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FOUCAULT, M. História da Sexualidade I – a vontade de saber.

As questões iniciais trazidas por Foucault dizem respeito a uma questão de


método. Foucault parte daquilo que é dito para pensar as estratégias que articulam
poder-saber. O autor inicia, então, com a crença corrente de que a sexualidade foi
silenciada, sobre ela nada se podia falar ou fazer para ir, aos poucos, realizando um
movimento de desnaturalização dessa ideia.
O objetivo de Foucault, no livro, é o de “interrogar o caso de uma sociedade que
desde há mais de um século se fustiga ruidosamente por sua hipocrisia, fala
prolixamente de seu próprio silêncio, obstina-se em detalhar o que não diz, denuncia os
poderes que exerce e promete liberar-se das leis que a fazem funcionar”.
A questão da primeira parte diz respeito à compreensão de que se constituiu um
processo de moralização das condutas e, mais especificamente, a constituição de todo
um modo de incidir sobre as condutas. Vai-se produzindo uma cisão entre a
“sexualidade” enquanto elemento presente nas relações e o encerramento dentro de algo
como o espaço privado ao passo em que diversos discursos emergem no social visando
dar conta dessa sexualidade.
O poder do qual Foucault fala e que tem sido atrelado à função repressiva não é
um poder negativo que impede o discurso, mas positivo no sentido de que produz uma
série de discursos/estratégias/práticas. O poder é, em sentido amplo, exercício.
Foucault levanta a questão da redução do sexo ao nível da linguagem e controle
da circulação do discurso para contrapor a uma série de acontecimentos discursivos que,
ao contrário do que se postulava, não interditavam o sexo, mas faziam circular em torno
dele uma explosão discursiva que, contudo, passou pelo que o autor chama de “polícia
dos enunciados”.
Definiu-se, também, uma espécie de economia do discurso sobre o sexo ao
determinar “onde e quando não era possível falar dele; em que situações, entre quais
locutores, e em que relações sociais; estabeleceram-se, assim, regiões, senão de silêncio
absoluto, pelo menos de tato e discrição: entre pais e filhos, por exemplo, ou educadores
e alunos, patrões e serviçais”.
Ao dizer que “O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não
possui eira, nem beira, nem lei” Foucault indica, a princípio, dois movimentos: 1. O
estabelecimento de uma norma (conjunto de critérios) e de uma série de técnicas cuja
finalidade é a adequação a essa norma; 2. O silenciamento daqueles elementos que não
se adequam, mas que serão reinscritos a partir da criação de espaços, discursos. Isso nos
leva a pensar não apenas sobre a sexualidade, mas extrapolar para os demais elementos
que se tornaram domínio de saber tais como a criminalidade, a loucura, dentre outros. É
o estabelecimento da norma que produzirá algo como uma anormalidade e não ao
contrário.
Esse processo de constituição de um domínio de saber produz aquilo que pode
ser chamado de objetificação de determinado elemento, isto é, faz-se de algo um objeto
de conhecimento. O que Foucault fará durante todo o texto é destacar a forma como
esse domínio de conhecimento é atravessado por questões de ordem política, econômica
e, principalmente, que incide nos corpos individuais, a partir da tomada da população
como foco de investimento.
Temos, assim, uma relação entre Sexo – reprodução – vida – política – decisão
sobre a vida.
Outra questão muito importante diz respeito ao fato de que Foucault não tomará
a sexualidade pela via das grandes teorias sobre esse tema, mas, justamente, interessa
pensar como esse elemento foi sendo capturado no cotidiano, nos movimentos mais
discretos e quase imperceptíveis da vida. Cabe dizer que esses elementos foram sendo
capturados não por estarem escondidos nesses recônditos da vida diária, mas, sim,
foram sendo produzidas as formas de existência dessa sexualidade bem como as
estratégias de captura desse elemento.
Vão sendo criadas polícias do sexo cuja necessidade principal seria a de regular
o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição. Nesse
sentido, Foucault vai, processualmente, desmembrando a hipótese repressiva. O
conhecimento sobre a sexualidade foi sendo constituído, como dito em outro ponto,
tendo como foco a gestão da população. A conduta sexual da população passa a ser
tomada como objeto de análise e alvo de intervenção.
Todo esse conjunto de estratégias produziu, ao contrário de um silenciamento, o
sexo enquanto algo sobre o qual se deve dizer e se deve dizer exaustivamente. As
práticas de confissão extrapolaram às medidas realizadas pela dimensão
pastoral/religiosa e passam a operar enquanto estratégia governamental. Produz-se,
portanto, a sexualidade enquanto um campo discursivo/estratégico que põe em operação
intervenções que produzem subjetividade. Nesse grande campo, constitui-se, a partir do
século XVIII, a diversificação e dispersão dos focos onde os discursos são emitidos.
Eles advirão da pedagogia, da medicina, da psiquiatria.
Proliferação sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder. Não apenas
falar, mas ouvir falar. O sexo vai sendo constituído enquanto elemento que contém a
verdade do sujeito. Constitui-se também como elemento diagnóstico. Incremento das
técnicas confessionais. Confissão que se atrela a possibilidade de condução das
condutas/almas. Não se trata tanto de confessar uma infração, mas falar de si mesmo e
dizer sobre o outro. Passar tudo o que se relaciona com o sexo pelo crivo da palavra.
As estratégias direcionadas à sexualidade exigirão que se fale de si mesmo.
Outro elemento presente nesse jogo criado em relação à sexualidade é a verdade. A
verdade será produzida paralelamente a produção de discursos sobre o sujeito, sobre os
elementos que fazem parte da vida. Produzir-se-á uma interioridade do sujeito, local
onde a sua verdade estaria situada/localizada/presente/encoberta.
Ao fim Foucault dá pistas de que a sexualidade vai se constituir como um
dispositivo, visto que articula instituições, relações estratégias de poder/saber e incide
enquanto jogo econômico de administração das condutas dos sujeitos e da população.

