Você está na página 1de 116

INTELIGêNCIA

ANO XViI • Nº 68 • janeiro/fevereiro/março de 2015 issn 1517-6940


Você pode sair alegre,
emocionado ou pensativo.
Mas uma coisa é certa:
quem escolhe ir ao cinema
nunca sai igual_
Parece só entretenimento.
Uma hora e meia para desligar
o celular e não pensar em nada.
Fugir da rotina. Mas o cinema
é mais do que isso. Um bom filme
tem o poder de transformar
a vida de quem assiste trazendo
novos pontos de vista.
É por isso que escolhemos apoiar
o Espaço Itaú de Cinema.
E você, que filme vai escolher hoje?
Itaú. Feito para você.

#issomudaomundo
A monástica ceia compartilhada por Insight Inteligência e seus parceiros prima
pela sobriedade, o que não significa menos beleza. Seus elementos são o café, a água
e as ideias, que saltam da tela com enorme simbolismo.

Agradecemos ao artista plástico Carlomagno por ter nos permitido publicar a pintura
(o soberbo quadro Releitura da “Santa Ceia”, da série águas – 0.26 x 1.09 – óleo s/tela),
pincelando junto à imagem logomarcas tão merecedoras de homenagem.

A tela de Carlomagno vai para o teto da capela sistina de Insight Inteligência.


SABE AQUELA
ALEGRIA
DE ENCONTRAR
UM WIFI ABERTO?
MULTIPLIQUE
POR 1 MILHÃO.

Oi Wifi. Mais de 1 milhão


de pontos de acesso em
todo o Brasil para você ficar
conectado quando quiser.
Você acessa a internet
em alta velocidade de vários
lugares do Brasil usando
o seu smartphone, tablet
ou notebook, sem gastar
a sua franquia de dados.
Mais Oi, mais vantagens.

ACESSE OI.COM.BR/OIWIFI
Quando tradição e
caminham lado a la
Quem sai ganhando
inovação
do,
é o Brasil.
Vista geral da cidade de São Paulo (Debret, século XIX)

TRADIÇÃO E
EFICÁCIA
na gestão
de patrimônio
• Equipe altamente especializada
• Soluções financeiras estruturadas A presente Instituição aderiu ao Código

• Gestão de riscos eficiente ANBIMA de Regulação e Melhores Práticas


para a Atividade de Private Banking no
Mercado Doméstico.

• Máxima qualidade em produtos e serviços


Vista da Baía de Todos os Santos (Joseph Leon Righini, século XIX)

Rio de Janeiro visto da Ilha das Cobras (Newton Smith Fielding, século XIX)

Rio de Janeiro
Tel: +55 (21) 2514.8387
privaterj@bancobbm.com.br
São Paulo
Tel: +55 (11) 3704.0505
privatesp@bancobbm.com.br
www.bancobbm.com.br
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Conselho EDITORIAL Décio Clemente


ISSN 1517-6940
Alexandre Falcão Edson Vaz Musa
DIRETOR
LUIZ CESAR FARO
Antônio Dias Leite Júnior Eduardo Karrer
Coriolano Gatto Eliezer Batista
EDITOR
C H R I S T I A N E D W A R D C Y R I L LY N C H Edson Nunes Eloí Calage
Emir Sader Eugênio Staub
EDITOR EXECUTIVO
claudio fernandez João Sayad Gilvan Couceiro D’amorim
Joaquim Falcão Hélio Portocarrero
PROJETO GRÁFICO
ANTÔNIO CALEGARI José Luís Fiori Henrique Luz
Lucia Hippolito Henrique Neves
PRODUÇÃO GRÁFICA
RUY SARAIVA Luiz Cesar Telles Faro Jacques Berliner

ARTE
Luiz Orenstein João Luiz Mascolo
PAULA BARRENNE DE ARTAGÃO Luiz Roberto Cunha João Paulo Dos Reis Velloso

REVISÃO Marco Antonio Bologna Joel Korn


DENISE SCOFANO MOURA Mário Machado Jorge Oscar De Mello Flôres =
geraldo rodrigues pereira
Mário Possas José Luiz Bulhões Pedreira =
REDAÇÃO E PUBLICIDADE Nélson Eizirik José De Freitas Mascarenhas
INSIGHT ENGENHARIA DE
COMUNICAÇÃO & MARKETING LTDA. Paulo Guedes Júlio Bueno

RUA DO MERCADO, 11 / 12º ANDAR Renê Garcia Luís Fernando Cirne Lima
RIO DE JANEIRO, RJ • CEP 20010-120 Ricardo Lobo Torres Luiz Antônio Andrade Gonçalves
TEL: (21) 2509-5399 • FAX: (21) 2516-1956
E-MAIL: insight@insightnet.com.br RODRIGO DE ALMEIDA Luiz Antônio Viana
Sulamis Dain Luiz Carlos Bresser Pereira
Rua Luis Coelho, 308 / cjto 36
Consolação • SÃO PAULO, SP Vicente Barreto Luiz Felipe Denucci Martins
CEP 01309-902 • TEL: (11) 3284-6147
E-MAIL: insightsp@insightnet.com.br Wanderley Guilherme dos Santos Luiz Gonzaga Belluzzo
Luis Octávio Da Motta Veiga
www.insightnet.com.br
Conselho consultivo Márcio Kaiser
Os textos da I N S I G H T INTELIGÊNCIA poderão
Adhemar Magon márcio scalercio
ser encontrados na home page da publicação:
www.insightnet.com.br/inteligencia Aloísio Araújo Maria Da Conceição Tavares
Antônio Barros De Castro = Maria Silvia Bastos Marques
PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL
jan / fe v / mar 2 0 1 5 Antônio Carlos Porto Gonçalves Maurício Dias
COPYRIGHT BY INSIGHT
Antonio Delfim Netto Mauro Salles
Todos os ensaios editados nesta publicação poderão ser Armando Guerra Miguel Ethel
livremente transcritos desde que seja citada a fonte das
informações. Arthur Candal = Olavo Monteiro De Carvalho

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos Carlos Ivan Simonsen Leal Paulo Haddad
autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. Carlos Lessa Paulo Sérgio Tourinho
Insight Inteligência se reserva o direito de alteração dos Carlos Salles Raphael De Almeida Magalhães =
títulos dos artigos em razão da eventual necessidade de
adequação ao conceito editorial. Carlos Thadeu de Freitas Gomes Ricardo Cravo Albin
Celina Borges Torrealba Carpi Roberto Campos =
Impressão: Walprint
celso castro ROBERTO CASTELLO BRANCO
César Maia Roberto Paulo Cezar De Andrade
Cezar Medeiros Roberto Do Valle
Daniel Dantas Sérgio Ribeiro Da Costa Werlang
ACORDO DE COOPERAÇÃO

BRICS Policy Center Centro de Estudos e Pesquisas - BRICS

12 EXPEDIENTE
Mesa redonda: Presidencialismo
de coalizão ressentida
Adalberto Cardoso
Alberto Almeida
Octavio Amorim Neto
Paulo d’Ávila
Quatro especialistas e um conflito
O povo
16 nas ruas
Retratos da
abolição aos
dias de hoje

34

Água: aquÉm e
além do Estado
nacional
Angela Abreu de Barros
Luis Antonio de
Menezes Cerutti
Você tem sede de que?

E fez-se a
52
dilucidação – As
raízes da cognição
humana
Leonardo Braga Martins
Kant dizia que aprender é
deixar a menoridade Por um
urbanismo
40 moral
Andréa Storch
Érico Andrade
Cidade sem Deus

64

14 SUMÁRIO
I N S I G H T

INTELIGÊNCIA
nº 68 janeiro/fevereiro/março 2015

Estatuto do
desarmamento – Um
tiro que não saiu pela
culatra
Glaucio Soares Inventário
Daniel Cerqueira José Almino
Uma arma contra o crime Balanço poético da
vida passada
78
87

O conhecimento
histórico e
as astúcias da
memória
Arno Wehling
A verdade está na
história?

96

Alforria de raças –
Mysterio
Conceito de liberdade
no Brasil (1770-1880) História de vida
e morte
Christian Edward Cyril Lynch
A biodiversidade dos cativeiros 110
88

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 15


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mesa redonda

Paulo d’ávila
octavio amorim neto
adalberto cardoso
alberto almeida

16 situation room
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

presidencialismo
de coalizão
ressentida
JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 17
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

e as palavras tivessem preço, “crise” não valeria um níquel.

S Para a oposição, o governo e o país estão sempre em crise


– quase sempre ética. Por outro lado, para a situação, a crise
nunca existe e é uma invenção dos invejosos que lhe querem o lu-
gar. Dizem que conversa de corrupção é falta de assunto. Pode ser.
Fato é que, quando a oposição vira situação, a crise some. E quando
a situação vira oposição, ela reaparece. Então, de fato, em política, a
palavra crise costuma não valer um níquel. E com razão.
Grave, porém, é quando o próprio governo admite a existência
da crise. É porque o mundo deve estar caindo. Foi o que aconteceu
nas últimas semanas. Foi preciso que a base parlamentar rebelada
golpeasse o governo até beijar a lona. Que multidões tomassem as
ruas, escancarando a impopularidade da governanta recém-reelei-
ta. As portas do cemitério foram abertas para que as assombrações
saíssem em procissão pela República. As crises hídrica, energética,
econômica e política nos levam de volta a uma conjuntura negativa
que não se via há mais de vinte anos. Nem a governanta agora acha
que o Brasil nada em marolinhas ou voa em céu de brigadeiro.
Então, parece, temos enfim uma crise de verdade. E a crise polí-
tica é a mãe de todas as crises. Sem resolver a crise política, não se
resolvem as demais, que requerem o elemento mais básico, que é
a governabilidade e direção administrativa. Trata-se de fenômeno
inédito desde que o atual regime político se estabilizou entre 1993-
1994: uma base em rebelião aberta, cuja pretensão é enquadrar o
governo conforme suas diretrizes. Um verdadeiro presidencialismo
de coalizão ressentida!
Para entender a barafunda em que anda metida esta pobre e
desnorteada República, Inteligência reuniu um quarteto de bambas -
Adalberto Cardoso, Alberto Almeida, Octavio Amorim e Paulo d’Ávila
– para discutir a crise política. Formaram um verdadeiro gabinete de
crise – ou, como se diz na Gringolândia, um situation room. O resul-
tado do bate-bola é o que se segue.

Christian Edward Cyril Lynch


Editor

18 situation room
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Alberto Almeida – Eu tenho ido a Alves está dando sopa. É um político rém, na prática, fechou seu conselho
Brasília a cada 15 dias e lá tenho a chan- ligado ao próprio Eduardo Cunha. Já político apenas com o PT. Aí é compli-
ce de conversar com gente diferente, o Eliseu Padilha é muito próximo ao cado. Eu calculei esses indicadores de
de todos os lados. A soma dessas in- Michel Temer. Ou seja: ele não agrega. proporcionalidade de ministério. Está
formações ajuda a ter um panorama Ele é mais do Temer. O governo tem de bem alto. É nível de Fernando Henrique.
interessante sobre a conjuntura. O go- atender ao PMDB. Ponto final. A partir
verno Dilma começou o segundo man- daí, começa a haver conversa. Alberto Almeida – Faz esse cálcu-
dato acumulando sucessivas derrotas. lo com os recursos discricionários. O
A primeira delas, a eleição de Eduardo Octavio Amorim neto – Vou jogar maior volume de recursos discricioná-
Cunha para a presidência da Câmara. O um pouco de gasolina na fogueira, mas rios é do Ministério das Cidades, que
Julio Delgado, um deputado que não para confundir. Eu acho que a diferença está com o PSD.
conta exatamente com a ampla simpatia apertada de 3,5% nas eleições presi-
de seus pares, teve 100 votos, apenas denciais e a folgada vitória do PT em Octavio – Porém, os dois ministérios
36 a menos do que o candidato do PT, Minas Gerais são fatos que geraram mais importantes, que sempre estive-
Arlindo Chinaglia. Esse número dá a um resultado eleitoral extremamente ram nas mãos dos petistas, Fazenda e
medida da insatisfação do Congresso ambíguo. É muito difícil interpretar e Planejamento, estão, hoje, nas mãos
com o governo. Depois, houve a de- agir a partir das informações que a gen- de ministros apartidários. Uma eleição
volução da MP 6.669. Por outro lado, te tem das urnas de outubro de 2014. apertada, um ambiente de crise político-
o Eduardo Cunha fez os presidentes Qualquer presidente, por melhor que -econômica; teoricamente, a gente teria
das principais comissões da Câmara: fosse, ainda que um grande operador um incentivo a uma conciliação nacio-
Reforma Política, Constituição e Justiça, político, como Fernando Henrique ou nal. Aliás, já está se falando nisso. Lula
Finanças e Tributação. Esta última, por Lula, teria enorme dificuldades de tocar e Fernando Henrique Cardoso têm de
exemplo, foi entregue à deputada Soraia este barco a partir de 1º de janeiro. O começar a conversar. Se a economia não
Santos, do Rio de Janeiro, esposa do interessante, nesse segundo mandato voltar a crescer, continuar estagnada,
deputado Alexandre Santos, extrema- da Dilma, é que formalmente ela vestiu vamos precisar de um grande acordo.
mente ligado ao Eduardo Cunha. Então, o guarda-roupa do presidencialismo Um pacto entre elite, governo e oposição.
na verdade, a presidente da Comissão de coalizão. Ela tentou ajustar o minis- Se o “petrolão” levar a lama para tudo
de Finanças e Tributação é do Eduardo tério à realidade das urnas. Esse novo quanto é canto, vamos ter de pensar
Cunha. A Comissão de Minas e Energia, ministério da Dilma é o menos petista em pedir uma grande reforma para dar
em ano de racionamento e de crise na desde 2003 e o que mais aliados e mais um jeito no sistema político brasileiro.
Petrobras, foi para o Rodrigo de Castro, ministros apartidários tem. Ela pegou Agora, isso é muito difícil, tanto para
de Minas, um Aecista de carteirinha. os resultados eleitorais, calculou a no- o PT quanto para a oposição. O PSDB
A Comissão de Ciência e Tecnologia va correlação de forças e adequou os também não está disposto a isso. Fer-
caiu no colo do PSDB de Goiás. PEC ministérios a isso. Ela deu esse passo nando Henrique Cardoso e Aécio estão
da Bengala? Mais uma derrota. É revés correto. Por que, então, as coisas estão dando sinais muitos claros de que não
atrás de revés. O governo errou muito. dando errado? Aí, é uma questão de teremos atitudes cooperativas. Então,
Estimulou, por exemplo, a criação de condução. Ela deu seis Pastas ao PMDB, o que a Dilma fez? Ela fez o possível.
um partido para o Gilberto Kassab ficar mas quais Pastas? Portos, Aviação, Tu- Já que não dá para governar só com o
maior que o PMDB. Aquilo foi fatal. A rismo... Não incluiu no conselho político PT, ao mesmo tempo em que não dá
coordenação política tem de ter alguém ninguém de fora do PT. Formalmente, para fazer alguma coisa com a oposi-
do PMDB. Não tem jeito! O Henrique montou um governo de coalizão, po- ção, ela fez um meio-termo. A ideia foi

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 19


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

muito boa. Na prancheta, o que a Dilma Adalberto Cardoso – Nós ainda Octavio – Lembra muito o começo
fez foi muito interessante. Na hora de estamos vivendo o efeito da eleição, no do segundo mandato do FHC, em 1999.
conduzir, ela não sabe conduzir. Aí é sentido de que todas as forças estão
um pragmatismo de curtíssimo prazo. tentando definir qual é o seu lugar e Adalberto – Exatamente. Muita gente
fazendo isso de maneira muito mais dizia que o governo iria cair, e aquele
Paulo d’ávila – A questão é se a Dil- radicalizada do que eu imaginei que momento passou.
ma poderia ter produzido algum tipo pudesse acontecer. Eu não esperaria
de condução que permitiria trazer o de uma pessoa com a projeção política Octavio – Muita gente não só dizia
PMDB mais para perto. As informa- do Fernando Henrique Cardoso, por como pedia que o governo caísse.
ções são controversas. Por um lado, exemplo, que ele viesse em artigo de
ela abre mais espaço para o PMDB e jornal falando em impeachment. Isso Adalberto – Foi um governo mui-
para a coalizão nos ministérios, por ou- não está no script de nenhuma norma- to fraco. Fernando Henrique não con-
tro, forma um comitê de governo que lidade pós-eleitoral. Há espaço para seguiu governar. O segundo mandato
é basicamente petista. A dificuldade do o crescimento da oposição e da sua foi de pato manco do começo ao fim.
cenário não é só uma incapacidade de importância no Congresso Nacional,
gestão da coalizão por parte da Dilma, independentemente de derrubar ou Octavio – Mas ele fez muita coisa boa,
a dificuldade passa também por uma não a Dilma. Porque existe um ator como a Lei de Responsabilidade Fiscal.
estratégia deliberada do PMDB para se nesse jogo de forças que está muito
fazer cada vez mais importante, essen- fragilizado, justamente a própria Dil- Alberto – Sim. Fez todo o tripé da
cial, nessa aliança. Em primeiro lugar, ma. Aliás, eu faria um reparo. Não é economia. Mas, voltando ao presente,
que sabe que foi fundamental na vitória que não temos decisões. Nós temos a Dilma corre o risco de uma combina-
apertada do ano passado, em segundo muitas decisões, na direção contrária ção já observada em outros momentos
lugar e mais importante, as principais do interesse do governo. Todas essas da história: governo fraco e Ministro
lideranças do partido, Cunha e Renan, derrotas são decisões no ambiente da Fazenda inatacável. O Sarney teve
estão sob investigação. A presidência de enorme disputa entre os vários ele- isso com Mailson; o Collor, com Mar-
das duas casas legislativas foi importan- mentos. Isso, acho eu, é o resultado cilio; Fernando Henrique, com o Malan
te para dar mais capacidade ao partido imediato, de curto prazo, do processo e o Armínio no Banco Central. O PMDB
de forçar o governo a cooperar com o eleitoral, que constituiu um parlamen- representa a velha política brasileira.
PMDB, protegendo suas lideranças em to um pouco mais conservador, mas Eles são muito bons. Em março do ano
caso de necessidade. Ter capacidade fragmentado e com muito mais apeti- passado, ou seja, antes de começar o
de chantagem é fundamental para o te, digamos assim, com forças políticas, processo eleitoral, a Dilma deu uma
PMDB neste momento. O cenário de no caso dos “aliados”, muito raivosas. declaração já no contexto de confli-
recomposição do governo fica ainda Está todo mundo, como eu falei, atrás to com o Eduardo Cunha: “Eu prefiro
mais complicado se levarmos em con- de espaço. A minha percepção é que perder a eleição do que ceder a esse
sideração que vamos assistir agora a isso não pode durar. Isso não vai durar. pessoal.” Pode procurar no Google que
um momento muito delicado para o Isso é um momento ainda passageiro, está lá. Então, este choque vinha de
Congresso, um momento de incerteza ainda transitório. A tendência é que antes, bem antes. O que faz o PMDB?
política proveniente das investigações essas forças se encontrem e cheguem Liquida com várias medidas de ajus-
dos casos de corrupção. Essa incerteza a um padrão de ação que permita ao te. Eles aprovam as propostas, declaram
dificulta ainda mais os arranjos e com- Brasil andar, porque ninguém vive eter- apoio ao Levy e, depois, desencavam
posições da coalizão. namente em crise. vários projetos de apelo popular que

20 situation room
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

anulam os efeitos das medidas. É assim Toda essa discussão a respeito da eco-
que se mina o governo. nomia, das reformas, dos ajustes, não
está sendo disputado politicamente.
Octavio – Mas, Alberto, o Congresso O governo tem mostrado dificuldades
negociar ajustes fiscais é corretíssimo. em estabelecer claramente qual é o seu
Não há nada de errado nisso. Veja a percurso e esclarecer as necessidades
questão das alíquotas do IR. A solução de ajuste. A comunicação é um grande
foi razoável. Você se lembra do ajuste diferencial entre o primeiro mandato
fiscal que Malan e Fernando Henrique de Dilma e os dois mandatos do Lula.
foram obrigados a fazer em 1997 por Essa comunicação já era ruim no pri-
conta da crise da Rússia? De uma hora meiro mandato, e agora conseguiu pio-
pra outra. O Brasil pegou uma gripe por rar. Se não é a própria Dilma, alguém
conta de um espirro da economia inter- tem que falar pelo governo, disputar a
nacional, Malan teve de baixar o pacote política na comunicação de massa. Um
51: 51 medidas. Quem era o presidente dos grandes problemas que colaboram
do Senado na época? Ninguém menos para a produção de certo sentimento
“Dilma corre o
do que Antonio Carlos Magalhães. Ele de irritação popular é que há um certo
risco de uma
negociou duríssimo. E foi em cima do silêncio por parte do governo. A base
IR. Ele quis proteger a base eleitoral social de apoio da Dilma se sente órfã
combinação já
dele, de classe média. E Malan, sempre do enfrentamento, do debate político.
observada em
poderosíssimo, foi obrigado a negociar. Há uma só voz, da oposição, dos gran- outros momentos
O colapso do governo Fernando Hen- des grupos de mídia. Não se tem uma da história:
rique veio em dezembro de 98, logo pluralidade de vozes numa disputa em governo fraco
depois da eleição. Ele não conseguiu torno da agenda pública hoje. Acho que e Ministro da
complementar o ajuste fiscal com a re- esse é o grande pecado, mais do que Fazenda inatacável”
forma da previdência. Houve o famoso a própria gestão do governo.
apitaço dos sindicatos na Câmara. En- alberto almeida
tão, a base majoritária não teve peito Octavio – Eu quero complementar
de aprovar a reforma da previdência. A essa análise do Paulo, trazendo à bai-
partir daí, começa a deterioração das la mais um elemento importante, que
expectativas sobre a economia brasi- poucos têm mencionado: a crise polí-
leira. Mas, em 97, a coisa deu certo. O tica dentro do PT, que vem de longe. O
Congresso não aceitou o pacote 51 e PT perdeu 18 cadeiras no Congresso.
negociou. E o Brasil sobreviveu. O parlamento mais fragmentado do
mundo e da história democrática é o
Paulo – Não sei até que ponto po- atual parlamento brasileiro. Isso é uma
demos colocar todos os problemas de enorme derrota. Perder 18 deputados.
momento na conta da capacidade de Um parlamento com 23 partidos é um
gestão da coalizão pela própria Dilma. negócio muito grave. Outro aspecto é
Uma dimensão da dificuldade operacional o enfraquecimento da seção paulista
do governo é a comunicação política. do PT, que começa com o mensalão. A

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 21


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

seção paulista, por razões óbvias, las- ção do PT e de suas figuras principais
treava politicamente o PT. Essa seção que começou lá em 2004 ou 2005, com
foi dizimada nos últimos anos. E não há um objetivo muito claro, sempre elei-
hoje uma nova hegemonia dentro do toral. Agora, por exemplo, o que está
PT. Tanto é que facções antes minoritá- em jogo é 2018. A oposição tem de
rias estão disputando pau a pau, com impedir que o PT seja uma alternativa
a ainda facção majoritária, o CNB, do de poder em 2018. Tem um processo
Lula. Isso dificulta muito mais a opera- de desconstrução, com ódio. O pane-
ção da presidência da República. Acho laço e os xingamentos contra a Dilma
até que se o próprio Lula fosse hoje e o Lula mostram isso. Isso contribui
o presidente da República, enfrenta- para a incapacidade do PT de interpre-
ria enorme dificuldade de manobra tar o que está acontecendo no Brasil.
diante do atual momento do PT, sem Por que que tem ódio? De onde vem?
“Dilma, às vezes, a seção paulista para vertebrar o par- Nós estamos falando de uma questão
é forçada a errar tido. O que aconteceu é que Dilma e central do jogo político: o processo de

para manter a seus ministros resolveram disputar a construção de projetos, a política como
hegemonia do partido. Há essa crise discussão dos fins da ação pública. O
autoridade dela
também para bloquear o Mercadan- PT saiu desse lugar. Foi deslegitimado
vis-à-vis o Lula.
te e o Pepe Vargas. A questão não é como partido capaz de formular pro-
Em certo sentido, apenas o desempenho deles; eles re- jetos de ação pública. Isso é fatal para
ela optou por uma presentam outras facções do PT que qualquer propósito do governo.
série de políticas não a tradicional facção majoritária e
econômicas para se essencialmente paulista que vinha Alberto – Eu vejo mais coisas nis-
diferenciar de seu governando o partido desde sempre. so. O Nordeste cresceu mais do que
antecessor” Nesse contexto, as informações que o Sudeste, cresceu mais do que São
saíram das urnas em outubro de 2014 Paulo. A classe média, que tinha em-
octavio amorim neto
continuam sendo muito importantes. pregada, não tem mais. A classe mé-
A gente vem enfatizando muito, e ne- dia tinha acesso direto à faculdade de
cessariamente, o que tem acontecido medicina e hoje tem de disputar com
em janeiro, fevereiro e março. Mas ou- outros estratos da sociedade. Ou seja:
tubro continua vivo. Continua emitin- há um motivo real para esse incômo-
do radiações e gerando mobilizações. do ou ódio. A vida para essas pessoas
melhorou menos e, em certos aspectos
Adalberto – Eu concordo plenamente simbólicos, até piorou.
com essa ideia do desmoronamento do
PT em São Paulo, mas há uma deslegiti- Octavio – Não seria, então, o caso de
mação do partido enquanto tal, da sua o PT ter uma estratégia também para
força política perante a opinião pública. a classe média tradicional e a classe
Uma parte grande da opinião pública média alta? Por que rachar totalmen-
já condenou o partido, e isso decorre te o eleitorado? Isso não é da tradição
de um processo longo de desconstru- da esquerda.

