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SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E

PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA


Revista de Direito Ambiental | vol. 40/2005 | p. 24 - 43 | Out - Dez / 2005
DTR\2005\617

Eduardo Coral Viegas

Área do Direito: Ambiental


Sumário:

1. Introdução - 2. Mercantilização da água - 3. Privatização da água - 4. Considerações


finais - 5. Referências bibliográficas -

1. Introdução

A comunidade jurídica está vivenciando situação fática imprevisível há algumas décadas.


Nas mais diversas regiões do mundo, o debate em torno da água ocupa cada vez mais
espaço; novas e desafiadoras questões surgem à medida que a escassez
quali-quantitativa dos recursos hídricos se agrava. Nesse contexto, os juristas são
instados a analisar os fatos sob o enfoque do Direito, valendo-se, para tanto, também
dos conhecimentos científicos das mais diversas áreas afins ao tema, como a biologia, a
geologia, a engenharia etc.

Simbolizam a problemática da água - ou de sua falta em quantidade e qualidade


suficientes - a eleição de 2003 como o ano internacional das águas pela Organização das
Nações Unidas (ONU), que também estabeleceu o período de 2005 a 2015 como a
década desse bem. Essas iniciativas evidenciam que a questão é de relevo mundial. No
Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) estabeleceu a água como
tema da Campanha da Fraternidade de 2004, traçando como objetivo a conscientização
da sociedade de que ela é fonte da vida, necessidade de todos os seres vivos e um
direito da pessoa humana (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Fraternidade e
Água: manual CF (LGL\1988\3)-2004:47).
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É inegável que a água é fonte de vida; ou seja, ela propicia a origem da vida humana e
é elemento indispensável à sua sobrevivência. Porém, o mesmo recurso natural é
igualmente causa de doenças e morte. Melhor posta à assertiva, pode-se dizer que o
homem dos últimos séculos se preocupou tanto em construir riquezas materiais e com o
desenvolvimento a qualquer custo que não teve olhos para focar a proteção e
preservação do que há de mais essencial. A conseqüência disso pode ser estampada em
números alarmantes: a Organização Mundial de Saúde aponta que 80% das doenças do
mundo se relacionam à ausência de água tratada (Brunoni, 2003:77); e estima-se que,
em nosso país, 70% das internações infantis em hospitais públicos e 40% da
mortalidade infantil tenham origem em deficiências de saneamento básico (Rodrigues,
2002:263).

Haja vista que a água potável naturalmente esteve ao alcance do homem em


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abundância ao longo do tempo, era até recentemente tida por inesgotável. Até certo
ponto é verdadeira essa premissa, já que a disponibilidade hídrica é inalterável. Todavia,
as degradações ambientais vêm fazendo com que expressiva quantidade da água doce
perca sua potabilidade e que não se apresente com o mesmo volume em regiões
determinadas, provocando, v.g., o fenômeno da desertificação. Consciente dessa
lastimável realidade, o legislador brasileiro decidiu pôr fim à idéia equivocada da
renovabilidade interminável, assentando que a água é um recurso limitado (art. 1.º da
Lei 9.433/97).

Outra importante medida adotada por nosso sistema positivo foi a publicidade integral
dos recursos hídricos. Até o advento da Constituição de 1988, o proprietário do imóvel
estendia seu domínio sobre todas as águas armazenadas na superfície e abaixo dela,
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com base no art. 526, do CC/1916 (LGL\1916\1). Inovando por completo e


estabelecendo novos paradigmas, o legislador constituinte extinguiu a propriedade
privada da água, conferindo sua titularidade exclusiva à União e aos Estados (art. 20,
III, e 26, I, da CF/1988 (LGL\1988\3)), como bem público de uso comum. A divisão do
domínio entre tais entes públicos está correlacionada ao princípio federativo (art. 1.º,
caput,da CF/1988 (LGL\1988\3)). O quadro delineado pela Carta Magna (LGL\1988\3)
evidencia que a maioria das águas nacionais é dos Estados - inclusive todas as águas
subterrâneas -, remanescendo à União parcela de recursos hídricos estratégicos, como
as correntes d'água que sirvam de limite com países vizinhos, cuja gestão depende de
negociações internacionais.

A publicização da água possibilitou que fossem disciplinados por lei os institutos da


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outorga e da cobrança pelo seu uso, que hoje começam a ser implementados
paulatinamente no cenário nacional. A outorga viabiliza um efetivo controle
quali-quantitativo da utilização dos recursos hídricos, a fim de defendê-los e preservá-los
para a atual e futuras gerações. Trata-se de ato discricionário como regra, mas exigível
do poder concedente quando o pedido de outorga é destinado ao consumo humano ou à
dessedentação de animais e não há outras formas de satisfação desses usos prioritários
(art. 1.º, III, da Lei 9.433/97). Por outro lado, cobrança e outorga estão atreladas, de
forma que esta é antecedente indispensável daquela. Dita inter-relação permite se
afirmar que os casos cuja outorga é dispensada não sujeitam o usuário ao pagamento
pela água.

É fundamental o esclarecimento de que a cobrança se dá em razão do direito de uso de


um bem público, no caso a água, que é inalienável (art. 18, da Lei 9.433/97). As
pessoas estão acostumadas com o pagamento pelo serviço de saneamento básico. Este
continuará a ser exigível de forma independente da cobrança pela água propriamente
dita. Uma das preocupações que emanam desse duplo pagamento diz com o
encarecimento da água para consumo do homem e para a execução de suas atividades
básicas, como a irrigação agrícola, a piscicultura, dentre tantas outras, pairando
incerteza intransponível neste momento em torno da forma como a população mais
carente será atingida. Propõe-se a seguinte reflexão: será que, na conjuntura até agora
delineada, haverá maior ou menor possibilidade de redução das desigualdades sociais? 4

Aspecto crucial na modelagem da relação entre o homem e a água neste novo século
está relacionado à mercantilização do recurso ambiental (art. 3.º, V, da Lei 6.938/81)
sub examine e à privatização do serviço de saneamento básico. Trata-se de temas
interligados, porém com divergências bem visíveis. Por um lado, mercantilização e
privatização têm como ponto de contato o fato de que a água, como bem escasso que é,
passa a ser alvo de interesse financeiro galopante, sujeitando-se à teoria econômica
conhecida por lei da oferta e da procura. De outro norte, ao contrário do que sugere o
título deste trabalho, que foi assim posto em decorrência de seu tom instigante,
mercantilização e privatização não incidem ambos sobre a água, já que a segunda, ao
menos no cenário jurídico brasileiro, se refere ao serviço de saneamento. Reconhece-se,
contudo, que é usual na literatura e correta a utilização dos termos mercantilização e
privatização da água quando se pretende dar o sentido de que esse bem está deixando
de ser gerido pelo poder público e passando às mãos da iniciativa privada e que, além
disso, o novo gestor almeja primordialmente auferir lucro com o seu negócio,
desimportando-se com o valor social dos recursos hídricos ou deixando-o em plano
secundário.

