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Alfredo Moura1
1. Introdução
1
Professor Dr. da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. www.alfredomoura.com. E-mail:
alfredo.moura@ufba.br.
2
Agatha Christie. O Segredo De Chimneys. (trad.) Anna Maria Martins. São Paulo: Ed. das Américas, 1974,
254p. (p. 12).
3
Localizado em Salvador, Bahia, “O Mercado das Sete Portas foi construído em 1940 pelo empresário Manoel
Pinto de Aguiar e ganhou este nome em função das suas sete entradas de acesso. A família Pinto de Aguiar,
ainda dona do espaço, assistiu ao crescimento da cidade e ao surgimento dos grandes mercados que se tornaram
fortes concorrentes das feiras livres, que hoje assistem ao declínio de sua clientela”. Disponível em:
<http://www.culturatododia.salvador.ba.gov.br/vivendo-polo.php?cod_area=8&cod_polo=122>. Acesso em: 17
abr. 2020.
2. Um pouco do cenário musical na Salvador dos anos 19704
Os Jormans, banda que atuou de 1968 a 1972, era formada por estudantes.
Sua instrumentação, que no início correspondia ao modelo vigente (guitarras, baixo,
bateria), recebe, depois, a inclusão do teclado. E, mais tarde, a adesão de alguns
músicos de sopros6. Mas a banda, que não tocava apenas dentro do seu próprio
círculo de amizades, fazia a festa nos bailes de carnaval pela cidade, geralmente,
tocando em clubes. O músico que quisesse angariar algum trocado tinha que tocar
nos clubes da sociedade abastada, nas boates, bares, restaurantes, até nas casas
da luz vermelha.
O grupo Leif’s, por incrível que possa parecer, no seu auge, conseguia manter
seus músicos apenas com o cachê da TV Itapoan. Nos clubes, a prática remunerada
da música ocorria regularmente. No “Cirex”, no forte do Porto da Barra, Clube do
Exército. No “Cabana da Barra”, na Afonso Celso, perto do edifício Oceania, da
Marinha. E em Água de Meninos, no Clube 6, também do Exército.
4
Para escrever este tópico contei com a contribuição do amigo João Maurício Matos de Almeida4. Agradeço à
sua memória (de elefante) sobre música popular e indústria fonográfica. Maurício é conhecido no music
business como “Cabeludo”, “Maurício Cabeludo”, ou “Maurisony”.
5
Entrevista concedida por ALMEIDA, João Maurício Matos de. Entrevista I. [19.04.2020]. Entrevistador:
Alfredo Moura. Salvador, 2020. Informação verbal pelo Whatsapp (sem gravação de áudio). Manuscrita no
Caderno de Pesquisa nº. 1.
6
Na entrevista I, Maurício Cabeludo lembra que os músicos de sopros eram geralmente recrutados dos quadros
militares. Este diálogo (entre música e militarismo), pela sua ancestralidade, é encarado, nas ciências musicais
(e nas estratégicas), como algo corriqueiro.
ser gravado ao vivo, às terças-feiras, os calouros inscritos eram ouvidos e uma
triagem eliminava os menos capacitados. Nas quintas-feiras, faziam o ensaio geral
para o programa, que ia ao ar todos os sábados.
A banda que fazia a parte musical do programa chamava-se Os Leif’s. Surgida
no final dos anos 1960, Os Leif’s foi uma banda formada por quatro músicos: Leif
Erickson Lico (voz e guitarra), Pepeu Gomes (baixo)7, Jorginho Gomes (bateria) e
Carlinhos Gomes (guitarra). Maurício Cabeludo comenta:
Entre um calouro e outro, os Leif’s, que podiam executar seu próprio repertório,
resolveram cantar, ao vivo, uma canção de Jorge Ben. Porém, sem comunicar a
ninguém, decidiram modificar o arranjo da referida canção, enxertando-a com um
trecho de outra, o que serviria como uma espécie de introdução. A letra dizia
aproximadamente assim: “menina dos peito duro, dos peito que é uma dureza, quem
me dera ser criança, pra mamar nessa beleza”. Esses versos aparecem em
cirandas11 e em aboios12. Todavia, quando a censura proibiu que cantassem a
música, o estrago já estava feito. O programa era ao vivo.
Quem mandava no “Poder Jovem” era a jornalista Dometila Garrido13,
jornalista, que chefiou, de 1961 a 1975, a produção dos programas da TV Itapoan14.
