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SINOPSE
A poesia que habita a Mangueira foi inventada por um pedreiro de pele preta batizado ANGENOR.
Por usar um chapéu maltrapilho, por ironia, os amigos apelidaram Angenor com o título que ainda o
acompanha na eternidade: CARTOLA. O príncipe do princípio. O poeta que escolheu as cores da
Mangueira. O que cantou as alegrias e as dores do morro. Aquele que ergueu – como quem bate laje,
mistura o cimento ou empilha tijolos – duradouro e permanente estado de poesia.
Se a Mangueira chora, ela é uma canção do Cartola que lamenta o peito vazio, o amor que finda e a
sentença que o mundo é tal qual um moinho. Se a Mangueira se enche de esperança, ela é um samba do
Cartola a anunciar que um dia melhor está por vir. Um convite para correr e ver o céu e o sol de uma nova
manhã. Alvorada colorida de beleza. Sem choro, tristeza e dissabor. A lembrança diária de que, ao findar
a tempestade, o Sol Nascerá.
Quem lá habita descende desse amálgama de poesia enraizada feito uma roseira. Sim, há roseiras nas
favelas. Há jardins e há rosas. Rosas que insistem em nascer. Rosas que brotam dos escombros. Jardim
solitário onde, dizem os antigos, ainda está viva a rosa que Cartola cantou, sentenciando quase como
queixa que, insistindo em não falar, exala apenas – e ainda hoje – o perfume de sua última enamorada.
Se a poesia de quem guardava e lavava carros ocupa o riso e o pranto de quem mora lá, a voz de outro
preto – este, batizado JOSÉ – reside na localidade, habitando-a sem pedir licença. Afirmo, sem medo de
errar, que essa voz que paira no ar habita tanto o silêncio das manhãs quanto o burburinho das travessuras
dos moleques que brincam quando a tarde cai. Essa voz é a voz de José Bispo Clementino dos Santos.
Para a Primeira Estação, o JAMELÃO.
Voz potente como convém aos reis. Reis pretos. Reis, com voz de trovão. Voz de criança que foi
engraxate e gritou alto para vender jornais. Voz retinta. De bamba curtido no sereno das batucadas. Voz
de pele azeviche. Voz que guarda o visgo saboroso de um jamelão colhido fresco.
Não há como remediar: todo mangueirense que nasce, cresce, sobe e desce aquele morro é acompanhado
por essa voz. Essa voz é a voz da própria Mangueira. Ela é uma voz que paira no ar. No claro da manhã e
no breu da noite. Uma voz à espreita. Voz quase reza. Voz que ralha e benze os seus.
Não à toa, quando a Mangueira chora, ela é a voz do Jamelão num samba “dor de cotovelo” com letra de
Ary e Lupicínio. Triste, ela é o Jamelão em “Folha Morta”. Jamelão em “Ela disse-me assim”. Quando a
Mangueira é faceira, ela é a voz do Jamelão em ritmo de gafieira. Solo de piston. Batuta de Severino
Araújo. Jamelão, cabaré e Orquestra Tabajara. Quando se enfeita para descer o morro, ser mais bonita e
reinar majestosa enquanto desfila, ela é a voz do Jamelão para um samba do Nelson Sargento, Pelado,
Jurandir, Darcy e Hélio Turco.
Sinto saudade da POESIA e da VOZ que habita minha escola como todos os que agora estão distantes do
convívio com ela. Fechando os olhos para imaginar revê-la, querendo-a pertinho de mim, ouço a voz do
JAMELÃO e a poesia do CARTOLA romperem o silêncio que já se estende em demasia. Agora, gostaria
de vê-la dançando diante de mim. Reis e rainhas que dançam. Corpos pretos que dançam. Gente que
flutua ao dançar. Gente que parece exibir-se para testemunhar que são a descendência e a extensão de
uma realeza.
Imaginando-a dançando e coroada, impossível não crer que todo corpo que habita a Mangueira não herda
a dinastia de seu mais famoso bailarino. Bailarino preto. Príncipe da Ralé. Um Obá da favela bordado de
paetês. O herdeiro da coroa de Marcelino. Mestre dos que querem ser mestre. O samba que risca o chão.
Aquele que, já estando velho, dançava como o menino que atendia pelo nome de LAURINDO.
Impossível não crer que toda uma legião que defende a bandeira que ostenta o verde e o rosa da Primeira
Estação não guarda a gana e a sede com a qual o mestre-sala DELEGADO defendeu o pavilhão que
cortejou por décadas. Décadas de excelência e notas máximas. Difícil não crer que ele não esteja ao
menos em uma gota de sangue de toda criança, menino ou menina, que nasceu ou nascerá naquele morro.
Engana-se quem pensa que os habitantes do Morro de Mangueira morrem sem ter o que deixar como
herança, assim como estão enganados aqueles que pensam que, os que lá nascem, estão desprovidos de
bens. Quando fizeram a partilha da herança deixada por ANGENOR, JOSÉ & LAURINDO, saibam todos
que nenhum morador daquele morro ficou de fora. Eles herdaram um bem preciso e precioso. Lá, nascem
ricos daquilo que o dinheiro não compra, e nós, quando privados da arte que brota a granel nos corpos da
favela, ficamos mais pobres.
MANGUEIRA
NOS ACORDES DA SAUDADE VAI BUSCAR
O ANGENOR QUE ESCOLHEU AS NOSSAS CORES
CIMENTOU A POESIA NESSE MORRO SINGULAR
ENFIM… AH! MEU JARDIM
ONDE A BRISA TRAZ INSPIRAÇÃO
HABITADO POR VERSOS E MÃOS CALEJADAS
O CHÃO DA POBREZA ME FEZ REALEZA
E AINDA QUE AS ROSAS NÃO FALEM
SEU PERFUME EXALAM POR NOSSA ESCOLA
INEBRIAM MENINOS QUE SONHAM EM SER CARTOLA
“MINHA MANGUEIRA”
NUNCA SE ESQUEÇA DE QUEM É A SUA VOZ
O POVO INTERPRETA NA AVENIDA
QUEM INTERPRETOU EM VIDA
A EMOÇÃO DE TODOS NÓS