Pretender-se-á, neste espaço, fazer uma análise tão pormenorizada quanto possível da
inserção da água no conceito de mercadoria e da privatização do serviço de saneamento
básico, tendo-se sempre como norte uma visão jurídica do assunto. Para tanto, contudo,
é imprescindível a adoção de um posicionamento em torno da temática, que se adianta,
será marcada pelo combate às já referidas mercantilização e privatização, porquanto
priorizam a satisfação de interesses privados em detrimento do interesse público de
todos os povos.
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2. Mercantilização da água

2.1 A água como bem de valor econômico

A água tem múltiplos usos (art. 1.º, da Lei 9.433/97) e valores. Afloram nos
sentimentos humanos os valores sociais, religiosos, turísticos e paisagísticos dos
recursos hídricos, que prescindem de maiores explicações. Já o valor econômico da água
vem sendo introjetado nos últimos anos em nosso cotidiano, pois, antes, ter acesso ao
líquido fundamental era algo simples, inato, sem notáveis repercussões financeiras no
orçamento familiar e de produção.

A Política Nacional de Recursos Hídricos está alicerçada em diversos fundamentos,


dentre os quais o de que a água é um recurso natural dotado de valor econômico (art.
1.º, II, da Lei 9.433/97). A motivação teórica dessa noção legal está ligada à
necessidade de gerenciamento adequado do bem escasso. Contudo, não é só por
reconhecer o valor econômico dos recursos hídricos que a legislação brasileira
compactua com sua mercantilização.

Como a água integra o meio ambiente, a ela se aplicam os princípios gerais do Direito
Ambiental, destacando-se os princípios da prevenção, da precaução, do
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poluidor-pagador e do usuário-pagador. Tendo-se positivado o valor econômico da água,
fica viabilizada a cobrança por seu uso de acordo com os princípios de que o usuário e o
poluidor do líquido devem internalizar os custos da poluição ambiental que geram e/ou
do uso dos recursos naturais no processo de produção/utilização, que repercutirá no
custo final do produto (Viegas, 2005:108-109). Vale lembrar que "o princípio em
questão pretende fazer com que os custos não sejam suportados, nem pelo Poder
Público, nem por terceiros, mas sim pelos utilizadores" (Oliveira, 2003:308).

A atribuição do aludido valor econômico ao recurso ambiental em estudo não é


prerrogativa brasileira. Em 1992, a ONU instituiu o dia 22 de março como o "Dia Mundial
da Água", redigindo também um documento intitulado "Declaração Universal dos Direitos
da Água". O sexto item dessa Declaração dispõe que "A água não é uma doação gratuita
da natureza; ela tem valor econômico: precisa-se saber que ela é, algumas vezes, rara e
dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do mundo" (grifou-se).
Passada mais de uma década da redação do documento, afirma-se que o escasseamento
quali-quantitativo da água não é tão-somente uma possibilidade, mas uma realidade
cruel.

A denominada crise da água deve ser enfrentada com uma política nacional e mundial
adequada, com a aplicação efetiva da legislação que protege o meio ambiente e os
recursos hídricos mais especificamente, com investimento em saneamento básico, com
redução da poluição ambiental e recomposição das áreas atingidas, com o envolvimento
comunitário na adoção de medidas de preservação e proteção da água e com o
pagamento pela água como forma de reduzir o seu consumo (Viegas, 2005). Portanto,
ao contrário do que se possa imaginar, o problema não é reconhecer a água como bem
econômico, mas saber que conseqüências advirão desse novel paradigma.

Já foi visto acima que a cobrança tem como pressuposto a outorga. A Lei de Águas (Lei
9433/97) dispensa dita autorização estatal, conforme definido em regulamento, do uso
de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos
populacionais, distribuídos no meio rural; das derivações, captações e lançamentos
considerados insignificantes; e das acumulações de volumes de água consideradas
insignificantes (art. 12. § 1.º). Resta saber como será complementado esse regramento
legal, assim como aguardar a fixação dos valores a serem cobrados quando a outorga
for impositiva. Essas deliberações estão a cargo dos Comitês de Bacia Hidrográfica (art.
38, V e VI) e dos Conselhos Nacionais e Estaduais de Recursos Hídricos (art. 35, IV).

O principal na implementação da cobrança como instrumento da Política Nacional de


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Recursos Hídricos (art. 5.º, IV, da Lei 9.433/97) é a conscientização, por parte dos
atores de sua execução, de que a água é um direito fundamental do homem. Em
verdade, "a água é, dentre os bens de um modo geral, talvez o que mais deva ser
utilizado por todos, de forma universal e igualitária, porquanto é um direito fundamental
relacionado a tantos outros, como o direito à vida, à saúde e, em especial, à dignidade
da pessoa humana." (Viegas, 2005:91).

2.2 A água como mercadoria

A expressão mercantilização da água tem conotação diversa do seu reconhecimento


como bem de valor econômico. A dicotomia está bem posta na Carta de Porto Alegre
elaborada por ocasião do II Fórum Internacional das Águas, datada de 12.11.2004. Nela
é feita a declaração seqüencial de que "Em virtude da escassez, a água adquire a
condição de um bem econômico" e "A água é um bem público e não uma mercadoria,
em função de sua importância ambiental e social e de sua essencialidade para a vida e
para as atividades humanas".

Mercantilizar a água é sobrepor seu valor econômico ao valor social que lhe é inerente; é
antepor o interesse privado ao interesse público; é dar aos recursos hídricos conotação
eminentemente comercial, em que a obtenção de lucro é o objetivo primordial no trato
desse bem natural; é ganhar cada vez mais com a venda do "produto" na medida em
que a crise global da água se intensifica; é negar o acesso de todos à água em qualidade
e quantidades satisfatórias ao provimento das necessidades dos seres vivos,
possibilitando o alcance apenas àqueles com condições econômicas para "desfrutar" da
água.

O livro Ouro azul, de Barlow e Clarke (2003), retrata com propriedade a lastimável
realidade do comércio da água em nível mundial, assim como os interesses que estão
em jogo. Segundo a obra, tudo está à venda. Ou seja, mesmo aqueles bens antes fora
do comércio, como serviços sociais e recursos naturais, que já foram considerados a
herança de uma geração a outra, hoje integram o livre mercado. Os governos vêm
abrindo mão de sua responsabilidade em proteger e gerenciar os recursos ambientais,
passando a autoridade por sua exploração a empresas privadas, que fazem dessa
delegação um "negócio" como tantos outros. Segundo o Banco Mundial e as Nações
Unidas, a água é conceituada como uma "necessidade humana", e não como um "direito
humano". Essa distinção é de extrema relevância, na medida em que o segundo é
inalienável, ao contrário da primeira.
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Segue o livro referindo que as corporações transacionais envolvidas com o "negócio" da
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água são apoiadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, deixando
bem claros seus objetivos: com a crise da água, criou-se uma maravilhosa oportunidade
de mercado para quem explora os recursos hídricos, devendo vigorar o princípio do
lucro. Atualmente, as 200 maiores corporações detêm tanto capital que suas vendas
anuais somadas alcançam o total da soma das economias de 182 dos 191 países do
mundo e que, das 100 maiores economias mundiais, 53 são corporações transacionais, e
não nações.

