Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
AULA2 - ENEGEP2005 - Enegep0405 - 0407
AULA2 - ENEGEP2005 - Enegep0405 - 0407
Resumo
O sucesso de qualquer sistema de gestão da segurança necessariamente está condicionado a
busca e ao tratamento dado às informações pró-ativas. Dentre essas, os quase-acidentes
constituem uma das mais relevantes, na medida em que são eventos relativamente freqüentes
e que poderiam ter gerado um acidente sob circunstâncias levemente diferentes. Esse artigo
discute o conceito e a classificação desses eventos, em particular para o contexto da
construção civil. Para tanto, foram registrados, classificados e analisados 122 quase-
acidentes em um canteiro de obras. Os resultados do levantamento indicaram que esses
eventos podem ser usados tanto para reforçar boas práticas de segurança quanto para
apontar falhas de gestão que implicam em grave e iminente risco de acidentes. Além disso, o
envolvimento dos trabalhadores no processo de coleta é essencial para ampliar o número de
registros, servindo ainda como mecanismo para desenvolver a sensibilidade dos
trabalhadores em relação aos perigos.
Palavras-chave: Quase-acidentes; Medição de desempenho; Segurança do trabalho; Gestão
da segurança.
1. Introdução
A possibilidade de aprendizagem a partir dos eventos denominados quase-acidentes tem uma
longa história como parte dos programas de gestão da segurança, especialmente em setores
como aviação civil, plantas de energia nuclear, indústria química e, mais recentemente, em
setores como transporte ferroviário e medicina (VAN DER SCHAAF; KANSE, 2004). É
provável que sua utilização tenha surgido nas indústrias com maior propensão para acidentes
organizacionais (REASON, 1997), visto que, como esses acidentes são raros, catastróficos e,
em geral, podem resultar na falência da organização, torna-se vital a coleta do máximo de
informações em prol da prevenção (BRAZIER, 1994; VAN DER SCHAAF, 1995).
Hinze (1997) defende que é importante conhecer os quase-acidentes e desenvolver planos
para reduzir ou eliminar a possibilidade de um acontecimento semelhante. Além disto, os
quase-acidentes tendem a ser muito mais freqüentes que os acidentes, indicando áreas críticas
para melhorias na gestão da segurança (HINZE, 1997; JONES et al., 1999; REASON, 1997;
VAN DER SCHAAF, 1995). Esses eventos representam ainda o lado positivo (pró-ativo) do
controle da segurança (JONES et al., 1999; VAN DER SCHAAF, 1995), visto que o foco de
atenção está em eventos aquém dos acidentes, os quais, além de serem mais raros, geram um
clima psicológico muito negativo. Os quase-acidentes também auxiliam na priorização dos
perigos em um sistema de gestão da segurança e no fortalecimento da cultura de segurança
entre os trabalhadores, quando os mesmos são motivados a participar do processo de coleta e
não sofrem qualquer tipo de punição (JONES et al., 1999).
Reason (1997) reconhece as dificuldades para a coleta desses eventos, uma vez que o relato
dos mesmos depende da boa vontade dos indivíduos. Segundo Van der Schaaf e Kanse
(2004), na perspectiva dos trabalhadores, os fatores que influenciam no relato de quase-
acidentes podem ser reunidos em quatro grupos: (a) medo de ação disciplinar, como resultado
de uma cultura de se buscar culpados; (b) aceitação do perigo, pois esses eventos são vistos
como algo que faz parte do trabalho e não podem ser prevenidos ou da cultura machista
existente em alguns ambientes industriais; (c) inutilidade, ou seja, não percepção e
entendimento de como a gerência utiliza as informações para melhorias no sistema e; (d)
razões práticas, isto é, a percepção de que é difícil coletar esses eventos, além de consumir
muito tempo.
Em que pese as contribuições dos relatos e investigações dos quase-acidentes na gestão de
muitas indústrias, na construção civil seu emprego é relativamente recente. Neste sentido, ao
investigar boas práticas em gestão de segurança por parte das empresas de construção norte-
americanas, Hinze (2002) concluiu que, diferentemente dos resultados alcançados em
pesquisa similar desenvolvida anteriormente (Liska et al., 1993), os quase-acidentes foram
incluídos como eventos que compõem as estratégias de prevenção daquelas empresas.
Como exemplo de estudos no Brasil, Saurin (2002) propõe um modelo de planejamento e
controle da segurança (PCS) para obras de construção, o qual utiliza os quase-acidentes como
umas das principais medidas de desempenho para melhorias da segurança. Nos estudos
empíricos para desenvolvimento desse modelo, os quase-acidentes eram freqüentemente
coletados pelos técnicos de segurança do trabalho (TST) e pelo próprio pesquisador. Deve-se
notar que, nesses estudos, embora muito esporadicamente, aconteceram relatos de quase-
acidentes por parte de alguns trabalhadores, apesar da inexistência de ações sistemáticas para
tanto.
