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Editorial
Este número da Revista Serviço Social & Sociedade apresenta, como re‑
ferência analítica, alguns desafios políticos e sociais que interpelam a profissão
no atual contexto societário de expansão de “diferentes matizes da extrema‑
-direita” cuja presença vem se tornando cada vez mais evidente nos últimos
anos, como revela um dos artigos aqui publicados. O que se observa é o agra‑
vamento das intolerâncias, frente ao diferente, o crescimento do desrespeito aos
direitos mais elementares do ser humano e processos de degradação da vida
humana e da natureza. Conjuntura em que ressurgem processos de remercanti‑
lização de direitos sociais e fortalece-se a defesa da tese de que cada indivíduo
é responsável por seu bem-estar.
A referência ao social, ao campo político e às atuais ameaças aos direitos
humanos emerge sob diferentes perspectivas nos artigos que compõem este
número. Cabe destacar que essas questões aparecem sempre com suas contra‑
posições e resistências expressas na luta pela liberdade entendida em seu sig‑
nificado ontológico-social que supõe, como nos mostra Barroco, a sociabilida‑
de, a alteridade e a equidade. A profissão (e seu projeto ético-político) é também
apresentada como forma de enfrentamento dessas questões que permeiam a
sociedade contemporânea.
Nesse debate, emerge, do ponto de vista filosófico como outra referência,
a análise do pensamento gramsciano sobre ideologia e política. Sabemos que
para Gramsci a ideologia não é mera aparência falsa da realidade, mas a compõe.
Para ele “não são as ideologias que criam a realidade social, mas é a realidade
social, na sua estrutura produtiva, que cria as ideologias [...]” (Gramsci,
1977:1595). Sem dúvida, a contribuição de Gramsci como um pensador dialé‑
tico marxista pode ser apreendida a partir de múltiplas categorias integradas, e
que podem ser interpretadas e utilizadas historicamente nas explicações sobre
o real.
Merece destaque ainda neste número a entrevista realizada por Raquel
Raichelis com Rodrigo Castelo: A questão do neodesenvolvimentismo e as
políticas públicas, temática relevante e de grande atualidade no debate atual da
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profissão, a questão do neodesenvolvimentismo vem sendo objeto de polêmicas
e análises no âmbito da economia política.
Enfim, o presente número da Revista busca trazer aos seus leitores algumas
pautas emergentes nos debates atuais, e que confrontam os chamados marcos
civilizatórios da sociedade contemporânea, ao colocarem os “direitos humanos
em questão”.
A todos e a todas, instigantes leituras!
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ARTIGOS
A extrema-direita na atualidade*
The far right nowadays
* Este ensaio é resultado do seminário temático “extrema-direita na atualidade”, organizado pelas autoras
como atividade do segundo semestre de 2013 do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética e Direitos Humanos
(Nepedh), PUC-SP, coordenado pela profa. dra. Maria Lucia Silva Barroco.
** Assistente social, docente da União Nacional dos Estudantes de São Paulo (Uniesp), especialista em
políticas públicas e direitos humanos (Fama), mestranda do Programa de Estudos Pós-graduados em Serviço
Social da PUC-SP, Brasil. E-mail: adri_britosilva@yahoo.com.br.
*** Assistente social, doutora em Serviço Social pela PUC-SP, Brasil; professora da Universidade Federal
Fluminense, polo de Rio das Ostras, pós-doutoranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço
Social da PUC-SP sob supervisão da profa. dra. Maria Lucia Silva Barroco. E-mail: crisbrites@uol.com.br.
**** Assistente social, agente fiscal do Cress 9ª Região, integrante do Nepedh, do Programa de Estudos
Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP, Brasil. E-mail: elianecress@hotmail.com.
***** Assistente social, mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da
PUC-SP, Brasil. E-mail: giovannaborri@hotmail.com.
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Abstract: This article aims at summarizing theoretical and critical elements of the different
graduations of the far right nowadays, as well as situating some of its historical configurations and
contemporary tendencies in Brazil and in countries where its presence has become clearer in the past
years. It results from a thematic seminar organized by Nepedh (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Ética
e Direitos Humanos — PUC-SP) and, although it does not work out the complexities of the theme, it
indicates relevant elements for the political agenda of the left, in the face of the barbarism and
manifestations of irrationalism inside bourgeois sociability.
Keywords: Irrationalism. The far right. Politics. Ethics and human rights.
Introdução
E
ste ensaio objetiva sintetizar elementos teórico-críticos sobre os
diferentes matizes da extrema-direita na atualidade, situando algumas
de suas configurações históricas e tendências contemporâneas no
Brasil e em países nos quais sua presença tornou-se mais evidente
nos últimos anos.
A relevância deste debate repousa sobre a perspectiva histórica dos di‑
reitos humanos e sua defesa intransigente em face da barbárie contemporânea.
Fundamenta-se na crítica teórica como instrumento primordial para orientar
práticas vinculadas à construção de uma nova ordem social que assegure a
emancipação humana. Coloca-se, assim, no campo da esquerda, cuja trajetó‑
ria histórica tem se configurado como força política que procura formular
alternativas à ordem burguesa na direção da superação da desigualdade e da
opressão.
Nesta perspectiva, o debate sobre as configurações atuais da extrema-di‑
reita, e seu crescimento em algumas sociedades, ultrapassa os limites de uma
tematização pontual e acadêmica, colocando-se como pauta central na agenda
política de toda esquerda1 interessada em compreender o mundo em sua pro‑
cessualidade objetiva para transformá-lo no horizonte de uma sociabilidade
livre e igualitária.
1. A esquerda como campo político é abordada neste ensaio apenas como contraponto à discussão da
direita e extrema-direita; sua análise foi objeto de seminário específico no interior do Nepedh.
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As manifestações de junho de 20132 que tomaram as ruas de inúmeras
cidades brasileiras colocaram vários desafios para a intelectualidade, para os
movimentos sociais, partidos e sindicatos que historicamente se vincularam às
bandeiras de luta dos trabalhadores. Dentre eles: entender a força mobilizadora
das novas tecnologias de informação e comunicação; a possibilidade de unifi‑
cação da agenda de lutas — inicialmente em protesto ao aumento das tarifas do
transporte coletivo e em defesa do passe livre —; o perfil da juventude vigoro‑
sa e contundente que tomou os espaços públicos; o significado da ostensiva (e
em algumas situações, violenta) recusa das formas clássicas de organização e
participação políticas em torno dos movimentos sociais, partidos e sindicados
e, principalmente, a presença de grupos conservadores e de extrema-direita que
do mesmo modo sentiram-se legitimados para expor em público suas convicções
segregadoras, irracionais e autoritárias.
A constatação do crescimento da extrema-direita na atualidade e sua
mera condenação ideológica parece-nos insuficiente para apreensão da ma‑
terialidade que lhes dá sustentação e da ação programática necessária para
sua superação.
Por isso, apreender a persistente, e indesejável, presença do ideário de
extrema-direita coloca-se como desafio ético-político fundamental àqueles que
recusam o irracionalismo, os discursos e práticas racistas, xenofóbicas, homo‑
fóbicas, sexistas e opressoras.
Assim, apresentamos nossas reflexões sobre a extrema-direita na atuali‑
dade, elaboradas com base numa pesquisa bibliográfica e documental que, sem
qualquer pretensão de esgotar o tema, procurou delimitá-lo em torno de alguns
eixos estruturantes.3
2. As análises sobre essas manifestações, seus desdobramentos e possível vinculação com outras revoltas
ocorridas em finais de 2010 e em 2011 (Primavera Árabe, Occupy Wall Street, Indignados da Espanha entre
outras) ainda estão em aberto. Uma aproximação competente com esses acontecimentos pode ser encontrada
em Maricato, E. et al. (2013).
3. As referências bibliográficas e o material de pesquisa que serviram de apoio para elaboração deste
ensaio estão indicados ao longo do texto em sistema de notas e não devem ser tomados como fontes seminais
sobre o tema, mas como guia que orientou as reflexões formuladas pelas autoras. O recurso às citações foi
necessário em várias passagens tendo em vista, especialmente, a diversidade das fontes consultadas e a
metodologia adotada para realização do seminário que balizou a elaboração deste ensaio.
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1. Direita e extrema-direita como campo político: aproximações
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e conservadorismo, à direita. […] ao longo do século XIX na Europa a distinção
entre esquerda e direita passa a ser associada com a distinção entre liberalismo
e conservadorismo”
O desenvolvimento do ser social e de suas modalidades de práxis introduz
novas forças sociais que interferem na configuração e nos limites desses campos
ideológicos. A constituição da classe trabalhadora como sujeito político — como
classe-para-si — e a difusão da crítica marxiana à sociabilidade burguesa —
vinculada à sua perspectiva revolucionária de classe — associam os conteúdos
de esquerda à defesa dos interesses dos trabalhadores. O crescimento das ideias
reformistas da social-democracia em finais do século XIX e a Revolução Rus‑
sa de 1917 marcam a delimitação dos interesses burgueses no campo ideológi‑
co da direita e dos trabalhadores no campo da esquerda.
A consolidação da hegemonia burguesa, seus mecanismos de reprodução
da ordem do capital, a alienação política e os dilemas estratégicos para responder
às configurações históricas das necessidades postas pela luta de classes amplia‑
ram o espaço político no qual esquerda e direita se moveram. A experiência do
nazifascismo, a geopolítica mundial durante e no imediato pós-Segunda Guerra
Mundial, a experiência do Estado de Bem-estar social, a disputa entre os blocos
capitalista e socialista são determinações que incidem sobre os campos ideoló‑
gicos da esquerda e da direita de forma diferenciada em cada sociedade.6
No plano político, conservadores e reacionários historicamente se manti‑
veram no campo ideológico da direita, resistindo a mudanças estruturais que
levassem a perdas de poder econômico e político. Reformistas, socialistas e
comunistas se colocaram em frentes comuns de defesa da democracia política
e/ou do projeto civilizatório da modernidade. Essa mobilidade conjuntural num
campo político mais amplo, marcada especialmente por coalizões políticas e/ou
partidárias, contribui para dificultar a delimitação precisa entre um e outro cam‑
po ideológico, gerando polêmicas analíticas e muitas confusões.
No Brasil essa dificuldade é ainda maior, dada as características de nossa
formação sócio-histórica marcada pela(o): colonização; escravismo prolongado;
6. As posições do Partido Comunista do Brasil na era Vargas são emblemáticas nesse sentido. Ver,
entre outros, Coutinho (2006); Frederico (1994); Sader (1995).
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herança patrimonialista, coronelista e conservadora de nossas elites; inserção
periférica no capitalismo mundial; transição não clássica ao capitalismo; tardia
formação do operariado urbano-industrial com forte influência da imigração
europeia e pouca tradição de esquerda.
No contexto contemporâneo, investe-se na despolitização da vida pública
e na recusa da validade ideológica da definição de esquerda e direita na política.
Contribuem para essa despolitização a derrocada do socialismo soviético, o
atual estágio de acumulação do capital e a ideologia pós-moderna. Esta última
recusando a centralidade do trabalho na vida social, os valores universais e
insistindo na perspectiva subjetivista e contingencial de análise da realidade.
Partidos, movimentos e políticos profissionais vinculados ao ideário bur‑
guês, portanto, aos interesses dominantes que os situam no campo da direita,
recusam tal associação diante da crítica contundente da esquerda revolucionária
sobre os limites da ordem do capital para realizar a igualdade e a emancipação
humanas. Por outro lado, segmentos oriundos da esquerda, especialmente aque‑
les que introduzem uma racionalidade instrumental na disputa pelo poder do
Estado, secundarizando princípios, valores e interesses à lógica da disputa
eleitoral, procuram se desvencilhar das pechas de totalitarismo e radicalismo
atribuídos à esquerda.
Bobbio e Anderson protagonizaram um fecundo debate teórico sobre o
campo político da esquerda e da direita. Bobbio, após extensa análise sobre o
tema propõe como critério para distinguir direita e esquerda a ideia de igualda‑
de e para distinguir a ala moderada da extremista, tanto na esquerda quanto na
direita, a postura diante da liberdade. Ao final de suas análises, apresenta uma
esquematização na qual define extrema-direita, centro-direita, extrema-esquer‑
da e centro-esquerda.7
Numa apreciação rasa do esquema proposto por Bobbio é possível verifi‑
car a introdução de uma posição de centro, tanto de esquerda quanto de direita,
que passa a funcionar como único divisor das posições extremistas. O centro
esquerda traduz a própria posição política do filósofo, que ele denomina de
7. Bobbio, N. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Unesp,
2011. p. 14-135.
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socialismo liberal, que, embora paradoxal, para ele abarca a social-democracia.
Nota-se que a esquerda clássica, revolucionária, passa a ser identificada com
autoritarismo e considerada antidemocrática.
Anderson é contundente na sua crítica ao esquema proposto por Bobbio,
explorando as concepções de igualdade e liberdade tratadas por esse autor e
tomadas como critérios definidores do campo político, além de criticar o papel
do centro e a ausência de uma referência à processualidade histórica. A crítica
de Anderson se dirige, em suas próprias palavras, “à lógica interna dos argu‑
mentos de Bobbio” e “ao contexto externo”. Revela absoluta simpatia ao apai‑
xonado apelo de Bobbio pela preservação dos conceitos de Direita e Esquerda.
No entanto, afirma,
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machismo, violência em nome da defesa de uma comunidade/raça considerada
superior. Compartilhando do ideário político vinculado aos interesses de domi‑
nação, opressão e apropriação privada da riqueza social, distancia-se da direita
tradicional pela intolerância e pela violência de suas ações, embora, quando
organizada em partidos ou associações públicas, recuse tais práticas por parte
de seus membros.
Tomando a realidade histórica como critério de verdade das formulações
teóricas, na sequência apresentamos alguns elementos visando assegurar maior
concretude à nossa discussão.
2. Matizes da extrema-direita
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problematizá-las em face de outras formas de irracionalismo. Para este autor, o
fascismo é uma
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vação e de superação que só são radicalmente ultrapassados por rupturas
revolucionárias.
Os momentos revolucionários presentes no processo de desenvolvimen‑
to e complexificação do ser social não foram capazes de ultrapassar as formas
históricas de sociabilidade fundadas na desigualdade de classes e na explo‑
ração do homem pelo homem. Desde a superação das sociedades comunais
primitivas, a emergência da propriedade privada e do Estado até o capitalis‑
mo contemporâneo, a história da humanidade é a história da luta de classes
(Marx). A marca diferencial dessa luta no capitalismo é sua reprodução
ampliada num estágio altamente desenvolvido das forças produtivas e do ser
social, no qual a desigualdade e a miséria não são determinações colocadas
pelo intercâmbio do homem com a natureza, mas condição para reprodução
da ordem do capital.
Neste sentido, concordamos com Paxton sobre a inviabilidade de reedição
do fascismo como experiência particular do contexto entre as duas grandes
guerras mundiais, ou seja, um fascismo com as mesmas características, simbo‑
lismo e programática seria uma impossibilidade histórica. Por outro lado, uma
vez que não foram superadas, no sentido revolucionário do termo, as determi‑
nações econômicas e políticas que contribuíram para sua emergência e ascensão
ao poder, práticas fascistas com outros matizes são plenamente possíveis na
atualidade.
Nesta perspectiva, tomando o fascismo como uma expressão emblemática
da barbárie, as análises de Paxton sobre esse fenômeno, a perspectiva histórica
e de totalidade sobre o desenvolvimento do ser social, o reconhecimento onto‑
lógico de que a raiz dos problemas e soluções para as necessidades humanas
deve ser buscada no próprio homem, nos propomos a discutir algumas expres‑
sões do fanatismo, do fundamentalismo e do campo político da extrema-direi‑
ta, considerando-os como formas de consciência histórica que emergem em
contextos de crise de dominação inerentes à reprodução de determinada forma
de relação entre os homens — sendo que, no contexto contemporâneo, trata-se
de uma crise estrutural do capital — e que jogam um peso diferenciado sobre
as potencialidades destruidoras de tais fenômenos em face do projeto civiliza‑
tório inaugurado pela modernidade.
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2.2 Expressões da barbárie: fanatismos e fundamentalismos religiosos e de mercado
8. Data do ataque da organização Al-Qaeda aos Estados Unidos da América. Dois aviões comerciais
sequestrados pela organização atingiram as torres do World Trade Center, em Nova York, um terceiro atingiu
o Pentágono e um quarto avião se dirigia à Casa Branca e supostamente caiu pela intervenção de passageiros
e tripulantes.
9. Para Netto, em sua obra A destruição da razão, Lukács se dedica ao confronto das vertentes
irracionalistas, considerando-as opositoras exclusivas do materialismo histórico e dialético. Somente na
Ontologia considera os riscos do racionalismo formal das vertentes neopositivistas (Lukács, 1968).
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A ênfase religiosa se orienta pois a algo transcendente por princípio […] entre o
homem inteiro concreto e o objeto de sua intenção religiosa se introduz uma
transcendência principal; não o mero desconhecido, senão algo por princípio in‑
cognoscível — com os meios normais da vida — que pode, contudo, converter-se
em íntima convicção do homem mediante um correto comportamento religioso.
(Lukács, 1966, p. 124)
[...] a fé não é nesse caso opinar, um estágio prévio do saber, um saber imperfei‑
to, ainda não verificado, senão, ao contrário, um comportamento que abre — o
solo — o acesso aos fatos e as verdades da religião [...] que abarca o homem in‑
teiro e o consuma de um modo universal […]. Os fatos estão garantidos por uma
superior revelação, e esta prescreve também o modo como reagir a eles.
10. Neto, José Alves de Freitas. Caça às bruxas. In: Pinsky, J.; Pinsky, C. B. (Orgs.). Faces do fanatismo.
São Paulo: Contexto, 2004. p. 49-60.
11. Camargo, C. No reino das trevas. In: Pinsky, J.; Pinsky, C. B. (Orgs.). Faces do fanatismo. São
Paulo: Contexto, 2004. p. 61-75.
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da liderança de Vernon Howell (que mudou o nome para David Koresh) da
Igreja Davidiana, que resultou, em abril de 1993, na morte de 87 pessoas, entre
elas Howell e 25 crianças. Em 1994, três incêndios, dois em vilarejos da Suíça
e um no Canadá, vitimaram cerca de 53 pessoas, incluindo crianças. Todos
foram associados à seita Templo Solar, liderada pelo médico Luc Jouret.
Na contemporaneidade, o extremismo muçulmano torna-se emblemáti‑
co tanto pela violência de seus vários grupos quanto pelo uso ideológico de
uma imagem exclusiva do terror que oculta as mazelas provocadas ou ali‑
mentadas pelo fundamentalismo de mercado do Ocidente. Demant, 12 ao
analisar o fundamentalismo islâmico, considera-o como uma forma particular
de fanatismo contemporâneo que não expressa a totalidade histórica do isla‑
mismo — ecumênica na maior parte de sua trajetória — e que revela traços
comuns “com outros movimentos totalitários que cresceram e se desenvol‑
veram com a modernidade, mas que lutam contra ela”.13 Para esse autor, o
fanatismo islâmico se aproxima de outros movimentos autoritários antimo‑
dernos que “apresentam projetos de uma nova engenharia social, que conde‑
na os rumos tomados pela modernidade”.14
O islamismo, equivocadamente, é associado à práticas terroristas e extre‑
mistas, especialmente após o 11 de setembro. Segundo Chaui, “depois dessa
data, islamismo e barbárie identificaram-se e a satanização do bárbaro conso‑
lidou-se numa imagem universalmente aceita e inquestionável. Fundamentalis‑
mo religioso, atraso, alteridade e exterioridade cristalizaram a nova figura da
barbárie e, com ela, o cimento social e político trazido pelo medo”.15
Essa associação, islamismo e barbárie, foi amplamente divulgada pela
mídia após a reação do governo estadunidense que “decretou” a existência de
um eixo do mal e declarou guerra ao terror. As respostas do governo norte‑
-americano de George W. Bush ao atentado de 11 de setembro incluíram: in‑
vasão ao Afeganistão, em ataque ao Talibã, organização que teria abrigado
12. Demant, P. A escorregada rumo ao extremismo muçulmano. In: Pinsky, J.; Pinsky, C. B. (Orgs.).
Faces do fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004. p. 16-31.
13. Ibidem, p. 23.
14. Ibidem, p. 23.
15. Chaui, M. Fundamentalismo religioso: a questão do poder teológico-político. Disponível em: <http://
bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolconbr/Chaui.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2013.
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integrantes do Al-Qaeda, recrudescimento da vigilância interna sobre os imi‑
grantes; rigidez para conceder vistos de entrada a estrangeiros aos Estados
Unidos da América e a publicação da lei de 2001, conhecida como Patriot Act,
que visa “unir e fortalecer a América, fornecendo instrumentos apropriados
requeridos para interceptar e obstruir o terrorismo” e autoriza o governo esta‑
dunidense a realizar “invasão de lares, a espionagem de cidadão, interrogatórios
e torturas de possíveis suspeitos de espionagem ou terrorismo, sem direito a
defesa ou julgamento”.16
As intervenções e cooperações militares lideradas pelos Estados Unidos
no imediato pós-Segunda Guerra, contexto no qual essa potência assume hege‑
monia mundial, sempre foram legitimadas pela defesa abstrata da democracia
e dos direitos humanos, ocultando interesses econômicos e políticos de domi‑
nação e contrarrevolucionários, cujas experiências mais dramáticas podem ser
exemplificadas pelo apoio econômico, político e técnico às ditaduras empresa‑
rial-militares que assombraram os países latino-americanos por mais de duas
décadas; financiamento de guerras civis e ações terroristas na África e no
Oriente Médio; intervenções militares na América Central; expansão de bases
militares norte-americanas em vários continentes; embargos diplomáticos e
econômicos a inúmeros países que resistiam à sua intervenção imperialista.17
No contexto da Guerra Fria, que polarizara o mundo em nações socialistas
e capitalistas, tais intervenções e cooperações militares norte-americanas eram
alimentadas ideologicamente pela iminência de uma terceira grande guerra
mundial e pela defesa das chamadas liberdades individuais e democráticas
fundadas no American way of life, ou seja, no “livre” comércio de mercadorias.
A guerra armamentista dava sustentação material à luta ideológica entre as
nações consideradas democráticas (capitalistas) e as autoritárias (socialistas),
além de alimentar a acumulação privada de capital das indústrias armamentis‑
tas num contexto de crise estrutural. A polarização provocava uma tensão
permanente entre as duas grandes potências mundiais (Estados Unidos e União
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Soviética) e ao mesmo tempo um equilíbrio de forças na disputa pelo controle
econômico e ideológico de ex-colônias tornadas independentes e de grupos
étnicos situados fora dos limites continentais de suas dominações.
Com o fim da Guerra Fria e do socialismo soviético, os limites externos
às intervenções militares praticadas ou lideradas pelos Estados Unidos foram
afrouxados, favorecendo a prática de guerra como mediação privilegiada
para solução de conflitos. A primeira guerra do Golfo, invasão do Iraque em
1990 pelas forças de coalização lideradas pelos Estados Unidos e Grã-Bre‑
tanha, é um dos símbolos de ostentação da supremacia estadunidense na
condução de intervenções militares, tanto que a operação, conhecida como
Tempestade no Deserto, foi televisionada pela rede CNN. Do mesmo modo,
tal supremacia pode ser identificada nas intervenções da Otan, coordenadas
pelos Estados Unidos, na Sérvia e na Bósnia, sem anuência do Conselho de
Segurança da ONU.
Após o 11 de setembro, a intervenção militar dos Estados Unidos em vários
países (Afeganistão, 2001; Iraque, 2003; Líbia, 2012) permanece fiel à defesa
abstrata da democracia e dos direitos humanos, ocultando interesses econômi‑
cos e políticos, mas ganhando novos conteúdos em torno da Guerra ao Terror,
que inclui a eliminação de grupos extremistas e a manutenção da guerra às
drogas. Desse modo, voltam-se especialmente para as regiões com grandes
reservas minerais (petróleo e gás, por exemplo), cuja justificativa sustenta-se
no combate ao terrorismo (grupos islâmicos em especial), na instabilidade do
Estado que ameaça a democracia (regiões produtoras de substâncias psicoativas
condenadas pela ideologia de guerra às drogas), na “restauração” da democra‑
cia, com tentativas ou golpes parlamentares apoiadas pelo Pentágono, nos
países nos quais governos de orientação socialista foram eleitos pelas urnas
(Venezuela, Honduras, Paraguai e Bolívia) e em defesa dos direitos humanos
em face da ameaça de armas de destruição em massa (segunda guerra do Golfo,
cuja intervenção se manteve de 2003 a 2011, e ameaças de invasão à Coreia do
Norte e Irã, por exemplo).
Essas referências às formas da dominação estadunidense visam tomá-las
como expressões particulares de uma totalidade mais ampla que coloca as bases
para várias expressões do fundamentalismo, tanto religioso quanto de mercado.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014 421
Num belíssimo artigo, Chaui18 analisa como o contexto da chamada “pós‑
-modernidade” abre espaço para um fundamento teológico-político que também
se alimenta da interdição do espaço público às expressões religiosas feita pela
modernidade. Baseada nas análises de Harvey19 sobre a compressão espaço‑
-tempo produzida pela acumulação flexível do capital, Chaui analisa o signifi‑
cado histórico das experiências fundadas na contingência.
18. Chaui, M. Fundamentalismo religioso: a questão do poder teológico-político. Disponível em: <http://
bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolconbr/Chaui.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2013.
19. Harvey, D. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.
422 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014
da religiosidade, mas sua compreensão e superação dialética, portanto, um
processo tecido com mediações necessárias”20
Em suas análises, a privatização do espaço público, sustentadas pela ló‑
gica do mercado, pelo Estado neoliberal e pela intervenção dos megaorganis‑
mos econômicos privados nas decisões dos governos, resultam na despolitiza‑
ção e na ideologia da competência, “segundo a qual, os que possuem
determinados conhecimentos têm o direito natural de mandar e comandar os
demais em todas as esferas da existência” (p. 131).
Para Chaui, a articulação desses elementos revela os riscos do fim da po‑
lítica e contribuem para a proximidade entre fundamentalismo religioso e de
mercado,“a transcendência da competência técnica corresponde à transcendên‑
cia da mensagem divina a alguns eleitos ou iniciados, e não temos por que nos
surpreender com o entrecruzamento entre o fundamentalismo do mercado e o
fundamentalismo religioso” (Idem).
A nosso ver, esses elementos analíticos se aproximam de nossa discussão
sobre a articulação entre crise de dominação e irracionalismo,21 permitindo a
apreensão dos fundamentos materiais que contribuem para as várias formas de
fanatismos e fundamentalismos que, sob diversos matizes, se proliferam na
contemporaneidade e colocam em risco o projeto civilizatório da modernidade.
Muitas dessas tendências, como veremos a seguir, colocam-se no campo polí‑
tico da extrema-direita.
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A tendência predominante nesses grupos, inclusive entre formadores de
opinião que se autointitulam independentes e compartilham de convicções e
valores situados no campo ideológico da extrema-direita, é de recusa dessa
denominação, dada a vinculação histórica desse campo com o nazifascismo e
com a decorrente conotação racista e antissemita. No entanto, suas formulações
são reveladoras do campo político no qual se situam.
O recorte que realizamos não abrange a magnitude dessa realidade, nem
em escala mundial tampouco entre nós, mas permite assegurar sua visibilidade
que tanto nos preocupa quanto nos desafia.
No caso do Brasil, além das tendências contemporâneas, nos detivemos
na história da Ação Integralista e da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,
Família e Propriedade (TFP). A primeira por sua explícita vinculação com o
fascismo italiano e a segunda por sua emergência no contexto do golpe empre‑
sarial-militar de 1964 como uma das expressões de direita que deram sustenta‑
ção ao golpe.
Ação Integralista22
22. A síntese realizada sobre o integralismo foi baseada nas informações disponíveis especialmente em:
<http://www.tempopresente.org/>. Acesso em: 23 out. 2013; <http://integralismohistoriaedoutrina.blogspot.
com.br/2012/05/concepcao-integralista-da-sociedade.html>. Estudos sistemáticos podem ser encontrados no
mateiral disponibilizado pelo Grupo de Estudos de Integralismo (Geint) e outros movimentos nacionalistas.
Disponível em: <http://historiaedireita.blogspot.com.br/>. Acesso em: 23 out. 2013.
424 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014
No mesmo ano, Plínio Salgado foi redator do jornal A Razão, veículo por
intermédio do qual buscou ativar a consciência dos meios políticos e intelectuais
em relação à crise econômica e política desencadeada na década de 1930. Fundou
a Sociedade de Estudos Políticos que ficou conhecida como a antecâmara da AIB.
Durante sua atuação na década de 1930, a AIB aglutinou uma militância
estimada entre 500 mil e 800 mil pessoas, e dentre os denominados camisas‑
-verdes (uniforme integralista) destacaram-se: Miguel Reale (jurista e escritor),
Gustavo Barroso (romancista e presidente da Academia Brasileira de Letras) e
dom Hélder Câmara, que posteriormente se aproximou da esquerda.
A trajetória da AIB, que surge como um movimento de caráter “cívico‑
-cultural”, é marcada por mudanças, uma das quais é a formação do Partido
Ação Integralista, criado após deliberações do II Congresso Integralista, reali‑
zado em 1935, em Santa Catarina.
A criação do partido demonstrava a força e o crescimento do integralismo
no país. Segundo Neto, era a maior organização fascista fora da Europa e tinha
o objetivo de chegar ao poder através da democracia.
Os integralistas se aliaram a Getúlio Vargas e apoiaram o golpe que levou
à constituição do Estado Novo. A intenção era efetivar um prévio acordo entre
o chefe estatal e os líderes integralistas, pois visualizavam possibilidades de
inserção ideológica dentro do futuro regime. Entretanto, após a consumação do
golpe, o partido foi posto na ilegalidade.
A primeira tentativa de reorganização da AIB foi a criação da Associação
Brasileira de Cultura (ABC), que visava o retorno às origens não partidárias do
integralismo, de caráter “cívico-cultural”, no entanto, a empreitada também não
garantiu legitimidade perante o Estado Novo. Na ocasião, alguns militantes
abandonaram as camisas-verdes e se aliaram ao governo federal. A liderança
integralista oscilava entre tentativas de aproximação ao governo, numa pers‑
pectiva de barganha, e críticas públicas contra a traição de Getúlio. Do mesmo
modo, surgiam iniciativas que pleiteavam o efetivo rompimento entre remanes‑
centes integralistas e o governo federal.
Em 1938, aliados a setores políticos diversos, entre eles liberais, os mili‑
tantes integralistas tentaram tomar de assalto o Palácio da Guanabara, visando
a derrubada de Getúlio, o que, consequentemente, poderia proporcionar uma
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014 425
investida integralista sobre o poder. A tentativa fracassou, e o Estado Novo
reprimiu o movimento, com ações que variaram entre apreensão de materiais,
prisão de militantes e uma pressão exercida sobre Plínio Salgado, que foi for‑
çado a exilar-se em Portugal.
Durante o exílio de Plínio Salgado formou-se o Partido de Representação
Popular (PRP), que inicialmente pretendia se desvincular dos movimentos
fascistas da década de 1930, especialmente pelo contexto mundial do segundo
pós-Guerra, que impunha limites às manifestações ideológicas análogas à tira‑
nia do fascismo internacional. Esse abandono dos referenciais originários do
integralismo (símbolos, uniformes, organizações internas ou mesmo festivas)
não foi bem-visto por uma parcela da militância, gerando, inclusive, proposta
de rompimento e a criação de um partido genuinamente integralista.
Ao retornar do exílio, Plínio Salgado assumiu a presidência do PRP, cuja
trajetória foi marcada por constantes tentativas de retomar alguns pressupostos
integralistas originários, ao mesmo tempo em que havia a necessidade de se
articular com a dinâmica partidária do segundo pós-Guerra. Mantiveram o
sigma como símbolo do partido e alguns cerimoniais semelhantes aos existen‑
tes na década de 1930.
Durante a primeira metade da década de 1960, a ação integralista teve
atuação partidária ou em organizações sob o controle e influência de Plínio
Salgado. Assim ocorreu com as Confederações Culturais da Juventude (CCJ),
cujo objetivo era a formação intelectual da juventude, os águias brancas.
Plínio Salgado e diversos integrantes do PRP apoiaram o golpe empresa‑
rial-militar de 1964 no Brasil. Naquele contexto, o chefe integralista foi um
fervoroso orador da “Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade”, realiza‑
da em São Paulo, em março de 1964.23 Após o golpe, o PRP foi extinto, assim
como vários outros partidos. Entretanto, Plínio e outros militantes integralistas
fizeram parte do governo ditatorial. Plínio foi nomeado deputado federal pela
Aliança Renovadora Nacional (Arena).
23. Atestando a importância desse debate, lembramos que após a realização do seminário que deu origem
a este ensaio, em 31 de março de 2014, cinquentenário do golpe empresarial-militar no Brasil, grupos de
extrema-direita reeditaram em várias cidades brasileiras a “Marcha da Família, com Deus e pela Liberdade”.
Ver reportagem “A direita sai do armário” (Caros Amigos, ano XVII, n. 205, 2014).
426 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014
Com a morte de Plínio Salgado, em 1975, houve uma fragmentação entre
os integralistas. Abriu-se espaço para disputas internas — evidenciadas desde a
criação do PRP, no entanto, acomodadas na figura do líder — entre a busca da
herança do legado de Salgado e as alianças partidárias. Surge, assim, o neointe‑
gralismo. Nesse contexto, a atuação dos integralistas não almejava ambições
partidárias, em função do próprio contexto político do final da década de 1970.
Desse modo, optaram por manter viva a memória de Plínio Salgado. Com esse
objetivo, fundaram o jornal Renovação Nacional — criado por Jader Medeiros,
bem como fundações, associações culturais e espaços de conservação da memó‑
ria, como a Casa Plínio Salgado, criada em 1981 na cidade de São Paulo.
A conjuntura política de 1984, marcada pela campanha das Diretas Já,
abriu possibilidades para a reorganização de um partido integralista. A emprei‑
tada foi encabeçada por Anésio de Lara Campos Jr., membro do antigo PRP e
criador da Ação Nacionalista Brasileira (ANB). No entanto, foi um movimento
efêmero, que se extinguiu em 1985, mesmo ano em que Anésio registrou a AIB
em seu nome. Essa iniciativa, somada às aproximações de Anésio ao Partido de
Ação Nacionalista (PAN) (efêmero), ao movimento dos Carecas do Subúrbio
e a outros grupos neonazistas, foram fatores que contribuíram para impedir a
formação de um novo partido integralista.
Após a morte de Plínio Salgado, houve uma fragmentação dos grupos
integralistas, pois não havia uma unidade programática que acomodasse todos
os neointegralistas. A primeira tentativa dessa articulação ocorreu no I Congresso
Integralista do século XXI, realizado em São Paulo, em 2004. Esse congresso
contou com o apoio dos simpatizantes da TFP, da União Nacionalista Demo‑
crática e da União Católica Democrática. Na ocasião, foi criado o Movimento
Integralista Brasileiro (MIB), entretanto, não conseguiram registrar a sigla em
cartório, pois Anésio Lara, que participara desse evento, já havia registrado
anteriormente a sigla em seu nome, sem comunicar aos demais. Uma vez mais
fracassou a tentativa de unificação.
Essa tentativa frustrada abriu caminho para a criação de três grupos. A
Frente Integralista Brasileira, criada para manter o integralismo dos anos 1930,
preservando seus símbolos e doutrinas. Embora não apresentasse aspirações
partidárias, aproxima-se, por exemplo, do Partido de Reedificação Nacional
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014 427
(Prona). O Movimento Integralista e Linearista (MIL-B) também visa a atuali‑
zação da ideologia integralista da década de 1930. Para isso recorre às análises
de autores integralistas e antissemitas. Posiciona-se contra os partidos políticos
e a liberal democracia. Afirma, inclusive, que a democracia é uma farsa que
contribui para manter a opressão dos povos. A Ação Integralista Revolucionária
(AIR), que tem uma posição “extremamente crítica” em relação ao sistema
partidário, inclusive às propostas do período de Plínio Salgado. Considera que
a essência do integralismo pode ser encontrada entre os anos 1932 e 1935.
