Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
1. Introdução
Outra importante medida adotada por nosso sistema positivo foi a publicidade integral
dos recursos hídricos. Até o advento da Constituição de 1988, o proprietário do imóvel
estendia seu domínio sobre todas as águas armazenadas na superfície e abaixo dela,
Página 1
SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
Aspecto crucial na modelagem da relação entre o homem e a água neste novo século
está relacionado à mercantilização do recurso ambiental (art. 3.º, V, da Lei 6.938/81)
sub examine e à privatização do serviço de saneamento básico. Trata-se de temas
interligados, porém com divergências bem visíveis. Por um lado, mercantilização e
privatização têm como ponto de contato o fato de que a água, como bem escasso que é,
passa a ser alvo de interesse financeiro galopante, sujeitando-se à teoria econômica
conhecida por lei da oferta e da procura. De outro norte, ao contrário do que sugere o
título deste trabalho, que foi assim posto em decorrência de seu tom instigante,
mercantilização e privatização não incidem ambos sobre a água, já que a segunda, ao
menos no cenário jurídico brasileiro, se refere ao serviço de saneamento. Reconhece-se,
contudo, que é usual na literatura e correta a utilização dos termos mercantilização e
privatização da água quando se pretende dar o sentido de que esse bem está deixando
de ser gerido pelo poder público e passando às mãos da iniciativa privada e que, além
disso, o novo gestor almeja primordialmente auferir lucro com o seu negócio,
desimportando-se com o valor social dos recursos hídricos ou deixando-o em plano
secundário.
Pretender-se-á, neste espaço, fazer uma análise tão pormenorizada quanto possível da
inserção da água no conceito de mercadoria e da privatização do serviço de saneamento
básico, tendo-se sempre como norte uma visão jurídica do assunto. Para tanto, contudo,
é imprescindível a adoção de um posicionamento em torno da temática, que se adianta,
será marcada pelo combate às já referidas mercantilização e privatização, porquanto
priorizam a satisfação de interesses privados em detrimento do interesse público de
todos os povos.
Página 2
SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
2. Mercantilização da água
A água tem múltiplos usos (art. 1.º, da Lei 9.433/97) e valores. Afloram nos
sentimentos humanos os valores sociais, religiosos, turísticos e paisagísticos dos
recursos hídricos, que prescindem de maiores explicações. Já o valor econômico da água
vem sendo introjetado nos últimos anos em nosso cotidiano, pois, antes, ter acesso ao
líquido fundamental era algo simples, inato, sem notáveis repercussões financeiras no
orçamento familiar e de produção.
Como a água integra o meio ambiente, a ela se aplicam os princípios gerais do Direito
Ambiental, destacando-se os princípios da prevenção, da precaução, do
5
poluidor-pagador e do usuário-pagador. Tendo-se positivado o valor econômico da água,
fica viabilizada a cobrança por seu uso de acordo com os princípios de que o usuário e o
poluidor do líquido devem internalizar os custos da poluição ambiental que geram e/ou
do uso dos recursos naturais no processo de produção/utilização, que repercutirá no
custo final do produto (Viegas, 2005:108-109). Vale lembrar que "o princípio em
questão pretende fazer com que os custos não sejam suportados, nem pelo Poder
Público, nem por terceiros, mas sim pelos utilizadores" (Oliveira, 2003:308).
A denominada crise da água deve ser enfrentada com uma política nacional e mundial
adequada, com a aplicação efetiva da legislação que protege o meio ambiente e os
recursos hídricos mais especificamente, com investimento em saneamento básico, com
redução da poluição ambiental e recomposição das áreas atingidas, com o envolvimento
comunitário na adoção de medidas de preservação e proteção da água e com o
pagamento pela água como forma de reduzir o seu consumo (Viegas, 2005). Portanto,
ao contrário do que se possa imaginar, o problema não é reconhecer a água como bem
econômico, mas saber que conseqüências advirão desse novel paradigma.
Já foi visto acima que a cobrança tem como pressuposto a outorga. A Lei de Águas (Lei
9433/97) dispensa dita autorização estatal, conforme definido em regulamento, do uso
de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos
populacionais, distribuídos no meio rural; das derivações, captações e lançamentos
considerados insignificantes; e das acumulações de volumes de água consideradas
insignificantes (art. 12. § 1.º). Resta saber como será complementado esse regramento
legal, assim como aguardar a fixação dos valores a serem cobrados quando a outorga
for impositiva. Essas deliberações estão a cargo dos Comitês de Bacia Hidrográfica (art.
