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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ
CAMPUS DE CAICÓ – DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES
ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA

ANTÔNIO NEVES DE ARAÚJO FILHO

PROTESTOS E MANIFESTAÇÕES AFRO-BRASILEIRAS NA MÚSICA NEGRA


BAIANA NOS ANOS DE 1980

CAICÓ
2016
2

ANTÔNIO NEVES DE ARAÚJO FILHO

PROTESTOS E MANIFESTAÇÕES AFRO-BRASILEIRAS NA MÚSICA NEGRA


BAIANA NOS ANOS DE 1980

Trabalho de Conclusão de Curso, na


modalidade Artigo, apresentado ao Curso de
Especialização em História e Cultura Africana
e Afro-Brasileira, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Centro de Ensino
Superior do Seridó, Campus de Caicó,
Departamento de História, como requisito
parcial para obtenção do grau de Especialista,
sob orientação do Prof. Dr. Agostinho Jorge de
Lima

CAICÓ
2016
3

ANTÔNIO NEVES DE ARAÚJO FILHO

PROTESTOS E MANIFESTAÇÕES AFRO-BRASILEIRAS NA MÚSICA NEGRA


BAIANA NOS ANOS DE 1980

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Departamento de História do Ceres, da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito parcial para obtenção de título
de especialista em História e Cultura Afro-
Brasileira.

Aprovada em: 14 de maio de 2016

BANCA EXAMINADORA:

_______________________________________
PROF. DR. AGOSTINHO JORGE DE LIMA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
(ORIENTADOR)

_____________________________
PROF. DR. ALMIR DE CARVALHO BUENO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
(MEMBRO DA BANCA)

_________________________________________
PROF. Ms. ELTON JOHN DA SILVA FARIAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
(MEMBRO DA BANCA)
4
5

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos que caminharam e caminham juntos comigo nessa trajetória acadêmica,
onde o ponto de ebulição é a antítese desse trabalho que, por ser teoria, não se conclui nos últimos
acordes da canção. Aos que lutaram, aos que lutam e aos que ainda haverão de lutar por uma Nação
livre de toda forma de racismo, preconceitos e agressões aos direitos humanos, a vida e a dignidade
de cada brasileir@.

Aos digníssimos mestres, doutores, orientadores e tutores que construíram esta


Especialização; que na árdua tarefa da promoção da pesquisa e do conhecimento resumem a tarefa
do ensinar num propósito maior – a História. Somos todos professores que ocupamos os espaços do
ensino, da aprendizagem, da pesquisa e do saber histórico para semearmos esperanças construídas
sob a égide de um sonho libertário maior, para erguermos sobre nossas limitadas compreensões
sobre os mistérios dos céus e da terra, a mais sublime de todas as tarefas ofertada pela busca do
conhecimento – A Liberdade! ―Procuras a verdade e ela vos libertarás‖.

Aos professor@s colegas dessa Especialização, que beberam da fonte da cultura e da


história africana e afro-brasileira. Para que nunca nos esqueçamos do canto negro que reside em
cada um de nós e não nos deixemos escravizar pelas distorções da História.

Muito axé para tod@s!


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LISTA DE SIGLAS

CBS – Columbia Broadcasting System.


EMI – Eletric and Musical Industries Ltd.
MPB – Música Popular Brasileira.
RCA - Rádio Corporation of Américan.
7

SUMÁRIO

1. RESUMO .............................................................................................................................08
2. RESUMO EM LINGUA ESTRANGEIRA – IORUBA ......................................................09
3. INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10
4.1 Capítulo I: PRIMEIRA FAIXA - A música negra baiana: entre a cultura e o popular .....20
4.2. Capítulo II: SEGUNDA FAIXA - O axé-music entra no mapa da música popular do
Brasil ....................................................................................................................................... 26
4.3. Capítulo III: TERCEIRA FAIXA - O samba-reggae navegando no mar da história........28
4.4. Capítulo IV: QUARTA FAIXA - Música negra popular brasileira ..................................31
4.5. Capítulo V: QUINTA FAIXA - A estética musical afro-baiana.......................................37
5. CONCLUSÃO: Penúltimo batuque .................................................................................. 43
6. REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 48
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Protestos e manifestações afro-brasileiras na música negra baiana nos anos de 1980.

Antônio Neves de A. Filho 1


Dr. Agostinho Jorge de Lima - orientador2

_______________________________________________________________________

1- RESUMO

O caminho traçado pela música negra popular brasileira nos anos de 1980, faz desse
período menos uma ―década perdida‖ se vistos à luz dos movimentos políticos e culturais que
mobilizaram a população negra na região de Salvador capital da Bahia. O estudo e análises dos seus
acordes, discursos e batuques possibilita quebrar as correntes impostas por uma cultura musical
hegemonicamente branca e esteticamente conservadora, detentora de uma tradição cultural que
estigmatiza a música negra e suas ferramentas instrumentais percussivas como coisa de preto,
adentra nos sons dos tambores da música negra baiana, seus ritmos e estruturas musicais, e recorre
aos discursos estético-musicais já elaborados em discos e CDs (ritmos e letras) abordando-os no
exato contexto em que foram produzidos, associando-os aos extratos ideológicos que a leitura do
momento político-social em que seus criadores estavam inseridos foi capaz de traduzir. Seus
discursos musicais desenha uma estética sonora de alta densidade histórica para encontrar no
samba-reggae o protagonismo da música negra que aponta para um novo ritmo que nasce como
ingrediente para se contrapor, na rua, ao conservadorismo que se exprime pela ideologia dominante
da falsa democracia racial, onde, os negros não passam da ―cozinha‖. O resultado desse traçado
musical se dá por um Brasil que se reconhece pelas linhas sonoras que o canto negro conserva nos
seus espaços de afirmação da história afro-brasileira.

Palavras-chave: Música – negro – protesto – samba-reggae – axé-music.

1
Discente do Curso de Especialização em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó, Departamento de História
(DHC). Graduado em História pela UFRN, CERES, Campus de Caicó. Professor da Rede Municipal de Ensino, na Escola
Municipal Professor Mateus Viana (Caicó-Rn), onde ministra a disciplina de História. E-mail:
polo.sindicalserido@hotmail.com
2
Professor do DHC, UFRN. Campus Natal. E-mail: agostinholima2@gmail.com
9

Ehonu ati awọn ifihan Afro-Brazil Orin in black baiana in the odun 1980.

2- LAKOTAN

Awọn ona itopase nipa awọn gbajumo Brazil dudu music ni 1980, ni wipe akoko ti o
kere a "sọnu mewa" ti o ba ti ri ninu ina ti awọn oselu ati asa agbeka ti mobilized awọn dudu olugbe
ni olu Salvador Bahia. Awọn iwadi ati igbekale ti awọn kọọdu ti, atowun ati drumming kí ya awọn
ẹwọn ti paṣẹ nipasẹ a hegemonic funfun gaju ni asa ati aesthetically Konsafetifu, eni ti a asa
atọwọdọwọ ti stigmatizes dudu music ati awọn oniwe-percussive repo irinṣẹ bi dudu ohun, ti nwọ
awọn ohun ti awọn ilu Bahian dudu music, awọn oniwe-ti sakediani ati song ẹya, o si nlo awọn
darapupo-gaju ni ibanisọrọ tẹlẹ elaborated lori gbangba ati CDs (ti sakediani ati lyrics) sọrọ wọn ni
gangan tọ ninu eyi ti won ni won yi, sisopo wọn si arojinle gbólóhùn ti kika awọn oselu ati awujo
akoko ninu eyi ti awọn oniwe-creators ti won fi sii je anfani lati pese. Rẹ gaju ni ibanisọrọ fa a ohun
darapupo ti ga itan iwuwo lati wa awọn Samba-Reggae.orin awọn ipa ti dudu music ti o ojuami si a
titun ilu ti wa ni a bi bi ohun eroja to oju, ni ita, awọn Conservatism ti o ti wa kosile nipasẹ awọn
ako alagbaro ti awọn eke ijoba tiwantiwa ẹda, ibi ti alawodudu ko ba ṣe awọn "idana". Awọn esi ti
yi gaju ni kakiri yoo a Brazil ti o ti wa mọ nipa awọn ohun ila eyi ti o fi dudu igun ni wọn itenumo
alafo ti ipa ati african-Brazil itan.

Koko: Music - dudu - protest - Samba-Reggae.orin - axé-music.


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3- INTRODUÇÃO

Os anos 1980, fortemente marcados por acontecimentos políticos globais e nacionais,


com expressivas mudanças no cenário geopolítico do leste europeu e nos enfrentamentos étnico-
raciais contra o apartheid na África do Sul, teve repercussão direta nas canções de protestos e
manifestações negras que este cenário construía e desembocava na crise político-social maior que
era vivenciada no Brasil. Na Bahia, mais precisamente em Salvador, um ritmo novo era formatado
nos ensaios dos blocos afro que revitalizavam as estruturas percussivo-musicais que nos últimos
anos haviam sido deixadas de lado pela dezafricanização do carnaval e a mercantilização dos
espaços culturais que historicamente eram ocupados pelas manifestações do povo negro, mas que
viviam tempos de baixa expressividade quanto ao seu papel fomentador da cultura afro-baiana.
A ideia central deste artigo é adentrar nos ritmos musicais desse período para descontruir
mitos e preconceitos em torno da música negra baiana, que nos anos 1980 ficou conhecida como
axé-music e consolidou-se como peça referencial reflexiva para se fazer repensar ―as abordagens
essenciais que separam cultura popular e erudita em compartilhamentos estanques‖ (DOMINGUES,
2011, p. 402); esta separação que insistentemente procura definir uma linha definidora entre música
popular e música brasileira ou vice-versa, tem sido ingrediente divisionista que serve, somente, para
contribuir com o estabelecimento de conteúdos de representações que alimentam domínios
conceituais que estão sempre em movimento: negro-branco, erudito-popular, centro-periferia,
capital-trabalho.
O recorte da música negra baiana estudado fala muito do Brasil do final do Século XX
que, no seu tempo histórico contabilizava um século da assinatura da Lei Aurea (lei esta que, por si
só, não representou o fim do martírio do povo negro no Brasil), é como se a travessia do Atlântico
Negro ainda não tivesse completado sua rota e parte das suas consequências desaguasse num canto
de dor, opressão e racismo antinegro; fissuras políticas e sociais que ponteiam as divisões de classe
e poder na autoritária e preconceituosa sociedade brasileira.3 Os anos 1980 estavam afinados com
cada foco de resistência, grito de liberdade e discurso de afirmação que ressoavam dos tambores da
música negra que apontava para sentimentos de um povo que buscava seu lugar na história pelo seu

3
Após o 13 de maio e o sistema de marginalização social que se seguiu, colocaram-no como igual perante a lei, como
se, no seu cotidiano da sociedade competitiva (capitalismo dependente) que se criou, esse princípio ou norma não
passasse de um mito protetor para esconder desigualdades sociais, econômicas e étnicas. O Negro foi obrigado a
disputar a sua sobrevivência social, cultural e mesmo biológica em uma sociedade secularmente racista, na qual as
técnicas de seleção profissional, cultural, política e étnica são feitas para que ele permaneça imobilizado nas camadas
mais oprimidas, exploradas e subalternizadas. (MOURA, 2014, p. 219).
11

próprio cantar, apoiados sobre repertórios 4 percussivos-musicais afro que dialogam tanto com a
África, berço despedaçado pela diáspora negra, quanto pelas fusões rítmicas e instrumentais
elaboradas pela antropofagia negro-mestiça que se instalou nas américas a partir do tráfico negreiro
durante as colonizações portuguesa, espanhola e inglesa.
Ao abrirmos caminho pela música popular brasileira nos anos 1980, momento em que as
análises sobre o contexto do fim do regime militar dão ênfase aos movimentos culturais da época
onde a música de contestação à ordem nacional vigente era instrumento político mobilizador para o
confronto ideológico de artistas e intelectuais que reivindicavam mais liberdade e o fim da censura,
se faz preciso enxergar as possibilidades e alcances da música de protesto negro, para além do
enfrentamento ao Estado autoritário dos generais, mas também compreendê-la como contraponto as
análises economicistas que estigmatizou este período como década perdida e de juventude alienada.
Ao estudarmos tal recorte musical nas ―partituras‖ deste trabalho, havia também uma
busca problematizadora, à luz da pesquisa científica, que promovesse o reflorescimento da memória
coletiva e proporcionasse uma releitura teórico-musical-discursiva que apontasse para repertórios
que em 1986 causou certo ―estranhamento cultural em relação a outras práticas culturais (ditas
eruditas, oficiais ou mais refinadas) em uma mesma sociedade‖ (ABREU, 2003, p. 1). Este
estranhamento estimulava sensações sonoras através da música negra baiana e se apresentava em
movimentos políticos-culturais negros que nos reposicionava para fora do parâmetro musical
padronizado proveniente da Música Popular Brasileira (MPB) ao elaborar notas percussivas de uma
cadência melódica que estava fora da discografia musical até então em destaque nas paradas de
sucesso. Para adentrar nesse universo sonoro, foi preciso recorrer aos discursos estético-musicais já
elaborados em discos e CDs (ritmos e letras) abordando-os no exato contexto em que foram
produzidos, associando-os aos extratos ideológicos que a leitura do momento político-social em que
seus criadores estavam inseridos foi capaz de traduzir.
É este estranhamento e todas as contribuições de acolhimento da produção musical afro-
brasileira que ele traduz, logo identificado como samba-reggae, que este artigo se propõe a
decantar, olhando para um contexto de afirmação de um movimento musical de classe e de cor que
secularmente esteve a margem do processo de formação da identidade nacional, mas que encontrou
na sua estética musical, original e ritmicamente elaborada ao som dos tambores, a caixa de