Defende uma revolução interior nos costumes, espiritualistas, o que seria um
caminho ideal a ser perseguido para uma atuação integralista revolucionária do
século XXI.
24. A síntese apresentada sobre a TFP foi organizada com base nas informações disponíveis em: <http://
www.tfp.org.br/>. Acesso em: 23 out. 2013.
428 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014
continuar para o alto. [...] Visa impedir que o progresso se torne desumano,
odioso”.25 Defendem que “a família gera necessariamente a tradição e a hierarquia
social. Depauperar e enfraquecer a família destrói a cultura e a civilização im‑
pregnadas de tradições cristãs”.26 Assim, para os membros dessa entidade, a
família é a base que mantém a tradição viva. Portanto, são contrários ao divórcio.
A propriedade é considerada um direito natural, inerente à essência huma‑
na: “o fundamento da propriedade está na própria natureza do ser humano. Os
direitos à liberdade, ao trabalho e ao fruto de seu trabalho, isto é, à propriedade
nascem da essência do homem”.27 Posicionam-se claramente contrários à refor‑
ma agrária.
A TFP prega que só pela verdade ensinada pela Igreja (é a única) é possí‑
vel construir uma autêntica civilização. Os princípios, objetivos e documentos
públicos veiculados pela entidade explicitam concepções nacionalistas e exclu‑
dentes, marcadas pelo anticomunismo, antissocialismo e antiliberalismo. Seu
surgimento está ligado à obra Revolução e Contrarrevolução, de Plínio Côrrea
de Oliveira, que, em linhas gerais, defende que a revolução (liberal e comunis‑
ta) está voltada para destruição da Igreja Católica. Por seu turno, a contrarre‑
volução se coloca em defesa da Igreja, preservando seus valores tradicionais,
num conservadorismo radical e antimoderno.
Apesar das simetrias existentes entre as novas organizações integralistas,
a TFP e o campo ideológico da extrema-direita, essas entidades não se consi‑
deram integrantes desse campo político.
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à reabertura política, anistia e a redemocratização” (Andrade, 2013, p. 75). Nesse
contexto de efervescência política e influenciado pelo punk londrino, que vivia
uma new wave (nova onda), surgem Os Carecas do Subúrbio como oposição ao
punk considerado comercial. Seus idealizadores criam uma ala radical do punk
que procura se distanciar de sua referência inspiradora para compor, na sua visão,
um movimento sério e nacionalista com o lema “União, Força e Seriedade”.
Os integrantes dos Carecas do Subúrbio eram oriundos das camadas em‑
pobrecidas da classe trabalhadora; a grande maioria provinha da Zona Leste de
São Paulo, naquele contexto uma área industrial. De acordo com Almeida (2011),
os Carecas se definiam como “jovens conscientes e não alienados, fortes de
corpo, puros de mente e com o intuito de formar um exército para salvar o
Brasil dos políticos corruptos e das multinacionais”. Defendiam a ideia de “um
movimento sério, um estilo de vida, um movimento de trabalhadores, de brasi‑
leiros, sem negócio de fora, de gente que mora nos subúrbios”. Nesse momen‑
to, apesar de recusarem influências externas, os carecas se aproximam e se
identificam com o movimento skinhead dos ingleses.
Em sua origem, esse movimento era composto por diferentes etnias, não
partilhava do conceito de segregação e/ou preconceito racial, não incorporava
simbologia nazista. A ideologia era baseada em princípios como o culto ao físico,28
a prática da defesa pessoal e era contrária à utilização de drogas. Segundo An‑
drade, esses são os traços mais marcantes na origem do movimento no Brasil.
Uma parte dos Carecas se aproxima das ideias neonazistas e passa a utili‑
zar seus símbolos, cindindo o movimento, já que alguns membros não aceitavam
a segregação racial em face da diversidade étnico-racial brasileira. Surge, assim,
um grupo dissidente, os Carecas do ABC, um movimento de extrema-direita
identificado com a ideologia nazista.
A mudança ideológica desse grupo influenciará o aparecimento de outros
grupos de extrema-direita pelo Brasil, principalmente no Sul do país. As ideias
neonazistas são incorporadas por parte desses grupos que aderem a linha de
pensamento da White Power (Força Branca), que tem como características o
28. De acordo com Ana Maria Dietrich (2011), o culto ao físico é um dos preceitos básicos da juventude
hitlerista (Dietrich. A. M. Juventude nazista e neonazista no Brasil: objetivos e perspectivas. In: Victor, R.
L. (Org.). À direita da direita. Goiânia: Ed. da PUC-Goiás, 2011).
430 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014
ultrarracismo e atua como uma “irmandade”. O primeiro grupo dessa corrente
surgiu em São Paulo e ficou conhecido como Skinheads White Power.
A partir dos anos 1990 há um crescimento desses grupos no Brasil. Pes‑
quisa realizada por Dias revela que de 2002 a 2009 o número de sites que
veiculam informações de conteúdo neonazista subiu 170%, saltando de 7.600
para 20.502. No mesmo período, os comentários em fóruns sobre o tema cres‑
ceram 42.585%. Nas redes sociais, os dados são igualmente assustadores.
Existem comunidades neonazistas, antissemitas e negacionistas29 em 91% das
250 redes sociais analisadas pela antropóloga. E nos últimos nove anos o nú‑
mero de blogs sobre o assunto cresceu mais de 550%.30
Segundo Dias, aproximadamente 150 mil brasileiros visitam mensal‑
mente mais de cem páginas com conteúdos nazistas ou realizam mais de cem
downloads.31 Desses, 15 mil são tidos como líderes e coordenam as incitações
de ódio na internet. A pesquisa aponta os estados brasileiros com maior nú‑
mero de internautas que baixaram mais de cem arquivos de sítios neonazistas:
Minas Gerais (6 mil); Goiás (8 mil); Paraná (18 mil); São Paulo (29 mil); Rio
Grande do Sul (42 mil); Santa Catarina (45 mil). A região Sul é a que mais
concentra simpatizantes neonazistas.32
Com base nesses dados, realizamos um breve levantamento na internet para
caracterizar alguns movimentos de extrema-direita atuantes no Brasil. Identifi‑
camos oito deles: Kombat Rac; White Power SP; Front 88;33 Ultra Defesa; Ultra
Skins; Brigada Integralista; Resistência Nacionalista; Terror Hooligans.34
29. As ideias negacionistas são resultado do negacionismo. Este é definido como a capacidade em negar
algo que está aparente na realidade.
30. Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/04/conheca-o-mapa-neonazista-no-
brasil.html>. Acesso em: 20 out. 2013.
31. O número de acesso e de downloads realizados pelos visitantes foi o critério utilizado pela
pesquisadora para definir a identificação com o conteúdo divulgado.
32. Existe na região Sul do país o movimento separatista sulista chamado O Meu País É o Sul, cujo
objetivo é transformar a região em um país, separando-se do Brasil.
33. O número 88 é uma forma simbólica que grupos nazista ou neonazistas utilizam para fazer
referência ao líder Adolf Hitler. O número 8 representa a oitava letra do alfabeto (H) e para eles significa
“Heil Hitler!” (HH).
34. É um movimento neonazista inspirado nos torcedores do time Hooligans, que vão aos estádios
especialmente para entrar em conflito com torcedores de outros times.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014 431
De forma ilustrativa, destacamos alguns elementos dos conteúdos dispo‑
nibilizados na internet por dois desses grupos: a Ultra Defesa e a Resistência
Nacionalista.
A Ultra Defesa, de Mairinque, cidade do interior de São Paulo, de acordo
com o seu próprio site,35 “é uma instituição social, política e reivindicatória de
cunho nacionalista e patriota”. Defende a moral, e seus participantes são tidos
como homens virtuosos e aguerridos que defendem os verdadeiros valores.
Prezam a ordem e a disciplina. Utilizam a saudação romana, pois consideram
que a antiga Roma é depositária da verdadeira e original tradição do Ocidente.
Defendem “um Estado forte, espiritualista e transcendente”, “valores aristo‑
cráticos e guerreiros” de nossa formação cultural e uma “nação viril, coman‑
dada por uma verdadeira elite, virtuosa e viril”. Posicionam-se abertamente
contra o neoliberalismo, o aborto e a homossexualidade. Defendem as forças
armadas, a harmonia entre as classes e a terceira via (um Estado espiritualista
e transcendente).
A Ultra Defesa, conforme seu site, realiza reuniões semanais, atividades
culturais, esportivas e ministra palestras aos jovens com os seguintes conteúdos:
O crime do aborto, O mal das drogas, O respeito à família, Ordem e disciplina
na rua e no lar, Educação moral e cívica, O direito a propriedade, Direito a le‑
gitima defesa, Filosofia, História, Valorização do que é nacional, bem como
outros assuntos pertinentes.
A Resistência Nacionalista36 é um movimento/grupo que se autodefine
como de extrema-direita e que recusa a identidade neonazista ou fascista. Con‑
sidera que por “acolherem nordestinos e negros”, segundo seu líder, não pode
ser identificado com o nazifascismo. Afirma que o seu ideal é nacionalista e não
étnico. Revela a pretensão de montar um partido conservador de direita,37 pois
de acordo com seus membros, vivemos numa ditadura de esquerda no Brasil.
O movimento defende a família e é contrário às drogas, ao aborto e à homos‑
sexualidade.
432 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014
Chama atenção a facilidade de acesso aos conteúdos disponibilizados por
esses grupos na internet e a dificuldade de se obter informações mais detalhadas
sobre seus membros, sedes e formas de funcionamento. Outro elemento que
chama a atenção é que esses grupos não se assumem como nazistas ou fascistas.
Paxton, mesmo considerando a improvável reedição das características do
fascismo clássico, afirma que na década de 1990 o fim do regime fascista foi
posto em dúvida. Analisa a proliferação pelo mundo de uma série de grupos
fragmentados de extrema-direita com uma grande variedade de temas e práticas
extremistas. E diz que o “medo da decadência e do declínio; afirmação da iden‑
tidade nacional e cultural; a ameaça à identidade nacional e à ordem social re‑
presentada pelos estrangeiros inassimiláveis; e a necessidade de uma autorida‑
de mais forte para lidar com esses problemas” (2007, p. 304), bem como ataques
ao liberalismo e ao individualismo econômico, ao comunismo, às instituições
democráticas, ao Estado de direito, o princípio da transcendência, devoção ao
líder virtuoso e a defesa de uma suposta supremacia racial ou de grupos, são
traços que podem ser encontrados explícita ou implicitamente nas ideias defen‑
didas por tais grupos.
Ao mesmo tempo que encontramos profundas simetrias com as ideologias
fascistas e nazistas, encontramos também o esforço por parte de alguns desses
grupos para se diferenciar desse campo ideológico. No entanto, como tendência
geral nos grupos pesquisados, identificamos a demonização ou a ideia de eli‑
minação de algum inimigo externo, o anticomunismo e o antiliberalismo. São
ultranacionalistas, e sua identidade se constrói em torno de uma liderança forte
e de símbolos medievais, religiosos e nacionalistas.
Do ponto de vista ético e político, tanto os que defendem quanto a razão
de sua existência merecem uma análise mais aprofundada na perspectiva de
superação das condições que as favorecem.
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nazifascismo. Do mesmo modo, analisamos como o capitalismo contemporâneo
apresenta traços de esgotamento do projeto civilizatório da ordem do capital.
Discutimos também como as crises de dominação e o irracionalismo criam as
condições para o florescimento de práticas fanáticas e fundamentalistas.
Considerando que na democracia burguesa o exercício do poder é realiza‑
do não apenas, mas hegemonicamente, no âmbito do Estado, pareceu-nos im‑
portante apresentar no cenário mundial,38 ainda que brevemente, como vem
ocorrendo o desempenho político dos partidos de extrema-direita.39
A ascensão dos atuais movimentos de extrema-direita, principalmente na
Europa, não é episódica. Na verdade, essa ideologia nunca deixou de existir,
mesmo após a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.
Na França, a extrema-direita vem crescendo com o fortalecimento do
Partido da Frente Nacional, fundado em 1972, por Jean Marine Le Pen, candi‑
dato derrotado por cinco vezes à presidência da República. A atual presidente
do partido é sua filha, Marine Le Pen, que conseguiu triplicar o número de
militantes (70 mil) e não aceita que o partido seja identificado como sendo de
extrema-direita. A Frente Nacional influenciou a criação de novos partidos da
extrema-direita na Europa, em função de seu desempenho nas disputas eleitorais
na década de 1980.
Sader destaca que Engels apontou este país como “o berço das grandes
lutas emancipatórias contemporâneas”, mas que este ciclo se encerra na década
de 1960, mais precisamente após as barricadas de 1968. Analisa mudanças na
identidade política dos trabalhadores e constata que “a extrema-direita passou
a explorar, de forma intensa e efetiva, a imigração, incentivando as tendências
chauvinistas e até mesmo racistas dos trabalhadores franceses”.
O jornalista argentino Eduardo Febbro, alerta que “a Frente Nacional
deixou de ser um partido de uma minoria para se converter no partido de todos:
jovens, trabalhadores, votantes comunistas, eleitores oriundos da direita clás‑
sica, do Partido Socialista, executivos e agricultores”.
38. As informações sobre os partidos de extrema-direita na Europa foram sintetizadas a partir dos
conteúdos de vários sítios da internet e de agências de notícias.
39. No momento de revisão deste ensaio, a Frente Nacional, extrema-direita da França, ganhava as
eleições para o Parlamento Europeu.
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A revista Caros Amigos40 dedica duas páginas para análise do crescimen‑
to da Frente Nacional na França. Apresenta os traços de renovação do discurso
do partido pela liderança de Marine Le Pen e dados sobre as preferências do
eleitorado que favorecem o partido. O mote político desse desempenho é a
questão da imigração, pois “mais de 95% dos eleitores da Frente Nacional acham
que há estrangeiros demais no país”. Eduardo Cypel, brasileiro radicado na
França, eleito deputado estadual em 2010, foi vítima de discriminação por
parte de um deputado da Frente Nacional, o europeu Bruno Gollnisch.
A Grécia, mergulhada numa profunda crise recessiva que já dura seis anos,
tem sido cenário de ataques violentos contra imigrantes. Em 2013, o rapper
Pavlos Fyssas, de 34 anos, ligado ao movimento antifascista de Atenas, foi
morto a facadas. Muitas das violências praticadas contra imigrantes estão
associadas aos membros do partido Aurora Dourada. O analista político Stan
Draenos entende que as autoridades gregas têm sido negligentes na apuração
dos crimes.41
O Partido Aurora Dourada, surge na década de 1980, com a queda dos par‑
tidos tradicionais, sobretudo do Partido Socialista. É um partido nazista, militar,
masculino, que comete assassinatos. Identificam como seus inimigos principal‑
mente os comunistas, além dos imigrantes. Seu líder Nikólaos Michaloliákos
(56 anos), é um puro produto da ditadura de extrema-direita (1967-1974). Em
entrevista ao Jornal O Globo, o Filósofo Grego Michel Vakaloulis afirma, que
“o eleitorado da Aurora Dourada é muito popular” que “voltamos à lógica dos
anos 30, com a crise econômica: na França, foi a emergência da Frente Popular,
e na Alemanha, do nazismo. O fascismo não é uma fatalidade. É preciso acabar
com ele”.42
Em 2009 o Partido obteve 0,29% dos votos, três anos mais tarde elegeu
dezoito deputados para o Parlamento grego, com 7% dos votos. Por outro lado
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014 435
os partidos tradicionais, os sociais democratas Pasok e a Nova Democracia
(direita clássica) que tinham 77% dos eleitores, hoje tem somente 32%.
Na Holanda, o destaque no campo da extrema-direita é o Partido da Li‑
berdade/PVV, fundado em 2006, cujo líder é Geert Wilders, xenófobo e anti‑
muçulmano. O partido considera a imigração muçulmana um desastre para a
economia, afetando também a qualidade da educação, aumentando a insegu‑
rança nas ruas, no que se refere aos judeus e homossexuais. O primeiro minis‑
tro Rutte ao se manifestar na Câmara, alegou que não interfere “nas posições
particulares de nenhum partido”, o que significa que tem se eximido no com‑
bate de práticas da extrema-direita, principalmente para manter seus apoios
políticos. Em 2010, o Partido da Liberdade elegeu 25 deputados, ficando atrás
apenas dos liberais (Mark Rutte), com 31 eleitos, e dos trabalhistas (Job Cohen),
com trinta. O jornal Ouronews43 destaca que “a crise econômica, a imigração e
o desemprego têm sido o objetivo principal das políticas de direita na Europa,
nestes últimos anos. Os resultados em nível regional e mesmo nacional progre‑
diram, mas nos parlamentos, principalmente no Parlamento europeu, a repre‑
sentação continua a ser baixa”.44
Na Alemanha, destacam-se dois partidos de extrema-direita. O Partido
Nacional Democrata Alemão (NPD) e o partido A Direita. O NPD, fundado em
1964, é uma agremiação antissemita, xenófoba e racista. O Parlamento alemão
e o Conselho Federal pediram a cassação da sigla do NPD, a última em 2001,
que, após dois anos, sofreu derrota judicial.
O partido A Direita foi criado em 2012, e seu nome é uma analogia ao
partido alemão A Esquerda. Prega “preservação da identidade alemã” como um
dos “pontos cruciais” da nova facção. Entre outras ideias, defende-se que “a
tolerância a estrangeiros que vivem permanentemente na Alemanha” deveria
ser cessada”. É presidido por Christian Woch, que já pertenceu ao Partido do
Povo Alemão (DVU) que se fundiu em 2011 ao NPD.
43. Partidos de direita unem-se para fazer coligação para as eleições europeias. Disponível em: <http://
pt.euronews.com/2013/10/23/partidos-de-direita-unem-se-para-fazer-coligacao-para-as-eleices-europeias/>.
Acesso em: 28 out. 2013.
44. Quadro que já foi alterado. Ver nota 19.
436 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014
Na Hungria, a extrema-direita é representada pelo Partido Jobbik, que
surge em 2002 como uma associação juvenil de direita, criada por estudantes
universitários católicos e protestantes, em 2003 torna-se partido, e, atualmente
é o terceiro maior no Parlamento. Naquele ano, houve a realização do Congres‑
so Mundial Judaico. A cidade de Budapeste foi escolhida diante da realidade
de que 600 mil judeus foram mortos durante a Segunda Guerra Mundial. Para
protestar contra a realização do Congresso Judaico, cerca de mil apoiadores do
Jobbik realizaram uma manifestação em Budapeste e segundo o líder do parti‑
do Gabor Vona: “Somos especiais na Europa não porque somos a maior nação
antissemita, mas porque mesmo tendo toda a Europa a seus pés, mesmo que a
Europa lhes lamba os pés, nós não o vamos fazer”.
Na avaliação de Peter Feldmajer, líder da Federação das Comunidades
Judaicas da Hungria, “o fortalecimento do Jobbik é apenas um sintoma destas
questões; o grande problema é que existe cerca de meio milhão de pessoas
que apoiam a extrema-direita e muitas mais aceitam a atitude negativa com
os judeus”.
Na Itália de Mussolini, o partido Liga Norte foi criado em 1989, após a
união de seis movimentos independentes, e desde 1996 defende a separação das
regiões do Norte da Itália. Defende um Estado federativo. É contra a adoção de
moeda única no Parlamento europeu. Coloca-se como defensor das pequenas e
médias empresas e contra os grandes capitalistas. Cria o Sindicato Autonomis‑
ta Lombardo, chamado depois de Sindicato Padano, com poucos filiados, que
nunca teve muita expressão. Os votos da Liga são tanto dos patrões quanto dos
operários.
O partido tem destacado a importância das empresas do Norte da Itália e
a produção de riquezas (vários operários hoje são patrões) e acusa o Sul de
parasitas e os imigrantes de ocuparem seus postos de trabalho, “no entanto, é
útil na fábrica para fazer os serviços mais pesados, mais sujos. A Liga dirige‑
-se aos trabalhadores nativos instigando sentimentos de ódio contra os imi‑
grantes e se posiciona sempre pela proteção da família constituída pelo homem
e pela mulher”.
O fundador e secretário do partido é Umberto Bossi, envolvido junto
com seu filho em escândalos sobre financiamento público à Liga Norte. Nas
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eleições para o Parlamento na Itália em 2013, o centro esquerda ganha maio‑
ria na Câmara, mas Berlusconi ganha no Senado.
Matéria publicada em abril de 2012 trata da proximidade entre a Liga
Norte e a Frente Nacional (França):
45. Marine Le Pen vira ídolo da extrema-direita italiana. Disponível em: <http://www.portugues.rfi.fr/
europa/20120427-marine-le-pen-vira-idolo-da-extrema-direita-italiana>. Acesso em: 28 out. 2013.
46. Carvalho, F. Por que estupra essa mulher. Disponível em: <http://180graus.com/politica/vereadora-
italiana-fala-sobre-ministra-negra-por-que-ninguem-estupra-essa-mulher>. Acesso em: 28 out. 2013.
438 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014
Ética, direitos humanos e a extrema-direita: considerações finais
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014 439
A ética, uma modalidade de práxis, visa a transformação de comportamen‑
tos, formas de consciência e de valores que orientam as escolhas dos indivíduos
sociais. Seu conteúdo histórico vincula-se às conquistas humanas que afirmam
a liberdade como valor ético central e que orientam práticas concretas que, pela
mediação da política, concretizam projetos de caráter humanitário e emancipa‑
dor. Os direitos humanos, considerados numa perspectiva histórica, assumem
importância estratégica para a constituição da unidade na diversidade para
formulação de tais projetos coletivos. O mesmo ocorre com valores conquista‑
dos no interior da luta de classes, como a democracia, a igualdade e a liberdade.
Os direitos humanos e os valores éticos que expressam conquistas do gênero
não perdem sua validade histórica, mesmo diante da barbárie. Permanecem
como horizonte e referência para orientar as determinações da práxis.
No entanto, tal defesa não pode ser formal, abstrata, supõe a crítica con‑
tundente e radical sobre as determinações históricas que geram a desumanização.
Envolve, portanto, uma crítica radical da ordem do capital e sua forma contem‑
porânea de produção da barbárie e a construção de estratégias coletivas para
seu enfrentamento.
Outro desafio ético e na perspectiva dos direitos humanos é a crítica do
cotidiano. A ultrapassagem da reificação do cotidiano contemporâneo é funda‑
mental para uma consciência crítica sobre as mediações particulares presentes
em todos os poros da vida social que contribuem para reprodução ampliada da
barbárie.
As expressões da extrema-direita na atualidade encontram na crise estru‑
tural de acumulação do capital sua base material. A barbárie não é fruto de
grupos desumanos em sua essência, mas de um modo de organização social que
gera uma particular forma de essência humana.
A crítica teórica é um instrumento fundamental para superação da barbárie,
mas torna-se inócua se desvinculada da prática social e política. Por isso, insis‑
timos que entender e enfrentar o campo ideológico da extrema-direita é uma
agenda urgente para a esquerda.
Os desafios para enfrentar o enraizamento político do ideário de extrema‑
-direita são enormes. A favor da ideologia de extrema-direita jogam um peso
diferenciado toda a cultura pós-moderna e neoliberal, com seus traços consti‑
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tutivos: efêmera, irracional, fragmentária, contingencial, negadora de valores
universais, das formas clássicas de organização e participação política (sindi‑
catos, partidos, movimentos sociais), de militarização da vida social, de produ‑
ção da cultura do medo e da insegurança, de banalização da vida.
Vimos como os grupos de extrema-direita se conectam pela rede virtual
que favorece o anonimato e a ausência de controle social democrático. Cotidia‑
namente somos bombardeados pela mídia patronal com mensagens consumis‑
tas, individualistas, sensacionalistas, satanizadoras do Estado, das políticas
sociais públicas, do espaço público, dos partidos e da política e sacralizadoras
do mercado, do empreendedorismo, da celebridade, do intimismo, do subjeti‑
vismo fútil e rasteiro.
A televisão, os blogs, faces e páginas pessoais ou da mídia estão saturados
de mensagens e filosofias que dão sustentação ideológica para o campo ideoló‑
gico da extrema-direita. Os opositores de esquerda, os jovens, os pobres, os
negros, mulheres e homossexuais são vandalizados, estigmatizados e caricatu‑
rados diariamente pela mídia patronal nos conteúdos de seus vários programas
diários ou editoriais “jornalísticos”. A terceira via, tão propalada pela extrema‑
-direita, por meio dos formadores de opinião, reveste-se de um humanismo
abstrato cuja concretização aparece de forma oscilante pela mediação da trans‑
cendência religiosa ou do governante forte.
O projeto da extrema-direita é alimentado por fundações, associações,
institutos e grupos que articulam a chamada sociedade civil organizada, empre‑
sários e pensadores de ocasião, como é o caso de âncoras de jornal, comentaris‑
tas e filósofos profissionais que trabalham para a grande mídia patronal. Alguns
se autointitulam independentes, vendendo livros e cursos. Pautam a vida social
pelos seus interesses de classes. A barbárie que extermina só se torna informação
de interesse público quando seu projeto está ameaçado. A barbárie do desem‑
prego, da falta de moradia, do agrotóxico nas nossas mesas, da degradação do
meio ambiente, do trabalho escravo e infantil, da ação letal da polícia e das
milícias nas periferias urbanas, dos coronéis nas zonas rurais, das privatizações,
do sucateamento das políticas sociais não integram o conteúdo de suas análises.
Uma análise um pouco mais detida dos princípios, regimentos e documen‑
tos publicados pelas entidades e grupos de extrema-direita indica a afirmação
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014 441
do conservadorismo e de valores do humanismo abstrato: defesa da vida, da
família, da paz social e da harmonia. No entanto, todos, sem exceção, defendem
como direito natural a propriedade privada, que inclui os meios de produção
obviamente, fundamento da desigualdade na ordem do capital. Indicam também
traços xenofóbicos e segregadores, pois sempre identificam um outro como
inimigo desses valores, em sua maioria comunistas, estrangeiros, imigrantes,
negros e homossexuais. À mulher não é reservado nenhum papel ou lugar pú‑
blico e de liderança.
A mídia patronal e alguns agentes “independentes” cumprem um papel
funcional à reprodução de visões que alimentam o campo ideológico da extre‑
ma-direita. O poder de comunicação — a fala fácil, direta, pouco aprofundada,
parcial e saturada de sensacionalismo explorador das mazelas cotidianas — tem
grande receptividade num contexto social despolitizado e cindido entre os pro‑
jetos e aspirações individuais e genéricas.47 A mensagem da extrema-direita,
embora faça referência a um nós, procura identificar na mazela comum da
barbárie contemporânea aquilo que remete à profundidade do eu, aquilo que
permite a identificação imediata entre os anseios, angústias, incertezas e medos
produzidos pela realidade comum de todos, aqueles que são intimamente expe‑
rimentados por cada um.
O terror produzido pelo fundamentalismo religioso, pelo terrorismo, pelo
narcotráfico, pela violência urbana e rural é dissociado do fundamentalismo de
mercado, este último sequer considerado como real. Todos esses elementos
aparecem no material analisado neste ensaio e colocam o desafio ético e polí‑
tico para sua profunda compreensão e enfrentamento.
47. Dois episódios que ocorreram após a realização do seminário que baliza este ensaio merecem
destaque: 1) as manifestações de apoio da jornalista Rachel Sheherazade do SBT, em fevereiro de 2014, aos
“justiceiros do Flamengo” na cidade do Rio de Janeiro. O grupo espancou um jovem acusado de roubo e,
posteriormente, o deixaram nu e preso a um poste, pelo pescoço, com uma trava de bicicleta; 2) em maio de
2014, Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi agredida até a morte por dezenas de moradores de uma
comunidade na cidade do Guarujá, litoral de São Paulo, depois da publicação de um retrato falado em uma
página no Facebook de uma mulher que realizava rituais de magia negra com crianças sequestradas.
442 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014
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Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 407-445, jul./set. 2014 445
Política social e Direitos Humanos sob
o jugo imperial dos Estados Unidos
Social policies and human rights under the imperial rule of the United States
Abstract: This article deals with the attacks to human rights and to social policies, in spite of
their discursive power contemporarily. Such attacks were stressed by the end of the bipolarity between
the United States (USA) and the ex-Soviet Union (USSR) at the end of the 1980’s, by the USSR’s
446 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 446-467, jul./set. 2014
self-dissolution in 1991, and by the transformation of the USA into a world superpower. However,
when the USA became target of terrorist attacks, supposedly committed by poor countries, poverty
was criminalized and became enemy number one. That fact explains the disassembling of the human
rights, mainly the social ones, and of the public policies which aim at implementing them.
Keywords: Social policy. Human rights. Imperialism. Criminalization of poverty.
Introdução
T
ratar da temática conjugada da política social e dos direitos humanos
implica reconhecer que tal política e tais direitos estão seriamente
ameaçados, apesar da força discursiva que passaram a ter, desde o final
dos anos 1980, com o término da Guerra Fria e do socialismo real.
Com efeito, a partir dos anos 1990, generalizou-se a ideia de que, com o
fim da bipolaridade entre Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS), e
com a autodissolução desta, o mundo viveria em paz, sob a hegemonia da de‑
mocracia liberal norte-americana. No entanto, foi justamente a América do
Norte, defensora das liberdades individuais, que, nas palavras de Loïc Wacquant
(2006), se transformou na primeira sociedade de “insegurança avançada” da
história — uma sociedade que “promoveu a insegurança como princípio de
organização da vida coletiva e forma de regulação das trocas socioeconômicas
e dos comportamentos individuais” (p. 23).
Para tanto, o modo de ser e de fazer negócios norte-americanos foram
estratégica e sistematicamente exportados, tanto para a periferia do capitalismo,
da qual o Brasil faz parte, quanto para outros países e regiões capitalistas cen‑
trais. Nestes, é emblemático o caso da Europa que, na sequência da Segunda
Guerra Mundial, se tornou dependente da ajuda estadunidense para sair dos
escombros produzidos pelo conflito bélico e para compensar a perda de suas
antigas e rentáveis colônias (Judt, 2008; Sader, 2003). Consequentemente, a
partir daí, os Estados Unidos foram se tornando uma potência dominante, não
só no continente europeu, mas em todo o mundo.
Esse quadro indica, ademais, que não se pode falar em ameaça aos direitos
humanos e à política social de forma abstrata ou pontual; mas, pelo contrário,
exige situar tal ameaça no contexto mais amplo das concretas relações de poder
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 446-467, jul./set. 2014 447
econômico, político, cultural, militar e midiático, no qual, desde o fim do se‑
gundo pós-guerra, os Estados Unidos vêm assumindo liderança inconteste.
Por outro lado, é fato empírico que, na ausência de seu mais poderoso
oponente — a URSS1 —, os Estados Unidos “elegeram” um novo adversário:
a pobreza; ou melhor: os perigos que a pobreza interna e externa ao seu terri‑
tório passaram a representar sob a forma de terrorismo, narcotráfico, guerrilhas,
corrupção, migração ilegal, inveja, fundamentalismo religioso, resistência ao
consumismo e incapacidade de aceitação do American way of life (Sader, 2003).
Indícios desse fato não faltam.
Em 2002, em discurso na Conferência Internacional sobre Financiamento
ao Desenvolvimento, na cidade mexicana de Monterrey, o então presidente
George W. Bush declarou, em meio à emotividade pós-11 de Setembro do ano
anterior, que
1. Depois de 1945, isto é, com o término da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos da América
“estabeleceram com a União Soviética — a outra superpotência da época — uma espécie de condomínio
mundial caracterizado por uma furiosa rivalidade que será designada de Guerra Fria” (Ramonet, 1998, p. 43).
Entretanto, com a “implosão da União Soviética”, em 1991, os Estados Unidos se viram “colocados em uma
situação que nenhuma potência conheceu” no século XIX. Desde então, institui-se no mundo uma hegemonia
única e exclusiva, fato considerado sem igual na história da humanidade (Idem).
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desenvolvidas e índices alarmantes de homicídios e encarceramentos. Isso, sem
falar da sua superioridade na corrida armamentista mundial que, depois da
Segunda Grande Guerra e da Guerra Fria que lhe sucedeu, aparentemente não
teria por que continuar existindo. Diz-se aparentemente porque se sabe que a
indústria armamentista e o estímulo a guerras é uma das formas de o capitalis‑
mo se reproduzir, ampliar e dissipar riquezas (Mészáros, 2009) — coisa que
nenhum país do globo exercitou tão bem como os Estados Unidos. Que o digam
as contínuas vitórias econômicas e políticas desse país no plano internacional,
incluindo a recuperação da Europa mencionada, as quais tiveram como l eitmotiv
“a intensificação do comércio de armas” (Ramonet, 1998, p. 45).
Com efeito, desde 1945, os Estados Unidos vêm se envolvendo, direta ou
indiretamente, em centenas de conflitos armados, movidos, em última instância,
por interesses econômicos. Dentre os mais importantes e escancarados (seja por
meio da atuação militar efetiva, ajuda logística, financiamentos diretos e indiretos,
seja mediante lucrativas vendas de armamentos),2 pode-se destacar: Irã (1953);
Guatemala (1954 e 1993); Baía dos Porcos — Cuba (1961); República Domini‑
cana (1961); Brasil3 (1964); Iraque (1968, 1990 e 2003); Chile (1973); Afeganis‑
tão (1979 e 2001); Turquia (1980); Nicarágua (1981); Granada (1983); Panamá
(1989); Bósnia-Herzegovina (1995); Iugoslávia (1999); Venezuela (2002); Líbia
(2011), entre muitos outros4 (Chomsky, 1999; Mitchell e Schoeffel, 2005).
Além dessas intervenções, outras dezenas foram e ainda são realizadas
com vistas a monitorar os passos de diversas nações. Segundo reportagem de
2. Como no famoso escândalo Irã-Contras, em que os Estados Unidos venderam armas ao Irã (em meio
a um embargo internacional sobre a venda de armas para esse país), sendo que parte dos lucros foi utilizada
para financiar o movimento anticomunista dos “Contras”, na Nicarágua, a partir de 1979.
3. Que por muito pouco não foi invadido pelos Estados Unidos, como parte da chamada Operação
Brother Sam.
4. Como os demais países da América do Sul, a saber: Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai, que (com
o Chile e o Brasil) integraram um movimento orquestrado entre todos os regimes militares autoritários deste
continente, denominado Operação Condor. Esta iniciativa, chancelada pelos Estados Unidos, tinha como
objetivo neutralizar todas as investidas socialistas, comunistas e demais organizações não afinadas com os
regimes autoritários dos respectivos países. Justamente por ser uma manobra articulada no âmbito de toda a
América do Sul, criou-se uma rede de informações, investigações e repressão interligada, cooperativamente,
entre todos os seus membros. Essa rede facilitou a ocorrência de atrocidades, como assassinatos, torturas,
sequestros e extradições ilegais.
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2013 do site canadense Global Research, os Estados Unidos, até aquele mo‑
mento, interviram (direta ou indiretamente), em nada menos do que 74 países,
em especial na África e no Oriente Médio, sendo que o atual presidente Barack
Obama ampliou o espectro dessas atuações em relação ao seu antecessor,
George W. Bush. Isso confirma o intento autodeclarado dos Estados Unidos
de se tornar o grande império global.5
Entretanto, em todas as intervenções estadunidenses a questão dos direitos
humanos e da política social foi matematicamente calculada. Em vista disso,
tal questão não constituía um assunto da alçada doméstica dos países monito‑
rados, mas algo cujo enfrentamento devia passar pelo crivo dos Estados Unidos,
de suas forças armadas, de sua inteligência, de seus políticos e investidores,
bem como de órgãos multilaterais sintonizados com a sua ideologia. Tome-se
como exemplo a ajuda financeira concedida pelo Fundo Monetário Internacio‑
nal (FMI), Banco Mundial e suas instituições afiliadas a muitos desses países:
tal ajuda era acompanhada de condicionalidades que impunham medidas de
ajuste nas economias dos países tomadores de empréstimos (os chamados ajus‑
tes estruturais), as quais contribuíram para o surgimento de nações com poten‑
te capacidade agroexportadora, mas, ao mesmo tempo, com uma população
pobre e desfalcada de direitos sociais.