38, V e VI) e dos Conselhos Nacionais e Estaduais de Recursos Hídricos (art. 35, IV).
Recursos Hídricos (art. 5.º, IV, da Lei 9.433/97) é a conscientização, por parte dos
atores de sua execução, de que a água é um direito fundamental do homem. Em
verdade, "a água é, dentre os bens de um modo geral, talvez o que mais deva ser
utilizado por todos, de forma universal e igualitária, porquanto é um direito fundamental
relacionado a tantos outros, como o direito à vida, à saúde e, em especial, à dignidade
da pessoa humana." (Viegas, 2005:91).
Mercantilizar a água é sobrepor seu valor econômico ao valor social que lhe é inerente; é
antepor o interesse privado ao interesse público; é dar aos recursos hídricos conotação
eminentemente comercial, em que a obtenção de lucro é o objetivo primordial no trato
desse bem natural; é ganhar cada vez mais com a venda do "produto" na medida em
que a crise global da água se intensifica; é negar o acesso de todos à água em qualidade
e quantidades satisfatórias ao provimento das necessidades dos seres vivos,
possibilitando o alcance apenas àqueles com condições econômicas para "desfrutar" da
água.
O livro Ouro azul, de Barlow e Clarke (2003), retrata com propriedade a lastimável
realidade do comércio da água em nível mundial, assim como os interesses que estão
em jogo. Segundo a obra, tudo está à venda. Ou seja, mesmo aqueles bens antes fora
do comércio, como serviços sociais e recursos naturais, que já foram considerados a
herança de uma geração a outra, hoje integram o livre mercado. Os governos vêm
abrindo mão de sua responsabilidade em proteger e gerenciar os recursos ambientais,
passando a autoridade por sua exploração a empresas privadas, que fazem dessa
delegação um "negócio" como tantos outros. Segundo o Banco Mundial e as Nações
Unidas, a água é conceituada como uma "necessidade humana", e não como um "direito
humano". Essa distinção é de extrema relevância, na medida em que o segundo é
inalienável, ao contrário da primeira.
6
Segue o livro referindo que as corporações transacionais envolvidas com o "negócio" da
7
água são apoiadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional, deixando
bem claros seus objetivos: com a crise da água, criou-se uma maravilhosa oportunidade
de mercado para quem explora os recursos hídricos, devendo vigorar o princípio do
lucro. Atualmente, as 200 maiores corporações detêm tanto capital que suas vendas
anuais somadas alcançam o total da soma das economias de 182 dos 191 países do
mundo e que, das 100 maiores economias mundiais, 53 são corporações transacionais, e
não nações.
Maude Barlow e Tony Clarke sublinham que a "privatização da água", embora esteja
atualmente "em sua infância", é, segundo os especialistas na área de investimentos,
considerado o melhor setor do século atual. A exportação da água é um grande negócio.
Efetivamente, esse recurso vem sendo cada vez mais transportado pelo mundo, à
semelhança do que ocorre com o petróleo há longa data. Para as empresas envolvidas
no comércio mundial da água, a questão é singela: resume-se em fatores de suprimento
e demanda, estando, do lado do suprimento, países como o Brasil, ricos em água doce;
e, na face da demanda, países e regiões carentes de recursos hídricos, como o Oriente
Médio e a China.
Página 4
SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
Facilitando o mercado, o transporte da água foi e está sendo cada vez mais viabilizado
com o desenvolvimento de novas tecnologias, como por meio de bolsas de água,
puxadas por rebocadores ao longo dos cursos d'água, e que podem ter capacidade muito
superior à dos grandes navios-tanque; aquedutos (bastante utilizados hoje na irrigação
agrícola); navios-tanque e superpetroleiros (que, estima-se, no futuro levarão petróleo
ao seu destino e voltarão à origem carregados com água); canais; e mesmo por
intermédio de água já engarrafada (atualmente o que mais cresce). Tão sedutor é o
comércio da água que hoje há uma grande disputa comercial entre a PepsiCo e a
Coca-Cola, corporações gigantes que outrora concorriam apenas no mercado de
refrigerantes, e que agora também contendem no segmento da água engarrafada.
Impõe-se refletir se, v.g., em momento de grande crise econômica, o Brasil recusaria
um empréstimo necessário ou a renegociação de sua dívida em troca da concessão de
outorgas de longo prazo para a exploração, por corporações internacionais, de parte
significativa de mananciais de água doce, ainda que com sacrifício das populações que
dependem dos supramencionados recursos hídricos.