Maude Barlow e Tony Clarke sublinham que a "privatização da água", embora esteja
atualmente "em sua infância", é, segundo os especialistas na área de investimentos,
considerado o melhor setor do século atual. A exportação da água é um grande negócio.
Efetivamente, esse recurso vem sendo cada vez mais transportado pelo mundo, à
semelhança do que ocorre com o petróleo há longa data. Para as empresas envolvidas
no comércio mundial da água, a questão é singela: resume-se em fatores de suprimento
e demanda, estando, do lado do suprimento, países como o Brasil, ricos em água doce;
e, na face da demanda, países e regiões carentes de recursos hídricos, como o Oriente
Médio e a China.

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Facilitando o mercado, o transporte da água foi e está sendo cada vez mais viabilizado
com o desenvolvimento de novas tecnologias, como por meio de bolsas de água,
puxadas por rebocadores ao longo dos cursos d'água, e que podem ter capacidade muito
superior à dos grandes navios-tanque; aquedutos (bastante utilizados hoje na irrigação
agrícola); navios-tanque e superpetroleiros (que, estima-se, no futuro levarão petróleo
ao seu destino e voltarão à origem carregados com água); canais; e mesmo por
intermédio de água já engarrafada (atualmente o que mais cresce). Tão sedutor é o
comércio da água que hoje há uma grande disputa comercial entre a PepsiCo e a
Coca-Cola, corporações gigantes que outrora concorriam apenas no mercado de
refrigerantes, e que agora também contendem no segmento da água engarrafada.

Porém, os nominados autores não se restringem a colocar em emersão a problemática


da mercantilização e da privatização água. Vão além, propondo uma visão que
contempla a possibilidade de reversão do quadro acima retratado, apesar de
reconhecerem que a tarefa não é simples. Dizem que as campanhas populares contrárias
à privatização dos serviços de água estão-se tornando cada vez mais
internacionalizadas, asseverando que elas ganham impulsionamento quando juntam
forças com outros grupos ambientais e de justiça social. Por sintetizar uma série de
aspectos importantes, merece transcrição o seguinte trecho de Ouro azul:

"Embora os suprimentos de água mundiais estejam encolhendo e as corporações


transnacionais estejam trabalhando bastante para colher lucros significativos desse
escasso suprimento, não é tarde demais para reverter à situação. O acesso universal e
eqüitativo à água é possível. Os suprimentos globais de água podem ser salvos daquelas
pessoas que já os invadiram para usá-los em prol de seus próprios lucros. Os cidadãos
privados não têm que parar e apenas observar o movimento das empresas
engarrafadoras dentro de suas áreas, drenando seus aqüíferos, e enchendo seus
próprios bolsos para depois irem embora. Os cidadãos não precisam conviver com a
privatização dos serviços de água. As pessoas mais afetadas pelos gananciosos
interesses privados na água podem assumir as questões de água e evitar a destruição de
suas bacias hidrográficas e a aquisição de sistemas de fornecimento de água. Os
governos, até hoje, não assumiram a proteção da água, da qual depende a vida de seus
habitantes. Assim, dependerá de organizações não-governamentais e de grupos de
cidadãos mudar o modo como a água é obtida e distribuída. Além de proteger este
recurso vital para as próximas gerações. (Barlow; Clarke, 2003:272)"

Gize-se que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, ao fornecerem


empréstimos a países necessitados, condicionam a "ajuda" a uma gama de condições,
como é de conhecimento comum. A partir de algum tempo, uma das condições da
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concessão de empréstimos, bem como da renegociação de dívidas, é a privatização dos
serviços de água. Percebe-se, assim, a crueldade com que esses organismos
internacionais atuam, coagindo países pobres e sem condições de transacionar a
assumirem obrigações que são contrárias aos interesses de suas populações, já que a
água deveria ser tratada, em todas as partes do mundo, como um bem público,
insuscetível de apropriação por particulares, e, em especial, por gigantescas corporações
internacionais, pois, se a lógica do mercado se cristalizar em nível global, apenas
àqueles que possuem condições financeiras estará garantido o acesso à água, e não para
os pobres, que terão direitos fundamentais como a saúde, a vida e a dignidade da
pessoa humana afetados letalmente.

Não se prega a impossibilidade de comercialização da água, ou sua exportação. Pelo


contrário, propõe-se que o Brasil invista na qualidade de seus recursos hídricos para
que, dispondo de água potável excedente em relação ao seu consumo, possa, observado
o princípio do desenvolvimento sustentável, fornecer esse bem àqueles países que dele
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careçam, recebendo em troca benefício econômico. O fato de a água ser indispensável à
vida não a torna coisa fora do comércio. Deve-se, no tópico, ter em mente o alerta de
Caubet: "A exportação da água é um dos negócios mais promissores do início do século
XXI." (Caubet, 2004:33). Todavia, o modelo ora preconizado distancia-se
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completamente da gestão econômica da água, uma vez que, mantendo-se o monopólio


do líquido nas mãos do Estado, este pode estabelecer relação comercial direta com outro
país carente do recurso, que, o recebendo, e mantida a ética indispensável no
tratamento da matéria, fornecerá aos que dele necessitem, de modo universal e com
justiça social.

Destarte, a política de mercantilização da água, privatista por excelência, põe em risco a


implementação de inúmeros direitos concernentes à defesa da água e,
conseqüentemente, da vida. O grande questionamento a ser feito é se a força econômica
dos agentes que dominam o mercado da água não acabará por tornar ineficazes direitos
fundamentais reconhecidos que se ligam à temática. Aliás, como ensina Norberto Bobbio
(1909), passada a fase de saber quais e quantos são os direitos do homem, qual é sua
natureza e fundamento, o grande desafio que se apresenta aos juristas diz respeito à
sua proteção, à verificação de qual é o modo mais seguro de garanti-los, a fim de se
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obstar que, apesar de formalmente declarados, sejam eles continuamente violados.

Impõe-se refletir se, v.g., em momento de grande crise econômica, o Brasil recusaria
um empréstimo necessário ou a renegociação de sua dívida em troca da concessão de
outorgas de longo prazo para a exploração, por corporações internacionais, de parte
significativa de mananciais de água doce, ainda que com sacrifício das populações que
dependem dos supramencionados recursos hídricos.