5. Isso pôde ser verificado após os escândalos da rede clandestina de vigilância eletrônica internacional
(liderada pelos Estados Unidos), denunciada pelo ex-técnico da Agência Nacional de Segurança (NSA),
Edward Snowden, em 2013.
450 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 446-467, jul./set. 2014
nacional desses ataques e pela prática da violência cotidiana no seio de cada
nação, incluindo os Estados Unidos.
Como observa David Harvey (2005, p. 40), “[esse] país tem um histórico
de intolerância [interna] que nega seu apego à sua Constituição e ao regime de
direito”. Porém, é em relação ao mundo externo que a sua intolerância se exa‑
cerba com falsas justificativas.
Suas constantes intervenções bélicas em nações menores, identificadas
como inimigas, tem-se feito a pretexto de repressão preventiva, que passa por
cima de acordos internacionais e da soberania dessas nações. Seu tradicional
apoio e patrocínio a golpes de Estado onde lhe der na telha, já lhe rendeu a
pecha de “maior ‘Estado irresponsável’ da terra” (Harvey, 2005, p. 40). Suas
numerosas e diversificadas formas de interdição econômica e política em países
e instituições internacionais, como os “embargos comerciais ao Iraque e a Cuba”,
e ingerências favoráveis à adoção de políticas de austeridade junto ao FMI, têm
sido tão deletérias quanto a “força física” (Idem). Contemporaneamente, a
exclusiva preponderância do seu poder imperialista tornou-se uma realidade
inusitada porque tal poder, conforme Ramonet (1998), não mais se mede, como
acontecia nos impérios anteriores, pela influência geográfica e militar, mas
“resulta essencialmente da supremacia no controle das redes econômicas, dos
fluxos financeiros, das inovações tecnológicas, das trocas comerciais, das ex‑
tensões e projeções (materiais e imateriais) de toda espécie” (p. 45).
Daí o seu magnetismo e força em um momento histórico de relativa con‑
solidação de fronteiras geográficas.
De fato, desde a Guerra Fria, nenhuma nação capitalista sente-se imune
ao poder de influência norte-americano, seja em que área for. Caso emblemá‑
tico é o da “indústria do imaginário” que, como nenhum outro país, os Estados
Unidos souberam capitalizar tão bem. Trata-se, em linhas gerais, da indústria
de filmes, músicas, modas, bebidas e comidas, dentre outros produtos culturais
qualitativamente ruins, embora não sem reações de alguns países, como a Fran‑
ça.6 No entanto, tem-se que admitir que o seu poder de penetração e controle
6. Foi na França, segundo Judt (2008, p. 232), que os planos de expansão internacional da Coca-Cola
“provocaram turbulências públicas. Quando Le Monde revelou que a companhia havia estabelecido a meta
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de mentes e preferências é inegável. Para ficar apenas com um produto, vale
lembrar que, na Europa,
de 240 milhões de garrafas a serem vendidas, em 1950, houve objeções veementes — incentivadas, mas não
orquestradas, pelos comunistas, que se limitavam a advertir que os serviços de distribuição da Coca-Cola
funcionariam também como rede de espionagem norte-americana”. Porém, cabe informar que, a despeito das
resistências francesas à “coca-colonização”, havia, na Europa, de modo geral, noções comuns (à direita e à
esquerda) a respeito das evidentes ambições imperialistas por trás da expansão cultural de seus produtos, que
iam dos filmes de bang-bang a refrigerantes.
452 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 446-467, jul./set. 2014
Incremento do processo de criminalização da pobreza e de afrontas aos
direitos humanos
7. O Grupo dos 20 é formado por representantes governamentais, geralmente ministros das Finanças,
e banqueiros das dezenove maiores economias mundiais, mais a União Europeia (UE). Esta, por sua vez, é
formada por 28 países que se uniram para realizar parcerias econômicas e políticas.
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liza e pune os pobres, os diferentes, os desiguais, os estranhos, que não conse‑
guiram se colocar acima ou à parte do vasto sistema de insegurança social
capitalista. Nesse sistema, pontua Wacquant, referindo-se à América do Norte,
só escapa “a alta nobreza das empresas e do Estado” (2006, p. 24), o que reve‑
la o paroxismo a que chegou a divisão de classes numa época em que muitos
acreditam não mais existir classes sociais.
Efetivamente, sob a égide do Estado penal, as políticas de enfrentamen‑
to à pobreza e à desigualdade social tornaram-se antissociais (Pereira-Perei‑
ra, 2009). E, como tal, desincumbiram-se de quaisquer responsabilidades que
possam caracterizar deveres do Estado e direitos dos cidadãos. Pautadas por
uma ortodoxia moralista burguesa, que contrapõe o mérito ao direito e a
autorresponsabilização individual à proteção social pública, tais políticas
— a despeito de se manter contraditórias e, por isso, passíveis de reversões
— têm apenado a quem mais delas precisam — os cidadãos que vivem do
seu trabalho — e privilegiado os interesses do capital. É o que será discutido
a seguir.
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neoliberal estadunidense para a Europa e demais países desenvolvidos, a
começar pela Grã-Bretanha. Tal expansão exigiu a adoção de políticas eco‑
nômicas e sociais ortodoxas, que pregavam: cortes nos gastos sociais, retração
da intervenção pública, ênfase no controle da inflação, forte disciplina finan‑
ceira e enfraquecimento dos movimentos e organizações trabalhistas (Moreno,
2012, p. 20).
Embora essas políticas não tenham se disseminado uniformemente e nem
rendido ativos políticos homogêneos aos diferentes governos nacionais que
as promoveram, é fato que, onde quer que elas tenham se realizado, os direi‑
tos humanos perderam força. Coerentemente, “uma inédita aversão à inter‑
venção estatal” (Moreno, 2012, p. 21) foi se robustecendo, no mesmo passo
em que uma fé fundamentalista no trabalho assalariado e na capacidade do
mercado (inclusive o financeiro) de gerir a vida econômica e social se trans‑
formou em dogma.
Em vista disso, as teses neoliberais, enaltecedoras “da eficiência, da cria‑
tividade e da inovação mercantis” (Idem) ressuscitaram antigas doutrinas eco‑
nômicas, como as de Schumpeter, que postulava, entre outras orientações, a
destruição criadora e a emergência de empresários audaciosos (Jessop, 2013).
Além do mais, a fé fundamentalista e suas teses, consolidadas no chamado
Consenso de Washington, de 1989, fortaleceram a convicção neoliberal de
substituir o keynesianismo pelo monetarismo.
Foi sob a batuta monetarista que a “idade de prata” da política social
ganhou consistência e, conforme Moreno (2012), sucumbiu aos ditames do
mercado. Desde então, tal política convive com o desmonte gradativo dos
direitos humanos, principalmente os sociais; a privatização de bens e serviços
sociais; o enaltecimento do trabalho assalariado, remunerado ou autorrentável,
como o meio mais digno e eficaz de enfrentamento da pobreza; e a sua foca‑
lização na pobreza extrema, sob a mais estreita forma de “alívio” (relief) as‑
sistencial. Paralelamente, verificou-se o esvaziamento da atribuição primordial
dessa política, que é a de concretizar direitos sociais, e o culto à meritocracia;
isto é, ocorreu a reificação de uma prática que, ao mesmo tempo em que ne‑
gava ao pobre a proteção social pública, o submetia ao teste seletivo do mere‑
cimento, que, a despeito de se considerar imparcial e moralmente defensável,
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 446-467, jul./set. 2014 455
pautava-se pelos princípios da hierarquia e da competição. Logo, em vez de
direitos, tais políticas passaram a operar mecanismos de triagem entre quem
merecia ou não ter as suas necessidades “aliviadas” pelo Estado, sendo que
mérito, neste caso, tinha sabor de demérito, visto que o merecedor era tido
como fracassado.
Tem-se, assim, uma flagrante sucumbência da política social aos impera‑
tivos do mercado, a qual pode ser sucintamente descrita como uma drástica
guinada para a extrema-direita das suas características social-democratas, vi‑
gentes entre os anos 1945 e 1975. É por isso que se diz que a política social
contemporânea, além de se ter tornado “de direita” e se colocado mais a servi‑
ço das necessidades do capital do que das necessidades sociais (Gough, 2003),
está sendo impedida de concretizar direitos sociais — estes sim uma relevante
conquista civilizatória nos limites do capitalismo. E esse fato, evidentemente,
constitui a maior tragédia para as parcelas mais desprotegidas da sociedade
porque, sem direitos assegurados, elas ficam sem salvaguardas.
Desde então, tornou-se compulsória uma prática moralista de ativar os
pobres para o mercado de trabalho, ou para atividades autossustentáveis, por
meio das quais poderiam obter renda para sobreviver e “comprar” benefícios
e serviços sociais que antes o Estado tinha o dever de distribuir, incondi
cionalmente.
Cristalizou-se, desse modo e à margem dos direitos de cidadania, o prin‑
cípio da autorresponsabilização, já referido, o que em outras palavras quer
dizer: autonomia econômica dos indivíduos por meio de sua inclusão ativada
pelo Estado nos precários circuitos empregatícios disponíveis (Siis, 2012).
Com base nesse princípio — que não é novo e remonta à famigerada Lei
dos Pobres inglesa, instituída pelos liberais no século XIX —, reafirma-se a
ideologia liberal de que “todos devem ser considerados responsáveis tanto pela
sua pobreza quanto pelo seu comportamento” (Sader, 2003, p. 44); e, portanto,
a pobreza não deve ser utilizada para desculpar erros ou crimes cometidos pelos
seus portadores.
Tal tendência se agravou ainda mais com o passar do tempo. No início dos
anos 2000, a legitimação da política social como ação punitiva da pobreza fa‑
cilitou a sua entrada na chamada “idade de bronze”, de acordo com Moreno
456 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 446-467, jul./set. 2014
(2012), na trilha do processo de agudização da crise capitalista global e sistê‑
mica, em 2008.
Mas antes de tecer comentários sobre essa última fase de decadência da
política social, convém trazer à tona os ataques de filiação pós-moderna que,
em consonância com o ideário de uma “nova direita”8 emergente, foram des‑
feridos contra a pretensão dessa política de ser uma área de conhecimento.
Assim, se no seu período de ouro tal política teve algum estofo teórico, agora
o seu perfil é outro. Ela vem sendo obrigada a restringir-se a uma ação que,
como tudo o que se baseia em dogmas, palavras de ordem e ideias preconce‑
bidas, recusa a teoria como recurso necessário a um processo de conhecimen‑
to que transcende o senso comum e especulações intuitivas. Daí a reiteração
do entendimento, estrategicamente difundido, de que a teoria, no campo da
política social, é um luxo intelectual, e não uma necessidade (Bruyne, Herman
e Schoutheete, 1977, p. 101). Ou daí o prevalecimento de posturas acríticas e
miméticas, adeptas do pragmatismo pós-moderno, que produzem indagações
como essas (Sader, 2003, p. 13): “Para que teoria, se os índices do mercado
afirmam o que é e o que pode ser feito; o que vale a pena e o que não adianta;
o que é bom, bonito e legítimo?”. Ou, então: para que servem as grandes nar‑
rações teóricas, típicas da era moderna, se estamos vivendo em outra era, a
pós-moderna, que se contenta com o conhecimento de pequeno porte, ou com
o que o noticiário da televisão e os colunistas econômicos divulgam? (Sader,
2003; Boron, 2001).
Não admira que, em meio a essas mudanças, e certamente por causa delas,
a pobreza, que teima em crescer até nas cidades vitrines do chamado Primeiro
Mundo, como Nova York, Londres, Paris, seja considerada um delito ou um
símbolo da barbárie terceiro-mundista, que ofende a civilização capitalista. Por
isso, a pobreza passou a servir de álibi ao controle punitivo, seja por meio da
repressão policial saneadora, seja por meio da educação corretora e adestrado‑
ra para o trabalho impositivo (o workfare), que vem se tornando a forma privi‑
legiada de “inclusão excludente” (Martins, 1997) na atual idade de bronze da
política social.
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Motivos e práticas da atuação crescentemente perversa da política social
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seria o melhor agente de bem-estar dos indivíduos. Afinal, não se pode esquecer
que é a exploração do trabalho, por meio do mercado laboral, e não a eficiência
pura e simples deste mercado, que garante o crescimento capitalista.
Consequentemente, o direito à proteção contra os abusos do trabalho as‑
salariado tem se esvanecido porque a conquista do trabalho em si, ou como
simples meio de obtenção de rendimentos econômicos, tornou-se essencial.
Poder trabalhar, em conformidade com a lógica capitalista, inclusive na con‑
cepção de setores ditos progressistas, transformou-se no melhor ganho político
e maior “direito de cidadania” conquistado pelos que foram obrigados a depen‑
der das políticas passivas de bem-estar social (leia-se incondicionais). Essa é a
ilusão de corte schumpeteriano, num primeiro momento de predomínio do
modelo monetarista de desenvolvimento capitalista, e de corte ricardiano (tri‑
butário da economia política clássica) da atual idade de bronze da política social,
cujo lema é o bem-estar humano por meio do trabalho remunerado; ou do que
foi concebido nos Estados Unidos desde os anos 1970, que é a substituição
progressiva e perversa do Welfare pelo workfare.
Embora seja difícil definir o workfare, este pode ser descrito, segundo
Gough (2000), como um contraponto à política social incondicional e como
direito. Constitui uma política compatível com um tipo de intervenção social
requerido por uma economia capitalista internacionalizada, de última geração,
preponderantemente baseada no conhecimento e na financeirização (Jessop,
2013). Tais formas de funcionamento econômico tem sido associadas a Schum‑
peter e a David Ricardo porque, no que se refere ao primeiro, elas privilegiam
o conhecimento de ponta, o empreendimento audaz, o empoderamento e a
autossuficiência em relação ao Estado. Em vista disso, as pressões estruturais
e políticas para desmantelar direitos, reduzir salários e diminuir gastos sociais
são enormes, o que induz ao prevalecimento de medidas sociais ativadoras de
mecanismos que reforcem a rentabilidade econômica. A privatização e a mo‑
netarização dos programas sociais, atualmente em voga, são exemplos elo‑
quentes dessa indução. Mas é a associação das políticas sociais atuais às teorias
ricardianas que caracterizam a idade de bronze dessas políticas. Nessa asso‑
ciação — cabe ressaltar com base em Jessop (2013) —, transparece a adequa‑
ção das políticas sociais à contemporânea forma de acumulação capitalista
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ancorada nas finanças — e não só no domínio do conhecimento. Sendo Ri‑
cardo o teórico do comércio internacional e defensor da exploração do fator
de produção mais barato e abundante (o trabalho), é nele que a ética capita‑
lista corrente vem se inspirando. E, consequentemente, a ruptura com os di‑
reitos sociais (agora chamados apenas de entitlements) tem radicalizado no
rebaixamento dos salários, na flexibilidade do mercado e na diminuição dos
custos sociais do Estado. Trata-se, em suma, do aprofundamento mais acen‑
tuado dos mandamentos neoliberais do livre mercado e da competitividade
privada, que se traduzem nas seguintes tendências de extração ricardiana:
desregulação, tanto do mercado para liberar a competição, quanto dos orde‑
namentos legais e do controle dos Estados nacionais; privatização do setor
público; residualização e focalização da política social com o objetivo de criar
condições favoráveis à generalização de uma cultura mercantilista; interna‑
cionalização da economia interna para evitar incompatibilidades com os
fluxos econômicos mundiais, precaução contra pressões competitivas e, su‑
postamente, propiciar o aprendizado de boas práticas comerciais e financeiras;
e estímulo ao consumismo.
É nessa conjuntura que as políticas sociais, especialmente a assistência,
tornaram-se reféns da prédica da ativação e do workfare. E, como tal, se con‑
verteram em estratégias complementares de exploração econômica ricardiana
do trabalho, considerado este na sua mais bitolada expressão de insumo-chave
ou mero fator de produção a serviço da reprodução do capital (Jessop, 2013).
Eis por que o primeiro compromisso da política de assistência social,
transvertida em alívio, passou a ser com o trabalho (seja ele qual for), e não
com o atendimento de legítimas necessidades do trabalhador; e, consequen‑
temente, ela não mais funciona como um um colchão de segurança capaz de
impedir que as pessoas pobres se afundem na miséria. Ademais, o workfare
transforma a assistência social num trampolim que serve apenas para lançar
o pobre para fora da sua órbita em direção ao mundo do mercado, onde o
trabalho é desprotegido, precário e flexível. Em alguns casos, o workfare
prevê educação e treinamento para tornar laboriosos os beneficiários da as‑
sistência social, mas esse expediente faz parte do processo de ativação para
mercado de trabalho.
460 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 446-467, jul./set. 2014
Nos Estados Unidos, onde o workfare foi concebido, ele tem relação di‑
reta com o conceito de subclasse (underclasses), para identificar desvios de
comportamento ou uma cultura da dependência específica dos pobres, enquan‑
to na Europa, o workfare tem como referência o conceito de exclusão social
(Barbier, 2008). Mas em ambas as concepções percebe-se que, a despeito de
algumas diferenciações, eles se distanciam da tradição de análise crítica do
sistema que produz a pobreza. A esse respeito, Gough (2000) assinala que tais
conceitos expressam um evidente afastamento da análise de tradição marxista,
que se centra na categoria classe social; e, para ressaltar a estreita identificação
funcionalista desses conceitos, de raiz durkheimiana, Gough lembra que nem
o mesmo a categoria status, tributária de Max Weber, é levada em conta. São
as categorias anomia, integração, solidariedade, tomadas de empréstimo de
Émile Durkheim, que estão em alta.
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e lucratividade neoliberal, por meio de feroz competitividade, só faz aumen‑
tar os números dos descartáveis. E, nesse processo, os pobres, seja de que
lugar for, são, pela sua própria condição de classe, irremediavelmente tragados
pelo chamado “darwinismo social”, isto é, pela atitude expressa no ditado
popular de que “quem for pobre que se quebre”, ou aos vencedores o apoio e
aos perdedores o extermínio.
Diante dessa tendência, a política social deixou de ser universal para se
tornar focalizada na indigência, com toda gama de atentados aos direitos sociais
que essa orientação provoca. Nessas circunstâncias, ocorre o seguinte círculo
vicioso: o desmonte dos direitos sociais tem como consequência a quebra do
protagonismo do Estado na provisão e na garantia da política social, ficando
essa provisão por conta do mercado e das organizações da sociedade civil, que
não têm poderes para garantir direitos. Mas isso, como diz Alves (2005), longe
de produzir sentimentos de solidariedade, gera divisões.
Em sociedades em que predominam abismos sociais e em que o Estado
não está mais incumbido de implementar políticas redistributivas e instituir
princípios de justiça social, “as classes abastadas se isolam em sistemas de
segurança privada” (Alves, 2005, p. 27); e a população cobra dos legisladores
diminuição da idade penal de adolescentes em conflito com a lei e penas au‑
mentadas para os crimes comuns, aprofundando intolerâncias sociais preexis‑
tentes. Com isso, agridem-se, também os direitos civis.
No Brasil os direitos civis possuem uma história notória de violações.
Primeiro, porque eles não funcionam nas ditaduras, e o país já experimentou
dois longos períodos de regime ditatorial cujas marcas ainda estão presentes.
Nestes casos, a liberdade de ir e vir, de expressão, de imprensa, de organiza‑
ção, de pensamento e de acesso a justiça, é cerceada. Segundo, porque quan‑
do essas liberdades são restabelecidas, durante os períodos denominados de
redemocratização, a população não mais acredita nas instituições ou tem medo
delas. Na última e atual experiência de redemocratização do país, a Consti‑
tuição federal, promulgada em 1988, resgatou os direitos civis e inovou ao
criar outros direitos, como o de habeas data, com base no qual “qualquer
pessoa pode exigir do governo o acesso a informações sobre si, existentes
nos registros públicos, mesmo as de caráter confidencial” (Carvalho, 2001,
462 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 446-467, jul./set. 2014
p. 209); e o mandado de injunção, “pelo qual se pode recorrer à Justiça para
exigir o cumprimento de dispositivos constitucionais ainda não regulamenta‑
dos” (Idem).
Além disso, a referida Carta Magna definiu o racismo e a tortura como
crimes inafiançáveis e previu a defesa do consumidor. Foi nesse contexto que
também foram criados o Programa Nacional dos Direitos Humanos e os Jui‑
zados Especiais de pequenas causas cíveis e criminais, para tornar a justiça
mais acessível (Carvalho, 2001). Isso significou inovações legais e institucio‑
nais importantes, mas que, na prática, encontram severas limitações. A falta
de garantias desses direitos no que concerne à segurança individual, à integri‑
dade física e ao acesso à justiça responde pela grande abstinência no uso
desses recursos legais, seja porque o interessado não quer contato com a polí‑
cia, seja porque a justiça é lenta, cara e seletiva. Poucos são os crimes de ho‑
micídio verdadeiramente investigados, principalmente se a vítima for pobre
ou anônima.
Por outro lado, a descrença no sistema político e nos políticos em si tem
desestimulado o exercício dos direitos políticos por parte de grande parcela da
população. Assim, apesar de a Constituição federal de 1988 ter inovado também
neste âmbito, facultando o voto ao analfabeto e ao jovem a partir dos dezesseis
anos de idade, muitos eleitores quando não votam por obrigação, quase sempre
votam contra alguém ou por protesto (Carvalho, 2001). Com isso, agridem-se
os direitos políticos conquistados a duras penas pelos movimentos democráticos
e, correlativamente, agridem-se os demais tipos de direitos.
Recentemente, ganharam visibilidade os chamados direitos difusos, que,
para vários analistas, são extensões dos direitos sociais num mundo globaliza‑
do e tecnologicamente avançado (Pisón, 1998). Tais direitos refletem ainda as
novas realidades que afetam o planeta e as transformações globais, requerendo
solidariedades e entendimentos entre os seres humanos, como: o direito à paz,
ao meio ambiente saudável, à autodeterminação dos povos, à preservação cul‑
tural da humanidade. Estes são direitos que interpelam o individualismo neoli‑
beral e as fragmentações pós-modernas, ao tempo em que desafiam governos e
sociedades a encontrarem saídas supranacionais, mesmo que regionalizadas,
para o seu enfrentamento.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 446-467, jul./set. 2014 463
É nesse ambiente repleto de contradições que a política social se encontra
e precisa voltar a estabelecer vínculos orgânicos com a cidadania para que in‑
clusive se justifique como social. Mas para que isso aconteça faz-se necessária
a construção de um projeto contra-hegemônico pelas forças sociais que acredi‑
tam ser possível construir outro mundo e que nem tudo está perdido.
Ponderações finais
Um sintoma de que nem tudo está perdido no campo dos direitos e, por‑
tanto, desperta esperanças, é o fato, assinalado por Alves, de o discurso dos
direitos humanos permanecer vivo e cada vez mais extenso e conhecido. No
curso de seus cinquenta e poucos anos de existência, diz ele, esses direitos
ganharam aperfeiçoamentos em meio a velhas e novas violações. Inicialmente
declarados como direitos do “homem”, passaram a se denominar direitos “hu‑
manos” para indicar que também as mulheres estavam contempladas. A palavra
“universal”, que compõe seu título original, ganhou, em 1993, foro de concei‑
to quando, na Conferência de Viena, tais direitos tiveram como apoiadores
“representantes de todas as grandes culturas, religiões e sistemas sociopolíticos,
com delegações de todos os países de um mundo já praticamente sem colônias”
(2005, p. 25).
Disso se conclui que os direitos humanos declarados universalmente e
apoiados extensivamente por culturas variadas não perderem prestígio. O pro‑
blema é a sua aplicação como um recurso progressista a serviço dos desprovidos
de bens materiais e de poder. Este é o desafio do presente que interpela o futu‑
ro e compromete todos. E mais: exige que se desmitifique a matriz das desven‑
turas desses direitos: os Estados Unidos legitimado como baluarte mundial da
democracia e da paz social.
Para tanto é preciso ter claro que este é, pelo contrário, um país de profun‑
das incoerências e mistificações. É um país que se apresenta como o paladino
da paz, mas que foi o que mais guerreou, que se coloca em uma luta antinuclear,
mas obsta planos de países que querem apenas ampliar a sua capacidade ener‑
gética. Além disso, foi o único país que realmente fez uso desses explosivos
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(em duas ocasiões), dizimando centenas de milhares de vidas inocentes, sob o
ingênuo (para dizer o mínimo) pretexto de que seria para poupar a vida de
soldados americanos e japoneses. Um país que historicamente apoiou e ainda
apoia regimes autoritários. Uma nação que iniciou uma guerra “permanente” e
“infinita” ao terror, quando foi, e ainda é, a que mais praticou e pratica atos
globais de terrorismo.
Enfim, pode-se dizer que o regime de Estado-padrão dos Estados Unidos,
desde a Primeira Guerra Mundial, é o do warfare — um constante estado de
conflitos e guerras ao redor do mundo, como princípio básico de manutenção
do seu modo capitalista de produção, assentado em um colossal complexo in‑
dustrial-militar. Sobre essa sua característica particular repousa outra contradi‑
ção fundamental, que é o da não intervenção estatal: os Estados Unidos são um
país que sempre pregou a não intervenção do Estado em assuntos pertinentes
ao mercado. Entretanto, o esforço e o dinheiro empregados pelos seus governos
no fortalecimento do seu modelo capitalista causaria acanhamento ao mais
totalitário dos Estados.
Trata-se, na verdade, de um país (os Estados Unidos) capaz de, literalmen‑
te, matar para conseguir manter os patamares mínimos de lucratividade de sua
indústria. É um país que erigiu, como já salientado, o maior complexo industrial‑
-militar que o mundo já viu, composto de uma formidável rede de empresas,
indústrias militares e de inteligência, que existem para salvaguardar os interes‑
ses de suas megacorporações e de seus negócios. Na cabeça desse enorme
“polvo”, com seus tentáculos espalhados pelo globo, estão os principais nomes
do sistema financeiro, midiático, industrial e energético estadunidense. E o
principal financiador e “chanceler” desse intrincado sistema é ninguém menos
do que o próprio Estado, mesmo que a custa de um colossal endividamento
público e do desmonte dos direitos de cidadania em larga escala.
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Reflexões sobre liberdade e (in)tolerância*
Reflections upon freedom and (in)tolerance
Abstract: In this article, we discuss about the liberal conception of freedom, and we stress that its
individualism leads to intolerant attitudes for social differences; on the other hand, we rescue the
ontological and social meaning of freedom presupposing sociability, otherness and equity.
Keywords: Freedom. Tolerance. Intolerance. Otherness. Equity.
468 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 468-481, jul./set. 2014
Liberdade e individualismo: a exclusão do outro
A
liberdade é um valor e uma categoria ético-política construída
historicamente na práxis da humanidade e configurada teórica e
ideologicamente de formas diferenciadas em cada momento his‑
tórico particular.
Na emergência da sociedade moderna, a liberdade objetivou-se como
valor imanente, ocupando lugar de destaque no ideário da burguesia revolucio‑
nária, em seu processo de ruptura com a ordem feudal, na produção filosófica
e na cultura humanista desenvolvida na Europa ocidental no período entre o
Renascimento e a Revolução Francesa.
Nesse contexto, sua forma peculiar de objetivação teórico-prática corres‑
pondeu às possibilidades abertas ao indivíduo pela dinâmica do novo modo de
produção. Superadas as formas limitadas da produção, os limites concretos da
comunidade e das relações sociais feudais, com seus laços de dependência, o
indivíduo emergiu como sujeito histórico capaz de decidir o seu destino.
Entretanto, a produção capitalista criou novos vínculos de dependência
que se materializam a partir das relações de produção, determinando a institui‑
ção de uma sociabilidade mediada pelo mercado. A liberdade passa a se confi‑
gurar como sinônimo de autonomia dirigida à realização individual pela apro‑
priação privada de bens materiais e espirituais.
Esse modo de ser do indivíduo burguês, ou seja, esse ethos, tem uma base
objetiva de sustentação fundada na forma de organização do modo de produção
capitalista; atende às necessidades de reprodução dessa ordem social cuja di‑
nâmica supõe a produção incessante e universalizante de novas mercadorias e
sua apropriação privada.
Cria-se um modo de vida orientada para o consumo, a competitividade e
o individualismo. Os indivíduos passam a valer enquanto proprietários de mer‑
cadorias e por isso são considerados legalmente iguais e livres. Os objetos
materiais se expressam como qualidades humanas que, ao serem consumidas,
passam a dar sentido à existência, e o próprio indivíduo passa a identificar a sua
condição humana à condição de proprietário, consumidor. Para MacPherson,
trata-se da identidade do individualismo possessivo:
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O indivíduo numa sociedade de mercado possessivo é humano em sua qualidade
de proprietário de sua própria pessoa; sua humanidade realmente depende de sua
independência de quaisquer relacionamentos contratuais com outros, exceto os
que são de seu interesse; sua sociabilidade realmente consiste de uma série de
relações de mercado (MacPherson, 1979, p. 283).
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rente. Entretanto, alguns autores discordam do próprio uso do termo tolerância
para retratar essa relação social. Jacquard, por exemplo, chama a atenção para
não confundirmos respeito com tolerância, uma vez que “a tolerância é uma
atitude muito ambígua (para isso, existem casas..., dizia Claudel). Tolerar é
julgar-se em condições de dominar, julgar; é ter de si mesmo um conceito o
bastante positivo para aceitar o outro com todos os seus defeitos” (Jacquard,
1997, p. 4).
O autor propõe substituir tolerância por alteridade “é necessário tomar um
rumo completamente diferente e tomar consciência da contribuição dos outros,
que se torna tanto mais rica quanto maior for a diferença em relação consigo
mesmo” (Idem).
Para Cortella, o uso corrente do termo tolerância é problemático:
[...] Eu venho me rebelando há certo tempo contra a palavra “tolerância” [...] acho
que a palavra “tolerância” produz quase um sequestro semântico, pois quando
alguém a usa está querendo dizer que suporta o outro. Afinal tolerar é suportar
[...] Eu o suporto, aguento. Você não é como eu, aceito isso, mas continuo sendo
eu mesmo. Não quero ter contato, só respeito a sua individualidade. Em vez de
utilizar a palavra “tolerância”, tenho preferido outra: “acolhimento”. Há uma
diferença entre tolerar que você não tenha as mesmas convicções que eu — sejam
religiosas, políticas ou outras — e acolher suas convicções. Porque acolher sig‑
nifica que eu recebo na qualidade de alguém como eu. (Cortella, 2005, p. 28-29)
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 468-481, jul./set. 2014 471
Na intolerância, também ocorre uma relação social em que um dos sujei‑
tos (ou um grupo, uma classe social etc.) é diferente ou faz algo diferente, e isso
nos atinge. Porém nossa reação é oposta à da tolerância; aqui, diante das dife‑
renças, assumimos atitudes destrutivas, fanáticas, racistas, reacionárias. A di‑
ferença é negada; mais do que isso, buscamos destruí-la, excluir a identidade
do outro por meio da afirmação da nossa, tomada como a única válida (Idem,
p. 116).
Assim, enquanto na tolerância a diferença é reconhecida e respeitada,
embora não seja compartilhada, na intolerância a identidade do outro é recha‑
çada justamente por ser diferente. Enquanto a tolerância exige um horizonte de
liberdade, uma reciprocidade objetivadora de relações de comum liberdade e
igualdade, a intolerância objetiva uma relação assimétrica em que somente um
é livre e quer impor a sua identidade ao outro (Idem, p. 117).
Voltamos à questão da liberdade liberal, expressa na máxima que define
“a liberdade de um indivíduo termina onde começa a do outro” para considerar
o seu caráter intolerante, manifesto no individualismo da sociedade burguesa.
Em primeiro lugar, trata-se de uma liberdade individualista que não suporta a
presença do outro com suas escolhas e modos de vida. Por isso, essa máxima
só ganha sentido quando divulgada ou reproduzida em situações em que dois
ou mais indivíduos têm escolhas diferentes. Vê-se, então, que a exclusão do
outro se refere ao outro que se apresenta como diferente; mais do que excluir o
outro, exclui-se a possibilidade de convivência entre sujeitos que têm escolhas,
preferências ou modos de vida diferentes. Sendo assim, além de individualista,
trata-se de uma norma de convivência intolerante.
A intolerância que se expressa de forma tão límpida na máxima que defi‑
ne a liberdade burguesa revela-se cotidianamente no contexto neoconservador
atual. Parte da sociedade finge “tolerar” as escolhas alheias desde que elas se
objetivem fora do espaço de convivência pública, desde que não perturbem a
ordem social e moral, desde que não demande um envolvimento com os seus
sujeitos. Isso ocorre também em situações que não derivam de escolhas alheias,
mas de determinações sociais que não fazem parte do universo daqueles que
são intolerantes: “tolera-se” a existência da pobreza desde que os pobres este‑
jam presos, longe do convívio social e dos espaços públicos frequentados pela
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burguesia e pelas classes médias. É como lembrou o autor citado: as “casas de
tolerância” foram assim chamadas na medida em que não se podia negar a
existência de casas de prostituição e tratou-se de garantir que elas se estabele‑
cessem nas periferias das cidades.
Marcuse se refere a uma “falsa tolerância”, típica da sociedade de classes
das democracias existentes no capitalismo; sociedades democráticas com orga‑
nizações totalitárias determinadas pela desigualdade institucionalizada. Nesse
contexto ocorre uma “tolerância” falsa e repressiva, especialmente veiculada
pela publicidade, pela propaganda e pelo controle ideológico que reprime o
impulso à liberdade, passando a falsa ideia de imparcialidade do poder domi‑
nante (Marcuse, apud Vázquez, 1999, p. 119-120).
A intolerância percorre a trajetória da humanidade, destacando-se a reli‑
giosa e a étnica como dois grandes marcos da opressão e injustiça, a exemplo
da escravidão, da Inquisição, dos genocídios. No Brasil, em pleno século XXI,
práticas que remontam a um estágio histórico pré-civilizatório têm se apresen‑
tado cotidianamente, desvelando um cenário de barbárie intolerável, a exemplo
do aumento de linchamentos, das práticas de “justiceiros” contra jovens infra‑
tores, das execuções sumárias realizadas pela polícia, da eliminação de grupos
e populações indígenas, camponesas, quilombolas pelos latifundiários, entre
outros.
A intolerância se reproduz ideologicamente no apoio dado a essas prá‑
ticas por parte da sociedade e de certos meios de comunicação, incitando a
pena de morte, o rebaixamento da maioridade penal, o armamento da popu‑
lação e o uso da força pelo Estado, respaldadas por uma intelectualidade ir‑
racionalista de direita que encontra espaço para se promover em jornais, em
programas de TV, em cursos, em publicações próprias. Os “outros”, os inimi‑
gos que impedem a liberdade da burguesia e das classes médias são os pobres,
os favelados, os jovens moradores das periferias, os indígenas, os trabalha‑
dores do campo e da cidade, principalmente quando eles comparecem coleti‑
vamente nas ruas, nas praças, nos espaços de lazer, como os shoppings, entre
outros. Para a intelectualidade de direita, “os outros” são as forças organiza‑
das de esquerda, os setores progressistas, os movimentos sociais, os militan‑
tes de direitos humanos.
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Esse processo de barbárie tem sido contestado por parte da sociedade,
resultando nas inúmeras manifestações populares que se espraiam por todo o
país desde junho de 2013. Organizando-se em partidos, associações, movimen‑
tos sociais ou através dos meios virtuais, essa população comparece às passea‑
tas, deflagra greves, para o trânsito de vias públicas e estradas em repúdio às
ações de extermínio cometidas pela polícia nas favelas e periferias das cidades,
denunciando a barbárie, reivindicando direitos e justiça social.