3. Privatização da água
No sistema pátrio, quem abastece a população com água também deve ser responsável
pela destinação dos resíduos líquidos. As redes de fornecimento de água e de coleta de
esgoto são diversas, mas a cobrança pelos serviços é vinculada. Como é muito difícil
mensurar a quantidade de esgoto despejado na rede geral, estima-se que quem
consome mais água produz mais resíduos líquidos, pelo que a remuneração do serviço
de saneamento é atrelada à quantidade de água consumida. Daí conclui-se que o uso de
fonte alternativa em região dotada de saneamento básico implica enriquecimento ilícito,
na medida em que o usuário da rede de esgotamento não está pagando - ao menos na
proporção devida - pelo serviço que está utilizando, com isso acarretando prejuízo à
coletividade, que acabará suportando esse custo gerado e não remunerado por quem era
Página 6
SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
Para que o saneamento público seja efetivo, é necessário que o prestador do serviço
tenha por norte alguns princípios ou diretrizes, dentre as quais se podem destacar a
universalidade e eqüidade: acesso de todos ao saneamento e com o mesmo nível de
qualidade, sem discriminação; integralidade: provimento de todas as diversas naturezas
do serviço; continuidade: por ser essencial, o serviço não pode sofrer interrupções, salvo
em casos excepcionais; eficiência e segurança: o usuário deve receber serviço eficiente e
seguro, pois está consumindo um produto que pode lhe gerar graves repercussões em
sua saúde, vida, finanças; modicidade dos valores cobrados: necessária para não
dificultar o acesso ao serviço, que é, sabidamente, essencial à dignidade da pessoa
humana, à preservação e proteção ambiental, bem como ao desenvolvimento
sustentável; participação social: em todo o processo que engloba o saneamento, desde o
estabelecimento de políticas para o setor até a execução e controle dos serviços, deve
estar presente o acompanhamento efetivo da sociedade, pois é a destinatária do produto
do saneamento; predomínio do valor social sobre o econômico: com base nesse
princípio, é possível sustentar, v.g., que a cobrança de valores diferenciados para as
populações carentes, garantindo-se o serviço de modo gratuito, até mesmo, para
consumos baixos, se a pessoa ou sua família não tem condições de pagar nem o mínimo.
12
Tendo-se em conta a crise da água, que assola o mundo de uma forma global, e que
sem água não há vida humana, animal ou vegetal, bem como o estabelecimento do uso
prioritário dos recursos hídricos para o consumo humano e a dessedentação de animais
em situações de escassez (art. 1.º, III, da Lei das Águas), chega-se à ilação de que o
Poder Público assumiu a dominialidade exclusiva desse recurso natural como forma de
geri-lo visando ao interesse da coletividade. Na medida em que a Constituição disciplina
competir privativamente à União instituir diretrizes para o desenvolvimento de
saneamento básico (art. 21, XX, da CF/1988 (LGL\1988\3)) e confere a todos os entes
federados competência comum para promover programas de saneamento básico (art.
13
23, IX, da CF/1988 (LGL\1988\3)), instituiu um serviço público próprio do Estado
(Mello, 1993:435) e de caráter essencial, consoante expressamente consignado em
14
recente ementa do Superior Tribunal de Justiça. Sendo inquestionável a repartição
constitucional da propriedade das águas entre a União (art. 20, III, da CF/1988
(LGL\1988\3)) e os Estados (art. 26, I, da CF/1988 (LGL\1988\3)), resta saber de quem
é a titularidade pela prestação do serviço de saneamento básico.
positivo, uma vez que, dentre os elementos próprios das constituições, está o de
estabelecer normas que regulam a estrutura do Estado e do Poder, as quais estão
compreendidas no Título III da CF/88 (LGL\1988\3), que trata especificamente "Da
organização do Estado".
Victor Pinto assenta que, "Na prática, o serviço é prestado como se fosse de
competência estadual, inexistindo qualquer regulamentação municipal". Segue
enfatizando que os contratos estão-se vencendo, o que fará com que os Municípios
celebrem novos contratos. Como a PLANASA entrou em crise na década de 1990, sendo
a maior parte das CESBs ineficientes e deficitárias, muitos Municípios têm optado por
desvincular-se das paraestatais referidas. Alguns entes federados municipais criaram
órgãos próprios para o desenvolvimento direto da atividade, na forma de departamentos
ou autarquias, recebendo, com esse perfil institucional, imunidade tributária. O autor
salienta, ainda, que outros Municípios concederam o serviço à iniciativa privada, o que
tem gerado freqüentes conflitos com as empresas estaduais, que cobram indenizações
pelos investimentos realizados.
