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Paulo Ferreira da Cunha

TEORIA GERAL DO DIREITO


Uma Síntese Crítica

A Causa das Regras

2018
Parte I
A Norma e o Direito

Sumário:
Capítulo I
O Direito e as Normas
Parte II
Classificação das Normas Jurídicas
Capítulo I
Classificação de normas: dificuldades e precauções
Capítulo II
Classificações segundo as características
Capítulo III
Categorias

299
Capítulo I
O Direito e as Normas

1.O Direito para além da Norma


Como fomos já detetando ao longo destes primeiros
contactos com o Direito, este não se trata de uma realidade
exclusivamente composta por normas jurídicas. É até algo bárbaro
(mas é, de qualquer forma, muito impreciso) identificar sem mais o
Direito com "um conjunto de normas". É-o, como vimos, porque
nem todas as normas são jurídicas, mas também porque o Direito
vive não apenas de regulamentações, mas também de decisões, atos
e teorias, de muito diverso tipo de agentes (apenas no sentido de
agirem), a que hoje se gosta chamar “operadores jurídicos”116.
Os Atos Administrativos são Direito e contudo não são
normas, tal como as sentenças pronunciadas pelos Tribunais e a
doutrina elaborada pelos jurisconsultos. A teoria tridimensional do
Direito (que Miguel Reale elevou a megateoria com virtualidades
reprodutivas só ultrapassadas por idêntica processo levado a cabo

116
Expressão que confunde os juristas, tratando-os como se fossem
manobradores de guindastes ou afins (com todo o apreço e respeito pelos
próprios, claro; mas que fazem outras funções), e um há alguns anos “atores
jurídicos”, como se o Direito fosse uma peça de teatro (comédia, tragédia,
tragicomédia, farsa?). Talvez estes últimos, afinal, tivessem mais razão. Há uma
investida generalizada e em muitos aspetos da vida para que falemos uma
linguagem politicamente correta que vira o mundo do avesso – e muitos,
seguindo a moda, nem disso se dão conta. Também os trabalhadores passaram a
ser simples “colaboradores”: logo, pelas próprias palavras, e sem necessidade de
lei (!) dando a ideia de que são fungíveis e descartáveis... Pois apenas
colaboram...
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por Montesquieu com a também já anterior separação dos


poderes) igualmente nos fala de outras realidades além da norma:
os factos e os valores. Falamos já, também, na importância do texto
como realidade de suporte do Direito.
Tudo isto (e mais, que a brevidade impõe se não diga) nos
dá a ideia de um Direito em ação, plural, partícipe de múltiplas
formas e usando diversas vias de manifestação e concretização.
Além disso, sabemos que a redução teórica do Direito às
normas ajuda à conceção que o reduz a normativismo, e este outra
coisa não é que um apoucamento da juridicidade em técnica da
coação, ao serviço do voluntarismo político que faz e desfaz o justo
ao sabor da sorte, ou seja, do arbítrio ou do capricho de quem
manda. Ora, precisamente, o Direito foi criado, em Roma, para
evitar a dependência fugaz e ventosa do justo e do injusto (e suas
consequências para os cidadãos) da roda da fortuna da política.
Evidentemente que um Direito com uma pura
racionalidade própria, com uma total autonomia, é uma ficção: o
Direito que se quer menos político é por vezes o que o é mais
(como sublinhava Orlando de Carvalho). Porém, uma coisa é um
Direito com respeito por si próprio e com independência, em que,
por um exemplo, um juiz tem orgulho em julgar, pela Justiça,
mesmo contra os interesses da ideologia ou do partido com que se
identifica, e esse é o modelo ideal de isenção; outra coisa é o não
se saber onde começa a jurisdição e onde acaba o serviço a poderes
ou partidos.
E mais ainda: outra coisa ainda é a terra de ninguém de
nem sequer haver Direito como entidade epistemológica e
institucionalmente separada, e se viver numa amálgama sem lei
(lato sensu) de ideologia, poder, religião, moral e normatividade,
como é o caso de alguns totalitarismos, uns laicos (ou

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

aparentemente laicos, porque a ideologia se pode transformar em


religião) ou teocráticos.
Importa, assim, compreender que o Direito está para além
da Norma. Mas perante tantas ameaças à legalidade, tantas
violações mesmo, que têm aparentemente crescido nos nossos dias
(pelo menos delas se vai sabendo mais – e que escândalo, embora
por vezes comece a haver habituação), cabe legitimamente
sublinhar que ao mesmo tempo há que fazer uma defesa da
legalidade. Não de um legalismo estrito, estreito, tacanho. Mas tem
de se compreender que o respeito pelas leis é ainda o grau zero do
Estado de Direito (é o estado de legalidade). Se não se respeitam as
normas, se as próprias entidades públicas e jurídicas não derem
esse exemplo, caímos na barbárie. Nisso sendo simétricos dos
“agelastas” que nada veem além do comando, neste caso legal…

2. Importância e sentido da Norma e da sua Teoria Geral


Reforcemos: as normas não podem ser descuradas.
Decorrendo de valores que se reportam a factos e visando factos
sob a influência de valores, as normas têm uma função reguladora
primordial. Por isso, vamos de seguida estudar a Teoria Geral da
Norma jurídica, corolário do que aprendemos sobre o Direito e
suas características e ponte para as matérias mais técnicas,
designadamente da Hermenêutica.
Matéria de transição, pois, mas fundamental, onde se
aplicarão os conhecimentos e testarão as posições teóricas
assumidas, e se começará já o treino para o convívio mais direto
com os normativos legais positivos dos nossos códigos (maxime o
Código Civil), numa tarefa preliminar da interpretação e aplicação
ao caso concreto de uma bateria conceitual que obriga a muita
atenção e muito rigor.

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3.Estrutura das normas jurídicas


Vamos estudar de seguida a classificação das normas
jurídicas, isto é, vamos interpretar normas e aprender a agrupá-las
consoante diversos critérios. Porém, antes dessa tarefa, cumpre
recordar o que no fundo já sabemos sobre estrutura e
características das normas jurídicas.
Muito sucintamente, as proposições legais mantêm uma
estrutura muito semelhante, fazendo corresponder a um facto um
outro, que dele é consequência jurídica.
Assim, o primeiro facto é a hipótese, facti species ou
previsão, e o segundo a estatuição ou efeito jurídico. Obviamente,
não pela ordem por que aparecem no texto, mas consoante a sua
sequência lógica. O texto pode trocar as voltas...
De uma maneira geral o esquema é, pois: se A, então B.
Ou será B se A. Sendo, portanto, A a hipótese e B a estatuição.
Na negativa, procede-se da mesma forma. Se não A então
B. Ou será B, se não A. A e B continuam a representar,
respetivamente, os papéis de facti species e efeito jurídico.

4.Características da norma jurídica


Tendo rejeitado a visão conceptualista do Direito, como
entender a razão de ser de uma análise dos elementos de um
conceito que negámos ou, pelo menos, preterimos? É que não se
trata, para nós, de dissecar agora os requisitos do Direito (em
sentido normativo), antes de analisar as alegadas características das
normas jurídicas. Porque estas são os elementos indiciadores
fundamentais de estarmos perante Direito.

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Daí que seja importante distinguir as normas jurídicas das


normas de outra índole, de cortesia, de moral, religiosas, etc. E só
assim se estará a determinar o que é e o que não é "Direito" —
vendo, indiretamente é certo, os ditos "elementos" do conceito
“Direito”. Aliás, como decerto já se compreendeu, todos estes
estudos iniciais são algo redundantes; e não poderiam deixar de
sê-lo: observam a mesma — multímoda e fugaz — realidade em
várias manifestações e por diversos prismas.
É neste fechar do círculo, com todas as sobreposições
implicadas pelo sabor permanente da incompletude, que estas
magnas questões sempre nos deixam, que se pretende não encerrar
a compreensão problemática e problematizante, mas
decididamente deixá-la em aberto — como ela efetivamente se
encontra. O Direito tem, em grande medida, muitas questões de
impasse, de redundância, de círculo vicioso (e virtuoso), de aporia.
As normas jurídicas estão dotadas de várias características,
que podem ser divididas em dois planos, radicalmente distintos:
- plano externo — o mais comummente referido na doutrina;
relativo à forma e valor externo, aparente, das mesmas;
- plano interno — o mais fundante (embora não podendo
prescindir do primeiro, o externo), na medida em que se trata do
elemento efetivamente caracterizador do Direito enquanto tal, a
sua autêntica diferentia specifica.

5.Elementos das normas jurídicas — Plano externo


- Imperatividade — ao contrário da lei científica, a norma
jurídica exprime uma diretiva, uma ordem, com base em juízos de
valor e não, de realidade, ou de existência. Mesmo ao permitir, a
norma impõe essa permissão.

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Paulo Ferreira da Cunha

- Generalidade — a norma dirige-se não a uma concreta


pessoa, mas a todas quantas possam praticar atos ou encontrar-se
na situação hipotética à qual a estatuição determinada corresponde.
Se qualquer A faz X, então a reação jurídica é y.
- Abstração — muito ligada à última característica, a
abstração é a qualidade da norma se não prender ao caso concreto,
à situação especial (ou à pessoa em causa), tratando por igual o
leque de casos subsumíveis na sua previsão (hipótese). Dada a
situação R, então Z.
- Coercibilidade — a norma é suscetível de tutela. A sua
violação acarreta para o violador uma sanção jurídica. A força é
sempre uma espada de Dâmocles sob a cabeça do destinatário da
norma.
- Violabilidade — contudo, ninguém é irresistivelmente
forçado a cumprir a norma. Sujeitando-se à sanção, pode o seu
destinatário arriscar-se a não a cumprir.

6.Elementos das normas jurídicas. Plano interno: os Juris


praecepta
Proibição do abuso do direito — honeste vívere — não
abusar dos seus poderes.
Limitação do uso do direito — alterum non laedere — não
prejudicar ninguém.
Imposição do respeito pelos direitos dos outros — suum
cuique tribuere — atribuir a cada um o que é seu.
Todos os preceitos se consubstanciam na Justiça, dela
partem e para ela caminham. No fundo, é o Direito Natural (ou
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

algo similar, que lhe faça as vezes...) que domina o plano interno,
através dos juris praecepta, e da ideia de Justiça.
Como sabemos — fomo-lo vendo já, ao longo dos capítulos
anteriores —, as características internas são negadas pelos juristas de
pendor positivista, e cada uma das externas contém em si múltiplas
exceções pontuais, além de a crise teorética ter invadido este
domínio, não havendo característica completamente segura. Todas
elas já foram postas em causa, por norma sob o impacto de novas
teorizações que generalizam o papel das exceções e o enfatizam ao
ponto de a regra deixar de o ser, mas também recuperando ideias
mais velhas e esquecidas.
Uma nova construção das características das normas,
omnicompreensiva, global, teria muito interesse, mas revela-se cada
dia mais difícil, ante a variegada selva em que o mundo jurídico se
tornou, comportando normativos de tipos múltiplos. Trata-se de
tarefa muitíssimo árdua, e a tentar com ponderação especial, não
sendo obviamente este o lugar nem o autor os indicados para tal.
Sabida da contestação e da desadaptação, é, apesar de tudo,
ainda uma bússola orientadora esta catalogação dos elementos da
norma jurídica. O Norte fica noutro lado, sabemo-lo. Mas usando
de forma combinada as duas informações, talvez não nos
venhamos a perder demasiado.

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Parte II
Classificação das Normas Jurídicas

Sumário:
Capítulo I
Classificação de normas: dificuldades e precauções
Capítulo II
Classificações segundo as características
Capítulo III
Categorias

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Capítulo I
Classificação de normas: dificuldades e precauções

1.Normas (propriamente) jurídicas e normas exteriormente


jurídicas
O primeiro problema a pôr-se neste contexto é
precisamente o de saber quando e se se está perante uma
verdadeira e própria norma jurídica. Como sabemos, não bastam
as características externas, mas deverá do conteúdo da norma (ou
da proposição: à partida nem se saberá se será norma) desprender-
se uma clara significação jurídica, de Justiça.
Assim, haverá, sem dúvida, certo tipo de normas, gerais,
abstratas, coativas, imperativas, violáveis ..., adaptadas segundo os
trâmites legalmente prescritos (due process of law) mas para as
quais se não encontra uma base justa no hic et nunc em que
deveriam vigorar. Perante estas normas que, se fossem jurídicas,
estariam obviamente sujeitas a toda a malha de classificações
juridicamente aceite, haverá apenas que qualificá-las como
falsamente jurídicas, ou aparentemente jurídicas, normas afinal
dotadas de simples juridicidade externa. Chamar-lhes-emos normas
exteriormente jurídicas.
Insistindo, com Santo Agostinho e São Tomás de Aquino,
que a norma (ou lei) injusta não é norma (ou lei). Mas sempre
prevenindo que a demagogia e a incultura, o interesse e a
boçalidade normalmente consideram injusto tudo o que não se
curva perante o seu simples interesse e preconceito. Perante a
possibilidade do julgamento bárbaro das normas, é óbvio que se

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Paulo Ferreira da Cunha

preferiria o positivismo mais estrito... Contudo, num tempo e lugar


civilizados, a opção nem se deve colocar...

2.Carácter não substancial das classificações


Afastadas estas do nosso horizonte — delimitado, pois, o
nosso objeto às normas totalmente jurídicas (interna e
externamente) — novo problema se nos depara. Trata-se de saber,
de entre as diversíssimas focalizações possíveis, quais as que
efetivamente interessam. Há, antes de mais, que prevenir-se quanto
ao carácter não substancial das divisões deste tipo. Primeiro está a
norma, com o seu fim, a sua razão, o seu texto. Depois, num
trabalho ulterior de catalogação, de aproximação de normas por
semelhanças e diferenças, só depois é que vêm as classificações.
Ora, deste facto decorre que estas últimas derivam em boa parte
das intenções e predileções organizadoras da doutrina. Daí que
variem as perspetivas por que este problema é encarado, quase de
manual para manual, de autor para autor. Seria também
absolutamente possível — e nem sequer muito árduo —, quer
compilar, quer procurar compatibilizar as diversas teorizações
existentes, quer ainda propor novas fórmulas.
Tal não é o nosso escopo. Visamos apenas apresentar
algumas classificações, sem a pretensão da exaustividade,
sublinhando o carácter falível e algo aleatório destas malhas
conceituais, e preferindo a concisão raciocinada, ao
enciclopedismo taxinómico de pura memorização. Todavia, sob
pena de sincretismo estéril, estas convenções são para saber, e
sobretudo para saber aplicar.

