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para-incorporar-as-competencias-socioemocionais-da-bncc

Publicado em NOVA ESCOLA 16 de Agosto | 2018

Pesquisa Aplicada

Estamos preparados para


incorporar as competências
socioemocionais da BNCC?
Pesquisa com professores de Educação Infantil sugere equívocos
ao lidar com a afetividade na escola. Precisamos discutir mais
esse tema!
Luciene Tognetta

Foto: Patrick Fore/Unsplash

A nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apontou aspectos da escola que
sempre existiram, mas não eram explicitados nos currículos brasileiros. Formar alunos
que sejam assertivos, que se autoconheçam, que sejam responsáveis, que possam
respeitar o outro e se sentir respeitado são competências tão importantes quanto o
domínio lógico-matemático ou a leitura e a escrita. Alguém discorda? A questão é:
como equacionar tudo isso? Como é que professores darão conta dessas
competências se muitas vezes não têm ideia do que seja, de fato, trabalhar com as
questões afetivas?
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Infelizmente, a imposição dessas novas competências no currículo brasileiro, ainda que


sejam importantes, soa como injusta, já que o professor pouco estudou sobre essas
questões em suas graduações e poucas possibilidades têm de continuidade desses
estudos na sua atuação. Em países desenvolvidos, isso já é feito há bastante tempo.

Em 2011, eu e outros integrantes do Grupo de Estudos de Educação Moral (GEPEM) da


Unicamp/Unesp conduzimos uma pesquisa sobre como a aplicação desses aspectos
afetivos (os chamados hoje “socioemocionais”) era compreendida por professores em
suas ações cotidianas. Alguns professores de Educação Infantil do interior de São
Paulo foram convidados a participar e de forma espontânea se comprometeram a
responder a um questionário. Foi uma pesquisa amostral pequena, mas que serviu
para nos dar algumas pistas do que pensam os professores sobre afetividade dentro
da escola e como trabalham essas questões.

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aprendizagem

Naquele momento, pouco ou quase nada se falava sobre as “competências


socioemocionais”, mas se sabia, pelas próprias teorias do desenvolvimento muito mais
antigas, que o tema da afetividade deveria ser considerado na formação de nossas
crianças. Sob o ponto de vista da Psicologia Genética Piagetiana, sabíamos da
necessidade do desenvolvimento afetivo ser equacionado como Jean Piaget o pensou:
na convivência, consigo mesmo, com o par e com a autoridade (Piaget, 1952). Para ele,
de forma geral, há uma evolução no sentido humano dessas relações que culminam
num ponto mais complexo:

A concepção de afetividade para Piaget é uma concepção de relações que culminam na


moral. A partir dessa ideia de afetividade, nós criamos três grupos de perguntas para
verificar se os professores conseguiam entender como trabalhar questões da
afetividade relacionadas à relação entre o “eu” e o outro “autoridade”; o “eu” e o outro
“par” e o “eu consigo mesmo”.

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O primeiro grupo de perguntas era relacionado à afetividade nas relações com a


autoridade. Para cada pergunta nós tínhamos uma escala likert, que vai de 0 a 4
pontos, com as opções muito importante para o seu trabalho, importante, pouco
importante ou nada importante.

Perguntamos para o professor, por exemplo: o quão importante eles achavam que era
“mostrar indignação frente a uma situação de injustiça cometida entre os alunos”.
Obtivemos as seguintes respostas: 25% disseram considerar muito importante, 40%
importante, 20% pouco importante e 15% nada importante. Aparentemente, muitos
professores compreendem o tema da afetividade como ser carinhoso com os alunos
como se não fosse adequado corrigi-los ou mesmo demonstrar sentimento de
desagrado frente a um problema.

Nesta pesquisa, a maioria dos professores considerou “premiar um bom


comportamento de um aluno” mais importante do que demonstrar indignação por
alguma situação de injustiça. Isto é, o percentual de muito importante para essa
questão foi maior do que na anterior (20% muito importante, 60% importante, 10%
pouco importante e 10% nada importante).
Já prêmios e castigos ainda são entendidos como boas ações para se obter um bom
comportamento. Contudo, interessantemente, a maioria dos educadores julgou ser
pouco importante “excluir os alunos da atividade por um tempo, até que eles se
comprometam a respeitar as regras” (30% disseram que isso é nada importante, 40%
pouco importante, 20% importante e 10% muito importante). Isso talvez aponte que
precisamos discutir mais as possibilidades de sancionar um comportamento dos
alunos pela reparação e pela necessidade de que eles tomem consciência do problema
causado. Os limites de tempo para se voltar a uma atividade quando se exclui
temporariamente são regulados pelos próprios alunos para que assumam e se
comprometam com o que deixaram de fazer.

