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Jéssica Marcelino

Psicologia – UNIP Paraíso

5. OS PROCEDIMENTOS DE CONTENÇÃO DO EU

Algumas medidas tomadas para o restabelecimento de referências para a


colocação do homem no mundo serão tratadas; elas estão voltadas ao próprio eu
na figura do auto-controle.

A nova valorização do ser humano e a imposição de que ele construa


existência e descubra valores segundo os quais viver, leva à tentativa de criação
de mecanismos para o domínio e formação do eu. É na formação destes
procedimentos (“modos de ser”) que poderemos começar a reconhecer os rumos
que levarão à Psicologia. Citando uma vez mais Figueiredo:

“(...) tão importantes ou até mais importante do que a abertura de


espaços de liberdade individual, como se vê acontecendo ao longo do processo
de desintegração das ‘civilizações fechadas’, são as tentativas de circunscrever
estes espaços. Assim sendo, as experiências subjetivas no sentido moderno do
termo e que vieram a se converter em objeto de um saber e de uma intervenção
psicológicos devem a sua emergência tanto às vivências de diversidade e ruptura
como às tentativas de ordenação e costura, ou seja, a todas as práticas reformistas
que implicavam uma subjetividade individualizada e uma tensão sustentada entre
áreas ou dimensões de liberdade e áreas ou dimensões de submissão. (...) Como se
vê, o ‘indivíduo’, ao contrário do que o termo sugere, nasce da dispersão e traz
uma cisão interior inscrita em sua natureza.”

Impõe-se ao homem, a partir de agora, escolher o seu caminho e isso


implica em construção da identidade. O corpo e suas funções serão calados em
favor da coesão e da ordem do sujeito. No Renascimento, portanto, coloca-se a
seguinte questão: posso escolher um bom caminho e ser recompensado por isso
ou escolher um mal caminho e ser responsabilizado. Então, o que devo ser?
Como construir uma identidade?

Há vários exemplos de construção de identidade no Renascimento, um


deles é Dom Quixote de La Mancha, que se identifica com o ideal de cavaleiro
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andante medieval e procura afirmar-se. Mostra que a afirmação de uma


identidade coesa pode se assemelhar à alucinação, na medida em que ela deve
impor-se sobre o mundo, ele próprio em frangalhos.

Outro exemplo, mas agora concreto, é o pensamento religioso, guiando


o sujeito de volta a Deus com Santo Ignácio de Loyola.

TEXTO ANEXO – Santo Ignácio de Loyola

EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS: “(...) Porque; assim como passear,


caminhar e correr são exercícios corporais, também se chamam exercícios
espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de
si todas as afeições desordenadas, e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a
vontade de Deus, na disposição da sua vida para o bem da mesma pessoa.”

REGRAS PARA SENTIR VERDADEIRAMENTE COMO SE DEVE


NA IGREJA MILITANTE: 1ª Regra. Renunciando todo juízo próprio,
devemos estar dispostos e prontos a obedecer em tudo à verdadeira esposa de
Cristo Nosso Senhor, isto é, à santa Igreja hierárquica, nossa mãe.

17ª Regra: Igualmente não devemos insistir tanto na graça a ponto de


produzir o veneno que nega a liberdade. Pode-se com certeza falar da fé e da graça,
mediante o auxílio divino, para maior louvor de sua divina Majestade, mas não de
tal forma nem por tais modos, mormente em nossos tempos tão perigosos, que as
obras e o livre-arbítrio sejam prejudicados ou mesmo negados.

Assim, a liberdade humana é reconhecida apenas para lhe atribuir a


causa da perdição humana. Curiosamente, a salvação implica justamente em
abrir mão de forma absoluta dessa liberdade, transferindo-a à autoridade
religiosa com toda a boa-vontade e determinação. A submissão do sujeito deve
ser absoluta, esse é o preço a pagar pelo repouso numa certeza sem conflitos.
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Parte daqui a Psicologia de auto-ajuda. A crença na liberdade humana


absoluta, que diz que podemos atingir quaisquer que sejam nossos objetivos,
envolve um forte sentimento de culpa: se somos o que fazemos de nós, esta
infelicidade na qual nos encontramos foi produzida por nós, nós a merecemos,
sendo, portanto, negligenciada a genética as determinações históricas, socias,
etc.

