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XXX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Campina Grande – 2020

Veneza e Roma: a dualidade da música renascentista italiana


COMUNICAÇÃO

Musicologia e estética musical

Tales Lacerda Freitas de Lima


Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – t257146@dac.unicamp.br

Resumo. Este artigo busca elucidar a produção musical dos dois grandes centros polifônicos da
Itália, assim como discutir seus precedentes musicais e históricos que deram origem a polifonia
católica. Aqui faço um apanhado científico-literário da história da música ocidental, partindo dos
primórdios do órgano, até as aventuras pagodeiras da cidade marítima de Veneza, e do caráter
horizontal e íntegro de Palestrina em Roma.

Palavras-chave: Polifonia. Veneza. Roma. Música profana. Itália.

Title. Venice and Rome: The Duality of Italian Renaissance Music

Abstract. This article seeks to elucidate the musical production of the two great polyphonic centers
of Italy, as well as to discuss their musical and historical precedents that gave rise to catholic
polyphony. Here I provide a scientific-literary overview of the history of western music, starting
from the beginnings of the organum, to the adventures of the maritime city of Venice, and the
horizontal and upright character of Palestrine in Rome.

Keywords: Polyphony. Venice. Rome. Profane Music. Italy.

1. Introdução
É importante ter em mente que o fenômeno polifônico na música ocidental, se
constrói sob um período crucial da história europeia. Não foi uma manifestação isolada, ou
necessariamente própria desse continente, mas foi nele em que se desenvolveu como em
nenhum outro. Com o renascimento comercial e a formação das famosas feiras medievais,
foram criadas rotas comerciais ao norte da Europa e nas regiões mediterrâneas. O início das
Cruzadas marca a abertura do mercado oriental e uma nova classe social entra em jogo. A
melodia gregoriana monódica que teve seu período áureo do século VI ao VIII, agora, com o
desenvolvimento das escolas de canto coral, se avulta ainda mais a prática de se cantar uma
segunda voz, provavelmente por influência de Bizâncio.

[...] o costume duma das duas vozes do coro entoar um contracanto (vox organalis) de
quintas ou quartas paralelas, no agudo da melodia tradicional (vox principalis, ou
ainda, tenor). A isso chamavam de organizar, ou cantar um órgano. Prática
possivelmente muito antiga, o órgano só vem nomeado por Scotus Erígena e descrito
por Hucbald (séculos IX e X). (Andrade, 2015, p. 33-34)

As influências inglesas e populares na música erudita para o desenvolvimento da


polifonia também não podem ser ignoradas. Mesmo que os registros de música popular na Idade
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Média sejam mínimos, sabe-se que os bardos celtas percorreram praticamente toda a Europa
pelo menos, desde o século IV. Certamente difundiram essa maneira de cantar, como por
exemplo o gimel a duas vozes, e sua posterior evolução, o falso-bordão (a três vozes), que só
serão descritos em meados do século XIV (REESE, 1954). Essas práticas “profanas”,
consistiam justamente na adição de séries de terças e sextas paralelas à melodia dada. Já os
compositores ingleses, por volta do século XIII, estão conscientes do valor dinâmico das
dissonâncias e seu efeito agradável na resolução com uma consonância. É de extrema
importância essa diferenciação da polifonia renascentista, que caminha para a harmonia, e a
presente no órgano, falso-bordão ou discante (processo de compor a várias vozes), onde não
havia esse dinamismo movimentador das consonâncias e dissonâncias. Concebia-se apenas o
efeito absoluto de agradável e desagradável dos intervalos e acordes.

2. O mensuralismo
Com uma notação musical já mais clara e satisfatória proposta por Guido d’Arezzo
no século XI, a música profana desde então despertou e passou a influir de muitas maneiras nas
produções artísticas. Os cantos, as danças, marchas, uma música ainda improvisada e caótica,
foi o motivo principal que levou os compositores e teóricos a iniciarem o processo de criar
obras eruditas dotadas de combinações de valores de tempo diferentes, e em como se daria essa
grafia. Surge então o fenômeno mensuralista, uma nova forma de orientação que media o tempo
sonoro.