Trata-se, portanto, da coexistência entre a prática da liberdade e da tole‑
rância e da sua negação, embora essa convivência seja desigual, na medida em
que o movimento de negação tem uma base de sustentação objetiva na barbárie
promovida pelas determinações conjunturais e estruturais do modo de produção
capitalista.
Nesse sentido, voltando ao eixo de nossa reflexão, coloca-se uma questão
ética e política que interessa àqueles que defendem e praticam a resistência à
barbárie: a tolerância tem limites?
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práticas diferentes implica considerar que as práticas e as ideias existentes têm
o mesmo valor e, portanto, que todas devem ser respeitadas.
No entanto, quando nos deparamos com práticas que representam atos de
violência inadmissíveis, cabe a pergunta: devemos tolerar o intolerável?
Podemos citar como exemplos de práticas culturais: o genocídio, o etno‑
cídio, o racismo e várias práticas de discriminação e de violência contra a
mulher, entre elas a da mutilação sexual e do apedrejamento, sem contar a lista
interminável de violações que consta dos documentos de direitos humanos e
que não se restringem a práticas culturais, tais como o trabalho escravo, a tor‑
tura, o terrorismo de estado, a guerra, a fome, a prostituição infantil etc. Por
isso, é importante salientar que embora os exemplos a respeito das práticas
culturais de violação aos direitos humanos acabem recaindo sobre os países não
ocidentais, isso não significa afirmar que a civilização ocidental seja um exem‑
plo de não violação.
Em nome de quais valores tais práticas são justificáveis? Devemos nos
manifestar em oposição a isso ou devemos “respeitar” esses valores? Respon‑
demos a tais indagações afirmando que a tolerância tem limites e que os parâ‑
metros para essa afirmação são teóricos e históricos.
Para Bobbio, “a tolerância absoluta é uma pura abstração” (Bobbio, in
Vázquez, 1999, p. 120). Vázquez adota como medida a liberdade, afirmando
que “deve tolerar-se o que amplia ou enriquece a liberdade e, ao contrário, não
se deve tolerar o que a obstaculiza ou nega” (Vázquez, 1999, p. 121).
Entretanto, como já afirmamos, a categoria liberdade pode ser utilizada
em diferentes práticas e discursos, com significados opostos. Por isso, é preci‑
so informar quais são os critérios teóricos e históricos, éticos e políticos que
orientam nossa defesa dos limites da tolerância.
A ética é aqui concebida como uma forma de práxis: uma ação prática
consciente derivada de uma escolha racional entre alternativas de valor que
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visa produzir uma transformação de valor nos homens entre si. A ética permi‑
te ao indivíduo sair de sua singularidade para estabelecer uma conexão cons‑
ciente com o humano genérico; logo, é uma atividade universalizante, mesmo
sendo realizada por um indivíduo singular.
A criação de alternativas funda a capacidade de escolha (liberdade), e a
valoração das escolhas objetiva a criação de valores e as escolhas de valor,
instituindo a possibilidade do agir ético-moral. Logo, valor e liberdade são
fundantes da práxis ética, e seu significado ontológico é dado pela sua objeti‑
vidade na reprodução do ser social: esses componentes da práxis são liberados
e liberam pelas/as forças e capacidades humanas essenciais postas em movi‑
mento no processo de (re)produção humana a partir do trabalho: a liberdade, a
sociabilidade, a consciência e a universalidade humana.
Desse modo, o caráter universalizante dos valores é um dado ontológico
historicamente observável. Basta observar a história social da liberdade, em que
sua objetividade é dada por todas as situações históricas de emancipação de
homens, mulheres, de povos, classes e grupos sociais em face de situações de
dominação, exploração, escravidão, de sofrimento material e espiritual provo‑
cado pelo impedimento forçado de liberação das capacidades e forças essenciais
humanas. Portanto, negar a universalidade dos valores só tem sustentação em
formas de pensar irracionalistas e a-históricas.
Marx trata da riqueza humana1 construída pelo gênero como a base fun‑
dante da livre e múltipla atividade de todo o indivíduo (Heller, 1978, p. 40). Por
riqueza humana, ele concebe a universalidade das necessidades e capacidades,
o domínio do homem sobre a natureza, a explicitação absoluta de suas faculda‑
1. “Em todas as formas, ela [a riqueza representada pelo valor] se apresenta sob forma objetiva, quer
se trate de uma coisa ou de uma relação mediatizada por uma coisa, que se encontra fora do indivíduo e
casualmente a seu lado [...]. Mas, in fact, uma vez superada a limitada forma burguesa, o que é a riqueza se
não a universalidade dos carecimentos, das capacidades, das fruições, das forças produtivas etc., dos indivíduos,
criada no intercâmbio universal? O que é a riqueza se não o pleno desenvolvimento do domínio do homem
sobre as forças da natureza, tanto sobre as da chamada natureza quanto sobre as da sua própria natureza? O
que é a riqueza se não a explicitação absoluta de suas faculdades criativas, sem outro pressuposto além do
desenvolvimento histórico anterior, que torna finalidade em si mesma essa totalidade do desenvolvimento,
ou seja, do desenvolvimento de todas as forças humanas enquanto tais, não avaliadas segundo um metro já
dado?” (Marx, 1970, I, p. 372).
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des criativas, em suas palavras: “Uma explicitação na qual o homem não se
reproduz numa dimensão determinada, mas produz sua própria totalidade...”
(Marx, 1970, I, 372).
Esses fundamentos fornecem uma medida de valor para julgar as ações
humanas:
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 468-481, jul./set. 2014 477
Assim, as tendências que defendem a diversidade, considerando que de‑
vemos respeitar a totalidade de práticas e ideias particulares em nome da liber‑
dade, encontra uma contradição insolúvel quando se depara com práticas que
negam a própria liberdade, mais do que isso, a humanidade do outro. Na ver‑
dade, acabam propondo um posicionamento neutro em face de crimes e viola‑
ções de direitos humanos.
Consideramos que o enfrentamento dessa problemática não se resolve
pelo relativismo, mas o inverso — a defesa do universal — também implica
muitas mediações. A validade ou a abrangência dos documentos e leis que
tratam dos direitos humanos deve ser medida pelo nível de incorporação das
diferentes culturas e modos de ser, das reivindicações dos diversos movimen‑
tos e lutas sociais, na construção de um debate orientado pelo horizonte da
emancipação humana e pela noção de que, para o humano, a medida de valor
é o próprio homem.
Quanto ao chamado relativismo ético, com sua defesa da impossibilidade
de haver um acordo racional diante de vários códigos morais em conflito, con‑
sideramos uma negação irracionalista e niilista da ética, pois anula a capacida‑
de de escolha do sujeito e a sua responsabilidade em face de situações que
demandam escolhas de valor. Na medida em que a ética, com sua exigência de
posicionamento; a razão, com sua capacidade de conhecer a essência da reali‑
dade; a ação política, com sua interferência na realidade social, deixam de ter
sentido, essa forma de pensar passa a coincidir com a ideia defendida pela
ideologia dominante: “cada um na sua”.
Pelo exposto, podemos considerar que as diferenças culturais, sociais,
políticas, teóricas podem expressar a multiplicidade de capacidades e possibi‑
lidades do gênero humano rico em necessidades e formas de satisfação. Ao
mesmo tempo, podem expressar desigualdade, dominação, exploração, discri‑
minação, empobrecimento da humanidade. Isto porque, em sua história de
desenvolvimento, a humanidade tem produzido, ao mesmo tempo, a riqueza e
a miséria; a humanização e a barbárie.
A universalidade histórica dos valores, como construções humanas, for‑
necem parâmetros universais para avaliar o que é barbárie, tendo como medida
o nível de humanização do ser social atingido até hoje e documentado em
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manifestos, acordos, leis, elaborados universalmente. Como seres humanos e
sociais, somos dotados de discernimento ético para fazer distinção entre valores,
com base nas conquistas já efetuadas historicamente. Os torturadores podem
dizer que estavam agindo em nome da “liberdade”; parte da sociedade pode até
apoiá-los. Mas o patamar emancipatório conquistado pela humanidade em
termos da autoconsciência da liberdade e dos direitos humanos permite a con‑
testação por parte dos que não toleram o que é intolerável.
Isso significa afirmar que a discussão acerca do que é tolerável, nos marcos
de uma sociedade cindida pela divisão entre classes e interesses econômicos e
políticos, não é somente uma discussão ética filosófica; trata-se de um embate
ético-político prático que envolve referências teóricas, projetos sociais, ideolo‑
gias e valores.
Por isso, a questão do pluralismo, assim como a da diversidade, não sig‑
nifica ausência de conflitos e interesses, mas sim o posicionamento diante deles,
a possibilidade de todos se manifestarem, a responsabilidade ética de tomar uma
posição diante do que não concordamos e a condição política de lutar pela
hegemonia do projeto societário que defendemos e pela universalização dos
valores a ele conectados.
A liberdade liberal, portanto, é enganosa porque divulga uma falsa noção
de respeito ao outro, quando, na verdade, exclui o outro porque é diferente. A
concepção de liberdade aqui tratada não se separa da sociabilidade. Pressupõe‑
-se que indivíduos sejam livres em relação uns com os outros; não podemos
ser livres enquanto os outros não o são. Isso supõe o enfrentamento dos con‑
flitos, das contradições, a aceitação consciente dos demais como seres iguais
e diferentes.
Nesse sentido, o Código de Ética dos(as) Assistentes Sociais (CFESS,
1993) é transparente quando afirma que os assistentes sociais elegem como
princípios fundamentais a liberdade, a democracia, a equidade, a justiça social,
o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito e de discriminação
por questões de classe social, gênero, etnia, religião, nacionalidade, opção sexual,
idade e condição física, incentivando o respeito à diversidade, à discussão das
diferenças e a garantia do pluralismo, por meio do respeito às correntes profis‑
sionais democráticas existentes.
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De forma explícita, o Código indica uma concepção de pluralismo que
limita a tolerância ao campo democrático, negando as práticas, ideias e mani‑
festações que produzem o racismo, a xenofobia, o nacionalismo agressivo, o
fascismo, o preconceito, a discriminação por motivos diversos, enfim que negam
os valores que dão suporte à ética profissional.
Referências bibliográficas
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Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 468-481, jul./set. 2014 481
La formación en Derechos Humanos como parte
del proyecto ético político del Trabajo Social
The education in human rights as part of the
ethical and political project of Social Work
Abstract: The education in human rights as a fundamental element of the ethical and political
project of Social Work is the base of this article, related to the curriculum projects of Social Work in
state Chilean universities. This qualitative, descriptive and exploratory study analyses the content of
such projects, so as to lead to recommendations to include human rights in the public policy for college
education in general, as well as in the careers in Social Work
Keywords: Background in Social Work. Human rights. College education.
* Asistente social, licenciada en Trabajo Social, máster en Trabajo Social Comunitario, máster en Estudios
Feministas, máster en Inmigración, refugio y relaciones intercomunitarias, doctoranda en Trabajo Social,
Universidad de Atacama, Copiapó, Chile. Email: cory.duarte@uda.cl.
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1. Presentación
E
l presente artículo revisa la consideración de la formación en derechos
humanos en las carreras de trabajo social de instituciones de educa‑
ción superior pertenecientes al Consorcio de Universidades Estata‑
les Chilenas (CUECH) ubicadas en la Macrozona Norte del país.
Así, se planteó como objetivo de investigación el identificar la presencia o
ausencia de la formación en derechos humanos en los perfiles de egreso y mallas
curriculares, reflexionando sobre la consideración de la formación en derechos
humanos como elemento primordial del proyecto ético político del trabajo social.
Como marco referencial se presenta una somera revisión respecto de la
educación en derechos humanos, basándose en los instrumentos internacionales
que versan sobre la temática, para luego dar paso a la exploración de los ante‑
cedentes que hablan de la inclusión de la formación de los derechos humanos
en trabajo social.
Respecto de la forma en que se desarrolla este estudio, se declara su ca‑
rácter cualitativo, descriptivo y exploratorio, en el cual mediante el análisis de
contenido se logran resultados respecto de los objetivos planteados con ante‑
rioridad. El documento finaliza con una serie de recomendaciones para la in‑
clusión de la formación de derechos humanos en la política pública de educa‑
ción superior en general, y en las carreras de trabajo social en particular.
En consideración a lo que más adelante se plantea, la educación en derechos
humanos, se transforma en un imperativo de primer orden para las escuelas de
trabajo social.
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la educación en los ámbitos específicos de cada instrumento, existen pactos y
declaraciones en las que se plasman en detalle las obligaciones de los Estados
al respecto. En este sentido, destaca la Declaración y Programa de acción de
Viena (Naciones Unidas, 1993), la cual considera que los Estados partes debie‑
sen incluir “los derechos humanos, el derecho humanitario, la democracia […]
como temas de programas de estudio de todas las instituciones de enseñanza
académica y no académica” (art. N. 79). Establece además que la educación en
materia de derechos humanos “debe abarcar la paz, la democracia, el desarrollo
y la justicia social” (art. N. 80), estipulando que los Estados deben elaborar
“programas y estrategias específicos para ampliar al máximo el nivel de educa‑
ción y difusión de información pública en materia de derechos humanos, tenien‑
do particularmente en cuenta los derechos humanos de la mujer” (art. N. 81).
La Declaración sobre el derecho y el deber de los individuos, los grupos
y las instituciones de promover y proteger los Derechos Humanos y las liber‑
tades fundamentales universalmente reconocidos, aprobada por la Asamblea
General en su Resolución 53/144, de 9 de diciembre de 1998, establece que
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Derechos Humanos (DDHH) en América Latina y el Caribe, realizada el 2001
en Ciudad de México, en la que se define un programa de acción sobre DDHH.
En este documento los Estados comprometen la introducción temas de Derechos
Humanos, paz y democracia en los planes educativos, incluyendo políticas
multiculturales, interdisciplinares y multisectoriales sobre Derechos Humanos,
así como la articulación de políticas de igualdad, acciones que deberían ser
monitoreadas en forma permanente.
La declaración estipula entre otras cosas garantizar la libertad de cátedra,
la instalación de defensorías y la docencia en derechos humanos. Busca que las
Universidades desarrollen los derechos humanos en todas las carreras, a través
de metodologías sólidas y de carácter plural, fomenten la educación de posgra‑
do en derechos humanos., y que incentiven investigaciones “sobre la realidad
nacional y/o regional desde la perspectiva de la población-víctima de violacio‑
nes a sus derechos, para conocer las causas que las originan y contribuir en
propuestas para su erradicación” (Declaración de México, 2001). Así también,
la declaración indica que los Estados deben entregar “la garantía de una forma‑
ción profesional comprometida con los valores y principios de la democracia
para que ello forme parte de los perfiles profesionales y las competencias re‑
queridas en el ejercicio de los mismos” (Declaración de México, 2001).
Resulta interesante la visión de esta declaración en torno a centrarse en el
sujeto, reconociendo que “la educación en derechos humanos debe ser un pro‑
ceso de enseñanza aprendizaje que transforme la vida de las personas e integre
lo individual con lo comunitario, lo intelectual con lo afectivo”, pero además
ha de considerar “el reconocimiento y valoración de la pluralidad cultural pre‑
sente en la región” (Ramírez, 2004, p. 33).
Los informes especializados identifican 13 instrumentos internacionales
que tienen disposiciones atingentes respecto de la consideración de los Derechos
Humanos en la Educación (Azúa, 2011, p. 33) en lo que ha implicado que, a
partir de la década de los noventa, el Estado Chileno adquiriese compromisos
concretos respecto de la Educación en derechos humanos en los distintos nive‑
les educativos.
En el año 2012, en su informe anual el Instituto Nacional de Derechos
Humanos (INDH) consignaba la necesidad de considerar los acuerdos suscritos
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por el Estado Chileno en los cuales compromete la inclusión de los derechos
humanos en la formación educativa en general y con especial énfasis en la
formación universitaria. En el mismo informe el INDH manifiesta que las Uni‑
versidades no han sido capaces de declarar el compromiso ciudadano con los
derechos humanos en las misiones y visiones institucionales. Así también, en
el estudio realizado por dicho Instituto respecto de la inclusión de los derechos
humanos en las mallas curriculares de pedagogía, derecho y periodismo, se
evidencia la inclusión marginal de los derechos humanos en la formación pro‑
fesional (Azúa, 2011).
En 2011, el Dr. Nash, del Centro de Derechos Humanos de la Facultad de
Derecho de la Universidad de Chile denunciaba la escasa importancia de los
derechos humanos en las misiones y mallas curriculares de las carreras de de‑
recho a nivel nacional. El académico señala las deficiencias en los currículos
en torno a materias relacionadas con la teoría general de derechos humanos, los
instrumentos internacionales, la jurisprudencia internacional y los grupos en
condición de vulnerabilidad (Nash, 2011, p. 63).
Como resultado del estudio señalado se recomienda la inclusión en los
currículos de las carreras del área, el estudio de los grupos protegidos a nivel
internacional a través de convenciones específicas, es decir, la consideración
de los derechos de las mujeres, niños, niñas y adolescentes, migrantes, diversi‑
dades sexuales, pueblos originarios, personas privadas de libertad y refugiados
(Nash, 2011, p. 63). En el caso de la teoría general de los derechos humanos,
el mismo estudio sugiere su abordaje en asignaturas específicas, pero también
en cátedras como Derecho Procesal Penal y Derecho Internacional Público.
Por no encontrarse material respecto de la incorporación de los derechos
humanos en las mallas curriculares de trabajo social se hace relevante estudiar
respecto de esto, teniendo en cuenta que el objetivo central de la educación
en derechos es empoderar a las personas para sean sujetos de derecho, avan‑
zando hacia la consolidación de la justicia y la paz en nuestras sociedades
(Mujica, 2002). La educación en derechos humanos es una propuesta ético
política que implica la consideración de la teoría general de derechos humanos,
pero también la atención de las desigualdades y los grupos que las sufren. De
esta forma, los perfiles de egreso permiten formar profesionales sujetos de
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derechos, lo que en resumidas cuentas significa entregar las competencias
necesarias para que desarrollen su acción profesional siendo capaces de pro‑
mocionar y defender sus derechos y los de las personas, grupos y comunida‑
des con quienes trabajan.
Algunas escuelas podrán ofrecer un curso facultativo separado, otras exigir a sus
alumnos que sigan un curso de derechos humanos y otras introducir el estudio de
los derechos humanos en todos sus cursos fundamentales obligatorios. Esos mé‑
todos no tienen por qué excluirse mutuamente, ya que cada uno de ellos tiene
ventajas y desventajas. (p. 12)
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la necesidad de contar con misiones y principios en las escuelas que den c uenta
de estas dimensiones, así como las instalación de relaciones y procedimientos
con base en los derechos humanos.
En la Declaración del 2000, la FITS reconoce a los derechos humanos y
la justicia social como principios de la profesión, relevando su importancia en
el proyecto ético político del trabajo social. Reconocer lo anterior implica pen‑
sar los derechos consignados en la Declaración Universal como mínimos éticos
en el desarrollo de los pueblos, constituyéndose en tanto “condiciones de posi‑
bilidad de realización y de transformación con vistas a conseguir una mayor
justicia y solidaridad” (Cordero, Palacios y Fernández, 2006, p. 7). Sin embar‑
go, la concepción de derechos de la Declaración Universal resulta problemáti‑
ca en atención a los cuestionamientos sobre la visión universalista, burguesa,
androcéntrica y eurocentrista contenida en ella; ante lo cual se hace necesario
ligar la idea de dignidad humana con el reconocimiento de múltiples contextos,
situados, fundados y multiculturales. Por estas razones, la propuesta de la FITS
y la AIETS respecto de la definición de Trabajo Social posee un gran número
opositores respecto de la visión etnocéntrica, funcionalista y eurocéntrica de la
misma, imponiéndose “los parámetros de principios éticos amplios” (AIETS,
2003), lo que de todas formas, deja a un lado los contextos y especificidades
propias de cada región. Las distintas asociaciones regionales, han trabajo en
sendas propuestas de modificación de la definición de 2000, las que no han
logrado acuerdo ni los consensos necesarios.
En el año 2004, la FITS lista siete instrumentos de derechos humanos
considerados de especial relevancia para la práctica y acción del trabajo social
(FITS / AIETS,
2004, p. 3), entre estos se encuentran la Declaración Universal,
el Pacto de Derechos civiles y políticos (PIDCP), el Pacto de Derechos Econó‑
micos, Sociales y Culturales (PIDESC), la Convención por la Eliminación de
todas las Formas de Discriminación Racial; la
Convención por la Eliminación
de todas las formas de discriminación contra la Mujer (CEDAW), la convención
de los Derechos del Niño (CDN), y la convención sobre pueblo indígenas y
tribales (convenio de la OIT, n. 169). En el mismo año la FITS compromete sus
esfuerzos para denunciar y contribuir en la eliminación de toda forma de vul‑
neraciones a los derechos humanos.
488 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014
En el caso chileno, el Consorcio de Escuelas de Trabajo Social compues‑
to por algunas Universidades del CUECH en 20061 trabajó en una propuesta
colectiva de perfil académico, proceso en el cual se revisaron los ámbitos dis‑
tintivos de desempeño profesional y los núcleos históricos de formación profe‑
sional. En dicho trabajo se reconoce la pertinencia de las competencias concer‑
nientes a los derechos humanos en los ámbitos relacionados con sujetos y
procesos. En la sistematización realizada por Castañeda y Salamé mencionan
que los y las profesionales de lo social se enfrentan a desafíos relacionados con
transformaciones estructurales relacionadas con la tecnología y la economía,
en un sistema social que se ha complejizado, en el que las respuestas a las de‑
mandas corren el riesgo de quedar obsoleta, en lo que las autoras identifican
como una crisis de sentido. Así, “la sociedad contemporánea demanda nuevas
exigencias a los profesionales del ámbito social, cuestionando los contenidos
de su formación y los desempeños laborales que le han sido tradicionales”
(Castañeda y Salomé, 2009, p. 3).
Esas nuevas exigencia se dan por las características contextuales de cada
escuela de trabajo social y su conexión con el medio local en el que estén in‑
sertas; así, materias como migraciones, medio ambientes o movimientos socia‑
les cobran una trascendencia especial debido a las particularidades regionales/
locales, lo que de alguna forma u otra inciden en la formación entregada.
Podemos afirmar que los derechos humanos y su incorporación en trabajo
social atienden a una visión ético política de la profesión y disciplina, en la que
se considera como perspectiva ética la noción de derechos humanos en toda su
complejidad. De esta forma, el principal desafío para las escuelas es la forma
de implementar esta perspectiva, evitando caer en una concepción mítica, en‑
frentándoles como una realidad efectiva (Martín, Esteban y Ramos, 2006), de
alcance y complejidad situada.
La consideración de los derechos humanos como marco axiológico de
intervención, praxis e investigación en trabajo social, implica adoptarlos en su
1. Este trabajo fue realizado en el marco del proyecto MECESUP UCM 0401, en el cual participaron
las siguientes Universidades: Universidad Católica del Maule, Universidad de La Frontera, Universidad de
Concepción, Universidad del Bío Bío, Universidad de Antofagasta, Universidad Tecnológica Metropolitana,
Universidad Católica de Temuco y Universidad de Los Lagos.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014 489
complejidad e historicidad, facilitando, a través de ellos, procesos de subjeti‑
vación de las personas y los pueblos, componente esencial del proyecto ético
político del trabajo social. Desde este marco, la consideración de los derechos
humanos en las acciones transformadoras de los y las trabajadoras sociales
implica la realización de investigaciones e intervenciones respetuosas de la
diversidad, democráticas, situadas y críticas. Así, los Derechos Humanos cons‑
tituyen el guión emancipatorio de nuestra acciones, en torno a un “diálogo in‑
tercultural sobre la dignidad humana que eventualmente puede conducir a una
concepción mestiza de los derechos humanos, una concepción que en lugar de
recurrir a falsos universalismos, se organice como una constelación de signifi‑
cados locales” (Santos, 2002, p. 69-70).
490 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014
colectivo profesional, “inspirado y articulado a proyectos societarios”. Como
propuesta, Montaño plantea un proyecto profesional progresista fundado en
diversos valores y principios, entre los que destacan los derechos humanos
(Montaño, 2005, p. 8). Para el desarrollo de dicho proyecto el autor propone
una agenda que considera cuatro elementos: la organización profesional; un
marco legal profesional en el que se plasme la operatividad del proyecto y la
propuesta; en dicho marco han de estar señalados el reglamento de ejercicio
profesional y el código de ética (Montaño, 2005, p. 9); la formación profesional,
la que procuraría la “unificación de niveles de formación”, “planes de estudios
básicos”, posgrados y la “promoción de las condiciones para la producción
bibliográfica teórica de calidad”; y por último, Montaño considera la articula‑
ción con las fuerzas vivas de la sociedad.
En este sentido, si comprendemos a los y las profesionales del trabajo
social como sujetos y sujetas que desde sus contextos, historicidades y diversi‑
dades enfrentan las distintas realidades sociales en las que están inmersos,
elementos como la formación profesional darán contenido a su praxis profesio‑
nal (Olaya, 2009). Así, el proyecto ético político exigido por Montaño y otros
de similares características implican una propuesta que “garantiza compromiso
y responsabilidad social, permitiendo que el sujeto sea crítico frente a los de‑
safíos que impone la propuesta del relativismo y la neutralidad y lo más impor‑
tante, posibilita que se vincule a un proyecto de sociedad radicalmente demo‑
crático” (Olaya, 2009, p. 7).
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014 491
ubicadas en la Macrozona norte, en relación a la consideración de la formación
en derechos humanos como elemento primordial del proyecto ético-político de
la profesión.
Considerado lo anterior, los objetivos específicos tienen relación con la
pregunta de investigación que guía el análisis: ¿cuáles son los énfasis identifi‑
cables en los perfiles de egreso y mallas de estudios de las carreras de trabajo
social pertenecientes al CUECH en la Macrozona norte, respecto de la formación
en derechos humanos?
Por tanto, los objetivos específicos fueron:
a) Identificar la presencia o ausencia de la formación en derechos huma‑
nos en los perfiles de egreso y mallas curriculares.
b) Reflexionar sobre la consideración de la formación en derechos hu‑
manos como parte del proyecto ético del trabajo social.
c) Proponer algunas recomendaciones para la inclusión de la formación
de derechos humanos en la política pública de educación superior en
general, y en las carreras de trabajo social en particular.
492 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014
trabajadores y trabajadoras sociales, las que han de estar respaldadas por las
discusiones internacionales realizadas en ese orden, pero también por la con‑
textualización y situación de las unidades académicas en función de las nece‑
sidades y demandas locales y regionales.
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7. Método: el análisis de contenido
494 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014
investiga razona los motivos de categorización observando los criterios de para
ellos establecidos.
Este tipo de análisis se complementa con el enfoque de análisis de marcos
de política los cuales son entendidos por Mieke Verloo como un “principio
organizador que transforma la información fragmentaria o incidental en un
problema de estructura y sentido, en la que una solución está implícita o explí‑
citamente incluido” (Verloo, 2005, p. 20). En este sentido, el análisis de marcos
de política puede contribuir a la identificación de la coherencia entre un proble‑
ma y su solución, y cómo ambos elementos están presentes en los textos polí‑
ticos (Verloo y Lombardo, 2007).
Uno de los aspectos relevantes de este enfoque es la identificación de las
ausencias en el discurso político, además, permite identificar prejuicios “que
pueden, sin proponérselo formar los discursos políticos y, en consecuencia, se
puede revelar inconsistencias latentes, o incluso los prejuicios” (Verloo y Lom‑
bardo, 2007). Asimismo, este tipo de análisis permite identificar las exclusiones
existentes en la formulación de las políticas, visibilizando la forma en que “las
estrategias discursivas pueden modificar el proceso en sí mismo por medio de
la exclusión de algunos actores del debate” (Triandafyllidou y Fotiou, 1998, p.
6.4 apud Verloo y Lombardo, 2007, p. 29).
Así, y considerando el carácter exploratorio y descriptivo de este estudio,
en los apartados siguientes se expondrán los análisis preliminares.
8. Análisis
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014 495
Tabla 1. Categorías de contenidos Nivel 1: Consideración Derechos Humanos en los
perfiles de egreso.
Universidades
Categorías
1 2 3 4
Consideración No de forma No. Pero sí hace No hace referencia Sí. Declara como
Derechos Humanos explícita, pero referencia al directa. Sin sello distintivo el
en forma explícita hace referencia a empoderamiento y embargo, se enfoque de
(enfoque de la calidad de vida la superación de pronuncia en el derechos
derechos) de las personas, situaciones reconocimiento de
grupos, conflictivas que diversidad, habla
organizaciones y afectan a personas, de diferentes
comunidades. familias, grupos y sujetos y territorios
comunidades. elementos
Referencia a
derechos civiles y No No No No
políticos
Referencia a
derechos
económicos, No No Sí Sí
sociales y
culturales
Elaboración propia con base en los perfiles de egreso de las unidades académicas señaladas.
496 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014
Los perfiles de egreso suelen entenderse como una declaración formal que
realizan las instituciones de educación superior, a través de sus carreras profe‑
sionales, en las cuales asumen el compromiso formativo contraído y constituyen
los aspectos característicos de la profesión en dicha institución, identificando
los principales ámbitos de realización y las competencias claves. De esta forma,
estos perfiles se configuran como declaraciones de carácter político en los que
se presentan los compromisos asumidos por las universidades en cuanto a los
límites de la habilitación profesional y/o académica entregada a los y las egre‑
sadas de las respectivas carreras. En otras palabras, los perfiles de egreso cons‑
tituyen el compromiso social de la institución de educación superior en el logro
de las competencias, pero también en una obligación que ha de ser demandada
por la sociedad “en un real desplazamiento de poder hacia lasociedad que aho‑
ra puede y debe reclamar el cumplimiento de las promesas hechas-poner en
claro la intencionalidad del programa-explicitar (..) los itinerarios formativos”
(Hawes, 2012, p. 2)
Así, y con base en lo anterior, podemos señalar que en las declaraciones
realizadas por las Universidades en las carreras de trabajo social, no se hace
consideración a la formación en derechos humanos, o a la perspectiva en dere‑
chos, o cualquier otra noción que pueda significar alguna consideración al tema.
Resulta interesante analizar esta ausencia, ya que a pesar de que en términos
profesionales se reconoce su importancia en el currículo, esta no es una com‑
petencia con las que contarían quienes egresan de estas instituciones.
En consideración del compromiso ético, que podría de alguna forma sol‑
ventar la deficiencia anterior, se observa su presencia sólo en dos de estos
perfiles, lo que resulta paradójico en cuanto a la consideración de las caracte‑
rísticas propias del trabajo social.
Pese a esto, nos encontramos con una dificultad en la realización de este
análisis, puesto que entendemos que los perfiles de egreso son documentos
más amplios que los mostrados en las web sites, sin embargo, nos interesan
estas declaraciones puesto que son las observables por quienes postulan a las
casas de estudios. En esa medida, podríamos especular respecto de la estrate‑
gia que pueden asumir las instituciones respecto de los elementos que podrían
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014 497
ser atractivos para quienes “eligen” cada una de las carreras. Los perfiles de
egreso revisados entregan especial énfasis en los campos laborales en los que
cada egresado o egresada podría situarse, haciendo un guiño a las necesidades
de mercado por sobre las competencias éticas que cada trabajador o trabajado‑
ra social pudiese tener. Complementario a lo anterior, es el énfasis puesto en
los aspectos metodológicos y técnicos que perfilan la formación, recordándonos
los tiempos en que la profesión se caracterizaba por su mirada tecnocrática,
aséptica y neutral. De esta forma, cabe preguntarse entre la coherencia entre
estos perfiles esbozados y las mallas de estudios definidas, punto que se tratará
a continuación.
Universidades Categorías
Elaboración propia con base en los perfiles en las mallas de estudio de las unidades académicas señaladas.
498 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014
Entendiendo los perfiles de egreso como la proyección de la política edu‑
cativa de cada unidad (Escuela) y sus mallas de estudio como su representación
gráfica, podemos señalar que en las unidades analizadas es posible encontrar
una representación implícita o explícita de un diagnóstico, conectado a un pro‑
nóstico y a un llamado a la acción (Verloo, 2005). En este sentido, las unidades
académicas proyectan su formación como más cercana a los derechos sociales,
económicos y culturales que a los de orden civil o político, estableciendo una
especial atención hacia ciertos colectivos como migrantes, pero también a los
contextos en los cuáles desarrollan su acción formativa.
En este sentido, las asignaturas relativas a los derechos civiles y políti‑
cos, son las que tradicionalmente han estado presentes en las configuraciones
curriculares del trabajo social desde el año 1925, manteniendo incluso la no‑
menclatura relacionadas con “lo laboral” y “lo familiar”.
Retomando a Verloo, la inclusión de asignaturas relacionadas con los
Derechos Económicos, Sociales y Culturales (DESC) y los Derechos Civiles y
Políticos (DCYP) remite a un pronóstico de necesidad de formación en dichos
ámbitos. Sin embargo, su presencia es residual en la estructura curricular. Las
asignaturas relacionadas con las otras dimensiones del trabajo social absorben
la formación explícita en estas materias.
Llama la atención la inclusión de asignaturas relacionadas con los movi‑
mientos sociales y las ciudadanías como parte de los currículos formales de las
Escuelas, lo que de alguna manera da luces respecto de la formación de traba‑
jadores y trabajadoras sociales con mayores conexiones con su entorno, capaces
de adquirir y ejercer competencias actitudinales, cognitivas y procedimentales
relacionadas con el respeto de los derechos de los pueblos.
Resulta contradictorio el cruce entre los perfiles de egreso y las mallas
presentadas, puesto a pesar de contar con formación específica en derechos hu‑
manos, y asumiendo que estos son presentados de forma transversal en asigna‑
turas como las prácticas, ética y otras, este sello profesional, este principio rector
no es evidenciado en los perfiles de egreso. De esta forma, podríamos suponer
que la ausencia de los derechos humanos, o si quiera el enfoque de derechos en
los perfiles a pesar de considerarse en las mallas y planes de estudio, podría de‑
berse a una acción deliberada en pos de atraer perfiles de ingreso altamente
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014 499
sensibles a las conjeturas del mercado. Lo anterior, aclararía la inconsistencia
entre el compromiso desplegado en el perfil y su expresión en la malla, puesto
que son estos elementos más sensibles, pertenecientes a lo que entendemos como
proyecto ético político del trabajo social los que quedan ausentes en las decla‑
raciones suscritas por las instituciones de educación superior.
La consideración de los derechos humanos en los perfiles de egreso y
estructuras curriculares permite formar profesionales que ejerzan como sujetos
de derecho, intencionado de esta forma las competencias y habilidades referi‑
das a la toma de decisiones en escenarios complejos, propios del trabajo social,
en especial cuando estas decisiones comprometen la dignidad y libertad de las
personas.
El apostar por la formación de profesionales que tengan como caracterís‑
ticas el ser sujeto de derechos los convertirá en personas capaces de
[…] equilibrar los derechos a la igualdad con los derechos a la diferencia y de ser
un agente de cambio que combata la exclusión social, cultural y política, la se‑
gregación, el desarraigo, las injusticias e inequidades, las asimetrías sociales, las
discriminaciones, los prejuicios y estereotipos, el racismo y la xenofobia, los
choques culturales y sociales derivados de la falta de reconocimiento mutuo.
(Magendzo, 2011, p. 113)
500 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014
Ilustración 1. Competencias genéricas para la formación de un sujeto de derechos
El sujeto de derechos
LO QUE LE PERMITE
SE DESARROLLA COMO
Sujeto respetuoso
Sujeto activo Sujeto
Sujeto que conoce y de la dignidad
partícipe de la Sujeto deliberante corresponsable
ejerce sus derechos y los derechos
vida democrática del bien común
de los otros
SE CONSTRUYE COMO
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014 501
9. Conclusiones y reflexiones
La educación en Derechos Humanos es un imperativo ético, no sólo para
los y las profesionales de lo social, sino también una necesidad tendiente al
fortalecimiento de las ciudadanías. Hoy en día, y según nuestra experiencia, los
y las estudiantes observan con extrañeza la sola idea de hablar de Derechos
Humanos. Extrañeza, puesto que hablamos de jóvenes que en su gran mayoría
acceden a bienes y asocian la concepción de derechos a aquellos propios de los
consumidores.