22 situation room
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Paulo – De fato, há um desgaste. Octavio – Concordo e quero adicio- tragédia da Dilma. Embora eu ache que
Estamos no quarto mandato, mas é nar mais um elemento a nossa análise: ela esteja certa em tentar afirmar a sua
um desgaste produzido por um tipo a relação entre Dilma e Lula. A Dilma, autoridade. O regime é presidencialista.
de governo que também gerou certos às vezes, é forçada a errar para man-
efeitos e impacto na sociedade brasi- ter a autoridade dela vis-à-vis o Lula. Alberto – Mas agora ela não disputa
leira. Estamos falando de um partido Em 2011, ela ainda falava que o Lula mais eleição, o desgaste do governo
que produziu políticas públicas e efei- seria seu sucessor. A decisão de se re- é muito grande, e a popularidade é
tos reais na sociedade brasileira, como candidatar veio em 2012. O que é in- decrescente. A questão é que, depois
o citado crescimento da economia do teressante é que, em 2012, começa o de um longo período de geração de
Nordeste. Agora, ele tem de enfrentar aprofundamento da nova matriz eco- igualdade, um governo tem de gerar
um duplo desgaste: o do tempo e o do nômica e todos esses erros que a Dilma eficiência. Em geral, como se faz isso?
enfrentamento. Quando tivemos um está tentando reverter agora. Em 2011, Em cima justamente dos pobres. Todo
governo, por exemplo, que produziu houve a tentativa de baixar os juros na ajuste é feito em cima do mais fraco.
tamanha redução da desigualdade e marra. Em 2012, surgiram a administra- Não tem jeito. É o que a Dilma está fa-
certa redistribuição de recursos entre ção dos preços da energia, o processo zendo agora. Tira-se o recurso de quem
regiões brasileiras? Isso provoca rea- de privatização, ou seja, uma enorme está na parte de baixo da pirâmide, de
ções. O eleitorado conservador está reversão programática em relação àquilo quem tem o lado político mais frágil, e
organizado. A mídia, idem. É razoável que Lula havia prometido em 2006 e depois esse indivíduo vai ganhar lá na
que as grandes empresas jornalísti- 2010. Ou seja: em certo sentido, a Dil- frente. Tudo em nome do quê? Aumentar
cas, dependentes de recursos finan- ma optou por uma série de políticas a capacidade de investimento do país.
ceiros, façam um coro de oposição. É econômicas para se diferenciar de seu
tudo muito compreensivo. Eles estão antecessor. Essa seria a sua grande jus- Octavio – Concordo com você. Ela
formando oposição. Qual é, portanto, tificativa para se recandidatar. Porque, daria um passo atrás, e, depois, dois à
a boa medida? Qual é a boa medida se a política econômica dela é igual à frente. Na teoria, essa é a operação cor-
para que possamos produzir política de Lula, então o melhor é ficar com o reta. Mas, na prática, como fazer? Isso
pública distributiva e, ao mesmo tem- original, é melhor ficar com o esco- é obra para estadista: Lula, Mitterrand...
po, garantir governabilidade? Não é cês, e não com o paraguaio. Resultado:
uma tarefa fácil. O governo vai ter de estamos nesse cabo de guerra entre Alberto – A Dilma, de alguma forma,
vender a alma ao PMDB. Dilma e Lula desde então. Não pode- se reinventou na economia, aceitando o
mos esquecer de outro ponto: o Lula nome de Joaquim Levy. Então, agora
Alberto – Não é vender a alma, não! é o mentor da Dilma. Isso coloca um tem de se reinventar na política, acei-
É um governo de coalizão de verdade. problema de autoridade para qualquer tando uma participação real do PMDB
O que não pode é não se ter um mem- chefe de executivo. Já vivemos isso no no governo. Quer uma solução “sim-
bro do PT na mesa da Câmara. Isso não plano municipal, vide Cesar Maia e Luiz ples”? Tira o Kassab do ministério e põe
existe. Nunca antes da história desse Paulo Conde, no Rio, ou Maluf e Pita outro. Ela não vai fazer isso. Então, terá
país se viu algo assim. em São Paulo. Tendo a personalidade de fazer um movimento equivalente.
que tem, Dilma procurou afirmar sua  
Paulo – Não há dúvida. Bater cha- autoridade. A última situação que ela Paulo – Juntando um pouco do que
pa com PMDB na eleição para a pre- aceitaria é ser o “Medvedev” de “Lula o Octavio e o Alberto estão falando,
sidência da Câmara foi um grande Putin”. Ela afirmou a autoridade dela, mas trata-se de um governo que enfrenta o
equívoco. por meio das políticas erradas. Essa é a desafio da redistribuição e, ao mesmo

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 23


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tempo, comete erros agora no segundo os erros acontecendo e não reconhecia Adalberto – Em cima dos números
mandato. Isso é fatal. Temos o desgaste publicamente, mas agia no sentido de apresentados pelo Octavio, podemos
da longa duração, tem enfrentamento tentar retificar e logo depois voltava perceber que a Dilma legislou pouco,
da redistribuição. Se cometer erros no atrás. Agora, há também dados objetivos porque ela mandou menos medidas do
governo é um problema, cometer er- que fortaleceram muito essa concepção que FHC 1 e 2, Lula 1 e 2, muito menos
ros nessa circunstância é muito mais negativa a respeito dela. Eu tenho aqui o medidas provisória do que os dois e
grave. A gente precisa unir esses da- número de medidas provisórias de todos muito menos projetos de lei do que
dos ao fato de que forças políticas de os presidentes desde Collor. E também os dois. Ela, como agente legislativo,
oposição ainda não se sentiram aco- o número de projetos de lei que cada está muito aquém. Muito liberal. Muito
modadas no novo cenário da derrota presidente enviou ao Congresso. Todos menos do que Itamar ou Collor. Quem
que sofreram. Outros governos come- os presidentes enviaram mais projetos tem a iniciativa da política no Brasil é
teram erros no começo de mandato, de lei do que medidas provisórias, com o executivo. Sempre foi assim.
como no já citado caso do Fernando exceção de Lula 1. Agora, a Dilma é a
Henrique Cardoso. A diferença, no en- campeã. Ela emitiu, ao longo de quatro Alberto – Outro ponto importante
tanto, é que o governo Dilma come- anos, 145 medidas provisórias. Sabem é a comunicação do governo. O presi-
teu erros neste cenário de tensão e quantos projetos de lei ela enviou ao dente tem de se comunicar de maneira
de desgaste pela provocação do tema Congresso? 84. O Lula 2 emitiu 179 sistemática. O que o Lula fazia serve de
da desigualdade e da inclusão social. medidas provisórias e 203 projetos exemplo. Ele inaugurava meia dúzia de
Quando eu falei vender a alma, estava de lei. Vamos passar para o Fernan- casas não sei onde e falava de um te-
fazendo uma brincadeira no sentido do Henrique. Primeiro mandato: 159 ma que dizia respeito a todo mundo. E
de que é preciso chamar o PMDB para medidas provisórias e 203 projetos de sempre com uma grande frase. No dia
uma conversa. Para eu produzir uma lei ordinária. Segundo mandato: 206 seguinte, todo o debate era em cima
sociedade mais democrática, no sentido medidas provisórias. Ele usou e abu- daquela questão que ele levantou. É
de gerar redistribuição, eu preciso me sou, porém mandou 236 projetos de assim que o presidente se comunica. E
aliar a grupos mais conservadores ou lei para o Congresso. Dilma é a presi- duas vezes por semana. A Dilma deu 70
eu não faço redistribuição alguma sem dente mais decretista desde a posse entrevistas durante a campanha eleitoral,
ruptura das instituições. Não há outra de Fernando Collor de Melo. Fernan- ou seja, ela é capaz de fazer. Ela estava
saída. E essa é a dificuldade constante. do Collor de Melo, no primeiro ano, sobre pressão da campanha eleitoral,
Porque acho que produz um conjun- usou e abusou de medida provisória. foi lá e fez. Agora ela continua sobre
to de descontentamento. Onde está o Aí, no segundo ano, o PMDB quebrou pressão de uma campanha eleitoral,
contentamento com o PT neste perío- a coluna vertebral dele. Quase acaba- porque governar é estar em campanha
do? Não encontro contentamento em ram com a medida provisória, ou a cir- eleitoral. Por que o governante tem de
lugar nenhum. cunscreveram a temas muito pequenos. falar? Ele fala para os eleitores, para
Então, eu acho que também há bases a opinião pública em geral e também
Octavio – Há um ano, a Dilma disse objetivas para essa irritação do Con- para o mundo político. Diz para onde
que o Brasil estava comprometido com gresso em relação à Dilma. O analista o país está indo. “Eu estou conduzindo
a estabilidade fiscal. 2014 foi o pior político argentino Rosendo Fraga diz o país nesta direção e as medidas são
resultado fiscal da gestão do PT. São que é mais fácil mudar a ideologia de estas.” Só tem dois agentes que pau-
fatos como esse que a fazem perder um presidente do que ele mudar a sua tam para valer a mídia: o mercado e o
credibilidade. O que matou a Dilma foi personalidade. No caso da Dilma, isso presidente da República. Ela precisa se
o pragmatismo de curto prazo. Ela via também se comprova. comunicar e, ao mesmo tempo, distribuir

24 situation room
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

afagos entre os políticos. Os políticos à comunicação política: não há mais da e benefícios sociais e pelo tema da
gostam de carinho. Querem entrar no como colocar a culpa no FHC. O PT se corrupção. Eu perguntaria: essa eleição
avião presidencial, ser recebidos no Pa- especializou em derrotar o PSDB. O PT apertada foi entre dois projetos ou en-
lácio do Planalto sistematicamente, tirar sabe derrotar o PSDB. E, agora, isso não tre um projeto e seu próprio desgaste?
fotos com a presidente. Essas práticas funciona mais. Não adianta responsa- O PT ganha a eleição e tem de enfren-
resolveriam boa parte dos problemas bilizar o outro, depois de 12 anos. O tar o problema do ajuste das contas,
de relacionamento político do governo. próprio Fernando Henrique Cardoso mesmo que seja para poder produzir
transformou isso em piada. mais distribuição adiante. Este gover-
Octavio – Eu concordo que melhorar no começou mal, mas está usando a
a comunicação é vital. Eu procurei lis- Paulo – Há outra questão: os parti- agenda de seu antagonista. A oposição
tar as MPs e os projetos de lei porque dos identificados como de esquerda vai ficar sem agenda. O PSDB busca
este ano de 2015 será muito mais difícil têm mais dificuldade de captação de captar essa insatisfação, mas não me
do que o de 2003 em termos de ajuste recursos eleitorais proveniente das gran- parece ser de fato uma alternativa polí-
econômico e também de condução po- des empresas. O PT teve dificuldades tica. Ele não tem alternativa de projeto.
lítica. Com relação à parte econômica, em 1994 e 1998. Em 2002, o partido Por isso, há o “Fora, PT”, “Fora, Dilma”,
eu me baseio nas ideias de Samuel Pes- começa a organizar as suas finanças mas ninguém identifica claramente uma
soa, meu colega da FGV. O esforço fiscal para fazer seus enfrentamentos nas alternativa política na oposição. Se o
será maior do que em 2003. O cenário eleições seguintes. Essa organização PSDB tivesse sido capaz de captar este
é muito desafiador, por uma série de das finanças vai dar agora no problema sentimento de insatisfação, ou teria ga-
motivos. O mercado de trabalho está que estamos assistindo. Era a forma de nhado a eleição ou agora o PT estaria
sem folga e é muito difícil baixar infla- combate que tinha esse partido com mais no córner do que já está. Uma das
ção nessa circunstância. Os preços das menos capacidade de captação de recur- vantagens da Dilma é que ela não tem
commodities seguem em queda, por so, como tem até hoje. Mesmo depois uma oposição forte. A dificuldade do
conta da desaceleração chinesa. E há de se tornar governo, em 2006, o PT governo é muito mais dentro da sua
ainda o risco de aumento da taxa de arrecada menos doações empresariais própria base do que no enfrentamento
juros dos EUA. Esses quatros elemen- que a oposição. Ao se analisar a tabela com a oposição.
tos dificultam o ajuste neste momento. de doações de 2010, percebe-se que
A comparação da ambiência política a oposição recebeu mais recursos de Octavio – Você não acha que todas
também não favorece a Dilma. Ela teve empresas. A Dilma, então, tem de ad- as dificuldades que a Dilma tem foram
uma vitória muito apertada, ao passo ministrar o passivo de um partido que magnificadas pela campanha? Pelo que
que Lula deu uma surra em 2003. Ho- precisou encontrar formas para enfren- ela disse para derrotar seus adversá-
je, o PT está enfraquecido na Câmara, tar tal situação a longo prazo. Estamos, rios? O que ela disse para destruir a
e, por consequência, a oposição está portanto, em um momento em que o Marina e depois para derrotar o Aé-
mais forte, aguerrida. O PSDB mudou. erro cometido, como eu falei, ganha uma cio? Nós já vivemos vários episódios
É outro partido em relação ao que ha- dimensão muito grande. Mas trata-se de reversão programática: em 86, com
via sido nos últimos 12 anos. Há tam- também de um momento muito rico o Cruzado 2; Collor acusou o Lula de
bém os grandes riscos embutidos nos para se pensar nas instituições, inclu- querer sequestrar a poupança e, de-
escândalos da Petrobras, a crescente sive o item agenda do financiamento pois foi lá e fez o confisco; Fernando
fadiga dos eleitores com o partido que de campanha. Temos então um duplo Henrique Cardoso prometeu manter
está no poder há mais de uma década desgaste governamental, em função do a paridade do real e desvalorizou a
e um aspecto fundamental em relação enfrentamento da redistribuição de ren- moeda um mês depois. Isso nós já

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 25


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

conhecemos. Mas essa distância do Paulo – Eu acho que a Dilma pode a politica externa tão altiva e ativa como
que foi dito na campanha e o que foi ser um bom quadro para dias de ven- nos dois mandatos do Lula. Qualquer
feito logo depois não terá sido muito tos fortes e contínuos. Mas sem ven- presidente teria dificuldade para lidar
maior agora? Aquele Exocet que foi to, ela se complica. Ela não é uma boa com a Argentina, com o Mercosul co-
lançado contra a Marina para destruí- opção para gerir crises. Mas eu quero mo está. De qualquer modo, a Dilma,
-la por conta da autonomia do Banco responder a uma pergunta do Octavio do ponto de vista retórico, manteve
Central não precisava ser tão forte. Pa- que ficou mais para trás. Se eu acho a mesma política externa do Lula. Ela
ra desmontar a Marina não precisava que os ditos ataques de eleições po- não mudou as grandes linhas da polí-
daquela bomba atômica. Hoje, a Dilma dem ter causado este efeito negativo tica externa do Lula, mas mesmo assim
tem de limpar essa Nagasaki. de agora? Não, não acho não. Acho ela dá a sensação de ter acabado com
que faz parte do jogo. A polarização a política externa. O Lula, lembremos,
Alberto – O John Major, quando pri- já estava dada. abriu várias embaixadas na África, algo
meiro-ministro britânico, foi ao parla- decisivo para a ampliação da influência
mento e disse que não iria desvalorizar a Alberto – Um ponto importante ainda geopolítica brasileira e para a vitória de
libra. No dia seguinte, desvalorizou. Isso nessa seara da comunicação. Quando um candidato brasileiro da Organização
faz parte. O governo tem de gerenciar o governante sabe que não consegue Mundial de Mercado. O que a Dilma
expectativas. A comunicação serve para resolver um determinado problema, faz? Pega o orçamento do Itamaraty e
isso. Só que, quando acabou a eleição, ele aborda a questão de outra manei- o reduz radicalmente. As embaixadas
a Dilma não estava convencida de que ra. Um exemplo: o Garotinho. Ele usou brasileiras estão nessa situação. Então, há
iria tomar medidas dessa natureza. Ela isso: “Tenho nove filhos, eu sou o mais algo na Dilma que eu não compreendo.
resistiu ao Levy. interessado em resolver a violência.” Ela não gosta dos políticos, não gosta
Este ano vai ser difícil, então, como o dos diplomatas. São os dois principais
Adalberto – Tem um ponto que eu governo faz? O governo não pode fa- atores com os quais ela tem que lidar.
acho importante no que diz respeito à lar nada contra o que as pessoas estão Os políticos para a política doméstica e
comunicação. Vocês são cientistas po- percebendo e tem de mostrar empenho os diplomatas para a política exterior. A
líticos, eu não sou. Então, eu olho do em resolver o problema. “Estamos to- Dilma não gosta dos dois. Então, como
lado de onde eu posso falar. A presi- mando esta, esta e esta medida.” Há mil é que essa presidente vai pilotar um
dente pode ter a melhor das intenções, metáforas próximas à vida das pessoas 2015 como este?
uma capacidade discursiva excepcional, que podem ser usadas. O Lula usaria:
mas o ambiente é inteiramente adverso “É um pai desempregado, que, no dia Adalberto – Eu vou trazer uma ques-
a qualquer coisa que ela fale ou faça. seguinte, começou a procurar emprego, tão para esta mesa que ainda não apa-
Há uma má vontade, generalizada, de mostrou à família que está empenhado receu, que é junho de 2013. Estou tra-
todos os agentes, que vai do Judiciário e um dia vai conseguir.” zendo 2013 porque parte do cenário
ao Parlamento, passando pela opinião atual decorre de lá. Aquele momento
pública. Desfazer isso não é tão sim- Octavio – Um aspecto que a gente teve grande influência na eleição. Po-
ples. Para uma pessoa como ela, que ainda não abordou é a política externa. deria ter produzido a Marina. E mesmo
acha que está certa o tempo inteiro e Não sou especialista no assunto, mas no segundo turno. Junho de 2013 levou
não ouve outras pessoas –, e, quando, é outra área em que as dificuldades da o Aécio a radicalizar o seu discurso no
escuta, escuta as pessoas erradas ou, Dilma se manifestaram radicalmente. Eu segundo turno. Ele colocou a agenda
pelo menos, os conselhos errados –, é reconheço que não havia mais condições conservadora de 2013, colocou na sua
muito complicado. estruturais para o Brasil continuar com agenda e radicalizou pesadamente o

26 situation room
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

seu discurso. Por outro lado, parte do de fato. Tem de mudar os personagens
momento atual é fruto da radicalização que estão lá no Palácio do Planalto. 
do processo eleitoral e do resultado  
apertado da eleição. Octavio – É como diz o Wanderley
Guilherme dos Santos: a Dilma tem o
Alberto – Não sei qual a opinião de comando, mas não a liderança. Por is-
vocês, mas, no meu entender, grande so, ela tem essa enorme dificuldade
parte da dificuldade da Dilma é que ela e o Lula, de vez em quando, passa a
não gerenciou o pós-eleição. Ela não perna nela.
queria o Joaquim Levy. No dia seguinte
ao segundo turno, o Lula vai à mídia e Alberto – Não vejo muito mistério,
vaza o nome do Luiz Carlos Trabuco, não. Ela tira o Pepe Vargas e põe o
mexendo no mercado. Depois ele diz Henrique Alves no lugar. Pronto. Põe o
que é candidato em 2018. Na hora em Lula na Casa Civil sem ter formalmente
“A presidente
que traz à cena o nome do Trabuco, ele o cargo. O Lula fica sendo articulador.
pode ter a melhor
liquidou o Mercadante, que estava fa- Você faz um acordo: Henrique Alves e
zendo campanha para ser Ministro da Lula negociam. Lula lá com o PT e os
das intenções,
Fazenda. E criou uma expectativa em outros, e o Henrique Alves com o PMDB. uma capacidade
todos os agentes que o ministro viria É uma questão de sobrevivência. Ou, discursiva
naquela direção. A Dilma naquele dia então, perde em 2018. Agora, tem áre- excepcional,
definiu o perfil. Ela foi reeleita no do- as que não estão mais sob o controle mas o ambiente
mingo à noite e na segunda deu uma do executivo. O Brasil mudou. Antiga- é inteiramente
entrevista na TV Record. O repórter per- mente, desembargador era parente de adverso a
guntou se Trabuco ia ser o ministro. Ela político. Hoje, não é mais. Os marcos
qualquer coisa que
estava irada e respondeu com veemên- legais são novos. As novas leis deram
ela fale ou faça”
cia: “Não!” O que o Lula fez? Uma ma- mais poderes ao Judiciário e ao Minis-
nobra política para encaixar um perfil tério Público. adalberto cardoso
de ministro. O que acontece? A Dilma
ficou quietinha por duas semanas. No Octavio – Mas, Alberto, você não pode
fim de novembro, saiu nos jornais que negar que no Brasil é muito específico
o Trabuco aceitara ser o ministro da nesse aspecto. Os três grandes órgãos
Fazenda. Foi, sem dúvida, uma nova de imprensa são todos conservadores.
investida do Lula. Aí, a Dilma não teve Você não tem um El País, como na Es-
saída. Não foi de Trabuco, mas foi de panha. O JB no começo da democrati-
Levy. Com o passar do tempo, a ficha zação tentou se posicionar mais à es-
caiu para ela. Então, ela se reinventou querda para sobreviver à competição
na economia por conta de uma pressão com O Globo e não resistiu. Não resistiu
muito forte. Mas não na política. Quan- e quebrou. A grande vocação do JB no
do ela anuncia mais três negociadores, regime democrático era ser mais ou me-
Aldo Rebelo, Gilberto Kassab e Eliseu nos o El País brasileiro. Não acho que
Padilha, não se trata de uma mudança seja a solução ficar com a mídia só da

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 27


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

internet. O fato é que a internet aca- grande liderança, diz: “Realmente, er- preocupado com as alianças que o PT
bou fortalecendo os velhos órgãos de ramos muito.” O Lula fala assim: “Ah! A fez com a direita. Eu não vejo o me-
comunicação porque estes têm muito gente comete erro como todo mundo nor impacto desse tipo de declaração
mais credibilidade. Na internet, fala- comete.” “Qual o erro, presidente Lula?” em relação a esse eleitorado que está
-se qualquer coisa, basta ver o grau de Ele não vai dizer. Não há uma convenção batendo panela.
radicalização nas mídias sociais. Então, para fazer uma reforma programática.
há um problema, Alberto, não dá pa- Tarso Genro pediu isso em 2005, quando Octavio – Paulo, eu discordo de você.
ra negar. A gente não tem um bom e foi derrotado. O PT continua dizendo Esse pessoal que está batendo pane-
grande jornal que seja de esquerda. que certas coisas que aconteceram não la é antipolítico no coração. E porque
aconteceram. Aí, não dá para ganhar o eles odeiam a política? Há várias razões
Alberto – Octavio, só tem o jornal debate pela narrativa política do país, com corretas e algumas totalmente equivo-
se tiver o leitor. ou sem um El País. A condição neces- cadas. Eles odeiam a política por con-
sária é ter um jornal afeito ao ideário ta disso: o sujeito era inimigo figadal
Octavio – Mas será que, no Rio de de esquerda. Já a condição suficiente de José Sarney e Collor de Melo. Onde
Janeiro e em São Paulo, não há um é o partido reconhecer que cometeu estão Sarney e Collor agora? E mais o
pessoal mais disposto a ler um El País? grandes erros. Bastava o Lula usar toda Waldemar Costa Neto, o PP, herdeiro
a autoridade que ele tem, com toda a do PDS. Como é que isso não ia dar
Alberto – Quem faz a diferenciação capacidade de comunicação, e dizer: “Eu numa crise? Como é que uma aliança
do jornal é o leitor. Se alguém fizer um errei, nós erramos, reconhecemos isso absolutamente esdrúxula como essa
jornal de que a opinião pública predomi- tudo.” Estou falando de erros políticos, não ia fulminar a legitimidade?
nante discorda, acabou. Não tem jornal. não estou falando nada jurídico. “Nós
cometemos o erro de fazer uma alian- Alberto – Sabem por que a coalizão
Octavio – O El País tem como gran- ça com a direita clientelista brasileira.” é tão grande e ampla? Tempo de TV. É
de articulista o Mario Vargas Llosa, um Como é que um partido de esquerda muito simples.
personagem extremamente liberal. exemplar, como o PT, o melhor repre-
sentante do socialismo europeu, faz um Octavio – Alberto, outro pedido de
Paulo – Acho que não cabe botar a governo de coalizão com os herdeiros desculpas que o Lula poderia fazer: “Nós
culpa da crise na mídia. Agora, que o do regime militar? O PP é o partido mais deveríamos ter profissionalizado todo
PT perde a batalha interpretativa, disso devastado pelo “petrolão”. O primeiro o funcionalismo público. Vamos acabar
não há dúvida alguma. Em parte, por- grande reconhecimento de erro político com esse negócio de 21 mil cargos de
que perdeu credibilidade em função tem a ver com a política de alianças. Es- confiança.” Alguém acha que reconhe-
dos escândalos em que está envolvi- se erro é fatal. Como um partido de cer esses dois erros de estratégia iria
do; em parte, porque há um controle esquerda governa com o PTB, o PL? O manchar a biografia do Lula? Qualquer
midiático de um certo discurso. Lula deveria falar: “Erramos, errei. Não grande líder comete erros. Na minha
deveríamos ter feito o acordo.” visão, enquanto esse mea culpa não for
Octavio – Grande ponto, Paulo. O que feito, o caldeirão vai continuar fervendo,
falta ao PT? Ok, falta um El País ao PT. Paulo – Octavio, uma frase como es- o ódio vai aumentar. Qual é o governo
Agora, a dificuldade do PT de ganhar o sa poderia redimir o Lula em relação que não erra? Roosevelt, grande pre-
debate no grande público também tem a um tipo de eleitorado que tem ódio sidente da história norte-americana,
a ver com o fato de o partido jamais agora porque ele fez aliança com a di- errou várias vezes. Esse reconhecimen-
assumir a culpa. Ninguém, nenhuma reita. Mas quem bateu panela não está to seria um grande começo. Teria um