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

3.Critério ou focalização predominante


Toda a norma jurídica é suscetível de ser classificada de
acordo com vários critérios, que valorizam em especial dada ou
dadas características que possua. Tal facto, atesta mais uma vez o
carácter não substancial das classificações, tornando óbvio que a
mesma norma pode (e, numa perspetivação global, deve) ser alvo
de diversas qualificações simultâneas. Contudo, muitas vezes
sucede que, numa norma, ressalta em especial um aspeto, o qual
deixa na sombra os demais, e com estes as correlativas
classificações.

4.Norma única ou várias normas?


Na problemática geral das qualificações de normas, há
ainda a observar um último cuidado: o facto de se individualizar
um artigo de um diploma legal, ou até um número ou parágrafo,
ou mesmo alínea de entre este, não quer automaticamente dizer
que estejamos perante uma única norma jurídica; não raro mais
que uma norma se encontra nessas singulares disposições.
Importa, pois, ao classificar uma norma jurídica, antes de
mais, como vimos, ver se ela o é, e depois, certificarmo-nos de que
se trata de uma única norma. O critério-regra a ter presente quanto
a esta última questão parece-nos não poder deixar de ser o da
estrutura da norma jurídica. Deste modo, e nos limites da razoável,
sempre que, ao invés de uma hipótese e de uma estatuição,
tenhamos diante de nós várias hipóteses e várias estatuições, parece
que, em princípio, teremos tantas normas completas quantos os
pares em presença.
Porém, há casos em que a unidade intrínseca e a vocação
de um conjunto de normas, nomeadamente de um diploma legal (é
o caso da Constituição, desde logo – não nos esqueçamos que ela é
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norma117), aconselham a que se possa também tratar todo o


clausulado como uma norma. Insiste-se: nada destas questões é
substancial, ontológico. Tudo funciona por convenção, dirigida à
melhor aplicação do Direito.

5.Norma completa ou incompleta (hoc sensu)


Não olvidemos, todavia, um elemento que, aqui, pode
contribuir para complicar a questão: nem sempre estes elementos
estruturais e naturais da norma jurídica se nos apresentam pela
forma expressa; uma boa dose de interpretação é aqui requerida —
especialmente para subentender o que figure tão-só de forma tácita.
Se na individualização do objeto de análise "norma jurídica"
houve de fazer este recurso à estrutura da norma (óbvio cuidado a
ter em consideração, em se querendo decantar o quid em estudo,
separando-o, identificando-o com clareza), também na malha
classificatória das normas, naturalmente se terá de apelar para um
outro elemento prévio e basilar que com a classificação tem não
despiciendo relacionamento. Trata-se, com efeito, dos atributos ou
características das normas jurídicas.

GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo — La Constitución como norma juridica,


117

in “Anuario de Derecho Civil”, Série I, n.º 2, Madrid, Ministerio de Justicia y


Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, p. 292 et sq..
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Capítulo II
Classificações segundo as características

1.Sentido da enfatização teórica desta relação


É um aspeto que não tem sido expressamente enfatizado,
mas de todo o modo crucial: todas as classificações de normas mais
ou menos acabarão por perspetivá-las na mira das suas
características — parece até tautológico de tão evidente. Assim,
algumas classificações irão debruçar-se em particular sobre a
generalidade e a abstração, outras sobre a coercibilidade ou a
violabilidade, outras sobre a imperatividade, etc. Com estas ou
aquelas roupagens designatórias, o que sempre acaba por se visar é
o grau e o tipo de fidelidade de cada norma aos paradigmas
estabelecidos pelas suas características definidoras.
Tendo-se detetado esta preocupação, torna-se secundária a
polémica sobre as designações classificatórias, as quais passam a ser
tidas como simples aproximações, tentativas de captação dessas
situações de diversificada adequação da norma aos seus arquétipos
definitórios.
Assim esclarecida a questão nas suas mais importantes
afinidades e relevantes pressupostos, vejamos algumas possíveis
classificações, integradas já no âmbito das características das
normas jurídicas com que mais intimamente se relacionam.

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Paulo Ferreira da Cunha

2. Esquema Geral da Relação Características/Critérios


I - Características ligadas ao lado externo das normas
jurídicas:
1. Características de generalidade e abstração:
a) - critérios do âmbito espacial de vigência
b) - critérios dos interesses predominantemente tutelados
c) - critérios do âmbito de frequência e normalidade
2. Características de imperatividade
d) - critérios da força vinculativa (autónoma ou heterónoma)
no conjunto da ordem jurídica
3. Características de coercibilidade e violabilidade
e) - critérios quanto às consequências da violação
II — Características relacionadas com o lado interno das
normas jurídicas:
f) - critérios quanto à fonte de Direito causante (que pode
ser plúrima e não exclusivamente legal)
g) - critérios quanto à eticidade ou juridicidade imediata
das normas (sem integrar nas normas a norma injusta, mas fazendo
apelo apenas a normas prima facie não éticas, v.g. os sentidos do
trânsito; distinguindo as prescrições materiais das jurídicas).
h) - critérios quanto à inovação trazida pelas normas
III — Características relacionadas com a completude
(presença simultânea da totalidade das características jurídicas
numa norma) das normas:

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

i) - critérios quanto à importância e causação das


normas entre si
j) - critérios quanto à autonomia, completude ou
transferência normativas.

3.Designações mais frequentes


Por comodidade e para simplificação da exposição,
optaremos por algumas designações mais correntes na
especificação, identificando, grosso modo, cada grupo de critérios
com uma ou outra das designações-base.
Assim:
a) Âmbito espacial de vigência:
normas universais, gerais e locais
b) Interesses predominantemente tutelados:
normas de interesse (e ordem) pública ou privada
c) Âmbito de frequência e normalidade no conjunto da
ordem jurldica:
normas gerais, especiais e excecionais
d) Força vinculativa:
normas imperativas (ou injuntivas) e
normas facultativas (ou dispositivas hoc sensu)
e) Consequências da violação:
normas plus quam perfectae, perfectae, minus quam
perfectae, imperfectae.

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f) Fonte de Direito causante:


normas consuetudinárias, jurisprudenciais, "doutrinárias (ou
científicas)", legais e negociais.
g) Eticidade ou juridicidade imediata:
normas éticas e normas técnicas; normas de estatuição
material e normas de estatuição jurídica.
h) Inovação
normas inovadoras e normas interpretativas
i) Importância e causação relativas: normas principais e
normas derivadas (ou primárias e secundárias)
j) Autonomia, completude ou transferência:
normas autónomas e não autónomas,
normas completas e incompletas,
normas diretas e indiretas (v.g. as remissivas)

4.O perigo conceptualista, relatividade e falibilidade


classificatória
Uma vez enquadradas as designações das diversas categorias
de normas propostas quer na problemática global das
características da norma jurídica, quer na identificação dos tipos de
critérios que procuram consubstanciar e através dos quais encarar a
realidade das concretas normas em análise, convém fazer ainda um
reparo prévio. Antes de entrarmos na explicitação, sucinta embora,
destes grupos de categorias, importa sublinhar que quanto mais
longe, quanto mais pormenorizadamente, se levar a estrutura
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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

classificatória, maior o perigo de conceptualismo, de


distanciamento do real para se entrar no reino do puro pensar
catalogador.
É preciso, pois, novamente chamar a atenção para a
limitação das classificações, e particularmente agora assinalar que,
em vários casos, não apenas as categorias por vezes se revelam
inaptas a abarcar a totalidade das situações, como também podem
suceder emaranhados classificatórios. Sendo a imaginação do real
bem mais luxuriante e prodigiosa que a da doutrina, não se
estranhará mesmo que, no limite, o sistema ou sistemas propostos
se revelem inadequados, e em autêntico curto-circuito teórico
quando confrontados com a subtileza deste ou daquele mais
inusitado caso concreto. Não esmoreçamos, porém, ante tais
dificuldades, na verdade extremas, e não mais que confirmações da
multivariada floresta de normativos.
Sabendo, pois, que as classificações também podem
coincidir, revelar-se estreitas ou sobejantes, ou ainda duplicar-se
quando pareciam mutuamente exclusoras, partamos, finalmente,
para a tabela classificatória, prevenidos sim, mas não derrotados.
Na maioria larguíssima dos casos, as duas ou três distinções básicas
— as mais frequentes — bastam e revelam-se coerentes, ressaltando
aos olhos ao primeiro esforço de séria e detida interpretação. O
demais, poderá ser preciosismo bizantino, incompatível com o
carácter elementar do nosso presente estudo, por um lado, ou
mesmo com a razão de ser da classificação das normas jurídicas,
que deveria ser sempre agrupar de forma a potenciar o
entendimento, e não o contrário.

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Capítulo III
Categorias

1.Normas universais, gerais e locais


Importa, para esta linha de abordagem, saber do valor
territorial de uma norma.
Em princípio, a Constituição vale para o todo do Estado,
bem como os códigos principais, a começar pelo Código Civil, e o
valor de uma postura camarária não excede o âmbito territorial
dessa autarquia. Há, porém, casos mais complexos, e tanto mais
quanto for descentralizado o poder, e o Estado, de unitário e
centralista, se for fragmentando em regionalizações, e, no limite, se
se federalizar, decompondo-se em vários, federados ou
confederados.
Em Portugal, o problema tinha acuidade na época colonial
(com as províncias ultramarinas, que tiveram ao longo dos tempos
vários nomes), e volta agora a pôr-se com as perspetivas (embora
sempre adiadas) de regionalização (e já com as regiões autónomas
da Madeira e dos Açores). Com efeito, alguns já desesperam que o
imperativo constitucional da criação de regiões (arts. 255.º et sq da
CRP) se venha a concretizar, tal o centralismo intrínseco do poder
entre nós, qual “síndrome do Terreiro do Paço”, transversal, ao
que parece, aos vários partidos que têm governado.
É claro que, por outro lado, alguns receiam
(justificadamente) com isolacionismos despesistas e populistas, que,
multiplicados pelo País, o tornariam ingovernável e quiçá
caricatural, tratando-se de um território tão pequeno e no limite da

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

má sorte partilhado, na hipótese da regionalização, por demasiados


líderes locais demagógicos e sem sentido da unidade do Estado.
Mas muito mais complexo parece ser o problema em
ordens jurídicas federais (embora de federalismos muito
diferentes), como o Brasil ou os EUA. Como se sabe, mudando
leis importantes nestes últimos, de Estado para Estado, não é fácil
ao jurista exercer a sua profissão na terra vizinha, e, no limite, há
formas de fraude à lei pelo vaivém entre Estados, num saltitante
exercício jurídico de fuga à alçada da Justiça. Por outro lado, bem
complexo se torna compreender e aplicar o jogo de competências
entre o poder central e os vários entes aos diferentes níveis.
De todo o modo, e para o que nos importa, normas gerais
são as que vigoram em todo o território continental — e são uma
grande parte das normas legais; normas universais, vigoram na
totalidade do território nacional, isto é, também nas regiões
autónomas insulares – e, no presente, ainda constituem a grande
maioria da legislação; normas locais — têm aplicação restrita ao
local da sua edição, normalmente uma autarquia, e, na verdade,
não são normas legais stricto sensu, tratando-se mais de "atos
regulamentares", sob a forma de deliberações municipais (cf. art.ºs
241.º e 112.° CRP).

2.Normas de interesse (e ordem) pública ou privada


O problema agora em causa é o de saber que tipo de
valores pretende em especial tutelar uma certa norma: se os
públicos, se os privados. Esta decisão classificatória teria a
vantagem, quiçá, de esclarecer possíveis diferendos em sede
interpretativa tout court, podendo contribuir para dar mais razão a
uns ou a outros dos intervenientes em causa, o Estado ou o
interesse público, os particulares, ou os interesses privados ...

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Paulo Ferreira da Cunha

Mas é deveras ingrata a tarefa classificatória, nestes casos.


Como vimos, a propósito da distinção entre Direito privado e
Direito público, o critério dos interesses encontra-se em franco
declínio. Na verdade, já não é prestável a qualquer dilucidação
deste género. E isto pela simplicíssima razão de que os interesses se
mesclam, se hibridizam, e uma radical contraposição
público/privado, se faria sentido para a cosmovisão liberal clássica
(veteroliberal, a que podemos chamar “o grande liberalismo” –
infelizmente hoje assumido por muito poucos), não é doravante
mais possível, com cidadãos que beberam Estado e sobretudo
burocracia no leite materno, com subsídio-dependentes e
pseudoliberais que adoraram (ou adorariam) viver à custa de
subsídios e apoios de fundos estaduais e supranacionais e já não
acreditam na mão invisível quando ela levaria alguns dos grandes à
falência.
A única dúvida, nesta sede, será ainda esta: dever-se-á
abandonar pura e simplesmente a divisão, por obsoleta, ou mantê-
la, provisoriamente, como resquício do passado e, de qualquer
forma, apenas com valor episódico (para um ou outro caso, de
ainda patente aplicação) e somente tendencial (não como corte
absoluto entre categorias)? Como o Direito, mesmo o vigente num
certo tempo e lugar, é um aglomerado de camadas de diferentes
proveniências e épocas, e o passado deixa sempre sulcos não
descuráveis na doutrina e nas representações coletivas, não pode
haver dúvida de que a contraposição, se difícil hoje, se diluída
agora, permanece como quadro mental, pano de fundo de vário
raciocinar jurídico. Banir a distinção por completo seria, talvez,
fazer perder ao pensamento jurídico uma dimensão importante.
Mantemo-la, pois, com todas estas prevenções e cautelas,
sublinhando que, hic et nunc, é mais um problema para meditar
que uma grelha em que, com precisão e facilmente, venham a
caber os objetos em apreço — as normas jurídicas de hoje.