A música começou a ser mais conscientemente estruturada e sujeita a certos princípios


ordenadores — por exemplo, a teoria dos oito modos, ou as regras relativas ao ritmo
e à consonância; tais princípios acabaram por ser organizados em sistemas e
apresentados em tratados. (GROUT; PALISCA, 2007, p. 97)

Influenciados pelo movimento trovadoresco no qual o ritmo ternário prevalecia, foi


também, no mensuralismo, a fórmula rítmica ternária dominante. Para que o texto não se
estenda, aqui estão algumas das principais mudanças na notação musical que séculos depois se
consolidam na pauta moderna:
1. Os neumas virga e punctus passam a ser chamados de longa e breve,
respectivamente;
2. A relação proporcional teórica entre os valores era ternária, sendo a breve a
unidade de tempo e valendo a terça parte da longa¹;
3. A mínima aparece no século XIV;

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4. No século XV, quando os movimentos se tornam mais rápidos, fez-se


necessário a subdivisão da mínima, gerando a semínima, fusa e semifusa;
5. Meados do século XIII fez-se o uso das prolações para determinar o ritmo a
partir de um sinal no início da pauta, isso deu origem à fórmula de compasso
(MASSIN, 1983);
6. A barra de divisão de compasso é usada irregularmente até o século XVI, se
fixando no próximo.

Figura 1 – Aqui fica claro a relação métrica entre as figuras¹ (ANDRADE, 2015, p. 40)

O século XIII é o da nova notação, onde definitivamente são elaborados os


conceitos musicais que se irão se fixar e generalizar a partir do século XVII.

A partir do fim do século XIII, "modo" passou a designar a maneira de dividir a longa;
"tempo", a forma de divisão da breve; e "prolação", a divisão da semibreve; por
exemplo, a "prolação maior" corresponderá a uma divisão da semibreve em três
mínimas e a "prolação menor" corresponderá a uma divisão em duas mínimas. Em
seu tratado Ars Nova, escrito em torno de 1320, Philippe de Vitry estende as divisões
binária e ternária a todos os valores rítmicos, pondo desse modo em questão a
supremacia do "modo" ternário, que prevalecera durante o século precedente: os
modos ternários são ditos "perfeitos" e os binários "imperfeitos". Para indicar as
passagens do ternário ao binário, tornou-se necessário inventar sinais capazes de dar
conta da natureza da divisão e do valor a ser dividido; essa a razão por que Philippe
de Vitry designou o "tempo perfeito" por um círculo (a imagem da perfeição) e o
"tempo imperfeito" por um semicírculo, do que derivam os sinais C e C para indicar
respectivamente os compassos de quatro e dois tempos. (MASSIN, 1983, p. 105)

4. A renascença veneziana
Em Veneza, na Itália, o que prosperava era a aventura e liberdade musical. Cidade
marítima e comercial, extremamente rica e estável politicamente, era o ponto de encontro entre
o Oriente e o Ocidente. Compositores como Adrian Willaert (considerado fundador da escola
veneziana), Andrea Gabrielli e Giovanni Gabrielli douram a polifonia italiana. Ela se torna mais
expressiva, os cromatismos são comuns e muito mais usados, enriquecendo o modalismo. E
também aqui é inaugurada a imprensa musical com Otaviano Dei Petrucci, quando publica o

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primeiro livro de música polifônica com obras franco-flamengas: Harmonice Musices


Odhecaton (GAMBLE, 1923).

As primeiras manifestações renascentistas surgiram na Itália. As cidades italianas de


Florença, Veneza, Roma e Milão transformaram-se em grandes centros de
desenvolvimento capitalista devido à reabertura do mar mediterrâneo, com as
Cruzadas, reunindo condições necessárias para que o Renascimento se desenvolvesse.
Nessas cidades surgiram os mecenas, patrocinadores das artes e das ciências.
(TENÓRIO, 2007)