28 situation room
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

efeito de distensão do sistema político depoimento. O que seria isso? Trazer Adalberto – Não estou discutindo
enorme. O PT sai do pedestal. “Acerta- o PMDB mais para dentro do governo se é bom ou ruim. Não sei por que isso
mos em quase tudo, mas cometemos e no âmbito da CPI apoiar a apuração depende de muitos outros fatores. Eu
um erro na política de aliança e nas dos fatos, apenas para citar dois mo- só estou chamando atenção para es-
nomeações dos cargos de confiança.” vimentos. Acho que esse tipo de ação se aspecto. A crise hoje decorre muito
Ganha 2018 facilmente! pode ter um impacto mais eficiente. do fato de que determinados atores
do quadro político-econômico estão
Alberto – Permitam eu trazer à dis- Octavio – Concordo com você. Se o perdendo em demasia. A crise está
cussão algumas projeções econômicas governo der dez passos para disten- atingindo grupos que têm o poder de
para este ano. O PIB pode ser de 2% sionar o ambiente político, está ótimo. veto na economia e na política brasi-
negativos e a inflação, entre 8% e 9%... Não precisará reconhecer culpa algu- leira. Isso inclui os donos dos meios de
ma. Agora, com o pedido de desculpas comunicação.
Octavio – Vou interromper... Não sei pelos erros, há mais ganho. Virá uma
se você leu o último livro do Lampreia, distensão maior no ambiente político Octavio – Agora, é um absoluto equí-
Aposta em Teerã. Ele narra um debate do país. voco de análise política e de interpre-
entre Lula e Ahmadinejad. O livro dis- tação do nosso regime achar que, por
cute se Lula e Celso Amorim acertaram Adalberto – A situação econômica conta do mau desempenho político-
ou erraram ao tentar bancar um acor- contamina a questão política. O Bra- -econômico do país, a presidente de-
do para resolver aquele conflito sobre sil já parou e vai continuar parado por ve ser destituída. Isso é uma grande
o problema nuclear Iraniano. Chegou muito tempo. Vamos ter no primeiro loucura. Porque o regime presidencial
um momento em que o Lula estava trimestre uma queda de 3% ou 4% no se caracteriza por mandatos fixos. Se
irritado com o Ahmadinejad porque PIB em comparação ao último trimestre ela foi eleita para quatro anos, tem de
ele estava negando o holocausto. Aí do ano passado. Há demissões em to- cumprir quatro anos. Por pior que se-
os dois se encontraram. O Lula pediu dos os setores da economia: financeiro, ja o desempenho. As condições para
ao Ahmadinejad para se moderar. E comércio, indústria, petróleo, tudo. As o impeachment são dificílimas. Existe
o Ahmadinejad começou a se expli- empreiteiras estão demitindo louca- uma couraça constitucional em torno
car e dar razões históricas para as su- mente. Teremos crises cruzadas, que do presidente justamente porque o re-
as declarações. Foi quando o Lula saiu passarão pelos bancos, pelas emprei- gime é presidencial. O presidente não
com esta frase: “Quando um político teiras, pelas seguradoras etc. Neste ano, é responsável nem politicamente. Não
começa a explicar muito, é porque já teremos um resultado negativo muito existe moção de desconfiança no pre-
perdeu.” Eu acho que o Lula teria difi- maior do que está sendo projetado. sidencialismo. O presidente pode ser
culdade de pedir desculpas necessárias Em 2016, se o PIB crescer 1%, a alta se péssimo, mas, como disse a Dilma, tem
por conta disso. Ela vai ter de começar dará sobre um patamar de comparação de ter paciência.
a se explicar, algo a que ele se recusa muito ruim. Nós podemos chegar em
peremptoriamente. 2018 com um cenário parecido com de Paulo – Eu gostaria de voltar e res-
2010. Mas 2015 será um ano de razia, ponder a sua pergunta se seria bom
Paulo – Não acho que esse seja um de orçamento muito baixo. para o Brasil um quinto mandato do
bom caminho para debelar a crise. Cer- PT. O que eu acho é que o bom para
tas atitudes podem ser mais eficientes Octavio – Você acha que seria bom a democracia não é regular quantos
e podem querer dizer a mesma coisa para o Brasil e para a democracia um mandatos o presidente ou o partido
sem que se corra o risco desse tipo de quinto mandato do PT? vai ter. Bom para a democracia são elei-

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 29


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ções competitivas, lícitas. Que a pessoa o PSDB não voltou. Será que se o PT
possa disputar, ter condições boas de ficar 20 anos, ele volta?
competição e de pluralidade de comu-
nicação. Se o eleitorado acha por bem Alberto – O PSDB não voltou agora
um quinto mandato, eu não vejo isso em outubro por 3,5%. Vamos olhar a
como um problema. lógica eleitoral. O Nordeste vota no PT,
São Paulo vota no PSDB. Então, está
Octavio – A esse respeito, eu queria garantido o segundo turno entre PT e
citar os argumentos de Ariel Armony, PSDB. Quaisquer que sejam os candi-
um politólogo argentino que trabalha datos. Não tem espaço para outro par-
nos Estados Unidos e estuda a rela- tido. O PMDB ameaça lançar o Eduar-
ção entre os direitos civis, políticos e do Paes. De onde ele vai tirar os votos
sociais. Ele diz o seguinte: “Nenhuma para ir ao segundo turno? Só o Rio de
sociedade consegue maximizar os três Janeiro não é o suficiente. Imagina um
ao mesmo tempo. Nem a Suécia.” Por candidato sem recall, absolutamente
“Quanto mais gente que ele diz na Suécia? A Suécia é o zero. Pode ser o mais desconhecido
for para as ruas paraíso dos direitos civis e sociais, po- possível. Começou a campanha, bum!
protestar, mais rém, os socialistas ficaram no poder 40 Ele passa a ser conhecido. Foi exata-
o PMDB vai ter o anos. Houve uma erosão dos direitos mente o que aconteceu com o Aécio.
queijo na mão para políticos da Suécia. É a sociedade mais O Aécio foi um experimento. O PT faria
civilizada do mundo, mas 40 anos com a mesma coisa com um sujeito desco-
negociar. A Dilma
o mesmo partido ganhando, ainda que nhecido em nível nacional.
tem de perceber
com eleições competitivas, é um pouco
essa conjuntura
demais. Então a gente tem de refletir. Octavio – Então, você acha que é
e incorporar mais Não dá para maximizar os três direitos uma vantagem estrutural destes dois
o PMDB” ao mesmo tempo. Então, é necessário partidos?
paulo d’ávila fazer uma escolha. Eu acho que 16 anos
de PT está sendo ótimo. Agora, mais Alberto – Claro, vantagem estrutura.
um mandato não será bom nem para Estrutural. A Marina é que podia tirar.
democracia, nem para o próprio parti-
do. O PT tem de passar uma temporada Octavio – Aliás, cadê a Marina?
na oposição para se revitalizar. Se o PT
não sair dessa crise, ele pode virar um Paulo – Concordo com o Octavio que
PTB e nunca mais voltar à Presidên- pode ser pior para o PT ter um quinto
cia da República ou deixar de ser um mandato, mas não para a democracia.
partido competitivo. O Renato Janine São duas coisas diferentes.
Ribeiro observou muito bem: um dos
aspectos mais irônicos do nosso atual Octavio – No ano passado, muita gente
regime democrático é que nenhum dos do PT já dizia que a reeleição da Dilma
partidos que tenha ocupado a presi- poderia ser um problema gravíssimo
dência voltou. O PMDB não retornou, para o partido.

30 situation room
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Alberto – Se o Lula ganha em 2018 de crise. Isso pode significar uma inca- Alberto – O problema é que não vai
e põe o Palocci na Fazenda, todo mun- pacidade completa de administrar para ser tão rápido assim. São 120 dias. O
do vai soltar fogos. Tudo de novo, que os próximos anos. O partido já perdeu projeto de lei tramita muito mais len-
beleza! São Paulo. Pode perder o Nordeste. tamente.

Adalberto – O fato é que a lei de Alberto – Se crescer 3% ao ano, não. Octavio – Esse timing é complexo, mas
ferro da oligarquia existe mesmo. Não eu quero mudar a conversa de direção
tem escapatória. Quem domina o po- Adalberto – Sim, são cenários, pro- e trazer de novo à pauta um assunto
der vai tentar fechar os mecanismos jeções. Estou falando isso com o obje- que foi tratado en passant: a questão
de acesso. Isso já está mais do que de- tivo de chamar a atenção para o dilema do impeachment. Só há condições de
monstrado há 100 anos, pelo menos. que o PT vive hoje. se abrir um processo de suspensão de
Sob esse ponto de vista, o PT está so- mandato com culpa e dolo do presi-
frendo esse problema. Não tem saída Octavio – Os argumentos do Adal- dente, no exercício do mandato. Então,
fácil para o partido. O PT teria de reto- berto são muito bons. Agora, eu acho não há evidência de culpa e nem dolo
mar suas raízes, refazer seus laços com que há uma vantagem estrutural da por parte da Dilma.
os movimentos sociais... esquerda no Brasil. Nós somos uma
sociedade desigual, cujo principal te- Alberto – Sem dúvida, isso não existe.
Octavio – Precisa ser mais progra- ma eleitoral é redistribuição de ren- Agora, a Dilma está numa crise pessoal.
mático... da. Quem tem credibilidade para falar É uma decisão pessoal ceder de fato
de distribuição de renda? A direita? A para um governo verdadeiramente de
Adalberto – Sem dúvida. Mas es- direita brasileira que em pleno século coalizão. Ela não fez isso. Na prática,
sa possibilidade de renovação hoje XX fez o que fez? Olhando mais pra o PMDB não está sendo devidamente
não existe. Com o PT no poder central, frente, e eu concordo com o Alberto, atendido e integrado ao governo. O
essa hipótese não está dada. Isso não eu acho muito difícil não vermos o PT PMDB tem a faca e o queijo na mão.
quer dizer, e eu concordo com o que como um dos dois grandes partidos Se ela não cede, o partido a derrota.
Paulo disse, que a permanência do PT brasileiros, disputando a presidência
seja ruim para a democracia em geral. para valer. Mas essa conjuntura crítica Paulo – Quanto mais gente for para
Agora, é claro, o PT corre o risco de ser de 2015 e 2018 vai ser decisiva para o as ruas protestar, mais o PMDB vai ter
varrido da cena política brasileira nos futuro da política brasileira nas próxi- o queijo na mão para negociar. A Dil-
próximos anos. mas décadas. ma tem de perceber essa conjuntura
e incorporar mais o PMDB.
Alberto – O PT? O PT nunca elegeu Alberto – Com relação a essa con-
um grupo de governadores tão impor- juntura e ao timing, a declaração do Octavio – A gente não pode esquecer
tantes como agora. Joaquim Levy é perfeita. Quanto mais que há um conflito estrutural entre o PT
duro você for, mais rapidamente virá e o PMDB, que se manifesta no plano
Octavio – A começar por Minas. a solução. municipal. Porque a sustentação elei-
toral do PMDB como o grande partido
Adalberto – Eu não estou olhando a Octavio – Em 1999, foi assim. Houve fazedor de governo no plano nacional
última eleição. Eu estou olhando para a a desvalorização e o primeiro trimes- está nos municípios. O PT começou mui-
frente. Refiro-me à incapacidade que o tre foi terrível. No fim de 1999, o Brasil to pequeno nas cidades e tem como
partido tem mostrado neste momento já estava crescendo. Em 2000 cresceu. objetivo tornar-se o maior partido nos

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 31


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

planos municipal, estadual e federal. Alberto – O PT em São Paulo tem ra a Dilma apertar os parafusos e fazer
Agora, por uma série de razões, PT e de ser um partido no estilo Haddad. um acordo. A margem de manobra de-
PMDB estão aliados, mas não abdica- Tinha um deputado no Democrata no la está cada vez mais estreita. O PMDB
ram dos seus projetos de hegemonia Texas que defendia a legalização de hoje tem poder de veto...
no plano municipal. armas e outras agendas republicanas.
Ele falava para o texano. O PT de São Octavio – Governar em coalizão é
Paulo – Octavio, você explica assim o Paulo tem de ser diferente do PT de aceitar o veto dos aliados. O presidente
insucesso do PT no plano parlamentar? outros estados e voltar a falar para o governa com o mínimo denominador
paulista. É óbvio! comum. “Estamos juntos, o que po-
Octavio – Existe, sim, uma relação entre demos pode fazer juntos?” Só passa
desempenho municipal e desempenho Octavio – Não sei se isso é possível. aquilo que é unânime ou consensual.
nas eleições para a Câmara... As lideranças que fundaram os parti-
dos ainda estão vivas. Lula continua Alberto – Ok, mas o Renan pode ou
Adalberto – Mas o PT perdeu em sendo o grande líder do partido. E ele não pode indicar o diretor da Transpetro?
São Paulo e Pernambuco. O resto do nunca deixou o campo da esquerda.
Brasil foi igual... Ao contrário, por exemplo, do César Octavio – Não deveria.
Maia, que foi para a esquerda, foi para
Alberto – Sim, mas a inversão em a direita... Não vai ser agora que o Lula Alberto – Sim, aí ele devolve a MP.
São Paulo foi muito grande. O segun- vai derivar e sair do campo da esquer- O problema da Dilma é este.
do turno é um excelente indicador. Na da para adotar um discurso com ideias
eleição anterior, a vantagem do PS- mais conservadoras. Agora, em relação
Adalberto Cardoso é cientista social e profes-
DB sobre o PT foi de 10 pontos per- à posição do Legislativo quanto ao pro- sor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos
da Universidade do estado do Rio de Janeiro
centuais. Dessa vez, foi de 30 pontos grama econômico do governo, eu quero
(Iesp-Uerj).
percentuais. lembrar que o Congresso nunca negou acardoso@iesp.uerj.br
o programa econômico de começo de
Alberto Almeida é cientista político e diretor
Octavio – Essa é uma grande questão. mandato de qualquer presidente. Acho do Instituto Análise.
alberto.almeida@institutoanalise.com
Como é que um partido que nasce em muito difícil o Congresso negar. A Dil-
São Paulo e é eminentemente paulista é ma tem uma maioria nominal. É só ela Octavio Amorim Neto é cientista político e pro-
fessor da Escola de Pós-Graduação em Econo-
humilhado em São Paulo? Pode se dar apertar os parafusos certos. A dúvida é
mia (EPGE) da Fundação Getulio Vargas (FGV).
algo parecido com o que ocorreu com essa: se ela vai ou não apertar. oamorim@fgv.br
o Brizola no Rio de Janeiro. Quando o
Paulo d´Ávila é cientista político e professor
eleitorado do Rio de Janeiro passou a Adalberto – O PMDB aumentou do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais (PPCIS) da Universidade do Estado do
ter ódio mortal do Brizola, acabou a muito o seu cacife com essas derrotas
Rio de Janeiro (Uerj).
carreira política dele. todas. Então, está mais complicado pa- paulodavilaf@yahoo.com.br

32 situation room
J
“Quanto mais força tem o governo, á se vão longos os idos daquele mês de ju-
tanto mais livre é o país. Não nho, mas as lições ficam, ou deveriam ficar.
presumo saber história, mas não Primeira delas, governo bom é governo forte,
me lembro de ter lido em publicista prestigiado, com linhas de ação clara, projetos defi-
algum inteligente que a liberdade nidos e comunicação precisa. Um governo forte é o
tenha perigado nas mãos dos esteio da democracia, das instituições e da nação.
governos fortes, porque, quando Tais considerações se fazem oportunas num mo-
corre perigo a liberdade, é quando mento raro e delicado como este, em que os diversos
o governo é fraco, sem meios astros se alinham no alto do céu castigando o Bra-
de poder desempenhar os seus sil com todo o tipo de externalidade negativa. É em
deveres. Em caso tal, formam-se circunstâncias tais que o governo de plantão precisa
as facções que o enfraquecem, e o se mostrar à altura dos desafios, agindo pondera-
mesmo governo procura alterar a damente, é certo, mas com prontidão, energia e fir-
ordem” meza. O que se percebe, contudo, é o esfarelamento
mais vertiginoso de legitimidade política já registrado
(Bernardo Pereira de Vasconcelos,
nos anais da República brasileira. Como já sabia o ve-
discurso no Senado do Império, sessão de
30 de junho de 1840). lho Vasconcelos, diante de uma estrutura de poder
fraca, as facções se assanham e a tomam como re-
fém. É o que se vê na rebelião da base governista,
o colapso da coalizão que sustentou o governo nos
últimos anos. As crises hídrica, energética, ética, eco-
nômica, entre tantas, não têm como ser enfrentadas
sem resolução da mãe de todas as crises, que é a
política. O governo prefere enxerga-la à imagem da
Medeia, de Eurípedes, e se entrega a essa mãe feri-
na como um filho desejoso da punhalada materna.
É no seio desta mãe cruenta que ele se debate. Se
permanecer entregue, omisso, o país ficará a à mer-
cê das demais crises. Não cabe vilipendiar a políti-
ca, e nem pensar que o matricídio da representação
democrática é o exterminador da mãe de todas as
crises. A solução é sutil, não obstante trazer contida
a dificuldade do nosso tempo. Falta um especialista
à frente dos destinos do país. Sim, é como devemos
chamá-lo. Ironia suprema para os que acham que a
política não precisa de profissionais.

recado
O POVO NAS RUAS
Abolição da escravatura
O povo reunido no Largo do Paço (atual Praça 15) saúda a Princesa Isabel, na
sacada central do Paço Imperial, logo depois da assinatura da Lei Áurea. Trata-
se do primeiro registro fotográfico de uma manifestação cívica do povo no Brasil.
Para os padrões da época (o Rio tinha 500 mil habitantes), foi uma multidão imensa,
equivalente ao milhão que os paulistas puseram na rua no último 15 de março –
com o agravante de ter sido a primeira vez. “Eu vi o povo pela primeira vez”, diria
Machado de Assis. As elites não gostaram, e Dona Isabel perdeu o trono.

34 calibã
Revolução de 1930
Pela primeira vez desde a
abolição – 40 anos antes –,
as multidões retomaram
às ruas em uma explosão
cívica, queimando os jornais
da situação oligárquica
e saudando as tropas do
Gegê, que chegavam do Rio
Grande do Sul para amarrar
os cavalos no obelisco.
Mas o povo foi na onda do
movimento militar, que foi
detonado pelos insatisfeitos
do regime decaído. Um
deles, o mineiro Antônio
Carlos, já antecipara:
“Façamos a revolução antes
que o povo a faça!”.
Dito e feito.

Revolução
constitucionalista
Imagem da reação ao movimento
anterior. A revolução de 1930
destronara São Paulo do posto de
Prússia brasileira. O presidente
deposto, Washington Luiz, era
paulista, e o seu sucessor eleito,
que jamais tomaria posse, era outro
paulista: Júlio Prestes. O governo
revolucionário centralizou o poder
e nomeou interventores para
governar a locomotiva do Brasil. Os
quatrocentões ficaram indignados
e acionaram o patriotismo
estadualista, pondo o povo na
rua e pedindo ouro por São Paulo
na Revolução Constitucionalista
de 1932. Foi a única “revolução”
célebre por uma batalha que não
houve: a de Itararé. Os paulistas
perderam, mas levaram: a
Constituição viria em 1934.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 35


Integralismo
Desfile integralista pelas ruas de São Paulo
em 1936. O integralismo de Plínio Salgado
pretendia ser uma espécie de fascismo
brasileiro, autoritário, nacionalista e
católico. Esse partido de extrema-direita
foi o primeiro a colocar o seu “exército”
na rua – e, como se pode ver, era bem
mais numeroso e organizado que o do
Stédile. Mas não escapou da galhofa
popular. Por causa do seu uniforme
esverdeado, refletindo a cor brasileira,
foram logo apelidados de galinhas verdes.
O advento do Estado Novo acabou com o
integralismo que, inconformado, tentou
matar Getúlio atacando a sua residência,
que era o Palácio Guanabara.

Morte de Vargas
O cortejo fúnebre do presidente Vargas depois do
seu suicídio em 1954 foi a primeira manifestação
cívica massiva de comoção pública no Brasil.
A massa saiu do Palácio do Catete em direção
ao Aeroporto Santos Dumont e se estendia
por quase um quilômetro à frente, ao lado e
em torno do caixão. A foto mostra o cortejo
passando pela Praça Paris. Antes, já haviam
queimado as oficinas de O Globo, principal jornal
da oposição na capital, e revirado os seus carros
de entrega de jornais. Os inimigos de Vargas
tiveram de se esconder. O último ato de Vargas,
já cadáver, foi eleger Juscelino presidente, contra
o candidato da UDN. Cadáver de presidente mais
forte do que muito presidente vivo...

36 calibã
Comício de Jango na
Central do Brasil
Março de 1964. Olha lá o retrato
do Gegê, dez anos depois. Em
cima, o do Jango, presidente
afilhado de Vargas que dali a
pouco jogaria suas últimas fichas
políticas: prometeu reforma
agrária, reforma bancária,
reforma financeira etc. O comício
foi politicamente desastroso,
acenando com uma radicalização
que inclinou definitivamente a
opinião pública e os militares
indecisos para a solução golpista.
De boa lembrança do comício,
ficou só a imagem da linda
esposa de Jango, Maria Teresa,
no palanque, ao lado do marido.
Dizia-se que era mais bonita que
a Jackie Kennedy. Será?

Marcha da família
Esta foto também é a reação à
anterior. Trata-se da Marcha
da Família com Deus pela
Liberdade em 1964, que reuniu
a elite branca, golpista e de
olhos azuis (ou seriam verdes?)
duas semanas depois do comício
da Central. Admirem os belos
modelitos parisienses, os lenços
londrinos na cabeça das duas
senhoras no primeiro plano, bem
como o pequenino terço por elas
carregado, “comprado em Itu”.
Naquele tempo, elas ainda punham
as empregadas para baterem as
panelas no lugar delas.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 37


Diretas já
O comício na Praça da Sé, em 1984, foi o maior da campanha
capitaneada por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. Tudo muito
bonito, menos o fato de que no fundo eles preferiam mesmo que
o Colégio Eleitoral escolhesse o futuro presidente civil. No fim, foi
o que aconteceu. Mas a mobilização da campanha foi fundamental
para acabar de cantonar os militares e despertar o sentimento cívico
popular, depois de tanto tempo de nacionalismo oficial fabricado pelo
regime autoritário. A oposição se apropriou do Hino Nacional.

38 calibã
Caras pintadas
Quem não se lembra de um chefe
de Estado autoritário, que metia
medo em todos à sua volta, que
se acreditava predestinado, mas
fez uma administração que tinha
tanto de voluntarista quanto
de desastrada e amadora? Que
acreditava guardar até o último
momento uma popularidade
que se esvaiu velozmente até
despertar a ira da população, que
outrora o afagava e que passou
a pedir a sua cabeça? Que se viu
envolvido, ou pelo menos acusado
de envolvimento, em escândalos
que implicavam sexo e corrupção,
inclusive dentro da própria
família? Que afinal foi obrigado
a retirar-se do poder? Sim, vocês
sabem de quem estamos falando:
Dom Pedro I, claro!

Manifestações de 2013
É o enigma dos enigmas, embora não devore quem não o decifre. O significado caleidoscópico das manifestações de junho
de 2013 nunca foi elucidado de modo satisfatório. Foram conservadoras? Liberais? Reacionárias? Progressistas? Queriam
depor os governos? Ou só baixar o preço dos ônibus? Queriam melhores serviços? Ou o fim da corrupção? Queriam a
reforma política? Ou melhoria na mobilidade urbana? Até hoje sequer sedimentou-se uma nomenclatura para designá-las:
Jornadas de junho? Revolução de junho? Passeatas? Seja o que for, elas representaram um ponto de virada fundamental
nos ventos políticos que vinham soprando no país nos últimos vinte anos. Para onde é que vão? Não se sabe.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 39


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

40 homo sapiens
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

E fez-se a
dilucidação
As raízes da
cognição humana

Leonardo Braga Martins


Oficial de Marinha Submarinista

N
o século XIX, um intenso por outro lado, resumia-se a um “mero” visão reducionista dos animais como
debate dividiu as opini- exercício de imaginação. máquinas, criaturas imutáveis, re-
ões dos pensadores oci- Quando Isac Newton (1642-1727) guladas e reguláveis, cairia por terra
dentais sobre a natureza apresentou leis universais que a todos diante de outro grande nome da
da vida. O método científico, tal como os corpos governavam, inspirou um ciência: Charles Darwin (1809-1882).
nós o conhecemos, gozava de prestígio frenesi por leis universais em todo A teoria da evolução nos falava de um
e boa saúde. O termo cientista, em opo- canto. O paradigma do mundo mecâ- mundo bem mais estranho, onde a
sição ao termo “artista” aludia à crença nico, previsível e fracionável, onde o aleatoriedade tinha um papel central.
de que o verdadeiro conhecimento só olhar detalhado sobre cada uma das A sorte era responsável por produzir
podia ser obtido pelo exercício de uma partes revelava os segredos de tudo, diferentes cepas da vida pelo processo
razão supostamente pura. Fazer ciência afetou não só as ciências ditas “duras”, de mutação. E o ambiente determina-
seria produzir conhecimento pelo uso mas também as ciências sociais e a ria quais delas seriam vencedoras (as
do raciocínio lógico, enquanto a arte, biologia. Nesta última, entretanto, a mais adaptadas).