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Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

3.Normas gerais, especiais e excecionais


Estamos agora perante uma das classificações mais
relevantes e daquelas que mais impressivamente costumam
ressaltar quando comparamos normas entre si. As consequências
práticas destas distinções são bem significativas — este um bom
argumento para o afinamento teórico dos conceitos em causa.
Há aqui, porém, um problema: é o caráter relacional de
todas estas três categorias. A generalidade que aqui se visa é diversa
da generalidade espacial ou territorial, e também é, todavia, uma
questão de maior ou menor abrangência. Trata-se, de facto, de
saber se as soluções impostas por uma norma têm um campo mais
ou menos lato de aplicação, ou se, na mesma área normativa, vai
haver disposições que contrariem, ou complementem com alguma
variação de prescrições, a estatuição de tal norma.
Quando uma norma dispõe para um leque diversificado de
situações dentro dessa área de abrangência possível, sendo,
portanto, o direito-regra, o direito comum ou normal, está-se
perante uma norma geral. Num caso de simples desvio, adaptação
ou complementação específica desta norma para casos técnica ou
realmente algo diversos dos normalmente tuteláveis pela norma
geral, temos as normas especiais. E, por último, consumando uma
verdadeira subversão do estipulado, consagrando um regime
jurídico em absoluto oposto ao geral, mercê certamente da
inadequação do mesmo a verdadeiras situações de exceção,
encontram-se as normas excecionais.
Na relação entre normas gerais e especiais, a diferença será
de grau; entre aquelas e as excecionais, o que está em causa é já um
problema de qualidade.
De uma maneira muito geral, pode dizer-se que a
sistematização, dita "de Parte Geral" do nosso Código Civil propicia

323
Paulo Ferreira da Cunha

abundantemente a verificação destas distinções. Assim,


tendencialmente, do art.º 1.º ao 396.° (Parte Geral) se encontram
normas gerais, as quais depois serão objeto de restrição e desvio
em matérias mais especializadas nas partes subsequentes do
Código. Mas a especialização é sucessiva. No Livro II do Código,
por exemplo, os Contratos (art.ºs 405.º et sq.), especialização do
negócio jurídico (art.º' 217.° et sq.), têm também uma parte geral e
uma especial (cf. art.ºs 405.º et sq. com art.ºs 410.º et sq), e ainda,
mais especial que tudo isto, temos os contratos em especial (art.ºs
874.º et sq.), os quais, por último, se encontram, cada um,
divididos em parte geral e especial (cf. v.g. art.º 940.º et sq. e art.º
948.º et sq.). Entretanto, os contratos comerciais são direito
especial face aos seus congéneres de Direito Civil (cf. Livro II do
C. Com.).
Além desta estrutura piramidal, podem-se fazer
comparações caso a caso. Assim, por exemplo, o art.º 219.º C.C.
constitui um regime geral de consensualidade para os negócios
jurídicos, não fazendo depender a validade de declaração negocial
de qualquer forma especial. Tal é infirmado por disposições
excecionais, como as dos art.° 875.º, 1143.º, 2126.º, etc., que
estipulam formas especiais para dados negócios jurídicos concretos.
A mais imediata das consequências práticas desta distinção
(na verdade, do que lhe subjaz, da diferença radical de normas que
vem apenas mostrar) é bem plausível: se de normas gerais e
especiais, para casos análogos, é possível a aplicação analógica, já
tal não é comportável pelas normas excecionais. A razão do
preceito parece, de facto, muito clara: se do normal ou do pouco
anormal (do mero desvio pontual àquele) se podem, com todos os
cuidados, extrair princípios aplicáveis a casos semelhantes, porque
a estatuição facilmente se lhes adaptará pela homologia básica de
situações, já não parece curial que se vá tirar uma regra da exceção,
que se use por analogia a prescrição apenas útil para o caso

324
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

anormal. Todavia, já a simples interpretação extensiva (forçando


um tudo-nada o texto de uma norma excecional para nele poderem
caber situações de muito próximo parentesco), já tal interpretação é
admitida. Tais são as imposições do nosso C.C., no seu art.º 11.º.

4.Normas imperativas (ou injuntivas)


e normas facultativas (ou dispositivas hoc sensu)
Como há momentos para o problema da generalidade, que
podia causar confusão pelo facto de haver (pelo menos) três
"generalidades" em causa (a das normas jurídicas, a espacial e a
relativa, internormativa), pelas mesmas razões pode provocar
alguma perplexidade esta nova classificação. Pois não são todas as
normas "imperativas"? Vimos já que a característica "imperatividade"
para as normas jurídicas é discutível. O mais adequado, neste como
em tantos outros casos, é apercebermo-nos dos problemas fulcrais
efetivamente em jogo.
Assim, se é certo que a questão da imperatividade geral e
liminar das normas jurídicas se imiscui, sem dúvida, na presente
análise, não há dúvidas acerca do mais relevante: as normas
jurídicas não são simples produto do voluntarismo do "quero,
posso e mando" legal ou estatal, antes podem derivar (como
veremos infra) de outras fontes normativas; e mesmo as normas
legais nem sempre contêm comandos impositivos ou proibitivos,
havendo-as também facultativas, permissivas, etc.
Ora é esta validade, afinal limitada, da característica
"imperatividade" o "X" do problema em apreço. Há normas que
proscrevem e normas que acolhem, fazem apelo ou suprem o
silêncio do exercício livre da autonomia privada dos cidadãos.
Quer dizer: umas normas são efetivamente imperativas ou
injuntivas, indicam caminhos a trilhar necessariamente
325
Paulo Ferreira da Cunha

(preceptivas), ou sendas de todo interditas, para cujos caminhantes


cominam sanções (proibitivas); outras normas não curam de impor,
imperativamente, pela ação ou pela omissão necessárias
(facultativas ou dispositivas hoc sensu). Talvez a melhor designação
fosse, para estas últimas, a de não-imperativas, na medida em que
as suas subespécies podem trazer problemas de compatibilização
designatória.
De facto, de entre as normas não preceptivas e não
proibitivas, nem todas serão, rigorosa e logicamente, facultativas. As
normas interpretativas, que se destinam precisamente a fixar
sentidos de outras disposições, mormente assinalando definições
legais, impõem na verdade um sentido, prescrevendo
imperativamente um comportamento (interpretativo, jurídico), e
implicitamente proscrevendo (proibindo) os contrários.
É certo que, no nosso sistema classificatório, preferimos
encarar as normas interpretativas sob a ótica da inovação,
subtraindo-nos algo a este problema. Mas tal terá de ser
considerado se, como é frequente, se pensarem tais normas na
perspetiva da imperatividade. Fica ainda claro que tal tipo de
normas, versando sobre outras normas, é de "segundo grau". E por
aqui se fica a ver, breve e exemplificativamente, como as várias
classificações se imbricam, e devem, na verdade, ser enquadradas
de forma compreensiva, sob pena da tarefa classificatória se
transformar em mera charada sem sentido, de simples gozo
intelectual (se é que tal pode ocorrer em questões tão áridas).
Posto de lado o problema das normas interpretativas (que,
por sua vez, hão de distinguir-se das leis interpretativas), algumas
categorias menos problemáticas para o que ora nos importa se
quedam ainda.
Quando a ordem jurídica deixa na disposição dos
particulares a possibilidade de escolher vias de solução dos seus

326
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

problemas com atinência jurídica, quando lhes permite fazer ou


não fazer testamento, contratar ou não contratar nos termos gerais
da liberdade contratual, escolher um regime de bens em convenção
antenupcial, etc. está não a desinteressar-se da regulação jurídica de
tais problemas, mas a assumidamente remeter para os atores sociais
a conformação concreta do seu papel, homologando-o,
sancionando-o à partida. Quer dizer: assim escolham os
particulares, assim o Direito tratará como boa a sua opção.
Por vezes, as possibilidades para exercer as predileções e
interesses pessoais são taxativas (numerus clausus dos regimes de
bens, por exemplo), outras, satisfeitos certos requisitos de base, tem
apenas a barreira da própria imaginação dos contraentes (numerus
apertus dos contratos possíveis, por exemplo). Mas sempre se está
perante uma faculdade, na disposição dos particulares, que a
escolhem ou não, e, por vezes até, segundo um de vários modelos.
Trata-se aqui das normas dispositivas.
Imaginemos, porém — e não é difícil imaginar o que sucede
tão correntemente — que o velho avarento (um descendente,
decerto, daquele do poema de Bocage que trocava um olho por
dez moedas), moribundo, não quis ou não pôde, à hora da morte
(nem com o vagar dos anos maduros) redigir o seu testamento, ou
que os noivos, jovens e estouvados, nem sequer tomaram
conhecimento de tal coisa, material e pouco romântica, como os
regimes de bens, ou que, na fremente absorção do negócio,
olvidaram os empresários estabelecer o lugar do cumprimento do
contrato. Vai o Direito deixar sem tutela estes três casos?
Obviamente que não. Podiam todos eles ter estipulado, de entre o
leque de soluções admissíveis, aquela que mais lhes conviesse; não
o tendo feito, entram em funcionamento as "válvulas de segurança"
jurídicas para estes casos — as normas supletivas. As quais, como o
seu próprio nome indica, se encontram congeladas, de reserva, à

327
Paulo Ferreira da Cunha

espera que a falta de opção dos particulares as leve a entrar em


cena, como "suplentes".
Vejamos agora alguns exemplos. Tomemos o caso da
cessão de créditos (art.º 577 .º et sq C.C.).
A admissibilidade de cessão de créditos é acolhida, nos
termos do art.º 577.º C.C.: "O credor pode ceder a terceiro uma
parte ou a totalidade do crédito ... ". Trata-se de uma norma
facultativa ou não imperativa, dispositiva hoc sensu. Mas, além das
limitações da segunda parte do aludido artigo, não pode ceder os
direitos litigiosos, nem por si, nem por interposta pessoa. É o que
prescreve o art.º 579.º C.C.., o qual, proibindo tal negócio e
impondo para tais cessões a sanção de nulidade, contém normas
proibitivas, que são uma espécie das injuntivas ou imperativas. Já
antes, porém, se fixava o regime de créditos hipotecários sobre
imóveis quando não realizada por testamento (art.º 578.º, n.º 2
C.C.): esta deve constar obrigatoriamente de escritura pública. Ora,
tal imposição configura a existência de uma norma preceptiva, a
outra espécie do género das normas injuntivas.
Voltemos ao art.º 579.º No seu n.º 3, é-nos dada a definição
legal de direito litigioso — e tal é aquele que "tiver sido contestado
em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado".
É patente ser esta uma norma interpretativa, a qual, fixando o
sentido da expressão, nos parece, como referimos, mais imperativa-
preceptiva que facultativa. O n.º 2 do artigo em causa contém
igualmente uma norma interpretativa.
O artigo 582.º n.º 1 C.C. dá-nos um exemplo de norma
supletiva. Pode-se convencionar outra coisa, mas, se tal não for
feito (e, a sê-lo, está-se no exercício de uma norma dispositiva hoc
sensu, facultativa), a cessão do crédito implica que para o
cessionário se transmitam aquelas garantias e outros acessórios do
direito transmitido, desde que não tenham carácter pessoal,

328
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

inseparável da pessoa do cedente. O não exercício dessa faculdade


convencional (1.ª parte do n.º 1), implica a entrada em ação de
uma norma supletiva (2.ª parte).

5. Normas "plus quam perfectae", "perfectae"


"minus quam perfectae", "imperfectae"
A distinção entre normas "plus quam perfectae", "perfectae",
"minus quam perfectae" e "imperfectae" é uma distinção muito
antiga, e que visa agrupar as normas consoante as sanções que
cominam para a sua infração.
"Mais que perfeitas" (plus quam perfectae) são as normas
que, no topo da escala, piores ou mais gravosas consequências
acarretam para os seus violadores. Por um lado, os efeitos e
consequências de uma hipotética dimensão jurídica do ato violador
do Direito ficam apagados juridicamente da ordem jurídica. E tal
ocorre desde o momento da prática do ato violador, isto é, fica tal
ato ferido de nulidade (não simplesmente anulabilidade que é uma
sanção mais leve).
Por outro lado, não se fica por aqui: cumulativamente,
impõe-se uma sanção da índole da pena. Ao sacrifício de se ver
sem efeitos o ato praticado acresce, pois, um autónomo sacrifício
(pecuniário ou pessoal, v.g. privação da liberdade, pela prisão) de
índole punitiva. Este é o caso, por exemplo, da usura criminosa
(art.° 284.º C.C.) ou de qualquer negócio contrário à lei (cf. art.º
280.º, n.º 1 C.C.) que caia sob a alçada penal-sancionatória (cf.
C.P., Parte Especial).
"Perfeitas" (perfectae) são as normas que, impondo a
nulidade do ato violador, contudo prescindem da imposição de
uma pena. Aqui se encontra a maioria das nulidades de Direito

329
Paulo Ferreira da Cunha

Civil. Voltando ao art.º 280.º, parece que será de incluir aqui


alguns negócios física ou legalmente impossíveis, ou contrários à
ordem pública e aos bons costumes, desde que não entrem em
molduras criminais cuja estatuição correspondente seja uma pena.
As normas "menos que perfeitas" (minus quam perfectae)
são normas que, ao contrário das últimas, se impõem uma pena,
deixam ainda válido (não nulo ou anulável) o ato violador.
Muitas vezes tal sucede em vista da proteção de terceiros:
um comerciante que vende depois do horário não vê o seu
contrato invalidado (isso seria uma penalização exagerada para o
comprador, que não tem culpa nenhuma da atitude do vendedor),
mas certamente deverá pagar uma multa.
Outras vezes, há proibições de comportamentos que, uma
vez produzidos, não podem ser apagados no Tempo. "Não pise a
relva", mais ainda que a norma hoje tanto em desuso "É prohibido
(sic) afixar cartazes aqui" não envolve nenhum negócio, mas apenas
uma ação. Consumada a infração, apenas a repreensão ou a multa
se oferecem à ordem jurídica como reação. Prisão será obviamente
demais... e mesmo a multa, proporcionada, deveria ser aplicada
mesmo só em casos muito graves, sendo preferível a repreensão,
que quando os cidadãos têm brio na sua reta atuação, será
certamente mais que suficiente. O problema é quando há pessoas
que desprezam as leis e se riem da ordem, cuidando poder fazer
tudo o que lhes apetece. Essa é também uma consequência do
amoralismo e do individualismo feroz em que somos hoje
educados. Os quais decorrem, realmente, de falta de educação.
Finalmente as normas "imperfeitas" (imperfectae), que
alguns creem dever questionar se serão verdadeiras normas
jurídicas, estão desprovidas de todo o elemento sancionatório, não
estatuindo nem pena nem invalidade do ato. Mas podem
realmente ser consideradasjurídicas, porque o Direito não implica

330
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

necessariamente sanções. Pode ser apenas uma direção, um


comando, ou até mesmo uma recomendação ou indicação
persuasiva pelo peso pedagógico da ordem jurídica (o Direito tem
essa função ainda, não pode é ser um anti-Direito).
A maioria das prescrições constitucionais de índole
programática encontram-se neste caso, apesar dos mecanismos de
inconstitucionalidade, nomeadamente de inconstitucionalidade por
omissão (art.º 283.º CRP).
Por outro lado, não serão apenas as normas constitucionais
programáticas a padecer desta "incompletude"; mesmo algumas de
tipo organizatório. No âmbito da atual Constituição, mas ainda não
revista, Baptista Machado considerava integrar-se nesta hipótese a
norma do n.º 3 do art.º 198, que impunha ao Presidente da
República a dissolução obrigatória da Assembleia da República no
caso de recusa da confiança ou aprovação da censura ao Governo,
determinando assim, por qualquer destes motivos, a substituição
do Governo. De facto, se o Presidente da República o não fizesse,
que sucederia? A disposição desapareceu na revisão constitucional
de 82, mas suspeitamos haver outras normas de índole semelhante
escondidas nas dobras das leis.