4
Os repertórios culturais negros foram (e são) influenciados por matrizes galvanizadoras distintas – transmitidas tanto
pelas raízes culturais africanas quanto pelas particularidades das tradições e heranças afrodiaspóricas –, por isso não
existe uma cultura popular negra de maneira intacta, em formas puras. Todas suas formas são sempre o produto de
sincronizações parciais, dos engajamentos que atravessam fronteiras culturais, essas formas são a recuperação do
antigo, porém de maneira dialógica, fluida e plástica, o que envolve adaptações, bricolagens ou mesmo recriações aos
espaços híbridos da cultura popular. (DOMINGUES, 2011, p. 415-416).
12

ressonância para se fazer ouvir como peça de uma cultura popular 5 secularmente invisibilizada. Ao
dialogar com esta temática, ainda muito rara nas elaborações acadêmicas sobre a música negra
nacional, foi possível abraçar ―A Trama dos Tambores‖ de Goli Guerreiro como um dos principais
referenciais teóricos para estruturar as teses musicais aqui elencadas. Mas para adentrar e jogar-se
na retórica discursiva dos espaços da música popular brasileira, Marcos Napolitano mostrou-se
definidor como um dos expoentes de construção de importantes leituras aqui elencadas sobre a
historiografia da música popular brasileira, a questão da sua tradição e a sua massificação. Cada
nota musical extraída desse trabalho é para ouvir o eco dos sons dos negros no Brasil, onde José
Ramos Tinhorão entoa seus cantos, danças e folguedos para compilar as origens do que hoje
podemos definir como a música negra popular brasileira, onde a axé-music foi nos anos 1980 sua
ferramenta mobilizadora.
A primeira faixa analisada nesse repertório teórico, para compreendermos o grau de
criação e surgimento do samba-reggae é a que dialoga com - A música negra baiana: entre a cultura
e o popular - destacando a abertura musical promovida pela música Fricote ao ―invadir‖ as paradas
de sucesso em todo o Brasil, no ano de 1986. O axé-music entra no mapa da música popular do
Brasil intitulando as discussões da segunda faixa das leituras musicais abordadas, onde a MPB foi
construída como referencial padrão hegemônico de representação da música nacional. Ao
identificarmos o samba-reggae navegando no mar da história, a terceira movimentação das leituras
aqui realizadas, dispõe uma estrutura rítmica criada por músicos baianos, entre eles Neguinho do
Samba e Mestre Jackson, através dela perceberemos sua associação com o reggae jamaicano, outra
vertente de um canto negro que se harmoniza com a proposta dos tambores e percussões que
gesticulam para um estilo rítmico de extensivas possibilidades sonoras e estéticas.
Ao concebermos a existência de uma Música Negra Popular Brasileira (MNPB) abordada
na quarta faixa desse repertório, nos introduzimos nos espaços da tradicional e difundida música
brasileira para então analisarmos o porquê da música negra baiana ter conseguido um feito que a
MPB não atingiu no seu contexto narrativo, que foi o de associar um ritmo popular a um conteúdo
de denúncia social, ideologicamente explícita, direta, sem metáforas, de cor e de classe, mas para
chegar a tal conclusão se faz preciso compreender as estruturas da sua estética musical elaborada
pela fisionomia afro-baiana em movimento, e, para isso, aprofundamos a quinta faixa deste disco
teórico, incorporando suas narrativas sonoras e identificando instrumentos pluriformes que revelam

5
Cultura popular é um dos conceitos mais controvertidos que conheço. Existe, sem dúvida, desde o final do século
XVIII; foi utilizado com objetivos e em contextos muito variados, quase sempre envolvidos com juízos de valor,
idealizações, homogeneizações e disputas teóricas e políticas. Para muitos, está (ou sempre esteve) em crise, tanto
em termos de seus limites para expressar uma dada realidade cultural, como em termos práticos, pelo chamado
avanço da globalização, responsabilizada, em geral, pela internacionalização e homogeneização das culturas. (ABREU,
2003, p. 1)
13

a construção de uma identidade musicada para além do elemento status-imaginário que sua
apropriação mercadológica sugere subjetivamente. Ao dialogarmos com estes instrumentos
percussivos, objetivamos problematizar a abrangência dos seus significados que, misturados aos
grafismos espalhados pelas ruas e terreiros, onde o corpo é uma das ferramentas dessa construção,
acolheremos sintomas de mestiçagens que se consolidam nessas narrativas e abordam o povo negro
como sujeito narrador, com linguagem própria, consciente da sua condição história.
O samba-reggae é o ponto de encontro das explicitações sonoras que regem este
trabalho, seu nascedouro é o axé-music, sua estrutura rítmica cruza-se entre tambores por um
repertório que consolida o dialeto das senzalas, dos terreiros de candomblé e dos guetos de
Salvador, adotando formas sonoras distintas para se comunicar com as massas populares. Suas
expressões musicais entram em cena em dimensões comparadas, em termos musicais das paradas de
sucesso daquele momento, somente ao rock nacional que também surgia abordando seus navios
mercantes para invadir, pilar, tomar o que é nosso.
Quando a música ―Faraó: Divindade do Egito‖ estourou nas paradas de sucesso de
Salvador, na voz da Banda Mel, reafirmando nacionalmente a axé-music como ponto de partida da
música negra em destaque, o meio sociocultural nacional ainda estava musicalmente condicionado
ao que os anos 1970 havia deixado como ressonância de tudo o que era produzido no eixo Rio-São
Paulo; no Nordeste ainda era Luiz Gonzaga com a sua ―Asa Branca‖ e outros elementos
iconográficos, a mais original trilha sonora e representações que nos aproximava de uma relação
musical que expressava uma identidade sócio regional para além do estrangeirismo das discotecas
que marcou a década de 70 do século passado e seus embalos nas noites de sábado, assim,
contextualizar a música negra baiana nesse recorte e dele extrair os significados e dimensões do que
ela representou, principalmente para Salvador, na Bahia, é um dos caminhos a percorrer neste
trabalho.
O contexto das transformações político-sociais que o Brasil viveu na metade dos anos 80
do século passado, foi cenário fomentador dos questionamentos transformados em canções que
falaram as massas pelos tambores da música negra baiana, onde seus instrumentos mobilizadores
favoreciam aos apelos de protestos e denúncias em que o negro ainda vivia. A música de protesto
negro montou o seu palanque musical nesse ambiente nada confortável para contestar a falsa
democracia racial que desfilava nos slogans ufanistas do Brasil moderno. É nesse ambiente,
idealizado e ideologizado, que nasce o axé-music, sua performance nos oferece formas de
linguagens que até então pareciam distantes para interpretar musicalmente a diáspora negra e seu
histórico de opressão que desemboca em elementos de forte conteúdo de (re)africanização dos
espaços ocupados pelas manifestações e costumes afro na cultura nacional.
14

O que a música negra baiana faz ao se inserir nesse ambiente em disputa é revisitar a
história da África. Ao olhar para dentro do próprio ambiente em que o negro foi vítima e ao mesmo
tempo protagonista, sua denúncia musical não renega as verdades das senzalas, nem do chicote,
nem do açoite, porém, também não as reconhece passivamente, mas fez da dor secular reprimida o
grito melódico necessário e fundacionista para dá vida, forma e cor aos movimentos culturais
negros que ressurgiam como foco de resistência, afirmação e cobrança da dívida histórica até então
negada pelos capitães-do-mato do poder.
Para avançarmos as análises teóricas mais profundas desse repertório em discussão foi
preciso percorrer os caminhos de reocupação dos espaços de atuação dos blocos afro de Salvador e
resgatar a imagem da africanidade6 do carnaval de rua, dialogando analiticamente com uma
diversificada produção rítmica e estética que teve no ritmo do samba-reggae de grupos e intérpretes
como: Olodum, Banda Mel, Banda Reflexu’s, Ara Ketu, Central Africana, Jerônimo, Margarete
Menezes, Sara Jane, Luiz Caldas, Neguinho do Samba, Carlinhos Brawn, a consolidação de um
movimento que transformou letra, música, dança e rituais em discursos de alta afirmação pelo
reconhecimento dos direitos da população negra e suas tradições afro-culturais. O tom desse
discurso era político-ideológico, de classe e de cor, e não negava suas origens étnicas, muito menos
os objetivos que pretendia alcançar. Se ―de certa forma, a escravidão foi a única ideologia
brasileira‖ (CHIAVENATO 2012, p. 13) deveras ter sido, propositadamente, a história e as
tradições do negro no Brasil invisibilizados aos olhos da nação pelas ações de uma classe
dominante de maioria branca, letrada, patrimonialista e patriarcal que insistia em manter intactos os
padrões dominadores da casa-grande.
A historiografia nacional tem nas últimas décadas, se esforçado para se reencontrar com
a história da África e seus povos que desembarcaram involuntariamente no Brasil pela rota
mortuária do Atlântico Negro e, como escravos, protagonizaram a maior mistura cultural de uma
migração forçada para uma nação fora do continente africano. Um dos canais de maior percepção
dessa mistura cultural foi a música negra baiana dos anos 1980, extraída dos terreiros do
candomblé, do samba duro, do maracatu, do reggae e do baião, reforçada pelo dinamismo das
relações promotoras entre os agentes envolvidos nas fusões musicais africano-europeia e
ameríndias, ocasionando uma antropofagia de sons que se fazem sentir do Lundum ao Jazz, do
Reggae ao Rock, do Samba a Bossa Nova, da MPB a axé-music, do pagode ao rap e o funk, e isso é
a mais pura tradução do que se transformou em Música Negra Popular Brasileira.

6
A imagem da africanidade dos blocos afro se desenha também através da incorporação de elementos da religião
afro-brasileira – o candomblé, que aparece neste contexto como referência fundamental. São muitos os elementos
pinçados pelos blocos afro do vasto repertório dos candomblés baianos. (GUERREIRO, 2000, p. 49-51).
15

4- DESENVOLVIMENTO

Bara o! Elegbara ago Lonã!7

Os anos de 1980, ao contrário do que afirmam os economistas, não foi uma década
perdida para o mundo da música brasileira e popular. Entre a redemocratização do país e uma
intensa fase de mudanças e transformações políticas no Brasil e no mundo não é sugestivo definir
este período como uma ―década perdida‖, isso porque, quando interpretado pelos movimentos
políticos e culturais que mobilizaram a população negra a partir de Salvador, na Bahia, é possível
observar, no campo da música, práticas e expressões artísticas que incorporaram novos sujeitos
musicais no cenário nacional, que ao utilizar parâmetros de sons e ritmos que se fundem aos
processos de manifestações políticas que se contrapõem a ordem hegemônica vigente, resgata os
ideais afirmativos desta população que sempre esteve a margem dos elementos culturais em
construção no pensamento indenitário da nação.

Da África do Sul a Salvador, do Brooklin ao Haiti manifestações pelos direitos dos


negros começavam a ganhar forma e conteúdo políticos em espaços até então silenciados pelo
apartheid e por ditaduras racistas patrocinadas por governos brancos. Na Bahia, performances
musicais eram ensaiadas nos guetos da sua capital, deixando de ser local para ser global, ao inserir-
se no diversificado ambiente da world music8. Esta transição do local para o global leva a
emergente música baiana a disputar o mercado fonográfico e midiático com os maiores nomes da
música brasileira, quebrando correntes impostas por uma cultura musical hegemonicamente branca
e esteticamente conservadora, detentora de um racismo sonoro e cultural que estigmatizou a música
negra e suas ferramentas instrumentais percussivas como ―coisa de preto‖, com lugar
discriminadamente reservado onde, nos palcos, não passava da ―cozinha‖:

Conhecida como ―cozinha‖ dos grupos musicais, situava-se em um espaço obscuro,


pouco notado, onde o percussionista era um músico desvalorizado. Essa
denominação, já identificada por Carlos Albuquerque como ―manifestação de
racismo sonoro‖, está, no plano imaginário, diretamente ligada à senzala em

7
Saudação, com pedido de abertura dos caminhos, usada no culto aos orixás. (grifo nosso).
8
[...] os contratos do meio musical de salvador se davam principalmente com a África e com o Rio de Janeiro. Nas
Décadas de 60, 70 e 80, no bojo do movimento de negritude, os intercâmbios se expandem em direção ao Caribe e à
América do Norte. Nos anos 90, acontece a mundialização dos intercâmbios musicais, que se materializam na word
music. [...] Segundo François Duterre, a world music é uma estratégica dos selos independentes ingleses, que
produziam “músicos étnicos” e a partir de 1987 criaram nova etiqueta para chamar a atenção para esse nicho de
mercado [...] O fenômeno world music é um dos elementos da nova era de comunicação. Através da tecnologia, ele
pode dar diversas musicalidades, formatos estéticos capazes de aproximar culturas distantes, tornando-as audíveis a
outros ouvidos [...] A ascensão da wold music enquanto tendência de consumo no mercado fonográfico internacional
implica uma mudança de posição da música produzida na periferia do “Atlântico Negro”, que passa a alimentar os
mercados musicais mais importantes do mundo, como os EUA, França e Inglaterra. (GUERREIRO, 2000, p. 159-161).
16

relação à casa-grande e, no plano concreto, remete ao fato de que os


percussionistas sempre foram os instrumentistas mais mal pagos do mundo da
música. No final do milênio, numa entrelaçada malha de interações locais e
internacionais, a percussão ganha uma nova imagem e passa a ocupar a ―sala de
estar‖ do mundo da música. (GUERREIRO, 2000, p.17).

Esta disputa por espaço e reconhecimento artístico no âmbito da música, ganha terreno
nas organizações afro de ruas de Salvador, onde o carnaval era lugar de expressivas representações
e berço natural desses recortes culturais das tradições negras, principalmente do candomblé. Depois
de décadas manipuladas por interferências comerciais, vitimados por uma desafricanização9
intencional, os blocos afro começam a se reorganizar. O afoxé Filhos de Gandhi, fundado em 18 de
fevereiro de 1948 figura entre um dos mais antigos e tradicionais blocos do carnaval baiano,
segundo Nei Lopes foi criado para ―divulgação do culto nagô, como forma de afirmação étnica‖
(2005, p. 3). Nessa linha de reflorescimento, em 1974, foi criado o Ilê Aiyê, como proposta de
enfrentamento ao racismo e garantias de o povo negro também ter seu espaço no carnaval. Depois
outros blocos surgiram, como o Malê Debalê (1979) e o Muzenza 10 (1981), já o grupo de percussão
Olodum foi uma alternativa dos negros em contraponto aos blocos das elites que nos anos de 1970
eram compostos majoritariamente por brancos.

A reorganização dos blocos afro foi uma movimentação que reuniu segmentos e
comunidades negras de Salvador e fomentou outras possibilidades de resgate e afirmação das
tradições culturais afro-brasileiras neste espaço, o que possibilitou uma maior difusão da música
negra baiana que abriu espaço para uma literatura musical11 que falasse mais dos negros, da Bahia,

9
Desafricanização, como sabemos, é o processo por meio do qual se tira ou procura tirar de um tema ou de um
indivíduo os conteúdos que o identificam como de origem africana. À época do escravismo, a principal estratégia dos
dominadores nas Américas era fazer com que os cativos esquecessem o mais rapidamente sua condição de africanos e
assumissem a de “negros”, marca de subalternidade. Isto para prevenir o banzo e o desejo de rebelião ou fuga,
reações frequentes, posto que antagônicas. O processo de desafricanização começava ainda no continente de origem,
com conversões forçadas ao cristianismo, antes do embarque. Depois, vinha a adoção compulsória do nome cristão,
seguido do sobrenome do dono o que representava, para o africano, verdadeira e trágica amputação. Então, vinham
as distinções clássicas entre “da costa” e “crioulo”, entre “boçal” e “ladino”. (LOPES, 2005, p. 8).
10
O bloco afro Muzenza foi fundado na Liberdade. Diferente dos outros blocos, nomeados com nomes em ioruba,
Muzenza é um termo bantu. Apesar de nome africano, o Muzenza usa as cores da bandeira jamaicana, verde, amarelo
e preto, pois o bloco, completamente sintonizado com as ondas do reggae, segue a filosofia dos rastafáris. O Muzenza
apresenta uma estrutura semelhante à dos outros blocos afro, mas é o único que não tem território fixo. Este caráter
itinerante do bloco aponta para uma “África nômade”, que tem como pilar signos jamaicanos como o pan-
africanismo, que prega o retorno à Mãe África. (GUERREIRO, 2000, p. 45-47).
11
A MPB, tanto quanto a Jovem Guarda e a Bossa Nova, tinham suas próprias linguagens de produção e identidades
traduzidas pelas formas de compor, de falar para seu público, de narrar o cotidiano nas suas canções, seu meio
musical e espaços formadores onde seus atores e agentes fomentadores transitavam. A Jovem Guarda foi beber na
fonte do Rock inglês e no swing do Rock Roll americano, com suas narrativas ingênuas que falavam de brotos, carrões
e festas de arromba. A Bossa Nova, com a sonoridade de João Gilberto, a capacidade rítmica de Tom Jobim e a poesia
de Vinícius de Morais fazia o contraponto às influências do estrangeirismo musical da guitarra elétrica do rock e
dialogava com as raízes do samba moderno e a batida uniforme do violão. A MPB de Caetano Veloso, Chico Buarque
17

seus ritos, sua raça e sua cor, que se aproximasse mais do pensamento em formação desde os anos
1950 de um Brasil urbano, cosmopolita, industrializado, moderno12, mas que ainda enxergava os
ritmos negros, mais precisamente o samba, como algo ainda folclorizado, tanto o samba como o
sambista, coisa de negro, do morro, inacessível aos padrões refinados dos que consumiam a ―boa‖
MPB. Usando temas que buscavam uma conexão direta com a África e a afirmação da negritude,
esses blocos criaram uma nova estética musical como foco de resistência a fim de reorientar o
inventário das tradições musicais do negro que se afastava de suas matrizes culturais devido a
desafricanização não só do carnaval de rua da capital baiana, mas a própria estética rítmica da
tradicional música negra popular. Esta desafricanização afeta diretamente não somente a música
negra ritualística e de raiz, mas a própria música popular brasileira, como vai constatar Nei Lopes:

Acreditamos que a música popular brasileira, de raízes tão acentuadamente


africanas, seja vítima de um processo de desafricanização ainda em curso. Senão,
vejamos. Quando a bossa-nova resolveu simplificar a complexa polirritmia do
samba e restringir sua percussão ao estritamente necessário, não estaria embutido
nesse gesto, tido apenas como estético, uma intenção desafricanizadora? E quando
a indústria fonográfica procura modernizar os ritmos afro-nordestinos (de maracatu
para mangue-beat, por exemplo), não estará querendo fazer deles menos ―boçais‖ e
mais ―ladinos‖, pela absorção de conteúdo do pop internacional? Pois esse pop
milionário, sem pátria e sem identidade palpável (mesmo quando pretende ser
―étnico‖), é exatamente aquela parte da música dos negros americanos que a
indústria do entretenimento desafricanizou. (2005, p. 8).