Há, portanto, um inquestionável ponto de conflito entre grande parte dos Municípios e os
Estados. De um lado, os Estados-membros constituíram paraestatais com a finalidade
específica de prestar o serviço de saneamento básico, sendo investidos, via de
conseqüência, vultosos recursos públicos nessa atividade. Por outro, importa saber se,
no plano jurídico, os Municípios são realmente os titulares do serviço em questão, pois
só em caso positivo poderão excluir a participação das CESBs da atividade, assumir sua
execução ou concedê-la à iniciativa privada, o que será objeto de análise em seguida.
Hely Lopes Meirelles (1957) deixa bem claro seu posicionamento no sentido de que:
Todavia, não se pode afirmar ser a referida titularidade exclusiva da municipalidade. Não
raras vezes há interesse regional apto a caracterizar como dos Estados a competência
material sobre serviços de saneamento básico. Na Constituição, o art. 25, §§ 1.º e 3.º
dão respaldo ao que se sustentou. É necessário, contudo, que os Estados editem lei
complementar para instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e
microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a
organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum. Tal
interesse afasta a competência dos municípios, como leciona Alaôr Caffé Alves (Alves,
1998:32). Assim sendo, se houver compartilhamento de instalações e/ou equipamentos
em região metropolitana instituída por lei complementar estadual, v.g., o serviço de
saneamento assume interesse predominantemente comum, ficando o Estado-membro
respectivo autorizado a desenvolver, como titular, trabalhos de fornecimento de água
por rede geral e de esgotamento básico.
Em qualquer caso, é facultado ao titular do serviço promover a sua delegação, caso não
tenha interesse em prestá-lo diretamente. Quando o delegado é da iniciativa privada,
utiliza-se comumente a expressão privatizaçãodo serviço de saneamento básico. Ela é
empregada não no sentido de que o poder público outorga a titularidade do serviço ao
17
setor privado, mas a gestão desses serviços, inclusive a execução das respectivas obras
de infra-estrutura, reservando-se a disciplina regulamentar, o controle e a fiscalização
próprios do poder concedente (Alves, 1998:23). A delegação deve-se dar por concessão
ou permissão, sempre através de licitação, na forma do art. 175 da CF/1988
(LGL\1988\3).
(...)
VIII - para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos
ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública e que
tenha sido criado para esse fim específico em data anterior à vigência desta Lei, desde
que o preço contratado seja compatível com o praticado no mercado";
Como as CESBs foram criadas na década de 1970, podem renovar indefinidamente com
os municípios contratos de concessão de serviço de saneamento básico
independentemente de licitação. Quanto à exigência de que o preço seja compatível ao
praticado no mercado, bem aponta Alaôr Caffé Alves que deve haver verificação de fato,
devendo o valor ser razoável e compatível com a média do mercado (Alves, 1998:59). O
mesmo autor destaca que, no saneamento, não é possível repartir uma mesma
infra-estrutura para a prestação do serviço por mais de um ente de modo simultâneo, já
que, para tanto, seria necessária a implantação de duas redes paralelas, no mesmo
limite territorial, o que considera um absurdo. Por essa razão é que esse tipo de serviço
é chamado de monopólio natural (Alves, 1998:30).
Além da motivação acima declinada, entende-se que o tempo demonstrou que o Brasil
agiu com acerto ao estabelecer a política de criação das CESBs, pois só com elas foi
possível a efetivação do subsídio cruzado, consistente em estabelecer um equilíbrio
global de prestação do serviço, importando mais o conjunto de municípios alcançados
pela rede de saneamento do que um ou outro especificamente. Assim, se alguns
municípios pequenos não são auto-sustentáveis, outros superavitários fazem com que a
empresa estadual consiga se equilibrar financeiramente. Agora, se os municípios com
boas condições econômicas resolverem executar diretamente o saneamento, como
ficarão, de um modo geral, aqueles mais pobres e sua população? Será que as empresas
privadas investirão em áreas carentes de recursos financeiros ou com outras dificuldades
importantes, como deficiência de recursos hídricos?