3. Privatização da água

3.1 Noções gerais sobre saneamento básico

Inicialmente, faz-se mister estabelecer o que se entende por saneamento básico. No


sentido estrito, consiste no fornecimento à população de água potável e na prestação
dos serviços de coleta, tratamento e disposição final do esgoto sanitário. Em visão ampla
abrange outras atividades tendentes a prevenir doenças, promover a saúde e a
disponibilizar melhor qualidade de vida à população. Algumas legislações, v.g., incluem
no conceito de saneamento básico a coleta, tratamento e disposição final do lixo, caso da
Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, art. 247, § 1.º. Seria melhor o uso da
expressão saneamento ambiental. De todo o modo, considerando que o presente
trabalho tem como finalidade a análise dos recursos hídricos, adotar-se-á o conceito
restritivo acima destacado.

O serviço de fornecimento de água compreende, em linhas gerais, a sua captação em


um corpo d'água (superficial ou subterrâneo); sua condução na forma bruta, chamada
tecnicamente de adução; o tratamento; a adução da água tratada; seu armazenamento;
e, por fim, a distribuição aos destinatários. O serviço de esgotamento sanitário abrange
a coleta; transporte; tratamento; e a disposição final do esgoto e dos resíduos do
processo de depuração. Pelo visto, essa é uma apertada síntese do procedimento, uma
vez que cada uma dessas etapas ou outras de menor expressão guardam suas
especificidades, podendo-se exemplificar que o tratamento do esgoto engloba as fases
primária, secundária e terciária, que são implantadas, via de regra, subseqüentemente.

No sistema pátrio, quem abastece a população com água também deve ser responsável
pela destinação dos resíduos líquidos. As redes de fornecimento de água e de coleta de
esgoto são diversas, mas a cobrança pelos serviços é vinculada. Como é muito difícil
mensurar a quantidade de esgoto despejado na rede geral, estima-se que quem
consome mais água produz mais resíduos líquidos, pelo que a remuneração do serviço
de saneamento é atrelada à quantidade de água consumida. Daí conclui-se que o uso de
fonte alternativa em região dotada de saneamento básico implica enriquecimento ilícito,
na medida em que o usuário da rede de esgotamento não está pagando - ao menos na
proporção devida - pelo serviço que está utilizando, com isso acarretando prejuízo à
coletividade, que acabará suportando esse custo gerado e não remunerado por quem era
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devedor da obrigação de pagar (Viegas, 2005: 108-109).

Dados do IBGE apontam que o crescimento do serviço de abastecimento de água por


rede geral ocorreu em todas as regiões do Brasil. Esse crescimento também foi
observado em relação ao sistema de esgoto sanitário. Contudo, o documento sublinha
que "Das condições de saneamento básico, o esgotamento sanitário é o que apresenta o
mais longo caminho a ser percorrido para atingir índice satisfatório que possa garantir
melhorias nas condições de moradia e saúde da população, bem como preservar a
qualidade do meio ambiente." (IBGE, 2000:58). Com o crescimento acelerado e
desordenado de ocupação das áreas urbanas, foi necessária a execução de medidas
sanitárias prioritárias, até porque nem tudo era possível ser feito com rapidez, tendo em
vista, sobretudo, o elevado custo do serviço público em exame. Houve investimento
11
inicial maior no fornecimento de água potável à população por rede geral. Agora os
prestadores do serviço têm a missão de ampliar a referida rede e trabalhar mais
intensamente na coleta e tratamento do esgoto sanitário, sendo esse um dos grandes
desafios que se enfrentará doravante.

Para que o saneamento público seja efetivo, é necessário que o prestador do serviço
tenha por norte alguns princípios ou diretrizes, dentre as quais se podem destacar a
universalidade e eqüidade: acesso de todos ao saneamento e com o mesmo nível de
qualidade, sem discriminação; integralidade: provimento de todas as diversas naturezas
do serviço; continuidade: por ser essencial, o serviço não pode sofrer interrupções, salvo
em casos excepcionais; eficiência e segurança: o usuário deve receber serviço eficiente e
seguro, pois está consumindo um produto que pode lhe gerar graves repercussões em
sua saúde, vida, finanças; modicidade dos valores cobrados: necessária para não
dificultar o acesso ao serviço, que é, sabidamente, essencial à dignidade da pessoa
humana, à preservação e proteção ambiental, bem como ao desenvolvimento
sustentável; participação social: em todo o processo que engloba o saneamento, desde o
estabelecimento de políticas para o setor até a execução e controle dos serviços, deve
estar presente o acompanhamento efetivo da sociedade, pois é a destinatária do produto
do saneamento; predomínio do valor social sobre o econômico: com base nesse
princípio, é possível sustentar, v.g., que a cobrança de valores diferenciados para as
populações carentes, garantindo-se o serviço de modo gratuito, até mesmo, para
consumos baixos, se a pessoa ou sua família não tem condições de pagar nem o mínimo.
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Tendo-se em conta a crise da água, que assola o mundo de uma forma global, e que
sem água não há vida humana, animal ou vegetal, bem como o estabelecimento do uso
prioritário dos recursos hídricos para o consumo humano e a dessedentação de animais
em situações de escassez (art. 1.º, III, da Lei das Águas), chega-se à ilação de que o
Poder Público assumiu a dominialidade exclusiva desse recurso natural como forma de
geri-lo visando ao interesse da coletividade. Na medida em que a Constituição disciplina
competir privativamente à União instituir diretrizes para o desenvolvimento de
saneamento básico (art. 21, XX, da CF/1988 (LGL\1988\3)) e confere a todos os entes
federados competência comum para promover programas de saneamento básico (art.
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23, IX, da CF/1988 (LGL\1988\3)), instituiu um serviço público próprio do Estado
(Mello, 1993:435) e de caráter essencial, consoante expressamente consignado em
14
recente ementa do Superior Tribunal de Justiça. Sendo inquestionável a repartição
constitucional da propriedade das águas entre a União (art. 20, III, da CF/1988
(LGL\1988\3)) e os Estados (art. 26, I, da CF/1988 (LGL\1988\3)), resta saber de quem
é a titularidade pela prestação do serviço de saneamento básico.

3.2 Titularidade do saneamento básico e sua delegação

Para que se possa discorrer acerca da privatização da atividade de saneamento básico, é


necessário, antes, que se fixem as premissas em torno de quem detém o direito/dever
de prestar o serviço público. A base do estudo será focada no Direito Constitucional
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positivo, uma vez que, dentre os elementos próprios das constituições, está o de
estabelecer normas que regulam a estrutura do Estado e do Poder, as quais estão
compreendidas no Título III da CF/88 (LGL\1988\3), que trata especificamente "Da
organização do Estado".