7
Pepeu Gomes já havia tocado baixo nos Minos, anteriormente. Ele entra nos Novos Baianos e, depois, segue
para carreira solo.
8
Entrevista concedida por Maurício Cabeludo, ao autor, no dia 22 de abril de 2020.
9
Ariel Fagundes, editor da Revista online Noize.
10
Disponível em: <https://noize.com.br/compacto-leifs-pepeu-gomes-jorginho-gomes-antes-do-novos-baianos-
psico-br-fabricio-bizu/#1>. Acesso em: 22 abr 2020.
11
“menina do peito duro, nunca vi tanta dureza, quem me dera ser criança, pra mamar nessa beleza”. Disponível
em: <http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/noticia.php?c=212869>. Acesso em: 22 abr 2020.
12
“oi, menina dos peito duro, são duro por natureza, quem me dera ser criança, pra mamar nessas beleza”.
Disponível em: <https://genius.com/Nana-vasconcelos-aboios-lyrics>. Visitado no dia 22 de abril de 2020.
13
Dometila Cerqueira Garrido do Val (1933-2019) foi uma importante jornalista, produtora e empreendedora
baiana, pioneira das redações baianas, tendo participado ativamente na cultura da Bahia.
14
Disponível em: <https://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/2036836-morre-jornalista-dometila-garrido-
uma-das-pioneiras-nas-redacoes-baianas>. Acesso em: 23 abr. 2020. Também disponível em:
<http://www.missnews.com.br/historia/morre-aos-85-anos-dometila-garrido-primeira-mulher-a-trabalhar-como-
reporter-na-bahia>. Acesso em: 23 abr. 2020.
Irritada com a ousadia do grupo, Dometila15 foi implacável na sua decisão. Os Leif’s
foram demitidos e substituídos pelos Jormans.
No final dos anos 1960, Os Leif’s estavam em ascensão. Leif Erickson Lico
conseguira dar ao grupo uma boa visibilidade. Haviam firmado contrato com a
gravadora Beverly, tinham shows na agenda, tocavam em Salvador, Feira de Santana
e outras cidades. Leif Erickson Lico diz, na entrevista, que os demais integrantes do
grupo decidiram por votação que o nome da banda seria Leif’s. Lico participa do show
“Desembarque dos Bichos no Dilúvio Universal” (no Teatro Vila Velha) e dos dois
últimos shows de Gilberto Gil e Caetano Veloso, antes da viagem para a Inglaterra16.
Lico gravou no primeiro disco dos Novos Baianos17. É seu o arranjo de Ferro na
Boneca, “com aquela sugestão da atmosfera de rock com calipso”18. Ao abrir espaço
em seus programas, a televisão foi responsável por revelar artistas locais, que vieram
a fazer sucesso depois. Isso antecipa a postura das rádios, que apoiaram o axé
music, incluindo massivamente suas canções nas programações.
O agito cultural dos anos 1970 tem raízes nas ações anteriores do reitor Edgar
Santos19. E o tropicalismo se elabora a partir dos ingredientes dos anos 1950. Entre
os autores que abordam os tropicalistas, Carlos Calado (1997) vê no tropicalismo uma
revolução musical. Getúlio Mac Cord (2011), por sua vez, considera que a tropicália
é um caldeirão cultural. Outros autores complementam a literatura sobre a música na
Salvador dos anos 1970. Luiz Galvão (1997), por exemplo, fundador e letrista dos
Novos Baianos, faz um relato da história do grupo. Moraes Moreira (2007) conta, em
poesia, suas aventuras com esta banda. E Dadi Carvalho (2014)20, da primeira
formação dos Novos Baianos (depois, do grupo a Cor Do Som), dá a sua visão dos
fatos.
Panela e Garrafão é o nome de uma dupla de sambistas, cuja música, segundo
Gerônimo Santana, “se assemelhava ao estilo de Batatinha; desse perímetro de
compositores baianos”21. Esta dupla gravou na Polygram. Na época, o representante
desta gravadora era o Sr. Raimundo Carvalho. Seu escritório ficava no Largo de São
Bento e ele era responsável pela divulgação de diversos artistas, sobretudo, artistas
internacionais, como Eric Clapton e Cat Stevens. Maurício Cabeludo lembra que
15
Disponível em: < https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/morre-aos-85-anos-a-jornalista-e-produtora-
dometila-garrido/>. Acesso em: 23 abr. 2020.