MÚSICA – UMA POLIFONIA MAIS COMPORTADA

“Fuga”: estilo próprio de séc. XVII. Mesmo as letras parecem mais


comportadas, evocando a contra-reforma. Busca ordem dentro da diversidade.

Já mais no final do século, encontramos uma música propriamente


equilibrada e muito bonita, um dos melhores frutos da religião, a música sacra.

Outro exemplo bem mais cruel e naturalista de procedimento de


afirmação do sujeito: O Príncipe, de Maquiavel, começo do séc. XVI. Como
deverá ser um príncipe, ser seu “eu”. Princípio ético é o da afirmação do poder,
mesmo que para isso tenha que matar. Maquiavel foi considerado imoral e
desumano (maquiavélico).

Sem dúvida, por mais que possa parecer estranho, há uma série de pontos
em comum entre este procedimento e o prescrito por Santo Inácio. Ainda que
um afirme o valor do humano e o outro o retorno a Deus, ambos creem na
necessidade da afirmação do sujeito através de procedimentos radicais e
estreitos. Mas com Maquiavel, estamos diante de um mundo sem ideal, no qual a
imposição do sujeito se faz necessária por uma concepção naturalista e egoísta do
homem: não há apenas o elogio do homem como no Renascimento. É disso que
trataremos na próxima parte.

Acrescento ainda uma diferença essencial entre os dois: Santo Inácio


pensa que seu procedimento é acessível a todos, enquanto que Maquiavel, ao
menos nessa obra, refere-se a afirmação de um único sujeito, em detrimento
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dos demais. Ele trata da constituição do Estado, como Hobbes, no século seguinte,
a quem antecipa.

QUESTÕES PARA DISCUSSÃO

1. Como se relaciona a crença na liberdade do homem e a tentativa de


submetê-lo a uma ordem disciplinar rígida no século XVI?

Com a ideia de liberdade, de abertura de espaço, surge a preocupação com


a circunscrição desse espaço, de forma a construir uma identidade, mas de forma
coesa, delimitando o corpo e suas funções em favor da ordem do sujeito. A nova
valorização do ser humano e a imposição de que ele construa existência e descubra
valores segundo os quais viver, leva à tentativa de criação de mecanismos para o
domínio e formação do eu.

2. Quais as semelhanças entre Santo Inácio de Loyola e Maquiavel?

Ainda que um afirme o valor do humano e o outro o retorno a Deus, ambos


creem na necessidade da afirmação do sujeito através de procedimentos radicais e
estreitos. Mas com Maquiavel, estamos diante de um mundo sem ideal, no qual a
imposição do sujeito se faz necessária por uma concepção naturalista e egoísta do
homem: não há apenas o elogio do homem como no Renascimento. Acrescento
ainda uma diferença essencial entre os dois: Santo Inácio pensa que seu
procedimento é acessível a todos, enquanto que Maquiavel, ao menos nessa obra,
refere-se a afirmação de um único sujeito, em detrimento dos demais.

3. Quais poderiam ser as relações entre os “Exércitos Espirituais” e as


atuas terapias de auto-ajuda?
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Assim como em Exércitos Espirituais, de Santo Ignácio de Loyola, que dispõe um


renúncia, uma escolha, submissão absoluta como o preço a pagar pelo repouso
numa certeza sem conflitos, na terapia de auto-ajuda, a crença na liberdade humana
absoluta, que diz que podemos atingir quaisquer que sejam nossos objetivos,
envolve um forte sentimento de culpa: se somos o que fazemos de nós, esta
infelicidade na qual nos encontramos foi produzida por nós, nós a merecemos,
sendo, portanto, negligenciada a genética as determinações históricas, socias, etc.