No plano histórico, a União passou a atuar na área de saneamento básico na década de


1960, quando da criação do BNH e do FGTS, adotando, porém, uma política mais incisiva
na década de 1970, época em que foi instituído o Plano Nacional de Saneamento -
15
PLANASA -, como destaca Victor Carvalho Pinto. Segue o autor frisando que o
PLANASA, regulamentado pela Lei 6.528 de 1978, definiu um modelo até hoje seguido,
por meio do qual os Estados-membros criaram empresas públicas ou sociedades de
economia mista, as Companhias Estaduais de Saneamento Básico - CESBs -, e por meio
delas passaram a prestar o serviço aos Municípios, via contratos de concessão. Essa
sistemática, estimulada pela União por intermédio da concessão de financiamentos do
FGTS apenas para as paraestatais dos Estados, abrangeu aproximadamente 75% dos
Municípios. Os contratos são vagos, havendo inúmeras lacunas de relevo, como a falta
de definição dos bens reversíveis ou fórmula para o cálculo de sua amortização.

Victor Pinto assenta que, "Na prática, o serviço é prestado como se fosse de
competência estadual, inexistindo qualquer regulamentação municipal". Segue
enfatizando que os contratos estão-se vencendo, o que fará com que os Municípios
celebrem novos contratos. Como a PLANASA entrou em crise na década de 1990, sendo
a maior parte das CESBs ineficientes e deficitárias, muitos Municípios têm optado por
desvincular-se das paraestatais referidas. Alguns entes federados municipais criaram
órgãos próprios para o desenvolvimento direto da atividade, na forma de departamentos
ou autarquias, recebendo, com esse perfil institucional, imunidade tributária. O autor
salienta, ainda, que outros Municípios concederam o serviço à iniciativa privada, o que
tem gerado freqüentes conflitos com as empresas estaduais, que cobram indenizações
pelos investimentos realizados.

Há, portanto, um inquestionável ponto de conflito entre grande parte dos Municípios e os
Estados. De um lado, os Estados-membros constituíram paraestatais com a finalidade
específica de prestar o serviço de saneamento básico, sendo investidos, via de
conseqüência, vultosos recursos públicos nessa atividade. Por outro, importa saber se,
no plano jurídico, os Municípios são realmente os titulares do serviço em questão, pois
só em caso positivo poderão excluir a participação das CESBs da atividade, assumir sua
execução ou concedê-la à iniciativa privada, o que será objeto de análise em seguida.

Hely Lopes Meirelles (1957) deixa bem claro seu posicionamento no sentido de que:

"As obras e serviços para fornecimento de água potável e eliminação de detritos


sanitários domiciliares, incluindo a captação, condução, tratamento e despejo adequado,
são atribuições precípuas do Município, como medida de interesse da saúde pública em
geral e dos usuários em particular. (p. 307)"

Não obstante a assertiva do renomado administrativista, a matéria guarda certas


especificidades que merecem detida atenção. Efetivamente, inúmeros são os serviços
públicos que vêm enumerados pela Carta Magna (LGL\1988\3), que os reparte entre os
entes federados, tais como os de serviço postal e correio aéreo nacional (art. 21, X),
telecomunicações (art. 21, XI), instalação de energia elétrica e aproveitamento
energético dos cursos de água (art. 21, XII, b), gás canalizado locais (art. 25, § 2.º),
transporte coletivo local (art. 30, V). Outros estão em zona gris, caso do saneamento
básico.

A Constituição estabeleceu competência comum da União, dos Estados, do Distrito


Federal e dos Municípios para cuidar da saúde (art. 23, II), proteger o meio ambiente e
combater a poluição em qualquer de suas formas (art. 23, VI) e promover programas de
melhoria de condições de saneamento básico (art. 23, IX). Considerando que o
fornecimento de água potável à população e o recolhimento e tratamento do
Página 8
SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

esgotamento sanitário têm reflexos na saúde pública e no meio ambiente nacionais, à


União compete instituir diretrizes gerais e estimular a execução de políticas públicas no
setor, como repassando recursos financeiros aos titulares do serviço.

A regra é de que o serviço de saneamento público seja de interesse local, competindo,


16
portanto, sua execução direta ou sob regime de concessão ou permissão aos Municípios
(art. 30, V, da CF/1988 (LGL\1988\3)). Esse é o fundamento constitucional que define a
titularidade do saneamento básico aos entes municipais. O interesse público, no caso,
caracteriza-se pela realização de todas as fases do saneamento nos estritos limites
territoriais locais, não se apresentando necessário o compartilhamento de instalações
e/ou equipamentos com municípios vizinhos. É o que ocorre na maioria dos municípios
brasileiros.

Todavia, não se pode afirmar ser a referida titularidade exclusiva da municipalidade. Não
raras vezes há interesse regional apto a caracterizar como dos Estados a competência
material sobre serviços de saneamento básico. Na Constituição, o art. 25, §§ 1.º e 3.º
dão respaldo ao que se sustentou. É necessário, contudo, que os Estados editem lei
complementar para instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a
organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum. Tal
interesse afasta a competência dos municípios, como leciona Alaôr Caffé Alves (Alves,
1998:32). Assim sendo, se houver compartilhamento de instalações e/ou equipamentos
em região metropolitana instituída por lei complementar estadual, v.g., o serviço de
saneamento assume interesse predominantemente comum, ficando o Estado-membro
respectivo autorizado a desenvolver, como titular, trabalhos de fornecimento de água
por rede geral e de esgotamento básico.

Em qualquer caso, é facultado ao titular do serviço promover a sua delegação, caso não
tenha interesse em prestá-lo diretamente. Quando o delegado é da iniciativa privada,
utiliza-se comumente a expressão privatizaçãodo serviço de saneamento básico. Ela é
empregada não no sentido de que o poder público outorga a titularidade do serviço ao
17
setor privado, mas a gestão desses serviços, inclusive a execução das respectivas obras
de infra-estrutura, reservando-se a disciplina regulamentar, o controle e a fiscalização
próprios do poder concedente (Alves, 1998:23). A delegação deve-se dar por concessão
ou permissão, sempre através de licitação, na forma do art. 175 da CF/1988
(LGL\1988\3).

Porém, também há a hipótese de as paraestatais estaduais criadas por ocasião do


PLANASA abrirem seu capital para a iniciativa privada. Mesmo assim, a privatização
dá-se em relação à empresa pública ou à sociedade de economia mista, e não à
titularidade do serviço, que sequer lhes pertence.