16
Antes de viajarem para Londres, Caetano e Gil fizeram um show no Teatro Castro Alves, e, outro, mais curto,
uma semana antes, no Clube Português, na Pituba.
17
Disponível em: <https://immub.org/album/e-ferro-na-boneca>. Acesso em: 2 jun 2020.
18
Leif Erickson Lico, entrevista no dia 02 de maio, pelo Whatsapp. Gravado em mp3 no programa Logic.
19
Edgar Santos foi o primeiro reitor da Universidade da Bahia, atual Universidade Federal da Bahia. Fundou os
cursos de artes da referida instituição.
20
Dadi Carvalho vem atuando em diversos segmentos da música popular brasileira. Atualmente é parceiro da
cantora Marisa Monte.
21
Entrevista pelo Whatsapp com Geronimo Santana, realizada pelo autor, no dia 24 de abril de 2020.
os discos um dia antes, fez uma cara séria e disse para o artista:
‘olha, eu vou te dar, mas, pelo amor de Deus, amarra essa p....’22.
22
Entrevista pelo Whatsapp com Maurício Cabeludo, realizada pelo autor, no dia 25 de abril de 2020.
23
Esses festivais continuam com o Olodum. A canção Faraó é fruto desses eventos culturais, esses festivais das
comunidades afrobrasileiras. E Paulinho Camafeu é o compositor que faz fervilhar a inspiração dos músicos dos
estúdios WR que constroem o molde que viria a ser usado para estabelecer a prática da execução de material
local nas rádios pelo estado das Bahia.
24
Expressão usada na Bahia para designar vendedores de balas, dropes, chocolates e gomas de mascar que
andam pelas ruas, em festas populares, eventos, e jogos esportivos, comerciando seus produtos.
25
Canção disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fjjd2u_kSWY>. Acesso em: 24 abr. 2020.
Em 1970, a gravadora RGE lança o primeiro disco dos Novos Baianos, “É Ferro
na Boneca”. Um som balançado que resulta da integração entre músicos. Uma
poética particular, que traduzia em música sua leitura da sociedade. O som dos
“Novos Baianos influencia o axé music. A “Cor do Som”, o Trio Elétrico Dodô & Osmar,
Gilberto Gil e Caetano Veloso, também influenciam, mas, não só:
26
Alfredo Moura. Música Popular: arranjo como dimensão do compor. Salvador: UFBA, 2017. Tese de
doutorado. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/24656>. Acesso em: 15 jun 2020.
27
De acordo com Luiz Galvão (p.17), o show “Barra 69”, realizado no dia 20 de junho de 1969, em Salvador,
teve a participação do “Leif’s”, grupo de Pepeu, Jorginho, Carlinhos e Lico.
28
Antonio Risério. Carnaval Ijexá. Salvador: Corrupio, 1981. 156 p.
29
Paulo Cesar Miguez de Oliveira é docente e atual vice-reitor da Universidade Federal da Bahia.
30
Paulo Miguez, A Emergência Do Carnaval Afro-elétrico Empresarial. Artigo apresentado no IX
Congresso Internacional da BRASA – Brazilian Studies Association, evento realizado na Tulane University, em
New Orleans, Louisiana, USA, de 27 a 29 de março de 2008. Disponível em:
<http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Paulo-Miguez.pdf>. Acesso em: 19 maio 2020.
que constrói e dá suporte ao exuberante mercado de bens e serviços simbólico-
culturais que caracterizam a cidade nos últimos [trinta e sete] anos” (idem, p. 99). O
que começa como flerte, no entrudo e seus limões de cera, passa a namoro-no-sofá,
nos bailes dos grandes clubes. E o noivado acontece sob o olhar dos primeiros trios
elétricos. A racionalidade da indústria vai dar à luz ao que Miguez denomina como
“carnaval-negócio” (p. 100). Três aspectos contribuíram para o culminar do enlace da
festa com o negócio, aponta Miguez: criação/invenção do trio elétrico (1950);
emergência dos blocos afro (1975); aparecimento dos blocos de trio (1980). Além de
outros fatores como: ações empresariais variadas da iniciativa privada (editoras,
gravadoras, emissoras de rádio, espaços para grandes shows, etc.); avanços
tecnológicos; e ações político-culturais. A união festa/negócio é um processo
articulado, uma conjunção de elementos que amplia o mercado do carnaval baiano.