Questões de discussão
Se pensarmos, por exemplo, em que medida temos nossas vidas
governadas/administradas/geridas cotidianamente a partir de um dispositivo da
sexualidade conseguimos elencar desde as questões mais concretas relacionadas a vida
enquanto organismo vivo, o aspecto reprodutivo, os cuidados médicos periódicos, até as
questões relacionadas ao planejamento familiar, às questões de gênero, à determinação
de ações junto às famílias, o próprio conceito de família, a composição dos corpos...
são, assim, estratégias minúsculas que produzem não apenas esses mecanismos externos
que incidem sobre a vida, mas, principalmente, produzem sujeitos que se relacionam
consigo e com os outros a partir desses códigos produzidos.
Tomemos, por exemplo, a questão relacionada ao aborto, especificamente do
ponto de vista de decisão sobre a vida. Se por um lado os discursos que circulam
contrários ao abordo atrelam-se a um clamor pela vida, ao contrário podemos pensá-los
como uma decisão sobre a morte. Sabe-se que abortos são práticas correntes. A questão
não é a existência ou não inexistência, mas a forma como essa prática é gerida. Desse
modo, aquilo que em relação a sexualidade supostamente produzia silenciamento, isto é,
os “elementos negativos — proibições, recusas, censuras, negações — que a hipótese
repressiva agrupa num grande mecanismo central destinado a dizer não, sem dúvida, são
somente peças que têm uma função local e tática numa colocação discursiva, numa
técnica de poder, numa vontade de saber que estão longe de se reduzirem a isso”, pode
ser deslocado a outras problemáticas, tais como a do aborto.
“Daí essa solenidade com que se fala, hoje em dia, do sexo” – mesma coisa
sobre certas vidas. Descriminalizar o aborto produziria, dentre outros abalos, a
fragilização de toda sorte de justificativas que fundamentam medidas de morte. Seria
admitir que o estado mata, por abster-se e por negar-se a pensar a questão do abordo a
partir da saúde, aquelas mulheres que não podem pagar por formas adequadas de
realizar o procedimento. Seria admitir que também casos de estupro são questões
referentes à saúde e que o estado, novamente, mata. Seria admitir que criminalizar,
penalizar, punir não é a estratégia adequada. Afinal as prisões já não demonstram isso
desde sua invenção?

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