Com base em um estudo realizado para aperfeiçoar o modelo de PCS (CAMBRAIA, 2004),
no qual foram propostas ações sistemáticas para coletar quase-acidentes por meio do
envolvimento dos trabalhadores, este artigo busca contribuir para um melhor entendimento
dos quase-acidentes no contexto da construção civil, através da proposta de um conceito,
classificação e exemplos corriqueiros desses eventos neste contexto.
2. O conceito de quase-acidente na perspectiva de autores de diversas áreas
O conceito de quase-acidentes, assim como o de acidente, é variável em função de seus
objetivos para fins preventivos, do contexto em análise e dos interesses dos envolvidos. Neste
sentido, as principais divergências verificadas na literatura acerca da definição de quase-
acidentes dizem respeito às conseqüências do evento, uma vez que em alguns contextos eles
podem gerar danos pessoais, materiais ou combinação de ambos e em outros não. Assim, a
conseqüência atribuída a um quase-acidente vai depender do que se considera como
conseqüências do acidente em um determinado contexto. Contudo, deve ser destacado que
dentro de um mesmo contexto podem existir diferentes visões em função especialmente dos
interesses dos grupos envolvidos em sua definição.
Cabe salientar que a palavra incidente é também utilizada com significado semelhante à
quase-acidente, embora não exista consenso na literatura. Para alguns autores, em especial
aqueles que estudam a gestão da segurança na indústria química, incidente e quase-acidente
são conceitos distintos. Nessa linha, os incidentes são todos os eventos indesejáveis à
segurança, o que engloba acidentes, quase-acidentes, atos e condições inseguras (BRAZIER,
1994; JONES et al., 1999; VAN DER SCHAFF; KANSE, 2004). Uma outra corrente defende
que, tanto o termo incidente quanto quase-acidente, podem ser empregados para descrever
eventos de mesma natureza (GUIMARÃES; COSTELLA, 2003; REASON, 1997; SAURIN,
2002). Nesse artigo considera-se que esses termos são distintos e podem ser melhor
compreendidos nas práticas de gestão através da proposta defendida pela primeira corrente de
autores discutida.
Etapa 2 110
Etapa 1 12
0 20 40 60 80 100 120
Número de ocorrências
Figura 1 - Número dos registros de quase-acidentes dos estudos de Saurin (2002) e nas etapas deste estudo
Neste estudo constatou-se que o número de quase-acidentes registrados realmente foi superior
ao número de acidentes. Na etapa 1 foi 33,3% superior e na etapa 2 foi 27,3%. Embora na
etapa 1 o número de relatos possa ter sido influenciado, por exemplo, pelos procedimentos de
coleta empregados, pela inexistência de exigências internas quanto ao registro destes eventos
e também pela falta de conhecimento de seus benefícios por parte, principalmente, dos TST
resistentes no canteiro, o percentual foi maior que na etapa 2. Na etapa 2, apesar do número
significativamente maior de quase-acidentes coletados, o menor percentual pode ter sido
influenciado, especialmente, por alterações nos procedimentos de coleta dos acidentes, em
particular dos acidentes que resultaram em primeiros socorros, os quais raramente eram
registrados na etapa 1.
Particularmente em relação à etapa 1, dentre as informações coletadas, os casos mais graves
foram relatados pelos trabalhadores, sendo que os de menor gravidade, especificamente os
quase-acidentes nos acessos (tropeção e escorregão), presenciados pelos técnicos de
segurança. Embora pequenos tropeções ou escorregões muitas vezes possam ser classificados
como quase-acidentes de baixa gravidade, em algumas ocasiões esses eventos podem ser
considerados de extrema gravidade em função do local que o fato ocorrer. Desta forma, um
escorregão ou tropeção próximo a uma serra elétrica podem representar um grave acidente.
B 10,9%
C 75,4%
D
13,7%
E
6. Conclusões
Com base no conceito de acidente adotado neste artigo e, principalmente, por intermédio da
coleta de 122 quase-acidentes em um canteiro de construção, é proposto um conceito para
esses eventos. Assim, define-se quase-acidentes como toda ocorrência instantânea, não
planejada, com potencial para gerar um acidente que, no entanto, não chega a ocorrer. Sua
conseqüência pode ou não resultar em danos (lesões pessoais e/ou danos materiais). Porém,
resultando em danos, esses serão mínimos ou imperceptíveis, ou seja, não significativos.
Além disto, em que pese à existência de um certo grau de subjetividade, nos casos de quase-
acidentes não há necessidade de tratamento de primeiros-socorros.