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 41


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Logo, tudo ficaria mais claro, quan- mindo confessa e enorme culpa – os lienável da discussão sobre a história
do o esgotamento da abordagem filósofos Joseph Woodger (1894-1981) evolutiva da vida na Terra. Contudo,
cartesiana na biologia daria origem ao e Charlie Broad (1887-1971). um alerta se faz necessário antes de
pensamento sistêmico do século XX. Woodger (2013) concebeu a ideia iniciar a jornada. A visão de que o ho-
Com o advento do microscópio, muito da vida organizada como uma rede de mem é o fim de um grande processo
foi possível saber sobre as minúsculas sistemas dentro de sistemas, dispos- evolutivo e que seus ancestrais eram
estruturas que formavam os tecidos tos numa hierarquia de complexidade. versões incompletas ou inacabadas
vivos e sobre os pequenos animais Broad, em seu livro “The Mind and its desse sucesso constitui percepção
que estavam entre nós e dentro de Place in Nature”, de 1925, introduziu o enviesada da história evolutiva pre-
nós. Mas permaneciam incógnitas conceito de “propriedade emergente” sentemente aceita. O biólogo Richard
as relações entre eles. Nasceu daí a para nomear as características únicas Dawkins ilustra as privações cognitivas
necessidade de estudar não só os de um arranjo sistêmico que não a que se está sujeito pela adoção da
componentes de um sistema, mas são encontradas nem em seus níveis análise a posteriori.
principalmente as suas relações. Um componentes e nem em seus níveis
novo paradigma se estabelecia, o pa- superiores (GUSTAVSSON, 2014). Jun- A história tem sido definida como
radigma da parte pelo todo. tos, Woodger e Broad nos oferecem uma coisa depois da outra. Essa ideia
Fritjof Capra, um dos mais notá- bases para extrapolar as relações en- pode ser considerada um alerta entre
veis pensadores sistêmicos do nosso tre células, tecidos, órgãos, sistemas, duas tentações, mas eu, devidamente
tempo, apresenta de modo sucinto e indivíduos e ecossistemas, alertados alertado, flertarei cautelosamente
elegante os aspectos centrais dessa da existência de propriedades típicas com ambas. Primeiro o historiador
nova concepção: de cada um destes níveis e que não é tentado a vasculhar o passado à
são herdadas ou transmitidas nem procura de padrões que se repetem;
De acordo com a visão sistêmica, as para cima nem para baixo na escala ou, pelo menos, como diria Mark
propriedades essenciais de um organis- de complexidade. Twain, ele tende a buscar razão e rima
mo, ou sistema vivo, são propriedades Reunindo à mesa Darwin, Woodger em tudo. Esse apetite por padrões
do todo, propriedades que nenhuma e Broad, posso imaginá-los chegando afronta quem acha que a história
das partes possui. Elas surgem das inte- a uma conclusão lógica e assustadora- não vai a lugar nenhum e não segue
rações e relações entre as partes. Essas mente óbvia. Considerando a evolução regras – “a história costuma ser um
propriedades são destruídas quando o da vida como a história das pequenas negócio aleatório, confuso”, como
sistema é dissecado, física ou teorica- partes bem-sucedidas de um ecossis- também disse o próprio Mark Twain.
mente, em elementos isolados. Embora tema, podemos afirmar que o todo A segunda tentação do historiador é a
possamos discernir partes individuais determinou a conformidade das par- soberba do presente: achar que o pas-
em qualquer sistema, essas partes não tes. E que, dentro dessa perspectiva, sado teve por objetivo o tempo atual,
são isoladas, e a natureza do todo é o código genético é essencialmente como se os personagens do enredo da
sempre diferente da mera soma das uma fusão do registro dos “todos” que história não tivessem nada melhor a
suas partes. (CAPRA, 2014, p. 96) já existiram, as paisagens vivas que já fazer da vida do que prenunciar-nos.
habitaram nosso planeta. (DAWKINS, 2009. p.17)
Muitos cerraram ombros na cons-
trução desse novo olhar sobre a natu- A COGNIÇÃO Neste trabalho, busca-se come-
reza. Eu me atrevo a selecionar para A compreensão das capacidades didamente as evidências de padrões
a discussão somente dois deles, assu- cognitivas humanas é destarte ina- repetidos e diferenciações, perscru-

42 homo sapiens
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tando a história a partir de uma análise ser reconhecida, mesmo quando os como propósito reestabelecer a con-
a priori. O homem será tomado como mecanismos reais permanecem des- dição ideal.
herdeiro de seus ancestrais, e não conhecidos ou não são descritos, e o Se a atuação for eficaz, ela irá
como épico objetivo da existência de- sistema é uma “caixa preta” definida alterar a forma como o organismo
les. E para melhor delimitar o recorte somente pela entrada e pela saída. interage com o ambiente e, por con-
da pesquisa, a evolução da capacidade (BERTALANFFY, 2008, p. 43) seguinte, os estímulos recebidos.
cognitiva dos seres vivos será analisa- Quando os novos estímulos recebidos
da segundo um campo importante do O processo descrito, conforme a representarem a situação desejada, o
pensamento sistêmico, a cibernética, citação, é conhecido como retroação, sistema de controle vai comandar a
tal como prescreve Von Bertalanffy realimentação ou, em língua inglesa, interrupção da atuação.
(1901-1972): feedback. Sua representação gráfica Há inúmeros exemplos cotidianos
consta da figura 1. de mecanismos de realimentação. A
A cibernética é uma teoria dos siste- Aliando o pensamento de rede comparação entre o fogão e o ferro
mas de controle baseada na comuni- com o modelo cibernético, é possível de passar pode ser útil numa primeira
cação (transferência de informação) compreender a cognição como um aproximação. Ao acionar o queimador
entre o sistema e o meio e dentro do processo de acoplamento entre o meio de um fogão, regula-se o fluxo de gás
sistema, e do controle (retroação) da ambiente e o organismo. A interação, para a chama. O “fogo alto” é obtido
função dos sistemas com respeito capturada pelos receptores, será pelo maior fluxo possível de gás, en-
ao ambiente. (…) Em biologia e em enviada para o sistema de interpre- quanto o “fogo baixo”, pelo menor.
outras ciências fundamentais, o mo- tação e controle. Se essa informação O que o cozinheiro deseja, ao usar o
delo cibernético serve para descrever representar a situação desejada pelo fogão, é a alteração da temperatura
a estrutura formal de mecanismos organismo, nada será feito. Mas se ela dos alimentos em processamento, a
reguladores, por exemplo, por meio de representar uma situação indesejada, fim de promover certas reações quí-
diagramas de bloco e de fluxogramas. o sistema de controle expedirá uma micas e físicas do seu interesse. Mas o
Assim, a estrutura reguladora pode ordem de atuação. Esta atuação tem fogão em si não consegue controlar a

figura 1
esquema de realimentação (feedback) simples

estímulo mensagem mensagem resposta


aparelho
receptor atuador
de controle

retroação

Fonte: Autor, adaptado a partir de BERTALANFFY, 2008, p. 69.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 43


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

temperatura dos alimentos – ele sim- O CONTROLE PELO EQUILÍBRIO ser desejados pelo organismo para
plesmente aplica neles o calor. Assim, Os organismos vivos contam com assegurar a sua existência. É o caso
cabe ao cozinheiro monitorar a situa- um sistema de controle por realimen- do homem, que, ao sentir frio, “tem
ção dos alimentos e alterar o fluxo de tação (WIENER, 1998) cujo estado de- vontade” de agasalhar-se, para sair do
gás à medida que os efeitos desejados sejado é o equilíbrio com o ambiente, setor indesejado, e o fará até que a
são obtidos. O fogão, portanto, não é processo denominado homeostase temperatura confortável seja atingida
dotado de um sistema de controle por (CANON, 1932, p. 24). O neurocientista (o setor desejado).
realimentação. português Antônio Damásio (2011) Destarte não nos surpreende que
O ferro de passar funciona de ou- bem sintetiza a relação entre a home- Damásio (2011) tenha proposto um
tro jeito. Por ocasião do acionamento, ostase e o controle da vida ao afirmar papel determinante para a homeosta-
seleciona-se em seu termostato qual que, de um modo geral, o êxito de se nos processos de cognição e ação
é a temperatura desejada. No início o todo o organismo vivo pode ser deter- do homem:
sensor de temperatura (receptor) rece- minado pelo seu sucesso em atingir a
be a informação de ferro frio e a envia maturidade reprodutiva e que a home- Os valores que os humanos atribuem
ao termostato (sistema de controle). A ostase seria o mecanismo de controle a objetos e atividades teriam, assim,
situação de ferro frio é indesejada – o central para obter esse sucesso. alguma relação, não importa o quanto
sistema de controle percebe isso e Falando sobre um organismo ela seja indireta ou remota, com estas
comanda uma ação (aquecer-se) para complexo como o ser humano, um duas condições: primeiro a manu-
o mecanismo atuador (a bancada de vasto conjunto de parâmetros são tenção geral do tecido vivo dentro da
resistências elétricas, responsável por controlados, incluindo, por exem- faixa homeostática apropriada ao seu
converter energia elétrica em térmica). plo, os níveis de concentração das contexto corrente; segundo, a regula-
Quando a temperatura-alvo é atingida, substâncias que circulam no corpo e ção específica requerida para que esse
o sistema de controle cessa o coman- outras variáveis como temperatura e processo funcione dentro do setor da
do de aquecimento. acidez. O sistema funciona por meio faixa homeostática associado ao bem-
O ferro de passar é, portanto, um de faixas de regulação, cada uma -estar, levando-se em conta o contexto
dispositivo que funciona por meio de delas composta por vários setores. corrente. (DAMÁSIO, 2011, p. 69)
um mecanismo de realimentação, e O setor ideal, que podemos imaginar
seu sistema de controle o comanda em usualmente no centro da escala, Essa afirmação tem profundos im-
função do propósito estabelecido pelo circunscreve os valores em que o pactos no decorrer desta análise, pois
seu criador, o fabricante, e dos ajustes organismo pode funcionar de modo determina que, para cada indivíduo,
estabelecidos pelo seu usuário (no mais eficiente, segundo as suas pecu- certos objetos têm maior importância
caso a temperatura desejada). Consi- liaridades. Nos extremos da escala, “a para o sistema sensorial e constituem
derando que, segundo as palavras de viabilidade do tecido vivo declina, e alvos prioritários da atenção. E, de
Bertalanffy (2008), esses mecanismos o risco de doença e morte aumenta” modo análogo, há predileção por cer-
se aplicam também à biologia, é per- (DAMÁSIO, 2011, p. 69). Desse modo, tas ações em detrimento de outras. A
tinente se perguntar nesse momento uma questão central para a vida é a experiência cotidiana e uma boa sorte
o que difere o sistema de controle de necessidade constante de tomar me- de trabalhos produzidos por filósofos
um ferro de passar do equivalente didas para manter ou reconduzir os e cientistas corroboram a ideia da
instalado em um organismo vivo e, em parâmetros de funcionamento para cognição e ação seletivas como carac-
última instância, da categoria do nosso os setores ideais de suas faixas de terísticas do ser humano (e de outros
interesse – o ser humano. regulação. Estes, portanto, precisam animais também).

44 homo sapiens
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 45


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A INVENÇÃO DO FUTURO contrária, deve ele planejar e executar capacidade de conceber e comunicar
Ao concluir suas considerações medidas para (1) evitar que a condição ao outro as ideias centrais do sistema
sobre a importância primordial da ho- indesejada se instale e (2) mitigar os antecipatório – o futuro e a incerteza.
meostase, Damásio questiona a sufici- seus efeitos danosos. Na diferença entre “a lagoa que nós
ência do mecanismo de realimentação A implementação desse tipo de dois podemos ver” e “quem sabe existe
(feedback) na gestão da vida e propõe mecanismo exige um processamento uma lagoa do outro lado do morro”,
que a emergência do pensamento de informação mais avançado, dispo- reside o salto sociocultural da capaci-
consciente é fruto da necessidade de nível apenas em organismos multi- dade de planejar conscientemente e
implementar um mecanismo mais celulares equipados com neurônios. coletivamente o futuro pela manipula-
sofisticado – o de feedforward ou Estas células especiais contam com ção de abstrações, o que hoje o senso
antecipatório – para “permitir aos or- prolongamentos para a recepção de comum conhece como imaginação.
ganismos prever esses desequilíbrios sinais bioelétricos (dentritos) e um Mas tal como afirma Dawkins
e motivar a exploração de ambientes único para a transmissão (axônio). Em (2007), a evolução é cumulativa e pro-
que provavelmente oferecem solu- associação com os gliócitos, os neurô- gressiva, e assim novas capacidades
ções” (DAMÁSIO, 2011, p. 64). nios formam complexos circuitos de são usualmente construídas a partir
O mecanismo antecipatório fun- comando e controle que funcionam da adaptação dos mecanismos ante-
ciona do seguinte modo. O organismo integrados aos demais controles do riores existentes. No caso do homem,
detecta sinais no ambiente que indi- organismo (de natureza química). a resposta foi o advento da homeos-
cam a possibilidade de, no futuro, uma tase sociocultural, tal como esclarece
determinada condição se concretizar, COGNIÇÃO HUMANA Damásio:
seja ela desejada ou indesejada. No Dawkins (2009) acredita que, pos-
primeiro caso (condição desejada) sivelmente, a consciência sobre o A reflexão consciente e o planejamento
ele é instigado a tomar medidas no futuro tenha sido responsável pela da ação introduzem novas possibili-
presente para (1) aumentar a probabi- revolução cultural humana batiza- dades no governo da vida acima da
lidade de ocorrência do evento e (2) se da de “O Grande Salto para Frente” homeostase automatizada, em uma
posicionar previamente para melhor datada em 40.000 anos a.C. Na sua sensacional novidade da fisiologia.
explorar as vantagens decorrentes. No visão, a história evolutiva do homem A reflexão consciente pode inclusive
segundo caso, diante da perspectiva foi profundamente marcada pela questionar e modular a homeostase

figura 2
representação hipotética de uma faixa homoestática de cinco setores

INEXEQUÍVEL ACEITÁVEL IDEAL ACEITÁVEL INEXEQUÍVEL

Fonte: Autor, adaptado a partir de DAMASIO, 2011, p. 69.

46 homo sapiens
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

automática e decidir sobre os limites aos desequilíbrios que por ventura conta com um arsenal de sensores
homeostáticos ótimos em um nível que venham a ocorrer. diferentes. Muitos sinais, para nós
é superior ao necessário para a sobre- No sistema antecipatório (fee- imperceptíveis, são detectados por
vivência e que conduz ao bem-estar dforward), o tratamento das anomalias outras espécies. O ornitorrinco, por
com maior frequência. O bem-estar requer mais do que isso, pois as con- exemplo, é capaz de localizar suas
sonhado e esperado tornou-se uma clusões sobre o futuro demandam a presas dentro d’água pelas alterações
ativa motivação das ações humanas. formulação de cenários e a imaginação do campo magnético; os morcegos e
A homeostase sociocultural adicionou- do que pode acontecer, incluindo aí o os golfinhos contam com um sistema
-se como uma nova camada funcional próprio sujeito. Nesse caso, a bibliote- de telemetria ativa baseado no som;
da gestão da vida, mas a homeostase ca precisa contar com uma seção de e os cães são capazes de ouvir sons
biológica permaneceu. (DAMÁSIO, objetos, uma seção detalhada sobre em frequências inacessíveis para o
2011, p. 356) o protagonista (regularmente atualiza- ouvido humano.
da) e um catálogo de interações entre Segundo porque, entre os sinais
Entretanto, antes de prosseguir, eles. Há necessidade também de um disponíveis, aproveitamos apenas a
cabe fazer neste momento um balanço espaço de trabalho onde a dinâmica, a parte que interessa para a manuten-
geral sobre quais capacidades cogniti- partir das anomalias detectadas, seja ção do equilíbrio com o ambiente.
vas são necessárias para sustentação calculada – o palco em que os objetos Para ser processado, o sinal deve ser
da vida humana. Registra-se aqui o interagem com o “eu” simulado –, de interesse para alguma faixa home-
convite para o exercício de uma se- daí emergindo as diversas narrativas ostática.
quência lógica de encadeamentos, a possíveis em que o sujeito age de um Os elementos propostos podem
partir de alguns conceitos já citados. ou de outro modo e que resultam em ainda ser divididos em duas catego-
O homem precisa lidar com estímu- desfechos mais ou menos desejados. rias utilizando a natureza do registro
los, que são a entrada dos sistemas de Todavia, não se pode esquecer de como critério – os dados gravados
realimentação e precisa lidar com ano- um detalhe importante, já citado. A no código genético compõem as
malias, que são as entradas do sistema homeostase se impõe como critério disposições biológicas e acumulam
antecipatório. Esta divisão é didática, de valoração de objetos e atividades. os bilhões de anos de ajustes bem-
e obedece a terminologia empregada Por conseguinte, no vasculhamento -sucedidos com o ambiente, condu-
na Teoria Geral dos Sistemas, já que constante do ambiente, o organismo zidos pelas espécies ancestrais. Os
não possuímos canais específicos para dá prioridade para certos sinais em dados gravados na mente compõem
estímulos e anomalias. Todos eles detrimento de outros. A cognição é, as disposições socioculturais1 e corres-
são sinais em nossos sentidos. Um portanto, seletiva e subjetiva, ocorren- pondem ao conhecimento adquirido
único sinal pode, inclusive, servir como do de acordo com as faixas homeostá- pelo processo de aprendizagem. Nas
estímulo para uma ação imediata e ticas “instaladas” no organismo. sociedades humanas, a transmissão
anomalia para os cálculos do futuro. As simulações e narrativas pro- desse conhecimento (ensino) de um
No que tange ao mecanismo de duzidas deste modo são destarte indivíduo para outro teve um papel
feedback, os sinais são detectados precárias, construídas a partir de central na construção do mundo, tal
a partir dos sensores disponíveis e dados parciais. Os dados são parciais como conhecemos, e nós, assim como
há necessidade de uma memória, a por dois motivos. Primeiro porque outros animais, possuímos neurônios
serviço do sistema de controle, com- os sentidos humanos não abarcam específicos para isso, os neurônios
posta de vasta biblioteca de faixas ho- todos os fenômenos físicos obser- espelho. Mas, ao contrário do que o
meostáticas e de modos de resposta váveis na natureza. Cada espécie senso comum parece indicar, existe

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 47


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

uma profunda interdependência entre à preparação do corpo para responder diretamente a estados integrados do
os dois conjuntos de registros, já que: a determinadas circunstâncias. É, tecido vivo em um organismo, suce-
pois, um recurso adicional do sistema dendo-se uns aos outros na atividade
Nessa ideia de que existem duas am- antecipatório, cuja a justificativa está natural de gerenciar a vida. O mape-
plas classes de homeostase, a básica e provavelmente amparada na deman- amento cerebral de estados nos quais
a sociocultural, não se deve interpretar da por eficiência. Explico melhor. os parâmetros de tecidos se afastam
que esta última é uma construção pu- Ao lidar com uma determinada significativamente da faixa homeostá-
ramente “cultural” enquanto a primei- realidade, supõe-se que o cérebro pro- tica em uma direção não conducente
ra é “biológica”. Biologia e cultura são cesse os sinais recebidos medindo-os à sobrevivência é percebido com uma
totalmente interativas. A homeostase simultaneamente em diversas réguas qualidade que viemos a denominar
sociocultural é moldada pelo funciona- das faixas homeostáticas. Se as faixas dor e punição. Analogamente, quando
mento de muitas mentes cujos cérebros homeostáticas controlam o processo tecidos funcionam na melhor parte da
foram primeiro construídos de certo de cognição e ação, diferentes estados faixa homeostática é percebido com
modo sob a orientação de genomas emocionais só podem produzir com- uma qualidade que viemos a denomi-
específicos. Curiosamente, existem portamentos diferentes se ativarem nar prazer e recompensa. (DAMÁSIO,
evidências cada vez mais numerosas diferentes conjuntos de faixas. Esse 2011, p. 74)
de que os avanços culturais podem esquema hipotético é bem econômico
conduzir a profundas modificações se observarmos cuidadosamente. Um SÍNTESE
do genoma humano. (DAMASIO, 2011 cérebro limitado em sua capacidade É possível resumir estes indispensá-
p. 357) de processamento poderia dar conta veis achados de pesquisa do seguinte
de uma grande variedade de situações, modo: a cognição funciona de acordo
EMOÇÕES, SENTIMENTOS, PRAZER E DOR alocando a preciosa atenção apenas às com as disposições biológicas e socio-
Nossa digressão não apontou a faixas necessárias para o momento. culturais. As disposições biológicas têm
necessidade de um elemento exis- Depois que a emoção é seleciona- origem genética, e assim os seres hu-
tente na experiência – a emoção. Há da e altera o funcionamento do corpo, manos compartilham vasto acervo de
vasta literatura tratando do assunto e a consciência “fica sabendo” das mu- disposições básicas comuns com seus
muitos pontos de vista diferentes. Mas danças ocorridas nos diversos órgãos, concestrais (espécies que guardam, na
Damásio (2012) define as emoções de como, por exemplo, alterações do árvore da vida, ao menos um ancestral
forma simples e operacional: elas são batimento cardíaco. Esta experiência comum). (DAWKINS, 2009)
modos de operação do corpo humano, consciente das alterações do corpo é As disposições socioculturais, por
imbricados no sistema antecipatório. batizada de “sentimento” (DAMÁSIO, outro lado, são fruto de todo o pro-
A explicação, ainda segundo Damásio 2012) e está inserida na ponte de cesso de aprendizado do indivíduo,
(2012) é a seguinte. Cada emoção entendimento entre os sistemas de incluindo não só a sua educação
representa uma variante de funciona- controle bioquímicos e bioelétricos formal mas toda a sua experiência
mento do corpo, mais eficiente para li- que existem no corpo, onde sensações de vida. Nesse caso, em populações
dar com determinado tipo de situação. prazerosas e dolorosas cumprem pa- que contenham milhões de indivídu-
A ativação do modo de funciona- péis indispensáveis. os espalhados em diferentes nichos
mento é automática, sendo disparada ambientais, haverá sensíveis dife-
pela detecção de determinados sinais O que agora percebemos como sen- renças entre os objetos apreendidos,
pré-programados nas disposições bio- sações de dor ou prazer, ou como pu- o acervo de respostas e a escala de
lógicas e/ou socioculturais associadas nições ou recompensas, corresponde valoração aplicada.

48 homo sapiens
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

As pessoas terão diferentes for- métodos ou apetrechos, as chamadas fazer sons soprando ou batendo – um
mas de ver o mundo em função das próteses (BARTRA, 2014). verdadeiro presente dos deuses! Mas,
regiões em que moram, línguas que Com o auxílio de Bartra (2014), no para nós, é apenas uma garrafa de
falam, profissões que exercem e reli- que diz respeito aos processos anali- vidro vazia.
giões que professam. Notamos, uma sados, define-se prótese como esque- É curioso perceber como nos re-
vez mais, o todo construindo a parte, ma mental ou instrumento material gozijamos ao ver artistas e inventores
uma parte que carrega previamente os que permite o desenvolvimento ou a dando usos que nunca tínhamos pen-
“todos” ancestrais em suas disposições ampliação das capacidades biológicas sado para materiais e objetos conhe-
biológicas. Recordo as limitações da potenciais. As próteses podem ser cidos. Deve fazer parte dos prazeres
apreensão individual de conhecimen- consideradas os maiores diferenciais inatos do ser humano. Dos prazeres do
to ao afirmar aqui mesmo na Insight da sociedade humana quando nos feedforward. Mas nem tudo são flores
Inteligência que: comparamos a outras espécies. Au- nesse mundo da inovação.
tomóveis, espadas, cidades e livros As próteses foram incorporadas
Os esquemas mentais determinam a permitem que façamos coisas extra- de um tal modo ao nosso estilo de
forma como interpretamos o mun- ordinárias. vida que nos tornamos dependentes
do e tratamos os dados recebidos, Essa capacidade ampliada se delas. A metrópole pode ser destacada
podendo captá-los ou ignorá-los realiza sempre por meio da associa- como a maior das próteses coletivas
por exemplo. A realidade em nossas ção binomial da prótese material (o operadas pelo homem. Dependemos
mentes é, portanto, sem exagero ou instrumento propriamente dito) com de suas artérias para receber água e
aforismo, uma representação precária a prótese mental (conjunto de ins- comida e de suas veias para despachar
e incompleta da “verdade”, fortemente truções necessárias ao manuseio do nossos resíduos. Sob sua pele vivemos
determinada pela forma como fomos equipamento). Um bom exemplo é a em pequenas células, os “apartamen-
educados a ver. Funciona de modo linguagem escrita (intangível, mental), tos”, e para ela vendemos nossa força
análogo ao processo científico formal, cujo domínio é requisito para o uso de de trabalho.
em que a escolha das evidências a um livro (material).
serem pesquisadas e analisadas em Esta relação, contudo, não é exclu- O TODO
um fenômeno depende da teoria que siva. Um mesmo objeto, manuseado O conhecimento técnico-profis-
escolhemos para explicá-lo. (MARTINS, por pessoas dotadas de diferentes sional produziu máquinas muito
2014) próteses mentais, proporcionará di- antes da ciência produzir explicações.
ferentes capacidades. Uma ilustração Assim, logo ao nascer, a abordagem
PRÓTESES apropriada pode ser extraída do filme cartesiana encontrou na sociedade
Ao longo da história, as fronteiras “Os Deuses devem ter ficado loucos”, moderna condições muito favoráveis
da cognição e da ação foram amplia- em que uma tribo africana, que jamais para emergência de um campo novo,
das pela criatividade humana. Equi- tivera contato com o mundo ocidental, híbrido de ciência e técnica mecanicis-
pados com o sistema antecipatório, vê cair dos céus uma garrafa de re- tas – a tecnologia.
os homo sapiens puderam fazer mais frigerante (jogada pela janela de um Embora, o século XXI tenha ob-
do que a própria evolução exigira. A avião). O estranho objeto é transpa- servado o alvorecer do pensamento
capacidade de vasculhar possibilida- rente como a água, mas é duro como sistêmico, o reducionismo mecanicista
des de futuro, por meio de simulação, pedra... pode ser usado para macerar há muito ditara os costumes da ad-
permitiu ao homem imaginar cenários alimentos ou para esticar couro de ministração científica e da economia
impossíveis e viabilizá-los por novos cobra. Com ele também é possível política, delineando com lápis grosso

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 49


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

os contornos da prática social. O mundo experimenta uma complexida- derar individualmente seus membros
modo de produção taylorista impôs ao de sem precedentes. Os homo sapiens pelo entrecruzamento de visões – o
homem a conformidade com o ritmo nunca foram tantos, nunca foram tão melhor caminho para lidarmos com os
da máquina, uma inversão curiosa conectados e nunca antes tiveram um desafios impostos por esse mundo de
de papéis entre criatura e criador. A inventário tão poderoso e intrincado inédita complexidade.
economia construiu todo o seu ar- de próteses (também arranjadas, em No final das contas, a competência
cabouço a partir da premissa errada sua maior parte, em grandes redes). que urge por espaço em nossas prá-
do homem como agente econômico Não há consenso na compreensão ticas é bem simples: reconhecer que
racional (KAHNEMAN, 2012). A justiça dessa escala transformadora, mas há o inventário individual de disposições
assumiu a testemunha como gravador uma boa sorte de evidências apon- socioculturais é limitado e transmitido
automático de cenas, quando se sabe tando esse primata de poucos pelos com propósitos alheios à vontade de
hoje que as memórias podem ser al- como uma força global e irresistível quem recebe.2 Nossa razão individual
teradas (COSTANDI, 2013). (STEFFEN, 2011). representa o modo de pensar de
As elites dirigentes tratavam (e outros e a história de suas interações
ainda tratam em boa parte do mundo) O ESCLARECIMENTO com mundos ancestrais. Sabe-se Deus
os homens como “ferramentas anima- Somos muitos e vemos o mundo quais dessas práticas e concepções
das”, termo que Aristóteles utilizava de diferentes modos. Cada um des- são válidas para mim, para você e para
para se referir aos escravos (GERMA- ses modos será uma representação os outros sete bilhões de universos
NO, 2011). A lógica da prótese é extre- seletiva e parcial da realidade, porque particulares que coabitam o planeta.
mamente poderosa – induz facilmente se beneficia de um conjunto limitado Destarte, para exercer de fato o
a visão do outro exclusivamente como de sensores e próteses materiais e livre arbítrio, é preciso que o sujeito ar-
força de trabalho, e o quer previsível, os interpreta a partir de diferentes regace as mangas e explore outras cul-
regulável e programável – a antítese disposições socioculturais, o lócus turas, em busca de novas disposições
daquilo que o pensamento sistêmico das próteses intangíveis. As represen- e, portanto, de novas formas de ver e
concebe para a vida. tações coletivas, construídas a partir interagir, capazes de enriquecer a sua
Observando as redes de relações de grupos multiculturais, podem ser visão e, por conseguinte, a sua ação
sociais de hoje, é possível ver que o muito mais ricas e capazes de empo- no mundo. Desse modo, ganhamos o

Resposta à pergunta: que é o esclarecimento?


por Immanuel Kant (1724-1804)

Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade da qual ele próprio é culpado. A meno-
ridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o
próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de
decisão e coragem de se servir de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso
de teu próprio entendimento, tal é a palavra de ordem do esclarecimento (KANT, 2006 apud KLEIN, 2009, p. 211).

