de criminalidade”, contribuindo
para a chamada “limpeza social”, assassinando pessoas de origem pobre, suspeitos ou não de
práticas criminosas, e habitantes da periferia. Os opositores do regime foram tratados da mesma
forma.
[7] Sobre o assunto há dois artigos publicados no jornal do GTNM/RJ, de dois renomados juristas:
“ A lei da Anistia de 1979 perante a Ética e o Direito” de Fabio Konder Comparato (ano 18,
no.50,set/2004,p.12) e “Revisitando a Lei da Anistia” de Hélio Bicudo (ano 19, no. 54, set/2005,
p.12)
[8] Os médicos legistas Dr. Gilson Souza Lima e Maria Cristina Meneses, e a professora Nancy
Vieira colaboraram na catalogação das ossadas e arcadas dentárias, sob a supervisão da Equipe
Argentina de Antropologia Forense, nas pessoas do Dr. Luiz Fondebrider, Mercedes Doretti e
Silvana Turner.
[9] - Constituída no final de 1991 com apoio da ONU, Fundo Voluntário das Nações Unidas às
Vitímas da Tortura; a respeito do trabalho da equipe ver: www.torturanuncamais-rj.org.br e
www.redsalud-ddhh.dm.cl
[10] - No Brasil as práticas profissionais são regidas pelos Conselhos de categorias, e todo
profissional para exercer sua atividade profissional necessita estar inscrito em seu Conselho. É
função dos Conselhos normatizar e fiscalizar estas práticas.
[11]- O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ já havia participado ativamente – através de depoimentos e
envio de testemunhas – de dois processos abertos pelo Conselho do Rio de Janeiro contra o
candidato a psicanalista Amílcar Lobo e o hoje General de Brigada Ricardo Agnese Fayad. Ambos
deram seu respaldo técnico às torturas contra presos políticos em um dos mais terríveis centros
de repressão à época: o DOI-CODI/RJ. Os que deveriam ser os profissionais da vida, “atendiam”
aos militantes presos antes, durante e depois das sessões de tortura. Estes médicos executavam
um trabalho de tornar mais eficaz a tortura; testavam e mediam a resistência do preso e depois
ficavam à disposição para que, se necessário fosse, reabilitassem os presos para novas sessões
de tortura. Lobo teve seu registro médico cassado em 1988 e Fayad em 1994 – por ironia, no
mesmo ano em que o então presidente Itamar Franco o alçava à categoria de General de Brigada
do Exército brasileiro.
[12] A edição deste dossiê teve o apoio do governo de Pernambuco que na época era o Dr Miguel
Arraes. Anos mais tarde, este dossiê foi adotado oficialmente pelo Ministério da Justiça, na época
do governo Fernando Henrique Cardoso, a partir da lei 9140/95 que instalou a Comissão Especial
de Mortos e Desaparecidos.
[13] - STOVER, E. Em Busca dos Desaparecidos: a vala comum no Cemitério Dom Bosco. Núcleo
de Estudos da Violência, 1991
[14] Denis Casemiro, Dimas Casemiro, Flavio Molina, Francisco José de Oliveira, Frederico Mayr,
Grenaldo Jesus da Silva.
[15] Os familiares exigiram que as ossadas não fossem para o Instituto Médico Legal de São
Paulo pois trabalhando naquele órgão haviam médicos legistas responsáveis por laudos falsos de
presos políticos mortos sob tortura, dentre eles o próprio diretor deste Instituto, Dr. Antonio de
Melo.
[16] Frederico Eduardo Mayr, em julho de 1992 e Denis Casemiro, em agosto de 1991.
[17] Sônia Maria de Moraes Angel Jones, em agosto de 1991; Antônio Carlos Bicalho Lana, em
agosto de 1991 e Helber José Gomes Goulart, em julho de 1992.
[19] No cemitério de Xambioá foi encontrado o corpo de Maria Lúcia Petit em 1991, cujos restos
mortais foram levados para a UNICAMP e aí identificados.
[20] Artigo publicado no jornal O Globo em 5/10/2005 com o título “A Angústia que nos devora”, de
autoria de Gilberto Molina, vice-presidente do GTNM/RJ, irmão de Flávio Molina, assassinado sob
tortura nas salas do DOI-CODI em São Paulo em 1971 e identificado 34 anos após sua morte, em
setembro de 2005, através de exame de DNA.
[21] MÉNDEZ, P.- Sitios de Memoria: el recuerdo que permite olvidar in: Reflexión: Derechos
Humanos y Salud Mental, no. 30, Santiago de Chile, septiembre de 2003.
[22] COIMBRA, C – Operação Rio: o mito das classes perigosas. RJ. Oficina do Autor. Niterói,
2001. p.54,55.
[23] VITAL BRASIL,V- A Vida que Insiste em Resistir – Dossiê Arquivos da Ditadura. Global Brasil,
no.5, 2005
[24] MÉNDEZ, P.- Sitios de Memoria: el recuerdo que permite olvidar in: Reflexión: Derechos
Humanos y Salud Mental, no. 30, Santiago de Chile, septiembre de 2003, p.7