6. A POSIÇÃO DE CRÍTICA À APARÊNCIA

A glorificação do eu não é absoluta. A Modernidade contém


procedimentos tanto para a construção do eu quanto para a sua desconstrução.

No século XVI há uma outra postura quanto ao valor do ser humano. Há


uma crítica quanto ao homem ser ideal e, assim como Maquiavel, aponta-se para
uma eventual maldade e vaidade humanas. Há relações complexas com o
humanismo. Pois, ora o afirma, ora o arrasa.

Reconhece-se em Shakespeare os fundamentos mais expressivos da


Modernidade. Montaigne faz nascer o ceticismo, face à instabilidade e insegurança
de tudo. Não podendo confiar ou acreditar em nada, afasta-se da vida social e
escreve Ensaios., que trata da própria formação do sujeito Montaigne.

Dois aspectos do ceticismo: 1. Fideísmo: crítica ao valor crescente


atribuído ao homem, mostrando sua insignificância; tem finalidade de fazê-lo voltar
novamente a Deus. Para alguns fideístas, a razão humana seria inferior à fé. 2. Na
verdade, há um ceticismo que defende que a possibilidade de crença em alguma
referência absoluta parecerá insustentável (a obra de Montaigne leva a crer que ele
se filia a esse segundo grupo. Para ele, diferente e Descartes, o eu é algo inconstante
e inacabado, que e forma continuamente num processo reflexivo).
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Trata-se da introspecção, daquela conversa proveitosa consigo mesmo,


que Bloom reconhece como cânone ocidental (aquilo que caracterizaria a
Modernidade ocidental). Montaigne vive a diversidade e busca afirmar-se enquanto
ser particular, como se pode ver na citação abaixo:

Não cometo esse erro tão comum de julgar os outros por mim. Acredito de
bom grado que o que está nos outros possa divergir essencialmente daquilo que está
em mil. [...] concebo mil e uma maneiras diferentes de viver [...] espantam-me bem
menos as diferenças entre nós do que as semelhanças. [...] Já é muito ter boa vontade
mesmo que as pernas fraquejam.

Desse ponto surge o mundo interno ou privacidade; o universo de nossos


pensamentos, fantasias, projetos, ‘encanações’ e auto-tormentos.

O segundo ponto a retomar é o de que o Renascimento é um elogio ao ser


humano. Estamos, aqui, longe do humanismo; elogiam-se outras coisas. Vertente
crítica a qual Montaigne pertence, marcada pela melancolia e humor irônico,
altamente crítico.

O elogia da loucura de Rotterdam, ligado à Igreja, Rotterdam tina a


intenção de fazer um apelo por reformas na burocratização e hipocrisia da Igreja.
Mas atinge muito mais; com o texto, acaba por arrasar qualquer idealismo sobre a
bondade humana e seu amor pelos demais. Se não o conhecêssemos, poderíamos
dizê-lo primeiro ateu confesso:

TEXTO ANEXO – Erasmo de Rotterdam

ELOGIO DA LOUCURA

[...] esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e
os mortais. [...] Pois bem, quem desejaria sacrificar-se ao laço matrimonial, se antes,
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como costumam fazer em geral os filósofos,
refletisse bem nos incômodos que acompanham essa condição?

Coragem, vamos! Dissimular, enganar, fingir, fechar os olhos aos defeitos


dos amigos, ao ponto de apreciar e admirar grandes vícios como grandes virtudes,
não será, acaso, avizinhar-se da loucura? Beijar, num transporte, uma verruga da
miga, ou sentir com prazer o fedor do seu nariz, e pretender um pai que o filho
zarolho tenha dois olhos de Vênus, não será isso uma verdadeira loucura? Bradem,
pois, quanto quiserem, ser uma grande loucura, e acrescentarei que essa loucura é
a única que cria e conserva a amizade.

[...] Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para
merecer tão grande quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido
a nascer e, tão horrível vale de misérias.