A música no Brasil tinha duas fases: a carnavalesca (verão) e a junina
(inverno). Para cada uma dessas fases havia um repertório correspondente.
Salvador, como outras capitais, viria a ser influenciada pelo carnaval do Rio Janeiro
e suas marchas de sucesso. Salvador, que tem funcionado como forte polo cultural,
influencia seu entorno. Por isso, Miguez afirma que os músicos baianos, e os
residentes no estado, “compõem a trilha musical da cidade e do seu Recôncavo”. E,
no interior da Bahia, muitas bandas faziam a música circular, tocando sucessos,
trazendo novidades, fazendo a festa no interior. Eram as bandas de baile.
Organizações administradas por empresários de visão, que ofereciam condições
privilegiadas, na altura, para a prática musical.
Os músicos deveriam estar prontos para tudo, para qualquer imprevisto. Durval fala
sobre um episódio que ficou marcado na sua memória:
31
Paulinho Caldas e Durval Caldas são irmãos de Luiz Caldas. Uma perspectiva próxima como a desses dois
irmãos, nos dá uma boa visibilidade do terreno. Paulinho Caldas, que canta e toca vários instrumentos, tem
participado ativamente das gravações nos estúdios da Bahia. E Durval foi o irmão que orientou Luiz Caldas nos
seus primeiros passos na música e o incentivou no mundo das bandas de baile, no começo dos anos 1970.
Quando tou cantando, a cigana, rapaz, subiu no palco, me deu um
tabefe nos peitos, e disse: ‘aqui a gente não gosta dessas músicas
não, a gente gosta é de Moraes Moreira’. Aí, eu olhei pra trás, era
uma banda já afiada, e a gente puxou: ‘dos sete mares e por todos os
lugares [...] você me dava a vida, foi uma dádiva da natureza’ [Coisa
Acesa, de Moraes Moreira]. Aí, acalmou a ciganada, tudo dançando.
Isso, antigamente, bem antes do axé.
O Mach Five era uma banda muito arrojada. O dono da banda, Italmar Meireles, era
empreendedor. Investia em equipamentos, instrumentos e manutenção. Diz Durval:
Italmar Meireles investia em boas instalações para os ensaios da banda. Durval diz:
32
Entrevista com Paulinho Caldas. Realizada por Whatsapp em: 2 jun 2020
33
O empresário Orlando Campos foi um pioneiro dono de trio elétrico, empreendedor e visionário. Grande
nome do carnaval baiano, divide, com Dodô e Osmar, a coroa do Rei Momo.
34
Disponível em: <https://www.discogs.com/Trio-Elétrico-Tapajós-Jubileu-De-Prata/release/4894697>. Acesso
em: 2 jun 2020.
bem. Orlando me colocou logo num hotel, direitinho. Viajava pro Rio,
no voo da Transbrasil, tomando suquinho de laranja ralo com um
sanduichinho. Bons hotéis no Rio de Janeiro. Comia bem, nunca
passei nenhum sufoco. Tenho muito respeito a Orlando Campos.
Depois desse período, e das gravações dos discos com o Trio Tapajós, Luiz Caldas
e Paulinho ingressaram na WR.
Acordes Verdes, então, nasceu com o lançamento da canção Axé Pra Lua, de
Luiz Caldas. E esta banda teve três formações diferentes. A primeira é a do Trio
Elétrico Tapajós, que ficava mudando o tempo todo, não podendo ser considerada
regular. “Todo o dia tinha um músico diferente tocando, era uma época em que o trio
não tinha bateria. A bateria foi entrando aos poucos”, diz Paulinho. A segunda
formação era com Toinho Bibap (baixo), João Batera (bateria) e Luís Percussão37
(percussão). Paulinho Caldas cantava com Luiz. Nesta formação, tocaram muito em
trio elétrico. “É uma formação do Acordes Verdes muito verdadeira”, afirma Paulinho:
35
Dissertação de mestrado, sob a orientação do Professor Dr. Milton Moura. Disponível em:
<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/31189/1/DISSERTAÇÃO%20Silva%2C%20Antonio%20César%20Si
lva.pdf>. Acesso em: 5 jun 2020.