6.Normas consuetudinárias, jurisprudenciais,


doutrinais (ou científicas), legais e negociais
O problema agora é o da proveniência das normas. É certo
(e tal, bem investigado e ponderado, lançaria luz sobre boa parte
desta matéria) que as hoje tradicionais teorias classificatórias das
normas foram cunhadas sobre o modelo da lei, tal como os
iluministas e depois os liberais a encaravam (daí as suas
características: generalidade, abstração, imperatividade,
coercibilidade...). Todavia, se o impacto de tal reducionismo do
331
Paulo Ferreira da Cunha

Direito à lei ainda hoje se faz sentir, e muito118, a verdade é que há


normas jurídicas que não são leis.
E mais: cada vez com maior acuidade se vai fazendo notar
que mesmo os diplomas que tal nome ostentam em muito boa
medida e em grande número não mereceriam tal nome à luz dos
princípios referidos, pois lhes faltam as aludidas características.
É assim que importa também classificar as normas de
acordo com as fontes de Direito de onde brotaram.
Tais fontes são, como sabemos, essencialmente a lei
(designando agora não a lei abstrata, arquetípica, racional, mas toda
a produção normativa editada por órgãos legislativos no exercício
da função respetiva, ou outros órgãos no exercício de tal função —
v.g. o Governo, neste caso entre nós editando “decretos-lei”), a
jurisprudência (as decisões dos tribunais, as sentenças), o costume
(usos repetidos a que se junta a convicção de tais práticas
constituírem deveres jurídicos) e a doutrina (as opiniões dos
estudiosos do Direito, dos tratadistas, a opinio doctorum). E, não
se esqueça, no domínio do Direito Internacional Público, os
Tratados.
Mais recentemente, surge a ideia de que certos contratos
são autêntica fonte de direito de eficácia relativamente geral (no
âmbito dos interessados) — é o que se passa, nomeadamente, com
os contratos coletivos de trabalho. Mas, na verdade, todos os
contratos, todos os negócios jurídicos mesmo, criam normas para
os seus específicos destinatários. No plano das fontes de Direito,

118
E positivismos se encarregariam sempre de fazer perdurar. Os
neoconstitucionalismos e ativismos judiciais, contrários ao legalismo, em certo
sentido vieram até a levar água ao moinho de um novo legalismo (por vezes de
antilegalistas convertidos), porque em muitos casos foram longe demais num
direito “livre”, a que alguns, em casos pontuais, acusam de subjetivismo e afins,
fazendo lembrar a velha máxima francesa que teme a equidade dos tribunais. É
sempre preciso moderação e bom senso na aplicação de qualquer teoria, ou
então cai-se em extremismos.
332
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

como vimos, é muito discutível a aceitação de fontes negociais; mas


agora trata-se apenas da origem de disposições concretas.
Assim, as normas serão consuetudinárias se a sua origem
direta for o costume, jurisprudenciais se tiverem causa próxima nas
decisões dos tribunais (o que ocorria muito mais frequentemente
quando os Assentos eram plenamente considerados
constitucionais, o que deixou de ocorrer), etc.
Contudo, no atual estado de coisas, não vivendo nós de há
muito no clima jurídico da doutrina como fonte imediata de
Direito, que era o da Roma do jus publice respondendi, não parece
de admitir normas doutrinais quanto à origem. Para existir uma
norma jurídica positiva é preciso que ela tenha vigorado, ao menos,
e sabemos que a entrada em vigor de normas, hoje, não depende
da opinião dos sábios, mas da vontade dos políticos, e o mais que a
doutrina pode assim, fazer, é ir clamando no deserto de um ruído
cada vez mais geral119. Note-se que agora há uma opinião pública,
nomeadamente em redes sociais, que altissonantemente se
manifesta em questões jurídicas (grande parte das vezes sem
possuir nenhuma formação jurídica). Isso é mais um fator de ruído.
Fonte apenas mediata, a doutrina não origina diretamente
normas, que requerem contributo de outras fontes para virem à
vida. Há, porém, muitas normas doutrinais, mas não no nosso
sentido: normas de lege ferenda, de jure constituendo, isto é,

119
Ou então passará a ser acarinhada pela política se conseguir, normalmente
pela comunicação social, cair nas boas graças da “opinião”. Há trabalhadores de
doutrina que raramente são citados, e outros que contam com a permanente
curiosidade mediática. Por vezes nem se sabe o que será melhor, porque muitas
vezes alguns dos consultados aparecem, nos meios de comunicação, não só com
o seu pensamento muito truncado, como por vezes até distorcido. Não é fácil a
doutrina falar e ser ouvida pela comunicação social, em muitos casos em busca
de declarações bombásticas, polémicas, de sangue e escândalo. Faz muita falta
jornalismo verdadeiramente rigoroso e conhecedor do Direito, com o desejo de
informar com competência e isenção.

333
Paulo Ferreira da Cunha

direito que ainda não é, mas se pretende que venha a ser, no


fundo, projetos, propostas de normas; e normas de outro tipo, de
índole sistemática, construtiva, regras ou leis "científicas" do Direito,
vigente ou não, mas mais gerais ou abrangentes.

7.Normas éticas e normas técnicas;


normas de estatuição material e normas de estatuição
jurídica
Como temos vindo a observar, todos estes problemas se
misturam, e surgem de novo questões que nos pareciam elucidadas
(se não mesmo esgotadas) há umas boas páginas atrás. Vimos que a
norma jurídica, e o Direito em geral, se distinguem da norma ética
ou moral. A que propósito, então, "normas éticas" no plano do
jurídico? E está já a ver-se claramente uma questão semelhante a
outras já aqui colocadas: à da imperatividade, por exemplo.
Na verdade, o Direito não se identifica com a Moral, e
sabemos como as tentativas de o transformar em simples correia de
transmissão desse (ou de outros, na realidade) tipo de valores levou
ao contrário dos objetivos generosos dos partidários de tal erro.
Mas, por outro lado, há um valor que também é Moral e que
constitui a especificidade do jurídico (é o valor tipicamente
jurídico) — a Justiça. Há, portanto, pontos de contacto, como
sabemos. Ora, se todo o Direito é (ou deve-ser) motivado pela
Justiça, nem todas as suas concretas prescrições têm um direto
conteúdo de Justiça, neste caso poderíamos dizer "ético". Não se
trata de normas alheias ao justo, ou amorais, nem (muito menos)
injustas ou imorais. São comandos de ordenação, de regulação,
arbitrários (ou, de todo o modo, não únicos, não necessariamente
aqueles), mas, todavia, imprescindíveis ao bom funcionamento
social, ou à harmonização inter-órgãos ou inter-normas.

334
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

O exemplo clássico é, sabemo-lo, o dos sentidos do


trânsito. Não importa se se anda pela direita ou pela esquerda,
desde que, numa dada ordem jurídica, haja uma norma técnica a
impor um único sentido. A norma ética é outra, primária,
subjazendo a essa norma secundária. E tal dirá (subentendemo-lo)
algo como: é preciso que haja um sentido do trânsito, seja ele qual
for; deixando assim às ordens jurídicas a disposição sobre qual o
sentido a escolher, mas não contendo norma supletiva.
Fica, portanto, esclarecido que as normas técnicas visam
regular aspetos de não imediata relevância "moral" ou jurídica, de
flagrante eticidade imediata, ao passo que as normas éticas estão
propostas a esse objetivo, sendo, de entre elas, de destacar o papel
altamente ético das normas de Direito Penal. Embora, com o
andar dos tempos, se não se verificar uma ponderada e vigilante
revisão das normas, possa acabar por existir um descompasso entre
as conceções éticas vigentes numa sociedade e o seu Direito.
Diríamos que tal pode ocorrer de formas diferentes: pode ser que
a sociedade nuns casos tenha perdido sensibilidade ética (ficando a
eticidade no Direito), e pode ocorrer também que, noutros casos, o
Direito tenha ficado ultrapassado, já não permaneça depositário de
grandes valores.
Como é sabido, nem sempre é patente o conteúdo das
normas para esta classificação. As normas processuais ou
procedimentais, à primeira vista iniludivelmente técnicas,
encerram, não raro, princípios éticos (ou antiéticos – pense-se num
processo inquisitorial, ou de uma polícia política num Estado
totalitário) relevantíssimos. Veja-se, v.g., as que instituem a
audiência dos arguidos ou interessados, o princípio do
contraditório, etc. É preciso, pois, o maior cuidado na distinção. As
normas foram feitas para o Homem, e não o Homem para as
normas – este é um princípio fulcral, muito especialmente para os

335
Paulo Ferreira da Cunha

casos de normas técnicas. A burocracia que nos manieta deve


obedecer e ser preterida em função de normas mais altas.
No exemplo clássico, se o regulamento hospitalar
determina que se ministre aos doentes em estado pós-operatório
um tranquilizante intramuscular de x em x tempo, com o único fito
de colocar os pacientes em sonolência analgésica, não vai a
enfermeira de serviço, Norma, acordar o senhor Morfeu, que
dormia o sono dos justos a essa mesma hora, sob pretexto de lhe
dar a injeção da praxe.
O fim da norma é fundamental. Há que ter entretanto em
consideração que se as normas técnicas poderão, em casos
contados (como o narrado) ser preteridas, já o não poderão ser as
éticas. Essas servem o Homem mas de forma diferente; não o
concreto indivíduo (que pode ser hedonista, e com elas se
incomodar), mas a humanidade do Homem.
Ainda nesta ordem de questões, deve falar-se nas normas
quanto aos seus diferentes tipos de estatuição, o que faz de novo
pensar sobre o que é ou não é jurídico.
De facto, há normas jurídicas mais ligadas ao mundo
jurídico propriamente dito, e normas mais votadas à regulação do
universo extrajurídico (embora se saiba claramente, desde Kelsen,
que o Direito tende a transformar em algo de jurídico tudo aquilo
em que toca: qual rei Midas fazia todo tornando oiro). Umas, têm
como destinatários potenciais todos os membros da comunidade
jurídica enquanto meros cidadãos, na sua vida normal, e dizem
coisas simples como "não matarás" ou "não roubarás", ou v.g.,
entregarás ao dono o que de perdido achares (art.º 1323.º C.C.) —
são as normas de estatuição material. Outras, visam sobretudo
efeitos jurídicos, e, portanto, destinam-se às pessoas enquanto
sujeitos de direito. De entre estas, desde logo se destacam as
normas sobre a aquisição e perda da personalidade jurídica, da

336
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

capacidade jurídica, etc. Dizem-nos quando e como podemos lidar


com o Direito. Claro que, em última instância, estas últimas, de
estatuição jurídica, acabam por se referir a questões materiais, só
que não o fazem diretamente. Estabelecem normalmente
condições e pressupostos (v.g. a maioridade cf. v.g. art.º 122.° C.C.
a contrario; art.º 123.º C.C.) para que outras normas, desse outro
tipo, venham a entrar em ação.

8.Normas inovadoras e normas interpretativas


Já falamos muito brevemente das normas interpretativas a
propósito da questão da imperatividade, e, mais especificamente,
da facultatividade normativa. De facto, estas são as que esclarecem
o sentido de outras normas, quer do mesmo diploma, quer de
diplomas anteriores ou ulteriores. Nisto (nesta abrangência) se
distinguem das leis interpretativas, as quais só visam leis passadas,
e, aliás, têm eficácia retroativa (art.° 13.° C.C.).
Nesta classificação fica em causa mais uma dessas
características tidas como "das normas jurídicas", em geral, mas que,
na verdade, fora cunhada sob o impacto e à luz da visão liberal da
lei. Esta não se confundia com qualquer ato de autoridade, ou
qualquer ato normativo: era algo de inovador. Os atos
administrativos e os regulamentos, por exemplo, não inovando
(neste sentido — aplicando, executando, leis anteriores) não eram
lei — claro.
Admite-se hoje sem problemas que possa haver normas de
carácter menos inovador — ou até não inovador senão na própria
entrada em vigor (v.g. decisões repristinatórias — em que se vai
novamente pôr em vigor uma lei anteriormente revogada, e que,
por isso mesmo, já fora vigente).
Mas o que especificamente nos ocupa aqui é a
contraposição entre os casos de inovação jurídica — em que ex
337
Paulo Ferreira da Cunha

novo se prescreve uma nova regulamentação (diferente da vigente,


por norma prévia expressa; ou tutelando pela primeira vez matérias
que se encontravam praeter legem, para além da lei) — e as
situações de retorno a um clausulado, ou remissão para um
clausulado, fixando-lhe o sentido ou auxiliando a tal fixação.
Se a esmagadora maioria das normas é de carácter
inovador, há também diversas situações de normas interpretativas.
No fundo, tais normas podem ter uma interpretação explícita ou
implícita. Podem referir-se ao conteúdo de outras normas mais em
particular (e aí estaremos muito próximos das já aludidas leis
interpretativas), normalmente através da técnica normativa das
remissões expressas (assim, o n.º 2 do art.º 657.º envia para o art.º
717.º, o n.º 2 do art.° 507.º para o n.ª 2 do art.° 497.º, etc.). Ou
então, meramente pode-se fazer uma interpretação tácita, como
quando se definem termos jurídicos (e, nesse sentido, trata-se
claramente de normas de estatuição jurídica). Os nossos Códigos
têm muitas definições, embora definir muito seja perigoso para a
lei (à doutrina deve caber tal tarefa), porque manietante.
Quase definições (são mais enumerações), as normas sobre
Fontes imediatas do Direito, por exemplo, não nos dão uma ideia
sistemática e clara do problema (cf. artºs 1.º e 2.º C.C.), como
tivemos já oportunidade de ver.
Mas o Código Civil contém muitas verdadeiras e próprias
definições. Folheemo-lo ao acaso: o artº 122.º define, afinal, quem
é menor, o artº 202.º n.º 1 (não com muito rigor, é verdade) dá-nos
a noção de coisa, e se o 204.º nos fornece a lista das coisas imóveis,
já os artºs 205.º a 212.º nos vão definindo coisas móveis,
compostas, fungíveis, consumíveis, divisíveis, acessórias, futuras e
frutos. Mais adiante, o livro III, abre com abundantes definições
legais: Posse (art.º 1251.º), e suas espécies (1259.º et seq.), etc..
Em conclusão: na norma interpretativa explícita,
normalmente uma remissão, ela é interpretativa na medida em que

338
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

obriga a um elemento concreto de interpretação a respeitar – a


norma para que remete; já na norma interpretativa implícita,
normalmente uma definição, ela é interpretativa porquanto sempre
que noutra norma haja referência ao aí definido, se deve considerar
feita a remissão para a norma definidora, interpretando-se de
acordo com o sentido nela fixado.