50 homo sapiens
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

poder da escolha libertando a vontade um salto inseguro, mesmo sobre o dade para aprender é a única liberdade
de sua prisão invisível, reducionista e mais estreito fosso, porque não está primária do homem. Nela, todas as de-
cartesiana. Tal como prescreve Imma- habituado a este movimento livre” mais se amparam. Desse modo, decidir
nuel Kant (1724-1804) “preceitos e fór- (KANT, 2006 apud KLEIN, 2009, p. 212). aprender é, em essência, decidir ser.
mulas, estes instrumentos mecânicos Pois se faz preciso dar o próximo passo Livre.
do uso racional, ou antes do abuso, evolucionário, mesmo que cambalean-
de seus dons naturais, são os grilhões te, na direção de um homo “que sabe O autor é capitão de corveta da Marinha de
Guerra do Brasil e mestre em Defesa Civil pela
de uma perpétua menoridade. Quem que não sabe”.
Universidade Federal Fluminense (UFF).
dele se livrasse, só seria capaz de dar Ouso afirmar, por fim, que a liber- bragamartins@gmail.com

notas de rodapé

1. É equivocada a ideia de que as disposições socioculturais são exclusividade do homem. Os chimpanzés, por exemplo, também dispõe de cultura, e
várias de suas populações demonstram comportamentos peculiares como o manuseio de ferramentas simples, que são transmitidos entre gerações
pela interação social. (DAWKINS, 2009)

2. Essa competência é conhecida como capacidade metacognitiva. Requisito indispensável para que as pessoas, como membros de equipes, sejam
capazes de reconhecer as limitações do seu conhecimento e assim valorar a contribuição do outro.

bibliografia

BARTRA, Roger. Antropology of the Brain: conscio- DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. Tradução MARTINS, Leonardo. O Design Social e a Cons-
ness, culture and free will. Cambrigde: Cambrigde de Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das trução Coletiva da Segurança. Insight Inteligência
University Press, 2014. Letras, 2007. (Rio de Janeiro), v. 64, p. 31-42, 2013. Disponível
em <http://www.insightinteligencia.com.br/64/>
BERTALANFFY, Ludwig. Teoria Geral dos Sistemas: DAWKINS, Richard. A Grande História da Evolução. Acesso em 25 mai. 2014.
fundamentos, desenvolvimento e aplicações. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Tradução de Francisco Guimarães. Petrópolis, Companhia das Letras, 2009. STEFFEN, Will; CRUTZEN, Paul J.; MCNEIL, Jonh R.
RJ: 2008. The Anthropocene: are humans the overwhelm-
GERMANO, Marcelo G. Uma nova ciência para um ing the great forces of nature? Ambio v. 36, n. 8, p.
CANNON, Walter. The Wisdom of The Body. New novo senso comum [on-line]. Campina Grande: 614 a 621. Disponível em < http://mfs.uchicago.
York: Norton, 1963. EDUEPB, 2011. Disponível em <http://books. edu/public/institutes/2013/climate/prereadings/
scielo.org>. Acesso em 13 jan. 15. steffen_et_al--the_anthropocene.pdf> Acesso
CAPRA, Fritjof; LUISI, Pier L. A Visão Sistêmica da em 22 fev. 2015.
Vida: uma concepção unificada e suas implicações GUSTAVSSON, Kent, “Charlie Dunbar Broad”, The
filosóficas, políticas, sociais e econômicas. Tradu- Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2014 WIENER, Norbert. The Human use of Human Be-
ção Maria Teruya Eichemberg, Newton Roberval Edition), Edward N. Zalta  (ed.), URL = <http:// ings. Boston: Houghton Mifflin, 1954.
Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2014. plato.stanford.edu/archives/win2014/entries/
broad/>. Acesso em: 25 fev. 2015. WOODGER, Joseph H. Biological Principles: a criti-
COSTANDI, Moheb. Corrupted Memory. cal study. London: Kegan Paul, Trench, Trübner
Nature, v. 500, n. 15, p. 268-270, 2013. Dis- KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: duas & Co, 1929.
ponível em <http://www.nature.com/polo- formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
poly_fs/1.13543!/menu/main/topColumns/
topLeftColumn/pdf/500268a.pdf>. Acesso em KLEIN, J.T. A Resposta Kantiana à Pergunta: Que
27 fev. 2015 é Esclarecimento? ethic@ (Florianópolis), v. 8,
n. 2, p. 211-227, 2009. Disponível em <https://
DAMASIO, Antônio. E o cérebro criou o Homem; periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/
Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: download/1677-2954.2009v8n2p211/18564>
Companhia das Letras, 2011. Acesso em 25 fev. 2015.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 51


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

água Aquém e Além do


Estado Nacional
Angela Abreu de Barros
Bioquímica

Luis Antonio de Menezes Cerutti


Capitão-de-Fragata da Marinha do Brasil

A
água doce, cuja reno- água no planeta seja de água salgada ganharam corpo as abordagens que
vação se julgava ine- e apenas 2,5% de água doce. Em torno conferem à água um valor estratégico
xorável, é um recurso de 70% dessa água doce está sob a for- devido à perspectiva de escassez6.
fundamental para a ma de gelo e neve que cobrem regiões No Brasil, por exemplo, apesar de
maior parte das atividades humanas montanhosas, a Antártica e a região não haver escassez absoluta, mais
incluindo produção de alimentos, do Ártico. Cerca de 29,7% são águas de 73% das reservas disponíveis se
transporte, produção de energia, de- subterrâneas e apenas 0,26% do total encontram na bacia Amazônica, habi-
senvolvimento industrial e consumo de água doce se encontra disponível tada por 5% da população. Portanto,
humano. O aumento do consumo e nos rios, lagos e reservatórios para os 27% restantes abastecem 95% dos
degradação das fontes causada pelas acesso fácil à humanidade3. brasileiros7.
ações antrópicas1, tem resultado na Nas últimas décadas tem cresci- Logo, a gestão integrada e com-
diminuição das reservas. Além disso, do a preocupação global com três partilhada dos recursos hídricos
existe ameaça constante à potabili- aspectos: (1) a preservação de água tornou-se uma questão de seguran-
dade da água, principalmente pela potável, (2) a valorização do capital ça e de defesa do Estado, devendo
contaminação dos mananciais e falta natural e dos mercados de água, e (3) constar no planejamento estratégico
de saneamento. os esforços bilaterais e multilaterais de todos os países, principalmente
A água como recurso hídrico2, se de cooperação no uso de águas trans- dos que possuem este primordial
apresenta distribuída de forma irre- fronteiriças4. Não obstante, o acesso à recurso em abundância. O Brasil
gular e desigual no planeta. Estima-se água representa um dos maiores de- destaca-se no cenário internacional
hoje que 97,5% do volume total de safios do séc. XXI5. Nos últimos anos como país mais rico em água doce no

52 federalismo líquido
JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 53
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

planeta, possuindo, de acordo com polaridade11, assim como a propensão regional na América do Sul, equacio-
a Organização das Nações Unidas ao uso da força para solucioná-las. nando os conflitos que possam surgir
(ONU), cerca de 20% das reservas Contudo, quando entramos na na administração desses recursos.
mundiais. Além disso, é um dos pou- análise das disputas por recursos Em seguida, utilizando os mesmos
cos países capazes de sobreviver às hídricos no interior de um Estado au- conceitos, pretende-se verificar a sua
grandes crises potenciais que amea- tônomo, (leia-se, saímos das disputas aplicação no ambiente intraestatal
çam a humanidade (alimentos, água, interestatais para as intraestatais) federalista brasileiro, considerando
matéria-prima e energia)8, dada a sua temos um abrandamento dos confli- as dimensões continentais do Brasil
condição próxima da autossuficiência tos, pois dificilmente haverá o uso da e as características peculiares de seu
em recursos naturais9. força entre as unidades de um mesmo federalismo.
A relevância do tema pode ser me- estado. Em primeiro lugar vamos entender
dida pela preocupação do Ministro da O propósito deste artigo é fa- a teoria dos Complexos Regionais de
Defesa, Celso Amorim10, demonstrada zer uma análise de como a gestão Segurança (CRS), a interdependência
em seu artigo “A Grande Estratégia integrada dos recursos hídricos de suas unidades estatais nos assun-
do Brasil”, onde cita o relatório do compartilhados pode permitir o uso tos de segurança e a relação desta
Conselho de Inteligência Nacional dos equitativo das águas, dentro de um teoria com a hidropolítica. A análise
Estados Unidos da América divulgado contexto de cooperação e segurança se dará subordinada à lógica trans-
em 2012, onde são elencadas quatro
“megatendências” para as próximas
duas décadas: (1) o fortalecimento da
prerrogativa individual de cidadãos,
(2) a transformação de padrões demo-
gráficos com aumento da população
urbana, (3) a difusão do poder nas
relações internacionais devido a uma
estruturação multipolar e (4) o cres-
cimento da demanda por alimentos,
água e energia.
Mais precisamente para a água e
a energia, nos próximos 15 a 20 anos,
o relatório prevê que a crescente
demanda por esses recursos, aliada à
mudança climática, terá efeito notável
no desenvolvimento global. A deman-
da por esses recursos sofrerá um
aumento substancial decorrente da
necessidade de suprir uma população
que deve atingir 8,3 bilhões em 2030.
Ainda segundo o ministro Celso Amo-
rim, as disputas por recursos naturais
se intensificarão no contexto de multi-

54 federalismo líquido
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

fronteiriça do recurso hídrico levando autonomia e espaço para as dinâmicas Estados e empresas interagindo nos
em conta o seu natural desrespeito aos e atores locais. setores políticos e econômicos.
limites territoriais políticos. Buzan e Waever se posicionaram Para Buzan e Waever existem onze
a favor de um nível de análise regio- complexos de segurança no mundo,
Complexos Regionais de Segurança nal para as questões de segurança que são: América do Norte, América do
Barry Buzan e Ole Waever intro- presentes no sistema internacional Sul, Europa, Pós-URSS, Oriente Médio,
duziram o conceito de Complexos após a Guerra Fria (1989). Definiram África Ocidental, África Central, Chifre
Regionais de Segurança (CRS), modelo um CRS como um conjunto de pelo da África, África Austral, Sul da Ásia e
descritivo que destaca a importância menos dois Estados cujos processos Leste Asiático. Para caracterizar esses
das relações de interdependência de securitização, dessecuritização ou complexos, identificaram quatro ele-
que ocorrem em um nível de análise ambos, estão tão interligados que os mentos essenciais: 1) as fronteiras do
intermediário entre o global e o local. problemas relativos à segurança dos complexo; 2) sua estrutura anárquica,
Conceito posteriormente aperfeiçoado Estados não podem ser analisados ou onde o complexo deve ser composto
pelo próprio Buzan, no livro Regions resolvidos de forma independente. Ou por duas ou mais unidades autôno-
and Power12, e outros acadêmicos da seja, a preocupação com a segurança mas; 3) a distribuição de poder entre
chamada “Escola de Copenhague”13. os coloca tão próximos, que não se as unidades que o compõe (polaridade
A ideia central configura-se na pode considerar a segurança nacional regional); e 4) os padrões de amizade
interdependência de segurança em de um, sem considerar a do outro. e inimizade presentes na região. Essas
agrupamentos de base regional, a que A securitização é um conceito características dos CRS são importan-
eles denominaram de complexos de formulado por Ole Waever, onde um tes para traçamos um paralelo com
segurança. O argumento reside em assunto é securitizado quando é cons- a organização do Estado brasileiro, e
que a segurança é relacional, onde não truído sob ameaça. Qualquer assunto também para justificarmos a aplicação
se pode entender a segurança de um pode ser um problema de segurança dos conceitos desta teoria nas relações
Estado sem compreender o padrão se assim for declarado pelos atores intraestatais dos recursos hídricos.
de interdependência internacional a envolvidos, e se torna securitizado Analisando o aspecto da amizade
que está inserida. As principais per- quando for declarado um problema e inimizade na região, Buzan e Waever
cepções e preocupações referentes à de segurança e deste modo aceito pelo afirmam que o relacionamento entre
segurança daqueles que fazem parte público15. No caminho inverso, quando os Estados pode caminhar em uma
de um espaço territorialmente coe- os atores envolvidos percebem que o escala entre amizade e alianças base-
rente estão tão interligadas que tais problema deixa de representar uma adas no medo. E a relação de amizade
problemas não podem ser analisados ameaça, ocorre a dessecuritização. e inimizade não pode ser atribuída
ou solucionados separadamente14. Delinearam-se então, duas pos- somente ao balanço de poder, mas
O ponto mais importante da segu- síveis formações de CRS em que são também à ideologia, ao território, às
rança regional é que ela faz parte de destacados os novos setores e atores etnias e precedentes históricos.
uma hierarquização dos problemas da agenda de segurança: complexos Os maiores conflitos internacio-
de segurança, se situando entre uma homogêneos e complexos heterogê- nais na América do Sul datam do
segurança doméstica e segurança glo- neos. Os primeiros são compostos por século XIX, resultado dos processos
bal. A premissa básica desse modelo formas específicas de interação entre de independência que criaram fron-
pressupõe que as relações interna- unidades similares, e o segundo, agre- teiras instáveis, e que até hoje geram
cionais na área de segurança tendem gam diferentes tipos de atores em dois problemas de segurança. Além das
a regionalizar-se, o que leva maior ou mais setores, como por exemplo, contendas fronteiriças, Buzan e Wae-

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 55


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ver identificaram outras ameaças não o aproveitamento compartilhado dos compartilhada dos recursos hídricos.
tradicionais à segurança16, tais como, recursos hídricos dos rios da Bacia As interações que acontecem na hi-
instabilidade civil, contrabando, narco- Platina. Nele foram dirimidas as des- dropolítica são multissetoriais, vertical
tráfico e até o terrorismo. A variedade confianças que marcaram as relações e horizontalmente multirrelacionais,
dos temas relativos à segurança e sua entre Brasil e Argentina17 na década envolvendo atores estatais e/ou não
ampliação conceitual, fez com que seg- de 70. É possível verificar que neste estatais, tendo o potencial de alterar
mentassem a América do Sul em dois caso como a gestão integrada e com- o equilíbrio de poder e a estabilidade
subcomplexos: países do Cone Sul, partilhada dos recursos hídricos pode política, além de alterar também o
com destaque para as relações entre induzir à cooperação. grau de desenvolvimento econômico
Brasil e Argentina, e do Norte Andino, dos atores envolvidos. Consequente-
cujo principal fator agregador seria o Hidropolítica e os CRS mente, afetam a segurança daqueles
combate ao narcotráfico. Uma das contribuições da Escola que dependem dos recursos hídricos
Apesar de não ser especificamente de Copenhague e de Buzan é a am- compartilhados, revelando uma liga-
analisada na Teoria dos CRS, pode-se pliação do conceito de segurança para ção peculiar com a lógica da contigui-
acrescentar a questão dos recursos outros setores da sociedade, influen- dade física20. Desse modo, o conceito
hídricos, subdividindo a América do Sul ciando nas dinâmicas locais. Buzan, de CRS se constitui numa ferramenta
em sub-regiões de poder, correspon- ao defender a distinção entre estudos teórica importante para entender o
dentes às maiores reservas de água estratégicos e estudos de segurança, grau de conexão entre a hidropolítica
da América do Sul – a Bacia do Prata focou na centralidade da segurança e a agenda regional de segurança, e
e Bacia Amazônica – equivalentes aos militar para os estudos estratégicos, entender o alcance dos efeitos gerados
sub-complexos do Cone Sul e Norte enquanto, nos estudos de segurança, pela gestão integrada dos recursos
Andino respectivamente. procurou tornar mais complexo o hídricos compartilhados.
No subcomplexo do Cone Sul, conceito de segurança, considerando Analisando a literatura dominante
Buzan e Waever destacam a reaproxi- diferentes setores – segurança militar, no estudo da hidropolítica, verificamos
mação dos maiores países da região, econômica, ambiental, societal18. que há uma visão predominantemente
Brasil e Argentina, que buscam um Para este artigo utilizaremos o estatocêntrica ao assumirem como
ambiente institucionalmente estável conceito da hidropolítica, definido por ator principal o Estado. Não raro, essa
e economicamente desenvolvido. Queiroz19 como o termo utilizado para abordagem é criticada por não incluir
Essa mudança no elemento essencial designar as dinâmicas multissetoriais, atores não estatais21. É exatamente
amizade-inimizade, é o principal fator cooperativas e/ou conflitivas, oriundas nessa linha de raciocínio que este
para a consolidação e estabilidade da das relações de interdependência que artigo pretende trilhar, utilizando os
sub-região, devido principalmente à se estabelecem entre os atores que conceitos de segurança de Buzan asso-
cooperação política e confiança mú- impactam ou são impactados pelos ciados à hidropolítica, aplicando-os no
tua, contribuindo para atenuação dos recursos hídricos e derivam questões relacionamento intraestatal envolven-
conflitos interestatais e levando a um que implicam em vários setores de do a gestão integrada e compartilhada
caminho direto para a formação de interação como nos campos político, dos recursos hídricos entre os entes da
uma Comunidade de Segurança. econômico, ambiental, societal e federação brasileira. Vamos desconsi-
Ressalta-se que o grande motor militar. Logo, podemos verificar uma derar a homonímia envolvida (Estado,
para a reaproximação de Brasil e Ar- estreita conexão entre a hidropolítica país independente x estado, unidade
gentina foi o Acordo Tripartite, entre e o conceito de segurança de Buzan da federação) e utilizar como atores
Brasil-Argentina-Paraguai, envolvendo no que tange à gestão integrada e principais os entes da federação.

56 federalismo líquido
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

É perfeitamente factível a aplica- 4) Os padrões de amizade e inimi- passando para 276 em 2013. Aumento
bilidade desses conceitos de ordem zade presentes na região: motivado pela internacionalização de
interestatal no território federativo Como veremos adiante, o fede- bacias que nasceram das mudanças
brasileiro. Pois, fazendo uma análise ralismo brasileiro se caracteriza pela políticas como a dissolução da União
dos quatro elementos essenciais para competitividade. das Repúblicas Socialistas Soviéticas
formação de um complexo de segu- Podemos verificar que a aplicação e do desmembramento da Iugoslávia.
rança de Buzan, temos: desses conceitos em um Estado unitá- Essas bacias internacionais já corres-
rio não faria sentido, primeiro porque pondem à metade da superfície terres-
1) As fronteiras do complexo: não há pelo menos duas unidades tre, contendo 60% da água superficial
A unidade territorial para a gestão autônomas para a formação de um e 40% da população mundial.
de águas no Brasil é a bacia hidrográfi- complexo regional. E segundo, devida A própria etimologia da palavra
ca (veremos o assunto adiante quando à inexistência de uma estrutura anár- “rivalidade” remonta ao uso compar-
tratarmos da Política Nacional dos quica, pois há a centralização do poder tilhado da água doce, pois sua origem
Recursos Hídricos). no Estado. vem do Latim rivalis, significando “um
Antes de prosseguirmos, se faz usando o mesmo rio que o outro”. Ou
2) Estrutura anárquica, onde o necessário entendermos a lógica seja, os países ribeirinhos que fazem
complexo deve ser composto por do compartilhamento dos recursos fronteira com o mesmo rio são muitas
duas ou mais unidades autônomas: hídricos no âmbito internacional, ou vezes rivais no interesse pela água
Não há subordinação entre os en- seja, interestatal, e dos problemas de que compartilham24. Logo, a interde-
tes da federação quando se trata da soberania envolvidos com a questão, pendência hidrológica pode se tornar
gestão dos rios estaduais e federais para podermos associa-los com a ló- uma fonte potencial de conflito, bem
(veremos o assunto adiante quando gica intraestatal. como de cooperação, vai depender
tratarmos da Política Nacional dos diretamente de como é conduzida a
Recursos Hídricos). Recursos hídricos compartilhados gestão das águas compartilhadas.
O Brasil é uma república federa- O compartilhamento dos recursos Peter Gleick25 faz uma fotografia
tiva, cujos entes federados possuem hídricos não é uma questão inédita a mundial a respeito da relação da água
relativa independência e autonomia22. ser discutida. Já vem de longa data o com conflitos, e considera que a es-
A hidropolítica permite a inserção histórico de acordos bilaterais ou mul- cassez de água potável pode levar os
de outros atores que não o Estado. tilaterais para o uso compartilhado de países a uma competição por limitadas
bacias e rios internacionais. fontes de abastecimento e considerar
3) A distribuição de poder entre as Mesmo quando no passado a in- o acesso à água como uma questão
unidades que o compõe (polaridade terdependência hidrológica, ou seja, o de segurança nacional. Para o futuro,
regional): compartilhamento dos recursos hídri- fez uma prospecção de disputa pelo
A distribuição de poder entre as cos entre os diversos tipos de usuários acesso à água e o seu uso como arma e
unidades da federação, em se tratando ou entre diferentes países, não era tão ferramenta de batalha, principalmente
de recursos hídricos, está diretamente grande quanto hoje, os rios desem- em regiões áridas e semiáridas onde
ligada: ao estado possuidor de maior penharam um papel importante nas aumenta a importância da água devido
capacidade hídrica, seja para abaste- relações entre os Estados23. a sua escassez.
cimento ou para geração de energia; e Segundo a ONU, o número de ba- Entretanto, ao contrário do que
à sua posição a montante ou a jusante cias internacionais ou transfronteiriças inicialmente possa parecer, a água
em relação aos rios transfronteiriços. está crescendo. Em 1978 eram 214, por suas características peculiares,

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 57


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

induz mais a cooperação do que o têm de ser tomadas em níveis locais de 1787 como forma de organização
conflito. Aaron Wolf26 em seu estudo de gestão, onde a articulação e coo- que surgiu, basicamente, para pro-
no projeto Transboundary Freshwater peração entre os diferentes níveis de teção contra ameaças externas e se
Dispute Database (TFDD) identificou, governo, quando existem, são tênues. organizar econômica e administrati-
entre os anos de 805 e 1984, mais de vamente33.
3600 tratados relacionados à água Compreendendo o federalismo O Estado federado apresenta um
doce, muitos deles apresentando brasileiro caráter composto em virtude da coe-
grande criatividade. Números que As políticas públicas devem estar xistência dos poderes locais e o poder
se apresentam muito superiores aos alicerçadas sobre três pilares: (1) os federal. Dada essa natureza composta,
eventos de conflitos. Ainda segundo o objetivos a serem alcançados, formu- as relações complexas que se estabe-
mesmo autor, a guerra pela água não lados a partir das demandas e neces- lecem no âmbito interno da realidade
é hidrologicamente efetiva e também sidades da população; (2) a definição política pelas partes componentes,
não é economicamente viável. territorial de sua aplicabilidade; e (3) ou seja, estados, províncias ou muni-
as competências e responsabilidades cípios, geram uma superposição de
Soberania e os recursos hídricos de gestão29. competências. As relações de poder se
compartilhados Entretanto, dependendo da forma baseiam na negociação, onde o poder
A questão dos recursos hídricos de Estado30, haverá maior ou menor di- central assume o papel de coordena-
compartilhados ocupa há séculos a ficuldade em se implantarem políticas dor na resolução de problemas de
atenção dos envolvidos, sendo um públicas. Podemos efetuar uma rápida atribuição de competências34.
dos temas mais antigos de disputa análise comparativa de três formas Esse delicado arranjo de relações
exigindo esforços diplomáticos, não distintas: o sistema unitário francês, de poder está em constante movimen-
só para o uso dos recursos como o federalismo alemão e o federalismo to, oscilando entre as diversas aspi-
também para o exercício da soberania brasileiro. rações de maior autonomia e menor
dos estados. E ainda, os corpos hídri- Nos países unitários como a Fran- dependência dos entes federados em
cos27 ultrapassam os limites de uma ça, as políticas públicas são formuladas relação ao poder central35.
lógica territorial da soberania nacional na esfera municipal, que devido à O federalismo alemão possui um
levando a uma dinâmica hidrológica força na estrutura administrativa dos mecanismo em que os entes fede-
que transcende os espaços nacionais municípios e ausência de estados, pos- rados se complementam em termos
devido a sua dimensão internacional sibilitam a ascensão dessas políticas à de necessidade, onde os entes mais
e transfronteiriça28. esfera nacional onde são validadas e ricos ajudam os mais pobres, tendo o
É fato que os rios e bacias não res- transformadas em lei para que sejam poder central como coordenador do
peitam os limites políticos territoriais praticadas em todo território nacional. sistema. Esse mecanismo de coope-
e dificultam o exercício de poder do Uma vez aprovadas obedecem a uma ração horizontal é muito eficaz, onde
Estado sobre os mesmos. Com isso, esfera de poder31. o princípio da subsidiariedade, que
é vital que haja uma gestão integra- A conceituação clássica de federa- prevê os direitos sociais aos alemães, é
da com todos os atores envolvidos. lismo está baseada em três poderes: aplicado em favor dos entes federados
É difícil enfrentar de forma eficaz as central, estadual e local (sociedade civil mais fracos, entretanto respeitando
diversas questões intrínsecas ao ge- organizada, com pouca interferência suas autonomias36.
renciamento de água. Os problemas partidária)32. O sistema federal, como No federalismo cooperativo ale-
relativos à gestão dos recursos hídri- instituição política prática, nasceu mão há uma dependência da nego-
cos se agravam quando as decisões com a Constituição norte-americana ciação entre as esferas de poder na

58 federalismo líquido
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

administrativa e financeira, acarretam


uma letargia do processo decisório e
principalmente, pouca eficácia na im-
plementação de políticas de interesse
nacional40.