36
A terceira formação da banda Acordes Verdes é composta pelos músicos: Alfredo Moura (arranjo e teclados),
Carlinhos Brown (percussão), Carlinhos Marques (baixo), Cesinha (bateria), Luiz Caldas (voz, guitarra e
arranjo), Paulinho Caldas (vocal), Silvinha Torres (vocal) e Tony Mola (In memoriam) (percussão). Luiz Caldas
chegou a gravar um compacto com a terceira formação da banda Acordes Verdes, mas optou por seguir a
carreira solo, a partir do disco Magia.
37
Conhecido também como Luís Congueiro.
formação dos Acordes Verdes era bem rock’n’roll. Luiz queria um jeito
de aparecer o nome dele. Nunca escondeu isso de ninguém. Ele
criou o Acordes Verdes porque foi uma oportunidade que teve de
formar uma banda. Naquela época, se o artista tivesse músicos de
boa qualidade lhe acompanhando, ficava mais forte para brigar com o
dono do trio. O dono do trio simplesmente queria você ali, como
artista, obedecendo a ele. Luiz quis fugir disso. Foi aí que surgiu o
nome, Acordes Verdes. Luiz deu um jeito de botar este nome na
canção [na gravação de] Axé Pra Lua”38.
E continua:
Luiz só foi músico mesmo, pra valer, na carreira dele, quando tocou
na terceira formação do Acordes Verdes [a que grava o LP “Magia”,
na WR] porque todo mundo era, digamos assim, bem instruído
musicalmente. Carlinhos Marques é um cara que entende de
harmonia, sabe o que tá fazendo. Cesinha, excelente músico [...].
Voltando a Luiz, ele só foi músico nessa época que tocou com vocês.
Mas aí ele já queria, já tinha projetado na cabeça dele, ‘Luiz Caldas’.
Ele sempre quis isso.
Desde quando dava seus primeiros passos na música, Luiz Caldas já mostrava
liderança. “Ele queria ser, ele. Com apenas sete anos Luiz cantava pela primeira vez
para uma plateia”. Diz Paulinho:
Para ele foi um tempo bom. Mas foi só para arranjar um gancho para
se projetar. Nunca foi interessado em ter uma banda. Participou
desta, fez esta daí, porque toda a banda em que chegava para tocar
ele era líder. Então, não tinha como ser uma banda. Ele chegava no
lugar e acabava, pela autoridade dele, musical, botando todo mundo
de joelhos. Mas, a ideia dele sempre foi a de ser Luiz Caldas.
É, o axé tem muitas histórias. Numa delas, com Abelardo Barbosa, mais
famoso como o apresentador Chacrinha, constatamos o seguinte. No seu programa,
“Cassino do Chacrinha”, este grande comunicador contribuiu, não só, para o estouro
da canção Fricote, de Luiz Caldas e Paulinho Camafeu, mas para o sucesso da
canção A Roda (de Sarajane, Robson de Jesus e Alfredo Moura), além de muitas
outras canções de sucesso. Conta Paulinho:
38
Na gravação do disco do Tapajós, Luiz Caldas, aproveita para mandar “um abraço dos Acordes Verdes e de
Humberto Teixeira”, para o rei do baião, Luiz Gonzaga. o. do LP do Trio Tapajós. É a primeira vez que o nome
da banda é citado. A canção O Beijo, também de Luiz Caldas, tem “Acordes Verdes” na letra.
sabem tocar. Aí, se lascam. Ficam sempre dependendo de um
maestro, de um músico, e tal. Aí, vão sofrer muito.
Como alguém, que fosse abençoado por Chacrinha, poderia não se tornar rei? Foi o
que aconteceu. Virou rei do axé. E se Luiz é o rei, Rangel é Richelieu.
Wesley Rangel procurou, logo, reunir um elenco de músicos. No começo, a
WR contava com Toninho Lacerda (tecladista)39, irmão do pianista Carlos Lacerda,
com Carlinhos Marques (baixo), e com outros músicos40. Rangel, então, contrata um
guitarrista paulista, Luiz Milani, para dirigir musicalmente seu estúdio, para por ordem
na casa. E a tendência de Milani, a providência que tomou foi a de confrontar o
establishment, o status quo, os músicos que já vinham gravando no estúdio (como
Toninho Lacerda, que havia inclusive negociado uma remuneração mais justa para
os tecladistas)41. Neste confronto (São Paulo tinha uma realidade mais selvagem que
a da Bahia, cujo mercado era incipiente), Luiz Milani optou por se apoiar numa
segunda leva de músicos, que vinha conquistando espaço nas gravações daquele
estúdio, através de audições em processos de seleção (como no caso do baterista
Cesinha e de Alfredo Moura).