É nesse conjunto de compreensões que a música negra de protesto assume o


protagonismo da ação contestatória sobre o espaço e papel a ser reivindicado pelas comunidades
musicais negras no cenário artístico nacional:

de Holanda, Nara Leão e Edu Lobo, cuja origem buscava uma síntese entre a tradição e a modernidade, numa
perspectiva nacionalista, experimentava, em meio ao confronto ideológico contra o Regime ditatorial civil-militar,
letras fortes de protesto e contestação que falavam de liberdade e do cotidiano de repressão, revelando uma
transgressão comportamental que se contrapunha aos ditames dos generais. Já a literatura musical da música negra
que nascia em Salvador iria beber nas fontes rítmicas do reggae e na sonoridade dos ritos do candomblé, alicerçada na
língua ioruba e acolhida pelos sons dos atabaques, repiques, timbales e agogôs; fazia o caminho inverso do samba e
foi se afirmar pela reivindicação de inclusão de uma música negra popular que ao se fundir com ritmos como o reggae,
o rock, a salsa e o baião, adentrou nos espaços das massas e falava abertamente de racismo, preconceito e negações
históricas do negro no Brasil e no mundo. (grifo nosso).
12
No Brasil em fins dos anos de 1950, para amplos setores da sociedade, era preciso ser moderno, mas ao mesmo
tempo popular. Esse era o dilema da cultura brasileira até o início dos anos 1960. Mas os caminhos e as interpretações
do que era moderno variavam conforme os valores estéticos, sociais e ideológicos que informavam os artistas e os
ligavam aos outros segmentos da sociedade brasileira. (NAPOLITANO, 2014, p. 35).
18

Nessa esteira, a música de protesto negro significou não só um importante


instrumento de contestação do olhar que a nação ainda nutria sobre a história e as
culturas afro-brasileiras no país, em que se ignorava ―cordialmente‖ os elementos
afros e suas diversificadas matrizes étnicas africanas em interação na Bahia, suas
linguagens, ritos e comportamentos sociais presentes no cotidiano da nação, como
também mostrou a necessidade em dialogar e compreender a diversidade musical
brasileira além das influências ou personalidades musicais do eixo cultural Rio-São
Paulo onde se instalavam as grandes multinacionais da indústria fonográfica que
monopolizavam o mercado da música. (Jornal A Tarde).13

O surgimento de novas manifestações artísticas orientadas pelo consumo das massas e


pela modernização estética14 da música popular brasileira a partir dos anos 1960 15 amplia os
ouvidos de uma plateia consumidora que, desde os tempos áureos do rádio (décadas de 1930/40)
tem a música como expressão acolhedora da cultura nacional. A conexão entre as linguagens
sonoras incorporadas as estruturas musicais em movimento neste período e seu víeis puramente
comercial (apesar de ainda não haver uma rede consolidada de consumo, isso só vem acontecer nos
anos 1980 quando a população urbana chega a 70%), não deixa de alojar elementos antropofágicos
de ritmos e gêneros musicais que transitavam nas perspectivas lúdicas que essas mudanças sonoras
transmitiam nos seus vários significados e conteúdo. O Jazz, a Bossa Nova, a Jovem Guarda (que se
pretendia Rock), a Tropicália eram manifestações embrionárias, mas bastante latentes, de uma
música popular urbana brasileira que se localizava na fase experimental de construção do que viria
ser a MPB, espaço onde a música negra continuou sendo ignorada, tenho seus referenciais somente
nas leituras embranquecidas do samba.

A conexão com o jazz, no caso da Bossa Nova, e com o rock, no caso da Jovem
Guarda, tiveram uma repercussão na subseqüente mudança sonora: sutil no caso do
jazz por estar conectado com instrumentos acústicos, de uso comum na música

13
Jornal A Tarde. http://bahia.com.br/viverbahia/cultura/musica.
14
O fato é que são as guitarras elétricas do rock que sinalizam a modernização da música brasileira popular. O
movimento tropicalista vai libertar a música brasileira do samba, a Jovem Guarda vai libertar a música das classes
populares do habitus da produção artesanal. Depois disto nenhuma música tem necessariamente que se referir às
raízes étnicas para ser “brasileira” ou “popular”. A revolução iniciada pela Bossa Nova e pela Jovem Guarda nos anos
60 vão assinalar a autonomia da música popular no Brasil, a Bossa Nova abrindo caminho para a autonomia do campo
da produção restrita, a Jovem Guarda abrindo caminho para a autonomia do campo da grande produção. (ULHÔA,
1997, p. 8).
15
Os anos 60 foram uma época de mudança cultural no Brasil, com o aparecimento de um público jovem, composto
de estudantes, um aumento maciço da população urbana com a aceleração da migração campo-cidade, uma
intensificação da industrialização começada nos anos 30 e impulsionada pelo governo de Juscelino Kubitschek. A
Bossa Nova surgiu entre os jovens universitários da classe média tradicional, enquanto a Jovem Guarda floresce entre
jovens de um novo segmento emergente da classe média, grupos com diferentes habitus, isto é, com capital cultural
diferenciado, apesar de terem disposição semelhante pela disputa por legitimidade no campo da música popular. (Id.,
p. 12).
19

brasileira urbana; mais drástica no caso do rock, que introduziu o som


completamente "diferente" da guitarra elétrica. No seu lançamento, a Jovem
Guarda parecia ser uma novidade, mas agora, ouvindo à distância e especialmente
a comparando com seu suposto modelo, posso dizer que não é mais do que Música
Romântica com acompanhamento rítmico de rock. Quer dizer, tanto a Bossa Nova
quanto a Jovem Guarda incorporaram elementos estrangeiros de forma
"cosmética", como uma escarificação e acréscimo de um nome ao seu. E como os
Tupinambá nos 1500, a absorção é simbólica, aditiva e não transformadora de fato.
A Jovem Guarda, vanguarda da música de massa no Brasil, e mais tarde seus
desdobramentos — a Música Romântica e a Música Sertaneja Romântica — são
qualificadas pelo senso comum como música "comercial", pastiche de música
estrangeira, enquanto a Bossa Nova é música de "qualidade", por suas conexões
tanto com a música estrangeira, quanto pelo seu público constituinte, apesar de
terem, estruturalmente, muitos pontos em comum. A diferença principal é em
termos estéticos: Bossa Nova é refinada, pautada nos cânones da música de
concerto européia, enquanto a Música Romântica é popular e relacionada com
valores estéticos latino-americanos. Como na Bossa Nova, o timbre dos intérpretes
da Jovem Guarda era suave, e as letras das canções lidavam com amor, mas seu
tom e conteúdo eram esteticamente diferentes. Por exemplo, na famosa "Garota de
Ipanema" de Tom Jobim e Vinícius de Morais, a mulher é louvada, mas mantida à
distância pelo poeta, que se refere a ela na terceira pessoa do singular. Em canções
da Jovem Guarda como a clássica "Que tudo mais vá pro inferno" de Roberto e
Erasmo Carlos, o poeta quer que a mulher esteja bem mais próxima; ele deseja que
ela o "aqueça no inverno", que participe de uma maneira muito mais direta em sua
vida. O tipo de brasileiros e Brasil cantados na Bossa Nova representam valores
patriarcais tradicionais no Brasil, enquanto a Jovem Guarda cantava sobre
modernização e vida urbana industrializada. (ULHÔA, 1997, p.12).

Nesse cenário de fusões e contrassensos do que vem a ser música popular brasileira e
suas misturas e conexões rítmicas, a difusão afro-sonora que se incorpora ao ambiente em disputa,
organiza-se pelos setores populares de Salvador, até então excluídos e esquecidos como agentes
detentores de culturas e tradições negras, e passam a usar dos discursos de protestos sem
necessariamente reivindicar o confronto direto com a elite nacional da música. Tal estratégia abre
possibilidades de colocar uma parcela expressiva da população, - a negra -, na ordem do dia do
referencial da cultura e da identidade artística nacional; para isso, era necessário, primeiramente,
provocar o público consumidor para uma literatura musical que estava relegada aos guetos da
capital baiana e de lá ecoavam apenas pelos estereótipos convencionais de música regionalizada,
que até então não despertava interesses da indústria fonográfica. A música, como parte destas
manifestações, portanto, ―constituiu-se num veículo eminentemente de luta, visibilidade e ascensão
de negros e negras redimensionando os sentidos de pertencimento do ―ser Negro‖ em Salvador e
outras cidades baianas‖. (MOTA, 2006, p. 3).
20

4.1 Primeira Faixa - A música negra baiana: entre a cultura e o popular

Por todo o país, o processo de abertura e redemocratização política enchia de esperança


a República que depois de anos do Regime do ―Ame-o ou Deixe-o‖16 reordenava os elementos da
jovem democracia que se reestruturava sobre os escombros da derrotada Ditadura Militar. Neste
cenário, uma das formas de contestação ao ambiente político e social resultante e reinante foi à
música, especialmente a MPB que, por metáforas bem elaboradas e letras politizadas era a
linguagem de maior trânsito nos espaços de mobilizações e manifestações para se opor ao
autoritarismo ditatorial em vigor. As vozes que começavam a cantar o outro lado do Brasil, saídas
da Bahia também eram de protesto, mas estava falando de formas seculares de opressão e exclusão
política, econômica e social, contudo, não menos violentas que as baionetas dos generais.

Mas é na década de 1980 que a música popular 17 brasileira ganha uma variedade de
performances musicais que vão além do círculo da crítica intelectualizada da MPB ao regime
militar. O rock nacional, a música baiana e a música sertaneja são os ingredientes que se apresentam
nos espaços urbanos cosmopolitanos como porta-vozes dos novos padrões de comportamento e
consumo da sociedade, principalmente da juventude. Esta ordem se insere nas inovações temáticas
do cotidiano, puramente marcadas pela transição dos hábitos e necessidades materiais do chamado
―povão‖, proveniente de uma migração crescente do campo para a cidade, pelo processo acelerado
de urbanização desordenada nos grandes centros do país, pelo liberalismo sexual e pela abertura
política, mesmo que ―lenta, gradual e segura‖; provocando novas inserções culturais que se
misturam ao ideário comportamental da vida urbana, se consolidando pela indústria de
entretenimento e a constituição de um mercado de bens simbólicos no país, processos
impulsionados pela política de modernização conservadora da economia brasileira que acabou por
promover a massificação da cultura. Nesse período cresce os investimentos estrangeiros na indústria
fonográfica orientada pelas cinco grandes gravadoras: Polygram, Warners, CBS, RCA e EMI.

16
O termo refere-se a um dos slogans ufanistas usados pela Ditadura civil-militar implantada no Brasil entre 1964 a
1985 e soava como um convite de exílio voluntário aos brasileiros tidos como contrários ao Regime (grifo nosso).
17
A Música popular, na concepção utilizada aqui, é ligada a um sistema de produção integrado à indústria cultural. No
Brasil, esta indústria, voltada para o incentivo ao consumo, já começa como subsidiária de uma estrutura econômica
globalizada. Inovações tecnológicas, sem contar a impressão de partituras nem a entrada do piano no século XIX, que
tiveram um impacto na produção, performance e recepção da música popular no Brasil incluem: o disco, desde as
suas primeiras gravações no início do século XX, o rádio, que teve seu apogeu na década de 30 e 40 (a chamada época
de ouro), instrumental para a implantação de uma política de “integração nacional” e a televisão, que nos anos 60
exerce um papel fundamental para a política governamental de “segurança nacional”. (ULHÔA, 1997, p. 5).
21

No propósito de ir além dos espaços cosmopolitas do Sul e Sudeste onde uma música
urbana com fortes características de uma intelectualidade universitária narrava às provocações de
uma juventude que se fez protagonista da nova ordem política que compunha a chamada MPB18,
segmentos sociais ainda descriminados e que não frequentavam os ambientes tidos como
politizados que esta elite exibia, começava a surgir fora do eixo sudestino e trazia dos guetos de
Salvador para o seio das discursões a música negra que, se pretendia nacional, como forma
referencial do outro lado da musicalidade brasileira que não estava incluída como gênero no
universo da música popular. A MPB19 como sigla consolidada de um segmento bem estruturado
pelas grandes gravadoras se apresentava como canal de transição de uma proposta musical que
expressava um sentimento de modernidade nacionalista e contestava a visão moderna autoritária do
Brasil apregoado pelo falso milagre econômico proporcionado pelo regime militar; nessa linha de
pensamento Marcos Napolitano acrescenta que:

MPB é uma sigla em cuja origem percebe-se a tentativa de sintetizar a tradição e a


modernidade, numa perspectiva nacionalista, embora não xenófoba. Apesar de a
sigla está presente até hoje como um dos eixos do mercado fonográfico brasileiro,
ela passou a ser muito criticada por ocasião do surto ―tropicalista‖ de 1968, em
razão da sua alegada estreiteza estética, do seu nacionalismo folclorizante e do seu
discurso ideológico de esquerda. No entanto, apesar do que a crítica tropicalista
pode sugerir o campo da MPB já apresentava um conjunto bem mais complexo e
variado de experiências musicais. (2007, p. 109)