Outro instrumento de privatizaçãodo setor foi recentemente implementado no Brasil, que


é a legislação concernente às parcerias público-privadas. Tal arcabouço legal, que teve
início com a edição da Lei 11.079/2004 e se ampliou com as inúmeras leis estaduais
elaboradas, cristaliza a tendência neoliberal que atinge o mundo globalizado,
contrapondo-se ao Estado social, como leciona Paulo Bonavides:

"Esmaecê-lo [referindo-se ao Estado social] e depois destruí-lo é parte programática das


fórmulas neoliberais propagadas em nome da globalização e da economia de mercado,
bem como da queda de fronteiras ao capital migratório, cuja expansão e circulação sem
freio, numa velocidade imprevisível, contribui irremissivelmente para decretar e
perpetuar a dependência dos sistemas nacionais, indefesos e desprotegidos, sistemas
que demoram nas esferas do Terceiro Mundo." (Bonavides, 1996:11)"

As parcerias público-privadas (PPPs) são uma extensão das concessões e permissões de


serviços públicos, estas disciplinadas pela Lei 8.987/95. Porém, a inovação é que as PPPs
têm objeto mais amplo. Enquanto nas concessões e permissões o delegado do serviço é
remunerado apenas pela tarifa cobrada do usuário, pelas PPPs é possível, além da
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SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

remuneração por tarifa, a cessão de créditos não-tributários, outorga de direitos sobre


bens públicos dominicais, outros meios admitidos em lei (art. 6.º da Lei 11.079/2004),
tudo devendo constar de cláusula contratual (art. 5.º, IV, da Lei das PPPs). Outra
vantagem para a iniciativa privada é a possibilidade de contratação por prazo superior a
18
60 meses, limite imposto pelo art. 57, II, da Lei de Licitações. Aliás, a Lei das PPPs
veda a celebração de contratos por tempo inferior a 60 meses (art. 2.º, § 4.º, II),
prevendo que o prazo de vigência será compatível com a amortização dos investimentos
realizados, não podendo, contudo, ser superior a 35 anos (art. 5.º, I). A nova
sistemática também oferece garantias mais concretas ao contratado (art. 8.º), dando a
ele mais tranqüilidade de que a Administração Pública honrará seus compromissos.
Como o objetivo deste trabalho não é aprofundar o estudo das PPPs, destaca-se que o
posto acima são apenas algumas das inovações em relação às tradicionais concessões e
permissões de serviço público, havendo outras que, sem dúvida, estimularão a iniciativa
privada a investir em setores tipicamente públicos, sendo um dos grandes alvos o
saneamento básico.

Sinale-se a privatização do serviço de saneamento depende sempre de lei que a autorize


e fixe seus termos, sendo inconstitucional o art. 2.º da Lei 9.074/95 ao dispensar o
certame nos casos de saneamento básico e limpeza urbana, porquanto viola o art. 175
da CF/1988 (LGL\1988\3) e o princípio da legalidade, na forma do entendimento do
19
Tribunal Pleno do Estado do Rio Grande do Sul ao julgar a ADIn 70001300904.

Outra exigência intransponível e inquestionável em qualquer forma de delegação à


iniciativa privada é a licitação pública, como acima visto. A controvérsia surge em
relação aos serviços de titularidades dos Municípios concedidos às CESBs, que são
paraestatais com personalidade jurídica de direito privado criadas por leis estaduais com
a finalidade específica de execução do saneamento básico. No plano constitucional, por
um lado, o art. 175 da CF/1988 (LGL\1988\3) obriga sempre a licitação nas hipóteses de
concessão ou permissão de serviços públicos; de outro, o art. 37, XXI, da CF/1988
(LGL\1988\3) possibilita à legislação ordinária ressalvar casos não sujeitos a certame
público. A legislação infraconstitucional incidente é a Lei de Licitações (Lei 8.666/93), a
qual elenca várias hipóteses de dispensabilidade e inexigibilidade de licitação em seus
arts. 24 e 25. O art. 24, VIII, da referida Lei está assim redigido:

"Art. 24. é dispensável a licitação:

(...)

VIII - para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos
ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que
tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde
que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado";

Como as CESBs foram criadas na década de 1970, podem renovar indefinidamente com
os municípios contratos de concessão de serviço de saneamento básico
independentemente de licitação. Quanto à exigência de que o preço seja compatível ao
praticado no mercado, bem aponta Alaôr Caffé Alves que deve haver verificação de fato,
devendo o valor ser razoável e compatível com a média do mercado (Alves, 1998:59). O
mesmo autor destaca que, no saneamento, não é possível repartir uma mesma
infra-estrutura para a prestação do serviço por mais de um ente de modo simultâneo, já
que, para tanto, seria necessária a implantação de duas redes paralelas, no mesmo
limite territorial, o que considera um absurdo. Por essa razão é que esse tipo de serviço
é chamado de monopólio natural (Alves, 1998:30).

Chegou-se a um ponto no qual faz-se mister uma conclusão: a privatização do


saneamento básico no Brasil fere gravemente os princípios da economicidade,
razoabilidade, proporcionalidade e até mesmo o da moralidade. Ora, não é dado ao
gestor público, mandatário do povo (art. 1.º, parágrafo único, da CF/88 (LGL\1988\3)),
mal administrar os recursos estatais, que são por demais parcos, como se as políticas
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SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

públicas pudessem ser alteradas ao bel prazer do governante do momento. Se a política


de saneamento nacional teve por parâmetro propulsor a titularidade municipal e a
constituição de paraestatais dos Estados-membros para a execução do serviço por
delegação, deve seguir nesse rumo, observadas, evidentemente, situações peculiares,
como casos em que municípios maiores têm plenas condições de executar diretamente o
serviço em foco ou em que determinada CESB não cumpre definitivamente sua missão
legal.

Além da motivação acima declinada, entende-se que o tempo demonstrou que o Brasil
agiu com acerto ao estabelecer a política de criação das CESBs, pois só com elas foi
possível a efetivação do subsídio cruzado, consistente em estabelecer um equilíbrio
global de prestação do serviço, importando mais o conjunto de municípios alcançados
pela rede de saneamento do que um ou outro especificamente. Assim, se alguns
municípios pequenos não são auto-sustentáveis, outros superavitários fazem com que a
empresa estadual consiga se equilibrar financeiramente. Agora, se os municípios com
boas condições econômicas resolverem executar diretamente o saneamento, como
ficarão, de um modo geral, aqueles mais pobres e sua população? Será que as empresas
privadas investirão em áreas carentes de recursos financeiros ou com outras dificuldades
importantes, como deficiência de recursos hídricos?

A corriqueira alegação dos gestores públicos de que inexistem recursos para aplicar no
setor não convence, porquanto, em verdade, pelas razões já elencadas, o saneamento
básico deve constituir prioridade do poder público. Apesar de os custos serem elevados,
alguns países se convenceram da relevância de investir na área, dispondo-se
politicamente a isso e obtendo expressivos resultados em curto prazo, como é o caso do
Chile: "O Chile foi citado como exemplo onde a vontade política fez a diferença, por ter
ampliado cobertura de saneamento de 17% para 70% em três anos" (Duarte, 2003:39).