Os templos já não são isentos das travessuras profanas, os cantores agora enfeitam
as melodias com pequenos trinados, vocalizações e outras habilidades vocais. O virtuosismo na
sua forma mais simples se desenvolve. O madrigal pode ser a síntese das conquistas musicais
do século XVI, onde vozes se movem livremente, sem canto-firme. Mesmo polifônico, já está
a passos da Harmonia. E é no madrigal em que a tríade tonal é pregada pela primeira vez, pelo
compositor italiano Gioseffo Zarlino, cidadão veneziano. A música instrumental passa a ser
ainda mais relevante nas produções artísticas da renascença, isso devido principalmente a
invenção da imprensa, que possibilitou a publicação de livros sobre alaúde, violinos e cornetas
por exemplo (GROUT; PALISCA, 2007). O órgão um século antes já era visto como um
instrumento solista e possuía uma vasta produção, como prelúdios e transcrições, prática que
nesse século é intensificada e generalizada para outros instrumentos musicais.

Não faltavam cerimônias oficiais, civis ou religiosas, nas cidades do Renascimento:


as ruas e praças, tomadas pela festa, enchiam-se de música, de canto e de teatro.
Gentile Belfini representou, em uma tela célebre, uma dessas procissões que
lentamente se deslocavam pela praça de São Marcos, em Veneza: os cantores
eclesiásticos delas participavam, mas ouviam-se igualmente as sonoridades radiantes
dos hauts instruments ("instrumentos altos"). Não era fenômeno raro as cidades
manterem uma trupe de músicos municipais, tocadores de pífaros, clarins, sacabrocas
ou bombardas, encarregados de tocar em certas circunstâncias cotidianas e festivas.
(MASSIN, 1983, p. 133)

4. Palestrina e a tradicional Roma


Se Veneza era essa república marcada pelos preciosismos da música profana
polifônica, Roma já encarnava um espírito mais tradicional e conservador. A primeira
representava a decadência do espírito musical católico, onde a sensualidade e fulgor reinavam.
No entanto, Roma não era imune às liberdades de seu tempo. Os padres já estavam fartos da
mistura de textos da polifonia que dificultavam a compreensão do texto, dos processos
escandalosos de música popular no canto-firme da missa e dos “instrumentos ruidosos”. Então,
no ano de 1545, se inicia o Concílio de Trento, evento ecumênico que dura cerca de oito anos

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num contexto de Reforma da Igreja Católica, uma reação à Reforma Protestante (FISCHER-
WOLLPERT, 2008).

O Concílio de Trento, para a música, representou uma tentativa católica de banir a


infiltração popular na música erudita, evitando tudo o que fosse impuro ou libidinoso.

Todas as coisas deverão, na verdade, ser ordenadas por forma que as missas, quer
celebradas com canto, quer sem canto, cheguem tranquilamente aos ouvidos e aos
corações dos que as escutam, quando tudo é executado com clareza e ao ritmo certo.
No caso das missas que são celebradas com canto e com órgão, não deverá permitir-
se a presença de qualquer elemento profano, mas apenas hinos e louvores a Deus.
Qualquer concepção do canto em modos musicais deverá destinar-se, não a dar ao
ouvido um vão prazer, mas a permitir que as palavras sejam claramente entendidas
por todos e. assim, os corações dos ouvintes sejam tomados pelo desejo das harmonias
celestiais, na contemplação da beatitude dos eleitos [...] Deverá também banir-se da
igreja qualquer música que contenha, quer no canto, quer no órgão, coisas que sejam
lascivas ou impuras. (REESE, 1954, p. 444)

E é no compositor Giovanni Pierluigi da Palestrina que a Igreja Católica define o


espírito polifônico sacro. Foi corista e recebeu sua formação musical em Roma, nascido aos
arredores da cidade. Em 1551 tornou-se mestre da Cappella Giulia da Basílica de São Pedro,
posteriormente ocupando esse mesmo posto em São João de Latrão. Seis anos depois ocupou
seu cargo de maior importância na Basílica de Santa Maria Maior. Em 1571 é de novo chamado
a São Pedro, onde permanece até o ano de sua morte, em 1594.

Sua obra é marcada pela perfeita captação da essência sóbria, tradicional e


equilibrada da música sacra debatida no contexto da Contrarreforma. Palestrina herda a
polifonia franco-flamenga, porém, de forma genial, a encaminha para uma maior
inteligibilidade dos textos e texturas musicais fluidas (TRECCANI, 2015).