Paralelo a esta construção conceitual do que vem a ser a MPB com toda sua estética
elaborada para atender perspectivas de um mercado que classificava seus estilos musicais de acordo
com a linha de produção e consumo da indústria fonográfica nacional concentrada nos eixões dos
grandes centros urbanos industriais, fez com que Salvador na Bahia 20 desse seus primeiros sinais de

18
A expressão música popular brasileira cumpria certa função de defesa nacional. Nos anos finais da década de 1970,
ela se transforma mesmo numa sigla, quase uma senha de identificação político-cultural: MPB [...]. É nesse momento
que gostar de MPB, reconhecer-se na MPB passa a ser, ao mesmo tempo, acreditar em certa concepção de “povo
brasileiro”[...]. Era acreditar em outra versão do que era o povo. Esse nó estético-político, que encontra na música
expressão privilegiada, atravessa os anos de 1970, marcados pela censura e pelas lutas democráticas. No final de 1990
a MPB passou a ser compreendida também como etiqueta mercadológica. Assim nas lojas de discos, agora CDs, era
possível encontrar uma prateleira “MPB”, ao lado das prateleiras “bregas”, “pagode”, “sertanejo” ou “axé”.
(SANDRONI. 2004, p. 23 et seq.).
19
A MPB, rótulo que se consolida somente na década de 70, emerge do samba urbano da década de 30 e 40 (gênero
por sua vez procedente da tradição afro-brasileira do lundu em interação com gêneros de dança de outras
procedências, como a polca e a habanera), agrega outros ritmos regionais como o baião (década de 1950), passa pela
Bossa Nova, que incorpora elementos de jazz ao seu estilo e o Tropicalismo que, através do rock a “liberta” do samba
nos 1960. (ULHÔA, 1997, p. 2)
20
A Bahia, graças principalmente à sua capital, é internacionalmente conhecida pela riqueza de suas tradições
africanas, apropriadas como verdadeiros símbolos nacionais brasileiros. Segundo algumas interpretações, a
22

que algo de contestador e competitivo precisava ser apresentado em contra ponto a esta hegemonia
musical imposta pelos donos do mercado fonográfico:

A partir de 1987, os blocos afro começaram a investir numa nova estratégia: a


penetração nos estúdios de gravação, que foi viabilizada não só pela sua
popularidade para além dos espaços musicais negros, mas também pelo
desenvolvimento de uma tecnologia capaz de registrar o som dos tambores[...] essa
tecnologia foi desenvolvida pela WR, a única gravadora de Salvador, cujos
estúdios produziram cerca de 90% de todo o material fonográfico, que naquela
época saiu da Bahia para o mercado nacional. Além de ter sido peça-chave na
configuração de um mercado fonográfico local, ela é responsável pelo
aperfeiçoamento da técnica que permite gravar, em estúdio, a percussão como
elemento sonoro central [...]. O Olodum e o Ara Ketu entraram na WR para gravar
seus primeiros LPs, Egito, Madagascar e Ara Ketu, respectivamente, ambos
lançados distribuídos nacionalmente pela então gravadora Continental (hoje
Warner). Aqui começa a história da nova música afro-baiana no mercado
fonográfico. Por isso, a WR ocupa um lugar de destaque na história da música afro-
baiana. (GUERREIRO, 2000, p. 117-119).

Contrariando a lógica das grandes gravadoras multinacionais as músicas negras


produzidas em Salvador, antes da WR eram gravadas ao vivo nos ensaios dos blocos afro baianos
como Olodum, Ilê Ayê, Ara Ketu. O que desencadeava a popularidade das canções afro não era a
informação midiática, que até 1987 praticamente ignorava essa produção musical 21. ―As rádios não
as veiculavam, a imprensa não lhes dava espaço e a TV sequer mencionavam os fluxos culturais dos
guetos embebecidos de musicalidade negra. A popularidade dessas canções nascia das informações
passadas de boca em boca, o ―correio nagô‖, na gíria local‖, (GUERREIRO, 2000, p. 26),
externalizando uma nova proposta musical que redirecionou as atenções da indústria musical fora
do eixo Rio-São Paulo e, obviamente, entre 1985 e meados dos anos 1990, as grandes gravadoras,
todas, queriam ter artistas e bandas baianas no elenco.

visibilização desse precioso acervo cultural teria ocorrido pela presença histórica, em Salvador e no Recôncavo Baiano,
de diversas “nações” africanas organizadas, e muitas vezes adversárias, cada uma ciosa de sua identidade étnica. E
isto teria feito com que, lá, no combate ao racismo, os afrodescendentes se destacassem mais fortemente através da
afirmação de suas expressões culturais específicas do que através da luta política, como em São Paulo, por exemplo.
(LOPES, 2005, p. 7).
21
Antes de a produção musical dos blocos afro penetrar na indústria fonográfica, o mercado baiano estava dominado
pela música carnavalesca produzida pelas bandas de blocos de trio elétrico, que podem ser vistas como contraponto à
produção musical dos grupos negros. E embora houvesse uma inevitável troca de informações, o meio musical de
Salvador, até 1987, estava segmentado em espaços musicais negros e brancos, e fazendo shows, compondo a
programação das rádios, os grupos negros estavam midiaticamente invisíveis, na periferia do mundo da música. Uma
caracterização dos espaços musicais “brancos” pode esclarecer essa segmentação que, mais tarde, a partir de uma
coligação de interesses, vai se diluir, dando origem à mestiçagem musical conhecida como axé-music. (GUERREIRO,
2000, p. 119)
23

Quando a música Fricote22 invadiu as paradas de sucesso em todo o Brasil, no ano de


1986, uma “nega do cabelo duro” surgia no imaginário popular em ritmo e coreografia que causou
contagiante estranhamento. O seu compositor e intérprete, o baiano Luís Caldas trazia para o espaço
da música nacional um ritmo dançante que provocava sob seu som envolvente, corpos docilizados
pela moral conservadora de matriz judaico-cristã, oriunda da casa-grande, que preservava nos seus
códigos de conduta social, um olhar condenatório que reprimia os corpos na sua expressão visual
natural que é a dança em movimento a partir da incorporação de sons e ritmos a sua volta.

Com a abertura promovida pela música Fricote, o samba-reggae assume o protagonismo


musical de Salvador deixando explícito que a dança coreografada e de som intenso oferece os
ingredientes que nasce para se contrapor, na rua, ao conservadorismo moral que se exprimia pela
ideologia do corpo, organismo este sempre intimidado e intimado a obedecer a regras impostas por
um comportamento padronizado com formas e expressões gestuais bem definidas, de vestimentas e
códigos de condutas sociais respeitáveis e aceitáveis de acordo com etiquetas familiares, machistas
e opressoras, para quem a música negra era ofensiva. A música negra baiana com seu Fricote expôs
ritmicamente quais eram os elementos a serem provocados para a elaboração de uma identidade
musical negra que resgatasse a alto-estima de uma nação reprimida pelo preconceito de cor, de
religião e expressões culturais não negras:

Nega do cabelo duro/que não gosta de pentear/quando passa na praça do tubo/o


negão começa a gritar/pega ela ai/pega ela ai/pra quê?/pra passar baton/que cor/de
violeta/na boca e na bochecha/pega ela ai/pega ela ai/pra quê?/pra passar baton/que
cor/de cor azul/na boca e na porta do céu!(Fricote). 23

Enquanto a música Fricote, como novidade musical que vinha da Bahia dava ao ritmo
que nascia elementos estilísticos heterogêneos com o objetivo de criação de um gênero que falasse a
partir das ferramentas de linguagens das suas tradições, um tom de protesto e denúncia das
condições históricas e culturais dos negros começava a se expressar através do samba reggae;24

22
CALDAS, Luiz e CAMAFEU, Paulinho. Magia. Editora: Warner Chappell. Nova República. Série Azul/Stereo (P)1985. 1
LP, faixa 1. Lado “2”.
23
Letra e música disponíveis em: <http://www.letras.com.br/#!luis-caldas/fricote>.
24
O samba-reggae é o principal produto da movimentação afro-baiana. É um estilo percussivo que se caracteriza, em
termos conceituais, pela apologia do negro e, em termos musicais, pela recriação de sonoridades afro-americanas. A
nova rítmica foi elaborada a partir do diálogo entre instrumentos de percussão e vocais. Diferentemente do reggae,
que é feito a partir de instrumentos harmônicos como a guitarra e um baixo que se impõe, o samba-reggae encontra
em tambores, surdos, taróis e repiques a sua forma privilegiada de expressão[...]. Não há consenso sobre a origem do
samba-reggae. É bem provável que ele não tenha surgido a partir de um só foco, já que houve troca de informações
entre blocos afro[...]. (GUERREIRO, 2000, p. 57,58).
24

blocos afro começavam a se organizar sobre uma proposta de resgate e afirmação da cultura negra
associada aos elementos da cultura popular 25, promovendo nessa construção, o encontro com a
história do Brasil e a matriz cultural africana, possibilitando que a sonoridade e as tradições do povo
negro entrassem no repertório nacional e rompesse com os sistemas de representações pragmáticas
da cultura exclusivista das elites.

A relação entre a cultura erudita (ou da elite intelectual) e a cultura popular passa
tanto pelas formas quanto pelos conteúdos dos sistemas de representações. Por isso
o cruzamento entre ambos os domínios não pode ser entendido como uma relação
de exterioridade envolvendo dois conjuntos estabelecidos aprioristicamente e
sobrepostos (um letrado, o outro iletrado). Pelo contrário, esse cruzamento – ou
zonas de fronteiras – entre o chamado ―erudito‖ e o ―popular‖ produz encontros e
reencontros, espécie de fusões culturais. (DOMINGUES, 2011, p. 404).

O território de abrangências do alcance do que vem a ser a cultura popular26, no que


concerne entendê-la ou defini-la ao alcance do que é o povo e qual o seu papel nos espaços de
difusão das ferramentas de construção da cultura tradicional ou erudita, levanta uma questão de
ordem quando se refere a localizar o povo negro nessa escala de abrangências e definições do
conceito do que deva vir a ser o povo de uma forma geral; sobre esta questão Domingues nos dá
uma luz ao relatar que:

A dificuldade de se compreender essa questão começa pela própria definição de


―povo‖. Quem é o ―povo‖? Todos, ou apenas quem não é da elite? Neste último
caso, não se estaria correndo o risco de supor a homogeneidade dos excluídos. O
melhor seria pensar as culturas populares no plural, urbana e rural, masculina e
feminina, velha e jovem, e assim por diante. (2011, p. 410).

25
Na visão tradicional, cultura popular consiste em todos os valores materiais e simbólicos (música, dança, festas,
literatura, arte, moda, culinária, religião, lendas, superstições etc), produzidos pelos extratos inferiores, pelas camadas
iletradas e mais baixas da sociedade, ao passo que cultura erudita (ou de elite) é aquela produzida pelos extratos
superiores ou pelas camadas letradas, cultas e dotadas de saber ilustrado. No entanto, esta divisão rigorosa não se
confirma empiricamente, pelo menos é o que as pesquisas no terreno da história cultural, antropologia, sociologia e
teoria literária vêm demonstrando ultimamente. (DOMINGUES, 2011. p. 401-419).
26
A partir dos anos 1940/1950, cultura popular assumiu uma perspectiva política associada aos populismos latino-
americanos, que procuravam oficializar as imagens reconhecidamente populares às identidades nacionais e à
legitimidade de seus governos. O conceito também foi incorporado pela esquerda, principalmente na década de 1960,
tendo assumido um sentido de resistência de classe, ou, inversamente, de referência a uma suposta necessidade dos
oprimidos a uma consciência mais crítica, que precisava ser despertada O conceito poderia ser encontrado entre os
intelectuais do cinema novo, da teologia da libertação, dos centros populares de cultura e entre os educadores ligados
aos princípios de Paulo Freire. (ABREU, 2003, p. 3).
25

Mas o popular aqui diluído como meio de expressão e simplificação das tradições
enraizadas no povo, avança sob diagnósticos que se opõem ao negar a força dos elementos
heterogêneos que se fundem e lhe alcança nos espaços da cultura e, no caso da cultura negra e suas
ramificações para o universo das questões correntes entre conceitos de cor e de raça, reforça
definições segregacionistas bastante objetivas, que afastam mais do que misturam, tanto pela
discriminação histórica como pela ideologia dominante que busca distanciar e confundir o que
transita entre o culturalmente permitido e consumível, o popular e a cultura de massa, concebidos
na prática e nos seus significados perenes.

Há, certamente, uma posição clara, teórica e política - nada ingênua, diga-se de
passagem - ao se defender a utilização da expressão cultura popular. O objetivo é
colocar no centro da investigação as pessoas de baixa renda, geralmente
identificadas e discriminadas socialmente pela cor da pele, pelo local de moradia,
pelo modo de ser e vestir e pela pretensa criminalidade. No sentido político, seriam
os desprovidos de poder. Se podem ser tratados genericamente por populares (sem
a obrigação de suprimirmos as possíveis e grande diferenças entre eles, como as
distinções de gênero, raça, idade, região e religião), isto deve-se ao fato de
compartilharem certos aspectos, que devem ser demonstrados, tais como condições
de vida, significados de festas e danças, gostos, e, de modo geral, assim serem
considerados por autoridades policiais, professores, intelectuais e, muitas vezes,
por eles próprios. Deve-se considerar que muitos organizadores de festas, membros
de grupos folclóricos, músicos, artistas plásticos e artesãos autodenominam-se
―populares‖. (ABREU, 2003, p.13).

Mesmo considerando que, como todo conceito, o de cultura popular também constrói
identidades e possui uma história, ainda é possível acrescentar que:

Cultura popular não é um conjunto fixo de práticas, objetos ou textos, nem um


conceito definido aplicável a qualquer período histórico. Cultura popular não se
conceitua, enfrenta-se. É algo que precisa sempre ser contextualizado e pensado a
partir de alguma experiência social e cultural, seja no passado ou no presente; na
documentação histórica ou na sala de aula. O conceito só emerge na busca do como
as pessoas comuns, as camadas pobres ou os populares (ou pelo menos o que se
considerou como tal) enfrentam (ou enfrentaram) as novas modernidades (nem
sempre tão novas assim); de como criam (ou recriaram), vivem (ou viveram),
denominam (ou denominaram), expressam (ou expressaram), conferem
significados (ou conferiram) a seus valores, suas festas, religião e tradições,
considerando sempre a relação complexa, dinâmica, criativa, conflituosa e, por isso
mesmo, política mantida com os diferentes segmentos da sociedade: seus próprios
pares, representantes do poder, reformadores, professores etc. Não se deve perder
de vista a reflexão sobre as possibilidades destas manifestações encontrarem-se
relacionadas com as lutas sociais e políticas mais amplas da sociedade a que
pertencem (ou pertenceram). (Id., 2003, p. 14).
26

4.2 Segunda Faixa: O axé-music entra no mapa da música popular do Brasil

O axé-music27 se consolidou como gênero contemporâneo das fusões musicais que


ocorreram na inventividade musical da Bahia nos últimos anos de 1980 até então. Seu marco inicial
com a música Fricote, de Luiz Caldas, inaugura em 1985 oficialmente este movimento como
referencial de ritmos que se localiza na órbita da música popular e, com isso, elabora as
argumentações sonoras para o aparecimento da música negra baiana, até então discriminada, por
não se localizar no polo da indústria fonográfica do eixo Rio-São Paulo, sendo classificada como
música regional ou música baiana 28 e nunca como Música Popular Brasileira. A princípio, sua
metodologia e linguagens misturavam recursos eletrônicos dos estúdios de gravação como o
sampler (computador que armazena e reproduz sons por processo digital, denominado pads)
adicionados a instrumentação harmônica do teclado, guitarra e baixo, fazendo disso uma grande
mistura de elementos estéticos brancos e negros, aparentemente distantes. Suas fontes bebem no
samba e no reggae como elementos delineadores e transitam na salsa, no merengue, no carimbo, no
frevo baiano, no baião e até no rock para definir-se organicamente numa estética sonora de
significativa estrutura técnico-percussiva, isso porque sua outra principal característica, em meio a
fusão dessas linguagens, é o uso de instrumentos de percussão que dão à marcação rítmica de sua
sonoridade criando uma referência inconfundível quanto a sua batida harmônica que dá voz a sua
estruturação estético-musical.

