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Seminário de Literatura, outras artes e mídias: Sobrevivências da imagem na escrita

Profa. Márcia Arbex-Enrico

BUTOR, Michel; GODARD, Maxime. L’Atelier de Man Ray. Paris: Bernard


Dumerchez, 2005.

O Ateliê de Man Ray

O interruptor

Quando se abaixava o botão, o curso do tempo se revertia aceleradamente. As


escamas de pintura remontavam do piso, se recolavam; tudo voltava a ser pouco a
pouco liso e novo. Depois descia-se uma camada; encontrava-se uma outra cor cada
vez mais fresca, depois uma outra ainda até o momento distante da própria
construção, depois de uma destruição anterior. Não se podia ir mais longe, pois o
fenômeno se produzia apenas dentro do ateliê; ora o espectador que ficava contra a
corrente, naturalmente era obrigado a sair, de tempos em tempos, para fazer compras,
visitas, viagens, logo, reencontrar o presente escoando mais ou menos lentamente em
seu próprio sentido. Era então necessário e suficiente levantar o botão para recolocar
tudo no lugar e no tempo. Hoje tudo está interrompido e os demolidores viram apenas
poeira. (p.11)

Organização não-governamental

Vindos de todos os lados dos espelhos os objetos representantes se reuniram em


sessão fragmentária para decidir de uma inação comum contagiosa. O presidente por
interim agita os sinos cujos ecos se propagam nos subterrâneos de todos os metrôs,
tanto em Paris quanto em Nova Iorque, Lisboa ou Bilbao, fazendo se voltarem os
jovens que procuram onde eles encontraram esse sorriso que lhes aparece sobre os
vidros estremecidos como uma lembrança lancinante. Ele aspira em sua garrafa um
elixir de escada, que ele passa em seguida aos deputados de todos os arquipélagos
para encher suas pequenas canecas e fazer um brinde aos inventores de abismos.
(p.14)

Intensidades

O fio elétrico duplo sai da prancha de madeira, passa diante de uma enorme presilha
parisiense branca suspensa por um barbante esfiapado, em seguida diante de um cabo
recoberto, vaza sobre a reimpressão elegante de uma obra de teoria estética do início do
século passado, iniciando uma larga curva que o faz subir ao longo da prancha onde ele
fica preso por detrás de um anel ou cabeçote, depois separa seus dois elementos para
girar em torno do instrumento que medirá a intensidade da corrente que passará por ali.
(p.18)
Juliet

Ela é toda sorriso; ela se inclina e se apoia na parede em seu sorriso que continua por
debaixo de seu lenço, de sua blusa, que se esgueira na margem e sob o passe-partout,
atravessa a moldura, se insinua até a ponta dos dedos, escorre sobre o peito e
transborda sobre a mesa, brilha em cascatas, joelho e saias até o chão, jorra en
chafariz, raios de Sol e de Lua, fosforescências, incandescências, auroras boreais,
arco-íris, perfumes de glicínias, jasmins e alecrim. (p.24)

A distância

Nada foi tocado. O papel continua lentamente se rasgando, simplesmente devido a seu
peso. Exceto pelas moscas que vêm às vezes acrescentar manchas às mais antigas. Os
pregadores de roupa inscrevem como uma divisa acima dos frascos, potes e godês.
Ninguém sobe mais aqui, exceto algum visitante tentando captar a luz, dispondo suas
armadilhas para o tempo que passa, sem tocar em nada, como se estivesse usando
alpargatas, vestindo uma malha preta, como se fosse invisível, impalpável, como se
fosse ele o fantasma, assombro à espreita. (p.28)

As últimas tintas

Durante anos apoiou-se sobre o tubo para que dele saísse uma lágrima de visibilidade
a colocar sobre a paleta, a ser transportada pelo pincel ou pela espátula para a tela,
para um pedaço de papel, uma lágrima, um concentrado de mimosa, de brasa ou de
pradaria. A cada vez se isso tornava mais difícil; era preciso pressionar com um
pedaço de madeira para extrair os últimos acentos, enrolar delicadamente o tubo
achatado. Um dia, o branco, o preto não quiseram mais sair; eles se petrificaram em
seus sarcófagos, guardando assim seus segredos. (p.50)

(tradução Márcia Arbex-Enrico)

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