En este sentido, consideramos relevante la inclusión de asignaturas que
expliciten la relación entre la profesión y los Derechos Humanos. Este tipo de
asignaturas se configuran como un elemento basal en la formación de los y las
trabajadoras sociales, pretendiendo estudiar en profundidad la noción de dere‑
chos humanos y los diversos problemas éticos y prácticos que ésta plantea,
vinculándolos con el ejercicio profesional, relacionando la noción de Derechos
Humanos con la intervención histórica y situada realizada en trabajo social.
Creemos que realizar un reconocimiento explícito respecto de la impor‑
tancia de los derechos humanos como parte fundamental en un proyecto ético
político en trabajo social, sentado en la democracia, y en lo que Montaño reco‑
ge como “progresista”, permite formar profesionales con un alto compromiso
ético, y protagonistas de sus propios procesos de subjetivación.
Los perfiles de egreso y las mallas de estudios constituyen declaraciones
políticas de lo que la academia proyecta como definitorio y necesario en la
formación de profesionales, encontrándose ante la tensión entre el mercado que
condiciona, coarta y seduce; y las definiciones ético políticas esenciales para la
formación en trabajo social.
Dado lo anterior, cabe preguntarse respecto de quién es la voz proyectada
en los perfiles de egreso y mallas curriculares: ¿es la voz del medio?, ¿de los
egresados y egresadas, del mercado laboral, de los académicos y académicas,
de las organizaciones profesionales?
Creemos que responder a estos cuestionamientos, y reflexionar respecto
de estas cuestiones permite avanzar hacia la construcción de un proyecto ético
en el que los Derechos Humanos tengan un rol principal.
502 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014
Sin intentar apropiarse de una expertise en el tema, se presentan algunas
recomendaciones a considerar en el tratamiento de los Derechos Humanos en
las políticas públicas de educación superior en general y en las escuelas de
trabajo social en particular.
Se hace necesario, dado el contexto actual chileno, el fortalecer la política
pública de educación superior para que ésta establezca como elemento trans‑
versal en los currículos universitarios la educación en Derechos Humanos, con
especial énfasis en la educación para la paz, la ciudadanía y la democracia,
difundiendo a la vez, los instrumentos de Derechos Humanos suscritos por el
país, con tal de contar con profesionales y técnicos que sean capaces de consi‑
derar el marco de análisis de los derechos humanos en sus actuaciones.
Así también, se recomienda considerar en los planes de estudios de las
carreras relacionadas con lo social y lo jurídico, asignaturas que consideren los
derechos de niños y niñas, la igualdad entre hombres y mujeres, la lucha contra
la discriminación y la xenofobia, el derecho a la diversidad, el respeto a los
pueblos originarios, y todos aquellos derechos consignados en la carta Interna‑
cional de Derechos Humanos.
En el mismo sentido se propone la incorporación del enfoque de derechos,
en el diseño, ejecución y evaluación de políticas públicas y sociales ejecutadas
por la plataforma estatal, considerando para esto el Pacto Internacional de De‑
rechos Económicos, Sociales y Culturales.
En el caso de las escuelas de trabajo social, se recomienda incorporar
cursos de Derechos Humanos, explicitando así su importancia y trascendencia
para el cumplimiento del perfil profesional, y aportar a la construcción del
proyecto ético político del trabajo social. Lo anterior requiere de estipular mi‑
siones y principios institucionales que den cuenta de la relación intrínseca entre
derechos humanos y trabajo social, en otras palabras, se requiere declarar con
fuerza y convicción la necesaria inclusión de los derechos humanos en los
planes de estudios de trabajo social para así formar a profesionales que sean
sujetos de derechos y contribuyan a que otros y otras también lo sean.
En el plano relacional, es necesario abogar por la instalación de relaciones,
procesos y procedimientos con base en los derechos humanos al interior de cada
una de las instituciones.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 482-507, jul./set. 2014 503
En la formación de posgrado es preciso generar planes de formación que
entreguen elementos profesionalizantes de profundización en Derechos Huma‑
nos, permitiendo fortalecer la investigación social en esa temática.
Finalmente, se requiere acciones que permitan formar a los trabajadores
y trabajadoras sociales como sujetos de derechos y promotores de los mismos,
incentivándoles a considerar los Derechos Humanos como el marco de actua‑
ción, el guión emancipatorio de las intervenciones, investigaciones y sistema‑
tizaciones realizadas en trabajo social.
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A trajetória histórica do “social”
The historical pathway of the word “social”*
Victor Strazzeri**
Abstract: This article deals with the different senses the word “social” has taken at some fundamental
moments of the class struggles since the middle of the nineteenth century. Based on that historical and
* A gestação deste artigo se deu nos marcos do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro e é dedicado aos docentes e colegas que, generosamente, debateram
suas premissas e incentivaram sua confecção.
** Graduado em Ciências Sociais pela PUC-SP, mestre em Serviço Social pela Escola de Serviço Social
da UFRJ/Rio de Janeiro/RJ, Brasil, doutorando em Ciência Política na Universidade Livre de Berlim/Alemanha.
E-mail: victorstrazzeri@gmail.com.
508 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 508-530, jul./set. 2014
critical perspective, we analyzed the transformation of the adjective “social” into a noun, and we related
it to the rising of the workers’ movement and to the emergence of the “social issue”. Then we discussed
the opposition between “society” and “community”. The background of such opposition is the process
of “ideological decadence of the bourgeoisie” and the rehabilitation of the feudal past and aristocratic
ideals by thinkers as A. de Tocqueville and F. Tönnies after 1848.
Keywords: Social. “Social issue”. Ideological decadence of the bourgeoisie. Community.
N
o dizer do jovem Marx: “Ser radical é agarrar as coisas pela raiz.
Mas, para o homem, a raiz é o próprio homem” (Marx, 2005,
p. 151). E a raiz das palavras? No domínio da gramática ou da
linguística tradicionais trata-se de seu radical. Neste artigo pro‑
curaremos demonstrar como o exame das palavras segundo sua forma de aná‑
lise tradicional pode se mostrar uma iniciativa reveladora, mas que ampliada
por uma ida à raiz ontológica, ao ser social, torna-se ainda mais fecunda.
Termo-chave para o campo do Serviço Social é “questão social” que, a
despeito da carga ideológica que a acompanha, é uma categoria fundante. Na
bibliografia consagrada à área, essa noção é de difícil tematização, já que se por
um lado alguns dos pensadores referência do Serviço Social habilmente a des‑
constroem (José Paulo Netto, Marilda Iamamoto etc.), relegando o termo para
a constrição do entre aspas, ainda assim não o descartam. Ao contrário, se
apropriam do termo “questão social” e trazem-no para o campo dos estudos
críticos no âmbito de um esforço de apreensão das mediações necessárias para
a compreensão histórica do Serviço Social. A lição metodológica é precisa:
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 508-530, jul./set. 2014 509
“tomar a ‘questão social’ como problemática configuradora de uma totalidade
processual específica, é remetê-la concretamente à relação capital/trabalho — o
que significa, liminarmente, colocar em xeque a ordem burguesa” (Idem, p. 32).
Importante questão para o campo do Serviço Social é a difícil posição
em que se colocam tanto pensadores quanto operadores desta área ao erguê-la
sobre a sua negação/superação. Estas circunstâncias exigem um esforço
permanente de busca das mediações que permitam tematizar o Serviço Social
para além de uma adesão irrestrita ao seu sentido conservador, indutor de
coesão social, mas igualmente para além de seu rechaço completo como mera
negatividade.
Pareceu-nos oportuno produzir uma pequena intervenção que possa com‑
por esse esforço de construção de mediações. Acreditamos que a elucidação do
percurso histórico do termo “social” — dotado de caminho relativamente inde‑
pendente, mas intrinsecamente ligado com aquele trilhado pela expressão
“questão social” — pode oferecer alguns elementos para compreender a gêne‑
se e o devir histórico desta última.
* * *
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necessário homem-sociedade, não faltando defesas do caráter intrinsecamente
autônomo e autocentrado do indivíduo. A mais célebre dessas iniciativas é o
Robinson Crusoé (1719), de William Defoe, relato das desventuras de um náu‑
frago em uma ilha deserta, para o qual o convívio com outros seres humanos é
tido como desejável, mas inteiramente dispensável.
O caráter ficcional da obra de Defoe depõe de forma alguma contra seu
estatuto de retrato fiel da concepção de homem que se tornava predominante
nos séculos XVII e XVIII na Inglaterra, e que Marx denominou o “ponto de
vista da economia política”.1 Trata-se das “robinsonadas”, isto é, a generaliza‑
ção da competição capitalista entre os indivíduos para uma condição humana
intrínseca, desprovida de historicidade. Nas palavras de Marx, tratar-se-ia:
1. Assim, Hobbes (1994, p. 106) descreve no Leviathan (1651) o homem antes de tudo como um ser
antissocial, intrinsecamente competitivo e incapaz de viver em sociedade, senão sob o jugo de um poder
superior instituído por um contrato que limite as ambições e demais impulsos violentos e egoístas dos homens.
Locke também assevera uma liberdade original irrestrita para o homem no seu Segundo tratado sobre o
governo de 1689, de acordo com o qual a sociedade não é condição básica da vida humana. Para ele, a virtude
da vida social seria, acima de tudo, assegurar o respeito à propriedade privada, esta sim intrínseca ao homem
em seu estado de natureza (cf. Locke, 2001, p. 468).
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Isto nos leva a crer que o termo “social”, de uso tão frequente, assume
necessariamente significados diferentes para aqueles que o empregam, ainda
que isto não esteja explícito de imediato. Sustentamos que, de pronto, ao menos
dois campos claramente opostos se delimitam a partir das perspectivas ontoló‑
gicas antagônicas que, de um lado, descrevem o homem como intrinsecamente
social e, de outro, como mônada autossuficiente (ressaltando que nem toda
visão se reduz a uma destas concepções). Assim, quando se utiliza o adjetivo
“social” há necessariamente uma cisão de sentido, já que sociedade é, para uns,
o meio necessário no qual se dá a vida humana e, para outros, uma construção
contingente com um propósito específico de existência.
E se há um corte claro no âmbito dos fundamentos ontológicos dos dis‑
cursos, também há outro — que não necessariamente reproduz o primeiro — que
opõe campos antagônicos do discurso político. Quando examinamos, ainda que
superficialmente, o vocabulário empregado pela literatura crítica (“transforma‑
ção social”, “lutas sociais”, “movimentos sociais”) frente à conservadora (“caos
social”, “revolta social”, “convulsão social”), percebemos uma mudança de
sentido, mas também um deslocamento valorativo.
Nesses usos em particular, devemos atentar para o fato de que nem todo
“social” significa “aquilo que é relativo à sociedade”. E isto se dá em ambos os
extremos do espectro ideológico, já que se com a expressão “movimento social”
não se pretende fazer referência a um movimento da sociedade, “revolta social”
tampouco se refere a uma revolta desta. Que o “movimento” e a “revolta” se dão
na sociedade é uma tautologia, por que então adjetivá-los como “sociais”? Ne‑
cessariamente, pois o termo social as qualifica num outro sentido, revestindo os
termos com tonalidade política. “Movimento social” é uma ação coletiva de um
setor descontente da sociedade com vistas a sua transformação em algum grau;
“revolta social”, por sua vez, também não faz referência ao todo da sociedade,
já que provavelmente exclui os bons cidadãos que utilizam tal expressão.2
Assim, a forma de adjetivo de que se reveste o termo “social”, em todos os
empregos enumerados anteriormente, oculta um outro conjunto de significados
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que a palavra incorpora, e que se liga a sua manifestação enquanto substantivo.
Atentemos para essa diferenciação, pois nos dá a chave para elucidar a polisse‑
mia nem sempre manifesta da palavra “social”.
Segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, o adjetivo “social”
denomina algo “concernente à sociedade” ou que é “relativo à comunidade, ao
conjunto dos cidadãos de um país”.
É contudo, a segunda classe de uso do vocábulo sob a forma de substantivo
que nos dá a chave para a compreensão do termo em questão. O “Social”, ainda
segundo o Houaiss, é “o que pertence a todos; público, coletivo” e também “o
que diz respeito ao bem-estar das massas, especialmente as menos favorecidas”.
Não bastasse essa mudança semântica considerável, o caráter de substan‑
tivo é por si só revelador, já que para “social” ter se tornado o “social” — refe‑
rindo-se especificamente às “massas menos favorecidas” e não “ao conjunto
dos cidadãos” —, significa que ele se tornou, em alguma medida, independen‑
te da sociedade como um todo.
Faz-se necessário examinar, portanto, o percurso histórico que permitiu que
“social” deixasse de remeter à “sociedade”, passando a qualificar apenas parte
dela. Sustentamos que a substantivação do termo incorpora o caráter reificado
que assumem nas ideias da classe dominante, as tais “massas” acima referidas.
Parece-nos, portanto, oportuno analisar a maneira como o “social” tornou-se um
corpo estranho à própria “sociedade” que, enquanto termo, passou ela mesma a
ser sujeita a alterações de sentido, bem como a ser preterida por outros termos
(em especial pela “comunidade”, o que examinaremos ao final deste texto).
Para isso voltaremos ao momento histórico que marca a origem comum
tanto desse “social” em sentido restrito quanto da “questão social”, as revoluções
europeias da primeira metade do século XIX.
* * *
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ser utilizada na terceira década do século XIX e foi divulgada até a metade da‑
quela centúria por críticos da sociedade e filantropos situados nos mais variados
espaços do espectro político. (Netto, 2001, p. 152)
514 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 508-530, jul./set. 2014
existentes. Foi a partir de uma eversão da ordem burguesa que o pauperismo
designou-se como “questão social”. (Idem, p. 154)
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Marx nos mostra que o termo “social” passa, a partir de certo ponto, a se
identificar diretamente com as demandas da classe operária assim como “re‑
publicano” remeteria às reivindicações burguesas frente ao Antigo Regime. As
“instituições sociais” apontariam, portanto, para além da república meramen‑
te burguesa.
Mas o que fundamentaria essa apropriação por parte do proletariado do
vocábulo “social”, se esse fora forjado pela classe burguesa? Argumentamos
que desde os primórdios de seu uso, a batalha pela reivindicação do verdadeiro
significado do “social” reside ora na sua particularização, ora na sua universa‑
lização pelas diferentes classes sociais em luta. À classe burguesa interessava,
em um primeiro momento, universalizar abstratamente o significado do adje‑
tivo “social”, isto é, competia pulverizar a referência politicamente perigosa à
classe operária num “social” que remetesse ainda ao conjunto da sociedade.
Isto se explica, pois entre 1830 e 1848 a burguesia ainda sustenta a pretensão,
objetivamente fundada, de incorporar, enquanto ente social particular, os inte‑
resses da sociedade como um todo, como havia feito na grande revolução de
1789. Nesse período, a classe burguesa ainda enxerga no avanço de seus inte‑
resses particulares o progresso do todo da sociedade. Isto não constituía falsa
consciência, senão o reflexo de uma realidade que colocava na ordem do dia a
expansão da revolução burguesa, rumo ao pleno desenvolvimento das relações
sociais capitalistas.
Se essa utilização inicial do termo “social” no período citado correspondia,
no plano do discurso, às pretensões universalizadoras de uma classe burguesa
ainda revolucionária, justamente por ocultar o caráter de classe que possuíam
os conflitos societários da época no seio do que havia sido o terceiro Estado, a
situação se reverte quando o proletariado passa a reivindicar para si o status de
classe depositária do interesse geral. Assim, é também da universalidade então
inerente ao termo “social” da qual irá se nutrir o proletariado ao fazer deste o
complemento de suas principais demandas: as instituições sociais, a emancipa‑
ção social etc. Segundo José Paulo Netto (2004, p. 51):
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revolucionária da igualdade, da fraternidade, e da liberdade. O trabalho, nos
confrontos sociopolíticos, surgia também e ainda subordinado ao capital. É nas
jornadas de 1848, que se patenteia o radical antagonismo entre ambos: quando se
põe a exigência da república social, explicita-se o limite do mundo burguês.
* * *
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e atendiam aos interesses dessa classe). No campo da ideologia, registram-se
mudanças sensíveis: recorre-se às ideias sustentadas pelas classes remanescen‑
tes do Antigo Regime ou por aqueles que delas descendem, já que mesmo as
ideias sustentadas pela burguesia do século XVIII se provam perigosas porque
passíveis de apropriação pelo proletariado revolucionário. A figura emblemáti‑
ca desse câmbio nas pretensões da burguesia que ecoa no domínio ideológico
é, sem dúvida, Alexis de Tocqueville.
Tocqueville é tido hoje como um dos principais autores liberais do século
XIX, uma asserção indiscutível. O que é digno de nota, todavia, é que o pensa‑
dor francês pertenceu à aristocracia e vivenciou o período da Revolução de
1789, “quando seus pais foram aprisionados e seu avô materno, o marquês de
Rosambo, morreu na guilhotina em nome da liberdade, da igualdade e da fra‑
ternidade”. (Barbu, Z. “Apresentação”, in Tocqueville, 1997, p. 12) Lembremos
que o liberalismo havia sido a expressão máxima da burguesia no campo das
ideias enquanto ainda se contrapunha às classes do Antigo Regime. Como é
possível, portanto, que um dos grandes continuadores do liberalismo no segun‑
do quartil do século XIX tenha sido um aristocrata?
O fenômeno-chave aqui é, sem dúvida, o esgotamento do papel revolucio‑
nário da burguesia que se revela em um período que já mencionamos, a saber,
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Isto se dá, no campo da ideologia, por meio de uma inversão na perspecti‑
va histórica. No período revolucionário, o passado feudal foi julgado com os
olhos do novo tempo em construção pela burguesia, e, portanto, era criticado
pelo absoluto cerceamento da liberdade do indivíduo, pela forma arbitrária com
que o poder era exercido por uma minoria restrita e pelo obscurantismo que
dava coesão ao todo social. Em meados do século XIX, fica claro que tais crí‑
ticas são passíveis de apropriação pelos elementos descontentes com a própria
sociedade burguesa. A solução encontrada foi a revalidação da era feudal, com
a recuperação parcial da ideologia que a sustentava.
Assim, a guinada conservadora da burguesia a partir de 1848-49 inicia-se
com a crítica de seu próprio período revolucionário e dos ideais sem os quais
não haveria ela própria rompido as amarras feudais e instaurado uma realidade
histórica moldada à sua imagem. Condena-se de forma irrestrita o Iluminismo
e sua incitação ao progresso, bem como o processo revolucionário de 1789, ou
seja, instaura-se a crítica, que perdura até hoje, do progresso, da razão e das
sublevações revolucionárias.3
O estatuto ideológico feudal é reabilitado, isto é, a liberdade em seu
sentido aristocrático, a naturalização de uma divisão hierárquica da socieda‑
de, bem como a crítica à soberania popular e ao sufrágio universal são todas
apropriadas por uma burguesia tornada classe dominante. A ruptura entre a
ordem capitalista e a ordem feudal se vê, portanto, escamoteada, o que de‑
manda uma mudança de perspectiva sobre o caminhar da própria história.4
Assim, para a primeira burguesia, houve história, mas com sua chegada ao
poder não haveria mais. A burguesia do período da decadência, por sua vez,
extirpa por completo o devir da história ao negar a ruptura feudalismo/capi‑
talismo, o que, por extensão, significa a negação de qualquer possibilidade de
ruptura futura.
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O recurso à análise da realidade capitalista vista à luz da realidade feudal
é especialmente nítido em A. Tocqueville. Sua contribuição à tematização de
nosso objeto centra-se sobre a noção de “associação”, que ele irá analisar tor‑
nando patentes os traços descritos acima quanto ao pensamento da decadência.
Em suas considerações, Tocqueville subverte este que é um termo caro à tradi‑
ção revolucionária e à classe trabalhadora, imputando-lhe uma origem feudal
num processo de apropriação e ressignificação que visa neutralizá-lo.
Segundo ele, a associação é uma instituição feudal, que quando praticada
por aristocratas constituía processo simples e efetivo, já que se tratava da junção
de uns poucos homens poderosos que reuniam em torno de si toda uma massa
de pessoas a sua disposição para realizar um objetivo comum. Ao contrário do
que acontece nas sociedades democráticas, a coesão é um dado imediato nas
sociedades que Tocqueville denomina “aristocráticas”, já que “os homens não
precisam se unir para agir, porque são mantidos fortemente juntos” (Tocqueville,
2000, v. 2, p. 132).
O pensador francês toca num tema caro àqueles imbuídos da tarefa de
reabilitar a ordem feudal, a saber, sua pretensa organicidade e coesão que se
contrapõe ao individualismo exacerbado da sociedade capitalista. Ainda segun‑
do o autor: “Cada cidadão rico e poderoso, nelas constitui como que a cabeça
de uma associação permanente e forçada, que é composta de todos os que ele
mantém em sua dependência e que faz concorrer para a execução de seus pro‑
jetos” (Idem).
Essa linha de argumentação faz-se típica após os esforços iniciais de pen‑
sadores como Tocqueville e se caracteriza pela crítica a uma faceta da socieda‑
de moderna acompanhada pela justificação das contradições da ordem feudal.
Neste sentido, ao tomar essas duas realidades sociais como equivalentes para
compará-las, perde-se o salto qualitativo que marca centralmente a revolução
burguesa, isto é, o progresso frente às formações sociais anteriores. Pondera-se
abstratamente prós e contras de cada etapa histórica como se existissem lado a
lado: o preço da coesão e harmonia interna da sociedade feudal teria sido a
dominação aristocrática; já o preço da liberdade da sociedade burguesa seria o
individualismo que, contrariamente aos cânones da tradição liberal pré-deca‑
dência, é tido pelo pensador francês como negativo: “Nos povos democráticos
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[...] todos os cidadãos são independentes e fracos, não podem quase nada por
si mesmos e cada um deles não poderia obrigar seus semelhantes a lhe prestar
seu concurso. Assim, caem todos na impotência se não aprendem a se ajudar
livremente” (Idem).
A alternativa estaria justamente na recuperação da associação, que seria,
nas “sociedades democráticas”, um verdadeiro imperativo dada a impotência
do indivíduo isolado. O modelo para as associações de tipo novo, Tocqueville
encontra nos Estados Unidos:
A primeira vez que ouvi dizer nos Estados Unidos que 100 mil homens tinham se
comprometido publicamente a não fazer uso de bebidas fortes, a coisa me pareceu
mais inconsequente do que séria [...]. Acabei compreendendo que esses 100 mil
americanos, assustados com o aumento da embriaguez à sua volta, tinham dese‑
jado patrocinar a sobriedade. Tinham agido precisamente como um grão-senhor
que se vestisse muito singelamente a fim de inspirar aos simples cidadãos o des‑
prezo ao luxo. É de crer que, tivessem esses 100 mil homens vivido na França,
cada um deles teria se dirigido individualmente ao governo para pedir que este
fiscalizasse os cabarés em toda a superfície do reino. (2000, p. 135)
5. Há ainda neste trecho a defesa explícita da organização dada no âmbito da sociedade civil, contraposta
favoravelmente ao Estado no que concerne à resolução dos problemas sociais. A atualidade desta argumentação
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Tocqueville é um dos primeiros representantes da viragem pós-1848 que
faria do pensamento de viés aristocrático ou — guardadas suas diferenças —
romântico a principal arma ideológica da burguesia conservadora. Vale dizer
que o recurso ao ideário de tipo aristocrático desempenhou sua função tanto
mais efetivamente quanto mais pôde apresentar-se como uma crítica da socie‑
dade capitalista. Assim, a crítica ao individualismo da sociedade burguesa (que
parte de fundamentos objetivos) é alvo de soluções conservadoras inspiradas
na organicidade e na suposta harmonia da sociedade feudal. Tal é a estratégia
adotada de forma reiterada pela burguesia a partir de 1848 para fazer frente às
propostas e reivindicações dos setores socialistas.
No que diz respeito ao nosso tema central, tanto a caracterização feita por
Tocqueville da sociedade burguesa como uma aglutinação de indivíduos isola‑
dos, quanto a solução que advoga — as associações — negam a natureza social
dos antagonismos inerentes a tal formação histórica, isto é, dissolvem as classes
em uma pluralidade de indivíduos, fazendo do percurso histórico da classe
trabalhadora rumo a sua emancipação a ação cega da igualdade transformada
em potência abstrata. Se para o materialismo histórico a associação dos traba‑
lhadores repousa sobre a base objetiva da classe, ou seja, é enraizada social‑
mente, para o aristocrata francês o “social” não pertence à sociedade; é antes
um artefato contingente que depende da conjugação de interesses na associação.
* * *
é inquestionável se pensarmos na retórica do chamado “terceiro setor” em tempos recentes. Uma análise do
caráter premonitório das ideias de Tocqueville para o associativismo contemporâneo pode ser encontrada em
Montaño (2007, p. 63-76).
522 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 508-530, jul./set. 2014
A vocação alemã para produzir o pensamento conservador aristocratizan‑
te não é acidental. Tem como base seu célebre atraso, tematizado por Marx
ainda em 1843. Trata-se do dado mais fundamental da evolução histórica alemã
na era moderna, a saber, o fato de que esta não consumou uma revolução bur‑
guesa “clássica” durante a qual teriam sido varridos os principais atores sociais
do sistema feudal — a aristocracia — e, com ela, as formas de propriedade, os
laços servis de dominação e demais barreiras ao desenvolvimento capitalista.
Na via clássica, uma vez restabelecido o devir histórico inteiramente
sobre fundamentos burgueses após ter sido consumada a revolução, mesmo os
membros restantes da antiga classe dominante que subsistem são inteiramente
incorporados à sociedade capitalista. É por essa razão que Tocqueville, um
sobrevivente daquela que foi a revolução burguesa por excelência, opõe à
ordem capitalista apenas a ideia do Antigo Regime como alternativa, e não sua
estrutura social (é isto que o permite enxergar mesmo na mais moderna das
nações — os Estados Unidos — características de “tipo” aristocrático). Espe‑
cialmente após a Revolução de Julho de 1830, a presença dos remanescentes
da aristocracia na figura dos legitimistas do Partido da Ordem na França não
apresenta uma alternativa real à dominação burguesa. Ao contrário, esses estão
integralmente incorporados à lógica do sistema capitalista, são uma aristocra‑
cia “aburguesada”.
A Alemanha teve uma unificação nacional tardia produzida sem uma ruptura
histórica violenta com o passado, o que significou a sobrevivência de uma forte
aristocracia representada, sobretudo, pelos grandes possuidores de terra a leste do
rio Elba, os junker. Não por acaso, foi solo adequado para a formação de uma
ideologia que aponta para o passado, além de ser — graças ao frenético ritmo de
desenvolvimento capitalista em solo alemão nas últimas décadas do século XIX
— altamente funcionalizável pela ordem capitalista. O mais marcante dos efei‑
tos produzidos por essa trajetória histórica particular é que os traços aristocráti‑
cos não se limitam ao pensamento de autores diretamente ligados à aristocracia
— como era o caso de Tocqueville na França. Ao contrário, podem ser encon‑
trados em autores dos mais diversos extratos sociais, mesmo nos mais decidida‑
mente burgueses ou até em pensadores ligados à esquerda operária. É o caso do
autor que iremos tematizar logo adiante, Ferdinand Tönnies.
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Antes, porém, convém abordar uma faceta da língua alemã que oferece
um interessante subsídio para as hipóteses deste trabalho. Se nas línguas latinas
a mudança semântica do termo “social” foi acompanhada por sua substantiva‑
ção, isto é, uma alteração de classe gramatical que indicou que aquilo que se
refere à sociedade se transformou em algo independente desta última, no
alemão tal câmbio gerou dois vocábulos diferentes. Há, a exemplo do português,
um substantivo Gesellschaft (sociedade) que partilha do radical do adjetivo
gesellschaftlich, de forma semelhante à sociedade/social.
Todavia, a entrada do movimento operário no palco político das lutas de
classes introduz não a substantivação do termo gesellschaftlich, mas uma nova
palavra: o adjetivo sozial. A “questão social” em alemão, por exemplo, já nas‑
ceu como “soziale Frage”. Analogamente, nas palavras de Marx, citadas neste
trabalho, a república de fevereiro de 1848 “se vio obligada a anunciarse como
una república rodeada de instituciones sociales”, isto é, “als eine Republik,
umgeben von sozialen Institutionen”.6
Este fenômeno linguístico não se deve à pretensa vocação da língua alemã
para a filosofia, como a caracterizou certa vez Heidegger, mas ao atraso alemão
segundo o qual as questões de cunho político associadas ao “social” são incor‑
poradas com um novo termo, a despeito da existência de uma palavra passível
de traduzi-lo (gesellschaflich). Assim, o “social” francês é apenas ligeiramente
germanizado (no século XIX, apenas na pronúncia, mantendo o “c” original, e
posteriormente assumindo uma nova grafia — sozial), o que imputa um caráter
exógeno àquilo que é exprimido pelo termo no que diz respeito à realidade
alemã. No universo linguístico alemão, os problemas sociais em nenhum mo‑
mento se confundem com os problemas da sociedade, seriam antes fenômenos
externos à tradição germânica introduzidos talvez com a chegada da Zivilisation,
também ela um fenômeno estrangeiro (cf. Mann, 1975). O que nos leva ao
6. Deve-se ressaltar que não há uma cisão semântica completa entre os adjetivos gesellschaftlich e
sozial. O último é admitido para denominar, de acordo com o Dicionário eletrônico da Academia de Ciências
de Berlin-Brandenburg (disponível em: <www.dwds.de>), “aquilo que é relativo à correlação, à vida conjunta
dos homens”. Contudo, sozial também diz respeito “à estrutura econômica e política de uma dada sociedade”,
“ao pertencimento dos homens a diferentes classes, grupos ou extratos no interior da sociedade” e finalmente,
“aos benefícios voltados à melhoria das condições de vida e trabalho, à assistência cultural e de saúde dos
trabalhadores ou membros da sociedade sob penúria material”. As referências do texto original de Marx estão
disponíveis em: <http://www.mlwerke.de/me/me07/me07_012.htm>. Acesso em: 10 fev. 2014.
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ponto que discutíamos anteriormente, a saber, a incorporação do pensamento
aristocrático pela ideologia burguesa ciosa de frear o devir histórico que apa‑
renta apontar para sua dissolução enquanto classe.
Como já dissemos, o progressivo distanciamento entre “social” e “socie‑
dade” resvalou de forma decisiva sobre este último vocábulo. O parentesco
etimológico entre o repugnado “social” e a “sociedade” é por demais evidente
para ser ignorado, o que pode levar a embaraços para o pensamento burguês:
como dizer, por exemplo, que pertencemos à sociedade mas não ao “social”?
É Ferdinand Tönnies (1855-1936) que dará uma solução amplamente uti‑
lizada desde então a esse dilema em seu estudo clássico Comunidade e socieda‑
de, de 1887. Pertencente à primeira geração de sociólogos propriamente ditos
da academia alemã, Tönnies abre sua obra enunciando o seguinte propósito:
7. Sobre tal procedimento, Lukács afirma o seguinte: “Tönnies es el primer sociólogo alemán que no
rechaza a limine a Marx, sino que trata de reelaborarlo, poniéndolo a contribución para sus fines burgueses”
(Lukács, 1959, p. 523).
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Mais uma vez, e também em linha com o pensador francês citado, são os
exemplos que traem o juízo positivo do autor acerca da ordem feudal que pau‑
tará toda a obra em questão. Discorrendo sobre as relações forjadas na comu‑
nidade, o autor afirma o seguinte:
Y ocurre que esto constituye una tendencia inherente natural: a una fuerza y poder
superiores corresponde también una capacidad mayor de ayuda. Si tal intención
o voluntad existe, será tanto más fuerte y decidida a causa del sentimiento de
poder que conlleve. Con lo que nos encontramos, sobre todo en el terreno de las
relaciones físico-orgánicas, con una ternura instintiva e ingenua del fuerte por el
débil, [...] la ternura corresponde a la reverencia, o, en un menor grado de inten‑
sidad, la benevolencia al respeto; representan éstos los dos polos del sentimiento
en que se basa la Gemeinschaft [a comunidade — V. S.], en caso de que exista
una diferencia definida de poder. (Tönnies, 1979, p. 38-39)
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Essa combinação entre o atemporal e o contingente leva, no entanto, a uma
solução conservadora, já que as críticas ao capitalismo em momento algum
colocam sua existência em questão. O fato de que comunidade e sociedade
existam juntas leva a crer que basta reforçar e ampliar os sentimentos e ações
relacionadas à primeira para que sejam parcialmente neutralizados os males
trazidos à tona pela segunda. A despeito de seus muitos males, a sociedade,
juntamente com o capitalismo, aparece na obra de Tönnies como tendência
irrefreável.
Na obra Desenvolvimento da questão social — com primeira edição em
1907, ampliada em 1919 — Tönnies se propõe uma análise histórica ampla da
“questão social” (que não constringe com aspas) ligando-a diretamente ao sur‑
gimento e consolidação da sociedade. Eis sua definição: “Entendemos por
“cuestión social” el complejo de problemas que derivan de la cooperación y
convivencia de classes, estratos y estamentos sociales distintos, que forman una
misma sociedad, pero están separadas por hábitos de vida y por sua ideologia
y visión de mundo” (Tönnies, 1927, p. 13).
Nesse trecho patenteia-se o sincretismo que caracteriza a produção de
Tönnies. A “questão social” adviria dos problemas de “convívio” entre as clas‑
ses, mas também entre estratos e estamentos, os quais estariam opostos não só
pela ideologia que sustentam, mas igualmente pela visão de mundo da qual
seriam portadores. Nos defrontamos com uma teoria social que procura fundir
elementos da sociologia acadêmica alemã de fins do século XIX com as ideias
de Karl Marx.8 Trata-se, evidentemente, de uma mistura instável. No caso de
Tönnies, ela é marcada pelas tendências aristocráticas já mencionadas, mas
também por sensibilidades de esquerda que remetem à proximidade do autor
com a social-democracia alemã. Assim, a despeito de sua incompatibilidade
intrínseca, tal combinação abre espaço, entre outras coisas, para momentos de
efetiva crítica da sociedade capitalista. Isto se evidencia no tratamento estendi‑
do pelo autor aos desdobramentos agrários da “questão social”, já que lhe
8. Algo que também se manifesta no seguinte trecho: “Con lo dicho se relaciona la evolución de la
cuestión social, cuya fuerza motora es precisamente la contradicción y lucha de clases dentro de la nueva
sociedad, del Estado y de la consciencia coletiva [?!]”. (Tönnies, 1927, p. 38; grifos nossos).
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permite ligar o termo que intitula sua obra à classe trabalhadora,9 e, ao mesmo
tempo, criticar o caráter meramente formal da liberdade do trabalhador sob o
capitalismo:
Mais uma vez é possível perceber a sutil elegia dos tempos feudais que
acompanha a crítica à sociedade capitalista. O proletariado rural, ainda que
possivelmente mais livre que o pequeno agricultor preso à terra, é talvez mais
dependente materialmente do latifundiário, isto é, do antigo senhor.
É importante ressaltar que a crítica produzida não perde necessariamente
sua validade por emanar de uma perspectiva aristocrática e que esta nem sem‑
pre vem acompanhada por um olhar nostálgico para épocas anteriores.10 Con‑
tudo, se não são necessariamente elogiosos para o passado, são frequentemen‑
te ambíguos em relação a este, ambiguidade que só se vê reiterada pela
ausência de uma proposta clara ou unívoca para a sociedade futura. Não por
acaso, e por vezes em franca oposição à postura individual dos teóricos por elas
responsáveis,11 tais ideias deram lastro a concepções ultraconservadoras da
política e da realidade social.