Nesse universo de competição não


se consegue a descentralização dese-
jada, atingindo, no máximo, da União
para os estados e chegando raramente
para os municípios que são os territó-
rios mais próximos do cidadão.
Há uma cultura tradicional centra-
lizadora em que o ente federal exerce
seu poder quase que unilateral, mes-
mo constando na Constituição Federal
a equidade de níveis de autonomia
com os estados e municípios41. Pode-
mos verificar que esse desequilíbrio de
forças em favor da União, faz com que
os estados não estimulem a coopera-
ção para implementação de projetos
em seus territórios, condenando os
mesmos ao fracasso. Ao que Barros
aplicação de políticas nacionais, po- estado, logicamente que obedecendo e Barros42 chamaram de “o grande
rém, sempre com interesse na busca a Constituição Federal38. paradoxo brasileiro considerando que
pelo entendimento que possa garantir Diferentemente da Alemanha, o a base do regime federativo é a des-
a unidade da ação. Em que pese os Brasil é um exemplo de República Fe- centralização do poder e a cooperação
níveis de competência serem distribu- derativa que tem municípios. E ainda, entre os entes federados”.
ídos entre o nível federal e os estados temos uma federação altamente com- A simples e objetiva conclusão do
federados. A lógica desse sistema está petitiva, com a existência de três níveis exposto sobre o federalismo brasileiro
na cooperação, exigência básica para federativos, sendo o município também é que a nossa federação é extrema-
a governabilidade37. considerado um ente federado a par- mente competitiva, onde os estados
O Brasil sendo uma República tir da Constituição Federal de 198839, independentes se preocupam somen-
Federativa pressupõe que os entes experiência única entre os Estados te com seu resultado individual.
federados tenham determinada au- federativos. Barros e Barros apontam: Um rápido resumo do que vimos
tonomia do poder central. O poder até aqui. Escolhemos utilizar a água
central determina as leis para o país, Essa obrigatoriedade de negociação como a principal ameaça a segurança,
mas um estado específico pode criar entre três instâncias federativas que seja ela no âmbito internacional como
leis, por meio de seus órgãos de le- competem entre si, tanto no plano no nacional, dada a sua importância e
gislação, que valem apenas naquele político-eleitoral, quanto na autonomia relevância. Entendemos como é for-

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 59


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

gem prolongada que vem ocorrendo


desde o ano passado44, já está se pro-
pagando para o Sudeste e pode afetar
outras regiões do Brasil. O assunto
tem sido, e está sendo, amplamente
divulgado pela mídia por meio de
periódicos impressos e pela internet.
Para ressaltar a importância da
gestão integrada e cooperativa dos
recursos hídricos compartilhados,
podemos citar o artigo publicado no
Jornal “O Globo” 45. O escopo do artigo
é o acordo firmado entre os estados
de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo para realizar a transposição do
Rio Jaguari, na bacia do Paraíba do
Sul, para solucionar o abastecimento
de água da região Sudeste. No início
da crise hídrica, ainda em 2013, São
Paulo já havia anunciado que faria essa
transposição para suprir o sistema
Cantareira, mas enfrentou resistência
do Rio de Janeiro e Minas Gerais, já
que o Rio Jaguari, embora esteja em
mado um CRS e a interdependência recursos hídricos no relacionamento São Paulo, é um afluente do Rio Para-
de suas unidades nos assuntos de se- intraestatal dentro de um contexto de íba do Sul usado pelos três estados.
gurança. Entendemos também, como segurança no Brasil. Contudo, a situação se agravou, em
e quando a água se torna um assunto No Brasil, a despeito de sua eleva- julho de 2014 a Companhia de Sanea-
de segurança, ou seja, quando é secu- da disponibilidade hídrica, a ocupação mento de São Paulo (SABESP) já havia
ritizada. Vimos o conceito de hidropo- intensa e desordenada tem gerado utilizado todo o volume útil do Sistema
lítica e sua relação com o conceito de conflitos, principalmente devido às Cantareira46, os governadores dos três
segurança de Buzan e, apresentamos questões associadas à qualidade para estados envolvidos chegaram a um
à lógica transfronteiriça dos recursos determinados usos. Isto ocorre em acordo, mediado por um ministro do
hídricos, que não respeitam os limites boa parte das bacias hidrográficas Supremo Tribunal Federal.
territoriais políticos. Atlântico Sudeste e Sul, onde a causa Este acordo se reveste de grande
Para aplicarmos o conhecimento dos conflitos se deve, essencialmente, importância, pois pode se tornar
acima à realidade brasileira, se fez ne- por problemas de poluição ou de con- um ponto de inflexão, refletindo a
cessário entendermos a organização sumo excessivo para irrigação43. intenção dos estados federados em
político-administrativa do federalismo O problema enfrentado por São abandonar a competição e iniciar uma
brasileiro. E agora, estamos aptos a Paulo com relação à crise de água em cooperação política, tendo a gestão
compreender qual a importância dos virtude dos fatores acima e da estia- das águas compartilhadas como prin-

60 federalismo líquido
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

cipal fator impulsionador. Da mesma federados para alcançar uma boa Planos de Recursos Hídricos.
forma que o foi na formação do sub- gestão de recursos hídricos48. Já o Sistema Nacional de Geren-
complexo de segurança do Cone Sul e Apesar de apresentar vantagens ciamento de Recursos Hídricos deve
nos diversos tratados de cooperação ao se estabelecer, para a gestão das cumprir os seguintes objetivos:
identificados por Aaron Wolf. águas, a bacia hidrográfica como uni- • coordenar a gestão integrada
Ao considerar a bacia hidrográfica dade territorial, principalmente por das águas;
como unidade de planejamento tem- ser o fator amalgamador no contexto • arbitrar administrativamente os
-se o grande mérito de fortalecer a de segurança regional, a PNRH guarda conflitos ligados ao uso da água;
ideia de nação, estimulando o desen- algumas incoerências, principalmente • implementar a Política Nacional
volvimento local dentro do contexto na sua gênese. de Recursos Hídricos;
regional. As bacias não respeitam os • planejar, regular e controlar o
limites municipais ou estaduais e obri- Política Nacional de Recursos uso, a preservação e a recuperação
gam o estabelecimento de uma polí- Hídricos dos recursos hídricos; e
tica única para determinada região, Em janeiro de 1997, foi sancionada a • promover a cobrança pelo uso
independente do estado, ou estados, lei n° 9.433, que instituiu a nova Política da água.
no qual está inserida47. Verificamos Nacional de Recursos Hídricos e criou o Em 2001 foi criada a Agência Nacio-
no exemplo da crise hídrica de São Sistema Nacional de Gerenciamento de nal de Águas (ANA), de forma a com-
Paulo, que foi utilizada como unidade Recursos Hídricos (SNGRH)49. plementar a estrutura institucional da
de planejamento a bacia hidrográfica A PNRH baseia-se nos seguintes gestão de recursos Hídricos do país. A
do Rio Paraíba do Sul que, por ser fundamentos: a água como um bem ANA é quem possui a responsabilidade
transfronteiriça, necessita da anuência de domínio público, dotado de valor pela implantação da Política Nacional
dos estados envolvidos. econômico, cujos usos prioritários são de Recursos hídricos, além de deter
Adicionalmente, a bacia hidrográfi- o consumo humano e a dessedentação o poder outorgante de fiscalização e
ca define um espaço geográfico asso- de animais e cuja gestão deve tomar cobrança pelo uso da água nas bacias
ciado ao recurso hídrico, previsto na como unidade territorial a bacia hidro- de rios federais50.
Política Nacional de Recursos Hídricos gráfica. Prevê, como diretriz geral de A necessidade da implantação da
(PNRH) e que propõe um planejamen- ação, a gestão integrada, e como ins- PNRH no Brasil e consequentemente
to sobre um determinado território trumentos para viabilizar sua implan- um sistema nacional de gerencia-
com limites estabelecidos, seja ele tação os planos de recursos hídricos, mento de recursos hídricos se deve
no interior de um mesmo estado ou o enquadramento dos corpos de água basicamente a garantir a existência
abrangendo mais de um estado. em classes segundo os usos preponde- de água para o uso atual e de geração
A finalidade é o desenvolvimento rantes, a outorga de direito de uso, a futuros tanto em qualidade quanto em
integrado e sustentável das regiões. cobrança pelo uso da água e o sistema quantidade51.
No Brasil, a gestão de recursos hídri- de informação sobre recursos hídricos. É primordial que se entenda a
cos é de responsabilidade da União A PNRH pressupõe a gestão com- origem da PNRH e as adaptações
e dos estados, entretanto sem haver partilhada e descentralizada dos feitas para o Brasil. A PNRH utiliza um
uma subordinação entre eles, e os recursos hídricos, por meio da ins- modelo de gestão hídrica francês, país
serviços de abastecimento de água e tituição de instrumentos de gestão, unitário, e que foi transferido para o
saneamento são de responsabilidade tais como os Comitês de Bacias, além Brasil, país federativo, obrigando a
dos munícipios, tornando vital uma da implementação de mecanismos realização de alterações no modelo
articulação entre todos os seus entes de planejamento, consolidados nos original, criando os rios federais e

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 61


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

estaduais, contrariando a classificação PNRH, na qual ambas dependem de soluta, mas ainda com problemas de
original francesa de rios nacionais. Tal enorme negociação ou acabam se escassez relativa, necessita da gestão
fato levou a gestão dos rios à dupla tornando problemas insolúveis. Os au- integrada, primeiro para solucionar as
titularidade: dos estados e da União52. tores consideram que “uma boa gestão disputas políticas que certamente irão
Podemos citar como exemplo o rio de águas no Brasil será fundamental ocorrer, e também, para disponibilizar
São Francisco, que é um rio federal, para o desenvolvimento sustentável do este recurso de forma equitativa e
pois nasce em Minas Gerais e percor- país e, consequentemente, afirmar-se qualitativa a todos os entes federados.
re mais de um estado, para desaguar como nação desenvolvida no contexto Assim como a teoria dos CRS e a hi-
no Oceano Atlântico, servindo de geopolítico mundial.”54. dropolítica não podem ser aplicadas a
fronteira para os Estados de Alagoas um país unitário, vemos que o inverso
e Sergipe. Logo, a gestão é da União. CONSIDERAÇÕES FINAIS também ocorre. Não se deve aplicar
No entanto, seu afluente, o Rio das Diante das teorias, conceitos, a um país federado a PNRH oriunda
Velhas, é do domínio estadual porque definições e exemplos apresentados, de um país unitário. Fato consumado
todo o seu curso é inserido em Minas, podemos verificar que dada a sua obrigou a realização de adaptações
onde nasce e deságua. Portanto a grande importância, os recursos hí- que se apresentaram desastrosas em
competência da gestão é do estado dricos desempenharam papel funda- quaisquer modelos de gestão.
de Minas Gerais. Por outro lado, o Rio mental para estimular e sedimentar a
Verde Grande, outro afluente daquele cooperação entre os atores envolvidos Angela Abreu de Barros é doutora em Química
rio principal, é de domínio da União, no compartilhamento das águas na Ambiental pela École Nationale Supérieure de
Chimie de Rennes, Professora do Mestrado em
visto que nasce em Minas Gerais e América do Sul. Defesa e Segurança Civil da Universidade Federal
deságua na Bahia53. O mesmo acon- Vemos que a teoria de complexos Fluminense (UFF) e Coordenadora do Núcleo de
Pesquisas em Desastres (NEPED-UFF).
tece com o Rio Paraíba do Sul, que é de segurança formulada por Buzan, angelbbarros@gmail.com
um rio federal, mas possui afluentes aliada a ampliação do conceito de se-
Luis Antonio de Menezes Cerutti é é pós-gra-
estaduais, como vimos no caso da crise gurança para além do binômio Estado- duado em Gestão de Empresarial pelo Instituto
hídrica de São Paulo. -Militar, pode ser aplicada na realidade COPPEAD-Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e Mestrando em Defesa e Segurança Civil
Barros e Barros estabeleceram uma federalista brasileira. E o Brasil, pela pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
relação entre guerras de fronteiras e a sua abundância de água, de forma ab- luiscerutti40@gmail.com

NOTAS

1. Relativo à ação do homem sobre o meio 3. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Água 6. MONTEIRO, Licio C.R. Apontamentos para uma
ambiente. HOLANDA, Aurélio Buarque. Mini ONU. Estatísticas – Águas. Disponível em: <http:// geopolítica da água em fronteiras internacionais.
Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. www.unwater.org/statistics.html>. Acesso em: Revista Eletrônica Boletim do Tempo. Rio de Janeiro,
Editora Positivo, 2010. 18 fev. 2014. ano 4, n. 15, 2009. Disponível em: <www.tempo-
presente.org>. Acesso em: 6 abr. 2014. 
2. Os recursos hídricos são as águas doces conti- 4. MONTEIRO, Licio C.R. Apontamentos para
das nos corpos hídricos. A água passa a possuir uma geopolítica da água em fronteiras inter- 7. SETTI, Arnaldo Augusto et al. Introdução ao
valor econômico quando se torna necessária a nacionais. Revista Eletrônica Boletim do Tempo. Gerenciamento de Recursos Hídricos. Brasília:
uma destinação específica de interesse para o Rio de Janeiro, ano 4, n. 15, 2009. Disponível Agência Nacional de Energia Elétrica; Agência
homem (GRANZIERA, 2001). Assim, para este em: <www.tempopresente.org>. Acesso em: 6 Nacional de Águas, 2001. 328 p.
artigo não há distinção entre recursos hídricos abr. 2014. 
e água doce. GRANZIERA, Maria Luiza Machado. 8. GAMA E SILVA, Roberto. Tsunami verde-am-
Direito de águas: disciplina jurídica das águas 5. BAKKER, Mucio P.R. A devastação ambiental e arelo - uma visão nacionalista. Revista Marítima
doces. São Paulo: Atlas, 2001. 245 p. os desafios do século. Revista Marítima Brasileira. Brasileira. Rio de Janeiro, vol. 133, n. 01/03, jan./
Rio de Janeiro, vol. 133, n. 04/06, abr./jun. 2013. mar. 2013

62 federalismo líquido
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

9. Os recursos naturais podem ser classifica- Constituição. BRASIL (b). Congresso Nacional. 34. DIAS, op. cit.
dos em renováveis e não renováveis. A água é Constituição (1988). Constituição da República
considerado um recurso hídrico renovável pela Federativa do Brasil, 1988. Brasília, 1988. Dispo- 35. DIAS, op. cit.
sua capacidade de se recompor, principalmente nível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ 36. TOMAZ, op.cit.
pelas chuvas (SETTI et al., 2001). SETTI, op. Cit. constituição/constituição.htm >. Acesso em: 29
de julho de 2014. 37. TOMAZ, op.cit.
10. AMORIM, Celso Luiz Nunes. A grande Estra-
tégia do Brasil. Insight Inteligência, n. 61, abr./jun. 23. WALLENSTEEN, Peter; SWAIN, Ashok. Com- 38. TOMAZ, op.cit.
2013. Disponível em: <http://www.insightinteli- prehensive assessment of the freshwater resources
39. Art.18 do Capítulo I da Constituição Federal.
gencia.com.br>. Acesso em: 15 de maio de 2014. of the world - International fresh water resources:
BRASIL (b), op cit.
conflict or cooperation. Estocolmo, Stockholm
11. “Estrutura de poder que provavelmente ca- Environment Institute, 1997, 32p. 40. BARROS, A.M.A. & BARROS, A.B. (a), op.
racterizará o ambiente estratégico nas próximas
cit. p. 3.
décadas. (...) Na multipolaridade, é natural que 24. WALLENSTEEN, Peter; SWAIN, Ashok, op. cit.
dinâmicas de conflito e cooperação coexistam na 41. BARROS, A.M.A. & BARROS, A.B. (a), op.
relação entre estados.” (LBDN, 2012, p. 30). BRA- 25. GLEICK, Peter H.. Water and conflict: fresh
cit. p. 6.
SIL (a). Ministério da Defesa. Livro Branco de Defe- water resources and international security.
sa Nacional. Brasília, 2012. Disponível em: <http:// International Security, v. 18, n. 1, p. 79-112, Sum- 42. BARROS, A.M.A. & BARROS, A.B. (a), op. cit.
www.defesa.gov.br/arquivos/2012/mes07/lbdn. mer 1993.
43. BRAGA, Benedito P. F.; FLECHA, Rodrigo;
pdf >. Acesso em: 6 de junho de 2014.
26. WOLF, Aaron T. Conflict and Cooperation PENA, Dilma S.; KELMAN, Jerson. Pacto Federa-
12. BUZAN, Barry; WAEVER, Ole. Regions and Pow- along International Waterways. Water Policy, v. tivo e gestão de águas. Revista Estudos Avançados.
ers. The Structure of International Security. New 1, n. 2, p. 251-265. 1998. Disponível em: <http:// Universidade de São Paulo, São Paulo, vol. 22,
York: Cambridge University Press. 2003. 564 p. webworld.unesco.org/water/wwap>. Acesso em: n° 63, 2008.
12 abr. 2014.
13. Grupo de pesquisa sobre segurança interna- 44. VIEIRA, Agostinho. O sagrado direito a água.
cional associado principalmente aos trabalhos 27. De acordo com o estabelecido no inciso VI do Jornal O Globo. Rio de Janeiro. Publicado em 11
de Buzan e de Ole Waever. QUEIROZ, Fábio art. 2°, da Instrução Normativa do Ministério do de set. 2014.
Albergaria de. Hidropolítica e segurança: as bacias Meio Ambiente n° 4, de 26/6/2000, corpo hídrico
45. BRÍGIDO, Carolina. Rio, SP e MG chegam a
Platina e Amazônica em perspectiva comparada. significa “curso d’água, reservatório artificial ou
um acordo da Bacia do Paraíba do Sul. Jornal O
Brasília: FUNAG, 2012. 412 p. natural, lago, lagoa ou aquífero subterrâneo”.
Globo. Publicado em 28 de nov. 2014.
GRANZIERA, op.cit.
14. BUZAN, op. cit. 46. VIEIRA, Agostinho. O sagrado direito a água.
28. MONTEIRO, op.cit.
15. STONE, Marianne. Security according to Bu- Jornal O Globo. Rio de Janeiro. Publicado em 11
zan: A comprehensive security analysis. Security 29. BARROS, A.M.A. & BARROS, A.B. (a). Defesa de set. 2014.
Discussion Papers, Paris, series 1, spring, p. 1-12, e Segurança Civil no Brasil. A necessidade de
47. QUEIROZ, Edna; BARROS, A.B., op.cit.
2009. Disponível em: <http://geest.msh-paris. uma política (efetivamente) nacional, Anais do
fr>. Acesso em: 20 de jun. 2014. 2° SIBRADEN – Simpósio Brasileiro de Desastres 48. SANTOS, Nílson dias do. A economia sus-
Naturais e Tecnológicos, Santos – SP, 2007. tentável dos recursos hídricos: a crise e o des-
16. Os autores chamam de segurança tradicional perdício da água no município de Porto Alegre.
a segurança do Estado e pelo Estado. 30. Reinaldo Dias classifica os Estados em Uni- Monografia (Bacharel em Ciências Econômicas)
tário e Composto. Este último pode ser confed- – Faculdade de Ciências Econômicas, Universi-
17. VARGAS, Éverton Vieira. Água e relações erações ou federações. DIAS, Reinaldo. Ciência
internacionais. Revista brasileira de política in- dade Federa do Rio Grande do Sul.
Política. São Paulo: Atlas, 2011. 280 p.
ternacional. Brasília, vol.43, n.1, Jan./Jun., 2000. 49. Lei Federal n° 9.433 de 8 de Janeiro de 1997
31. QUEIROZ, Edna; BARROS, A.B. Território e que institui a Política Nacional de Recursos Hídri-
18. TANNO, Grace. A Contribuição da Escola de bacias hidrográficas: reflexões a propósito da
Copenhague aos Estudos de Segurança Inter- cos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento
gestão de recursos hídricos e seus possíveis de Recursos Hídricos.
nacional. Contexto Internacional. Rio de Janeiro, desdobramentos sobre as práticas de Defesa
v. 25, n. 1, p. 47-80, jan./jun., 2003. Disponível Civil frente aos desastres de origem hídrica. 50. QUEIROZ, Edna; BARROS, A.B., op.cit.
em:<http://www.scielo.br>. Acesso em: 18 de Revista Científica Internacional Indexada. Rio de
jun. 2014. Janeiro. Ano 4, n° 16, jan/mar, p. 46-48, 2011. 51. GRANZIERA, op. cit.

19. QUEIROZ, Fábio Albergaria de. Op cit. Disponível em: <www.defesacivil.org>. Acesso 52. BARROS, A.M.A. & BARROS, A.B. (b). A difícil
em: 6 nov. 2014 aplicabilidade da política de águas no Brasil.
20. QUEIROZ, Fábio Albergaria de. Op cit. Revista Científica Internacional Indexada. Rio de
32. TOMAZ, Ana Cristina Fonseca. A política
Janeiro. Ano 2, n° 07, mai/jun, 2009. Disponível
21.QUEIROZ, Fábio Albergaria de. Op cit. Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) e o Fed-
em: <www.defesacivil.uff.br>. Acesso em: 10
eralismo no Brasil. São Paulo, 2006. Dissertação
22. Art.18 do Capítulo I da Constituição Federal nov. 2014.
(Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade
(1988) – A organização política-administrativa de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Univer- 53. BRAGA, op. cit.
da República Federativa do Brasil compreende sidade de São Paulo.
a União, os Estados, O Distrito Federal e os 54. BARROS, A.M.A. & BARROS, A.B. (b), op. cit.
Municípios, todos autônomos, nos termos desta 33. DIAS, op. cit. p. 19.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 63


por um
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

urbanismo

64 babilônia
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

moral
Andréa Storch
arquiteta urbanista

Érico Andrade
Filósofo

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 65


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A
o longo da história, a cidade tem uma caracterís- pacialmente. O desafio que nos propomos aqui é investigar
tica que lhe acompanha, a saber, a diversidade. como a cidade pode abrigar a expressão da diversidade dos
Muitas vezes portuárias, outras vezes centro de desejos e das práticas sociais que compõem a vida urbana
importantes rotas comerciais, as cidades sempre e que são exercidas por diferentes atores sociais, nem
estiveram no epicentro da circulação de ideias, mercadorias sempre identificáveis. Acreditamos que esse é um modo
e pessoas – não é sem motivos que ainda hoje usamos a viável de legitimar a tese de Jacobs, de que a diversidade
expressão centro da cidade para designar o local por onde é natural às grandes cidades, pois para que a cidade seja o
passam mais pessoas, diferentes pessoas, e que consegue lugar da diversidade é necessário que essa diversidade se
concentrar o comércio e serviços de modo geral. Parte dessa manifeste politicamente sobre os rumos do planejamento
diversidade comporta elementos históricos contingentes. e de seu consequente desenho urbano.
Isso é claro. No entanto, permanece a ideia de que um dos Para sustentar que a cidade deve ser o lugar da diversi-
processos característicos da vida urbana é o modo como as dade, vamos estruturar o artigo em três etapas. Faremos,
pessoas se organizam no espaço que depende de fatores primeiramente, uma breve apresentação dos principais
sociais, históricos e culturais. Nesse sentido, a essência da vetores que permitem caracterizar, em linhas gerais, o
cidade é as pessoas e o modo como elas se organizam es- liberalismo que é o modelo ideológico por meio do qual os

66 babilônia
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

empreiteiros buscam influenciar o planejamento urbano em matizes diferentes. Contudo, acreditamos que o epicentro
Recife e em parte importante do Brasil. Para isso, iremos do liberalismo ainda é a liberdade instanciada no indiví-
apresentar alguns pressupostos básicos do liberalismo. Em duo. Esse é o ponto de convergência entre teorias liberais
seguida, mostraremos como o discurso liberal é apropriado igualitarista e libertárias. Nesse aspecto, o liberalismo em
pelas construtoras e pelo poder público como argumento geral pretende respeitar ao máximo o modo espontâneo
para lastrear uma compreensão atomizada da cidade, con- como os indivíduos se organizam em função do exercício de
forme a qual as tipologias edilícias, denominadas, por nós, suas respectivas liberdades – inalienáveis liberdades. Nessa
de autorreferentes, não promovem uma integração socio- perspectiva, o liberalismo entende por soberania a ação
espacial; e negam o significado da urbe. Essas edificações do indivíduo independente de uma tutela externa que lhe
estabelecem um diálogo mudo com o entorno, visto que se constranja, especialmente por meio da força, a agir de um
relacionam com as preexistências de forma desassociada, modo contrário à sua vontade. Com essa convicção Hayek
como se delas fossem independentes. Elas são sustentadas defende que o caráter individualista do liberalismo repousa
por argumentos liberais que enfatizam as liberdades indi- no reconhecimento do autogoverno como elemento cons-
viduais em detrimento de uma compreensão coletivista da tituinte da noção de indivíduo: “É esse reconhecimento do
cidade, (entendemos por coletivista a percepção da cidade indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos, é a
que privilegia o encontro de pessoas de diferentes culturas convicção de que suas ideias deveriam governar-lhe tanto
e de diferentes classes sociais). quanto possível a conduta que constitui a essência da visão
Por fim, considerando que partimos da ideia de que o individualista” (HAYEK, 1999, p.77).