9. Normas principais e normas derivadas


Ao longo da nossa "tabela", fomos já por várias vezes
aludindo a esta espécie de hierarquia genética das normas, a esta
situação de umas normas virem primeiro, e outras depois, o que
sucede por diversas razões. Normalmente, chamamos-lhes normas
"primárias" e "secundárias". É uma distinção que existe em muitos
domínios da cultura. Veja-se, por exemplo, a distinção entre cores
primárias (básicas) e secundárias (compostas).
Na diferenciação entre as nossas duas categorias entra
usualmente mediador lógico. A regra principal é dada, e dela
logicamente se inferem novas regras. Tal é o que sucede, na
interpretação enunciativa (quem permite o mais, permitirá o
menos; proibido este, será proibido aquele, etc.) Porém, como aliás
tivemos já ocasião de ver, a propósito das normas éticas, pode
suceder igualmente o inverso. De uma norma mais concreta
(técnica, normalmente), também será possível inferir a mais geral
(ética, por via de regra). Esta última, será ainda a secundária, e
aquela a primária. Ou seja: esta a derivada e aquela a principal,
embora uma seja expressa e a outra tácita.
Ou deveríamos considerar sempre norma primária a mais
eticamente fundante, ainda que derivando da técnica? O problema
reside, antes de mais, no que, no caso, signifique “derivar”. Terá
sido a norma técnica pretexto ou motivo para se descobrir a ética?
Ou mais que isso? Matéria para ulteriores discussões... já não nesta
obra.
339
Paulo Ferreira da Cunha

10.Normas autónomas e não autónomas;


normas completas e incompletas: normas diretas e indiretas
Anda agora envolvida aqui, mais expressamente, uma
presença que, nos demais problemas postos apenas se pressentia
ou esboçava. As normas não são prescrições derivadas de hipóteses
que vivam justapostas a se stante sem interligações e sem referência
ao sistema geral de Direito em que se inserem. É a ideia de sistema
que agora vem interferir, por fim, na nossa análise.
Todas as normas dependem, ao menos virtualmente, das
demais. Quem tem uma questão de águas pode parecer alheio ao
normativo do Direito Económico do Orçamento, mas decerto
deverá ter em atenção ao Direito Penal, dadas as ofensas corporais
não raro emergentes de tais querelas de propriedade. No limite, o
Direito, como quadro institucional muito lato, muito envolvente,
acaba por se encontrar, em cada vez maior número de casos da
vida, à beira da omnipresença. Assim, cada norma jurídica se sente
na vizinhança das demais e lhes sofre a influência, tantas vezes por
osmose interpretativa… Há, na verdade, um sistema jurídico na
ordem jurídica.
O facto de as normas se não encontrarem isoladas, permite-
lhes certas lacunas, certos subentendidos, que o ordenamento
jurídico saberá tutelar. As normas sobre interpretação e integração
das lacunas são autênticos cirurgiões regeneradores de tecidos
normativos não raro esburacados. A velha ideia da plenitude lógica
do ordenamento jurídico continua, sob várias formas, a permitir
que o Direito não deixe de fora nenhuma das questões que como
tal se lhe ponham e ele considere com dignidade jurídica. Muito
cuidado, porém, é necessário para o Direito não se intrometer na
zona livre de Direito (há redutos de liberdade e intimidade que não

340
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

podem ser devassados e constrangidos pela juridicidade120), sob


pena de se instituir um Estado totalitário. Afigura-se-nos, por
exemplo, que nenhuma autoridade escolar poderia impor o seu
poder obrigando crianças a responder a inquéritos sobre as suas
“orientações sexuais”. Temos até muitas dúvidas que seja lícito
perguntar coisas que podem levar a discriminações, como
perguntas que peçam “cor”, “raça”, religião, ou mesmo condições
económicas. Dizia-se (em tempo de menos rumores e em que a
expressão fake news não tinha sido ainda inventada) que na antiga
República Democrática Alemã se conseguiria identificar as famílias
dissidentes ou não fidelíssimas ao regime pedindo às crianças, nas
escolas, que desenhassem a mira técnica da sua televisão. Se
desenhassem a da República Federal da Alemanha haveria muitas
suspeitas imediatamente...
Quanto mais sabem de nós, mais podem controlar-nos e,
de houver uma ditadura (o que não está definitivamente afastado:
hoje é claro) perseguir-nos ou eliminar-nos. Depende de a quem
agradarmos ou não. Por vezes até há intromissões com intuitos de
proteção. Mas podem facilmente ser desvirtuados.
Voltemos à sistematização. Cada norma não vai dizer tudo.
O recurso a outras normas revela-se cada vez mais indispensável, e
não apenas em sede da interpretação sistemática.
De entre os vários casos de diversa autonomia, completude
e transferência normativas, analisemos muito brevemente apenas
três.
Quando de uma norma validamente se possa retirar um
sentido completo, sem o recurso explícito e direto a outras normas,

120
Parece haver obsessão com pássaros, por exemplo. Foi noticiado há anos que
uma municipalidade nos EUA proibira que cantassem após determinada hora.
Não se sabe se multarão os animais ou os seus donos: provavelmente estes, que
terão dificuldade em fazer cumprir a norma. Em 2018, foi noticiado que a
Tailândia planearia impor penas de prisão para quem alimente pombos em
áreas de grande concentração desses bichos.
341
Paulo Ferreira da Cunha

estaremos perante uma norma autónoma. Caso contrário, i.e., se


necessitamos de esclarecer o sentido, a razão de ser ou o alcance
da norma através da consulta e da interpretação de outros
normativos paralelos ou próximos, regulamentações de casos
semelhantes ou simétricos, ou v.g. outros artigos, prévios ou
posteriores do mesmo diploma, então diremos tratar-se de uma
norma não autónoma. Como sabemos, porém, estas classificações
são tendenciais, na medida em que o elemento sistemático de
interpretação impõe sempre um enquadramento da norma nos
diferentes círculos normativos em que se insere, e, no limite, nos
parâmetros gerais da ordem jurídica.
O problema da completude das normas põe-se já não tanto
em termos de interpretação-aplicação, como da simples lógica
estrutural: tem ou não uma norma, em si e por si, os elementos
naturais de toda a norma jurídica?
Se os não tiver em absoluto, não poderá ser considerada
como tal. Todavia, poderá tê-los pressupostos, ou seja, só
detetáveis pelo recurso ao conhecimento de outras normas que,
assim, a venham complementar. E o problema é sobretudo
verificável ao nível da estatuição (também dita sanção, hoc sensu,
como se sabe).
Quando, pois, uma norma não apenas delimita os
contornos de uma hipótese, mas prescreve por inteiro a respetiva
consequência jurídica, estamos, naturalmente, no âmbito das
normas completas. Se, ao invés, temos necessidade de indagar das
consequências ou das repercussões da hipótese em outra ou outras
regras, é certo tratar-se de uma norma incompleta. A tabuleta que,
no jardim público, prescreve ser proibido pisar a relva, ou o
letreiro que, na sala de aula, num táxi, ou num gabinete prescreve
ser vedado o fumo, são normas incompletas, ou, pelo menos, uma
expressão incompleta de normas eventualmente completas (podem
— como é normalmente o caso — apenas transcrever o comando
proibitivo). Já quando nos transportes coletivos urbanos se lê
342
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

"sujeita-se a pesadas multas ao Estado quem não usar título de


transporte válido" estamos perante a ameaça de uma sanção, mas
ainda pouco precisa. A norma seria, pois, semi-completa. Por
vezes, nos mesmos dísticos aparece o montante, pelo menos o
montante mínimo. É o que sucede para as multas anunciadas por
cartazes idênticos nos comboios — prescreve-se como multa, por
exemplo, o dobro do valor do bilhete, num mínimo de multa de x.
Aí a norma está completa. Dizer o montante exato, além de
exagero, seria prescindir de todo o poder de determinação
concreta da sanção pelo julgador competente ...
Como se vê, quando o Código Penal prescreve penas para
crimes, facilmente se deteta no texto dos seus artigos a hipótese (ou
previsão) e a respetiva estatuição (ou sanção). Mas quando se nos
dão legalmente definições, temos que esperar pelas normas que
apliquem tais definições para ficarmos a saber do alcance e
implicações da norma definitória, que funciona assim um tanto
como hipótese (embora a sua estatuição — pode figurar-se — seja:
considera como x — o conceito — a situação y — a hipótese).
As normas — temo-lo visto — não se aplicam senão muito
raramente a todos. Todos somos, por princípio e pelo valor
superior da Igualdade, iguais perante a Lei, a lei que se nos aplica
concretamente. Embora a comunicação social nos traga, por vezes,
situações noutras latitudes (não conhecemos os pormenores,
apenas as notícias) de discriminação deste ou daquele, destes ou
daqueles, e até determinada por autoridades. E eventualmente
determinada pelas leis (obviamente leis injustas).
Cada lei, cada norma, tem um âmbito pessoal de alcance
mais ou menos delimitável, como sabemos. Um dos aspetos
significativos de tal situação (e que já algo vimos, sob outro prisma,
quando falamos de normas de estatuição material ou jurídica) é o
facto de certas normas terem como destinatários todos os sujeitos
de direito, para resolução direta dos seus problemas jurídicos
(normas diretas), enquanto outras apenas visam resolver questões já
343
Paulo Ferreira da Cunha

de si jurídicas, tendo, por isso, aplicabilidade indireta (normas


indiretas).
Umas vezes este carácter indireto regula a aplicação da lei
no tempo, ou seja, o âmbito temporal da aplicabilidade. Mas,
noutros casos, trata-se de puras normas de transferência — normas
que dizem qual a regra a aplicar. Tais os casos das normas de
conflitos (desde logo do Direito Internacional Privado), e as
remissões, presunções e ficções. São também deste tipo as normas
("remissivas") negativas, as quais, porém, proíbem a remissão,
interditam a aplicação de um certo regime aparentemente aplicável.

11.Objetivos da categorização ensaiada


Não terminámos, obviamente, o jamais encerrável
problema da teoria da classificação das normas; mas, na
complexidade inegável da questão, e dada a extensão não irrazoável
que nos propúnhamos conferir ao tema, esperamos sobretudo
poder alcançar cinco objetivos: 1) não ter simplificado
abusivamente o que é vasto e não linear; 2) não ter complicado,
pela via da banalização, tornando o tema árido e apenas apto à
memorização; 3) ter sugerido a relacionação da matéria com
diversas outras, do maior interesse; 4) dar uma panorâmica geral
das questões e da sua razão de ser; 5) fornecer os instrumentos
teóricos imprescindíveis a uma consciente e raciocinada aplicação
prática, que saiba as fraquezas e forças do seu instrumentarium
conceitual.

344
Livro IV
HERMENÊUTICA:
DA INTERPRETAÇÃO /INTEGRAÇÃO
À PERSPETIVAÇÃO HOLÍSTICA

Sumário:
Parte I.Aplicação do Direito e Hermenêutica
Parte II.Para uma Hermenêutica: entre o passado e o futuro
Parte III.Hierarquias hermenêuticas
Parte IV.Conceitos Basilares

345
Parte I
Aplicação do Direito e Hermenêutica

Sumário:

1.Aplicação do Direito
2.Hermenêutica Jurídica

347
1.Aplicação do Direito
O Direito é uma ciência prática. Serve antes de mais para
julgar litígios, e, mesmo antes disso, para regular a vida normal em
sociedade, evitando-os com regras razoáveis.
De qualquer forma, a perspetiva do litígio sobressai, porque é
a mais extrema. A imagem clássica do Direito como deusa com
uma balança revela-nos o mesmo que algumas simbologias
modernas, que representam o Direito sob a forma de triângulos.
Como é o caso da simbologia de Le Corbusier no palácio da
Justiça de Chandigarh, na Índia. Têm razão. A deusa pesa o que
está em dois pratos. O juiz também é uma espécie de vértice do
triângulo. Os atores da Justiça são, desde sempre, os litigantes (as
partes) e o juiz. São três, como os ângulos e os lados do triângulo.
Não se pense, porém, que esta imagem remete para a velha
dualidade que separa a razão teórica da razão prática. Retomando
Gadamer, Dworkin e Lenio Streck, sabemos que o Direito tem
profunda dimensão interpretativa e que, a partir do
constitucionalismo contemporâneo, “resgata o mundo prático com
a ajuda dos princípios”, como diria este último. Embora,
evidentemente, a principiologia haja sido usada para muito
subjetivismo e falta de técnica nos últimos anos, a culpa não é sua,
mas dos seus maus utilizadores...
Os direitos só existem efetivamente se se puderem pedir em
tribunal. De nada me adianta ter direito ao ensino se não tenho
vaga na Universidade nem meios de fazer valer o meu direito. Não
posso ter direito à habitação se não posso comprar uma casa, nem
sequer arrendar uma, por falta de dinheiro. Contudo, isso não quer
dizer que esses direitos, aliás constitucionais, não existam: o que
muitas vezes pode acontecer é não terem os governos e os
parlamentos tido a diligência de fazer tais direitos reais, práticos,
efetivos. Isso poderá configurar uma inconstitucionalidade por
omissão (art.º 283.º da CRP).