Através do humor, Erasmo opera uma implacável desconstrução de todo


um sistema de valores tomados como óbvios. Trata-se do desvelamento e
desnaturalização de costumes tomados como naturais. Elogio da Loucura é uma das
obras mais arrasadoras de valores e desveladora de hipocrisias sociais; é também
manual de boas maneiras (controle do corpo). É impossível não rirmos diante das
recomendações sobre como lidar com nossa glutonice e eventual necessidade de
arrotar, urinar ou soltar gazes (em casos urgentes, estes últimos devem ser
encobertos com uma tosse – boa dica...). Já no século XVIII, estas expressões
desapareceram. Nosso riso à leitura destes velhos manuais nos mostram o quanto o
princípio que os rege foi eficaz e age em nós; as normas que nos indicam que as
funções corporais devem ser ocultas são absolutamente automatizada e, por que não
dizer, inconscientes.

Importante evocar o conceito de civilização: conjunto extenso de forma de


expressão com as quais o homem ocidental se identifica: a tecnologia, a religião, as
condutas e punições no caso de desvios, os modos de viver em conjunto, etc. Ela
representaria tudo aquilo que a nossa sociedade considera ter de superior às demais
culturas e esse processo teria se dado às custas de um rigoroso sistema de controle
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social que inibe a expressão das funções corporais
e de grande parte dos impulsos. Trata-se de modelagem de determinados modos de
ser transmitidos sobretudo pelos pais. Entre os séculos XVI e XVII, se teria
processado intensamente a produção de códigos de inserção social e seu não
cumprimento sempre seria acompanhado pelas acusações de “doença”, “crime” ou
alguma forma de desagrado que leva à exclusão do convívio. Na medida em que a
expressão dos desejos e emoções são constrangidas, os olhos passam a adquirir um
papel essencial como forma de contato. Elias:

“Reconhecidamente, essas emoções de fato têm, em forma “refinada”,


racionalizada, seu lugar legítimo e precisamente definido na vida cotidiana da
sociedade civilizada. E isto é muito característico do tipo de transformação através
do qual se civilizam as emoções. [...] Essa transformação do que, inicialmente, se
exprimia em uma manifestação ativa e frequentemente agressiva, no prazer passivo
e mais controlado de assistir (isto é, em mero prazer do olho), já é iniciada na
educação e nas regras de condicionamento dos jovens. (...)”

A observação de Elias sobre a imposição de um contato indireto,


intermediado pelo olhar, com os objetos com a proibição do toque, parece bastante
expressivo diante da presença intensa da televisão, do computador e dos
experimentos em realidade virtual.

TEXTO ANEXO – William Shakespeare

HAMLET – Ser ou não ser – eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma
pedradas e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias.
E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; Só isso.

Seus monólogos expressam a interioridade. A consciência de si traz ao


homem a consciência de sua vaidade e um distanciamento melancólico da
experiencia imediata. Com Hamlet, temos a denúncia melancólica – em um misto
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de lucidez e loucura – das ilusórias pretensões do eu, que se acostuma a


esquecer de sua dimensão mortal. Hamlet coloca-se numa posição alheia ao
coletivo, ao que se espera de um príncipe. Ele se recusa a ocupar o papel que lhe é
reservado, prefere ser autor de si mesmo. Temos aqui ao mesmo tempo crítica e
construção do homem da Modernidade.

QUESTÕES PARA DISCUSSÃO

1. Quais são as relações entre a origem da valorização do indivíduo e o


ceticismo?

2. Quais foram as principais críticas dirigidas ao “eu” já no século XVI?

3. Quais as relações entre as civilizações e o auto-controle?

7. O DISCURSO DO MÉTODO

8. O EU E O NÃO EU
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A

9. OS MORALISTAS DO SÉCULO XVII

10. O PÚBLICO E PRIVADO

11. TEMPESTADE E ÍMPETO: O ROMANTISMO

12. A AUTO-CRÍTICA DA RAZÃO

13. O POSITIVISMO

14. OS DIVERSOS CAMINHOS PARA A PSICOLOGIA

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