Mas foi o samba-reggae ―Deuses Cultura Egípcia, Olodum‖ ou simplesmente ―Faraó‖29


que em 1987 tornou-se a porta de entrada do movimento musical negro de Salvador pelos tambores
da Banda Mel. A letra da canção foi o marco estético do gênero Axé, sua letra, elaborada sobre um
encontro histórico-cultural entre os faraós do Egito e os negros baianos aparece despertando o olhar
para a cultura egípcia no Brasil, apresenta as pirâmides como símbolo da grandeza de uma
civilização antiga e associa esta grandeza como obra do povo negro. ―Faraó‖ redirecionou o olhar

27
A expressão axé-music aparece pela primeira vez na imprensa baiana em 1987, na coluna do jornalista Hagamenon
Brito, um crítico de música que cunhou o termo para designar o novo estilo [...]. O termo axé é uma palavra ioruba,
oriunda do candomblé, que significa força, energia, poder. Para a mídia nacional, a expressão axé-music cabia tanto
para o samba-reggae quanto para as músicas feitas pelas bandas de trio. (GUERREIRO, 2000, p. 137-138).
28
Esse desgaste é um prato cheio para aqueles que insistem em rotular as diversas formas de expressão musical da
Bahia como “música baiana”. Mas não acontece o mesmo com a música de outras regiões do país. Não se fala em
“música carioca”, “música paulista” ou “música mineira”. Por que razão o baião, o maracatu, o samba-reggae, enfim,
os produtos musicais do Nordeste são tratados como “música regional”? (Id., 2000, p. 266)
29
SANTOS, Luciano Gomes dos. Faraó: Deuses Cultura Egípcia, Olodum. Gel Continental. Editora: Stalo. (P)1987. 1 LP,
faixa 1. Lado “A”.
27

do Brasil para um estilo musical que falava de raça, África e baianidade da cor, contestava o
tratamento preconceituoso historicamente dispensado aos negros, e a negação das relações do Brasil
com a matriz africana. Com um discurso afirmativo de negritude e brasilidade, a música negra
baiana passava a se apresentar por uma complexidade de questões rítmicas, elaboradas fora dos
padrões tradicionais do samba e da MPB e dava nova formatação à vida musical brasileira com um
produto direcionado para as massas, descontruindo estigmas e, com isso, começava a entrar no
mapa da música brasileira popular.

Deuses, divindades infinitas do universo/predominante esquema mitológico/a


ênfase do espírito original Xhu/formará no Éden o ovo cósmico/a imersão, nem
Osíris sabe como aconteceu/a ordem ou submissão do olho seu/transformou-se na
verdadeira humanidade/epopeia no código de Guebe/Inuth gerou as estrelas/Osíris
proclamou matrimônio com Ísis/e o Mauset irado o assassinou e impera/Hóros
levando avante a vingança do pai/derrotando o império do Mauset/e o grito da
vitória é que nos satisfaz/Tutancâmon/ê Gizé/Akaenaton/ê Gizé/Eu falei Faraó/Eh
faraó, clama Olodum Pelourinho/eh faraó, pirâmides a base do Egito/ que mara,
mara, mara, maravilha ê: Egito, Egito ê/ Faraó ó ó ó/ Pelourinho uma pequena
comunidade/que, porém, o Olodum unira em laços de confraternidade/ despertai-
vos a cultura egípcia no Brasil/ em vez de cabelos trançados teremos turbante de
Tutancâmon/e nas cabeças se enchem de liberdade/ o povo negro pede igualdade/ e
deixemos de lado as separações/ê faraó/ esse é Olodum rebentão/ ê faraó/ batendo
na palma da mão. (Faraó).30

Em meio a todas as possibilidades que a música negra baiana despertava, o que a Bahia
queria era bem mais do que lançar um hit dançante e envolvente. Seu repertório de ritos afro,
misturados a vários outros elementos da cultura negra falava de uma sentimentalidade e de uma
relação atlântico-negra que dialogava com fortes elementos da mistura de povos, religiões e culturas
que apontasse para as pigmentações sedimentares que o momento revelava ante o olhar nacional
através de seus traços afro-brasileiros. O que estava sendo gestado era o despertar para um discurso
secularmente silenciado pela casa-grande, onde o negro assumia um papel subalterno na história e
agora gritava entre sons, ritmos e canções a negritude brasileira negada pela imposição de uma
cultura branca eugenista31, numa perspectiva de que as influências de uma cultura popular e de

30
Letra e música disponíveis em: <https://www.letras.mus.br/olodum/86952/>.
31
O Estado brasileiro após a proclamação da República (1889), empreendeu uma política de branqueamento.
Considerava que era necessário eliminar os "quistos étnicos" (seriam inadequados ou indesejáveis aos interesses do
governo os negros, indígenas, orientais, judeus, isto é, os "não-brancos"). Isso só iria começar a partir do momento em
que chegaram os primeiros imigrantes ao Brasil, que vieram obedecer aos aspectos econômicos imediatos dos
latifundiários. Assim, as intervenções para o melhoramento das gerações futuras, ferem os princípios da Declaração
do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, onde diz que a "liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que
não prejudique a outrem". Com isso, é perceptível no discurso dominante que negros, índios, orientais, judeus etc,
28

massas fosse também o reconhecimento da cultura de setores da sociedade que foram


invisibilizados pela imposição das mãos dominadoras.

4.3 Terceira Faixa: O samba-reggae navegando no mar da história

A movimentação musical e rítmica gerada nos anos de 1980 teve no samba-reggae a


porta de saída da proposta constitutiva da música negra baiana. Criado por músicos baianos, entre
eles Neguinho do Samba32 e Mestre Jackson, que fizeram escola na difusão da nova ordem musical
de Salvador, o samba-reggae nasce de uma associação com o reggae jamaicano, outra vertente de
um canto negro que se harmoniza com a proposta dos tambores e percussões que gesticula para um
estilo rítmico de extensivas possibilidades sonoras e estéticas. Do seu nascedouro se anuncia:

Em 1988, a mídia anunciava que em Salvador os blocos afro haviam inventado o


samba-reggae, um novo ritmo que mesclava samba duro, também chamado de
baiano, com o reggae jamaicano, transformando a música em bandeira política com
força suficiente para barganhar cidadania para o negro baiano chamando atenção
para a vitalidade da cultura negra na Bahia. (GUERREIRO, 2000, p. 21)

A sonoridade percussiva do samba-reggae preservou no seu batuque íntima ligação


rítmica com o candomblé e os sambas urbanos, com o reggae jamaicano e variados ritmos
caribenhos e latinos, mas é no espaço sagrado do primeiro, onde vai buscar inspiração, linguagem e
gramática discursiva que o faz comunicar-se com o espaço sagrado para o profano sem perder os
sentidos que lhe são próprios, onde se revelam as verdadeiras práticas africanas que se adaptou e
harmonizou-se a uma vasta cultura musical construída a partir de fontes originais dos terreiros de
Salvador. Sua alteridade ganha uma dimensão política de movimento afro-baiano e dinamicamente
foi apropriado pelos blocos de trio elétrico promovendo um deslocamento do sagrado ritualístico

eram considerados "raças inferiores". Por isso, foi posto em prática o branqueamento da nossa sociedade. Portanto,
tais posturas e condutas foram muito mais que apenas discriminação ou preconceito racial, foi a violação dos direitos
humanos. (JUNIOR, José Lima Dias. http://amantesdeclio.blogspot.com.br/2010/09/o-governo-vargas-e-as-ideias-
eugenistas.html. Acesso em 15 de março de 2016).
32
O consenso em torno do nome de Neguinho do Samba se deu quando a mídia passou a veicular o samba-reggae,
apontando-o como criador do estilo em 1987[...]. Talvez tenha sido a intimidade com a música ritual do candomblé
que levou Neguinho do Samba a participar como percussionista de uma série de entidades carnavalescas da Bahia.
Apesar do consenso construído em torno de Neguinho do Samba e do papel fundamental que ele teve, não se pode
creditar a um só músico a invenção do samba-reggae. (GUERREIRO, 2000, p. 58 et seq.)
29

para o espaço profano do carnaval. Nesse entendimento Goli Guerreiro aponta relatos históricos que
se reportam ao fim do século XIX e início do século XX onde nos diz que:

A música e a dança como parte integrante do cotidiano dos negros e a presença do


candomblé observável no dia a dia, nos cantos (onde ofereciam serviços), nas lojas
(onde habitavam coletivamente), ou nos terreiros (onde cultuavam seus deuses).
Além de atividades ligadas ao candomblé, os negros elaboravam ainda uma série
de divertimentos que também envolviam estas artes [...] A presença de
instrumentos percussivos e os ritmos que acompanhavam danças e cantos, tanto no
espaço sagrado quanto no profano, indicavam uma certa indefinição entre as
manifestações lúdicas e religiosas. (2000, p. 67)

O samba-reggae surge para a Bahia e sua produção musical contemporânea, como uma
ferramenta não só de ritmos que alimentava uma estética afro pop e que se define pela sonoridade
mestiça que a baianidade da cor produziu nos primeiros acordes dos seus repertórios de protestos e
manifestações que compuseram o cenário musical de Salvador. Seus elementos de difusão
transcendeu o âmbito do carnaval, materializou-se dentro de um projeto estético-político-ideológico
e estenderam-se para um trabalho de recuperação, preservação e valorização da cultura de origem
africana com interseção direta nas suas matrizes e demais estilos da música brasileira, seja o samba,
o reggae ou o samba-reggae, para o qual se buscava afirmar-se em meio as suas identidades negras.

[...] o que vem sendo chamado aqui de identidades negras não é um conjunto de
características intrínsecas (ou naturais) aos negros e negras mas, engloba múltiplas
noções de pertencimento construídas na tensão entre um processo histórico de
marginalização do negro na sociedade brasileira e as inúmeras respostas, propostas
e alternativas apresentadas por estas populações como as canções registradas nos
discos de Reggae e outros estilos que compõem os repertórios da música negra
produzida nas cidades que investigamos aqui. (MOTA, 2006, p. 9).

O que se verifica nesse processo de definições das identidades negras no Brasil,


interpretando o negro afro-brasileiro como sujeito histórico protagonista da formação do processo
civilizatório nacional, é a insistente negação das suas tradições, entre muitas, a religião, isso porque
o negro trás nos seus referenciais miscigenados entre as religiões africanas e o catolicismo brasileiro
o reconhecimento e os sentidos de pertencimento que se apresentam na literatura sacro-africana,
onde a língua banto e a sudanesa se incorporam, como ponto de interseção entre a música negra
profana e o candomblé, como ponto de partida e de chegada para a consolidação da sonoridade
afro-brasileira. O ijexá, um desses ritmos, abre espaço para uma diversidade musical que se mistura
30

para dar consistência a uma musicalidade gestada para a emancipação de uma população urbano-
periférica não branca e discriminada, que se sustenta contextualmente como referência fundamental
para reivindicar esses espaços musicais.

A ioruba, outra língua de fortes elementos na construção das letras e canções que
compõem a musicalidade baiana, além de exercer forte influência no modo de falar baiano, é perene
sua presença na linguagem litúrgica do candomblé. Tradicionalmente os blocos afro trazem em suas
denominações referências diretas do ioruba, e em menor medida, do bantu: Muzenza, Ilê Aiyê 33,
Ara ketu, Olodum34, Malê Debalê, são alguns dos principais blocos afro que incorporam nas suas
estruturas musicais e nas suas estéticas sonoro-discursivas os encargos de uma identidade afro-
baiana na qual as tradições africanas dialogam com as imagens sentimental e existencial do negro
brasileiro, seus deuses e religiosidade. Uma das mais autênticas bandas da Bahia – Reflexu’s -
incorporou, como a um orixá, a gramática dos terreiros de candomblé e invocou os Deuses Afro-
baianos35 para sua obra musical:

Que mistério tem os negros/só à malícia dos olhos podem ver/na igualdade de uma
raça ara-ketu/na harmonia de cantar o Ilê- Aiyê/a deusa negra tem o cabelo
duro/suas tranças são primitivas ao Ijexá/ como dizia mãe preta/e o nosso pai
Gangazumba/essa canção que vem dos babalorixás/à abedeló oriô/abadeló temi
cojarê babá/iaô ebomim no pedido pra Xangô/lembra que o mundo tá no fim/pois
Exú já avisou/Iansã e Oxumaré com agogô e dois ganzais/saúdam Iemanjá a
menininha do Gantois/Oxossi chama Oxalá para ninar nos braços Oxum/e a
menininha do Gantois babalorixás/Iansã Egum/ai pai de todos os orixás/pede para
mãe Oxum, guardar menininha do Gantois/à abedeló oriô/abedeló temi cojarê babá
(Deuses Afro-Baianos).36

Outro ritmo de grande expressão e que oferece significativa contribuição para a


elaboração percussiva que se fundem no samba-reggae é o afoxé37, cordão carnavalesco que vai
beber na tradição dos orixás e se relaciona com o universo do orixá Oxum; pela sua intrínseca
relação com esta tradição é também identificado como ―candomblé de rua‖, ao apresenta-se

33
Ilê Aiyê em ioruba significa “Casa de Negros”, ou “Abrigo de Negro”, ou ainda “Terreiro de Negros”. (grifo nosso)
34
Olodum é um termo diminutivo de Olodumaré, que em ioruba significa “Deus dos Deuses”. (Id.)
35
BRITO, Waldir e TROPICÁLIA, Ythamar. Banda Reflexu’s: Serpente negra, Ed. Tapajós. EMI-ODEON, (P)1988. 1 LP, faixa
1. Lado “A”.
36
Letra e música disponíveis em: <https://www.letras.mus.br/reflexus/1440186/>.
37
O etnólogo Edison Carneiro observou alguns afoxés, na década de 30, como o Otum Obá de África, A Folia Africana,
A Lembrança Africana, Lutadores de África e Congos de África, entre outros. Sobre a origem dos afoxés, o autor
comenta que “esse estranho cortejo de negros que tocam atabaques e entoam canções em nagô, em louvor das
divindades do candomblé”, são manifestações mais modestas dos préstitos de negros que se apresentavam nos
primeiros carnavais, já sob a República. (GUERREIRO, 2000, p. 71)
31

cantando cantigas em iorubá. Até o final da década de 1890 os afoxés imprimiram forte vitalidade
pela sua relação direta com as tradições afro que dialogavam com os espaços de devoção da cultura
ioruba, depois enfrentam significativo declínio nos anos de 1920 e ressurgem na década de 194038
quando é incorporado ao bloco afro, Afoxé Filhos de Gandhi, fundado em Salvador aos 18 de
fevereiro de 1948.