349
Paulo Ferreira da Cunha

É por isso que, no direito, o mais imediatamente visível é o


papel dos tribunais. Claro que nos nossos dias a legislação
abundantíssima e uma administração pública enorme criam
inumeráveis pressupostos — leis, atos administrativos... — à
atuação do juiz. Mas ainda há alguns anos ninguém duvidaria um
segundo em apresentar este como o símbolo vivo do Direito, e não
os deputados, os ministros ou os funcionários públicos, que
representam a política e a administração. Hoje haverá, pelo menos
em alguns países, dúvidas sobre a independência de alguns juízes
frente à política. Os juízes não são justiceiros, heróis de capa negra
(espécie de Zorro). O seu trabalho é silencioso e não deve ser
mediático. Devem estar livres dos holofotes e das famas, para
poderem com rigor, calma, e no anonimato, fazer o seu papel.
Quando a justiça se mediatiza, é quase certo que as coisas ficam
mal. Muito menos deve haver justiça televisionada, como se fosse
um espetáculo ou futebol. Evidentemente que sempre há e haverá
grandes juízes, muito bem preparados, probos, isentos, etc.. Mas
basta haver um ou dois a posar para as câmaras ou a querer vir a
ser Presidente para tudo se confundir, e a Justiça se politizar e
partidarizar. Felizmente, em Portugal, os juízes são recatados e
competentes.
Na medida, pois, em que, em alguns países, a Justiça se possa
subjetivizar e, pior ainda (ou igualmente mal) politizar, o poder
judicial, último reduto de credibilidade e último apelo, acaba por
desacreditar-se. E dos tribunais nacionais começa-se a colocar todas
as complacências em juízes mais independentes, de tribunais
internacionais. No limite, numa futura Corte Constitucional
Internacional... E já há muitas Cortes internacionais, a começar
pela Penal ou Criminal...
Em Roma, sobretudo no período clássico, os pretores
constituíam um exemplar corpo de magistrados, verdadeiros
sacerdotes da Justiça, que (adjuvados pelos jurisconsultos) criaram
um Direito adaptado às realidades e tão capaz de servir o justo.
Boa parte desse Direito ainda está em uso.

350
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

Uma magistratura judicial, um corpo de juízes íntegros e bem


formados, experientes e competentes é a melhor garantia de um
sistema jurídico são. A sua devoção deve ir para o estudo, a sua
meta deve ser a Justiça, o seu lema deve ser a verdade. Libertos das
pressões do poder, das tentações da riqueza, das seduções das
ideologias, assim eram os pretores, esses magistrados romanos
cujas sentenças estão gravadas a oiro na memória da História do
Direito. Evidentemente que sempre há páginas mais sombrias. Mas
em geral parece que o balanço será muito positivo, sobretudo para
a época. Também não caiamos na ingenuidade ou no antiquarismo
de querer que muito peculiares soluções no contexto romano
possam valer para os nossos dias. E, contudo, há muito de vivo
ainda no Direito Romano.
O trabalho jurídico nos tribunais é a situação típica, e extrema,
dos conflitos jurídicos. Pode dizer-se que é a patologia das relações
jurídicas. O cumprimento normal, espontâneo, das obrigações
jurídicas — que a Sociologia do Direito e a própria experiência de
cada um revelam ser o caso de longe mais frequente — será então
fisiologia jurídica, o normal funcionamento do organismo vivo que
é o Direito e as suas instituições; mas se pensarmos que o Direito
só o é, para alguns, quando há litígio, então parece ser precisa-
mente o contrário que sucede.
A aplicação do Direito – que não é simples mecânica, mas um
contínuo descobrir e fazer a Justiça como suum cuique tribuere –,
na prática, redunda na hermenêutica jurídica, a qual consiste
sobretudo na interpretação e criação do Direito.
Porém, a interpretação e criação jurisprudenciais têm limites.
O juiz não pode realmente inventar contra legem. Nem usurpar os
poderes legislativos ou executivos, que estão sob reserva. Há
reserva de lei e de governo (administração), assim como há reserva
do juiz. O juiz não está desvinculado121, pelo contrário.

STRECK, Lenio Luiz – O que é isto – decido conforme minha consciência?,


121

Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2012.


351
Paulo Ferreira da Cunha

Hoje, trata-se especialmente de averiguar o sentido de


textos, ou de suprir a sua falta, sempre à luz da constante e
perpétua vontade de fazer Justiça.

2.Hermenêutica Jurídica
Em termos muito gerais, hermenêutica é a ciência (ou arte,
ou técnica, ou todas elas) da interpretação, seja ela a interpretação
literária, das artes plásticas, ou de Direito. A hermenêutica jurídica
tem, assim, muito de comum com a hermenêutica em geral.
Engloba, classicamente, na banda do Direito, além da
interpretação propriamente dita, a integração (resolução do
problema das lacunas) e a aplicação das normas jurídicas no tempo
e no espaço. A expressão deriva de Hermes, o mensageiro dos
deuses na mitologia grega. Mas é mais que isto, muito mais. Desde
pelo menos Gadamer que podemos dizer que a Hermenêutica
filosófica nos ajuda a ler não apenas textos, nem obras de arte, mas
o mundo em geral. É chave ou pelo menos interrogação
(interrogação-chave: a forma é disso sugestiva) do mundo.
Uma coisa é, realmente, a simples interpretação de textos,
que pode até ser uma mera exegese, pedestre, literalista, etc. (como
supostamente seria o paradigma dos glosadores medievais), e outra
a ciência do sentido (uma das ciências do sentido). A
Hermenêutica, hoje, é um outro olhar para o mundo, em geral122.
Infelizmente, ao Direito ainda não chegaram imensas aportações
desta nova perspetiva, e muitas vezes a expressão é apenas usada de
forma pobre, paupérrima, apenas como uma flor na botoeira.
Seria preciso fazer-se um esforço real de receção da
Hermenêutica em meio jurídico.

Cf., especialmente, STRECK, Lenio Luiz — Hermenêutica e(m) Crise: uma


122

exploração hermenêutica da construção do direito, Porto Alegre, Livraria do


Advogado, 2014.
352
Parte II
Para uma Hermenêutica:
entre o passado e o futuro

Sumário:
1.Dos Elementos de Savigny a uma Hermenêutica holística
2.O Texto – Interpretação literal/gramatical
3.Os Contexto e os Intertextos. O Tempo. Elemento
histórico
4.Os Contexto e os Intertextos. O Espaço. Elemento sistemático
5.O tópico axiológico-normativo. O elemento racional
6.O resultado da interpretação
7.Teleologia hermenêutica
8. Interpretações extensiva, interpretação e corretiva
9. Interpretação enunciativa: visão geral e argumentos
10.Hermenêutica no Código Civil

353
1.Dos Elementos de Savigny a uma Hermenêutica
holística
Tradicionalmente, ensinava-se a hermenêutica jurídica estritamente
como interpretação (e muitas vezes até apenas sob essa
designação), e mesmo hoje em dia continua a insistir-se nos
elementos interpretativos de Savigny, que morreu em 1861.
Porém, muita água correu sob as pontes da Hermenêutica desde
então...
A Hermenêutica não é uma secção separada, dentro do
Direito, bem distante das preocupações quotidianas, mais
prosaicas. Pelo contrário. Com esse nome ou com outro (ou com
nenhum: porque se faz hermenêutica mesmo sem se saber), ela é
um vetor fundamental atravessando quotidianamente todo o
Direito. Assim, na juridicidade em geral encaramos sobretudo uma
razão hermenêutica123, tópica, problemática, e, naturalmente,
judicialista (embora com o maior cuidado para se não cair no
subjetivismo de um direito livre, sob capa de simples ativismo
judicial – ou nem isso) e pluralista. A nossa interpretação não é
uma tabela interpretativa com sinais de uso, mas uma
problematização ágil, que põe em causa velhos mitos todos os dias.
Como escreveu Lenio Streck, desfazendo mitos, “(...) o
pensamento jurídico dominante continua acreditando que o jurista
primeiro conhece (subtilitas inteligendi), depois interpreta
(subtilitas explicandi), para só então aplicar (subtilitas applicandi);
ou, de forma mais simplista, os juristas – inseridos nesse imaginário
engendrado pela dogmática jurídica de cariz positivista-formalista –
ainda acreditam que interpretar é desvendar o sentido unívoco da
norma (sic), ou, que interpretar é descobrir o sentido e o alcance

123
Para mais desenvolvimentos, Desvendar o Direito, p. 129 et sq..
355
Paulo Ferreira da Cunha

da norma, sendo tarefa precípua do intérprete procurar a


significação correcta dos conceitos jurídicos (sic), ou que interpretar
é buscar ‘o verdadeiro sentido da norma’, ou ainda, que interpretar
é retirar da norma tudo que nela (se) contém (sic) tudo baseado na
firme crença de que os métodos de interpretação são ‘um caminho
seguro para alcançar correctos sentidos”, e que os critérios usuais
de interpretação constitucional equivalem aos métodos e processos
clássicos, destacando-se, dentre eles, o gramatical, o lógico, o
teleológico objetivo, o sistemático e o histórico (sic); finalmente,
para total desespero dos que, como eu, são adeptos da
hermenêutica filosófica, acredita-se ainda que é possível descobrir a
vontade da norma (o que isto significa ninguém sabe explicar) e
que o legislador possui um espírito (sic)!” 124

Só uma nova hermenêutica, um pensamento problemático,


uma maior formação dos juristas e maior confiança no
discernimento de juristas como decisores (judicialismo – mas
judicialismo temperado e controlado), entre outros aspetos (como
o cultivo de novas áreas e novas metodologias), poderá fazer
florescer uma nova época para o Direito. Essa nova época, que tem
aspetos hermenéuticos mas lhe junta outros, pode chamar-se
Direito Fraterno Humanista. Evidentemente, não é uma questão
independente do clima social e políticos envolvente.
Mas voltemos ao nosso tema. A verdade é que as imensas e
complexas teorias para melhorar, superar, ou mesmo radicalmente
substituir essa grelha simples e prática de Savigny não lograram
ainda alcançar uma tabela didática, capaz de ser entendida e
aplicada facilmente. Não é muito agradável para os mais imbuídos
de modernismo reconhecer que uma Hermenêutica holística,

STRECK, Lenio Luiz — A Hermenêutica Filosófica e as posibilidades de


124

superação do positivismo pelo (Neo) Constitucionalismo, “Estudos Jurídicos”,


São Leopoldo, RS, vol. 38, n.º 1 , p. 22-36, jan./abr. 2005.

356
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

bebendo do melhor da hermenêutica filosófica e entendendo


claramente a complexa realidade jurídica, não poderá ainda
totalmente prescindir do arsenal do passado. Mas tem que encarar-
se a realidade. Seguidamente, procuramos um diálogo entre
passado e presente, mas, didaticamente, não deixaremos de seguir,
em pano de fundo ao menos, as grandes linhas do velho jurista
germânico, no que ele ainda tem de vivo.

2.O Texto – Interpretação literal/gramatical

Não pode haver hermenêutica jurídica, nunca captaremos o


sentido dos comandos jurídicos, sem textos. Orais ou escritos, mas
hoje em dia quase exclusivamente escritos.
Tem-se, assim, de se ter conhecimento das palavras, nas suas
ligações nas frases, nas expressões, idiomatismos, no vocabulário
técnico, afinal na semântica e na sintaxe, numa interpretação
gramatical com o contributo do léxico jurídico. É o mínimo, sem o
que tudo o mais redunda em fantasia e imprecisão, e não poderá
dar frutos.
Interpretado o texto desta forma corrente, mas correta no
plano da Língua, da Gramática, etc., ou melhor, obtida que seja
uma primeira abordagem pré-compreensiva do texto com estes
elementos básicos, estará o intérprete já apto a passar a tópicos
ainda tradicionais, mas já mais elaborados. Sem, porém, ser
capaz de ler, ler tout court (ou seja, entender corretamente o
escrito) não há hermenêutica que lhe valha.
Infelizmente há, nos nossos dias, muitas pessoas que
evidenciam uma grande incapacidade de leitura e interpretação
simples, e nem sequer falamos já de textos jurídicos: mesmo de
textos correntes e simples. É uma verdadeira desgraça que a
universalização do ensino não tenha sido acompanhada pela

357
Paulo Ferreira da Cunha

universalização da aquisição de competências elementares


havendo muito mais analfabetos funcionais do que se pensa. E
também pessoas que consegue singrar em carreiras que
aparentemente exigiriam essas competências mais acabam por
demonstrar, no quotidiano, que as não possuem, ou não
possuem cabalmente. Por isso é que há tantos mal-entendidos
entre as pessoas...
O conjunto de tópicos que, ultrapassando o imediatamente
semântico, se dirige para uma compreensão mais profunda da
ratio legis, chama-se interpretação lógica ou racional, não porque
a gramatical não o seja, mas porque se avança mais na
interrogação do texto enquanto suporte de uma dada mensagem,
e até já se esboça um pouco uma pergunta normativa e operativa
(sobre o valor e a facticidade ou utilidade) sobre o conteúdo do
comando jurídico.
Assim, os tópicos racionais ou lógicos, olhando o texto da
norma, procurarão aproximar-se-lhe pelas seguintes três vias: a
histórica, a do sistema, e a da razão propriamente dita. Os dois
primeiros privilegiam o intertextual e o contextual, e o último
regressa à norma e aos seus valores.
No fundo, trata-se do tópico temporal, do tópico espacial e
do axiológico-normativo.

3.Os Contexto e os Intertextos. O Tempo.


Elemento histórico
Considera-se com o elemento histórico, ou temporal, que
uma norma não pode deixar de possuir raízes no passado. Que
veio substituir outras normas sobre o mesmo assunto, ou então
surgiu ex novo, para tutelar uma situação até aí desprovida de
normativo específico, ou até para acorrer a uma situação nova,
etc. Em qualquer dos casos, a situação e a norma (legal ou

358
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

outra) precedentes são da maior importância para a


compreensão, não apenas da génese, como do próprio sentido
da norma em apreço. Pela História se capta muito da razão de
ser do novo normativo em análise, por comparação, por
alargamento das vistas pela introdução de fatores
determinantes, por ação ou reação, de índole ideológica,
política, social, económica, etc. A norma foi cunhada num
tempo por determinantes desse tempo, que ajudam a esclarecê-
la.
Porém, há que ter cuidado em não confundir nem os
métodos nem os propósitos deste tópico temporal com as
perspetivas das visões historicista e subjetivista. Esta visão
histórica de que ora curamos, não podendo prescindir de
elementos que podem ser argumento comum a uma
interpretação com aquelas finalidades — dado que os factos
serão em boa parte semelhantes, e não trazem, em estado puro,
o rótulo das teorias que os coloram e deles assim se apropriam
pro domo sua —, navega por outras águas.
Ali, o fim da investigação histórica era conhecer um tempo
ou um pensamento subjetivo, para os fazer aplicar agora, como
interpretação devida; aqui, muito diversamente, trata-se não só de
ver a história da própria norma, mas da história de todas as
normas à temática em causa concernentes, já vigentes ou apenas
propostas, com o fito de, por uma perspetiva abrangente,
compreender as prevenções, as restrições, as cautelas, os receios,
as conciliações, as aberturas, em suma, as opções próprias da
norma, que, razoavelmente, deveria ter à vista o leque de
possibilidades fornecido pela história.
A História é uma espécie de mostruário de soluções, e a
norma, nela, a eleição de algumas de entre as possíveis.
Compreender o catálogo ajuda muito a entender a compra
efetuada, ou a recusa de compra, optando por um produto novo
(mas só parcialmente, dado que não há novidades absolutas).