9. “[...] la cuestión social que hoy nos ocupa [se refiere] especialmente al trabajo industrial. La cuestión
social es, pues, principalmente, la cuestión obrera, y sobre todo, la cuestión obrera industrial. Sólo en segundo
término viene la cuestión obrera agrícola” (Tönnies, 1927, p. 38; grifos nossos).
10. Cf. Löwy e Sayre (1995) e Löwy (1990).
11. Como já afirmamos, Tönnies é um exemplo nítido de atitude intelectual que possui parentesco com
as sínteses conservadoras, mas cuja honestidade e posicionamento político o levaram para o campo oposto.
Em meio à ascensão do nacional-socialismo em terras alemãs, Tönnies se junta ao Partido Social-Democrata:
“[…] em 1930, Tönnies abandona sua concepção anterior de que um acadêmico deveria posicionar-se perante
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* * *
os problemas sociais e políticos prementes, mas não se envolver com a política partidária: ele aderiu
abertamente ao Partido Social-Democrata” (Cahnman, 1973, p. 285; tradução do autor).
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 508-530, jul./set. 2014 529
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530 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 508-530, jul./set. 2014
Três notas sobre o sincretismo no Serviço Social*
Three observations about syncretism in Social Work
Abstract: This article aims at recovering some ontological indications about the syncretic structure
of Social Work, as it was formulated by José Paulo Netto in the beginning of the 1950’s, in order to
question the social significance of some tendencies in the current economic and political Brazilian
dynamics for the profession. It seeks to base the effective value and the technical vigour of the “thesis
of syncretism” to analyze the contemporary dilemmas of the Brazilian Social Work.
Keywords: Syncretism. Eclectism. Social Work.
* Ensaio construído para avaliação da disciplina de Seminário de Tese I, ministrada pela profa. dra. Ana
Elizabete Mota, no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFPE — Doutorado.
** Professor assistente I do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
doutorando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco/
Recife, Brasil, membro do Grupo de Estudos do Trabalho (GET/UFPE), coordenado pela profa. dra. Ana
Elizabete Mota. E-mail: jamersonsouza@ymail.com.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014 531
1. O significado ontológico do sincretismo
R
ealizar um mergulho teórico e sócio-histórico nos assim chamados
fundamentos do Serviço Social parece não ser uma tarefa simples.
Muito especialmente no decorrer dos anos 1980 e 1990, esse tema
recebeu o empenho investigativo de alguns dos mais talentosos
pesquisadores e profissionais da área. Com certeza, decorridas três décadas
desde a emergência e a consolidação dos debates sobre os fundamentos do
Serviço Social, nossa profissão continua empenhada no sentido do adensamen‑
to crítico e atualização teórico-metodológica daquelas teses seminais.
Outros horizontes surgiram, nem sempre consensuais, particularmente
fomentados pela apropriação de autores (e temáticas) clássicos da tradição
marxista — para não mencionar os debates profícuos em torno de releituras
qualificadas da obra marxiana e da tradição marxista. Esse surgimento não
surpreende: decorre das especificidades do pensamento de cada autor clássico,
seu contexto sócio-histórico e desafios teórico-políticos, em fina sintonia com
o momento histórico das contradições em processo. Seria ingênuo quem espe‑
rasse haver consenso e retilíneas concepções sobre política, teoria, método,
filosofia, cultura, sociabilidade, em pensadores tão profundos e mergulhados
em particularidades tão distintas, como Lenin, Gramsci, Lukács, Marx, Engels,
para mencionar apenas alguns.
Evidentemente, aqui não se pretende abrir o flanco ao ecletismo ou ao
subjetivismo, mas apenas sublinhar que toda teoria recebe os influxos da histó‑
ria. Sem fazer concessões quanto ao método de análise e a perspectiva da revo‑
lução, cada um desses autores enfrentou os dilemas de seu tempo, deixando às
gerações futuras imprescindíveis indicações acerca das especificidades do modo
de produção e reprodução do capital.
O Serviço Social brasileiro, desde os anos 1980 e da construção da hege‑
monia da teoria social crítica em suas fileiras profissionais, parece ser herdeiro,
tanto em suas potencialidades quanto em suas limitações, desses traços da
própria tradição marxista. Se, de um lado, operou avanços substanciais quanto
ao desvendamento da natureza dessa profissão no interior do circuito de valo‑
rização do valor capitalista, apontando tanto particularidades profissionais
532 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014
quanto políticas e sócio-históricas, por outro, defrontou-se com as impostações
da formação sócio-histórica brasileira e seu fundamental traço negação de di‑
reitos — a formação social, também aqui, impõe-se como elemento importan‑
te de determinação.
Surge como irredutível a necessidade de elucidação da função contra‑
ditória da política social (por consequência, da estrutura do Estado burguês)
no contexto capitalista e brasileiro. Adensam-se estudos sobre a seguridade
social no Brasil, sobre as políticas setoriais, sobre o fundo público, “mundo
do trabalho” e sobre o processo de financeirização do capital. As entidades
representativas da categoria, do ponto de vista político e institucional, man‑
têm-se atentas, abertas e afinadas (majoritariamente) aos influxos do debate
crítico-dialético.
O Serviço Social amplia seu leque de debate teórico-político, consolida-se
como interlocutor qualificado no âmbito da produção do conhecimento — a tal
ponto que, em artigo recentemente publicado, uma das mais destacadas pensa‑
doras do Serviço Social brasileiro, a profa. Ana Elizabete Mota, indica como
tendência importante dessa profissão (dentre outras) a sua particularização como
área de produção de conhecimento — sinalizando seu amadurecimento no
âmbito da pesquisa, mas não só (Mota, 2013).
A essa ampliação e qualificação do leque temático acostam-se, também,
influências de correntes teóricas distintas. Se a hegemonia do pensamento
crítico-dialético ainda se coloca como direção, parece inquestionável que
também marca presença no âmbito da produção de conhecimento (mas não se
restringe a essa esfera) do Serviço Social influências teóricas de matizes dife‑
renciadas, tais como estruturalista, funcionalista, weberiana e não poucas ditas
“pós-modernas”. Ora, se é componente do pluralismo profissional (e democrá‑
tico) o diálogo aberto, franco e crítico entre diferentes perspectivas ideoteóri‑
cas, a tênue linha do pluralismo é não poucas vezes ultrapassada, quando não
desconsiderada em virtude da reprodução de um discurso teórico e político
conservador que equaliza os “paradigmas” como meras “construções de lin‑
guagem” descoladas de qualquer sentido ontológico, cujos centros difusores
estão no âmbito da universidade e além dela, pois estão imbricados na própria
luta de classes.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014 533
Aqui parece residir um problema contemporâneo do Serviço Social brasi‑
leiro: afirmar o pluralismo (imprescindível) mantendo a hegemonia do pensa‑
mento crítico e dialético numa conjuntura histórica e acadêmica cada vez mais
conservadora e reativa. Aliás, não foram de outra natureza os dilemas dos auto‑
res clássicos: adensar a perspectiva da revolução em suas dimensões ideoteórica
e político-cultural, mobilizando o máximo de conhecimento das determinações
da realidade das classes em disputa. Esse paralelo, apenas sinalizado nessas
reflexões primeiras, não pretende equalizar os problemas da tradição marxista
com as determinações do Serviço Social como profissão — estamos cientes e
somos defensores das especificidades e diferenças históricas substanciais de
cada uma. Aqui, visamos tão somente indicar que, reproduzida a lógica do
capital como totalidade histórica, as tentativas de sua superação (ainda que
particulares) defrontam-se com o horizonte e com os problemas da luta de
classes e da disputa por hegemonia no terreno da política, da ideologia, da
cultura, da teoria e da prática.
Esse conjunto de questões torna-se mais complexo quando consideramos
que o avanço do Serviço Social como área de conhecimento, como defende
Mota, não infirma o seu traço interventivo. Novamente, sem fazer concessão a
qualquer perspectiva dicotômica, já solidamente enfrentada por vários autores,
sabemos que mediações particulares determinam o exercício profissional (de‑
mandas do mercado de trabalho, divisão social e técnica do trabalho, entre
outras). Do mesmo modo, outras determinações, igualmente particulares, de‑
terminam e influenciam a produção de conhecimento (política de educação
superior, apropriação cultural das objetivações humano-genéricas, o debate fi‑
losófico predominante em torno da sociedade e da razão, entre outras). Apesar
de manterem relação de unidade, pois ambas se inscrevem no âmbito da repro‑
dução da sociabilidade burguesa, não guardam relação de identidade — não são
idênticas essas mediações.
A divisão social do trabalho e o horizonte institucional que marcam o
exercício profissional (entendido como intervenção, que não suprime a dimen‑
são investigativa, porém tem na manipulação de variáveis empíricas seu dado
elementar), intensificados na quadra histórica neoliberal, imprimem à dinâmica
do exercício profissional características e tensionamentos particulares, confor‑
me apontam diversos estudos que versam sobre a temática do assim chamado
534 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014
trabalho profissional. Os elementos de fundo mais essencial dessas caracterís‑
ticas e tensionamentos no âmbito do exercício profissional não parecem conter
um conteúdo histórico capaz de sinalizar a superação do sincretismo. Esse dado,
é possível sustentar, constitui um dos elementos que sinaliza a atualidade onto‑
lógica e heurística da tese do sincretismo.
Os inegáveis avanços do chamado projeto ético-político do Serviço Social
brasileiro no que diz respeito a compromissos de natureza ética, política, teóri‑
ca e metodológica, que incidem sobre o horizonte do aparato legal-institucional
que rege a profissão, se inscrevem como particulares quando vislumbrados à
luz da reprodução da totalidade da sociedade burguesa e da lógica que enerva
o Estado burguês.
Evidencia-se essa limitação nas colocações da prof. Marilda Iamamoto
acerca das contradições que a profissão enfrenta no circuito da valorização do
valor como profissão assalariada, ou nas colocações do prof. José Paulo Netto,
quando indica que o projeto profissional só tem viabilidade quando conectado a
um projeto societário de classe. O reconhecimento dessa limitação não pode ser
tomado do ponto de vista moral, mas como uma determinação ontológica da
própria reprodução da sociabilidade burguesa, muito mais abrangente e inclusiva.
Segundo nosso ponto de vista, é essa reprodução da sociabilidade burguesa, pre‑
sente contraditoriamente nas estruturas do Estado e da sociedade civil-burguesa,
que reproduzem o sincretismo do Serviço Social no âmbito do exercício profis‑
sional. Mas essa determinação não cancela a presença de processos contraditórios
no interior do exercício profissional — não transforma a atuação profissional em
mera reiteração tautológica. Tais processos, que resultam da própria natureza
contraditória da reprodução social na sociedade capitalista, comparecem nessa
dimensão e podem ser acionados. Essa determinação tão somente delineia o li‑
mite, a circunscrição histórica da intervenção do Serviço Social (muito embora
esse limite, com mediações outras, possa ser identificado em outras profissões).
Cumpre frisar que o sincretismo, presente no exercício profissional, tem
como contraface teórica o ecletismo. Mas essa contraface não significa que
toda produção de conhecimento seja eclética porque espelha o sincretismo
prático. Essa dedução, que seria logicamente correta do ponto de vista formal,
é falsa do ponto de vista ontológico e histórico. Igualmente, nem todo conhe‑
cimento produzido sob angulação crítico-dialética consegue se expressar de
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imediato como componente revolucionário. Aqui, a lógica formal dá mostras
de suas limitações.
Para ser mais específico: o sincretismo da prática aparece no âmbito da
produção de conhecimento (como tendência) como ecletismo, ou seja, como
coletânea acrítica de teorias, categorias e conceitos por vezes contraditórios,
tudo em nome da captura de fragmentos de teoria que sejam capazes de expli‑
car, também fragmentariamente, a realidade setorial com que se defronta o
profissional, sem uma preocupação fundamental quanto às suas consequências
ideopolíticas.
Contudo, a produção de conhecimento não é um reflexo passivo e mecâ‑
nico do sincretismo da prática. Nessa esfera, que é permeada por mediações
específicas, mas igualmente contraditórias, a autonomia relativa do pesquisador
é mais elástica (e é essa contradição que o Serviço Social tem explorado de
maneira qualificada para adensar-se como área de conhecimento), o que quali‑
fica sua atuação para um confronto mais denso e profundo com os fundamentos
do conhecimento produzido sobre a sociedade, tomando como objeto de inves‑
tigação, conhecimento e crítica, não somente objetos particulares e circunscri‑
tos, mas a própria dinâmica contraditória da totalidade das relações sociais
burguesas e capitalistas. Essa especificidade da produção de conhecimento
coloca a possibilidade de superação (ainda que não o elimine) do ecletismo
teórico. Superação, sublinhe-se, não significa cancelamento. O ecletismo
mantém-se, como tendência limiar do pluralismo e do sincretismo da prática,
tensionando o sentido e a direção social da produção de conhecimento.
Retornar ao tema dos fundamentos do Serviço Social nos permite uma
aproximação importante com os avanços da profissão no Brasil, por um lado e,
por outro, colocar em perspectiva histórica os subsídios teórico-metodológicos
que sustentaram o chamado projeto ético-político para adensar suas potencia‑
lidades emancipatórias e enfrentar suas contradições, problematizando-as. A
tese do sincretismo contém, na sua teia categorial complexa (e com certeza não
consensual tanto teórica quanto, talvez ainda de forma mais acentuada — po‑
liticamente), uma das mais profícuas indicações ontológicas e investigativas
sobre o Serviço Social, e seu significado social, na teia da reprodução social
burguesa e capitalista, é o que esperamos conseguir demonstrar.
536 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014
2. A formulação clássica: apontamentos para uma recuperação necessária
1. A categoria momento predominante, tal como formulada por Gyorgy Lukács, refere-se à realidade
social tomada como totalidade, como complexo de complexos. Alguns complexos, com variações históricas,
podem adquirir a função de momento predominante na medida em que se constituam como solo genético
imprescindível para o destino de outros complexos, sem o qual a própria existência desses outros complexos
pode ser interditada. Para ilustrar: a produção de mercadorias cumpre a função de momento predominante
da reprodução do capital. O momento predominante, tal como as demais categorias, também é histórico
(portanto passível de mudanças e mesmo deslocamento dessa função) e sofre determinações recíprocas na
interação com os demais complexos. Por isso, não determina inexoravelmente as categorias a ele articuladas,
é tão somente polo fundamental que tem a prioridade ontológica historicamente situada. Conferir Lukács em
Ontologia do ser social (1979), particularmente o capítulo dedicado a Marx: Os princípios ontológicos
fundamentais de Marx.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014 537
superior no Brasil das duas últimas décadas, coloca elementos que reatualizam
os fundamentos do ecletismo.2
A captação da estrutura sincrética do Serviço Social diz respeito à com‑
preensão da marca nativa de seu processo de gênese histórica e institucionali‑
zação. Por esse motivo, o Serviço Social, tomado como sistema sincrético,
equivale à explicitação de um traço singular da sua profissionalização. A tese
do sincretismo foi originalmente pensada para refletir a ossatura teórico-prática
do Serviço Social “das suas origens aos anos 1960” (Netto, 2009, p. 14).
Este não é um detalhe menor: a maior parte das teses que recuperam (para
endossar ou polemizar) a discussão sobre a estrutura sincrética do Serviço Social,
tomam-na como elemento interpretativo sem enfatizar essa circunscrição histó‑
rica original. Se o sincretismo continua sendo uma marca importante da profissão,
as determinações que reproduzem essa marca precisam ser investigadas, expli‑
citadas, problematizadas. Ou seja, há que se tomar o sincretismo como resultado
de um conjunto de dilemas de origem sócio-histórica em vez de tomá-lo como
conteúdo explicativo em si mesmo. Evidentemente, alguns desses dilemas re‑
metem à própria anatomia contraditória da sociedade burguesa, excedendo o raio
de possibilidades da profissão em si mesma e desenhando o “anel de ferro”3 que
ata o Serviço Social à reprodução dessas relações sociais: aqui, notoriamente, o
campo pleno de contradições do Estado burguês e das políticas sociais.
Não há dúvida de que a tese do sincretismo, tomada como impostação
ontológica do Serviço Social, extrapola os quadros de referência para os quais
foi pensada: o processo de profissionalização do Serviço Social, das origens aos
anos 1960. Também é correta a compreensão de que alguns traços do sincretis‑
mo dizem respeito ao Serviço Social na sua própria imanência profissional. Sua
reatualização, todavia, não se constitui mera reposição mecânica, autoderivada.
Ao contrário, a permanência da estrutura sincrética do Serviço Social precisa
ser transformada em objeto de investigação, precisamente porque é reveladora
538 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014
de questões e dilemas que se configuram como desafios importantes para a
profissão. Explicitamente: a questão do sincretismo no Serviço Social há de ser
tematizada crítica e dialeticamente conforme os traços contemporâneos que
assumem o capitalismo monopolista e as políticas sociais, particularmente a de
educação superior no Brasil.
Desde sua formulação no início da década de 1990, no livro que pode ser
já tomado como um clássico do Serviço Social no continente latino-americano,
Capitalismo monopolista e Serviço Social, a tese da estrutura sincrética do
Serviço Social foi recuperada como fundamento ontológico do Serviço Social
por muitos analistas qualificados.4 Sua nervura teórica, substanciada por uma
incorporação impenitente da obra e pensamento marxianos e filiada a uma das
mais profícuas de suas linhas de continuidade presentes na tradição marxista
— a recuperação ontológica realizada por Gyorgy Lukács —, tem fornecido
subsídios de análise crítica resistentes à prova do desenvolvimento histórico.
Tal nervura, por si só, já constitui um avanço significativo no sentido de
superar as leituras esquemáticas provenientes do chamado “marxismo-leninis‑
mo” e seus “manuais de divulgação” do marxismo, que marcaram o processo
de aproximação do Serviço Social à tradição marxista: uma aproximação feita,
via de regra, a partir das necessidades de instrumentação da prática político‑
-partidária, afastada dos escritos originais de Marx e apreendida fragmentaria‑
mente segundo as recomendações estruturalistas.5 Esse esforço de rigor teórico
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014 539
e metodológico na análise da sociabilidade erguida sob o capital, que abrange
e inclui o Serviço Social, lançado ao público no primeiro terço da década de
1990, compõe uma das tentativas mais importantes para a superação dos vieses
politicistas que balizaram as primeiras experiências de leitura marxista na pro‑
fissão entre as décadas de 1960 e 1970.
Na sequência das décadas de 1990 e 2000, todavia, aprofundam-se as linhas
de possibilidade de interlocução fecunda entre o pensamento de Marx, a tradi‑
ção marxista (nos seus suportes renascidos)6 e o Serviço Social. Vicejaram
nessa esteira, no cenário intelectual e acadêmico primordialmente, elaborações,
desenvolvimentos teóricos e metodológicos abordando desde a dinâmica con‑
creta das contradições de classe na formação sócio-histórica brasileira, incluin‑
do análises sobre o Estado e as políticas sociais e setoriais, até a recuperação
teórico-categorial de clássicos, como Gramsci, Lukács e Lênin — numa acep‑
ção mais inclusiva, Mandel e Mészáros.
Esse movimento lançou as bases indispensáveis para superação histórica
do ecletismo teórico que marcou os horizontes do sistema de saber do Serviço
Social brasileiro (mas não só). Essa superação foi fortalecida com a construção
de um corpo intelectual crítico e com a consolidação dos programas de pós‑
-graduação em senso estrito a partir dos anos 1970, responsáveis pela dinami‑
zação e produção de conhecimento de natureza teórica que se junta ao espólio
da teoria social. Desde então, o Serviço Social alçou-se como interlocutor (não
mais apenas como receptor passivo) qualificado no debate com as chamadas
“ciências sociais”. É possível afirmar que o movimento histórico que resulta no
chamado projeto ético-político, notadamente a partir das escolhas teórico-po‑
líticas que define — teoria social crítica e o projeto societário do trabalho (em
sentido amplo), mesmo sem perder de vista as contradições e impasses nele
6. O termo renascimento do marxismo é de Lukács e faz referência à imperiosa necessidade, que ele
aponta já nos anos 1920, de recuperar o pensamento de Marx in natura e estabelecer uma contraposição
teórica ao “marxismo-leninismo”. Não apenas Lukács, mas uma geração de intelectuais militantes desse
período também recusou os reducionismos da vulgata marxista, empreendendo esforços para uma crítica
radical, dentre outros: o último Lênin, Rosa Luxemburgo e Antonio Gramsci. Lukács teve a oportunidade de
sobreviver aos anos 1920 e atravessar os eventos históricos até sua morte. Sua longa e erudita vida (1885-
1971), à diferença dos demais, ensejou-lhe amadurecer e aprofundar até as últimas consequências seu objetivo
de renascimento do marxismo, resultando, segundo muitos analistas, na maior reflexão teórico-filosófica
marxista do século XX — sua Ontologia do ser social (2012).
540 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014
presentes — ensejou a ultrapassagem do ecletismo teórico na profissão7 — mo‑
vimento importantíssimo, porém não irreversível.
O ponto de partida formulado pelo prof. José Paulo Netto é em si uma
ruptura, uma contraposição crítica às abordagens anteriores que se debruçaram
sobre o processo de profissionalização do Serviço Social fazendo derivar da
evidente “questão social” os elementos suficientes para a institucionalização
da profissão.8 Reside em destacar que a presença marcante dos resultados da
acumulação de capital, tal como transcorre a partir da última década do s éculo
XIX em seus elementos de luta de classes e pauperização, não se desdobra
espontaneamente na elevação das “protoformas” ao estatuto de profissão.
Antes que com a “questão social” em si, a articulação genética do Serviço
Social profissional deve ser realizada com a dinâmica econômica e política
estabelecida com a formação do capitalismo monopolista.9 Ela reconfigura dois
eixos fundamentais da sociedade burguesa: a intervenção do Estado na luta de
classes, nas relações de produção e acentuadamente no próprio desenvolvimen‑
to das forças produtivas, estabelecendo novos espaços na divisão social do
trabalho (evidentemente, subsumido ao capital) e modifica a composição orgâ‑
nica do capital mundialmente. Essa reconfiguração, não é supérfluo destacar,
responde pelo objetivo primeiro de acréscimo das taxas de lucro10 capitalistas.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014 541
Dois vetores típicos do movimento de monopolização são destacados pelo
prof. José Paulo Netto e recuperados aqui, principalmente porque lançam nexos
causais que se desdobrarão posteriormente: a supercapitalização do capital e o
parasitismo de setores privilegiados da burguesia (2009, p. 22). O primeiro
resulta em dificuldades crescentes de valorização, de serem feitos investimentos
lucrativos, posta a magnitude do capital concentrado, desdobrando-se em três
outros fenômenos importantes: a emergência da indústria bélica; a fuga de ca‑
pitais dos limites dos Estados nacionais e a consolidação de investimentos
“improdutivos”, a exemplo de massivas campanhas publicitárias, da realização
de pesquisas de mercado e investigações econométricas.
Por sua vez, o parasitismo é atinente à possibilidade de cisão entre a pro‑
priedade e a gestão dos capitais. Sua expressão maior está no assalariamento
de funções gerenciais e na aparência de que o capital se valoriza a si próprio.
Aos olhos do proprietário privado, sua fortuna se multiplica como que natural‑
mente, não sendo resultado de uma remuneração por atividades de comando,
de controle, de administração de seus negócios, mas simplesmente pela sua
“renda”. Ocorre como se o capital, investido de determinada forma, a juros,
pudesse gerar, automaticamente, mais capital — aos olhos do burguês que se
especializa em operações com o capital portador de juros, seu dinheiro tem a
potência de produzir mais dinheiro.
O primeiro vetor, a supercapitalização, incide como elemento importante
para o processo de crise: os desdobramentos citados, eminentemente medidas
anticíclicas,11 são também contraditórios e muito limitados, incapazes de rever‑
ter as dificuldades de valorização, mas não sem antes explorar à exaustão nichos
11. Neste particular temos uma diferença importante entre as concepções de Mandel e Mészáros no que
tange ao entendimento do processo de crise do capital que se instaura a partir da década de 1970. A concepção
cíclica do desenvolvimento capitalista, insígnia tão própria de Mandel, abre a via para noção de novas
possibilidades de retomada expansiva do capital (mesmo que profundamente desumanas), sustando a crise e
retomando um nível de lucratividade média. Em Mészáros, está interditado o horizonte de saída da crise que
se abate sobre o capitalismo desde os anos 1970. Para ele, essa crise ativou aquilo que designa como de
“limites absolutos do capital” e, daí para a frente, ao Estado cabe a “gestão da crise”, adiando-a: de um lado
investindo esforços (fundo público) para oferecer outro destino a setores monopolizados que não a bancarrota
(mesmo assim sem garantias de êxito) e, de outro, implementando a mais brutal desregulamentação do
trabalho. Com possibilidades de valorização cada vez mais reduzidas, a tendência daquilo que ele qualifica
como “equalização por baixo da taxa diferencial de exploração” realiza seu alcance máximo: níveis aviltantes
de extração de mais-valia, tal como no período da acumulação primitiva.
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de mercado (de trabalho inclusive) que podem ser temporariamente lucrativos.
O segundo, o parasitismo, conforma as “oligarquias financeiras”, cujo principal
mecanismo de valorização do valor será o emprego do capital fictício, operan‑
do concretamente a ampliação do sistema de crédito (com ênfase no capital
acionário), do sistema bancário e da dívida pública.12 Tudo se passa como se o
valor pudesse se valorizar automaticamente — margeando assim o processo de
criação do valor na cadeia produtiva.
Mas a mediação mais fundamental que opera no concerto da formação dos
monopólios é extraeconômica, é o Estado burguês. Sem modificar sua função
social mais precípua — o de garantir as condições gerais, externas, de reprodu‑
ção do capital — sob o comando dos monopólios, o Estado passa a condensar
funções políticas e econômicas. Essa condensação é ideia-força no pensamen‑
to nettiano13 e responde pela inserção do Estado em “setores básicos não rentá‑
veis (nomeadamente, aqueles que fornecem aos monopólios, a baixo custo,
energia e matérias-primas fundamentais)” (Netto, 2009, p. 25).
Dentre outras funções condensadas destacam-se a garantia estatal de
sobrevivência das empresas em dificuldades (por meio da socialização das
perdas), investimentos em complexos produtivos de altíssima composição
orgânica de capital (dos mais variados setores: do lazer aos portuários, da
malha rodoviária à importação de maquinário e tecnologia) e sua entrega para
exploração monopólica, aprovação imediata de linhas de crédito astronômicas
para setores monopolizados, lastro de lucro para as empresas — aqui, o Esta‑
do se torna a um só tempo financiador e consumidor dos negócios da burgue‑
sia monopolista —, preparação formal (no mais das vezes, de alta qualificação
e competência) de força de trabalho fornecida sem custo ao mercado. Os traços
fundamentais do chamado “novo desenvolvimentismo”, em debate no Brasil
12. Referência introdutória para esse tema é O que é capital fictício e sua crise, de Paulo Nakatani e
Rosa Maria Marques. Marx elabora pistas investigas sobre os temas do capital portador de juros e do capital
fictício no livro III d’O capital.
13. Consideramos que a tese contida do livro Capitalismo monopolista e Serviço Social é portadora de
uma chave heurística (porque ontológica) sui generis, o que justifica sua admissão e reconhecimento como
pensamento original solidamente imantado na tradição marxista, que ilumina de maneira ímpar o campo
temático sobre os fundamentos do Serviço Social. Sendo assim, admitimos os termos nettiano ou nettiana
para nos referirmos à linha de análise do autor.
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dos anos 2000, encontram na formação do capitalismo monopolista seu com‑
ponente originário.
Se essas funções políticas e econômicas correspondem às mudanças no
papel do Estado no estágio do capitalismo monopolista, a principal mediação
que se relaciona com o Serviço Social é sua intervenção na reprodução da for‑
ça de trabalho. Esse é um componente novo posto pela ordem dos monopólios,
uma vez que, no período concorrencial, a intervenção do Estado dimanava
basicamente pelo canal da coerção e da manutenção das relações jurídico-po‑
líticas que garantem a propriedade privada. Doravante, “a preservação e o
controle contínuos da força de trabalho, ocupada e excedente, é uma função
estatal de primeira ordem” (Netto, 2009, p. 26; grifos no original).
O grifo do prof. Netto sobre a intervenção em dois níveis da força de tra‑
balho: ocupada e excedente, já indica de alguma maneira quais mecanismos
ganham notoriedade para instrumentalizar esse processo: o aparato jurídico‑
-político para regulamentar a mercantilização da força de trabalho ocupada e
sistemas de seguro social para os excedentários. Sublinhe-se um objetivo adi‑
cional: recondução sazonal do excedente para atendimento imediato das neces‑
sidades de valorização pela via da incorporação ocasional (e precária) ao
mercado14 (uma opção que está longe de superar a superpopulação relativa e o
lumpemproletariado) e a entrega dos fundos da parcela ativa dos trabalhadores
à gestão “gerencial”, pública ou privada.
É nesse nível que opera uma mediação fundamental: para validar-se como
maestro do concerto dos monopólios, ampliando suas funções econômicas, o
Estado burguês opera sua legitimação política reconhecendo, incorporando,
generalizando e institucionalizando direitos. Por essa via, enseja completar o
ciclo sócio-histórico mediante o qual obtém o consenso, com sua forma políti‑
ca não coincidindo necessariamente com a democracia política — dependendo
da conjuntura das lutas de classes, sistemas autocráticos se impõem sem maio‑
res dilemas com a moralidade burguesa.
E aqui cabe recuperar a cristalina asserção nettiana: “o coroamento da
conquista da cidadania [...] acompanha, nos seus lances decisivos, o s urgimento
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da idade do monopólio” (Netto, 2009, p. 27). A permeabilidade do Estado a
parcelas das demandas do trabalho ocorre nesse momento de busca de legiti‑
mação política para orquestrar a conformação dos monopólios na economia,
condicionada apenas pelas possibilidades de refuncionalização dessas mesmas
demandas em margens de lucros — sua reincorporação pela dinâmica reprodu‑
tiva do capital.
Em linhas-mestras, esse é o cenário da sociabilidade capitalista que se
constitui como momento predominante, como solo histórico-concreto no qual
as múltiplas expressões da “questão social” tornam-se objeto de intervenção do
Estado. Dito de forma direta, a “questão social” traduz-se em demanda legítima
ao Estado burguês, a ser “enfrentada” pelas políticas sociais, na medida em que
seu reconhecimento político-institucional contribui para formação do consenso,
da hegemonia, em termos gramscianos.
O grifo nessas notações acerca do Estado burguês reconfigurado sob os
monopólios e o correspondente processo de construção do consenso político
mediante o reconhecimento e o atendimento parcial de demandas do trabalho
(igualmente ativas na correlação de forças), por intermédio das políticas
sociais, tem por objetivo sublinhar a diferença específica em relação ao es‑
tágio concorrencial, em que a “questão social” fora objeto de intervenção
apenas quando representava ameaça iminente (e externa) à reprodução do
capital — organização política combativa ou revolucionária ou escassez de
força de trabalho.15
15. Em função de seu peculiar e afinadíssimo poder de síntese, que se conjuga com o caráter limitado
e circunscrito deste trabalho, julgamos importante trazer as palavras do autor, que evidenciam os fundamentos
sócio-históricos da política social: “No capitalismo dos monopólios, tanto pelas características do novo
ordenamento econômico quanto pela consolidação política do movimento operário e pelas necessidades de
legitimação política do Estado burguês, a “questão social” como que se internaliza na ordem econômico-
política: não é apenas o acrescido excedente que chega ao exército industrial de reserva que deve ter a sua
manutenção “socializada”; não é somente a preservação de um patamar aquisitivo mínimo para as categorias
afastadas do mundo do consumo que se põe como imperiosa; não são apenas os mecanismos que devem ser
criados para que se dê a distribuição, pelo conjunto da sociedade, dos ônus que asseguram os lucros
monopolistas — é tudo isto que, caindo no âmbito das condições gerais para a produção capitalista monopolista
(condições externas e internas, técnicas, econômicas e sociais), articula o enlace, já referido, das funções
econômicas e políticas do Estado burguês capturado pelo capital monopolista, com a efetivação dessas funções
se realizando ao mesmo tempo em que o Estado continua ocultando a sua essência de classe” (Netto, 2009,
p. 30; grifos no original).
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O acento em suas contraditórias funções (porque atendem a necessidades
do trabalho ao mesmo tempo em que contribuem para a reprodução do capital
em sua totalidade), porém, deve recair sobre o subsídio que fornecem à cons‑
trução da hegemonia da classe dominante, aparecendo o Estado como “media‑
dor civilizacional”, em que ganhariam fluidez e encaminhamentos “universais”
as correlações de forças em presença (típica visão idealista), contribuindo assim
para o obscurecimento do caráter geneticamente de classe do Estado burguês
— porque as contradições tendem a serem enfrentadas, no limite, em favor da
reprodução do capital como totalidade em processo.
Todavia, na forma específica da intervenção do Estado na “questão social”,
reside um dos fundamentos do sincretismo no Serviço Social — particular, mas
não exclusivamente, no que concerne ao exercício da profissão. A referência é
em relação à concretização peculiar da política social no período dos monopó‑
lios: ela se efetiva como políticas sociais, retalhando e fragmentando a “questão
social” em núcleos problemáticos autonomizados.
É assim que ocorre o escurecimento da “questão social” como resultante
global das contradições do sistema do capital. Não poderia ser de outra manei‑
ra: remeter o enfrentamento da “questão social” para sua essência seria pôr em
xeque a reprodução da sociedade burguesa (em sua dinâmica de produção
amplamente socializada de valor e apropriação privada da riqueza — dinâmica
que adquire traços exponenciais a partir da guinada financeiro-rentista do capi‑
tal). O Serviço Social, como profissão medularmente conectada às políticas
sociais, herda e reproduz, na sua cotidianidade, essa estrutura interventiva.
De um lado, o Estado assume como ente público, pretensamente histórico‑
-universal, a tarefa de intervir sistematicamente sobre os desdobramentos da
“questão social” e, por outro, mantém e reproduz a determinação liberal-indivi‑
dualista na estrutura mesma da sua intervenção: a ação tem caráter público, mas
seu objeto e objetivo final residem e seriam produzidos na esfera do privado.
Essa lógica encontra sustentação, sobretudo, na progressiva opacidade que
o capitalismo monopolista imprime na diferenciação entre o público e o priva‑
do: trata-se da saturação das necessidades de acumulação em todos os níveis
das relações sociais — do universo mais íntimo do indivíduo social, das cons‑
telações familiares à “indústria cultural” e de “bens e serviços”. O espaço pri‑
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vado não desaparece. Antes, reaparece repleto com a lógica mercantil. A esse
encurtamento do leque de possibilidades de realização vital do indivíduo social
se articula um processo de “fuga ao subjetivismo”, de culto da “personalidade”,
do solipsismo, que não entra em contradição com a estruturação da rede inter‑
ventiva do Estado, antes, reforça-a. O par teórico dessa ambiência social ex‑
pressará essa estreiteza em dois níveis: de um lado, geralmente destacado em
períodos de crise, as correntes irracionalistas, que mergulham de cabeça no
solipsismo e tem feixes de implicações nos “contemporâneos” pós-modernismos;
de outro, as operações de segmentação e formalização da razão e do real, de
feição positivista.16 Ambas capitulam ante a pseudoconcreticidade17 da socie‑
dade burguesa.
Apenas com a abstração do caráter totalizante a que remete a essência da
“questão social” é possível estruturar políticas sociais que atuam liminarmente
sobre suas expressões, tomando atomizadamente os problemas sociais (e seus
sujeitos) como demandas institucionais — do contrário, sequer haveria possi‑
bilidade de intervenção na sociedade burguesa. Pavimentadas assim a concepção
e a forma de enfrentamento da “questão social”, elencam-se os setores proble‑
máticos: o analfabetismo, a mortalidade infantil, a violência urbana e domésti‑
ca, a desnutrição, a “situação de rua”, a dependência química, a violação de
direitos, com a lista podendo ser estendida à exaustão. Efeito concomitante a
essa segmentação formal-abstrata é a transformação, sustentada por uma con‑
cepção teórica e um direcionamento socioinstitucional, de dilemas produzidos
pelo contexto sócio-histórico em problemas individuais.