A corriqueira alegação dos gestores públicos de que inexistem recursos para aplicar no
setor não convence, porquanto, em verdade, pelas razões já elencadas, o saneamento
básico deve constituir prioridade do poder público. Apesar de os custos serem elevados,
alguns países se convenceram da relevância de investir na área, dispondo-se
politicamente a isso e obtendo expressivos resultados em curto prazo, como é o caso do
Chile: "O Chile foi citado como exemplo onde a vontade política fez a diferença, por ter
ampliado cobertura de saneamento de 17% para 70% em três anos" (Duarte, 2003:39).
Dada à relevância do saneamento, sua execução direta pelo poder público é uma
necessidade se o Brasil tiver como meta a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a
redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos (art. 3.º
da CF/1988 (LGL\1988\3)). Só assim o governo estaria efetivando políticas sociais
sérias, conforme os ditames da justiça social (art. 170 da CF/1988 (LGL\1988\3)).
4. Considerações finais
Página 11
SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
A água é um dos recursos naturais mais importantes para a vida, pois, ao lado do ar que
se respira, é fundamental em toda a trajetória delimitada entre o nascimento e a morte.
Um bem dessa envergadura não pode estar nas mãos da exploração privada. Pertence a
todos, devendo ser administrado pelo poder público, ente abstrato que tem como missão
a satisfação do interesse social. O Estado tem a incumbência de proteger e de preservar
a água para a atual e para as futuras gerações, na medida em que, com o auxílio da
sociedade que representa, exerce os encargos de seu depositário e guardião.
O vizinho Uruguai deu demonstração recente de como o assunto deve ser enfrentado.
Em 31.10.2004, paralelamente à eleição do novo presidente da república, o povo
uruguaio foi às urnas para ser consultado acerca dos rumos que seu País deveria dar à
água. O resultado é uma emenda constitucional que reconheceu a água como de
domínio público estatal, dispondo ainda que o serviço público de saneamento e o serviço
20
de abastecimento de água para o consumo humano serão prestados exclusiva e
diretamente por pessoas jurídicas estatais.
Traçando-se um paralelo com nossa legislação, pode-se afirmar que o Uruguai avançou
muito. Isso porque, apesar de o Brasil ter declarado por lei que toda a água é pública,
não vedou a possibilidade de privatização do serviço de saneamento público. Em
verdade, os governos de todos os níveis federativos sofrem pressão interna para
implementar um efetivo serviço de saneamento e, para darem vazão a esse anseio
social, preferem transferir a responsabilidade à iniciativa privada, fazendo-se como
forma de se livrarem de um "grande problema", ainda que, assim agindo, estejam
gerando danos irreparáveis ou de difícil reparação ao interesse público.
O Brasil somente assegurará justiça social se vier a estabelecer uma política em torno
dos recursos hídricos que se concretize na prática. Ela deve ter como norteadora a
diretriz de que a água é integralmente pública, e que, como tal, deve ser gerida com
vistas à satisfação prioritária do interesse coletivo. Com essa postura, estará
resguardando um direito fundamental do homem e outorgando-lhe melhores níveis de
qualidade de vida. No plano externo, a postura ora preconizada reforçará a soberania
nacional, que muitas vezes tem sido violada sem que haja respostas adequadas de parte
Página 12
SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
Enfim, não é a carência de recursos econômicos que faz com que um país tenha
deficiências de saneamento. Recursos não faltam. O que não se tem são políticas
corretas, seriedade, retidão de caráter daqueles que poderiam modificar a triste
realidade com a qual o povo brasileiro depara-se diariamente. Pode-se dizer isso com
tranqüilidade porque, ao longo de muito tempo, as notícias vêm dando conta da
corrupção em grande escala que assola a classe política e empresarial dominante, que se
move, não raras vezes, almejando apenas vantagens pessoais, esquecendo-se de olhar
em sua volta. O que não se pode aceitar é que, por serem corriqueiras, essas notícias
passem a ser tidas como normais. A indignação tem de estar presente sempre, e é com
ela que se poderá combater inúmeras posturas nefastas, como a mercantilização e a
privatização da água, tal como fez a população uruguaia, que nos deu o exemplo e nos
mostrou o caminho a ser trilhado, logo, sob pena de, amanhã, ser tarde demais para
tentar percorrê-lo.
5. Referências bibliográficas
BARLOW, Maude; CLARKE, Tony. Ouro Azul. São Paulo: M. Books, 2003.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo:
Malheiros, 1996.
BRUNONI, Nivaldo. "A tutela das águas pelo município" In: FREITAS, Vladimir Passos de
(Org.). Águas: aspectos jurídicos e ambientais. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2003.