Na última parte da sua vida Palestrina superintendeu a revisão da música dos


livros litúrgicos oficiais para que esta concordasse com as alterações entretanto
introduzidas nos textos por ordem do Concílio de Trento e para expurgar os cantos de
«barbarismo, obscuridades, contrariedades e superfluidades» que neles se haviam
infiltrado, segundo o papa Gregório XIII, «em consequência da inabilidade,
negligência ou mesmo perversidade dos compositores, escribas e impressores». Esta
tarefa não ficou completa em vida de Palestrina, mas foi continuada por outros até
1614, ano em que veio a lume a edição do Gradual de Médicis. Esta e outras edições,
mais ou menos divergentes, permaneceram em diversos países até à reforma definitiva
do canto, que tomou corpo na edição vaticana de 1908. (GROUT; PALISCA, 2007,
p. 286)

Palestrina escreveu um total de 105 missas, 250 motetos, dentre os quais


lamentações e 35 magnificats. Também produziu cerca de 50 madrigais espirituais com textos
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italianos. Seus madrigais profanos são conservadores no estilo, mas tecnicamente perfeitos. Seu
coro é exclusivamente a cappella, compreendendo e harmonizando os caracteres distintos do
coral e do instrumento. Reza a lenda que, após o Concílio de Trento estar prestes a abolir a
polifonia dos cultos, Palestrina teria composto uma missa a seis vozes, a famosa Missa do Papa
Marcelo, no qual teria convencido os cardeais e o próprio Papa de que era possível compor num
estilo polifônico ainda compatível com a reverência católica, e sem comprometer a
compreensão da liturgia. No entanto, não existem documentos que sustentem essa história tão
romantizada.

5. Considerações finais
Em virtude do que foi mencionado, é de extrema importância essa relação política,
sociológica e claro, musicológica, para a compreensão da música polifônica no período da
Renascença. Essa passagem da Idade Média é imprescindível para a longa incubação da música
profana, que só no Renascimento irá explodir, inevitavelmente. Bem como compreender essa
linha muito tênue entre música de concerto (erudita) e música popular, sendo impossível uma
completa dissociação destes dois elementos. Portanto, além de evidente as diferenças
polifônicas das cidades de Veneza e Roma, também se torna muito didático para essa
compreensão geral do cenário italiano na música. É relevante dizer, também, que a música
religiosa pós renascimento, viverá em manifestações isoladas de individualidades e de obras,
não mais como uma corrente musical histórica e sólida.

Referências

GROUT, Donald; PALISCA, Claude. História da Música Ocidental. 5º Edição. PORTUGAL:


GRADIVA, 1988. 759 páginas.

MASSIN, Jean; MASSIN, Brigitte. História da Música Ocidental. 1º Edição. BRASIL:


EDITORA NOVA FRONTEIRA, 1997. 1256 páginas.

ANDRADE, Mário. Pequena História da Música. 1º Edição. BRASIL: EDITORA NOVA


FRONTEIRA, 1942. 258 páginas.

REESE, Gustave. Music in the Renaissance. Edição revisada. ESTADOS UNIDOS: W.W
NORTON & COMPANY, 1959. 1039 páginas.

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TIBALDI, Rodobaldo. Pierluigi da Palestrina, Giovanni, detto anche ‘il Palestrina.Volume


83. Disponível em: https://www.treccani.it/enciclopedia/pierluigi-da-palestrina-giovanni-
detto-anche-il-palestrina_%28Dizionario-Biografico%29/

GAMBLE, William. Music Engraving and Printing: Historical and Technical Treatise. 1º
Edição. LONDRES: PITMAN, 1923. 266 páginas.
FISCHER-WOLLPERT, Rudolf. Os Papas e o Papado. 5º Edição. BRASIL: VOZES, 2008.
381 páginas.

TENÓRIO, Luciana. Interpretação da Música Renascentista: A Tablatura Como Apoio Para


o Intérprete Moderno. Curitiba, 2007. 15 f. EMBAP, Universidade Estadual do Paraná,
Curitiba, 2007. Disponível em: http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/eventos/luciana.pdf

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