Carlinhos Marques (baixista) consegue, ao mesmo tempo, estar bem com
Toninho Lacerda e com Luiz Milani, e “sobrevive” à transformação que se operou na
WR, a partir disso. Foi uma ruptura. Músicos de uma geração sendo substituídos por
músicos de outra. Mas o namoro durou pouco. Inseguro, Luiz Milani não consegue
tomar as rédeas da situação e tenta avançar num segundo confronto, com o segundo
grupo de músicos. Mas, é infeliz, tendo que voltar para São Paulo. O fato é que,
quando Luiz Caldas aparece e Rangel vê que a coisa funciona com os músicos “da
casa”, é o fim para Milani. E Luiz encontra uma banda já pronta servi-lo.
A banda já tocava em todas as gravações do estúdio e acompanhava outros
cantores. Quando os shows da Acordes Verdes, com Luiz Caldas, começaram a
agradar o público, com shows lotados, Rangel se une a Roberto Santana, e Luiz
Caldas, como parceiros fonográficos. A banda da WR, então, Acordes Verdes, passa
a acompanhar Luiz Caldas, experimentando o sucesso da canção Fricote.
As gravações da WR começaram com os jingles e spots publicitários. Era o
que mantinha o fluxo de caixa da empresa. O músico gravava o jingle, tinha uma
tabela pronta para ser preenchida. Tudo organizado, com assinatura. E recebia o seu
salário, no fim do mês. Eram anos de terrível inflação. As pessoas saiam correndo
dentro dos supermercados, atrás do funcionário que trocava os preços. Nesses anos
inflacionários, a banda Acordes Verdes emerge. Sua percussão seguia os a dos
Novos Baianos e a de Ary Dias, da Cor do Som. Estes personagens já haviam curtido
o festival de Woodstock, conhecido Carlos Santana e idolatrado Jimi Hendrix.
Dessa maneira, o Acordes Verdes estabelece um padrão nos arranjos das
suas gravações. É esse padrão que vai permitir o crescimento das execuções, nas
rádios, das músicas gravadas na WR. Cresce, primeiramente, nas emissoras locais.
Depois, invade o Brasil. O ritual das gravações, as especificações de cada músico,
as lideranças individuais, e a padronização de uma estética sonora, tornam possível
39
Toninho Lacerda é irmão do pianista e maestro Carlos Lacerda.
40
Isso é discutido com mais profundidade na minha tese de doutorado, no capítulo sobre história do arranjo
musical no Brasil, de 1963 até o ano 2000. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/24656>.
Acesso em: 5 jun 2020.
41
Os tecladistas da WR, no início, trabalhavam mais que os colegas porque tinham que realizar dobras e mais
dobras de instrumentos, nas gravações.
o ingresso dos músicos soteropolitanos nas engrenagens das rádios, televisões,
gravadoras, e festas pelo Brasil, abrindo um novo mercado, um que não existia antes.
O processo industrial da WR, o fluxo do trabalho diário com jingles publicitários,
formata a maneira de lidar com os trabalhos que chegavam. E a banda do estúdio,
de certa forma, moldava seu comportamento de acordo com o artista que aparecesse
para gravar. Os músicos não estavam sozinhos, peões que eram naquele tabuleiro.
Forças muito mais poderosas estavam envolvidas. O estúdio de Rangel funcionava
como um portal, onde os sucessos que tocariam nas rádios eram elaborados. Rangel,
que funcionava como mediador, rentabilizava da melhor forma o seu negócio,
apoiando os talentos que reconhecia. Eventuais concorrentes, o empresário os trazia
para si, tornava-se sócio, conseguindo monopolizar as gravações.
Os primeiros artistas que disputavam o mercado do axé eram Gerônimo
Santana, Luiz Caldas, Sarajane e Chiclete com Banana42. Havia outros cantores:
Laurinha Arantes, Guiguio, Norberto, Marcia Freire, Marcionílio, Zé Honório, Virgílio,
Márcia Short, o pessoal do Novos Bárbaros, Jorge Time. Panóplia de artistas que
buscava o “estrêlato maior” que canta Luiz Caldas. “Você faz isso, você faz aquilo”,
dizia Rangel, que tinha grande habilidade em lidar com donos de blocos. Era sensível,
bem-humorado, aglutinador. Unia as pessoas. O pontapé inicial do axé music é dado
por Wesley Rangel, que segue os passos iniciais de Jorge Santos, do estúdio JS.