CAUBET, Christian Guy. A água, a lei, a política ... e o meio ambiente? Curitiba: Juruá,
2005.
DUARTE, Letícia. "Privatização de esgoto é rejeitada". Zero Hora, Porto Alegre, p. 39, 10
out. 2003.
GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito de Águas: disciplina jurídica das águas doces.
São Paulo: Atlas, 2001.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 8. ed., atual. São Paulo: Malheiros,
1996.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 10. ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Malheiros, 1998.
Página 13
SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
RODRIGUES, Ney Lobato; CARVALHO, William Ricardo do Amaral. In: ARAÚJO, Luiz
Alberto David (Coord.). Tutela da Água e algumas implicações nos direitos fundamentais.
Bauru: ITE, 2002. p. 201-221.
VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2005.
1 Serão utilizados como sinônimos os termos água (ou águas) e recurso hídrico (ou
recursos hídricos), pois não é encontrada diferenciação científica relevante, apesar de
parte da doutrina apontar distinção entre eles. Nesse sentido, Juliana Santilli destaca o
seguinte: "Antes de mais nada, cabe indagar: existe distinção entre os termos recursos
hídricos e águas? Para alguns especialistas, o termo recursos hídricos deve ser
empregado apenas quando se tratar de questões atinentes ao uso, adotando-se a
segunda denominação quando, ao se tratar das águas em geral, forem incluídas aquelas
que não devem ser usadas por questões ambientais. Ou seja, sempre que a proteção
ambiental das águas for considerada, o termo águas deve ser substituído por recursos
hídricos" (Santili, 2003:647). Ante o que dispõem o Código de Águas e a Lei 9.433/97,
que não distinguem as expressões, comunga-se do entendimento de Maria Luiza
Granziera: "A Lei 9.433/97 não distingue o termo 'água' da expressão 'recursos
hídricos'" (Granziera, 2001:30).
8 "O Banco Mundial, juntamente com outros organismos financeiros internacionais, está
'orientando' os países endividados a privatizarem seus serviços, sob o argumento de que
o setor nesses países é supostamente incompetente. Os empréstimos a alguns países
empobrecidos estão sendo condicionados à desregulação dos serviços de água e à
abertura desses setores aos investimentos privados. Alguns países pobres como
Página 14
SANEAMENTO BÁSICO, MERCANTILIZAÇÃO E
PRIVATIZAÇÃO DA ÁGUA
9 Consoante se frisou alhures: "Ora, em que pese estejamos passando pela crise da
água que assola o mundo - porque também fomos seus causadores -, mas tendo ciência
de que os recursos hídricos são fonte de riqueza no século em curso, e possuindo
substancial quantidade desse recurso ambiental, nosso País tem condições de reverter a
atual situação desfavorável, terminando por beneficiar-se da escassez mundial, pois,
resolvendo a questão da qualidade de suas águas, pode muito bem passar a ser um
fornecedor de água potável para o mundo. E uma coisa é certa: a valorização desse
recurso ambiental será progressiva." (Viegas, 2005:57).
10 Sobre o tema: "Num discurso geral sobre os direitos do homem, deve-se ter a
preocupação inicial de manter a distinção entre teoria e prática, ou melhor, deve-se ter
em mente, antes de mais nada, que teoria e prática percorrem duas estradas diversas e
a velocidades muito desiguais. Quero dizer que, nestes últimos anos, falou-se e continua
a se falar de direitos do homem, entre eruditos, filósofos, juristas, sociólogos e políticos,
muito mais do que se conseguiu fazer até agora para que eles sejam reconhecidos e
protegidos efetivamente, ou seja, para transformar aspirações (nobres, mais vagas),
exigências (justas, mas débeis), em direitos propriamente ditos (isto é, no sentido em
que os juristas falam em 'direito')" (Bobbio, 1909:67).
12 Não se pode esquecer que água e saúde estão diretamente relacionadas, e que a
saúde é direito de todos e dever do Estado (art. 196 da CF/88 (LGL\1988\3)), que deve
priorizar atividades preventivas (art. 198, II, da CF/88 (LGL\1988\3)).
14 EREsp 337965/MG, 1.ª Seção, Relator Ministro Luiz Fux, DJ 08.11.2004, p. 155.
18 Reconhece-se, contudo, haver posição no sentido de que esse prazo não pode ser
considerado como o limite para as concessões (Mello, 1993:473).
Página 16