E sobre as relações entre os pares? O que pensam esses professores? Quando


perguntamos sobre a importância de “incentivar as crianças para falarem publicamente
como se sentem em determinado dia”, tivemos 35% das respostas para muito
importante, 55% importante 3% como pouco importante e 7% nada importante).

Parece que alguns professores sabem da necessidade de que haja espaços para que as
crianças falem o que sentem, mas não quais são os melhores para isso. É preciso
lembrarmos que não se expõem os sentimentos infantis a todos. Falar de si não deve
ser uma obrigatoriedade em roda e para todo mundo. Fazendo isso, invadimos a
“fronteira natural da intimidade” que a criança está ainda construindo.

Há um texto interessante de um autor chamado David Elkind no livro “Crianças e


adolescentes: Ensaios interpretativos de Jean Piaget”, em que ele destaca alguns
equívocos da escola: acreditamos que criança pensa como adulto, colocando-a sentada
enfileirada por 4 horas, com um intervalo de 20 minutos e achamos que ela ficará
atenta nesse tempo todo estabelecendo relações mentais apenas, sem falar, sem
andar, sem se comunicar. Da mesma forma, outro grande equívoco é acreditar que
elas não sentem como um adulto: então, submetemos as crianças a falarem sobre o
que sentem a outras publicamente – o que obviamente não faríamos com um adulto.

Em outra questão: “Comentar em sala a atitude errada de algum aluno, para colocar
como exemplo”, tivemos 0% para muito importante, 22% para importante, 38% para
pouco importante e 40% para nada importante. Notemos que 22% dos educadores
parecem acreditar que a moral possa ser formada pelo exemplo e não por um
processo de autorregulação. Somado a isso, há ainda a mesma perspectiva anterior
que não devemos expor a criança.

Finalmente, as questões sobre a última das relações: consigo mesma. Perguntamos aos
professores sobre “incentivar e oferecer oportunidades de a criança ficar só, consigo
mesma” e quase 50% disseram considerar a questão “pouco ou nada importante”. Por
certo, há um cuidado em jogo quando essas crianças são pequenas. No entanto, o fato
de que metade se refira a “não” oferecer oportunidades de ficar só valida a concepção
de que, muitas vezes, não entendemos que as crianças também precisam de espaços
para “quererem” estar consigo mesmas e que essa é uma oportunidade valiosa de
construir o autoconhecimento.

Essa pequena amostra do que pensam os professores em 2011 desperta em nós um


alerta: sabemos pouco sobre o que fazer no cotidiano para se trabalhar com um tema
tão importante, como é a convivência. Precisamos com urgência de mais estudos sobre
essas questões.

Quer aprender sobre as metodologias ativas na BNCC? A Nova Escola te mostra


como! Saiba mais sobre essa forma de aprendizagem baseada em projetos.

Luciene Tognetta é professora do Departamento de Psicologia da Educação da


Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara. Fez doutorado em
Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo
(USP) e pós-doutorado pela Universidade do Minho de Portugal.

1.

Para saber mais:

ELKIND, David. Alguns equívocos sobre o modo como as crianças aprendem. In: Crianças e
adolescentes. Ensaios interpretativos sobre Jean Piaget. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.

PIAGET, J. Inconsciente afetivo e inconsciente cognitivo. Piaget: A epistemologia genética.


Sabedoria e ilusos da filosofia. Problemas de Psicologia Genética. Coleção: Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983. P. 226 a 234.

piaget, j. Las relaciones entre la inteligencia y la afectividad en el desarrollo mental del niño In:
DELAHANTY, G. PERRËS (comp). Piaget y el psicoanálisis. México: Universidade
Autonoma Metropolitana, 1952/1994, p. 181 –290.

RIBEIRO, M.L.; JUTRAS, F. Teachers’ social representations about affectivity. In: Revista
Estudos de Psicologia. Campinas, janeiro-março 2006, volume 23, p. 39-45.

TOGNETTA, L.R.P.; LICCIARDI, L.M.S.; LEITE, L. C. B.; MORISHITA, M. M . Formação ética


e afetividade: entre a concepção de educadores e sua urgência para quem educa.
Revista Eletrônica Postconvencionales - Ética, universidad, democracia da Escuela de
Estudios Políticos y Administrativos de la Universidad Central de Venezuela, 2011.

XYPAS, C. Chapitre 1: Le cours de Sorbonne (1953-1954). In: Les stades du développement


affectif selon Piaget. Paris: L´Harmattan, 1996, p. 07-26.

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