O surgimento do axé é um processo orquestrado por Roberto Sant’Ana, pelo
radialista Cristovão Rodrigues e por Wesley Rangel, juntamente com a indústria dos
blocos de carnaval, a indústria fonográfica, os cantores locais, e alguns músicos. Com
o sucesso, a “receita” dos arranjos é copiada e a música se espalha rapidamente. O
discurso do axé music é dirigido a uma massa consumidora. No final dos anos 1970,
existia uma lacuna entre o que era produzido em Salvador (não veiculado na mídia)
e a música que era divulgada nas rádios. Esse ostracismo impediu que diversas
gerações pudessem ter sua música veiculada, tendo um efeito nocivo, ao inibir a
ascensão de novos talentos. A geração pós-novos baianos, protagonizada pelo trio
elétrico Dodô e Osmar e pelo trio elétrico Tapajós, não consegue obter sucesso nos
grandes centros do Sudeste. Foi o desejo de divulgar a música local que criou o axé
music. Um projeto da indústria cultural local, cujo poder está na popularidade das
suas misturas. É a estrada dos bailes e trios que empurra Luiz Caldas para seu
destino musical. Quando o cantor se apoia na canção Fricote, que lhe cai de
paraquedas pelas mãos de Paulinho Camafeu, dá partida ao fenômeno do axé music.
4. Semibreve desfecho
Se chegamos até aqui, leitor, é porque, se você convencido não está, menos
sê-lo temerá. Este artigo pretende servir para estimular mais estudos em música
popular. O trilhar histórico que percorremos nos ajudou a identificar que uma mescla
de batutas, que irrompe os anos 1970 e invadem os 1980, parteja o que viria a ser
designado como axé music. Se, por um lado, o ambiente amador, dos anos 1960 e
1970, em Salvador, dificultou a coleta de informações, por outro, colocamos em
evidência visões de participantes que ajudaram a montar o cenário musical da cidade.
42
Os primeiros discos do Chiclete com Banana foram gravados com sequenciadores e baterias eletrônicas.
Missinho, antigo proprietário da banda, gravava as guitarras, Carlinhos Marques fazia os baixos, e Alfredo
Moura fez os arranjos, gravou teclados e também bateria, peça por peça. Rangel havia adquirido uma bateria
eletrônica, uma mesa, gravador de dezesseis canais, de um estúdio em São Paulo. E Cesinha, que já tocava
bateria com Luiz Caldas, decidiu com Rangel que não iria tocar no Chiclete.
A expansão do axé evolui dentro de um pensamento de afirmação regional.
Esta expansão vai dar mais espaço aos arranjadores locais. Os arranjos refletem esse
despertar, descentralizando o que se encontrava sob o controle do eixo Rio-São
Paulo. Toda essa movimentação se centraliza em Wesley Rangel.
A percussão é a base do axé music. É o que chamei de “percussionalidade do
arranjo” (p. 138)43. Na produção fonográfica, em Salvador, o processo de gravação
no estúdio começa a partir da gravação das percussões e dos sintetizadores. E o axé
traz um avanço nos arranjos para o naipe da percussão. Identitária ao axé music, a
percussão vem da rua para o estúdio, numa relação embrionária. Nas ladeiras do
Pelô, batuqueiros se misturam numa festa de ritmos. Refletem as manifestações
regionais. O samba-reggae, nesse supermercado que é o carnaval baiano, se
prolifera o quanto pode. O ritmo corresponde às expectativas do mercado. Blocos e
comunidades procuram se impor culturalmente. A percussão é a seiva que percorre
o axé music. A dissimulação traduz a coexistência do africano com o opressor.
O desenvolvimento da axé music se insere na dualidade tradição-
modernidade. O axé music trouxe algumas alterações na maneira de se fazer arranjo
em estúdio, em Salvador. A dominância dos sintetizadores (que contrasta com a
maneira anterior, com as guitarras baianas) é uma delas. A criação de padrões de
execução (linhas do baixo, acompanhamentos da guitarra, teclados, bateria e
percussões) é outra. O emprego de personalismos estéticos regionais, de
características programáticas acentuadas, também pode ser visto como alteração.