359
Paulo Ferreira da Cunha

Estudar os trabalhos preparatórios de uma lei, numa comissão de


reforma legislativa, ou na própria Assembleia legislativa (entre
nós a Assembleia da República), traz uma outra luz sobre o que
se desejou ou não desejou, efetivamente, escolher, e legislar.

4.Os Contexto e os Intertextos.


O Espaço. Elemento sistemático
O direito possui uma espécie de geografia (diferente da mais
exterior do chamado “Direito Comparado”). As divisões do
direito, as ciências jurídicas materiais, são autênticas regiões
(quando não, como o Direito Civil, que abrange vários ramos,
verdadeiros continentes – ou arquipélagos...), e daí podermos
também falar em metáforas como ramos, fontes, margens, etc.
O mesmo sucede com as normas, que se poderiam sem
dificuldade planificar idealmente numa grande carta
“geográfica”. Há normas, como os códigos, que constituem
grandes rios, com seus afluentes de legislação extravagante, há
depressões que são prima facie as lacunas, e do cume de
normas mais abrangentes, como as que apelam para conceitos
indeterminados e cláusulas gerais, abarca-se um sem número de
lugares. Satélites como as ficções jurídicas conquistam espaço
ao universo exterior, sem ponto terreno de apoio, mas com
muito engenho e potenciados efeitos práticos.
Pois bem. Há, neste mapa, normas vizinhas e longínquas,
climas normativos com semelhanças e diferenças, como entre
os países, regiões, e localidades da geografia a sério. Vai daí o
espaço das normas ser, evidentemente, um espaço mental de
afinidade, contiguidade, analogia, etc.
Assim como, para a compreensão cabal de um país, o temos
de entender nas suas proximidades e de o inserir nos círculos
concêntricos sucessivamente mais alargados que o

360
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

compreendem, também para um correto entendimento de


uma norma haverá que a ler no seu lugar, no seu contexto. E
esse contexto é-nos dado por esse espaço mental-jurídico que é
a maranha do sistema jurídico, da ordem jurídica. Uma norma
insere-se, por exemplo, num diploma legal que é um
regulamento, o qual se subordina a uma lei, que eventualmente
decorre já de uma lei de bases ou de uma lei orgânica, que tem
de se conformar à Constituição, e esta (embora haja quem não
o aceite) aos princípios da ordem de valores, do direito natural,
ou da Justiça, como se quiser. E que são o que, adaptado ao
país, constitui, afinal, a sua “constituição material”.
Aqui, trata-se de um problema espacial no plano vertical: é
como a altitude geográfica. Mas não se deverá descurar que
as normas possuem vizinhanças horizontais, lugares paralelos,
ou seja, disposições de outros complexos normativos que,
assemelhando-se nas suas razões às da norma em causa,
incluem comandos semelhantes, ou diversos. E há que
compreender esses climas tão evidentemente parecidos ou tão
radicalmente diversos (neste último caso, se tudo faria indicar,
pelas condições gerais ou, no caso jurídico, pelo objetivo
comum a ter em vista, que a solução fosse idêntica). Soluções
diferentes para casos parecidos, e parecidas para casos
idênticos, corpos normativos aparentados, próximos, etc., tudo
isso tem de ser estudado para poder lançar luz sobre a solução
adotada.
Este estudo espacial implica, numa primeira fase, a dos
lugares mais próximos, dentro da ordem jurídica nacional
considerada, e, depois, sucessivamente em maiores espaços,
sendo um lugar privilegiado de aplicação prática dos estudos
comparação de direitos, do chamado Direito Comparado.
A ideia de unidade do sistema jurídico, com direito a honras
de acolhimento legal, parece-nos pressupor, não uma
omnisciência fictícia do legislador, mas uma razoabilidade,

361
Paulo Ferreira da Cunha

ilustração e competência bastantes para nos permitir presumir o


conhecimento de soluções paralelas para casos idênticos.

5.O tópico axiológico-normativo.


O elemento racional
A análise interna da norma centra-se essencialmente na
captação da razão de ser da norma. Esta ratio legis, como
temos vindo a fazer pressentir, é mais que a vontade do
legislador ao emiti-la, mais que a finalidade que com ela se
propôs. Parece que há, aqui, que acolher a teoria objetivista,
reconhecendo que a regra tem (ou pode ter) vida própria, um
princípio ativo e evolutivo capaz de afeiçoar um sentido útil da
norma a novos desafios, mesmo jamais sonhados pelo seu
legislador concreto. Este lançaria a semente à terra da ordem
jurídica, sendo certo que, por um mecanismo cibernético, a
planta-norma daí decorrente seria capaz de encontrar (pelo
menos em muitos casos — e as exceções serão as de normas em
desuso, caducas, inefetivas, etc.) as metamorfoses da sua seiva,
e, logo, da sua própria compleição, adequadas às
transformações do solo, do clima, etc..

É pelos fins últimos que se deve aferir o conteúdo da norma.


Em suma: há fins mais imediatos, que acabam por ser meios de
fins mais profundos. Ora a descoberta de uma ratio legis não
pode quedar-se pela deteção de simples prescrições concretas,
fins, sem dúvida, mas fins-meios. Muitas vezes isso seria abusar da
simplicidade e lhaneza do simples elemento gramatical. Que a lei
quer isto ou aquilo, aqui e agora, parece não ser, muitas vezes,
difícil de compreender. O que é mais complexo — e sujeito a
argumentação e dialética — é averiguar porque é que a lei quer isto
ou aquilo, com que fins, e se quererá concretamente sempre isto
ou aquilo para atingir esses mesmos fins.
362
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

E óbvio que esta posição de considerar a ratio legis como


um princípio dinâmico nos recorda o carácter simultaneamente
fixo e evolutivo do direito natural, assim se podendo dizer que
o estático, na ratio legis, seria a natura rerum, a natureza das
coisas, evoluindo e mudando com os acidentes da História e das
circunstâncias particulares. E uma posição deste tipo reclama
muito do intérprete, que é chamado a recriar a norma em cada
momento, através de uma constante e sempre renovada
tomada do pulso da mesma. Mas importa reconhecer que,
nesta metamorfose da ratio legis participa, pelo menos na
prática e em termos muito objetivos, o intérprete.

Só questionando-nos se a teleologia encontrada num dado hic


et nunc tem sentido à luz de outras, eventuais, anteriormente
encontradas, como natural continuidade (sem rutura) e se
caminham todas para um valor de direito fundamental,
mediatizado numa teleologia de longo alcance, só assim se
poderá evitar o conflito de interpretações antagónicas, e o risco
do sem sentido de uma eventualmente díspar jurisprudência
(ou prática administrativa) em torno de uma mesma norma.

6.O resultado da interpretação


A razão de ser da norma é, pois, teleologia de diversos
níveis, mas encontra-se também em diálogo com o concreto. E
assim se fecha o círculo hermenêutico-valorativo.
A partir de uma vontade de Justiça a aplicar a um conjunto
de situações se elabora a norma, e assim se impõe o comando,
com a mesma vontade se aborda a norma, para a compreender
nos meios que ela disponibiliza nessa senda, e descoberta em
cada caso a ratio legis, há que aplicar os meios normativos
dessa justiça assim feita ato. Ora, nesta descoberta-criação, não
há apenas momentos analíticos e cognitivos.
363
Paulo Ferreira da Cunha

A própria consideração do elemento racional como um


elemento teleológico evolutivo e multiforme (e não racional
lógico, abstrato, ou racionalista) apela para outro tipo de
preocupações. Isto significa que, em todos os momentos e
influindo em todos os tópicos interpretativos, mas ganhando um
relevo autónomo em sede racional, uma dimensão valorativa,
axiológico-normativa, faz sentir a sua presença irrecusável e
inconfundível. Trata-se de sempre referir a valores, a princípios, a
paradigmas ético-jurídicos os resultados de cada demanda. Pouco
importa um lugar paralelo se ele manifestamente revela um erro
de avaliação, ou comete uma injustiça; de nada serve uma
instituição historicamente consagrada, e eventual fonte da agora
considerada, se estiver em oposição aos valores hoje vigentes na
consciência axiológico-jurídica. E esta ideia de valores situados,
não sendo, de modo algum, capitulação sociologista, vem
lembrar-nos que se não trata somente de normatividade abstrata,
de uma juridicidade pretensamente eterna. Mas, pelo contrário,
de uma autêntica valoração com tempo e lugar, sem prescindir
do universal, mas atenta ao particular.
Uma prudência feita de uma atenção especial aos valores de
sempre e aos valores situados, uma dimensão normativo-
praxeológica (ou axiológico-prática) tem de constituir pano de
fundo de toda a retórica e de toda a dialética interpretativa no
domínio do Direito.

7.Teleologia hermenêutica
A interpretação-criação pode funcionar, grosso modo, como
sintonia, complemento, restrição, aperfeiçoamento ou extrapolação
face à norma. Desde a conformação quase literalista até uma
hermenêutica interventiva.
Afirmou o grande civilista Manuel de Andrade, no seu

364
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

clássico Sentido e Valor da Jurisprudência: “Nem está escrito


que ao mundo haja de vir grande mal [...] só por haver certa e
comedida possibilidade de, pelo trâmite da interpretação, se
emendarem os erros de quem legisla e se resistir aos
desmandos e abusos do Poder.”125
O caso limite é o da Lei injusta. E Lex injusta non est lex.
Porém, é complicado determinar quando esta o é. E, sendo, há
ainda que ultrapassar a teoria do mal menor...
Para além a resistência interpretativa, da recusa em cumprir a
lei, etc., que entram até, no limite, no âmbito do Direito de
resistência (art. 21.º da CRP) e na desobediência civil, há um
conjunto de conformações hermenêuticas da norma, que veremos
de seguida.

8. Interpretações extensiva, interpretação e corretiva


A interpretação extensiva alarga o sentido da norma: a ideia
que preside a este procedimento é a de que a lei disse menos
do que queria, e que, se confrontada com a situação em
apreço, que nela objetivamente não cabe, sem dúvida a
incluiria numa previsão mais abrangente.
O caso mais corrente refere-se a realidades novas que o
progresso técnico sempre cria, e que a lei, se for muito
casuística, não pode abranger. Ou então, e sempre na mesma
ótica casuística, quando o legislador preferiu expressamente
designar a espécie, talvez mais impressiva, frequente, ou
conhecida, querendo embora abranger na sua previsão todo o
género. Imagine-se uma lei de proteção de certas espécies

ANDRADE, Manuel Domigues de – Sentido e Valor da Jurisprudência,


125

“Boletim da Faculdade de Direito”, Universidade de Coimbra, n.º 48, pp. 255-


294, 1972.
365
Paulo Ferreira da Cunha

animais em que se refira apenas a mais comum, mas que, na


verdade, queira abrangera todo o genus.
Este mesmo exemplo nos dá a imagem da dificuldade e
melindre deste tipo de intervenção. Porque, se nada for dito, e
se o jurista, cego às razões da vida e da cultura, nada mais
souber, poderá crer que apenas uma espécie de foca está em
perigo, que apenas o lince da Malcata deve ter proteção, e
permitir o abate de todos os outros. É preciso, portanto, para
saber Direito, saber mais que Direito.
Só que pode do mesmo modo suceder que, de várias
espécies animais ou vegetais — ou outras —, apenas uma ou
umas quantas devam ser protegidas até porque, por exemplo,
as outras sejam nocivas, se tenham tornado predatórias para
além do equilíbrio ecológico recomendável, etc. Se se quiser
fomentar a plantação de cogumelos para alimentação, decerto
não vai o legislador aplicar a norma a cogumelos venenosos. É,
pois, preciso além de saber Direito e saber mais que Direito,
ponderar os interesses em causa, os fins visados.
E fazer intervir em cada momento vários tipos e argumentos
de interpretação.
Na interpretação restritiva, o problema põe-se de forma
simétrica ao precedente. A manta do direito está agora larga de
mais, e é preciso adequá-la a um conjunto mais restrito de
situações. É preciso “encolher” a norma. Para isso, como é
costume fazer-se para os tecidos, há que “lavá-la”. No fundo,
trata-se de a libertar de corpos que são estranhos à sua
essência, numa primeira abordagem, e depois, de a reduzir
mesmo à sua expressão mais simples, a que melhor condiga
com a sua razão de ser.
Muitas vezes o legislador recorre a fórmulas mais vagas e
abrangentes para se precaver precisamente das agruras de não
ter previsto tudo. E, querendo abarcar o Mundo com a sua
hipótese, estatui para casos que não têm a ver com o que

366
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

desejava. Fala do género e não da ou das espécies que


realmente visa, não distingue onde devia distinguir, etc.. É então
que se deve recorrer à interpretação restritiva, que procura
captar até que ponto vai a teleologia da lei, e fazer terminar aí a
sua aplicação: cessante ratione legis cessat eius dispositio.
Além deste tópico, delimitador, um outro (além do de
paridade de razão e do de maioria de razão que aqui também,
mutatis mutandis, têm relevância) há a considerar, embora sob
caução: o da interpretação restritiva das exceções: Exceptio est
strictissimae interpretationis. O problema põe-se,
evidentemente, em sede interpretativa, de novo: onde está o
princípio e onde está a exceção? Mais ainda: o nosso Código
Civil, no seu art.º 11.º, apenas proíbe a aplicação analógica das
normas excecionais, expressamente permitindo a interpretação
extensiva, o que debilita, a nosso ver, a força do brocardo.
Interpretação corretiva é mais complicada, ou melhor:
levanta mais complexos e delicados problemas. O
aperfeiçoamento da norma por via interpretativa é natural e
normal, e mesmo a adequação desta à prática uma exigência de
Justiça. Mas aperfeiçoamento normativo surge de todo o género
de interpretação, e, na mais interventiva, sem dúvida decorre ele
da restrição e da extensão. Por isso é que há quem considere
que a interpretação corretiva abrange estas duas categorias.
Não disputemos sobre palavras. Para dar um sentido
específico à designação cumpre levá-la, pensamos, para um
outro terreno: de uma intervenção ainda mais profunda na
norma. Não está em causa apenas alargar ou diminuir a
previsão legal — mas de corrigir a norma. É evidente que essa
correção pode surgir de uma restrição ou de uma extensão na
hipótese, no âmbito de aplicação, ou na estatuição, no domínio
das consequências jurídicas desencadeadas em função da
norma. Porém, ela será muito mais propriamente corretiva se
alterar, ou pelo menos infletir, o que a norma diz. Como, por

367
Paulo Ferreira da Cunha

exemplo, afirma Mota Pinto, trata-se de “[...] para salvar a ideia


essencial da lei (para assegurar a valoração de interesses visada
pelo legislador), se tem de desobedecer ao conteúdo imediato
da lei”126.
E aqui está o nó do problema. Se fazer uma ligeira inflexão
parece ainda consentâneo com o papel criador da
jurisprudência, já subverter o sentido da norma, nela fazendo
caber aquilo que nela não tenha a mínima correspondência
verbal, ainda que insuficiente ou imperfeita (cf. art.º 9.º, 2
C.C.), nos parece fraude à lei. E das duas, uma: ou se entende
que ela é apenas um parâmetro geral, posto à disposição do
juiz, para que ele livre, mas inspiradamente (inspirado na
norma) decida, ou a norma é o critério primeiro (como
decorre da nossa lei) e a atividade interpretativa, criadora que é,
não pode ignorar a norma.
Em conclusão: a interpretação corretiva não é sempre
fraude à lei; mas para que ela se atenha nos limites do razoável,
é mister que a correção da lei seja consentânea com a
teleologia desta. Não se pode instaurar, a pretexto de correção,
ou até qualquer fim alto (que corre o risco de demagogia), uma
qualquer nova forma de direito livre, ou seja, subjetividade de
quem manda.