Mas vai ser nos autos de coroação dos reis do Congo, que o afoxé baiano se origina. José
Ramos Tinhorão39 vai resgatar em ―Os Sons dos Negros no Brasil‖40 uma série de fatos culturais
que estão na base da formação de uma música brasileira popular e negra, onde será possível
encontrar nestes primeiros sons ecos dos cantos de trabalho dos escravos no campo, nas cidades e
nos rituais religiosos trazidos da África pelos escravos que, mesmo reprimidos pelas autoridades,
vão hibridamente se fundindo numa diversidade sonora que misturados a ritmos e coreografias
adentravam os espaços dos brancos estabelecidos sob suas expressões sonoras e danças. Num
primeiro momento este estabelecimento transita entre a população mestiça com forte sonoridade em
ritmos como a polca, o lundum e o fado.

A dimensão que se deu o alcance do samba-reggae na intensa variação que seu


batuque41 possibilitou, exprime a estreita ligação existente entre o candomblé e os sambas urbanos,
revelando-se uma fonte original de inspiração e intimidades rítmicas. Estas ferramentas, associadas
ao amadurecimento da técnica percussiva e ao encontro da mídia como canal de difusão do novo
ritmo em crescimento percussivo-musical, faz do samba-reggae o ritmo dos blocos, a identidade
musical da Bahia, o pivô de um processo de canalização cultural pelas matizes africanas em
interação com a música popular do Brasil.

4.4 Quarta Faixa: Música Negra Popular Brasileira

38
LOPES, N. A Presença Africana na Música Popular Brasileira. Espaço Acadêmico nº 50, UFU, Uberlândia, julho, 2005.
39
O autor desenvolve diversificadas pesquisas onde dialoga com fontes que possibilitam vários registros, encontrados
desde em cartas dos padres jesuítas, pinturas de Frans Post, poemas de Gregório de Matos ou relatos de viajantes
estrangeiros, estes e outros, documentos raros, que flagram a gênese de uma cultura que, apesar de conter
elementos africanos e europeus, se apresenta genuinamente brasileira (grifo nosso).
40
TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças e folguedos: origens. São Paulo: Editora 34,
2012 (3ª Edição).
41
O termo batuque foi empregado para todas as manifestações de um repertório musical acompanhado de
percussão, que se relaciona diretamente com a dança e o canto, e tem origem na África. No século XX, aparece a
definição de “batuque” para identificar os candomblés. Segundo alguns analistas, o “batuque” é o precursor do
samba... (GUERREIRO, 2000, p. 67-68).
32

Ao se introduzir nos espaços da tradicional e difundida música brasileira, a música negra


baiana conseguiu um feito que a MPB não atingiu no seu contexto narrativo, que foi o de associar
um ritmo popular a um conteúdo de denúncia social explícita, sem metáforas, direta, de cor e de
classe. Tamanha ousadia chamava atenção para um olhar crítico quanto às condições que uma
parcela expressiva da população – a negra - estava condicionada historicamente, além de afirmar
sem censuras uma negritude que aflorava do seu canto com a mesma intensidade com que se
cantava em tom de um despertar antirracista:

Sou negro sim/não tenho vergonha não/desde a abolição/que eu luto/Luz, luz do


cometa luz/reluz sobre nossas cabeças/A minha cor/não deve influir no nosso
amor/porque o negro é nascido da flor/Vá diga pra eles/ Que a cor da pele/ É limpa
demais/Contra opressão/e o desnível social/e a discriminação geral.(Sou Negro
Sim). 42

A Música Negra Popular Brasileira produzida na Bahia a partir de 1980 conseguiu


articular musicalmente diversificada leitura do quadro social em torno do racismo de cor e de classe
no Brasil, elaborando seus resgates históricos, africanizantes e temas antirracistas. Sua construção
denunciadora vai além das fronteiras dos embates políticos nacionais e traz para reflexão paralela à
nossa condição social análises conjunturais que são confrontadas com o espaço local em movimento
para compreender as múltiplas violências que o negro vive não só no Brasil, mas também na África
e nas américas. Ao reivindicar a libertação do líder sul-africano Nelson Mandela, a música
―Libertem Mandela‖43 cantada pela Banda Reflexu’s expõe a internacionalização da solidariedade
afro-brasileira frente à libertação e afirmação do povo negro em todo o mundo:

Batalhas e conflitos/vítimas de sofrimento/sou eu negro bonito/desabafando meus


sofrimentos/de geração em geração/que é descriminado o negão/e hoje somos
cultura/nosso grito de força é a nossa união/tire, tire o chapéu/e levante a mão/diga
não ao apartheid/e liberte Mandela nosso grande irmão. (Libertem Mandela).44

Sem divagações e com explícita contestação ao Sistema, a literatura musical que compõe
os elementos indenitários afro traz para o foco da questão tons instigantes que divergem da tão

42
LIMA, Eliana. Central Africana. Ed. Mundo Musical. Plug. (P) 1988. 1 LP, faixa 2. Lado “A”. Letra e música disponíveis
em: <https://www.youtube.com/watch?v=Zyq8TiXF9xo>.
43
TROPICÁLIA, Ythamar e ZULU, Rey. Banda Reflexu’s da Mãe África. Ed. Tapajos, EMI-Odeon, (P) 1987. 1 LP, faixa 3.
Lado “A”.
44
Letra e música disponíveis em: <http://www.vagalume.com.br/banda-reflexus/libertem-mandela.html>.
33

propalada democracia racial, incutida também na música, apropriando-se do samba como


referencial de ritmo e estilo popular e envolvimento social. Ao contrário da MPB45 classificada num
padrão a mais em relação aos demais gêneros musicais, o samba46 se localiza neste contexto
aprisionado a uma dinâmica de afirmação estigmatizado como música de negro, porém,
veladamente apreciado sem maiores constrangimentos que aponte para qualquer vestígio de
preconceito musical, pelas camadas brancas da população, principalmente no carnaval do Rio de
Janeiro47, onde os desfiles das escolas de sambas promovem a festa carnavalesca com explícitos
elementos negros para as elites do Brasil e do exterior.

Nos anos 1980, esta literatura sustentava-se sobre um discurso sonoro-musical que
desmistificava aos sons dos tambores não só a falta de democracia plena em todos os sentidos dos
direitos políticos e civis dos cidadãos brasileiros, mas contribuía também para elaborar na esteira
dos conflitos acumulados por anos de negação da cor, ou pelas barreiras que o termo raça48 e seus
símbolos impôs, novas formulações afirmativas que se contrapunham a tendenciosa concepção de
branqueamento também na música nacional, para o qual se apelava para uma desqualificação
estética e se amparava numa ideia popularesca de consumo dessas práticas musicais e culturais que
não se misturavam aos conceitos de música de qualidade e/ou cultura popular, o que deixa explícito
um apartheid musical que busca se estabelecer.

45
Do ponto de vista comercial, a MPB era importante para a indústria fonográfica na medida em que seus ouvintes
mais fiéis se concentravam nas faixas de consumo mais ricas e informadas da população. Geralmente os artistas da
MPB tinham maior liberdade de criação e podiam contar com maiores recursos das gravadoras para gravar seus
discos, pois mesmo vendendo menos do que as ditas canções e gêneros mais populares, geravam muito lucro às
gravadoras, pois eram produtos mais caros e sofisticados, sendo vendidos a um preço maior. Além disso, a MPB
movimentava um importante mercado de shows ao vivo. Todos esses fatores faziam a máquina comercial funcionar
em torno deste gênero para além das suas virtudes propriamente estéticas ou políticas. (NAPOLITANO, 2014, p. 124).
46
O samba é, em termos rítmicos, descendente do ludum, que segundo José Ramos Tinhorão, teria dado origem ao
maxixe. É um gênero musical muito variado que engloba manifestações como samba de roda, samba chula, samba
duro, os diversos sambas cariocas, entre outras variações que se particularizam regionalmente em todo o país.... As
batucadas, embaladas pelos sambas, são uma forma heterogênea, uma mescla dos diversos estilos que construíram
uma estética musical negra. (GUERREIRO, 2000, p. 79, 80).
47
Ao estudar as relações culturais e raciais que se organizam em torno do carnaval, Ana Maria Rodrigues no livro,
Samba negro, espoliação branca, salienta a perda de referência lúdica e indenitária à medida que o carnaval popular
foi sendo inserindo no universo da cultura de massa branca e de classe média. O aspecto propriamente musical fica
em segundo plano, mas o livro nos fornece elementos indispensáveis para entender as relações sociais, empresariais e
culturais estabelecidas ao redor do carnaval. (NAPOLITANO, 2006, p. 147).
48
[...] raça não é uma categoria biológica ou genética que tenha qualquer validade científica[...]. Raça é uma categoria
discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles
sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco
específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura dos cabelos, características físicas e
corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro[...]. Nos últimos anos,
as noções biológicas sobre raça, entendidas como constituídas de espécies distintas (noções que subjaziam a formas
extremas da ideologia e do discurso nacionalista em períodos anteriores: o eugenismo vitoriano, as teorias europeias
sobre raça, o fascismo) têm sido substituídas por definições culturais, as quais possibilitam que a raça desempenhe
um papel importante nos discursos sobre nação e identidade nacional. (HALL, 2003, p. 62-63).
34

A história da música popular no Brasil tem sido situada em termos de relações


étnicas e de classe, sendo pensada geralmente a partir do triângulo clássico das
relações raciais: seria fruto do contato entre europeus, africanos e ameríndios [...].
Enquanto a maioria dos brasileiros admite que muito da nossa música tenha raízes
africanas e europeias, rejeita as contribuições da cultura ameríndia [...]. Escalas e
formas europeias, junto com ritmos e estilo de interações instrumentais africanos
são o que se percebe num primeiro contato com a música brasileira popular.
(ULHÔA, 1997, p. 8).

Porém é nesse conjunto de injeções que se fomenta um bem engendrado discurso que
define o público consumidor no mercado da música entre classes a partir da sua condição social e
econômica. Esta classificação de classe que varia entre o público ―A, B e C‖, revela a conduta que
expõe o víeis separatista do que se impõe conceber o que deva ser música regional, música baiana,
música brega, ritmo popular e erudito. Estigmatiza-se o que é música boa e música ruim, música de
branco e música de preto, como se não fossem, todas as sonoridades daí extraídas, parte do todo que
é a música popular brasileira, ou música brasileira popular.

Outra questão que se coloca em termos de conceituação é música ―popular‖ ou


música ―brasileira‖. É comum a junção dos dois adjetivos na expressão ―música
popular brasileira‖. No entanto ao observarmos as práticas referentes a esta
representação vamos perceber certas ambigüidades, pois ―música popular
brasileira‖ se distancia tanto da noção de música popular enquanto música
tradicional, de natureza essencialmente oral e artesanal, quanto da noção de música
popular enquanto música de massa. ―MPB‖, uma rubrica incorporada pela indústria
musical para se referir a um segmento do mercado, reflete uma prática e uma
concepção por um lado contraditória (popular, mas não comercial, mesmo sendo
produzida e distribuída como bem de consumo; próxima às ―raízes‖ rústicas
regionais, mas ―sofisticada‖ e ―elaborada‖) e por outro excludente (nem toda
música popular feita e consumida por brasileiros é ―brasileira‖). (ULHÔA, 1997, p.
1).

Tal afirmação vem corroborar com a desmistificação classificatória do que é música


―popular‖ ou música ―brasileira‖ nos seus conceitos fundamentais, rompe com o elitismo e o
classismo que impõe características que identificam estilos e gêneros de acordo com as
possibilidades e alcances de consumo e classe social. A música negra, a música de terreiro, de raiz,
nunca foi conceituada no espaço da música popular brasileira, no seu sentido mais pedagógico,
primeiro porque nunca foi acolhida para tal propósito, segundo, ao ser recepcionada como gênero
musical, ficou à margem do samba, e sofria as desconstruções ideológicas que o branqueamento
musical exigia para que pudesse adentrar aos espaços e salões da casa-grande da música nacional.
35

Qual o lugar do samba? Como ser nacional, portanto não comunitário, e ao mesmo
tempo proteger-se da descaracterização sociocultural? Esse dilema é inseparável da
construção discursiva e musicológica que pauta a tradição do samba (e da música
popular no Brasil), sendo seu primeiro elemento constituinte. A experiência social
e musical do samba, à medida que o gênero foi alçado à condição de música
brasileira por excelência, remete-nos a uma vivência coletiva, comunitária, e a um
ativismo étnico, cujas origens encontram-se na experiência da senzala, mas
também se projeta sobre a modernidade urbana e a sociedade capitalista [...]. A
crítica mais comum ao samba tinha um fundo racista e estava ligada à sua
vinculação à tradição negra e africana. Seria preciso, no mínimo, depura-lo do
―africanismo‖, que se traduzia no uso do batuque, ou seja, dos instrumentos da
orquestra de percussão das escolas de samba. (NAPOLITANO, 2007, p. 19 et seq.).

O samba-reggae surge desse confronto, faz da música negra popular uma possibilidade
de comunicação sonora e discursiva, pois vai beber em uma pluralidade de ritmos negro-mestiços
onde suas linguagens ordenam componentes étnicos das mais variadas procedências e rompe com o
pragmatismo classificatório que, tendenciosamente faz questão de relegar à música negra baiana
condições pejorativas e até excludentes, esforçando-se, pela crítica e pela subjetividade com que
interpretam seus discursos, para mantê-la fora do ambiente padrão de reconhecimento, engessada
pelo arcabouço discriminatório que elege o que é ou não música brasileira e popular, se está ou não
apta a ser incorporada pelos referenciais padronizados da cultura nacional nos moldes da sua
musicalidade de acordo com o que sua estética e literatura musical oferecem como valores da
própria realidade que se fazem representar.

Para oferecer um alento a corriqueiros vestígios de contrassenso conceitual sobre o


conflito em tese, recorro ao conceito de cultura popular Gramsciniano, em especial na sua
afirmação de que ―[...] o que distingue o canto popular, no quadro de uma nação e de sua cultura,
não é o fato artístico, nem a origem histórica, mas seu modo de conceber o mundo e a vida, em
contraste com a sociedade oficial. Nisto — e tão-somente nisto — deve ser buscada a
―coletividade‖ do canto popular e do próprio povo‖. (GRAMSCI, 1968, p. 190).