Havia um entrosamento entre o empresariado dos blocos, as gravadoras,
Rangel, e os programadores das rádios. Esses aspectos foram importantes para a
propagação do metagênero. E esse percurso histórico segue o crescimento do
mercado fonográfico, que começa no inicio dos anos 1970 e vai culminar no sucesso
dos anos 1990. Quatro elementos contribuem para o êxito do axé music: indústria
(investimento, marketing, veiculação e distribuição); cantor (carisma, som da voz e
interpretação); músicos (execução, arranjo, regência); e equipe técnica (engenheiros
de som, responsáveis pela gravação, mixagem e masterização). A novidade, no axé
music, se destaca no emprego que o arranjador dá aos instrumentos.
Ao ouvirmos gravações dos primeiros quinze anos do axé, distinguimos
sonoridades reconhecíveis e representáveis, ao nível do colorido e do pensamento.
O axé music, que vem associado ao ritmo, num percurso que vem desde o
tropicalismo, passando pelos Novos Baianos e pela Cor do Som, cria uma escola
carnavalesca, que se municia do Caribe e dos afoxés. O humor vive nas canções de
axé music e a tecnologia permeia seus diálogos. O contato com a tecnologia é
apoiado pelos blocos de carnaval. Em 1984, o arranjo musical estabiliza o fluxo das
ideias, catalisando-o num quadro que viria a ser conhecido como axé music. Contudo,
com o desenvolvimento do negócio, grupos econômicos monopolizaram o setor,
dominando a classe dos músicos. Dessa forma, ensaios para cantores seriam
gratuitos e os cachês pagos seriam muito inferiores aos seus equivalentes, no Rio de
Janeiro e São Paulo.
Na insistência em manter o monopólio44, essa elite não investiu em novos
talentos, nem em parcerias que pudessem reciclar e revigorar os empreendimentos.
43
Criei o termo ‘percussionalidade’ para retratar a relação intrínseca do arranjo baiano com sua personalidade
percussiva. Então, personalidade + percussividade = percussionalidade.
44
O pagode baiano, que parece furar essa “panela”, termina por criar uma para si. Esse lado selvagem do
empreendedor baiano do ramo da música é inculto e oligárquico. É a preservação da mentalidade latifundiária
de séculos atrás, na Bahia.
Muito, porém, ainda há de ser feito para que haja fomento na área musical. É um
esforço continuo e suprapartidário. Sonho coletivo de sociedade45.
Entretanto, ao presenciarmos a um esvaziamento do axé music, o que pode
estar vindo a acontecer é o que nas engenharias mecânica e civil chamam de “fadiga
de material”.46 E uma das soluções para um desgaste, residiria em uma boa
manutenção. Tudo tem seu ciclo, seu prazo de validade. Porém, quando se aproxima
dos seus quarenta anos de existência, o axé music continua provocador, pela própria
exceção que é sua durabilidade no mercado fonográfico internacional. Tal
durabilidade o consagra como empreendimento lucrativo, de baixo custo, cujo lucro
baseia-se na exploração de mão de obra barata. É na propagação da alegria, da
beleza das suas canções, que o axé music vem gerando muitas oportunidades,
aumentando a quantidade de empregos para várias gerações de músicos, criando
riquezas e acelerando o crescimento econômico do país. Desse modo, assim, e não
tão de repente, chegamos aos finalmente.
45
É conhecido que o investimento público em orquestras e escolas de música, espalhando um ensino de música
de qualidade, que trabalhe conjuntamente com as escolas municipais, estaduais, e federais, vai incentivar os jovens
nos estudos musicais, reforçando suas habilidades, afastando-os da criminalidade e do mundo das drogas. Há uma
enormidade de efeitos positivos quando o ensino musical é incentivado na sociedade, quando há um financiamento
e investimento na educação e alimentação desses jovens. Princípios como disciplina, concentração, coleguismo,
trabalho em equipe, liderança, apontam para os benefícios curriculares da música. É uma soma de fornecimento
de educação de qualidade, sistema de saúde, lazer, ensino de música, bolsas de iniciação artística, merenda, auxílio
transporte e auxílio alimentação. Esta deveria ser a diretriz do país para a educação dos nossos jovens e crianças.
46
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