Em verdade, o investimento no setor acarreta economia aos cofres públicos e satisfação


de importantes necessidades sociais. Isso porque medidas político-administrativas
tendentes ao fornecimento de água potável e à captação e tratamento de esgoto geram,
a um só tempo, evitação de doenças e tratamento médico-hospitalares; uma melhor
qualidade de vida à população; economia de recursos públicos, pois os maiores gastos
com o saneamento básico são feitos uma única vez, enquanto o tratamento da
população em razão de sua falta é permanente; uma efetiva melhoria na qualidade
ambiental de um modo geral; dentre outros resultados positivos.

Dada à relevância do saneamento, sua execução direta pelo poder público é uma
necessidade se o Brasil tiver como meta a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a
redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos (art. 3.º
da CF/1988 (LGL\1988\3)). Só assim o governo estaria efetivando políticas sociais
sérias, conforme os ditames da justiça social (art. 170 da CF/1988 (LGL\1988\3)).

Contudo, a política neoliberal privatista com que se depara, coincidentemente ou não,


está distante desses ideais e, ao mesmo tempo, em plena harmonia com os interesses
de grandes corporações transnacionais, que, "apoiadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI), estão ofensivamente assumindo a administração dos
serviços públicos de água, enquanto aumentam drasticamente o preço dela para os
residentes locais, lucram, especialmente, com a busca desesperada do Terceiro Mundo
por soluções de combate à crise de água." (Barlow; Clarke, 2003:xxv). Não se precisa ir
muito longe para perceber a realidade do aumento das tarifas a partir da privatização de
serviços públicos, bastando que se atente para os valores cobrados pelas empresas de
telefonia e de energia elétrica que hoje dominam o mercado nacional. E, lembre-se, no
tocante ao saneamento tem-se uma situação agravante: falta de competitividade em
razão do monopólio natural do serviço.

4. Considerações finais
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SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

A água é um dos recursos naturais mais importantes para a vida, pois, ao lado do ar que
se respira, é fundamental em toda a trajetória delimitada entre o nascimento e a morte.
Um bem dessa envergadura não pode estar nas mãos da exploração privada. Pertence a
todos, devendo ser administrado pelo poder público, ente abstrato que tem como missão
a satisfação do interesse social. O Estado tem a incumbência de proteger e de preservar
a água para a atual e para as futuras gerações, na medida em que, com o auxílio da
sociedade que representa, exerce os encargos de seu depositário e guardião.

O saneamento básico é condição mínima de reconhecimento da dignidade da pessoa


humana. Sem água tratada e escoamento do esgoto sanitário nenhuma família pode-se
constituir adequadamente, nenhuma criança tem assegurado seu direito a um
desenvolvimento integral, em condições dignas e de liberdade. A falta ou deficiência
significativa na prestação desse serviço público essencial gera doenças evitáveis, morte,
baixo padrão de qualidade de vida; enfim, sem ao menos o ser humano sair de casa de
banho tomado e com sua sede saciada, que oportunidades de vida terá nos grupamentos
sociais?

O vizinho Uruguai deu demonstração recente de como o assunto deve ser enfrentado.
Em 31.10.2004, paralelamente à eleição do novo presidente da república, o povo
uruguaio foi às urnas para ser consultado acerca dos rumos que seu País deveria dar à
água. O resultado é uma emenda constitucional que reconheceu a água como de
domínio público estatal, dispondo ainda que o serviço público de saneamento e o serviço
20
de abastecimento de água para o consumo humano serão prestados exclusiva e
diretamente por pessoas jurídicas estatais.

Traçando-se um paralelo com nossa legislação, pode-se afirmar que o Uruguai avançou
muito. Isso porque, apesar de o Brasil ter declarado por lei que toda a água é pública,
não vedou a possibilidade de privatização do serviço de saneamento público. Em
verdade, os governos de todos os níveis federativos sofrem pressão interna para
implementar um efetivo serviço de saneamento e, para darem vazão a esse anseio
social, preferem transferir a responsabilidade à iniciativa privada, fazendo-se como
forma de se livrarem de um "grande problema", ainda que, assim agindo, estejam
gerando danos irreparáveis ou de difícil reparação ao interesse público.

A mercantilização e a privatização da água também são estimuladas por virem ao


encontro dos interesses de "parceiros" do Brasil de grande expressão internacional, que
não solicitam; ao revés, ditam as políticas que devem ser desenvolvidas pelos países de
Terceiro Mundo, os quais se encontram, mais do que nunca, escravizados pela
dependência econômica. Assim, embora a gestão democrática interna da água seja
reconhecida em nosso sistema jurídico-normativo, na realidade não tem proteção
efetiva, prática.

Exemplo de participação concreta da sociedade na solução das controvérsias envolvendo


os recursos hídricos nos dá o Tribunal das Águas de Valencia, que há mais de mil anos
reúne na Espanha um grupo de camponeses, com mandato temporário, para solver
conflitos que lhe são trazidos por outros agricultores. Os fundamentos desse Tribunal
espanhol evidenciam importantes lições em torno da relevância da água e com que
seriedade ela deve ser tratada, democraticamente. Dentre elas, pode-se extrair o
ensinamento de que a água ou os conflitos que a cercam devem ser administrados por
quem está próximo, jamais por grandes corporações transnacionais ou por organismos
internacionais, que visam, sobretudo, ao lucro.

O Brasil somente assegurará justiça social se vier a estabelecer uma política em torno
dos recursos hídricos que se concretize na prática. Ela deve ter como norteadora a
diretriz de que a água é integralmente pública, e que, como tal, deve ser gerida com
vistas à satisfação prioritária do interesse coletivo. Com essa postura, estará
resguardando um direito fundamental do homem e outorgando-lhe melhores níveis de
qualidade de vida. No plano externo, a postura ora preconizada reforçará a soberania
nacional, que muitas vezes tem sido violada sem que haja respostas adequadas de parte
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SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

de nossa República Federativa.

Enfim, não é a carência de recursos econômicos que faz com que um país tenha
deficiências de saneamento. Recursos não faltam. O que não se tem são políticas
corretas, seriedade, retidão de caráter daqueles que poderiam modificar a triste
realidade com a qual o povo brasileiro depara-se diariamente. Pode-se dizer isso com
tranqüilidade porque, ao longo de muito tempo, as notícias vêm dando conta da
corrupção em grande escala que assola a classe política e empresarial dominante, que se
move, não raras vezes, almejando apenas vantagens pessoais, esquecendo-se de olhar
em sua volta. O que não se pode aceitar é que, por serem corriqueiras, essas notícias
passem a ser tidas como normais. A indignação tem de estar presente sempre, e é com
ela que se poderá combater inúmeras posturas nefastas, como a mercantilização e a
privatização da água, tal como fez a população uruguaia, que nos deu o exemplo e nos
mostrou o caminho a ser trilhado, logo, sob pena de, amanhã, ser tarde demais para
tentar percorrê-lo.