Se a música negra baiana ao introduzir a gramática da cultura popular também


discriminada em seu cotidiano de preconceitos, buscava caminhos de afirmação entre seus signos e
as massas para promover olhares que rompessem com anos de segregação e afunilamento das
desigualdades de classe e de cor, perceber o que essa intervenção gramático-cultural queria propor
como esteira de alargamento dessa interpretação político-musical é fator estratégico que vai além de
ritmos e canções, sua busca exige o estabelecimento de uma resistência de luta secular que, se antes
36

negava o chicote e a senzala, agora nega o preconceito e a discriminação. Esta gramática da cultura
popular negra, segundo Domingues em consenso com Stuart Hall:

Estabelece conexões sinuosas (e complexas) entre os signos de origens africanas e


aqueles produzidos no bojo das dispersões em diáspora ao longo dos séculos, de
modo que a apropriação, cooptação e rearticulação seletiva de ideologias, códigos
culturais e instituições europeias, conjugados a um patrimônio africano [...] (2011,
417), conduziram a inovações lingüísticas na estilização retórica do corpo, a
formas de ocupar um espaço social alheio, a expressões potencializadas, a estilos
de cabelos, a posturas, gingados e maneiras de falar, bem como a meios de
constituir e sustentar o companheirismo e a comunidade. (2003, p. 343).

Ao reivindicar igualdade social, liberdade de expressão e seu lugar na história, o


movimento musical negro que nasceu na Bahia nos anos 1980 estava exatamente manifestando-se
pelo acolhimento de suas práticas e simbologias culturais onde repousavam as religiões afro, seus
orixás e terreiros, seus sons e a musicalidade que lincava as conexões de suas tradições a um projeto
estético-político maior de resgate e preservação da cultura de origem africana em harmonia com a
afro-brasileira. Estas práticas culturais utilizam o que Michel de Certeau chamou de ―tática‖, ou o
reaproveitamento simbólico ou ressignificação de símbolos que na aparência denotam a aceitação
dos padrões hegemônicos, mas que na realidade representam outros valores 49 e, para a comunidade
negra baiana, os valores que surgiam dessa musicalidade proclamavam novos discursos e práticas
afirmativas para o estabelecimento de um amplo papel do negro na vida cotidiana do país e no
reconhecimento da sua africanidade. Seus elementos mais simbólicos podiam ser identificados nas
possibilidades de reinvenções e resistências, uma prova disso foram às táticas de reocupação negra
do carnaval de Salvador:

Nos anos de 1980, no bojo do movimento pelos direitos dos negros, surgem em
Salvador os blocos afros, com o objetivo explícito de reafricanizar o carnaval de
rua da capital baiana. Usando temas que buscam uma conexão direta com a África
e a afirmação da negritude, essas agremiações criaram uma nova estética. Além
disso, foram responsáveis pela estruturação de uma nova linguagem musical, que
se expressa no estilo comercialmente conhecido como axé-music, transformado em
produto de domínio nacional (LOPES, 2005, p. 3).

Nesta mesma compreensão, como acentua João José Reis, em meio à história de lutas
dos blocos afro, na busca de resgatar as ricas tradições da cultura negra local, era preciso ―exaltar

49
Cf. CERTEAU, 1994.
37

publicamente a beleza da cor, celebrar os heróis afro-brasileiros e africanos, para contar a história
dos países da África e das lutas negras no Brasil, para denunciar a discriminação, a pobreza, à
violência no dia-a-dia do negro‖. (1993, p. 189 et seq.), para isso, construíam-se estratégias de
mobilização e reivindicação como fortes elementos de trazer para o debate as pautas afirmativas das
populações negras explicitando as desigualdades sociais das comunidades baianas.

4.5 Quinta Faixa: A estética musical afro-baiana

A estética propriamente reconhecida da música negra baiana é mais uma construção da


sua identidade do que elemento de status definidor de sua conduta meramente imagética. Os
instrumentos percussivos, a ginga sonora, a simbologia das danças e coreografias, e os grafismos
espalhados pelo cenário (a rua), onde o corpo é uma das ferramentas dessa construção, são sintomas
das mestiçagens que buscam a valorização do negro como sujeito formador de sua própria condição
história.

Há uma indumentária africana bastante presente nas articulações que submete a estética
musical negra aos sentidos de pertencimento para além da música como peça oral dessa
verbalização que se sustenta na materialidade orgânica que seus espaços representam. Entre o
sagrado e suas derivações mais profanas, o carnaval, por exemplo, instrumentos percussivos
dialogam com rituais do candomblé e suas narrativas míticas e seus orixás, onde a história do povo
africano, a diáspora negra e seus heróis, transcendem numa mistura de possibilidades sonoras que
cada nota musical revela como um canto novo de liberdade, dor, revolta, resistência e devoção. Ser
afro no Brasil é desmaginalizar-se, é assumir sua condição protagonista histórica e fazer disso uma
manifestação afirmativa.

Repiques, timbales, timbau, berimbaus, não são meros instrumentos que compõem a
estética percussiva de um bloco ou de uma banda afro, seus sons repercutem mais do que as
canções, elaboram uma linguagem para o corpo que se expressa por um discurso antirracista,
aparece não na afirmação do preconceito, mas no enfrentamento aos estereótipos e na junção das
muitas cores que formam a variedade étnica do público que consume seus discos e ocupam as ruas
de Salvador no carnaval. Os aspectos rítmicos em movimento em cada batida dos tambores
percussivos, são recursos narrativos que não terminam em sua própria linguagem técnica, mas se
ampliam no plano imaginário e dele para o existencial do negro na busca do encontro entre o afro-
brasileiro e as diversas Áfricas que se perderam no cruzamento do atlântico negro. Para isso,
38

primeiro era preciso sair dos guetos e das sombras do preconceito e quebrar os grilhões divisionistas
de classe, de cor e poder dominantes no Brasil que impera desde os tempos da Colônia portuguesa,
e a música foi o meio transformador que permitiu que o grito de liberdade da senzala musical
ecoasse através do canto negro a partir de Salvador para as paradas de sucesso de todo o país.

Ao compreender o peso simbólico dessa estética musical negra, vozes inconformadas das
periferias e das regiões pobres do país como a Norte e a Nordeste que não enxergavam as
ferramentas e expressões da cultura afro-brasileira na vida padronizada da nação, começavam a
assumir o papel de protagonistas para uma luta que se utiliza de um período em que a música negra
baiana afirma-se adotando um víeis de contestação ante o ambiente político nacional que também
vivia seu momento de enfrentamentos diretos pela volta da democracia e por mais direitos sociais.
Esta contestação musical ocorre não somente no campo da música, mas no próprio comportamento
das comunidades negras assentadas nos guetos de Salvador e nos seus espaços de produção e
difusão cultural. A permanente mobilização das comunidades afro-baianas nesse período,
associadas ao combate ao preconceito e ao racismo, possibilitou trazer à tona, pela exposição que se
alcançou na grande mídia nacional, questões étnicas e sociais que buscavam a valorização do negro
em termos estéticos, históricos e culturais, reivindicando a superação da invisibilidade de suas
demandas reprimidas que se escondiam por trás da insistente retórica da democracia racial.

Nesse ensejo, a Banda Reflexu’s dá segmento a essa tarefa de consolidar no terreiro do


samba-reggae a tonalidade necessária para tirar o grito negro da periferia e transformá-lo numa
expressiva celebração da cultura e da cor, para isso, a música ―Canto da Cor‖50 fala dessa busca
pela consolidação das identidades negras51 no campo político-cultural que a negritude baiana
situava-se para começar a (des)construir por todo o país, uma imagem de ―raça‖, tradição e história
que até então não estava na ordem do dia da música popular brasileira. Nesse ensejo uma estética
afro que tinha movimento, linguagem própria, conteúdo histórico, corpo percussivo e sonoro, além
de fortes referências culturais, estava sendo atualizada através de um discurso musical antirracista
que se politizava no chão da praça, na busca de uma identidade pela valorização do negro e suas
comunidades organizadas.

A simbolização do negro africano/Recorda o manto sofrido marcado de dor/E o


negro batendo na palma da mão/Nesse canto/Este canto que em sua origem cintila

50
MOISES e SIMÃO. Coleção Meus Momentos: Banda Reflexu’s. EMI Music, 1989. 1CD, faixa 8.
51
Em outras palavras, os (as) agentes-sujeitos que protagonizam os processos identitários estão envolvidos num
processo demarcadamente dinâmico, em grande sentido situacional, e sobretudo historicamente situados. (MOTA,
2006, p. 9).
39

a cor/Ilê Aiyê/É a nossa cor/Negro a dizer/ É a nossa cor/E o negro se farta do fruto
da sua beleza/Atribui-se a ele também está sua firmeza/Ilê Aiyê/Sendo a própria
razão/Que a razão eu não posso explicar/Ecoa até o firmamento/Este nosso cantar.
(Canto da Cor).52

O teor ideológico de raça que narra às inquietações dos movimentos negros baianos
através dos blocos afro e suas vertentes musicais, falam abertamente da necessidade de rompimento
com a cultura preconceituosa branco-hegemônica que nega as imagens e mestiçagens da nação e
fabricam seus heróis a partir das narrativas que compõem à história pelo olhar insípido dos
vencedores, protagonizada por peças discriminatórias bem elaboradas como o mito da democracia
racial onde se omite o papel histórico do negro no Brasil, suas lutas, resistências e revoltas, suas
íntimas relações com as matrizes africanas, principalmente na música e na religião, numa tentativa
de impor os ideais do pensamento eugenista53 descolorir o corpo, desafricanizar sua cultura e negar
sua história.

É nessa inquietação que uma revolta musical ecoa dos tambores do Olodum e do canto
negro da Banda Reflexu’s para reivindicar seu lugar social e político traduzido pela emergência do
discurso contestador em questão como dinâmica para mostrar que o negro não foi indiferente aos
seus ideais libertadores, nem a seus heróis:

Retirante ruralista/lavrador/nordestino Lampião/salvador/pátria sertaneja,


independente/Antônio Conselheiro/em Canudos presidente/Zumbi em
Alagoas/comandou/exército de ideais/libertador/Sou mandinga Balaiada/sou
Malê/sou Búzios, sou revolta/ arerê/ô Corisco, Maria Bonita mandou te chamar/é o
vingador de Lampião/êta cabra da peste/pelourinho Olodum, somos do Nordeste.
(Revolta Olodum).54

Valeu Zumbi, um grito forte dos Palmares/correu serras, céus e


mares/influenciando a abolição/Zumbi valeu!/hoje a Vila é kizomba/é batuque,
canto e dança/jongo e maracatu/vem Menininha pra dança no Caxambu/ô, ô, negra

52
Letra e música disponíveis em: <http://www.vagalume.com.br/banda-reflexus/canto-da cor.html#ixzz3tv1oeKZ6>.
53
As ideias eugenistas no país surgem a partir do momento em que se aprofundaram o debate, advindos de setores
da elite, sobre o tipo de imigrante considerado desejável para preencher as lacunas do território nacional. A política
de branqueamento no Brasil está presente desde o período da Monarquia. "Entre 1869 e 1870, o Conde de Gobineau
esteve no Brasil e manteve intensa amizade com o imperador D. Pedro II, discutindo com ele a abolição e a política de
imigração. Curiosamente, previu para menos de duzentos anos o desaparecimento dos habitantes brasileiros,
condenados pelo crescente processo de miscigenação". A palavra eugenia deriva do "grego eu (bom) e genesis
(geração). Pretensa ciência fundamentada nas ideias de Francis Galton, conhecido pela descoberta das impressões
digitais. Galton defendia a necessidade de o Estado formular um plano com o objetivo de selecionar jovens aptos a
procriarem os mais capazes. Propunha a escolha de uma boa raça (a mais pura) ou o bom nascimento, chegando ao
extremo de defender a esterilização de doentes, criminosos, judeus e ciganos. (TUCCI, 1994, p. 22).
54
OLISSAN, José e SÉRGIO, Domingos. The Best Of Olodum. Ed. Tapajós. Gel Continental, (P)1992. 1 LP, faixa 2. Lado
“A”. Letra e música disponíveis em: <https://www.letras.mus.br/banda-mel/759102/>.
40

Mina, Anastácia não se deixou escravizar/ô, ô, Clementina, o pagode é um partido


popular/Sacerdote ergue a taça/convocando toda a massa/nesse evento que
congraça/gente de todas as raças/numa mesma emoção/esta kizomba é nossa
constituição/que magia/reza Ageum e Orixá/tem a força da cultura/tem a arte e a
bravura/e um bom jogo de cintura faz valer seus ideais/e a beleza pura dos seus
rituais/quando a lua de Luanda vai iluminar a rua/nossa festa é nossa sede de que o
apartheid se destrua. (Kizumba).55

A canção - A Força do Ilê, ou Brilho Negro56 - é mais uma correspondente desta


provocação de abertura dos olhos da nação a se mostrar a partir da sua imagem. A Bahia canta um
negro que, mesmo em busca de paz, não foi nem é passivo, e que luta insistentemente para quebrar
as correntes das senzalas invisíveis que ainda se proliferam no preconceito e na discriminação de
cor, no engessamento político dos direitos humanos dos não brancos, e no apequenamento da sua
importância histórica e cultural. O grito de liberdade do povo negro que se estampa nas canções
produzidas nos espaços culturais de Salvador vai além da leitura musical que exprime contestação e
reivindica uma nova condução para o acolhimento do negro como intérprete e protagonista da
construção das identidades da nação brasileira, seu eco encontra ressonância em um chamado
estético-ideológico que cobra a recuperação da alto-estima da população negra, esquecida
historicamente e reduzida à mão-de-obra escrava no passado e hoje, ainda explorada e discriminada
nos espaços de uma elite dominante segregacionista.

Que brilho é esse negro/ Me diz que é o da paz/me diz que é o do amor/ Me diz que
eu quero saber/ Esse brilho negro/ É o brilho da paz/ É o brilho do amor/ É à força
do Ilê Ayê/ Tira, tira, tira o negro da senzala/ E dá liberdade/ Liberdade do Ilê. (A
Força do Ilê/Brilho Negro).

O resgate desse ―brilho negro‖ está pautado na percepção do olhar de si mesmo como
sujeitos históricos, nas linguagens musicais articuladas com seus mecanismos de representações da
realidade a partir de seus códigos internos subjetivos.

O foco de defesa de um maior espaço para as expressões da cultura e da história afro-


brasileira na música negra encontrou no samba-reggae o ponto de fusão antropofágica57 entre seu

55
RODOLFHO. JONAS. VILA, Luiz Carlos da. Coleção Meus Momentos: Banda Reflexu’s. EMI Music, 1990. 1CD, faixa 5.
Letra e música disponíveis em: < https://www.letras.mus.br/martinho-da vila/287389/>.
56
LARANJEIRA, Paulinho. Ilê Aiyê. Letra e música disponíveis em: < https://www.letras.mus.br/ile-aiye/1512519/>.
Acesso em 12 de janeiro de 2016.
57
A antropofagia como conceito etnomusicológico pode ser útil na compreensão dos processos de contato e fusão
musicais, ao introduzir a categoria “prestígio”, que sinaliza que as pessoas ou grupos sociais fazem escolhas discretas
dos elementos expressivos que pretendem incorporar à sua identidade. (ULHÔA, 1997, p. 13).
41

fenômeno estético-discursivo e seu ritmo popular; ambos se comunicam com uma realidade
expressa de descontentamento político-social que ganha repertório original de comunicação direta
com um público que se identifica como sujeito social diante a realidade narrada nos conflitos
expostos pelo seu próprio meio musicado.