Numa típica formulação liberal e funcionalista (positivista em última
análise),18 o centro irradiador dos problemas consiste na incapacidade individual
em recolher no mercado as melhores oportunidades, cotidianamente produzidas
16. Sobre esse debate, a importantíssima obra O estruturalismo e a miséria da razão, de Carlos Nelson
Coutinho.
17. A categoria é formulada por Karel Kosik, em Dialética do concreto.
18. Com essa referência não estamos propondo uma equalização acrítica entre o liberalismo, o
positivismo e o funcionalismo. Antes, a intenção é indicar que, nos seus fundamentos últimos, encontramos
o traço comum de conservação da ordem burguesa (e interdição em torno da construção de um conhecimento
crítico-ontológico totalizante), mesmo levando em consideração diferenciações prático-operativas e teórico-
conceituais pouco desprezíveis.
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pelo desenvolvimento (linear) dos países capitalistas. Isto porque, nunca é
exagerado lembrar, para a tradição do pensamento conservador,19 sobretudo de
matiz positivista, estão equalizadas as determinações sociais tais quais os fenô‑
menos da natureza — regidos por leis fixas, imutáveis e inexoráveis, frente às
quais há de se aquiescer, resignar (na clássica formulação de Comte).
O que importa salientar nesse processo é que a estrutura da divisão social
do trabalho modelada (e animada pelo projeto conservador que suporta refor‑
mas desde que permaneça intocada a estrutura da propriedade privada dos
meios de produção) pela institucionalidade burguesa para intervir na “questão
social” encontra seu calço “teórico-científico” no universo do estrutural‑
-funcionalismo, que converte a “questão social” em distúrbios e desvios
“sociopáticos”, em patologia social que se torna objeto de reintegração por
mecanismos institucionais em nome da coesão social. Discutindo essa questão
em particular, o prof. José Paulo Netto avança na caracterização desse traço
do pensamento conservador que se converte em elo de articulação entre a
concepção de mundo liberal-burguesa-positivista e as formas concretas de
intervenção do Estado. Segundo ele:
O centro das preocupações do prof. José Paulo Netto parece ser o estabe‑
lecimento de uma compreensão dialética macroscópica acerca do problema da
19. A profa. Leila Escorsim oferece uma importante contribuição ao debate sobre o conservadorismo
e suas variadas tendências, contradições e desenvolvimentos em O conservadorismo clássico: elementos de
caracterização e crítica.
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legitimidade do Serviço Social profissional. Trata-se de procurar as respostas
para a seguinte pergunta: qual o substrato histórico que atribui legitimidade e
requer a atuação de uma profissão como o Serviço Social? As respostas ade‑
quadas a essa pergunta permitem a superação das teses que advogam a profis‑
sionalização do Serviço Social a partir de um processo cumulativo e progres‑
sivo de racionalização das pretéritas e assistemáticas atividades filantrópicas e
caritativas. Isto porque o lócus que demanda o Serviço Social profissional não
está localizado nele mesmo, não é endógeno e, mais importante que isso, não
resulta de uma propensão “natural” à racionalização e sistematização das anti‑
gas práticas.
Pelo contrário, o espaço sócio-ocupacional criado para intervenção do
Estado burguês sobre a “questão social” (as políticas sociais), na época do ca‑
pitalismo dos monopólios, estabelece uma ruptura crucial (ainda que com
continuidades, sobretudo no que se refere às formas concretas do exercício
profissional, manipulando dados e variáveis imediatas, empíricas, alterando, no
universo do cotidiano e com requisições no mais das vezes prescritas institu‑
cionalmente) com as chamadas “protoformas” do Serviço Social. Ruptura essa
concernente, no fundamental, à alteração do significado social da ação (dora‑
vante, umbilicalmente implicada na reprodução das relações sociais) e à con‑
dição de assalariamento,20 inscrevendo a profissão no circuito do trabalho
abstrato (improdutivo),21 da mercadoria e da lei do valor.
20. Discussão seminal, já clássica para a profissão, elaborada por Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho,
em Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação teórico-metodológica, publicado
em 1982.
21. Parece-nos injustificada a polêmica que tenta afirmar a atividade do assistente social trabalho
produtivo (ou trabalho coletivo, que é necessariamente produtivo e realiza o trabalho categoria fundante do
ser social). Dentre outras referências, sem nos aprofundarmos em demasia, observe-se o que menciona
cristalinamente o prof. Netto (ainda no início da década de 1990): “Enquanto interveniente nos mecanismos
elementares da preservação e do controle da força de trabalho e, simultaneamente, nos ‘serviços’ que o Estado
aciona para reduzir o conjunto de óbices que a valorização do capital encontra na ordem monopólica, o Serviço
Social não desempenha funções produtivas, mas se insere nas atividades que se tornaram acólitas dos processos
especificamente monopólicos da reprodução, da acumulação e valorização do capital” (Netto, 2009, p. 76;
grifos nossos). Para uma aproximação substancial sobre as categorias trabalho (categoria fundante), trabalho
abstrato produtivo ou improdutivo, trabalho coletivo, trabalho manual, trabalho intelectual no Marx de O capital,
conferir Sergio Lessa em Trabalho e proletariado no capitalismo contemporâneo, 2007.
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Sob esta angulação, numa longa e cirúrgica colocação, o prof. José Paulo
Netto (2009, p. 74) é inequívoco:
22. O prof. Carlos Montaño formula em termos claros a diferença entre as teses “endogenistas” e a
“crítico-dialética”, sobre os fundamentos sócio-históricos do Serviço Social em A natureza do Serviço Social
(2007).
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questão de qual universo simbólico (teórico-metodológico) esteja orientando
a ação profissional.23
Disso decorre que o exercício profissional não se constitui um desdobra‑
mento automático da(s) referência(s) teórica(s) — o que contradiz muitos equi‑
vocados consensos, destaque feito ao que afirma que de uma referência teórica
decorre uma (ou mais) metodologia de ação. Inversamente, o universo teórico‑
-conceitual não pode se constituir como a substância explicativa dos giros e
mudanças na profissão. Antes, esses giros e mudanças estão articulados ao “di‑
namismo histórico-social, que recoloca, a cada uma de suas inflexões, a urgência
de renovar (e, nalguns casos, de refundar) os estatutos das profissões particulares”
(Netto, 2009, p. 89). Significa dizer que as transformações ocorridas na profissão
não são resultado de um processo desencadeado “desde dentro”, a partir de
mudanças mais ou menos profundas no seu leque teórico-conceitual.
Antes, e inversamente, as matrizes teórico-metodológicas (localizadas no‑
tadamente nas ciências sociais, mas não só) que lastrearam o sistema de saber
do Serviço Social compareceram a partir da necessidade de serem encontrados
fundamentos para as respostas (muitas vezes reiterativas e fenomênicas) ofereci‑
das às demandas colocadas pelos espaços sócio-ocupacionais. Para fazer frente a
essas demandas, e de maneira geralmente acrítica, a profissão recorreu predomi‑
nantemente ao conjunto de referências acumulados pelas Ciências Sociais. Neste
particular reside um dos traços fundamentais do sincretismo que, no plano teórico,
expressa-se tendencialmente como ecletismo: essa captura mais ou menos indis‑
criminada (e seletiva) de referências teóricas, por vezes contraditórias, para legi‑
timar/justificar/explicar práticas em operação no plano do exercício profissional.
Ao abordar mais detidamente os fundamentos da estrutura sincrética no
exercício profissional do Serviço Social, o prof. José Paulo Netto aponta três
dimensões objetivas: o conjunto de problemas (extremamente variados) em torno
da “questão social”; o limite ontológico do exercício profissional: o cotidiano; e
23. Senão vejamos: “O aspecto nuclear de uma intervenção profissional institucional não é uma variável
dependente do sistema de saber em que se ancora ou de que deriva; é-o das respostas com que contempla
demandas histórico-sociais determinadas; o peso dos vetores do saber só se precisa quando inserido no circuito
que atende e responde a essas últimas (mesmo que, em situações de rápidas mudanças sociais, a emersão de
novos parâmetros do saber evidencie implementações suscetíveis de oferecer inéditas formas de intervenção
profissional)” (Netto, 2009, p. 88).
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a forma particular de sua intervenção: manipulação de variáveis empíricas, alte‑
rando, rearranjando demandas sociais e institucionais que requerem respostas
imediatas, contudo, restritas ontologicamente ao campo da fenomenalidade.
Em primeiro lugar, a estrutura essencialmente multiforme da “questão
social” adquire um traçado ainda mais profundo e de complexa captação
teórica na dinâmica do capitalismo dominado pelos monopólios. Aqui, consi‑
derando-se as particularidades regionais da nossa formação sócio-histórica,
1) orientada desde sua mais tenra idade ao desenvolvimento heterônomo,
subordinado e dependente; 2) historicamente marcada por fortes interesses
conservadores e alianças oligárquicas de tendências fortemente antidemocrá‑
ticas; 3) os déficits sociais que justificam a qualificação de que o Brasil é um
“monumento à desigualdade social”,24 chegamos a um quadro de complexi‑
dade tal que a “questão social” se torna, no limite, um conceito intangível: vai
do trabalho escravo à exploração sexual infantil; da vergonhosa e histórica
negação de uma reforma agrária aos números assustadores do sistema carce‑
rário; do trabalho informal e precaríssimo aos efeitos da especulação imobi‑
liária (que tem capitaneado um processo que só encontra paralelo histórico
com cercamentos na Europa pré-capitalista).
Em segundo lugar, na estrutura sincrética do Serviço Social, o horizonte
do cotidiano aparece como limite da intervenção Social que, conectado à lógi‑
ca institucional do Estado, opera alinhada a uma manipulação planejada da
reprodução da força de trabalho, cujo traçado marcante é o “disciplinamento da
família operária, ordenação de orçamentos domésticos, recondução às normas
vigentes de comportamentos transgressores ou potencialmente transgressores,
ocupação de tempos livres, processos compactos de ressocialização dirigida”
(Netto, 2009, p. 92). Cotidiano tomado aqui como reprodução imediata, super‑
ficial e heterogênea da fenomenalidade — lócus da reificação sistemática que
resulta da dinâmica capitalista.
Atuando aí, destacam-se como fundamentais os conhecimentos diretamen‑
te vinculados ao “fazer da prática”, em geral recortados da totalidade teórica de
que fazem parte. A prática sincrética, nesse sentido, tende a hipervalorizar como
conhecimentos verdadeiramente “úteis” para a prática tão somente aqueles
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acumulados com a reiteração das padronizações institucionais ou legais. Seu
correlato: uma tendência ao menosprezo pela elaboração teórica dialética que,
totalizante, extrapola o campo da empiria — a ele retornando, contudo, satura‑
do com as determinações que o compõem. Relaciona-se a essa problemática o
discurso de que “na prática, a teoria é outra”.
Em terceiro lugar, na acepção clássica do sincretismo, a “manipulação de
variáveis empíricas de um contexto determinado” (Netto, 2009, p. 96) ofertava
a inferência da legitimidade profissional a partir de dados quantitativos extraí‑
dos de mudanças microssocietárias, passíveis de mensuração a partir da razão
instrumental. A legitimidade profissional, portanto, tende a ser extraída, ao
mesmo tempo em que reforça e requisita, a polivalência profissional. A inter‑
ferência sócio-institucional em dados imediatos da realidade empírica, em si
mesma heteróclita e multifacetada, tende a requerer profissionais “flexíveis”,
atentos em dispor seu arsenal teórico-prático a partir das demandas sociais
(difusas) postas como requisições institucionais (reiterativas), também heteró‑
clitas. Nesse contexto, profissionais “que sabem fazer”, com o domínio de um
arsenal heurístico repousando em terceiro ou quarto plano, gozam do reforço
positivo socioinstitucional.
Em poucas palavras, o exercício profissional sincrético opera por meio da
formalização e da reiteração de procedimentos; do atendimento imediato de
demandas difusas; práticas que estabelecem prioridades a partir de inferências
teóricas segmentadas ou necessidades burocrático-administrativas e políticas
(com o intuito de “fundamentar” essas práticas com um discurso científico);
recurso eclético aos campos de conhecimento que possam ser instrumentalizá‑
veis e corroborem com as intervenções que já estão sendo realizadas. A prática
sincrética demanda e reproduz a elaboração formal-abstrata de conhecimentos
teóricos — a prática sincrética é o momento predominante do ecletismo teórico,
embora não o determine definitivamente (o ecletismo é a expressão do sincre‑
tismo no plano teórico — um agregado acrítico de conhecimentos consolidados
em circunstâncias outras).25
25. Numa referência quase sempre esquecida nos textos que procuram discutir a estrutura sincrética
do Serviço Social, o prof. José Paulo Netto (2009, p. 92) afirma: “[...] a própria natureza socioprofissional
do Serviço Social. É desta que decorrem, posta a carência de um referencial teórico crítico-dialético, as
peculiaridades que fazem dele um exercício prático-profissional medularmente sincrético”.
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3. O sentido do sincretismo frente aos problemas do atual tempo histórico
26. Essas anotações refletem o já maduro debate em torno do método de investigação, o “caminho de
ida” e do método de exposição, o “caminho de volta”. Para uma aproximação ao debate clássico, ver Karl
Marx, no famoso Pósfácio da 2ª edição alemã de O capital: crítica da economia política.
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seu próprio devir — enredado na dinâmica do capitalismo monopolista (até o
presente) e nas formas de atuação jurídico-políticas do Estado burguês na re‑
produção das relações sociais, ou seja, para além da particularidade da formação
sócio-histórica brasileira e mesmo latino-americana.
Os fundamentos da estrutura sincrética do Serviço Social, tal como foram
alicerçados na sua acepção clássica, permitem sustentar sua atualidade e vigor
teórico. Tomando como referência o quadro macroscópico da reprodução da
sociedade burguesa na contemporaneidade (últimos quarenta anos), observa-se
o aprofundamento das tendências colocadas pelo capitalismo monopolista.
Muitas análises têm demonstrado o avanço do processo de centralização do
capital, com ênfase para a hipertrofia do capital fictício. O Estado tem dado
máximas demonstrações de força no sentido de oportunizar margens de lucro
ao capital monopolizado. Dentre outras estratégias, conduzindo pacotes de
medidas de minimização dos gastos públicos que se vinculem à reprodução da
força de trabalho, justificados com o discurso do ajuste fiscal. De passagem,
sinalizamos que a forma democracia burguesa, cânone da organização política
para alguns, tem recebido e acomodado plasticamente interesses e necessidades
do grande capital monopolista. Em não raras ocasiões, foi substituída sumaria‑
mente por regimes autocráticos — note-se a história recente da América Latina,
do Leste Europeu e de alguns países africanos.
Nessa esteira, pavimentou-se um dos caminhos para a maré privatizante
que autores designam como um “assalto ao patrimônio público”.27 Flexibiliza‑
ram-se os direitos. Desregulamentou-se a economia. A “questão social” dá
mostras inéditas de sua cronificação, e suas expressões marcam presença em
territórios e populações inéditos — acentuando o acerto marxiano em torno da
superpopulação relativa. A desigualdade social surge mais aguda e diferencia‑
da a despeito dos efêmeros e ultra-alardeados resultados de pacotes emergenciais
de “desenvolvimento”.
As políticas sociais tornaram-se ainda mais focalizadas e seletivas, dessa
feita sob o discurso do “desenvolvimento de capacidades humanas”, tem se
concentrado sua intervenção em ações assistenciais. Inserido nesse contexto, o
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exercício profissional do Serviço Social encontra uma malha institucional que
lhe repõe requisições e demandas tipicamente sincréticas. As três características
da estrutura sincrética da profissão se repõem em grau acentuado: a “questão
social” assume feições hoje dramáticas e ainda mais heterogêneas e difusas; o
universo do cotidiano, limite ontológico em que se situa a atuação profissional
e no qual a “questão social” se expressa fragmentariamente, encontra renovados
processos alienantes: o culto desmedido do individualismo/solipsismo; o hedo‑
nismo e a falta de perspectivas de futuro (agudizados pela crise estrutural) que
acometem populações jovens; o avanço do racismo e da xenofobia; os índices
de guerra civil provenientes da violência urbana, doméstica, racial e de gênero;
a avalanche ultraconservadora que tem resultado na criminalização da pobreza
e na implementação de políticas de “tolerância zero” fazendo explodir a popu‑
lação carcerária; o consumismo e o impulso à cultura da descartabilidade.
Quanto ao terceiro traço do sincretismo, a manipulação de variáveis empí‑
ricas também se repõe maximizada frente às tendências de hiperfocalização e
assistencialização das ações. Se cruzarmos as duas tendências — cronificação
da “questão social” e focalização minimizadora das políticas sociais —, torna-se
evidente que os limites socioinstitucionais do exercício profissional embargam
uma atuação que ultrapassa o horizonte da intervenção microscópica, reiterativa
e fragmentária — ainda que comprometida com valores emancipatórios.
Todavia, o campo de contradições da sociabilidade burguesa atua de for‑
ma diferenciada. Não se revela de maneira idêntica em todas as esferas da re‑
produção social. Por isso, se do ponto de vista do exercício profissional o
sincretismo é componente ineliminável (porque conectado a instâncias e me‑
diações que ultrapassam e circunscrevem a profissão), no âmbito da produção
de conhecimento e da formação acadêmico-profissional outras mediações e
desdobramentos entram em cena. Particularizando o debate para a história do
Serviço Social no Brasil, é possível sustentar que os desdobramentos do mo‑
vimento de intenção de ruptura28 lançou as bases para o processo de superação
do ecletismo teórico.
28. O movimento de intenção de ruptura é objeto de rigorosa análise em Ditadura e Serviço Social:
uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64, também de autoria do prof. José Paulo Netto.
556 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014
Sem desconsiderar os problemas e contradições do processo que aproximou
o Serviço Social brasileiro do amplo campo da tradição marxista, é possível
afirmar (em traços largos) que os avanços obtidos por essa aproximação, des‑
tacadamente nos últimos 25 anos, nos campos da formação, da pesquisa e da
produção de conhecimento de natureza teórica, assumiram uma perspectiva de
análise crítica totalizante. Evidentemente, a perspectiva de análise não reverteu
a dinâmica da objetividade — nem poderia, salvo para uma perspectiva idea‑
lista-hegeliana. Contudo, forneceu aos assistentes sociais recursos teórico‑
-metodológicos para uma atuação que, ainda que inscrita no circuito de repro‑
dução do sincretismo, pudesse explorar os espaços sócio-ocupacionais como
campos de contradição, com clareza do seu raio de ação e na perspectiva da
ampliação das suas possibilidades — sobretudo na defesa tática dos direitos e
demandas do trabalho (tomado como antagonista estrutural do capital). Esse é
o esforço do chamado “projeto ético-político profissional”.
Esses avanços de natureza teórico-metodológica, representados pelo “pro‑
jeto ético-político profissional”, ao incorporarem a categoria de totalidade como
elemento-chave na compreensão da reprodução social (em seus fundamentos
históricos e contraditórios), permitiram a superação do ecletismo teórico. To‑
davia, quando pautados à luz dos processos de mercantilização que têm incidi‑
do sobre a educação superior no Brasil (mas não só), resta manifesto que um
dos seus suportes sócio-históricos mais importantes (a formação profissional
crítico-generalista de nível superior) tem sido alvo de intensas investidas pro‑
venientes de interesses do mercado. A lógica do mercado reverte os valores
sociocêntricos e a perspectiva emancipatória em nome do imediatismo, do
hedonismo, dos saberes prático-imediatos instrumentais.
A contrapartida “teórica” (conservadora em última análise) que tem
marcado fundamente o saber produzido no campo da Filosofia e das “Ciências
Humanas e Sociais”, histórico universo de interlocução do Serviço Social, a
saber: as várias nuances da “pós-modernidade”, têm repercutido de maneira
substancial na formação superior dos assistentes sociais.29 Sua lógica motriz, a
pétrea negação da categoria de totalidade, da essência, da razão ontológica em
29. Já se avoluma uma bibliografia substancial, em teses, dissertações e livros, sobre os impactos dos
pós-modernismos no Serviço Social. Dentre outros, conferir o didático e qualificado: Neoconservadorismo
pós-moderno e Serviço Social brasileiro, de Josiane Soares Santos.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014 557
nome da exaltação do fragmentário, do fugaz, efêmero, aparente, da segmentação
da realidade e do pensamento, não contradiz a lógica empírica imediata própria
da prática sincrética. Mantidas e aprofundadas essas tendências no campo da
formação profissional (porque, no campo do exercício, elas têm penetrado sobre‑
maneira), estão colocadas as raízes do processo que tenderá a fragilizar, quando
não reverter, o percurso histórico que solidificou a superação do ecletismo.
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Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 531-559, jul./set. 2014 559
A filosofia como historicidade:
a ideologia no estudo filosófico dos Cadernos do cárcere
Philosophy as historicity: ideology in the philosophical study of Prison notebooks
Abstract: The article seeks to apprehend the category of the ideology in the notes dedicated to the
study of philosophy in Antônio Gramsci’s Prison notebooks. The theoretical and methodological
fundamentals and the category articulations of the issue of ideology in Gramsci are explained through
bibliography research related to that work. The explanation presents the necessary relationship between
ideology and historical praxis, the conception of historical block as social totality and the necessary
and sufficient conditions to overcome the dominant social relationships.
Keywords: Ideology. Social praxis. Historical block. Philosophy of praxis.
* Assistente social, mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
doutorando em Serviço Social pela UFPE, Recife/PE, Brasil. E-mail: j_r1987@hotmail.com.
560 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014
1. Introdução
E
ntre as investigações e apontamentos mais estritamente voltados ao
problema da filosofia, Antônio Gramsci desenvolve nos Cadernos
do cárcere um conjunto de notas e passagens nas quais, direta ou
indiretamente, contribui para tornar inteligível a categoria da ideolo‑
gia. A elaboração que se desdobra, matizada pela concepção de mundo inerente
à “filosofia da práxis”, apreende e explicita fundamentos teórico-metodológicos
e históricos imprescindíveis ao desvelamento das relações de hegemonia entre
as classes. Por meio de uma síntese aproximativa daquelas formulações que
laboram a questão da ideologia nos escritos carcerários, pretendemos contribuir
para aprofundar teoricamente, no âmbito da pesquisa sócio-histórica, a apro‑
priação do fecundo arsenal crítico e categorial do comunista sardo. O estudo
demandou que enveredássemos por aqueles Cadernos nos quais e xplicitamente
o tema da filosofia foi levado a cabo: principalmente, no Caderno 10 (1932-35),
A filosofia de Benedetto Croce, e no Caderno 11 (1932-33), Introdução ao estu
do da filosofia.1 Além disso, cotejamos os “cadernos miscelânea”, nos quais se
encontram as notas de primeira redação posteriormente reformuladas e reescri‑
tas naqueles “cadernos especiais”.2
É evidente que os materiais bibliográficos e os objetivos a partir dos quais
pesquisamos impõem alguns limites à proposição de resultados definitivos à
análise da ideologia em Gramsci. Porquanto, pretendemos nos debruçar estri‑
tamente sobre as notas em torno do estudo da filosofia, o tratamento mais
aprofundado e sistemático de um tema tão abrangente e polêmico — no quadro
mesmo dos comentadores de Gramsci, que dirá no âmbito da tradição marxista
— não pôde ser levado a cabo. Nossa contribuição consiste tão somente numa
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014 561
aproximação teórica à ideologia no extrato dos Cadernos selecionados — cujo
conteúdo possui também um caráter inacabado, provisório e fragmentado3 —,
subsidiando a apropriação dos fundamentos filosóficos, articulações categoriais
e remissões históricas intrínsecas.
É conhecido que as notas dedicadas ao estudo da filosofia foram, mormen‑
te, elaboradas através da crítica ao pensamento idealista do filósofo italiano
Benedetto Croce (e também de Giovanni Gentile) e ao livro, de 1921, A teoria
do materialismo histórico: manual popular de sociologia marxista (chamado
nos Cadernos de “Ensaio Popular”) de Nikolai Ivanovich Bukharin, então
dirigente do Partido Comunista russo e da Internacional Comunista. O desen‑
volvimento desse programa de pesquisa filosófica ocorreu, assim, embora não
exclusivamente, através dos seus “Anti-Croce” e “Anti-Bukharin”: o combate
ao revisionismo idealista, de uma parte, e ao materialismo mecanicista, de
outra.4 Essa empreitada é seguida em sintonia fina com as concepções e funda‑
mentos da própria obra marxiana, mobilizados original e criativamente para
análise concreta das condições históricas da luta das classes subalternas na
entrada do século XX.
3. Numa nota de advertência, no início do Caderno 11, Gramsci postula explicitamente o caráter
aproximativo e inconcluso de suas anotações, afirmando que podem conter, inclusive, inexatidões e tratamentos
desatualizados.
4. Detalhes sobre essa elaboração são fornecidos por Bianchi (2008). Também Buci-Glucksmann
(1980) aborda o estudo filosófico de Gramsci nos Cadernos.
562 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014
Um elemento de erro na consideração sobre o valor das ideologias, ao que me
parece, deve-se ao fato (fato que, ademais, não é casual) de que se dê o nome
ideologia tanto à superestrutura necessária de uma determinada estrutura, como
às elucubrações arbitrárias de determinados indivíduos. O sentido pejorativo da
palavra tornou-se exclusivo, o que modificou e desnaturou a análise teórica do
conceito de ideologia. O processo deste erro pode ser facilmente reconstituído:
1) identifica-se a ideologia como sendo distinta da estrutura e afirma-se que não
são as ideologias que modificam a estrutura, mas sim vice-versa; 2) afirma-se que
uma determinada solução política é “ideológica”, isto é, insuficiente para modi‑
ficar a estrutura, enquanto crê poder modificá-la se afirma que ela é inútil, estú‑
pida etc.; 3) passa-se a afirmar que toda ideologia é “pura” aparência, inútil, es‑
túpida etc. (Gramsci, 2011a, p. 237)
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014 563
as massas humanas, formam o terreno no qual os homens se movimentam, adqui‑
rem consciência de sua posição, lutam etc. Enquanto são “arbitrárias”, não criam
mais do que “movimentos” individuais, polêmicas etc. (p. 238)
564 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014
pelo desenvolvimento histórico” (Gramsci, 2011a, p. 343). Emergem e se afir‑
mam no quadro dos intercâmbios dialéticos estabelecidos entre a estrutura so‑
cioeconômica e a consciência social necessária que dirige a prática dos indiví‑
duos, vinculando suas decisões alternativas cotidianas à reprodução ou à
superação das relações sociais em causa.
As ideologias constituem as formas de consciência inerentes à atividade
dos próprios indivíduos sociais, destinadas a responder às necessidades e pro‑
blemas colocados pela produção social. Nessa perspectiva, a afirmação da
historicidade e da caducidade das ideologias parte do fato de que as mesmas
são “expressões da estrutura e se modificam com a modificação desta” (Gramsci,
2011a, p. 131). O autor dos Cadernos reivindica a práxis social como momento
predominante da dialética entre teoria e prática, o que não significa a imposta‑
ção de uma hierarquia de valor entre as categorias constitutivas do ser social.
Para a determinação das “ideologias orgânicas”, cita, quase com as mesmas
palavras, um conhecido trecho do “Prefácio” de 1859. Vamos ao texto do Marx
(2008a, p. 46):
‘verdadeira’ filosofia, já que elas serão as ‘vulgarizações’ filosóficas que levam as massas à ação concreta, a
transformação da realidade. Isto é, elas serão o aspecto de massa de toda concepção filosófica” (Gramsci,
2011a, p. 312).
7. Tais referências podem ser identificadas em Lukács (2010, 2012). No artigo de Vaisman (2010) en‑
contramos uma síntese sobre a concepção lukasciana.
8. Esse autor trata reiteradamente da questão da ideologia, nesses termos, em: Mészáros (2011, 2008,
2004).
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014 565
Gramsci.9 Outras importantes menções do mesmo manuscrito marxiano de 1859
são retomadas por nosso autor para aprofundar as reflexões relativas ao estudo
da filosofia. Assumindo os termos do “fundador da filosofia da práxis”, o co‑
munista sardo recusa as abordagens que desconsideram o valor histórico das
ideologias, ou que as releguem a uma posição estrita de “falsa consciência”. O
que está em questão é a função prático-social de determinadas formas de
consciência, não obstante caracterizem falsas ou verdadeiras elaborações, do
ponto de vista histórico-concreto. Tal função se relaciona a conscientização dos
conflitos colocados pela produção social, orientando a práxis humana existente.
Uma nota daquele Caderno 7, intitulada “Validade das ideologias”, sinaliza
precisamente nessa direção:
9. Coutinho (2011) afirma essa convergência entre Gramsci e Lukács, no que concerne ao entendimento
da questão da ideologia em Marx. E Oldrini (1999) informa uma aproximação entre os dois comunistas
também na busca pela superação das polarizações idealistas e mecanicistas na tradição marxista, através de
um tertium datur fundado na perspectiva teórico-metodológica de Marx e de Lênin.
566 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014
de hegemonia e da própria ação estatal em sentido “integral”, “orgânico”
(Gramsci, 2007). De outra parte, é abordada como indicação fornecida por
Marx para evocar a necessidade da formação de uma consciência classista
unitária, crítica, autônoma e de massas como momento necessário do processo
revolucionário mesmo.
De fato, ainda em A ideologia alemã — manuscrito cujo conteúdo Gramsci
não chegou a conhecer — Marx e Engels assumem que os “elementos materiais
de uma subversão total” são, sobretudo, o desenvolvimento posto pelas “forças
produtivas” e a “formação de uma massa revolucionária que revolucione não
apenas as condições particulares da sociedade até então existente, como também
a própria ‘produção da vida’ que ainda vigora — a ‘atividade total’ na qual a
sociedade se baseia [...]”. Se tais condições são inexistentes, não importa “se
a ideia dessa subversão total já foi proclamada uma centena de vezes” (2007,
p. 43). Em suma, é incontornável a criação em massa de uma consciência
comunista,10 enquanto consciência da necessidade de uma revolução radical,
por parte da classe trabalhadora. Com efeito, Mészáros (2009) afirma que
desde seus primeiros escritos, até os Grundrisse e O capital, Marx insistiu “[...]
na necessidade da formação de uma consciência de massa socialista, como
exigência sine qua non para envolver a grande maioria dos indivíduos em seu
empreendimento coletivo de autoemancipação” (p. 1041). Essa unidade dialé‑
tica entre forças produtivas e consciência social é apreendida por Gramsci por
meio da reformulação do conceito de “bloco histórico”.
10. Tal requisição aparece de modo explícito também em várias passagens d’A sagrada família (Marx
e Engels, 2003), à qual Gramsci teve acesso e pôde utilizar nos seus estudos.
11. Uma exposição sobre a concepção original de Sorel é apresentada por Bianchi (2008). Analistas
como Portelli (1977) chegam a considerar que os principais aspectos do pensamento político presente nos
Cadernos articulam-se em torno do conceito de bloco histórico.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014 567
duzir a unidade ontológica entre a estrutura social e as ideologias. Tal perspecti‑
va encontra-se nos fundamentos mesmos da concepção de mundo inerente à
obra de Marx: “Para a filosofia da práxis o ser não pode ser separado do pensar,
o homem da natureza, a atividade da matéria, o sujeito do objeto; se faz se esta
separação, cai-se numa de muitas formas de religião ou na abstração sem sen‑
tido” (Gramsci, 2011a, p. 175). Na reformulação gramsciana da noção de
“bloco histórico” está inerente a natureza categorial da práxis social em sua
unidade.12 Essa vinculação foi inspirada, fundamentalmente, na interpretação
das Teses sobre Feuerbach (Marx e Engels, 2007).
A afirmação das Teses sobre Feuerbach, de que “o educador deve ser educado”,
não coloca uma relação necessária de reação ativa do homem sobre a estrutura,
afirmando a unidade do processo real? O conceito de “bloco histórico”, construí‑
do por Sorel, apreende plenamente essa unidade defendida pela filosofia da práxis.
(Gramsci, 2011a, p. 370)
Nosso autor não está propondo uma inversão mecânica das perspectivas
economicistas, caracterizadas pela determinação unilateral da estrutura social
sobre as superestruturas.13 Distancia-se, consequentemente, da abordagem vo‑
luntarista, segundo a qual os homens atuam livres das cadeias socioeconômicas
da estrutura dominante. A ênfase está na unidade dialética, presente na ativi‑
dade humana, entre ser e consciência, entre objetividade e subjetividade: “O
homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos puramente
subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou materiais, com
os quais o indivíduo está em relação ativa” (Gramsci, 2011a, p. 406). Tais im‑
plicações metodológicas são derivadas das relações objetivas que constituem a
12. Em Gramsci, a práxis social encontra-se fundada na atividade produtiva: “Se este é o ponto de
partida da ciência econômica e se assim foi fixado o conceito fundamental de economia, qualquer investigação
ulterior não poderá senão aprofundar teoricamente o conceito de ‘trabalho’”, o qual deverá “[...] ser fixado
naquela atividade humana que, em qualquer forma social, é igualmente necessária” (2011a, p. 334).
13. O estudo de Martins (2008) apresenta a vinculação orgânica entre a perspectiva teórico-metodológica
marxiana e aquela apresentada por Gramsci nos Cadernos. Em seu livro clássico, Buci-Glucksmann (1980)
chama a atenção também para a importância de Lênin na refundação da filosofia marxista realizada por
Gramsci.
568 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014
práxis social na história. Por isso mesmo, abordando o complexo das superes‑
truturas em sua interação com o conjunto das relações sociais, Gramsci asse‑
vera que o “raciocínio se baseia sobre a necessária reciprocidade entre estrutu‑
ra e superestrutura (reciprocidade que é precisamente o processo dialético real)”
(2011a, p. 251). A concepção da reciprocidade dialética inerente ao processo
histórico-concreto segue as fecundas indicações contidas no referido trecho do
“Prefácio” de 1859:
[...] nem materialista nem idealista, mas identidade dos contrários no ato históri‑
co concreto, isto é, atividade humana (história-espírito) em concreto, indissolu‑
velmente ligada a uma certa “matéria” organizada (historicizada), à natureza
transformada pelo homem. Filosofia do ato (práxis, desenvolvimento), mas não
14. Também Lukács (2012) identifica que o cerne estruturador do pensamento econômico de Marx se
funda na concepção de determinação recíproca das categorias que compõem o complexo do ser social, no
qual “o econômico e o extra-econômico convertem-se continuamente um no outro” (p. 310).
15. Kosik (1976) também apreende e explicita essa perspectiva de unidade presente na concepção
dialética de Marx recorrendo a categoria da práxis.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014 569
do ato “puro”, e sim precisamente do ato “impuro”, real no sentido mais profano
e mundano da palavra. (Gramsci, 2011a, p. 209)
570 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014
A importância do estudo da filosofia não está hipotecada, portanto, a qual‑
quer pretensão de sumariar uma história hipostasiada do pensamento da huma‑
nidade. A filosofia (ou filosofias) interessa na medida em que é “história”, na
medida em que faz parte da “história geral do mundo”, das relações sociais em
que vivem os homens, na medida em que possui implicações práticas nas trans‑
formações sociais concretas. A própria história da filosofia é entendida como a
história das tentativas e iniciativas ideológicas de determinadas classes para
modificar, corrigir e aperfeiçoar as concepções de mundo existentes, bem como
alterar as normas de condutas que lhes são relativas e adequadas, voltadas para
“mudar a atividade prática em seu conjunto” (Gramsci, 2011a, p. 325). Em
síntese, as ideologias importam porquanto assumem a condição de mediação
da reprodução social, dirigindo as vontades humanas, por meio da formação de
determinada consciência social, para resultar em efeitos práticos específicos na
sociedade, correspondente a problemas e interesses socioeconômicos concretos.
