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Grusin, R.

Mediação radical, máscaras da Covid-19 e coletividades revolucionárias

Escrevo este pequeno ensaio durante a Páscoa judaica de 2020, pouco depois de Bernie Sanders
renunciar à sua campanha como candidato democrata à presidência nas eleições
estadunidenses. Candidato judeu à Casa Branca mais bem-sucedido da história dos Estados
Unidos, Sanders optou por interromper sua campanha, que buscava guiar o povo americano à
terra prometida do Socialismo Democrático.

Para muitos ativistas que participaram do movimento popular em torno da campanha


presidencial de Sanders, a pandemia da COVID-19 oferece novos lampejos de esperança para a
destruição do capitalismo e sua substituição por um sistema socioeconômico mais justo e
igualitário, tanto para humanos como para não humanos.

Embora eu seja simpático a esse desejo, os escolhidos permanecem – pelo menos por enquanto
– escravos das forças do capitalismo. [...] o fim do Estado de Direito, o fechamento cruel de
fronteiras e, agora, a COVID-19. Em resposta à última dessas pragas, a matança desigual e
imprevisível dos primeiros infectados, não fomos convocados a pintar de sangue nossos linteis,
mas a marcar nossos rostos com máscaras.

Tenho pensado sobre que tipo de trabalho essas máscaras performam. Elas atuam, obviamente,
como expressões de uma coletividade socialmente distante, não muito diferentes dos lenteis
ensanguentados dos judeus egípcios, que pediam a Deus para manter distância de seus lares,
poupando seus primogênitos.

Certamente, a história recente tem nos apresentado muitos exemplos nos quais objetos
cotidianos ou coisas banais têm se associado a movimentos políticos de resistência, operando
como mediações radicais que catalisam ou agregam uma agência revolucionária. Na “revolução
laranja” ucraniana de 2004-05, as fitas laranja metamorfosearam-se numa coletividade laranja
revolucionária.

Na revolta dos guarda-chuvas de Hong Kong (2014), guarda-chuvas amarelos e de outras cores
ajudaram a intensificar e a acentuar as multidões de manifestantes, bem como a produzir um
interessante subgênero de arte revolucionária.

Iniciado em 2018, o movimento francês dos “Gilets Jaunes” fez uso de coletes amarelos
fluorescentes para unificar suas causas em meio a uma série de exigências populares por justiça
econômica
E, mais recentemente, o movimento italiano das Sardinhas adotou o símbolo do pequeno
cardume de peixe para congregar um movimento popular contra a política eurocética anti-
imigração de Matteo Salvini.

Ao contrário, esses objetos revolucionários são, em algum sentido, ontogenéticos, funcionando


como mediações radicais, uma forma de “terceiridade” peirceana a qual Pierce chama de
“tendência a adquirir hábitos”. No caso desses movimentos revolucionários, reunir com objetos
de cor laranja, guarda-chuvas ou coletes faz parte das “afetações anti-hegemônicas””, ou
hábitos de coletividade e resistência necessários a qualquer forma de movimento
revolucionário.

Esses objetos mediadores revolucionários ajudam a gerar uma “conjunção de forças


disposicionais que relacionam as coisas, umas com as outras”, como os guarda-chuvas ou
coletes, as causas ou propósitos dos movimentos revolucionários, as pessoas amontoadas nas
ruas, ou suas múltiplas remediações na mídia impressa, televisiva e digital.

Podemos dizer o mesmo sobre as máscaras? Elas funcionam da mesma maneira? Essa, eu
ousaria dizer, é uma pergunta mais complicada, já que as máscaras servem a uma dupla função.

Como os guarda-chuvas, coletes ou sardinhas, entretanto, essas máscaras geram


simultaneamente uma coletividade revolucionária, multiplicando através da repetição a
intensidade da coletividade revolucionária ou resistente. [...] Mas as máscaras também
funcionam para ocultar sem referência histórica, como a colocação de máscaras em Hong Kong
durante os movimentos de 4 a 18 de outubro de 2019, que serviu para driblar as tecnologias de
reconhecimento facial utilizadas pela polícia no intuito de identificar e processar líderes dos
protestos.

Embora todas essas máscaras tenham papéis históricos ou estratégicos, elas também servem
para materializar coletividades revolucionárias e sintonias afetivas através da redistribuição do
sensível.

Isso me leva ao curioso caso das máscaras da COVID. Por um lado, o ato de vestir essas
máscaras pode ser entendido como facilitador de uma espécie de coletividade marcada pelo
distanciamento social, à medida que vamos para o mercado ou percorremos as ruas, calçadas,
ônibus ou trens em nossas cidades. Por outro lado, o objetivo dessas máscaras é nos separar
uns dos outros, nos distanciar para que se evite aglomerações.

Dito de outra forma, as máscaras da COVID-19 promovem redistribuições do sensível ao


demarcar divisões entre indivíduos e no meio destes.

Certamente, cuidar dos outros e do coletivo é uma boa razão para as pessoas usarem máscaras.
Contudo, a pergunta que tenho me feito é se essas máscaras de cuidado coletivo podem ser
transformadas em máscaras de protesto, vingança, rebelião, resistência ou revolução. [...] Usar
máscaras importa, coletivamente e individualmente. E, em tempos como estes, precisamos de
todo o cuidado possível.

Entretanto, “usar máscaras não nos protege da nossa história”. Usar máscaras para cuidar do
outro perpetua uma lógica de resiliência, preocupada principalmente em sobreviver (individual
e coletivamente) às condições sociais, políticas e econômicas da pandemia como estão dadas.

Muitos de nós sentimos uma fúria intensa diante das injustiças expostas e amplificadas pela
pandemia. Já passou o tempo de transformarmos essa raiva num fenômeno coletivo e
descobrirmos como promover alguma mudança significativa – começando pela destruição de
coisas que são valiosas para aqueles que perpetuam e se beneficiam da injustiça estrutural.

Talvez o melhor exemplo recente deste tipo de mediação revolucionária esteja nas feministas
mascaradas do Chile, que têm sido uma força importante nos protestos chilenos contra
desigualdades sociais que começaram em outubro de 2019.

Enquanto nosso uso coletivo de máscaras em prol do cuidado torna-se habitual, pode-se estar
no momento perfeito, tanto nos EUA quanto ao redor do mundo, para começar a trabalhar não
só pelo cuidado uns dos outros, mas para promover a destruição e expropriação daqueles que
dificultam tais cuidados [...] Nossas máscaras da COVID ainda não nos levaram até lá, mas
contêm, sugiro, a potencialidade de mobilizar coletividades de resistência ou, talvez, até de
revolução, por meio da redistribuição do capital e do poder político.

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