A dimensão das expressões culturais contidas na musicalidade que passou a ser


produzida no centro de difusão da cultura negra baiana tornou-se uma forma de militância que
buscava um referencial de negritude aliada a um discurso antirracista que expressava nas letras das
canções uma leitura atual das condições excludentes que os negros enfrentavam no Brasil e no
mundo. Com a música ―Protesto Olodum‖58, a Banda Mel surgia como porta-voz deste propósito:

Força e pudor/Liberdade ao povo do Pelô/Mãe que é mãe no parto sente dor/E lá


vou eu/Declara a nação: Pelourinho contra a prostituição/Faz protesto,
manifestação/E lá vou eu/Aids se expandiu/E o terror já domina o Brasil/Faz
denúncia, Olodum, Pelourinho/E lá vou eu/Brasil liderança/Força e elite na
poluição/Em destaque o terror, Cubatão/E lá vou eu/Brasil Nordestópia/Na Bahia
existe Etiópia/Pro Nordeste o país vira as costas/E lá vou eu/Moçambique ê! Por
minuto um homem vai morrer/ Sem ter pão nem água pra beber/Mas somos
capazes/O nosso Deus a verdade nos trás/Monumento da força e da paz/E lá vou
eu/Desmond Tutu/Contra o Apartheid na África do Sul/Vem saudando o Nelson
Mandela/O Olodum. (Protesto Olodum). 59

Protesto Olodum foi uma das músicas mais tocadas no carnaval de 1988, a canção
denunciava no seu contexto mais explícito, a crise social por que passava a região do Pelourinho 60
na cidade de Salvador, onde a pobreza e a desestruturação urbana faziam desse lugar, um gueto
onde seus habitantes, quase todos negros, com uma tendência quase umbilical para a arte da música,
eram reféns da exploração de um turismo exótico, como se ali fosse um shopping de conveniências
para brasileiros e estrangeiros endinheirados explorarem prostitutas, traficantes e outros
personagens do submundo do descaso social.

58
TATAU e MOÇAMBIQUE, Paulo. The Best Olodum. Editora: SBK Songs. Gel Continental. (P)1992. 1 LP, faixa 2. Lado
“B”.
59
Letra e música disponíveis em: <https://www.letras.mus.br/olodum/424391/>.
60
Local cujo nome faz referência à coluna de pedra que servia para castigar negros escravizados é um ambiente de
fortes expressões arquitetônicas com visíveis conotações barrocas, envolto pela paisagem das ruas e ladeiras (as
conhecidas ladeiras do Pelô). Preservando um estilo colonial de igrejas e casarões, por um bom tempo havia perdido
referencial na cultura e na economia de Salvador e, até os anos 1980, sobrevivia estigmatizado como espaço de
“marginais”, prostitutas e padecia com altos índices de violência. Nos fins dos anos 1980, depois de reformas e
investimentos sociais e culturais, transformou-se em símbolo de negritude. (grifo nosso).
42

Ao pedir ―Liberdade ao povo do Pelô‖, o Olodum trazia publicamente um debate social


que, ao invés de falado nos gabinetes dos poderosos do lugar e que obviamente depois seria
esquecido, era cantado de boca em boca e, com isso, ganhava a devida dimensão a que se propunha
como ferramenta mobilizadora contra o descaso governamental e o abandono ao qual a comunidade
estava historicamente relegada. Despertava aí um "Pelourinho contra a prostituição". Com a música
Protesto Olodum estava lançada as base-manifesto, política e estética do samba-reggae.
43

5- CONCLUSÃO: PENÚLTIMO BATUQUE

Existe um grito, um batuque, um gingado que ainda ecoa das senzalas sociais do Brasil
que não se calaram, nem calarão. Este batuque vem de um cruzamento de vários enfoques históricos
que buscou na música seu elemento mais expressivo para acolher o negro num lugar de destaque no
cancioneiro nacional. Tirar esta música negra da ―cozinha‖ e reposicioná-la, sob as luzes da
história, no palco central da cultura popular e dá voz a um canto negro secular que ganhou ritmo,
forma, estrutura musical e estética sonoro-percussiva, foi uma das conquistas das manifestações
musicais dos anos de 1980 em Salvador, na Bahia.

Objetivamente, as práticas e relações dessas manifestações se deram sob as regras e


convenções que envolvem os seus atores e consumidores, desde a entrada dos seus objetos de uso,
até a difusão do produto final de suas expressões musicais em movimento. Isso nos ajuda a
perceber, dentro da musicalidade produzida, elementos para recuperação e visibilidade das culturas
negras como também dos seus atores, sujeitos históricos envolvidos nos seus espaços de difusão
como: músicos, compositores, arranjadores, produtores, percussionistas, dançarinos, interpretes e
divulgadores (mecenas) que se reconhecem cultural e historicamente e formulam sua musicalidade
de acordo com as dimensões que se dá o seu estabelecimento.

Os anos 1980 requer um mergulho mais intenso no seu interior, principalmente no campo
da música negra popular para se compreender os significados do samba-reggae na alto-estima do
negro baiano e nas conquistas recentes quanto ao seu papel divulgador de uma musicalidade que
nasceu de uma força negro-mestiça de sons e culminou com o axé-music, gênero musical afro-
baiano-brasileiro que deu forma sonora aos sons dos tambores para narrar a diáspora negra da
canção.

O axé-music construiu suas próprias ferramentas dialéticas de fusões sonoras onde a


linguagem fala aos ritmos dos tambores que transcenderam as fronteiras do país, indo beber no
berço esplêndido da África mãe gentil, nas falas e dialetos negros que fizeram da língua ioruba a
gramática mais usual para falar de liberdade, negritude, história e religiosidade, elementos estes, por
séculos negados pelos que quiseram fazer da música brasileira uma casa-grande de ritmos onde os
negros não passavam da ―cozinha‖.

O axé-music já nasceu rotulado pela cor do preconceito musical, era algo que, mesmo
rompendo com alguns estereótipos, principalmente com a rigidez camuflada dos corpos docilizados,
44

tentou-se fazê-lo parecer com gênero de terceira categoria musical, difícil de evoluir para categorias
mais privilegiadas da tão conceituada Musica Popular Brasileira (MPB), que era onde desfilava uma
casta de pensadores musicais do Brasil que, apesar de estarem sempre dialogando com as batidas do
samba, colocavam em alguns quesitos a música negra no rol de última categoria do mercado
fonográfico nacional. Se era para branquear o Brasil, que se fizesse também com a música, caminho
natural para esconder da nação suas origens e seu processo histórico de estruturação dialógica
natural. No entanto, superando qualquer expectativa contraria as intenções elencadas, seu repertório
consolida-se nacionalmente, rompe tabus e preconceitos, reelabora fusões musicais e coloca
Salvador no foco das manifestações populares, o diferencial era o contexto daquilo que se falava,
para quem e com quê.

Se na MPB falava-se por uma gramática universitária, elitisticamente politizada,


contestadora do Regime verde-oliva em vigor naquele momento, elaborando peças musicais que
narravam um ideal novo de democracia e musicalidade para a matriz brasileira, no outro lado do
―disco‖ uma música cadenciada pelos tambores do samba-reggae desencadeava hibridamente uma
leitura de expressão e movimento, fosse musical, estético ou corporal, que transbordava para um
contexto que fazia das lutas de classes seu território de manifestações onde o negro era o narrador
de si mesmo, autor e intérprete da própria narrativa. Era o despertar não só do movimento musical
afro-brasileiro dos anos de 1980, mas sua tradução sem metáforas nem vícios de linguagens.

Mais do que proclamar um grito de liberdade, a música negra baiana também não se
permitiu escravizar pela doutrina dominadora da indústria fonográfica sudestina, capitalista e
seletiva, que olhava para a Bahia como um gueto de construções musicais uniformes (por usar
somente a percussão) um espaço regional de pouca relevância para a tal ―linha evolutiva da música
popular brasileira‖ e até mesmo para o mercado consumidor. Lerdo engano! Com a explosão dos
primeiros acordes que narravam a diáspora negra musical do Egito a Bagdá, da Jamaica ao
Pelourinho, do Haiti a Salvador, da Bahia ao Rio de Janeiro, os olhares da Nação despertaram para
as possibilidades sonoras que o novo som trazia em meio a um gingado que embalava corpos,
reocupava as ruas nos carnavais e contagiava multidões.

Em meio a este encontro de nações e de cores que a música negra reuniu para além do
verde amarelo ufanista, suas letras de protesto adotavam uma pedagogia narrativa que falava de
uma nação negra dentro de um país que se pretendia branco, não menos pobre que sua consciência
histórica, excludente, ignorante do seu próprio processo indenitário original; uma nação ainda
deslumbrada com o seu mito fundador que se apoiava numa perspectiva de desconhecimento que
promove um corte intencional na herança cultural de aceitação e inclusão das raízes africanas do
45

seu povo – o negro – e alimentava, insistentemente, uma falsa retórica de um país que gozava de
expressiva e incontestável democracia, se não a política, mas a racial, o que dava sensação a certos
sabores nada tragáveis para a recepção de um racismo velado que se escondia por trás do homem
cordial e sua versão de negação do processo histórico brasileiro narrado nas músicas e canções que
animavam os salões da burguesia dominante, e isso era falseado narrando musicalmente um Brasil,
brasileiro, a mulata tipo exportação, uma terra de samba e belezas mil.

Se para essa elite dominante que secularmente se apropriou das engrenagens do poder e
delas ditou o ideal brasileiro, onde era preciso cantar um país pacificado pelas suas próprias
misturas de ―raça‖ e de cor, ausente de ódios e preconceitos, e que nada havia a ser reparado aos
que, pela sua cor e pelo seu passado de sujeitos sem categoria e até mesmo sem alma, nada tinham a
reivindicar; para os negros era preciso desmistificar um Brasil fantasiado em letras e canções que
proclamavam um país tropical, abençoado por deus e bonito por natureza; necessitava-se fazer o
retorno simbólico pelo Atlântico Negro, reencontrar-se nas entranhas da Mãe África e de lá
repensar a mentalidade construída pelos seculares discursos formadores não negros e reinventá-los
em forma de canções para reposicionar positivamente suas lutas, revoltas e heróis nas fronteiras
culturais da vida nacional.

Os contornos estéticos dessa música negra vão ter seu ápice nos anos de 1980
adentrando até meados dos anos de 1990, quando o desenvolvimento estilístico da música brasileira
popular ganha dimensões estruturais que diversifica o repertório nacional, fundindo estilos e
rompendo algumas resistências. Há muito de Luiz Gonzaga em Carlinhos Brown e muito de Raul
Seixas em Luiz Caldas. Se Caetano Veloso defendeu uma linha evolutiva para a MPB numa
perspectiva de dotá-la de uma linguagem mais rebuscada de classe e de cor, foi no berço do
Tropicalismo que ele deu a guinada necessária para romper com dogmas musicais deterministas que
engessavam a música popular e ignoravam suas possibilidades sonoras; depois do Tropicalismo, a
música brasileira se tornou mais popular. O pagode de Partido Alto de Zeca Pagodinho e a rítmica
percussiva de Neguinho do Samba se cruzam na mesma dimensão musical, dialogam com as
massas consumidoras que adentraram ao mercado de discos e shows promovidos pelo status
conferido a música negra popular a partir da ascensão percussiva afro-baiana, que não se fechou em
si mesma, nem renunciou as suas origens mais expressivas, como os ritmos do candomblé, o
compasso do reggae e a cadência do samba.

Porém, um fato precisa ser destacado diante todas as possibilidades conquistadas pelo
movimento axé-music: A ascensão da música negra com a estética e a matriz elaborada nos anos de
1980 não garantiu sua consolidação sem que não sofresse com as descaracterizações inerentes das
46

imposições do mercado consumidor manipulado pela indústria fonográfica. A partir da década de


1990, grupos de pagodes em ascensão que evocavam a ancestralidade africana como: Raça Negra,
Negritude Júnior, Suingue da Cor, Os Morenos, Katinguelê, entre outros, não surgiram da mesma
matriz do pensamento político negro engajado da década anterior. Seus repertórios apontam mais
para um produto cada vez mais vazio de uma proposta negra autêntica, caminham por uma leitura
musical subalterna, imediatista e sem nenhuma relação com etnicidade. O discurso musical
antirracista, afirmativo, pró-negro, sumiu das letras e canções do repertório musical em evidência e
passou-se a cantar um negro ainda mercantilizado, embranquecido pela proposta neoeugenista de
uma democracia racial que persiste ainda hoje nas bases do racismo antinegro no Brasil.

As estratégias de desafricanização patrocinadas por esse racismo antinegro ainda


permanente dividem, intencionalmente, coisas indissociáveis, como o samba e o candomblé, o baião
e o maracatu, a música religiosa cristã e as não cristãs (estas bem menos recomendáveis para a
salvação da alma), o reggae e o rock, o samba duro da Bahia e o pagode carioca, a praça Castro
Alves e a Marquês de Sapucaí, o frevo pernambucano e a guitarra elétrica de Armandinho-Dodô e
Osmar, a música popular e suas manifestações dos terreiros, da capoeira, dos festejos juninos, do
carnaval e das micaretas, confundindo, com isso, a música, o popular e o brasileiro.

Se 30 anos depois de lançada sua base manifesto com a canção ―Protesto Olodum‖ o
axé-music perdeu força criativa, desviou seu discurso político-ideológico para os anseios
impositivos de outras praças de consumo, para atender as necessidades comerciais do mercado
fonográfico e as regras midiáticas do show buzines, hoje controlado quase que hegemonicamente
pela gravadora Som Livre, das Organizações Globo, focos libertários de resistência surgem em
vários segmentos que se estabelecem como espaços de contestação da ainda complexa situação
social ao qual o negro está submetido no Brasil.

O desafio daqui por diante, sobretudo para a historiografia, a partir da introdução da lei
10.639/2003 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ―História e Cultura Afro-Brasileira‖, será o
de promover um cruzamento crítico do papel do negro na história, na cultura, na música e na
sociedade brasileiras, averiguar fontes, abordar caminhos para (des)construir mitos, preconceitos,
repensar afirmações e abordar novos discursos.

Diante as possibilidades que emergem na nova ordem musical brasileira, o Rap e o Funk
se estruturam a partir desses discursos, surgem do (des)encontro de negação percebido nas
conflitantes disputas políticas, culturais e de ocupação de espaço entre as lutas de classes que estão
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bem mais explícitas e definidas no país, principalmente nas periferias das grandes cidades. Os
elementos desses novos estilos urbano-periféricos vão se utilizar de discursos políticos nada novos,
porém reformulados por batidas rítmicas e por uma faixa etária da população (os jovens negros) que
atualizam a forma afro-brasileira de ser, reconhecendo-se na vida cotidiana da nação para reagir,
como sujeitos sociais marginalizados pelos desencontros e desequilíbrios da divisão do poder e da
riqueza nacionais, a qualquer tentativa de retrocesso do pouco que já foi conquistado.

Se nos anos 1980 a Bahia entendeu e capitalizou estas intenções e transformou o samba-
reggae numa proposta que despertou o olhar do Brasil urbano, para enxergar os negros, sua cultura
e suas reivindicações para além da Lei Aurea e das escolas de samba made in Brasil, os atuais
ritmos e estilos musicais negros que se estabelecem hoje nos discursos e linguagens sonoras dos
movimentos hip-hop e nas culturas populares diversas, em nada se diferenciam da secular
necessidade anterior de se promover a ocupação da casa-grande da história.

Que toquem os tambores! Axé obá!


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