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4 A redução das desigualdades sociais constitui um dos objetivos fundamentais de nossa


República Federativa (art. 3.º, III, da CF/88 (LGL\1988\3)).

1 Serão utilizados como sinônimos os termos água (ou águas) e recurso hídrico (ou
recursos hídricos), pois não é encontrada diferenciação científica relevante, apesar de
parte da doutrina apontar distinção entre eles. Nesse sentido, Juliana Santilli destaca o
seguinte: "Antes de mais nada, cabe indagar: existe distinção entre os termos recursos
hídricos e águas? Para alguns especialistas, o termo recursos hídricos deve ser
empregado apenas quando se tratar de questões atinentes ao uso, adotando-se a
segunda denominação quando, ao se tratar das águas em geral, forem incluídas aquelas
que não devem ser usadas por questões ambientais. Ou seja, sempre que a proteção
ambiental das águas for considerada, o termo águas deve ser substituído por recursos
hídricos" (Santili, 2003:647). Ante o que dispõem o Código de Águas e a Lei 9.433/97,
que não distinguem as expressões, comunga-se do entendimento de Maria Luiza
Granziera: "A Lei 9.433/97 não distingue o termo 'água' da expressão 'recursos
hídricos'" (Granziera, 2001:30).

2 Salvo em regiões do mundo tradicionalmente secas.

3 Arts. 11 a 22 da Lei de Águas (Lei 9.433/97).

5 Essa é a Conclusão 13 da Carta de São Paulo - 2003, elaborada no 7.º Congresso


Internacional de Direito Ambiental (Benjamin [Org.], 2004).

6 As francesas Vivendi Universal e a Suez, pioneiras na construção da indústria da água,


somadas hipoteticamente, controlam mais de 70% do mercado da água mundial
existente (Barlow; Clarke, 2003:128).

7 Acresça-se que a Associação Norte-Americana de Livre Comércio (NAFTA) e a


Organização Mundial do Comércio (OMC) já declararam a água como mercadoria
negociável, sendo classificada com um bem comercial, um serviço e um investimento
(Barlow; Clarke, 2003:116).

8 "O Banco Mundial, juntamente com outros organismos financeiros internacionais, está
'orientando' os países endividados a privatizarem seus serviços, sob o argumento de que
o setor nesses países é supostamente incompetente. Os empréstimos a alguns países
empobrecidos estão sendo condicionados à desregulação dos serviços de água e à
abertura desses setores aos investimentos privados. Alguns países pobres como
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SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

Moçambique, Benim, Nigéria, Gana, Ruanda, Honduras, Iêmen, Tanzânia, Camarões e


Quênia se viram obrigados a privatizar seus serviços como condição para receber
créditos do novo serviço para o crescimento e luta contra a pobreza do FMI. Em lugar de
mitigar a pobreza, a privatização significa que as famílias empobrecidas deixam de
dispor economicamente da possibilidade de acessar a água" (Irigaray, 2003:390-391).

9 Consoante se frisou alhures: "Ora, em que pese estejamos passando pela crise da
água que assola o mundo - porque também fomos seus causadores -, mas tendo ciência
de que os recursos hídricos são fonte de riqueza no século em curso, e possuindo
substancial quantidade desse recurso ambiental, nosso País tem condições de reverter a
atual situação desfavorável, terminando por beneficiar-se da escassez mundial, pois,
resolvendo a questão da qualidade de suas águas, pode muito bem passar a ser um
fornecedor de água potável para o mundo. E uma coisa é certa: a valorização desse
recurso ambiental será progressiva." (Viegas, 2005:57).

10 Sobre o tema: "Num discurso geral sobre os direitos do homem, deve-se ter a
preocupação inicial de manter a distinção entre teoria e prática, ou melhor, deve-se ter
em mente, antes de mais nada, que teoria e prática percorrem duas estradas diversas e
a velocidades muito desiguais. Quero dizer que, nestes últimos anos, falou-se e continua
a se falar de direitos do homem, entre eruditos, filósofos, juristas, sociólogos e políticos,
muito mais do que se conseguiu fazer até agora para que eles sejam reconhecidos e
protegidos efetivamente, ou seja, para transformar aspirações (nobres, mais vagas),
exigências (justas, mas débeis), em direitos propriamente ditos (isto é, no sentido em
que os juristas falam em 'direito')" (Bobbio, 1909:67).

11 Um dos motivos de terem sido privilegiados investimentos em água foram os


menores custos em comparação com o serviço de esgotamento sanitário e retornos mais
rápidos ante o pagamento de tarifas.

12 Não se pode esquecer que água e saúde estão diretamente relacionadas, e que a
saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196 da CF/88 (LGL\1988\3)), que deve
priorizar atividades preventivas (art. 198, II, da CF/88 (LGL\1988\3)).

13 Reconhece-se, contudo, que há entendimentos no sentido de que se trata de serviço


público impróprio do Estado, consoante entendeu o STJ no julgamento do REsp
525500/AL, 2.ª T., Relatora Ministra Eliana Calmon, DJ 10.05.2004, p. 235.

14 EREsp 337965/MG, 1.ª Seção, Relator Ministro Luiz Fux, DJ 08.11.2004, p. 155.

15 "A privatização do saneamento básico". Disponível na internet em


http//www.senado.gov.br. Acesso em 12.04.2005.

16 Embora possível, no plano puramente normativo, a delegação do serviço de


saneamento básico por permissão, a regra é que seja feito por concessão, já que a
permissão, por ser ato unilateral de natureza precária, não se compatibiliza com os
investimentos elevados que demandam o setor, implicando relação duradoura, estável e
com garantias razoáveis em favor de quem assume a prestação do serviço.

17 Continuar-se-á utilizando a expressão privatizaçãodos serviços de saneamento


básico, pois é o mais usual e simplificado, sinalando-se, contudo, que a melhor técnica é
o uso da privatizaçãoda execução dos de saneamento básico.

18 Reconhece-se, contudo, haver posição no sentido de que esse prazo não pode ser
considerado como o limite para as concessões (Mello, 1993:473).

19 "Ação direta de inconstitucionalidade. Autorização do Poder Executivo para licitar a


concessão de serviço de águas e esgoto. Tema que deve ser submetido à Câmara de
Vereadores. Mesmo nos casos de saneamento e limpeza urbana. Inconstitucionalidade
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SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA

formal por ofensa aos princípios da legalidade e da harmonia e independência dos


poderes. Ação julgada procedente".

20 A terminologia foi empregada pela Constituição Uruguaia, podendo parecer


redundante, já que se sustenta que o serviço de saneamento compreende o de
abastecimento de água.

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