S
desenho urbano é resultado de uma política, mostraremos
que, para mudar o planejamento urbano liberal, calcado na er livre implica poder decidir por si mesmo como
ideia de que o mercado deve influenciar, quando não deter- realizar seus interesses e determinar o fim, no sen-
minar, a gestão da cidade, é necessário mudar o modelo de tido de finalidade, para a sua vida. Nesses termos,
gestão da coisa pública, o modelo político. Defenderemos o liberalismo pretende sustentar uma igualdade
um modelo que caminha na direção de uma democracia moral entre os indivíduos – reconhecidos como tais porque
real com forte participação popular. Argumentaremos, separados numericamente e temporalmente uns dos outros
por conseguinte, que a única forma da cidade expressar a – repousa no fato de que todos podem exercer plenamente
diversidade é legando às pessoas o direito de participar de a sua liberdade e perseguir o que consideram bom, útil e
seu planejamento. Para esse argumento vamos recorrer, vantajoso para as suas vidas. Em outras palavras, ser livre
por um lado, a uma leitura heterodoxa dos conceitos gregos significa poder deliberar sobre seu comportamento: fala,
de cidade e democracia para sustentar que a democracia gestos, trajes e valores. A liberdade passa a ser substancia-
exige uma integração das diversas partes da cidade, como lizada na própria determinação do comportamento. Assim,
os bairros. Por outro lado, defenderemos que é preciso a liberdade constitui-se num bem primário ou direito básico
ampliar o conceito de democracia no sentido de comportar a partir do qual se derivam todos os valores.
a participação política não só dos habitantes da cidade, Essa compreensão da liberdade confere ao indivíduo
mas também de quem vive a cidade porque circula por a posse sobre si mesmo, sobre as suas ideias e sobre o
ela. Durante o meu texto lançarei mão de alguns exemplos, seu trabalho. Por isso, no liberalismo clássico, pautado em
concentrados especialmente no Recife. Locke, que não pode ser considerado ainda um filósofo es-
tritamente liberal por várias razões que não posso descrever
O modelo liberal aqui, a ideia de que somos proprietários legítimos do que
Como parte importante das correntes da filosofia é fruto de nosso trabalho é tomada como uma extensão
política contemporânea, o liberalismo é diverso e tem natural da propriedade de si. Se sou proprietário de mim

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 67


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mesmo, sou igualmente proprietário do que faço por meio capacidade de negociar retira do objeto, que pode ser uma
do trabalho ou do que adquiro por meio do trabalho. Nesses coisa ou mesmo uma ideia a ser negociada, o valor que
termos o liberalismo, nessa acepção que tocamos aqui, arti- poderia lhe ser atribuído enquanto um valor intrínseco,
cula a propriedade de si mesmo com a propriedade que de- e projeta sobre as vontades a possibilidade de definirem,
corre do trabalho. Do apropriar-se de si mesmo, entendido conforme as suas próprias determinações, o valor de
como deliberar sobre seu comportamento, sobre seu corpo, mercado desse objeto. Por isso, a liberdade do mercado
tornando-se senhor de si mesmo, segue-se o apropriar-se é a expressão da liberdade dos próprios indivíduos que
do que decorre do trabalho realizado pelo corpo. determinam livremente o valor de cada coisa no mercado.

P
Vejamos agora como essa posição liberal é apropriada pe-
ara que o comércio das propriedades legitimamen- las construtoras e pelo poder público para sustentar uma
te adquiridas seja igualmente legítimo, é suficiente, fragmentação do planejamento urbano.
para filósofos libertários ou mais precisamente
minicartistas como Nozick, que ele seja feito sem Cidade liberal: o caso de Recife nas últimas décadas
nenhuma coerção física, sem o uso da força. Se não há vio- A imagem da cidade liberal consolida a compreensão de
lência e as propriedades comercializadas foram adquiridas que os indivíduos podem se apropriar de terrenos, determi-
de modo legítimo, não há razões para restringir a liberdade nar construções, seus gabaritos e escala sem que lhe seja
de comercializar. Nessa perspectiva, considerando que uma imposta alguma proibição externa. O argumento liberal é
troca é legítima quando ocorre de modo consensual, sem a que as cidades devem ser pensadas em função do desejo
imposição da força, o mercado livre legitima a propriedade dos indivíduos. A cidade deveria funcionar analogamente ao
que decorre dessas trocas. Nesses termos, o Estado não mercado. Assim, compreendendo a cidade como o merca-
deve se instituir como uma instância externa que cerceia a do, o liberalismo confere às empreiteiras e aos proprietários
relação livre – o comércio entre as pessoas – por meio da de terreno a decisão sobre o desenho urbano desejado. A
qual os indivíduos realizam as suas vontades autônomas. cidade no modelo liberal é construída seguindo a lógica
O que legitima o mercado novamente é a liberdade. da autorregulamentação no sentido de que o negócio ou
A liberdade do mercado é a realização da liberdade dos comércio que determina a compra e venda de construções
indivíduos no seu sentido mais radical, pois os indivíduos poderia chegar a um equilíbrio espontâneo. Assim, ainda
estendem a atuação da sua vontade para os objetos sobre que as normatizações urbanísticas, que impedem que este
os quais eles podem deliberar. Eles podem regular as suas modelo liberal seja posto em prática na sua totalidade, pro-
propriedades por meio da agregação ou não de valor a curaremos mostrar que ele exerce influências significativas
elas de acordo com a decisão de cada vontade de dar valor na produção do espaço quando interpretam os regulamen-
aquilo que é ofertado como produto (propriedade a ser tos vigentes a seu favor e contam com a leniência do poder
vendida). Assim, por negociar o liberalismo, em geral, en- público. Não faltam razões históricas – que não podemos
tende a capacidade de ceder interesses em troca de outros detalhar aqui – para explicar as razões da ancoragem desse
interesses cuja balança sempre é definida pelas vontades modelo no Brasil e em especial em Recife que traz como
livres e nunca tem como resultado uma soma zero, isto é, consequência a mutilação de partes da cidade e faz a cidade
todas as pessoas lucram, de algum modo, com o comércio. como um todo perder a sua organicidade: transformando-
O processo de negociação encerra a raiz mais depurada -a numa quase não cidade. Mostraremos agora como os
do processo de sociabilização porque nele vontades se argumentos liberais foram usados em Recife para reforçar
reconhecem como livres e como independentes, sendo, e financiar sua mutilação.
por conseguinte, capazes de determinarem para si mesmas Primeiro, um argumento importante usado pelos agen-
a melhor forma de orientar a relação com os outros. Essa tes envolvidos no projeto e na construção dessas edifica-

68 babilônia
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ções em Recife é que as pessoas têm direito à segurança e à uma crítica à ideia de que o mercado, por meio da defesa
privacidade e que, portanto, se justifica a criação de prédios da verticalização excessiva, poderia regular o desenho de
com extensos e longos muros sem nenhuma abertura e com partes da cidade. Vamos mostrar que este tipo edilício não
fachadas que promovem uma dissonância com a morfologia é condizente para responder as demandas ecológicas da
predominante de seu entorno. Esse argumento se apoia cidade, visto que diminuem a lâmina construída e inserem
na ideia de que os potenciais ladrões não teriam acesso recuos acentuados em relação ao entorno. Nosso ponto é
ao que se passa no interior dos prédios, especialmente no que esta tipologia verticalizada, promovida, pelo menos, em
estacionamento para o qual são reservados os primeiros Recife, torna o adensamento construtivo um problema na
pavimentos dos edifícios, e, por isso, não poderiam pla- estrutura da cidade sob vários aspectos.
nejar assaltos. O argumento da segurança é aliado ao da Não é fácil traçar a distinção entre o público e o priva-
privacidade, visto que se argumenta que as pessoas têm do. Essa dificuldade é bastante conhecida, e esse tema já
direito a circularem sem o olhar das pessoas que estão foi bem trabalhado. Poucas pessoas discordariam quanto
nas ruas. O discurso que as moradias podem se isolar das à necessidade de resguardarmos a nossa privacidade.
ruas conjuga, numa mesma base, dois argumentos liberais O desafio nunca é eliminar a privacidade, mas traçar a
de cunho libertário, quais sejam, o direito à privacidade e fronteira até onde podemos isolar a nossa vida privada da
o direito à segurança. Esse dois direitos compõem os di- vida pública. O ponto é que a defesa da privacidade em
reitos individuais sobre os quais se assenta, grosso modo, espaços de convivência, por onde circulam pessoas que
a doutrina liberal. Vamos primeiramente criticar esses não se restringem ao núcleo familiar, não pode ser feita por
dois argumentos. Num segundo momento, vamos tecer analogia com a privacidade presente no interior de nossas

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 69


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

moradias, que guardam efetivamente o nosso anonimato. tecido urbano no qual elas estão inseridas por meio do
Estacionamentos, que compõem os primeiros pavimentos argumento da privacidade.
da maior parte das edificações multifamiliar verticais em No que concerne à segurança é preciso alinhavar dois
Recife, podem ser propriedade do edifício, mas são espaços argumentos. Primeiramente, há uma confusão frequente
por onde circulam pessoas do prédio e trabalhadores em quando se considera que fachadas com baixa ou nenhu-
geral (zeladores, por exemplo) e que, por isso, não podem ma permeabilidade no térreo podem gerar segurança.
ser um espaço de privacidade no sentido de resguardar a Confunde-se a segurança das pessoas, que moram nas
vivência pessoal e anônima que encontramos diariamente propriedades, com a segurança da cidade por meio da ideia
no interior das nossas moradias. A privacidade deve se de que a segurança poderia ser estritamente privada e res-
referir ao espaço do lar. Por isso, caso estejamos tratando trita aos proprietários das casas ou apartamentos. Assim, a
de um lugar por onde as pessoas, que não fazem parte de defesa da impermeabilidade visual se materializa numa rua
nosso lar, circulam, não há mais privacidade no sentido completamente cercada por muros que têm a pretensão
do anonimato das ações que só o nosso lar pode e deve apenas de proteger quem está murado dentro de suas
preservar. Por esse motivo, não tem sentido promover uma propriedades, deixando à deriva os que estão murados,
descontinuidade radical entre as edificações privadas e o porque cercadas de muros, nas ruas, no espaço público.

70 babilônia
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O isolamento promovido por fachadas com baixíssima ou ou nenhuma permeabilidade. Esses fatores contribuem de
nenhuma permeabilidade visual não protegem nem os modo decisivo para a sensação de insegurança das pessoas
que estão dentro do espaço privado, nem os que estão nas nas ruas, uma vez que, como pontua, Gehl, “a diversidade
ruas, porque o maior fator de segurança ainda consiste na de funções ao longo de ruas e agradáveis espaços de tran-
circulação de pessoas nas ruas. sição são qualidades-chave para boas cidades – também
É por isso que Newman, dentre outros urbanistas, em termos de segurança e proteção” (GEHL, 2014, p. 101).
disserta sobre diferentes tipologias para sustentar que o Sem essa diversidade, associada a outros fatores, como,
comprometimento com o espaço, onde se mora, depen- por exemplo, bom espaço para circulação de pessoas e boa
de da sensação de pertencimento, ou ainda, como ele iluminação, a segurança fica completamente comprometida
insiste, da familiaridade que os habitantes guardam com nas cidades porque as pessoas simplesmente não estão nas
ele. Newman insiste na importância de aberturas entre ruas se vigiando e inibindo, com a sua presença, a ação de
o interior e o exterior (janelas e jardins frontais, sem fa- delinquentes. Os dados relativos a assaltos reforçam a tese
chadas cegas) para garantir uma identificação, por parte de que a segurança não é um negócio privado, que poderia
da comunidade, das pessoas que por ela circulam. Nesse ser derivado do direito à propriedade e restrita apenas aos
ponto ele concorda com a jornalista Jacobs que chamava, que têm propriedade, mas se trata de uma questão que se
sem se restringir à própria comunidade, de segurança do resolve de modo coletivo, visto que, como dizia Jacobs, a
“olho de rua” a segurança feita pelas pessoas quando elas continuidade entre as ruas (público) e as edificações priva-
se vigiam mutuamente. Essas duas posições, embora sejam das é o fator decisivo para levar segurança para todas as
distintas quanto à ideia de cidade que procuram defender, pessoas, porque umas tomam conta das outras, vigiam-se
convergem quando partem da tese de que a segurança das mutuamente. Pessoas circulando nas ruas ainda são as
pessoas depende das próprias pessoas, delas estarem no responsáveis tanto pela sensação de segurança quanto pela
alcance da visão umas das outras pessoas. Ou seja, mesmo própria segurança no sentido de que os assaltos ocorrem
que a intenção dos espaços defensáveis de Newman tenha em locais mal iluminados e sem pessoas por perto, à vista.

O
sido de garantir para a comunidade, às famílias que habitam
em determinada rua, uma capacidade de identificação de utro argumento importante do discurso liberal é o
pessoas estranhas à comunidade, ela se coaduna com a direito à autodeterminação do gabarito e da escala
perspectiva centrada no encontro de pessoas diferentes, das construções de edifícios cujos terrenos foram
que se vigiam mutuamente, de Jacobs, uma vez que está adquiridos num processo de troca justa. É recor-
em jogo a regra básica de que pessoas nas ruas constituem rente o argumento de que limitar o gabarito é um processo
a maior garantia de segurança. Desse modo, a defesa da arbitrário – típico da intervenção estatal – e desconsidera
segurança do espaço privado não entra necessariamente que a verticalização pode contribuir para uma cidade mais
em conflito com a defesa da continuidade (ou mesmo com sustentável. Vamos argumentar agora contra esses pontos.
a baixa ruptura entre o público e o privado) pelo menos Notavelmente o tamanho do gabarito não pode ser au-
pensada do ponto de vista da permeabilidade e do rodapé todeterminado pelas construções. O impacto na construção
dos edifícios em relação à rua. de moradias que contêm várias unidades na estrutura da
Essa discussão teórica tem forte base empírica. A ocor- cidade é enorme. Para substituir uma casa por um prédio
rência de assaltos e furtos invariavelmente acontece em de trinta andares é preciso dotar a rua de uma estrutura
lugares por onde circulam poucas pessoas. Eles ocorrem em de esgoto e saneamento várias vezes maior do que a es-
Recife à noite, momento em que há uma menor circulação, trutura inicial (ver especialmente o texto de STORCH, 2000
em lugares em que se tem apenas comércio, que à noite es- sobre essas dificuldades presentes em bairros de Recife
tão fechados, e em lugares, na frente de edifícios, com baixa que sofreram forte especulação imobiliária). Numa rua em

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 71


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

que se substitui quatro casas por edifícios de trinta andares de CO2 (nos EUA o transporte responde por 28 por cento
não é possível estabelecer uma rede de esgoto compatível da taxa de emissão de carbono, ver: NEWMAN, BEATLEY,
com tamanha demanda sem um gasto público exorbi- BOYER, 1999) e pela poluição sonora e visual. Ou seja, a
tante. Assim, mesmo que as pessoas queiram residir em verticalização sem planejamento, ou entregue ao desejo da
grandes torres, isso não se traduz numa auto-organização demanda dos que têm capital para a construção, produz
que poderia resolver problemas como, por exemplo, do em Recife uma fragmentação socioespacial da cidade, que
escoamento do esgoto ou da coleta de lixo. O que fazer ao invés de otimizar o adensamento, por meio da mistura
com o lixo acumulado numa rua cujas moradias crescem das diversas funções da cidade em cada bairro, promove
de modo exponencial? O problema do lixo segue a mesma um espraiamento da cidade, que se converte num trânsito
dificuldade do esgoto. Torna-se bem mais difícil realizar caótico e poluente, visto que as pessoas têm que se deslocar
a coleta do lixo quando os números da coleta aumentam a grandes distâncias, por meio de veículos motorizados,
dezenas de toneladas e concentram-se em algumas regiões para realizarem compras, levarem os filhos à escola, irem
da cidade. Ademais, com essa forma de adensamento não ao médico etc. O adensamento em Recife é setorizado e
planejado, o trânsito se torna caótico, e todas as pessoas, acontece porque o discurso liberal é o subterfúgio para a
sobretudo, as que moram longe e dependem do transporte entrega da cidade ao capital imobiliário que constrói edi-
público, sofrem porque perdem parte de seu tempo de fícios isoladas do contexto urbano, autorreferentes, com
lazer no transporte. alto gabarito para otimizarem o lucro com cada unidade
Um contra-argumento do discurso liberal seria dizer construída, em detrimento da promoção de um diálogo
que a inépcia do Estado seria o principal fator que torna mais amigável dessa construção com seu entorno, fato que
difícil a construção de torres porque ele não cumpre a sua resulta no predomínio de um desenho urbano excludente.

N
função de garantir as condições materiais para o adensa-
mento – desejado – das cidades. No entanto, o argumento essa perspectiva, se o direito à propriedade for
de que a verticalização é desejável porque promoveria a respeitado à risca, no sentido de que um bairro
concentração de pessoas e uma maior racionalidade no pode se tornar uma espécie de condomínio de
manejo dos recursos é outra confusão que o discurso luxo, formado por grandes torres e em conformi-
liberal, sob o disfarce das construções verdes, engendra. dade com a demanda dos construtores e, posteriormente,
A verticalização sem planejamento torna o adensamento proprietários, colocamos em risco as vantagens do aden-
um problema e não a solução. Adensar a cidade dividindo-a samento porque eliminamos o principal fator que lhe torna
em áreas monofuncionais (áreas residenciais, de um lado, uma estratégia sustentável para as cidades, qual seja, a
e áreas de serviço, de outro) não viabiliza as vantagens do mistura de moradias, de diferentes classes sociais, com
adensamento. O epicentro do problema repousa naquilo serviços, igualmente variados, que diminui, entre outras
que Jacobs já diagnosticava, a saber: “na inexistência de uma coisas, o deslocamento por meio do automóvel.
diversidade ampla e concentrada pode levar as pessoas a Mesmo um prédio que seja construído com uma preocu-
andarem de automóvel por praticamente qualquer moti- pação com coleta seletiva e com outras questões ecológicas,
vo. O espaço que as ruas e os estacionamentos requerem quando feito de forma isolada do contexto, como uma
faz com que tudo fique ainda mais espalhado e provoca construção autorreferente, ele não contribui para a dimi-
um uso ainda mais intenso de automóveis” JACOBS. p. nuição do impacto ambiental. O capital imobiliário constrói
253. Assim, esse tipo de adensamento não promove a edifícios como se eles pudessem ser um fim em si mesmo.
diminuição do uso do transporte individual motorizado No entanto, nem um espaço na cidade, muito menos um
porque as pessoas são forçadas a se deslocarem, provendo espaço privado, pode ser um fim em si mesmo, porque a
engarrafamentos, responsáveis por altas taxas de emissão decisão de construir um edifício privado tem um impacto

72 babilônia
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

social e ambiental que é custeado por todas as pessoas é compartilhar a decisão sobre o desenho urbano com as
que circulam pela cidade. Afinal, todas as pessoas sofrem pessoas, levando em consideração o impacto das decisões
com a poluição, engarrafamento e com o esvaziamento das individuais sobre a vida comum.
praças públicas e equipamentos de uso comum (parques,
por exemplo) que se convertem, pela falta da circulação de Uma nova política para uma nova cidade
pessoas, que preferem ficar nos equipamentos dos seus
edifícios e condomínios privados, em espaços inseguros. A arquitetura como construir portas,
Desse modo, as edificações verticais que perfuram o Recife de abrir; ou como construir o aberto;
transformam o que era para ser uma solução – o adensa- construir, não como ilhar e prender,
mento – num dos maiores problemas da cidade, que se nem construir como fechar secretos;
traduz num crescimento desordenado, quanto às relações construir portas abertas, em portas…
entre suas partes (bairros).
O mercado imobiliário se mostra ineficiente para promo- João Cabral de Melo Neto
ver uma cidade sustentável e diversa. Por essa razão, acre- Fábula de um arquiteto
dito que uma boa saída seria ampliar o poder de decisão
sobre o projeto de cidade que se deseja, não o reduzindo Se a cidade pode ser caracterizada por esse viés cosmo-
aos interesses do capital imobiliário; muitas vezes agentes polita, por ser um laboratório ou, como costumava pontuar
financiadores dos arranjos políticos intitucionais – como as Le Goff, “um campo de experiências sociais e políticas” (LE
campanhas eleitorais. Vamos defender agora que a solução GOFF, 1998, p.102), não há razões para sustentar uma po-

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 73


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

lítica avessa ao cosmopolitismo, à diversidade cultural e à explicar aqui, mas que consiste, grosso modo, em descon-
diversidade de tipos edilícios e dos usos dessas construções. siderar as vontades individuais em nome de uma vontade
O modelo liberal, aplicado à cidade do Recife e a tantas ou- geral; acessível para algumas pessoas, especialmente, cla-
tras cidades brasileiras, tende a modelar a cidade em função ro, alguns burocratas do Estado e seus técnicos. Ou seja,
de uma ótica unilateral, centrada no conforto e segurança se o discurso liberal pode mutilar a cidade para, como diz
de uns em detrimento do bem-estar social da maioria. Para João Cabral, fechar secretos, o discurso de matiz socialista
subverter esse modelo, não vamos nos engajar num dis- pode, por outro lado, tornar a cidade espelho de uma única
curso que assume para si a determinação do que é o bem perspectiva, que é acessível apenas a poucas pessoas (os
público, o qual poderia ser expresso, permitam-nos usar o burocratas e técnicos) e que se sustenta no conceito vago
conceito de Rousseau, pela vontade geral. O modelo liberal, de vontade geral ou bem comum, que termina por usurpar
como ele foi aplicado no Recife, falha porque é ineficiente das pessoas o direito de decidir sobre a cidade.
no que concerne à promoção da cidade como lugar da di- O Estado e o capital podem compor uma forma muito
versidade; mas uma saída, por assim dizer, centralizadora, parecida de pensar a cidade de modo unilateral, ainda que
típica de alguns discursos socialistas e modernistas, pode para fins diversos. Um planejamento centralizado, que retire
apresentar outra falha, que não podemos em detalhes da cidade a capacidade de se reinventar, de ser criativa, o

74 babilônia
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

qual é feito em nome de uma ideologia cuja legitimidade ajuda a pensar a cidade. Se os gregos se dispunham, pelo
prescinde da escuta das pessoas, parece próximo de um menos os cidadãos, a irem à praça pública para discutirem
planejamento urbano sequestrado pelo poder do capital, a cidade, eles fariam isso a partir dos bairros que, numa
que molda a cidade em função da conveniência da elite. espécie de federação, se reuniam para acertar os rumos
Essas duas perspectivas sobre a cidade guardam uma da polis, levando em consideração a realidade específica de
simetria quanto à falta de participação das pessoas no cada bairro e a sua relação com a cidade de Atenas. Não se
processo de decisão política sobre a cidade. De fato, se é, trata de discutir abstratamente a cidade, mas de discutir a
como alerta Jacobs, “ridículo pensar que nossas cidades cidade em função das diferentes perspectivas, enraizadas
grandes – variadas, cheias de vida, sempre em transfor- nos diferentes lugares que a compõem. A diversidade de
mação – devam depender de um punhado de autoridades realidades deve ser exposta na arena pública para que as
e barões da construção para se renovar” (JACOBS 2009 decisões passem a contemplar maximamente a vontade
p.369), também não é menos problemático acreditar que das pessoas e a diversidade dessa vontade. Assim, se os
um modelo centralizador, que prescinde da expressão polí- gregos falharam, ou pelo menos não foram suficientemente
tica dos seus cidadãos, possa se constituir como alternativa radicais, no que concerne à extensão do conceito de cida-
ao modelo liberal. As motivações dos modelos liberais e dão, quando a restringiu a condições bem específicas e,
centralizadores podem ser diferentes, pouco importa para podemos falar, elitistas ou aristocráticas, eles não deixaram
a presente discussão, mas o resultado dos dois modelos de errar quando não pensaram uma dimensão mais ampla
é a inépcia e antipatia pela discussão pública e horizontal da participação popular no interior de cada bairro.
sobre os rumos da cidade. Por isso, o que vamos propor, Dentre as várias restrições que a democracia grega
ainda que de um modo incipiente, não é um modelo político impunha às pessoas para se investirem da condição de
que supostamente poderia se constituir como a antípoda cidadãos, algumas delas inaceitáveis, como a proibição da
do modelo liberal, mas que, no entanto, guarda para si participação feminina, queremos sublinhar uma que ainda
problemas simétricos aos existentes naquele modelo. permanece nos dias atuais, qual seja, a restrição da partici-
Defenderemos o que chamamos de democracia real, por pação política à territorialidade, ou mais precisamente ao
acreditar que ela pode financiar a ideia de uma cidade diver- local onde se mora. Pretendemos discutir esse ponto para
sa, múltipla e condizente com o cosmopolitismo. Para isso esclarecer o que entendemos por participação popular nas
vamos associar a discussão da democracia com a própria decisões sobre a cidade.