Os quase-acidentes podem receber diferentes classificações, muitas delas similares as
classificações comumente empregadas para categorizar os acidentes, tais como segundo seus
agentes e sua natureza. Neste estudo, foram levantados como agentes causadores de quase-
acidentes, por exemplo, os acessos, as máquinas e equipamentos de transporte e as
ferramentas manuais. A partir dos 110 quase-acidentes classificados segundo sua natureza,
pode-se destacar que 50% dos mesmos envolveram a queda de materiais, equipamentos e
ferramentas, tanto no mesmo nível quanto em diferentes níveis. Isso pode ser justificado,
muito provavelmente, pelas características e etapas da obra pesquisada.
Uma classificação de quase-acidentes diferenciada dos acidentes diz respeito a possibilidade
de avaliação qualitativa das ações da gestão da segurança. Neste sentido, os quase-acidentes
podem ser usados tanto para reforçar boas práticas de segurança quanto para apontar falhas de
gestão que implicam em grave e iminente perigo de acidentes. Assim, podem ser classificados
como de feedback positivo (quando as medidas preventivas estavam implementadas e foram
eficazes) ou negativo (quando inexistiam medidas preventivas ou as mesmas não foram
eficazes). No canteiro investigado, dos 110 eventos registrados, 17,3% dos casos foram
quase-acidentes com feedback positivo.
Dentre os papéis dos quase-acidentes frente a gestão da segurança pode-se salientar que esses
eventos são mais frequentes que os acidentes e proporcionam informações pró-ativas, que
fazem com que, muitas vezes, os acidentes possam ser prevenidos em decorrência de ações
corretivas geradas por meio de sua coleta. Além disso, essas ações corretivas podem ser
priorizadas a partir de uma matriz subjetiva de avaliação. Por intermédio desta matriz,
verificou-se que 13,7% (dos 110 registros do canteiro analisado) poderiam ter resultado em
acidentes com graves consequências. Especialmente para esses eventos considerados de
prioridade 1, as ações corretivas são de vital importância.
7. Referências Bibliográfias
AMUNDSE, F. H.; HYDEN, C. [Traffic Conflicts ]. In: Workshop on Traffic Conflicts, 1977, Oslo.
Proceedings… Oslo: [s.n.], 1977.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 14280: cadastro de acidente do trabalho:
procedimento e classificação. Rio de Janeiro, 2001.
BIER, V. M.; MOSLEH, A. The Analysis of Accident Precursors and Near Misses: implications for risks
assessment and risk management. Reliability Engineering and System Safety, Barking, v. 27, n. 1, p. 91-101,
Jan./Apr. 1990.
BRAZIER, A. J. A Summary of Incident Reporting in the Process Industry. Journal of Loss Prevention in the
Process Industries, Amsterdam, v. 7, n. 3, p. 243-248, May/June 1994.
CAMBRAIA, F. B. Gestão integrada entre segurança e produção: refinamentos em um modelo de
planejamento e controle. 2004. 187 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Civil) - Programa de Pós-Graduação
em Engenharia Civil, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004.
DEJOY, D. M. Spontaneous Attributional Thinking Following Near-Miss and Loss-Producing Traffic Accidents.
Journal of Safety Research, Itasca, v. 21, n. 3, p. 115-124, Autumn 1990.
GUIMARÃES, L. B. M.; COSTELLA, M. F. Segurança no Trabalho: acidentes, cargas e custos humanos. In:
GUIMARÃES, L. B. M. Ergonomia de Processo. [5. ed. Porto Alegre, RS: UFRGS/PPGEP, 2003] v. 1Cap. 1.
p. 1.1.1-1.1.29.
HINZE, J. Making Zero Injuries a Reality. A report to the Construction Industry Institute, University of
Florida, Gainesville, 2002. (Report 160).
HINZE, J. Construction Safety. Upper Saddle River, NJ: Prentice-Hall, 1997.
JONES, S.; KIRCHSTEIGER, C.; BJERKE, W. The Importance of Near Miss Reporting to Further Improve
Safety Performance. Journal of Loss Prevention in the Process Industries, v. 12, n. 1, p. 59-67, Jan. 1999.
LISKA, R. W.; GOODLOE, D.; SEN, R. Zero accident techniques. Austin: The Construction Industry
Institute, 1993. 292 p.
NASHEF, S. A. M. What is Near Miss? The Lancet, London, v. 361, n. 9352, p. 180-181, Jan. 2003.
REASON, J. Managing the Risks of Organizational Accidents. Burlington: Ashgate, 1997.
SAURIN, T. A. Segurança e Produção: um modelo para o planejamento e controle integrado. 2002. Tese
(Doutorado em Engenharia de Produção) – Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2002.
VAN DER SCHAAF, T.; KANSE, L. Biases in Incident Reporting Databases: an empirical study in the
chemical process industry. Safety Science, Amsterdam, v. 42, n. 1, p. 57-67, Jan. 2004.
VAN DER SCHAAF, T. W. Near Miss Reporting in the Chemical Process Industry: an overview.
Microelectronics and Reliability, v. 35, n. 9-10, p. 1233-1243, Sept/Oct. 1995.