9. Interpretação enunciativa: visão geral e argumentos


A interpretação enunciativa é a que extrapola do texto da lei
para conclusões, por vezes ousadas, através de princípios da
razão ou de operadores lógicos. Eis-nos chegados, pois, a um
dos terrenos metodológicos em que a arte jurídica, de timbre

126
MOTA PINTO, Carlos Alberto da — Teoria Geral do Direito Civil, 3.a
ed. actualizada, 1.ª reimp. Coimbra, Coimbra Editora, 1986, p. 163, a
propósito do art.º 2162 C.C. (cálculo da legítima).

368
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

dialético, mais pode brilhar, não tanto pela verve, como pela
lógica.
Seria muito importante que todos os aplicadores do Direito,
dos mais altos magistrados aos burocratas de guichet,
soubessem bem estes argumentos e os aplicassem.
Frequentemente se cometem erros e injustiças pela sua
ignorância.
Eis alguns argumentos, a usar com cuidado e arte:

A pari — identidade de razão: É um pouco o sentido da


frase anch’io son pittore. Por exemplo: se F pode, porque não
poderei eu, que estou em iguais circunstâncias?
A fortiori — maioria de razão: se F pode, e tem menor títu-
lo que eu, porque não hei de eu também poder (já que tenho
maior/ melhor título)?
A maiori ad minus — Quem (a lei, a ordem jurídica, o Direi-
to) permite o mais (o mais gravoso, o mais nocivo, o mais
importante, o mais complexo, etc.) também permite o menos.
O que implica o seu contrário: a proibição do mais não implica
a proibição do menos (pela utilização do argumento a
contrario). Isto significa que quem pode vender um imóvel
também pode hipotecá-lo, ou arrendá-lo. Mas que a proibição
de vender, só por si, pode não significar necessariamente a
proibição de hipoteca ou arrendamento.
A minori ad maius — Quem proíbe o menos também
proíbe o mais. O que tem igualmente, a contrario, como
consequência que quem permite o menos não permite o mais.
Há dois grandes canteiros de relva que se espraiam no Jardim
do Luxemburgo, em frente ao Senado francês. Eles podem
servir para explicitar à maravilha este caso. Um (o A) tem um
letreiro que diz: é proibido pisar a relva. O outro (o B) diz que
tal é permitido. Se é proibido pisar a relva (no A) também é
proibido lançar-lhe fogo. Mas se é permitido pisá-la (no B), isso
369
Paulo Ferreira da Cunha

não quer dizer que a piromania aí seja tolerada.


A contrario [sensu] — Em princípio, usa-se para extrapolar
de um caso excepcional (ius singulare) a norma geral, que deve
ser contrária. Mas correntemente designa todo o raciocínio de
in- versão de soluções (qui dicit de uno negai de altero),
designadamente quando, a partir de uma enumeração fechada,
taxativa, de numerus clausus, se podem retirar, por nela não
caberem, os casos que, ali não estando presentes, hão de ter
diversa tutela ou qualificação. Assim, logo quando no art.º 1.º,
1 C.C. se afirma que “São fontes imediatas de direito as leis e
as normas corporativas”, ficamos a saber, a contrario sensu,
que as restantes fontes, designadamente as constantes dos art.ºs
2.º a 4.º C.C. (integradas também no capítulo I “Fontes de
Direito” — e invocamos assim o elemento sistemático), têm de
ser consideradas fontes mediatas.
A silentio — Cf. argumentos ubi lex non distinguet... e ubi
lex voluit, dixit..., a que o princípio praticamente se reconduz.
Ab eodem — Estamos perante um argumento de validação
dos atos que, não respeitando a forma legal, seriam feridos de
nulidade, mas que, pela sua conclusividade, não deixam
dúvidas sobre os elementos em falta. Um documento
(normalmente doações ou testamentos) que necessite da data
completa, datado apenas de “Dia de Páscoa de 2019”, ou um
documento que exija assinatura e tenha apenas rubrica, seguida
do selo de armas do seu nobre portador, ou do título
honorífico e da data, etc.. Enfim, sempre que não deixe dúvidas
o contexto, prescindir-se-ia do texto, mesmo que taxativamente
exigido pela lei.
As máximas têm não apenas uma função lógico-dedutiva e
criadora fulcral, como ainda constituem argumentos de vulto
no debate dialético, enriquecendo e elevando o discurso,
porquanto introduzem uma generalização, não formal e

370
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

abstrata, mas referente a uma certa valoração das ações. Ponto é


que sejam usadas a propósito e com propósito.
Eis algumas das máximas interpretativas jurídicas que mais
nos interessam:
Incivile est nisi lota lege perspecta judicare — Há que
atender no julgamento à totalidade do texto (legal ou outro) sub
judice. É um princípio da interpretação contextual, totalizante,
harmonizadora e apelando para o elemento sistemático.
Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus —
Naquilo (onde) que a lei não distingue, não devemos nós
(intérpretes) distinguir. Nisso, parece, se oporia o jurista ao
filósofo (bonus philosophus semper distinguet). O brocardo é,
porém, duvidoso em muitos casos.
Ubi lex voluit dixit, ubi nolit tacuit — Onde a lei quis dizer,
disse; onde não quis dizer, calou. É um pouco o “quem cala
consente”, em matéria de proibição — o que está correto, pelo
princípio penal nullum crimen sine praevia lege poenale (e
ainda poenalia sunt restringenda — as leis penais devem
interpretar-se restritivamente). Porém, as razões que procedem
em favor da interpretação extensiva (pelo menos essas) são um
exemplo de como a aplicação sistemática do brocardo poderia
levar a uma cristalização legal manietadora, e de que esta não é
uma máxima sempre correta.
Specialia generalibus derogant — A lei especial derroga a lei
geral. E, do mesmo modo,
Generalia specialibus non derogant — As normas gerais não
derrogam as especiais. Por aqui se vê que, se a classificação das
normas em gerais e especiais não for rigorosa, os resultados
obtidos poderão ser totalmente contrários, consoante se
considere geral ou especial uma ou outra norma.
Na mesma linha, na perspetiva não já de conteúdo, mas de

371
Paulo Ferreira da Cunha

tempo,
Lex posterior derogat priori — A lei ulterior derroga a
anterior.
Exceptio est strictissimae interpretationis — As exceções
devem interpretar-se restritivamente. Ou, pelo menos, não
extensivamente. Já vimos supra alguns problemas desta
máxima, designadamente à luz do art. 11.º CC.
Quod abundat non viciat /nocet — O que é supérfluo (e até
erróneo, para além do essencial) não prejudica o essencial,
que se mantém. Por isso existe o princípio da redução dos
negócios jurídicos.
E, embora seja um conhecidíssimo princípio de Direito
Penal, tem pleno cabimento em qualquer ramo de direito o
princípio do In dubio pro reo — na dúvida, julga-se a favor do
demandado, daquele a quem a Justiça (ou o vizinho) demanda
em Justiça. Do mesmo modo,
In dubio favores sunt amplianãi et odiosa restringenda: na
dúvida, devem-se preferir as interpretações beneficiadoras e
restrin- gir as prejudiciais.
In dubio melior est condido possidentis — Porque o Direito
não é o primeiro repartidor das coisas, mas aceita (em
princípio) a distribuição social, presume-se que o possuidor é
proprietário, e procura-se que tudo fique como está, salvo
melhor prova. É o que em sede de Administração se designa
pelo princípio Quietta non movere. E na mesma senda de não
subverter o mundo, se presume que o que foi feito (contrato,
testamento, etc. — até a lei) o foi bem. Há presunções que, no
geral, operam de forma “conservadora”, que visam a paz e a
segurança, ainda que tal não seja justo – mas isso se verá
depois, com outros instrumentos:
In dubio standum est pro eo, pro qua stat praesumptio — Na
372
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

dúvida, decide-se a favor do beneficiário da presunção já


estabelecida. Quod non est in actis/ textis non est in mundo
— O que não consta das peças processuais (ou nos textos — nas
leis) não existe no Mundo. Sabemos como a verdade formal a
que este brocardo pode conduzir é nefasta. Ele é, afinal,
muito semelhante ao “Não sei o que é o Direito Civil, só ensino
o Código Napoleão” legalista). Porém, há regras de restrição
do dito e do dizível, do alegado e do alegável que funcionam
a favor da segurança, da certeza, e até da Justiça.
Estas máximas contêm todas uma enorme sabedoria, que é
feita essencialmente de comedimento, de prudência. Podem
agrupar-se segundo vários pontos de vista. Todavia, parece-nos
que todas deixam transparecer um princípio de garantia dos
sujeitos implicados (v.g. in dubio...) e de respeito pelos textos
(ambos os casos de Ubi lex...), uma lógica essencialmente
restritiva, minimalista (In obscuris...). Quer dizer: uma conceção
do Direito não conquistadora e conformadora, entendendo-o
embora como plenitude (dentro do seu campo). Um campo
porém a definir pelos textos, que também são garantia (Quod non
est... ou o conhecido nullum crimen...).

10.Hermenêutica no Código Civil


Ao longo desta síntese, fomos já deparando com diversas
normas expressamente votadas à regulação da hermenêutica das
normas. O círculo vicioso do império da lei assim o quer: é o
Código que diz como se interpreta o Código. E mais: é o Código
Civil, hierarquicamente subordinado à Constituição, que contém,
pelo menos por razões históricas e talvez de segurança jurídica,
as normas interpretativas aplicáveis à própria Constituição.
Não fazendo fincapé na desadequação sistemática da
localização deste corpo normativo, até porque concedendo à
razão pragmática, e à tradição, sempre diremos, porém, que
373
Paulo Ferreira da Cunha

todas as normas do Código Civil, mesmo as materialmente


constitucionais sobre interpretação (e fontes, por exemplo) se
subordinam, obviamente, ao texto constitucional. E de acordo
com os princípios de interpretação holística constitucional é
óbvio que estas normas do Código Civil têm que se adequar à
“mensagem global” ou ao “sistema interno unitário” da
Constituição. Também se lhe pode chamar “programa
constitucional”.
Localizada a questão, cumpre apenas recapitular, sistematizando.
As normas (ou seus sucedâneos ou supletivos) são as que são
consideradas no capítulo das fontes (art.ºs 1.º a 4.º),
essencialmente a lei (art.º 1”, 1), cujo critério de definição é
essencialmente orgânico (proceder de quem de Direito — ou,
na verdade, “de poder” — art.º 1.º, 2; entrada em vigor após
publicação no jornal oficial, e vacatio legis, cessação da vigência
com base em critérios apenas formais-legais — art.º 5.º e 7.º).
Todas as demais fontes (assentos, art.º 2.a, usos, art.º 3.º e
equidade, art.º 4.º) têm aplicação muito limitada (bem como a
subespécie da lei em sentido latíssimo, as normas corporativas
— art.º 1.º, 3), e são consideradas mediatas (art.º 1.º, 1, a
contrario). Os assentos foram mesmo parcialmente
considerados inconstitucionais.
Estas normas sobre fontes são pano de fundo das
propriamente interpretativas, as quais são compagináveis em
alguns princípios, aparentemente muito duros e positivistas:

Ignorantia legis non excusat — a ignorância da lei não justifica o


seu não cumprimento nem exime de sanções (art.º 6.º);
Dura lex, sed lex — O dever de obediência à lei não pode ser
afastado sob pretexto de injustiça ou imoralidade do conteúdo da
mesma (art.º 8.º, 2 C.C.).
Proibição do non liquet — O juiz tem de julgar, não podendo
alegar a obscuridade da lei ou dos factos (art.º 8.º, 1 C.C.).
374
Teoria Geral do Direito: Uma Síntese Crítica

O art.º 9.º, consagrando uma visão matizada da


interpretação (n.º 1) e permitindo alguma interpretação
interventiva, embora sem fraude aos textos (n.º 2 e 3) atenua
consideravelmente a rigidez do conjunto. As normas de
integração (especialmente o art.º 10.º, 3 in fine) remetendo,
como veremos, para o espírito do sistema, e o conjunto da
ordem jurídica, (de uma forma geral, a começar pelo próprio
C.C.), acolhendo na prática bom número dos princípios de
Justiça universalmente aceites, temperam o conjunto, no qual o
art.º 8.º, 2 C.C. acaba por constituir um tanto uma relíquia
legalista, embora compreendamos que não poderia ser simples
uma solução alternativa no quadro de um comando legal.
O Código Civil também trata de outras dimensões da que
Hermenêutica, nomeadamente da aplicação das leis no tempo
(art.º 12.º et sq.) e no espaço (art.º 14.º et sq.), que não
trataremos aqui brevitatis causa.

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