Essa força objetiva das ideologias é igualmente evidenciada na crítica ao
Ensaio popular de Nikolai Bukharin, quando Gramsci se detém sobre a con‑
cepção de “matéria”, inerente à filosofia da práxis. Afirma que a mesma é im‑
possível de ser entendida, seja no significado que resulta das ciências naturais
(as propriedades físicas, químicas, mecânicas etc.), seja através das diversas
metafísicas materialistas. Para aquela, a “matéria” não é relevante como tal,
mas como social e historicamente organizada pela produção, entendida essen‑
cialmente como categoria histórica: uma relação humana. O estudo mesmo dos
instrumentos de produção interessa — longe de ser estritamente pelas proprie‑
dades físico-químico-mecânicas dos seus componentes naturais —, porquanto
estes constituem um momento das formas materiais de produção, objeto de
determinadas forças sociais: enquanto expressam uma relação social e corres‑
pondem a um período histórico situado. Do mesmo modo, na medida em que
constituem objeto de forças sociais específicas e organizam a prática social dos
homens, orientando o metabolismo social, as formas de consciência possuem
uma força material. Esse é o valor histórico a partir do qual uma ideologia
assume relevância para a filosofia da práxis:
É possível dizer que o valor histórico de uma filosofia pode ser “calculado” a partir
da eficácia “prática” que ela conquistou (e “prática” deve ser entendida em sentido
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014 571
amplo). Se é verdade que toda filosofia é expressão de uma sociedade, ela deveria
reagir sobre a sociedade, determinar certos efeitos, positivos ou negativos: a medi‑
da em que ela reage é justamente a medida de sua importância histórica, de não ser
ela “elucubração” individual, mas sim “fato histórico”. (Gramsci, 2011a, p. 249)
572 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014
gicas e filosóficas, sem, com isso, limitar a abrangência e a complexidade
das relações analisadas. Utilizando tais noções, a unidade da atividade hu‑
mana sensível é reafirmada: os aspectos “superestruturais” fazem “bloco”
com a “estrutura anatômica”, e com todas as funções “fisiológicas”, pois “não
se pode pensar num indivíduo ‘despelado’ como sendo o verdadeiro ‘indiví‑
duo’, mas tampouco o indivíduo ‘desossado’ e sem esqueleto” (Gramsci,
2011a, p. 309).
A filosofia da práxis, impregnada pela “terrenalidade absoluta do pensa‑
mento”, não pode se furtar, portanto, às contradições estruturais das formações
classistas. Estas se expressam na elaboração de formas de consciência social
particularista, porquanto buscam organizar e dirigir a prática social dos homens
de acordo com seus interesses mutuamente excludentes, postos pelos antago‑
nismos da produção social. Numa polêmica passagem do Caderno 11, sobre a
“objetividade do conhecimento”, Gramsci informa a emergência das “ideologias
parciais”, “não universal-concretas”, vinculadas ao desenvolvimento das clas‑
ses sociais e suas lutas:
[...] mas este processo de unificação histórica [unificação de todo o gênero hu‑
mano em um sistema cultural unitário] ocorre com o desaparecimento das con‑
tradições internas que dilaceram a sociedade humana, contradições que são as
condições da formação dos grupos e do nascimento das ideologias não universal‑
-concretas, mas que envelhecem imediatamente, por causa da origem prática de
sua substância. (2011a, p. 134)
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014 573
sociais dos indivíduos” (Marx, 2008a, p. 46), as formas de consciência social
correspondem sempre aos interesses práticos de determinadas classes.16 Todavia,
a “contradição viva” (Marx, 2011) do capital reproduz a si mesma e, portanto,
o “lado negativo de sua antítese” (Marx e Engels, 2003). O proletariado — na
medida em que personifica o ser das forças do trabalho social e sofre as “cadeias
universais” da civilização burguesa — pode romper o horizonte das ideologias
parciais e assumir o movimento histórico que leva a formação das ideologias
universal-concretas. Tal remissão nos é útil na medida em que oferece indicações
para determinarmos a differentia specifica dos processos hegemônicos vincula‑
dos as classes subalternas.
De acordo com o autor dos Cadernos, a própria filosofia da práxis se
inscreve, com efeito, na superestrutura, consiste numa ideologia: um terreno
no qual “determinados grupos sociais tomam consciência do próprio ser
social, da própria força, das próprias tarefas, do próprio devir” (Gramsci,
2011a, p. 388). Nas notas carcerárias, o problema acerca do caráter de m
assas
dessa ideologia é colocado nos seguintes termos: “A filosofia da práxis sus‑
tenta que os homens adquirem consciência de sua posição social no terreno
das ideologias; ela excluiu o povo, por acaso, deste modo de tomar consciên‑
cia de si?” (Idem, p. 217). Da concepção do homem como um “bloco histó‑
rico” de elementos subjetivos e objetivos resulta que “todos os homens são
filósofos”, enquanto “atuam praticamente, e nesta sua ação prática (nas linhas
diretoras de sua conduta) está contida implicitamente uma concepção de
mundo, uma filosofia” (Idem, p. 325). Na filosofia da práxis, a luta de “hege‑
monias” políticas está orientada para “tornar os governados intelectualmen‑
te independentes dos governantes, para destruir uma hegemonia e criar uma
outra, como momento necessário da subversão da práxis” (Idem, p. 387). A
indicação informa a particularidade do movimento histórico inerente a essa
nova concepção do mundo, a qual se vincula organicamente ao próprio pro‑
cesso revolucionário:
16. Tal postulação abrange, inclusive, “as realidades das relações humanas de conhecimento” (Gramsci,
2011a, p. 315), desautorizando aquelas interpretações dos Cadernos que afirmam tendências subjetivistas de
Gramsci no tratamento das teorias do conhecimento. Esse é o caso de Coutinho (2011, 1999), cuja posição
foi criticada por Martins (2008) e Bianchi (2008).
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[...] as outras ideologias são criações inorgânicas porque contraditórias, porque
voltadas para a conciliação de interesses opostos e contraditórios; a sua “histori‑
cidade” será breve, já que a contradição aflora após cada evento do qual foram
instrumento. A filosofia da práxis, ao contrário, não tende a resolver pacificamen‑
te as contradições existentes na história e na sociedade, ou, melhor, ele é a própria
teoria de tais contradições; não é um instrumento de governo de grupos dominan‑
tes para obter o consentimento e exercer a hegemonia sobre as classes subalternas;
é a expressão destas classes subalternas, que querem educar a si mesmas na arte
do governo [...]. (Gramsci, 2011a, p. 388)
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Partindo do valor histórico das superestruturas, da sua relação de determi‑
nação recíproca com a estrutura social, fundada no estatuto ontológico da
própria práxis humana como “bloco histórico”, dois principais problemas são
colocados pelo comunista sardo para entendermos um “movimento histórico”:
1º) De que forma as classes subalternas podem alcançar uma consciência críti‑
ca e autônoma, que as torne um “grupo social homogêneo”, isto é, um “bloco
sociocultural” necessário à subversão da práxis?; 2º) Como conservar a unida‑
de ideológica em todo esse bloco social que está cimentado e unificado por
aquela determinada ideologia que se transforma em um movimento cultural?
Tais problemas suscitam, de uma parte, a determinação das “condições materiais
necessárias e suficientes” à “subversão da práxis” e, de outra parte, as mediações
sociais imprescindíveis à formação desse “movimento histórico”. Nesse con‑
junto de condições materiais e mediações sociais concretas, a questão dos in‑
telectuais é abordada, assim como o papel das “organizações culturais” (apare‑
lhos de hegemonia), dos partidos e do Estado.
576 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 119, p. 560-581, jul./set. 2014
seio da velha sociedade — estas proposições deveriam ter sido analisadas em toda
sua importância e consequências.17 (p. 140)
17. Na Miséria da filosofia (1847), outro texto de Marx a que Gramsci recorre diversas vezes nas suas
notas, uma passagem muito semelhante à do Prefácio foi formulada. Ver Marx (1989, p. 159).
18. Seguimos aqui algumas linhas de interpretação fornecidas por Bianchi (2006) e Braga (2002, 1996).
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gerais de história, de política, de economia, se relacionam numa unidade orgâ‑
nica” (2011a, p. 166).19 É evidente que o movimento histórico funda-se num
conjunto de premissas socioeconômicas, condizentes com o nível de aperfei‑
çoamento, quantidade e qualidade dos meios de produção e subsistência con‑
cretos que atendem às necessidades humanas situadas. Entretanto, essa não é,
definitivamente, a única determinação que fornece a direção do movimento
histórico, pois as necessidades sociais em causa ultrapassam aquelas premissas.
Segundo nosso autor:
Existe necessidade quando existe uma premissa efetiva e ativa, cujo conhecimen‑
to nos homens se tenha tornado operante, ao colocar fins concretos à consciência
coletiva e ao construir um complexo de convicções e de crenças que atua pode‑
rosamente como as “crenças populares”. Na premissa devem estar contidas, já
desenvolvidas, as condições materiais necessárias e suficientes para a realização
do impulso da vontade coletiva; mas é evidente que desta premissa “material”,
quantitativamente calculável, não pode ser destacado um certo nível cultural, isto
é, um conjunto de atos intelectuais, e destes (como seu produto e consequência),
um certo complexo de paixões e de sentimentos imperiosos, isto é, que tenham
força de induzir à ação “a todo custo”. (Gramsci, 2011a, p. 197)
19. Esses balizamentos teórico-metodológicos contradizem aquelas análises dos Cadernos que encerram
suas formulações em dualismos e esquematismos formais, como nos parece ser o caso do conhecido texto
de Anderson (2002).
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necessário à criação do movimento histórico, a filosofia da práxis, como uma
nova maneira de conceber o mundo e o homem, não pode ser reservada aos
grandes intelectuais; deve, ao contrário, “se tornar popular, de massa, com ca‑
ráter concretamente mundial, modificando (ainda que através de combinações
híbridas) o pensamento popular, a mumificada cultura popular” (Gramsci, 2011a,
p. 264). A própria atividade do filósofo “individual” pode ser concebida apenas
em função dessa unidade social que assume uma forma material, como função
de direção política que organiza a atividade prática das classes, ou seja, como
função de intelectual orgânico (Gramsci, 2011b).
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ENTREVISTA
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conselhos de administração de estatais e e subsídios para conglomerados do capi‑
do grande capital, juntaram-se ao novo tal monopolista aumentarem suas taxas
desenvolvimentismo e passaram a disputá‑ de lucro, sob o manto de uma política
-lo, visando dar um caráter “social”, “es‑ industrial e de inovação tecnológica, a
tatista” e “nacionalista” à nova ideologia. chamada política de “campeãs nacionais”;
Criaram uma falsa disputa entre burguesia 4) aumento da massa salarial e do crédito
produtiva e burguesia rentista, Estado e para ampliação do consumo do mercado
mercado, nacional e estrangeiro, interven‑ interno e; 5) nas expressões mais agudas
cionistas e privatistas, e foram pautados, da “questão social”, a política social de
política e ideologicamente, pelos antigos transferência de renda de larga abran‑
neoliberais. Continuaram hegemonizados gência e focalizada nas camadas mais
pelas antigas frações dominantes do bloco miseráveis da nossa sociedade.
de poder e passaram a ser linha auxiliar do Pode-se perceber, em suma, que gran-
status quo, influenciando aqui e acolá de‑ de parte da agenda do novo desenvolvi‑
cisões do governo sem, no entanto, mudar mentismo é, com ligeiras mudanças, uma
o essencial. Diante dos recentes protestos apropriação consciente das antigas e des‑
populares, perderam toda a credibilidade gastadas medidas neoliberais, destacando‑
que porventura acumularam nos últimos -se as garantias de reativação das taxas de
tempos e hoje buscam se endireitar. Mas lucro do grande capital e de transferência
ainda deverão permanecer no poder, por de quase metade dos recursos do orça‑
conta de ausência de alternativas concretas mento público para as frações rentistas
tanto pela direita quanto pela esquerda. das classes dominantes.
Como principais propostas, o novo
Entrevistadora – É possível traçar um
desenvolvimentismo defende: 1) comple‑
paralelo entre as propostas atuais e o
mentariedade da atuação de um Estado for‑
nacional desenvolvimentismo do período
te nas falhas de mercado, com o objetivo
1950-70? Ou o debate atual é apenas re‑
de fortalecê-lo, leia-se fortalecer o atual
tórico e ideológico?
padrão de reprodução do capital imposto
desde os anos 1980/90 e aprofundá-lo e Rodrigo Castelo – O debate atual tem
consolidá-lo no século XXI; 2) na polí‑ uma forte base retórica, mas vale lembrar
tica econômica: responsabilidade fiscal, que toda ideologia — por mais alienante
superávit primário, metas inflacionárias, e mistificadora que seja — tem um fun‑
câmbio flutuante e tributação regressiva, damento na atuação concreta de grupos
com intervenções pontuais no câmbio e e classes sociais. O novo desenvolvi‑
nos juros; 3) incentivos fiscais, tributários mentismo almeja se legitimar na batalha
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das ideias como um resgate do nacional‑ 25 anos, nem sequer foram pautadas pelos
-desenvolvimentismo, mas é tão somente governos do PT e seus aliados quando
uma pálida sombra do passado. Sua exis‑ estes ainda ocupavam a esquerda da
tência está muito fragilizada porque não cena política. Importantes organizações
conta com uma efetiva base social, que da classe trabalhadora e da juventude
foi solapada pelas recentes manifestações ficaram ainda mais passivas e cooptadas,
massivas de junho/julho. Arrisco dizer que sem capacidade de mobilização, tendo se
o novo desenvolvimentismo não irá se tornado inclusive gestores dos fundos de
recuperar desse duro golpe. Talvez tenha pensão, consultores e lobbistas de grandes
entrado na sua crise terminal... empresas. A indústria sofreu duros golpes
No passado, o nacional-desenvolvi‑ pela competição externa, e os setores de
mentismo fez a cabeça de amplos setores ponta foram desconstruídos. Na última
da esquerda brasileira. Defendeu que a década decidiram apostar no agronegócio
industrialização impulsionada e planejada e na mineração como a melhor forma de
pelo Estado em comunhão com o grande inserção na nova divisão internacional do
capital nacional seria capaz de romper com trabalho. Os usineiros foram declarados
a inserção subordinada do Brasil na divi‑ “heróis nacionais”, abandonou-se a refor‑
são internacional do trabalho, desenvolver ma agrária, diminuiu-se drasticamente a
nossas forças produtivas, gerar emprego demarcação de terras indígenas e criaram‑
e distribuir renda e riqueza com ganhos -se marcos regulatórios mais flexíveis com
para capitalistas e trabalhadores. No plano a destruição ambiental. Por fim, o Estado
político, mobilizou, de fato, amplas cama‑ brasileiro continuou um processo de pri‑
das populares, com setores organizados da vatização dos bens públicos na forma de
classe trabalhadora e camponesa voltados parcerias público-privadas, concessões e
para profundas reformas de base. O resul‑ venda direta do patrimônio, abdicando
tado foi bem diferente e mais amargo: o da sua capacidade de planejamento da
capital estrangeiro dominou o nacional, a economia nacional.
dependência aprofundou-se e a distribui‑ Ora, se o critério da verdade é a prática, co-
ção de renda e riqueza agravou-se junto mo nos ensinam as teses sobre Feuerbach,
com a superexploração do trabalho, mas, isto em nada se assemelha ao nacional‑
pelo menos, importantes batalhas foram -desenvolvimentismo. É, no fundo, uma
travadas em nome dos trabalhadores da decadência ideológica do pensamento
cidade e do campo. social brasileiro e um oportunismo polí‑
Hoje nada disto está em questão. Ne‑ tico de setores que antes formaram parte
nhuma reforma foi aprovada nos últimos da esquerda. Tenho consciência que esse
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balanço é duro, mas devemos exercer o nas e externas, tanto do latifúndio quanto
pessimismo da razão, conjugando-o ao do imperialismo, além do empresariado
otimismo da vontade de mudar a nossa industrial no qual se depositaram falsas
realidade a partir de uma militância orgâ‑ esperanças.
nica em partidos políticos, movimentos A autocracia burguesa espalhou-se por
sociais, associações profissionais e sindi‑ toda a América Latina, sepultando a via
catos, cooperativas, conselhos etc. nacional-democrática de transformação
social. Houve um massacre às organi‑
Entrevistadora – Você considera viável
zações e aos militantes que resistiram.
a retomada de teses desenvolvimentistas
Essa foi uma das grandes lições daquela
em um contexto de crise da hegemonia
conjuntura, e não devemos esquecê-la
neoliberal, mas com o capital financeiro
jamais, pois é impossível confiar no papel
e globalizado seguindo seu rumo sem
progressista da burguesia. Esta classe,
amarras e sem controle social?
quando consolidou a sua supremacia,
Rodrigo Castelo – Nos anos 1950-70, tornou-se conservadora e, no caso brasi‑
algumas frações das burguesias latino‑ leiro, acentuou o seu caráter reacionário.
-americanas, com relativo apoio popular, Por que agora, em pleno século XXI,
tentaram construir os modelos desen‑ com o aprofundamento do imperialismo,
volvimentistas de soberania nacional. da dependência, do latifúndio, da expro‑
Defendeu-se um processo de industriali‑ priação dos meios de produção dos povos
zação — o modelo de substituição de im‑ originários e dos camponeses, da superex
portações — sob a hegemonia do capital ploração da classe trabalhadora, seria
industrial e com ações coordenadas pelo possível retomarmos a antiga tragédia do
planejamento do Estado, que seria então nacional-desenvolvimentismo? Primeiro,
dirigido por uma burocracia progressista o contexto histórico é totalmente diverso
supostamente acima dos interesses das e a história não se repete, a não ser como
classes sociais. O crescimento econômico farsa. Fica no ar uma sensação de saudo‑
e o aumento da massa salarial derivados sismo sem fundamento histórico. Segun‑
da industrialização atrairiam o apoio de do, o antigo projeto se mostrou baseado
setores da classe trabalhadora, que da‑ em ilusões políticas, como os mitos da
riam uma base popular aos projetos de burguesia nacional, da burocracia estatal
desenvolvimento nacional. No Brasil, neutra e acima das classes, do capitalismo
Argentina e México, em especial, esses regional autônomo do imperialismo. Ora,
projetos tentaram alçar voo, mas foram o sujeito histórico fiador do nacional‑
abatidos por forças conservadoras inter‑ -desenvolvimentismo — a “burguesia
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nacional” — se mostrou, nos dizeres de Entrevistadora – Qual é a crítica marxista
Vânia Bambirra, como uma classe domi‑ ao chamado mito do desenvolvimento
nante dominada, isto é, aliada do imperia‑ capitalista? Que autores marxistas mais
lismo e do latifúndio, nunca tendo lutado contribuem para uma análise crítica desse
de fato pelos interesses dos trabalhadores. projeto? Qual a importância da retomada
E o Estado, nos momentos de agudização do pensamento social brasileiro e latino‑
das lutas sociais, afirmou — como sempre -americano para esse debate?
faz, ontem e hoje! — seu caráter classista
Rodrigo Castelo – A crítica marxista ao
da supremacia burguesa. Por fim, o im‑
chamado mito do desenvolvimento capi‑
perialismo, após a Revolução Cubana,
talista começou com o “esboço genial”
fechou todas as portas do desenvolvimento
de crítica à economia política de Engels
autônomo e passou a atuar enfaticamente
em 1844 e prosseguiu com seu livro A
contra todo projeto nacional popular com
situação da classe trabalhadora na In‑
tendências socialistas, como ocorreu no
glaterra. Depois Marx seguiu as trilhas
Chile, Nicarágua, El Salvador e Granada.
do companheiro de lutas e traçou um
Ou seja, as classes dominantes sequer per‑
ambicioso plano de estudos, que deságua
mitem uma agenda reformista na América
no livro I de O capital, obra finalizada
Latina. Por isto temos que queimar a etapa
com três capítulos primorosos de crítica
democrático-burguesa e passar direto à
ao desenvolvimento capitalista: lei geral
socialista com hegemonia do proletariado,
da acumulação capitalista, a chamada
tratando as questões nacionais, democrá‑ acumulação primitiva e teoria moderna
ticas, agrárias etc. como elas merecem e da colonização. Entre esses momentos
os trabalhadores necessitam. da juventude e da maturidade, Marx e
Por esses motivos, não creio que seja Engels, ainda marcados por um euro‑
possível — nem desejável — ressuscitar‑ centrismo bastante forte, fizeram leituras
mos ou reeditarmos as vias nacional-de‑ muito instigantes sobre o desenvolvimento
mocrática e democrático-popular. Estas, capitalista em regiões periféricas do mer‑
ou foram derrotadas nos anos 1950-70, cado mundial, como Alemanha, Índia,
ou se mostraram um fracasso no poder Irlanda e Espanha. Já no final da vida eles
com os governos do PT. É preciso ir além escreveram sobre a Rússia e reavaliaram
desse nível de consciência e organização muitas das suas antigas posições teóricas
e retomar o debate do caráter socialista da e políticas, admitindo a possibilidade da
revolução brasileira, sem repetirmos os revolução socialista em regiões de baixo
erros do passado de uma postura sectária desenvolvimento das forças produtivas
e dogmática. capitalistas.
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Duas gerações seguintes, um conjunto Resumidamente, tais autores iden‑
de revolucionários comunistas se apro‑ tificam algumas linhas-mestras sobre o
priou com muita criatividade das três fon‑ desenvolvimento capitalista: 1) a pobre‑
tes do marxismo e fez análises concretas za não é ausência de riqueza, mas sim
de situação concreta do desenvolvimento resultado de como a riqueza é produzida,
capitalista na periferia que ainda hoje tem distribuída e consumida numa sociedade
validade, desde que façamos as devidas baseada na propriedade privada e na ex‑
mediações históricas. Refiro-me a Lênin, ploração da força de trabalho — ambas,
Rosa Luxemburgo, Bukhárin, Trotski, riqueza e pobreza, formam contrários de
Gramsci, Julio Mella, Mao Tsé-tung, uma mesma unidade; 2) o mesmo se aplica
José Carlos Mariátegui, Mário Pedrosa, ao subdesenvolvimento e à dependência.
Caio Prado Jr. e outros. Com a vulgata Estas não são ausência do desenvolvimen‑
estalinista, muitos desses revolucionários to capitalista na periferia, mas justamente
foram esquecidos ou apagados, e leituras a forma como se conforma o capitalismo
esquemáticas e evolucionistas do de‑ nas regiões dependentes e exploradas. Por‑
senvolvimento capitalista prevaleceram tanto, socialistas e comunistas não devem
dentro da tradição marxista. É preciso contribuir com a burguesia (ou qualquer
retomar tal tradição para entendermos a outra classe dominante) nas suas tarefas
nossa peculiar forma de desenvolvimento de desenvolver o capitalismo, para depois,
histórico, que mescla modos de produção então, pautarem a transição socialista.
diversos dominados pelo capitalismo. Ademais, as classes dominantes estão his‑
toricamente vinculadas ao imperialismo
Nos anos 1960-70, surge uma terceira
e nunca construíram um projeto nacio‑
geração de revolucionários aqui na Amé‑
nal, muito menos democrático. Quando
rica Latina que resgata tais reflexões no
surgiram movimentos revolucionários e
marxismo para entender a nossa situação
reformistas, estes foram sufocados por
de dependência interna e externa e os
contrarrevoluções e revoluções passivas
caminhos da revolução. Podemos evocar
brutais.
os nomes de Fidel Castro, Che Guevara,
Carlos Marighella, Ruy Mauro Marini, Entrevistadora – Quem são os novos
Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, intelectuais do novo desenvolvimentis‑
Florestan Fernandes, Jacob Gorender e mo no Brasil e seus principais espaços
autores socialistas como André Gunder acadêmicos e políticos, ou em termos
Frank, Clóvis Moura, Darcy Ribeiro, gramscianos, os aparelhos de hegemonia
Francisco de Oliveira, Octavio Ianni, que difundem hoje as ideias e propostas
Pablo González Casanova e tantos outros. políticas desse projeto?
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Rodrigo Castelo – O novo desenvolvi‑ Aloisio Mercadante. Eles têm uma ampla
mentismo comporta algumas subdivisões organização em aparelhos privados e es‑
internas. Não é um bloco ideológico tatais: Centro Internacional Celso Furtado
homogêneo, embora se possa identificar de Políticas para o Desenvolvimento, Rede
uma hegemonia do chamado social-desen‑ Desenvolvimentista, Fundação Perseu
volvimentismo. Mas vamos começar pela Abramo, ministérios governamentais e,
corrente da macroeconomia estruturalista principalmente, o BNDES. São próximos
do desenvolvimento: neste grupo despon‑ do empresariado paulista, de sindicatos e
tam Luiz Carlos Bresser Pereira e seus de partidos políticos, em especial o PT, e
assessores e discípulos, na sua maioria têm ampla entrada com setores da mídia
ligados à Fundação Getúlio Vargas de São brasileira. Por terem parte do controle so‑
Paulo, a Revista de Economia Política e bre o BNDES — um dos maiores bancos
a Associação Keynesiana Brasileira, bem de desenvolvimento capitalista no mun-
como a outros centros universitários es‑ do, com desembolsos anuais na casa de
palhados pelo país (e mundo afora). São R$ 150 bilhões —, conseguem exercer
politicamente próximos do PSDB e de ou‑ relativa influência sobre os rumos da po‑
tros grupos de centro-direita, mas não são lítica econômica. Neste caso, a ideologia
quadros partidários. Sua força não deve ganha materialidade e interfere, inclusive,
ser desprezada, pois conseguem, a partir no padrão de reprodução do capital, o que
de seus aparelhos privados de hegemonia não é pouca coisa. Muitos queriam ocupar
— financiados com recursos de grandes postos-chave neste aparelho coercitivo de
empresas e com apoio de oligopólios da espoliação.
mídia —, exercer influência em setores do Houve no início do novo desenvol‑
empresariado, governo, intelectualidade e vimentismo uma terceira corrente, a
“opinião pública”. pós-keynesiana, mas esta me parece que
Em segundo lugar, temos o autointi‑ foi incorporada pela macroeconomia
tulado social-desenvolvimentismo, com estruturalista do desenvolvimento. Sem‑
destaque para professores universitários pre foram posições muito similares e
dos Institutos de Economia da Unicamp decidiram cerrar fileiras para disputar a
e UFRJ, como os decanos Maria da Con‑ hegemonia no bloco ideológico do novo
ceição Tavares, João Manuel Cardoso de desenvolvimentismo, ainda sem conquis‑
Melo e Luiz Gonzaga Belluzzo, e seus tas expressivas.
antigos estudantes e hoje personalidades Por fim, vale destacar que existem
públicas, como Luciano Coutinho, Mar‑ fricções políticas entre tais correntes e elas
cio Pochmann, Ricardo Bielschowsky e sobem de tom de acordo com uma conjun‑
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tura mais intensa como a atual, mas não se educação superior, marcos do social‑
discute o essencial: o caráter capitalista do -liberalismo.
desenvolvimento das forças produtivas e O neodesenvolvimentismo vê a redução
das relações sociais de produção e repro‑ das desigualdades sociais e o combate ao
dução do capitalismo dependente brasilei‑ pauperismo por um viés economicista, de
ro. Ambos os grupos defendem o mesmo geração de renda nas camadas pobres volta‑
projeto estratégico, com diferenças táticas, da para a formação de um mercado de mas‑
de ajuste de uma curva macroeconômica sas. O objetivo é gerar uma base econômica
(ou micro) qualquer em dois graus para de venda interna das mercadorias, portanto,
lá, dois para cá. Nada muito substancial de realização da mais-valia. As principais
que leve a uma avaliação de que o novo apostas são no crescimento econômico, na
desenvolvimentismo estaria em disputa. geração de empregos formais, nos aumen‑
tos dos salários e do crédito e na alocação
Entrevistadora – Qual é, na sua visão, a de recursos nas políticas de transferência de
importância da apropriação deste debate renda. Ou seja, o mercado é tido pelo neo‑
para a análise das políticas sociais imple‑ desenvolvimentismo como o principal meio
mentadas pelo governo brasileiro a partir de melhorar o bem-estar da população, com
do governo Lula? Elas poderiam ser cha‑ uma ação auxiliar do Estado no alívio da
madas de neodesenvolvimentistas ou são extrema pobreza e outras expressões mais
mais uma expressão do social-liberalismo agudas da “questão social”.
à brasileira? Durante um período, as apostas econô‑
Rodrigo Castelo – No caso das políticas micas citadas acima tiveram determinado
sociais, o atual padrão de intervenção do efeito concreto e os ideólogos neodesen‑
Estado na “questão social” é fundamen‑ volvimentistas souberam capitalizar os
talmente baseado na ideologia do social‑ indicadores sociais. Mas ocultaram o es‑
-liberalismo. O neodesenvolvimentismo sencial: o crescimento era efêmero e hoje
segue a cartilha neoliberal da equidade, exibe taxas pífias, dignas dos governos
da igualdade de oportunidades e dos pro‑ FHC; os empregos tinham baixíssimos
gramas de transferência de renda de alívio salários, condição alienante precarizada e
da pobreza, tal qual defendem o Banco a maior taxa de rotatividade do mundo; a
Mundial e outros organismos multilaterais dívida contraída nos crediários consome
desde os anos 1990. Os neodesenvolvi‑ boa parte da renda dos trabalhadores, di‑
mentistas corroboram a assistencialização recionando frações crescentes dos salários
das políticas sociais e silenciam sobre para os rentistas; e os recursos das políticas
a privatização da previdência, saúde e de transferência de renda não são capazes
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de atender necessidades humanas de forma por meio de políticas econômicas e sociais
humanista. Não devemos naturalizar que implementadas nos últimos 10-20 anos.
benefícios sociais na faixa dos 80, 90, 100 Nada mais atual do que a luta contra o
reais per capita irão promover melhorias neoliberalismo, que vive uma crise mun‑
efetivas na vida de um ser humano. E não dial mas ainda mantém a sua supremacia
estamos falando de um país pobre, sem no Brasil (e tantos outros países!), recor‑
recursos, pois o Brasil é a sexta maior rendo cada vez mais a medidas coercitivas.
economia do mundo. No nosso país, não A esperança desta luta contra o neo‑
há uma escassez natural, mas sim uma liberalismo renasceu com as recentes
escassez socialmente produzida para mais manifestações populares no mundo inteiro.
de uma centena de milhões de brasileiros Espero que tais levantes representem o
que não acessam a riqueza nacional, início do fim do neoliberalismo.
concentrada nas mãos de um punhado de
famílias abastadas.
É preciso lutar arduamente contra as
novas formas históricas que a lei geral da Recebido em 15/5/2014
acumulação capitalista assume no Brasil ■
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RESENHA
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brasileiro, se apresenta aos novos leitores A partir da análise exposta na p rimeira
bastante modificado com a introdução de etapa encontramos na segunda parte do
novos e importantes elementos, bem como livro quatro textos que realizam uma
uma oportuna atualização bibliográfica abordagem teórico-histórica do samba en‑
sobre a temática da “questão social”, um quanto expressão sociocultural brasileira,
dos principais eixos articuladores do livro. analisando a gênese histórica, o processo
Na sequência, encontramos um impor‑ formativo e suas diversas transformações
tante ensaio escrito por Carlos Nelson ao longo do desenvolvimento particular do
Coutinho em sua juventude e que oferece capitalismo no Brasil. Ao buscar as raízes
os elementos essenciais que direcionam para uma análise concreta do fenômeno
a tônica analítica do livro. No texto, cultural do samba, Marcelo Braz abre a
Coutinho analisa pormenorizadamente a segunda parte do livro realizando uma
problemática da questão cultural brasileira recuperação histórica que procura vincular
e examina as características específicas da
o surgimento dessa práxis artístico-cultural
intelectualidade nacional interligando-as
às particularidades da “questão social” bra‑
ao modo particular de desenvolvimento
sileira e à categoria de questão cultural. Na
capitalista em nosso país. Nesse já clássico
sua análise sobre o samba, Braz demonstra,
ensaio, essencial para desvendar as par
por meio de elementos histórico-concretos,
ticularidades do caldo cultural tupiniquim,
alternativas para a construção de uma iden‑
Coutinho mostra como o desenvolvimento
tidade nacional-popular e para a resistência
do capitalismo monopolista, ao reforçar
cultural ao autoritarismo das elites e ao
os traços elitistas e autoritários da “via
“intimismo à sombra do poder”, cultura
prussiana” brasileira, robusteceu o papel
intelectual típica da via prussiana brasilei‑
das tendências culturais “intimistas”,
estimulando na nossa intelectualidade ra. Em seguida, Augusto Lima traz uma im‑
a reprodução histórica de uma cultura portante contribuição ao livro oferecendo
neutralizadora e asséptica que ratifica um rico panorama histórico da sociedade
aquilo que Lukács chamava de “apologia brasileira entre o final do século XIX e o
indireta do existente”. Finalizando essa início do XX, berço no qual nasceu o ritmo
primeira etapa, Marcelo Braz, ancorado e todas as características que compõem o
nas elaborações estéticas de Marx, Engels samba brasileiro. Para complementar, o
e de Gyorgy Lukács, articula com argúcia texto de Victor Neves reúne uma série de
as análises sobre a peculiaridade da criação questões teóricas e elementos históricos
artístico-cultural e o significado social do interessantes que mostram o impacto das
samba enquanto manifestação da “questão contradições particulares do capitalismo
social” e expressão particular da questão no Brasil sobre o processo criativo e a
cultural no Brasil. vida cotidiana dos sambistas nas periferias
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u rbanas, formando um ótimo roteiro de Coutinho, profundo conhecedor das obras
estudos para os interessados em tratar a de Paulinho da Viola, que no primeiro
temática da música popular brasileira e do artigo nos oferece um resgate primoroso
samba em particular. Por fim, encerrando a da criação desse importante sambista ca‑
segunda parte, Marcelo Braz apresenta um rioca e também um delicioso texto sobre a
texto que procura fazer justiça a um dos crônica da “questão social” na “linguagem
mais importantes pesquisadores da música marginal” do samba de Bezerra da Silva.
popular brasileira: José Ramos Tinhorão. O leitor que porventura decidir en‑
O texto vai além da obra de Tinhorão e frentar as 246 páginas dessa obra se de‑
recupera criticamente algumas ideias do parará com uma leitura leve e agradável,
polêmico autor, procurando resgatá-lo que contém muitas vezes um conteúdo
de um exílio a que foi forçosamente sub‑ poético — típico de intelectuais que
metido pelas tendências “culturalistas” e apreciam e estão próximos das expressões
pós-modernas contemporâneas. artísticas do povo —, mas que de maneira
Na última parte da obra são analisados alguma abre mão do rigor teórico e da
aspectos particulares do universo do sam‑ perspectiva crítica na análise da realidade
social e cultural do Brasil. Além de se
ba e da vida cotidiana dos sambistas, seus
configurar como um livro imprescindível
principais expoentes, cronistas, poetas,
para pesquisadores e especialistas que se
compositores e suas obras, contextualizan‑
interessam por uma análise crítica sobre
do-os em sua época histórica e mostrando
o ritmo, as crônicas e a poesia do samba,
como suas crônicas e composições, suas
a publicação é de leitura obrigatória para
letras e ritmos, expressam a formação da
aqueles intelectuais que intentam romper
identidade cultural brasileira na marcha
com a cultura elitista e intimista presentes
das contradições típicas da “questão so‑
na sociedade brasileira. Dessa forma, a
cial”. Desde o belo texto de Luiz Ricardo obra, ao realizar uma análise concreta das
Leitão sobre o “poeta da Vila” Noel Rosa, características histórico-sociais do samba,
passando pelas lúcidas análises de Marcelo enquanto expressão artística e cultural
Braz sobre os traços de conformismo e das contradições particulares da “questão
resistência presentes nas composições de social” brasileira, oferece também ins‑
Wilson Batista e Noel Rosa, até o impor‑ trumentos teóricos imprescindíveis para
tante texto de Guilherme Vargues sobre melhor pintar nossa aldeia chamada Brasil.
as relações de dois grandes sambistas
Paulo da Portela e Antonio Candeia com
as escolas de samba do Rio de Janeiro. Recebido em 29/5/2014
Para fechar o livro, são apresentados aos ■
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