D
concepção de cidade.
Primeiramente, permita-me revisar o termo grego de- efendemos que a discussão do projeto de cidade
mocracia. A origem etimológica do termo, classicamente e, posteriormente, a deliberação sobre o modo
instituída, não deixa dúvidas que ele se relaciona, para a como devemos proceder na sua política devem ser
maioria dos estudiosos da cultura e da língua grega, à noção públicas e acessíveis à participação das pessoas
de povo. No entanto, queremos partir de algumas inter- interessadas. Ela também não deve reduzir o poder de veto
pretações que conferem um toque diferente, mas não ex- e de deliberação sobre as políticas públicas aos políticos
cludente, à compreensão tradicional do termo democracia. profissionais. Ou seja, para que a cidade possa manter a
Cordero sustenta que democracia se relaciona com a noção sua diversidade, é necessário que haja uma simetria, pelo
de um governo do bairro. Demos, nesse caso, poderia se menos de poder e institucional, entre os agentes políticos e,
referir às pessoas que habitam determinada localidade no por conseguinte, do poder político, no sentido de resguar-
interior da cidade. O termo demos se aplica então à junção dar a expressão da diversidade no planejamento urbano.
entre localidade e pessoa e, com isso, comporta a própria Essa é a ideia que pode ajudar a construir uma cidade em
ideia de cidadão, aquele que é da cidade. Essa definição nos que todas as pessoas se sintam concernidas por ela, por-

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 75


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

que participam da sua efetiva criação. Nesses temos é que é tornar públicas as decisões, mas publicizar o espaço de
Jabocs pontua que “as cidades têm capacidade de oferecer decisões políticas, no sentido de radicalizar a participação
algo a todos, mas só porque e quando são criadas por to- popular nas referidas decisões. A nova política é uma reno-
dos” (JACOBS, p. 263). A cidade é as pessoas, apenas quando vação e ampliação da política grega, da democracia grega.
as pessoas são a cidade; participam da sua construção de Nessa perspectiva, acreditamos que o caminho para tornar
modo efetivo. A democracia real, que amplia o conceito gre- viável a nova política é procurar fortalecer os conselhos dos
go e subverte a sua dimensão de territorialidade, é a única bairros, que devem ser igualmente horizontais, paritários e
armadura política que garante as condições mínimas para formados em cada bairro em função das diversas tendên-
que a cidade seja concebida e, posteriormente, realizada cias e posições sobre a cidade, para formar uma federação
por todas as pessoas. de bairros que, longe de rivalizarem, devem pensar a cidade
É evidente que operacionalizar isso não é uma tarefa como a ponte, conexão, entre eles. A cidade não é apenas a
fácil. Não resta dúvida. Mas, a ideia de pensar a cidade e, reunião de pessoas, diferentes pessoas, enraizadas, ainda
com ela, a democracia urbana, como uma federação de que de modo transitório, num lugar, mas ela é também o
bairros é interessante, pelo menos, no que diz respeito resultado orgânico dessa reunião, isto é, ela é a expressão
à viabilidade de apresentar a cidade nas suas diferentes de como essas pessoas se relacionam na cidade, nos seus
nuances e em sintonia com quem vive a cidade. Sublinha- diferentes bairros e nos espaços de convivência. A circula-
mos a expressão quem vive a cidade porque, ao contrário ção de pessoas passa a ser, por conseguinte, um epicentro
dos gregos, que consideram cidadão apenas os que nela da discussão entre os bairros no sentido de garantir a livre
habitam, adicionada outras conhecidas restrições, algumas e segura circulação de pessoas e, com elas, a circulação
já mencionadas, acreditamos que o conceito de cidadão se das ideias das pessoas que efetivamente vivem a cidade.
estende para os que circulam pela cidade porque trabalham Nesse contexto, empoderar os cidadãos é conferir-
nela, estudam etc.; isto é, de algum modo vivem ela; o que -lhes, a partir desses conselhos, o direito de participar
notadamente inclui, novamente diferente dos gregos, os realmente do projeto da cidade que se deseja viver. Isso
estrangeiros (ξένος, o de fora). Não é preciso ter domicílio significa dar-lhes abertura política, o que lhes confere, por
numa cidade para decidir sobre os rumos dela. Basta viver conseguinte, uma sensação de pertencimento; essencial
a cidade e não necessariamente na cidade no sentido de para que as pessoas se mobilizem pela cidade. Parte da
morar nela. Nesses termos, pessoas que vivem a cidade falta de mobilização das pessoas deve-se ao fato de que as
devem participar da decisão de seu planejamento, pois pessoas não se reconhecem na cidade, não se identificam
são frequentadores, independente de serem moradores. com ela, quando não conseguem, entre outras coisas,
Elas devem, consequentemente, decidir a política da cidade decidir sobre seus rumos e a sua estrutura. Em parte a
porque elas transitam e, de algum modo, habitam a cidade. sensação de pertencimento, que nos permite ter uma aten-

A
ção especial pelo nosso lar, repousa no reconhecimento
nova política que propomos não é um sistema mági- de nossa ação sobre o lugar. Se a cidade me é estranha,
co, capaz de redimir nossos conflitos com soluções é porque estou estranhamente fora do plano de decisão
técnicas sobre o que deve ser a cidade ou a própria sobre a cidade que vivo. Alienar o direito à cidade, alienar
política, nem é uma forma de atenuar ou matizar o direito a discutir a cidade é, em parte, alienar o direito
a democracia representativa que, como mostramos um à própria vida porque consiste em alienar o direito sobre
pouco aqui e mais especificamente em outra oportunida- o espaço no qual a vida se realiza, é, em uma palavra,
de (ANDRADE, 2014), está a serviço do capital. Trata-se de vivida. Por isso, a nova política passa pelo esvaziamento
pensar um modelo político que empodera os cidadãos no da estrutura burocrática clássica, própria da democracia
que diz respeito à tomada de decisões sobre a cidade. Não representativa, e pelo fortalecimento dos conselhos que

76 babilônia
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

devem ter o direito de participar efetivamente dos rumos construindo a sensação de pertencimento na mesma pro-
que terminam por definir o desenho urbano de cada porção que vão decidindo sobre a cidade. Outra dificuldade
parte da cidade e do todo. Para isso, dois pontos devem será perceber que a cidade não pode ser reduzida à simples
ser levados em consideração, quais sejam: a realidade da reunião de bairros, mas que dessa reunião e da interrelação
estrutura de cada bairro e a integração equilibrada entre entre os bairros é que emerge uma cidade desejadamente
os diferentes bairros. Esses pontos se ramificam em diver- cosmopolita. No entanto, essas dificuldades práticas não
sos instrumentos e normatizações – lei do uso dos solos, podem obliterar o fato de que o caminho para que hoje as
plano setorial, plano diretor, por exemplo –, mas para cidades expressem a diversidade, que lhes foi própria ao
que se tornem legítimos devem ser objeto de discussão longo da história, é fortalecer a participação popular. Por
pública e aberta a todos interessados para que os rumos isso, acreditamos que a utopia da cidade cosmopolita não
da cidade sejam decididos efetivamente pelos cidadãos. é pura e simplesmente a expressão do impossível, do não
Tenho consciência de que a nova política não pode lugar e, portanto, da não cidade. Ela deve ser compreendi-
garantir em termos absolutos a diversidade, defendida da como o horizonte para o qual devemos seguir quando
por nós como sendo a característica essencial da cidade, queremos entender a cidade como uma invenção inacabada
mas ela abre caminho para que os processos de decisão de pessoas, as quais, tal como a cidade, estão sempre em
sobre a cidade possa sair das paredes opacas do poder construção.
público institucional, presente na democracia representa-
tiva, e possa finalmente caminhar nas ruas. O processo de Andréa Storch é professora da Universidade Católica de Pernambuco (Uni-
cap) e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento
empoderamento dos agentes políticos de modo paritário,
Urbano (MDU) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
simétrico e que leva em consideração a realidade local al_storch@hotmail.com
(bairro) e a realidade global (as relações entre os bairros)
Érico Andrade é professor de Filosofia da UFPE.
é lento, mas acreditamos que aos poucos as pessoas vão ericoandrade@gmail.com

bibliografia

ANDRADE M. OLIVEIRA, É. Direitos Urbanos: a luta em rede. In Coletiva NEWMAN, Oscar. Creating defensible spaces. Washington, DC: U.S. Depart-
n.13. Recife: FUNDAJ, 2014. ment of Housing and Urban Development, 1996.

ANDRADE M. OLIVEIRA, É . Ocupe Estelita: as novas formas de atuação NEWMAN, P; BEATLEY, T; BOYER, H. Resilient cites: responding to peak oil
política. Insight Inteligência, v. 66, p. 108-113, 2014. and climate change. Washington: Island Press, 2009.

CORDERO, N. L. A Invenção da filosofia. São Paulo:. Odysseus, 1999. NOZICK, R. Anarquia, estado e utopia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

GEHL, J. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspetiva, 2014. ROUSSEAU, J. O Contrato social. São Paulo: L & PM, 2007.

HAYEK, F. A. O caminho da servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von STORCH, A. M. L. Ponte a ponte: investigando os significados das apro-
Mises Brasil, 2010. priações sócio-espaciais das margens do rio Capibaribe nos bairros da
Madalena e das Graças. Dissertação de mestrado. UFPE, 2000.
LE GOFF, J. Por amor às cidades. São Paulo: UNESP, 1998.
VIVAN, Mariana. Arquitetura, espaço urbano e criminalidade: relações
JACOBS, J. Morte e vida das cidades. São Paulo: Martins Fontes, 1990. entre espaço construído e segurança, com foco na visibilidade. Disser-
tação de Mestrado defendida junto ao PósArq – UFSC, Florianópolis, SC:
MELO. J. C. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fron- UFSC, 2012.
teira, 1997.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 77


78 fogo na roupa
Estatuto do desarmamento

um tiro que
não saiu pela
culatra
Glaucio Soares
Cientista social

Daniel Cerqueira
Economista

O
que é o Estatuto do uma oportunidade para regularizá-las particularmente as que trabalham com
Desarmamento? É uma ou entregá-las, com direito a indeniza- a segurança pública.1 Creio que os
lei federal (Lei 10.826) ção. A campanha resultou na entrega principais objetivos da Rede Desarma
que foi sancionada pelo de 443.719 armas de fogo, que foram Brasil sejam consolidar e proteger o
presidente da República Luiz Inácio destruídas pelo Comando do Exército. Estatuto.
Lula da Silva, em 22 de dezembro de Excedeu, em muito, as expectativas, Os efeitos do ED, da Campanha e
2003. Entrou em vigor no dia seguinte, pois a meta era recolher 80 mil armas. das ações de organizações e movimen-
praticamente no fim do ano. Portanto, Como resultado, a Campanha do De- tos sociais não são fáceis de separar.
seus efeitos só começaram a ser sen- sarmamento foi ampliada até 23 de Quando avaliamos os efeitos de um,
tidos a partir de 2004. outubro de 2005. incluímos, embutidos, os efeitos dos
O Estatuto do Desarmamento não Houve uma junção de movimentos outros. Para fins de simplificação,
deve ser confundido com a Campanha sociais e educativos com a legislação esses efeitos são tomados como um
do Desarmamento, que deu à popula- federal. Muitas organizações participa- conjunto, definido como os efeitos do
ção portadora de armas sem registro ram da Campanha de Desarmamento, Estatuto do Desarmamento (ED).

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 79


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O ED ofereceu à polícia um impor- bilidade de armas de fogo nas cidades de vários países, demonstraram que
tante instrumento de apreensão tanto causa um aumento significativo na a presença de armas de fogo na casa
de armas quanto de criminosos, uma taxa de homicídio, mas não dissuade se correlacionava intimamente com
vez que a posse de armas passou a o criminoso profissional, nem reduz os os suicídios com armas de fogo, com
ser crime. Há países federativos em roubos e/ou furtos.3 Esses resultados a taxa de homicídios com armas de
que cada estado, província ou equiva- confirmam os obtidos fora do Brasil. fogo em que uma ou mais mulheres
lente promulga sua própria legislação. Donohue fez uma revisão das evidên- foram vítimas e assaltos relacionados
No Brasil, essa atribuição é federal, o cias disponíveis, concluindo: com armas de fogo. Concluíram que a
que não impede que os estados im- presença de armas na casa aumenta a
plementem suas próprias políticas de “A totalidade das evidências acerca dos mortalidade e não o reverso.8
segurança. O fato de o Estatuto ser uma melhores modelos estatísticos sugerem
legislação de origem federal não significa que o direito a portar arma de fogo é Quatro casos extremos
que ele tenha sido igualmente aplicado associado a uma substancialmente de controle de armas e suas taxas
em todos os estados. Longe disso. Há, maior taxa de roubos, furtos, estupros de mortes por armas de fogo
em todos os países, particularmente e homicídios.” 4
A análise de casos extremos é mui-
nos geograficamente extensos e nos to útil, a despeito de suas limitações.
federativos, uma grande disparidade Segundo outros dois estudiosos Pode esclarecer, sugerir associações e
entre as regiões e entre as unidades da norte-americanos, que são coordena- caminhos, mas não testa a validade de
federação no que concerne a indicado- dores do Crime Working Group do Natio- hipóteses para todas as observações
res de desenvolvimento econômico e nal Bureau of Economic Research (NBER), possíveis. Selecionamos três casos
social (renda per capita, indicadores “Os novos resultados empíricos não de países com taxas inferiores a um
educacionais e de saúde, esperança fornecem suporte para o efeito dissu- por cem mil habitantes em dois anos
de vida ao nascer, mortalidade geral asor de posse de armas sobre crimes. recentes e uma população superior
e infantil, IDH etc.) e também de de- Em vez disso, nossa análise conclui que a dois milhões de habitantes. São a
senvolvimento político, inclusive de a taxa de roubo a residências tende a Coreia do Sul, o Japão e Cingapura.
cultura cívica.2 A absorção diferenciada aumentar com a prevalência de armas Adicionamos a China devido ao fato de
do ED explica por que seus efeitos na comunidade”.5 ter a taxa de um, com tendência clara-
foram diferentes entre os estados e Ainda que a arma de fogo possa mente descendente na última década.
entre as regiões. funcionar como uma bengala emo- Porém, a utilidade das comparações
cional, fazendo com que quem a porte está ligada aos casos que entram nas
O mito do efeito dissuasório se sinta mais seguro, ela não repele comparações e aos que são deixados
da arma em casa os bandidos; ao contrário, atiça a de fora. E casos importantes têm sido
A rationale da oposição do ED cobiça por um bem importante para deixados de fora das análises. Esses
se baseia em muitos argumentos e eles. Além desse risco, aumenta a países asiáticos são deixados de fora
poucos dados. Parte importante da probabilidade de mortes e ferimentos das argumentações favoráveis às ar-
argumentação deriva da afirmação de domésticos, aumentando a taxa de mas. Queremos recuperar esses casos
que as armas em mãos de “cidadãos acidentes, de homicídios domésticos6, para analisá-los.
de bem” têm um efeito dissuasório. de violência doméstica e de suicídios, Nos estudos que comparavam o
Três teses de doutorado em eco- colocando em risco a vida do pro- crime e a violência, há até bem pouco
nomia da PUC-Rio, da FGV e da USP prietário e de seus familiares.7 Em tempo as comparações eram prejudi-
demonstraram que a maior disponi- 2001. Killias et al., analisando dados cadas pela multiplicidade de idiomas

80 fogo na roupa
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

que os pesquisadores teriam que de armas em mãos de particulares quer meio data de 2010 e é de um por
dominar para poder incluir todos os em relação à população: ocupa o 164o cem mil habitantes. Entre 2002 e 2010,
países relevantes. Felizmente, algumas lugar entre 178 países.11 o número de homicídios por qualquer
instituições tomaram a si essa tarefa, e A taxa de homicídios no Japão em causa caiu pela metade. A China é usada
hoje temos acesso a vários bancos de 2010, 11 e 12 foi de 0,3 por 100 mil pelo lobby das armas como exemplo
dados por meio da internet.9 habitantes12; desde 1994, ela é inferior negativo, não por ser um caso extremo
A Coreia do Sul tem uma legislação a 0,7. Em 2011 houve 11 homicídios e, de violência civil letal, mas porque é
sobre armas de fogo que é das mais em 2008, 47 suicídios com armas de uma ditadura... e comunista ainda
duras do planeta. Há permissões fogo em todo o país. São os últimos por cima. O lobby abandona a questão
para usar para esporte e caça, mas anos em que há dados comparáveis sobre se o controle de armas funciona
as armas devem ser guardadas na com a base mundial. na China, focando no fato de que é um
delegacia policial mais próxima. A Cingapura é outro caso importante país totalitário e suas políticas devem
pena pela propriedade, porte ou uso que tem sido deixado de fora das argu- ser rejeitadas.14
indevido é duríssima, podendo chegar mentações. A legislação mais relevante
a dez anos de prisão, além de multa, é de 2003, o Ato sobre Armas e Explo- Os efeitos do Estatuto do
que pode atingir 18 mil dólares. Não sivos n° 200330 e o Ato 31, sobre vio- Desarmamento
obstante, devido a sua história de con- lações da legislação sobre armas. Não Há várias pesquisas científicas que
flitos com a Coreia do Norte e, antes há direito à propriedade de armas. As mostram que o Estatuto do Desarma-
disso, com o Japão, o serviço militar é exigências da licença incluem critérios mento (ED) conteve e diminuiu a esca-
obrigatório e sério, exigido de todos policiais e criminais, médicos, psiquiá- lada de homicídios, que vinha crescen-
os homens. Com isso, a população tricos e associação a um clube de tiro do regularmente desde 198015, como
masculina no país tem treinamento ao alvo. Cingapura ocupa o 163º lugar Cerqueira, Cerqueira e De Mello 16,
no uso e cuidado com as armas. O na ordem dos países pelo número de Justus e Kassouf17, entre outros.
resultado, esperado: dados relativos armas em mãos de particulares em Tanto para organizar as evidências
a 2006 mostram que a taxa de homi- relação à população. quantitativas sobre a causalidade
cídios foi zero. A taxa de homicídios por 100 mil da prevalência de armas de fogo e a
No Japão, não existe o direito a ser habitantes em Cingapura em 2011 foi violência letal quanto para estimar o
proprietário de armas. Para se obter 0,3! É inferior a um por cem mil hbs. efeito do Estatuto do Desarmamento
uma licença, é necessário demonstrar O último homicídio com arma de fogo sobre a taxa de homicídio e de mortes
necessidade para caça e o tiro ao alvo. foi em 2008, ano no qual houve cinco por armas de fogo, há a necessidade
As exigências são múltiplas, assim suicídios com armas de fogo. A popu- de superar dois problemas metodo-
como os impedimentos: pessoas lação estimada de Cingapura é cerca lógicos:
com problemas mentais, dependên- de cinco milhões e meio. Cingapura é 1. A indisponibilidade de boas in-
cia química, ficha criminal (inclusive outro modelo de segurança. formações acerca da prevalência de
violência). Requisitos: idade mínima A China também tem uma legis- armas de fogo nas localidades; e
18 anos (20 anos para armas de caça lação que restringe o acesso a armas 2. A endogeneidade nessa relação,
e 14 para armas de ar comprimido), de fogo. A última legislação data de que pode fazer com que o coeficiente
demonstração de competência no 1996.13 Os dados chineses não são estimado entre armas e crimes repre-
manejo de armas, e mais.10 bons. Sua posição no elenco de países sente uma correlação espúria, impe-
Essas restrições fazem do Japão por armas em mãos privadas é 102º. dindo que este possa ser interpretado
um dos países com menor número A última taxa de homicídios com qual- no sentido de causalidade.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 81


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Os trabalhos acima apontados A indisponibilidade de dados con- a validade de 25 proxies de medida


usaram estratégias distintas para con- fiáveis sobre prevalência de armas ao de disponibilidade de arma de fogo
tornar tais problemas, mas chegaram longo do tempo existe mesmo nos ao nível de município, estado e país
a conclusões qualitativamente seme- países desenvolvidos, como nos EUA. de 1972 a 1999.18 A única proxy que
lhantes: 1) mais armas de fogo causam A solução a essa questão passa pela se correlaciona bem com a proporção
mais homicídios; e 2) o ED diminuiu os utilização de proxies, que são medidas de domicílios com pelo menos uma
homicídios. indiretas que possuem alta correla- arma de fogo, estimada da pesquisa
Além disso, recentemente Cerquei- ção com a prevalência das armas de domiciliar norte-americana General
ra mostrou que é um mito a tese de fogo. A esse respeito, Cerqueira et Social Survey, é a proporção de sui-
que o cidadão de bem armado conse- al. (2014) apontam que a única proxy cídios cometidos com arma de fogo.
gue dissuadir criminosos profissionais, internacionalmente reconhecida como Killias19 e Briggs e Tabarrok20 também
uma vez que nenhum efeito estatisti- de boa qualidade é a proporção de apresentam evidências semelhantes.”
camente significativo foi observado na suicídio por arma de fogo em relação A questão da endogeneidade, que
relação entre armas de fogo e roubos ao total de suicídios. Esses autores concorre para que os coeficientes
e furtos. pontuam: “Kleck, em 2004, examinou estimados possam ter sérios vieses e

gráfico 1

A Proxy da Difusão das Armas


de Fogo e o Total de Mortes por Armas de Fogo

25 0,7

0,6
20 proxy para difusão de arma de fogo
taxa de mortes por arma de fogo

0,5

15
0,4

0,3
10

0,2

5
0,1

0 0
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010

taxa de mortes por arma de fogo proxy para difusão de arma de fogo

82 fogo na roupa
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

não sejam consistentes, tem origem Em primeiro lugar, por que o sen- No caso da renda, o problema seria
em dois problemas, na causalidade tido da causalidade pode ser inverso, trivialmente resolvido ao se fazer uma
reversa (ou simultaneidade) e nas por exemplo, se acontecer das pesso- regressão multidimensional e incluir a
variáveis omitidas. as se armarem para se defenderem renda como variável de controle entre
Para entender a questão, suponha exatamente nas cidades onde há os regressores. Todavia, nem sempre
que pudéssemos observar a corre- mais crimes (problema da causalidade é possível achar uma base de dados
lação entre armas de fogo e taxa de reversa); em segundo lugar, é possível com as variáveis que cremos serem
homicídios, utilizando dados de i mu- que existam outras razões ou fatores importantes por interferir nessa rela-
nicípios, ao longo de t períodos. Ainda que afetam tanto a prevalência das ção e, muitas vezes, não conseguimos
que documentássemos uma correla- armas de fogo quanto a taxa de ho- desenvolver um modelo teórico que
ção positiva entre essas duas variáveis micídio nas cidades. Por exemplo: o inclua todas as variáveis relevantes
nas cidades observadas, ao longo do bom trabalho da polícia, a renda per que interfiram nessa relação.
período estudado, não estaríamos cre- capita, etc., que não foram incluídas Fizemos uma opção de usar um
denciados a fazer qualquer afirmação na análise. É o conhecido problema de simples modelo de regressão e não um
que armas causam homicídios. variáveis omitidas no modelo. modelo de séries temporais, devido ao

gráfico 2

Óbitos com Armas de Fogo


antes do Estatuto

45.0000

40.0000

35.0000

30.0000

25.0000

20.0000

15.0000

10.0000

5.000

0
1979

1980

1981

1982

1983

1984

1985

1986

1987

1988

1989

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

mortes por arma de fogo linear (mortes por armas de fogo) linear (mortes por armas de fogo)

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 83


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

reduzido número de observações. O limitado de observações, muitos acon- cessando o crescimento exatamente
cálculo não segue a robustez de mo- selham a não usar Box-Jenkins, inclu- em 2003, o ano da sanção do ED.
delos com identificação causal (para sive os próprios George Box e Gwilym O Gráfico 2 mostra que, de 1979 até
lidar com esse problema há o Daniel Jenkins recomendavam um mínimo de 2003, antes do Estatuto, portanto, mais
Cerqueira já escreveu dois trabalhos, 50 observações para usar um modelo de meio milhão de brasileiros morreram
já mencionados).21 ARIMA. Há trabalhos que recomendam vítimas de armas de fogo. Cada ano
Uma pequena preocupação, téc- o uso de regressões (e não de modelos morriam o equivalente ao ano anterior
nica, deriva do uso do CID 10, que ARIMA) para previsões com poucas mais mil trezentos e sessenta pessoas.
começou em 1996, o que reduziu observações.22 Com oito observações Os dados mais básicos já sugerem
drasticamente o tempo, e o número até e inclusive a promulgação do ED e o papel crucial que o ED desempenhou
de observações, porque nossos da- apenas dez depois, resultados robus- para interromper a escalada dos ho-
dos são anuais. Há dois pequenos tos são difíceis de obter. micídios no Brasil. Entre 1980 e 2003
desafios: um de compatibilizar as duas Por outro lado, ainda que as cor- (ano da sanção do ED), o número de
classificações, CID 9 e CID 10 e o outro, relações não signifiquem causalidade, homicídios por arma de fogo aumen-
difícil de mensurar, se refere à fidedig- muitas vezes sugerem problemas reais tou de 6.104, para 36.576, em 2003,
nidade dos dados do SUS, que não é – que acontecem – chamam a atenção um aumento médio de 8,36% a cada
uma constante no tempo. Os dados para eles e ilustram “fatos estilizados”. ano. Já em 2013 o número de homi-
têm melhorado. Já experimentamos O Gráfico 1 ilustra a correlação en- cídio chegou a 38.578, um aumento
com os dados retroagindo até 1979 tre a taxa de homicídio e suicídio por anual de 0,53% ao ano, no período
ou 1980, com resultados semelhan- arma de fogo por 100 mil habitantes; pós-estatuto.
tes. Esse gráfico também sugere um e uma proxy de difusão de armas de Ou seja, o crescimento médio anual
crescimento linear. fogo23. Verifica-se que desde 1980 essas de pessoas assassinadas por arma de
Finalmente, com um número tão duas curvas cresciam de forma regular, fogo antes do estatuto era mais de 15
vezes maior do que o observado após
o estatuto.
O Gráfico 4 é sugestivo. Combina
gráfico 3 o número total de óbitos por arma de
Taxa Média Anual de Crescimento das Mortes fogo entre 1996 e 2003 e a projeção
da sua tendência temporal linear, com
10
8,56 os dados efetivamente observados
entre 2004 e 2013, inclusive. Note
8
que a evolução desses óbitos, no pe-
6
ríodo anterior ao Estatuto também se
aproxima de uma linha reta, em que a
4 regressão de tendência assinala que o
poder explicativo dessa regressão é al-
2 tíssimo, com o R2 mostrando que 98%
0,53 da variância dos dados são explicados
0 pelo modelo.
DE 1996 A 2003 DE 2004 A 2013
Segundo extrapolações que nós
fizemos, se o crescimento das mortes

84 fogo na roupa
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

por armas de fogo (homicídios, suicí- 1996 e 2013).24 Ao subtrair o número rigorosas que demonstraram o papel
dios e acidentes) se desse na mesma de óbitos em cada ano, em relação ao extremamente relevante do ED.
velocidade que vinha tendo antes do número observado, concluímos que A escala do total de vidas salvas,
estatuto, mais 121 mil pessoas seriam 121 mil pessoas deixaram de ser mor- permite afirmar que o Estatuto foi
mortas por arma de fogo no Brasil, tas após o ED, caso a tendência linear uma das políticas públicas que mais
entre 2004 e 2013. O controle das ar- verificada antes do ED se perpetuasse. beneficiou o Brasil.
mas de fogo ocasionado pela sanção Essas duas análises não possuem Bons governos salvam vidas.25
do ED foi fundamental para poupar o rigor científico que nos permitiria
essas vidas. afirmar que foi somente o ED o res-
A regressão estimada foi: óbitos Glaucio Soares é professor do Instituto de Estu-
ponsável pela mudança da escalada dos Sociais e Políticos da Universidade do Rio de
= 2014,8*t +24166, onde t = 0, ..., 18, dos óbitos por armas de fogo que Janeiro (IESP-UERJ).
que referem-se aos anos entre 1996 soares.glaucio@gmail.com
assolava o país desde 1980, mas tra-
a 2013. Com base nessa regressão e zem de forma simples fatos estilizados Daniel Cerqueira é diretor de Estudos e Políti-
substituindo os valores, calculamos cas do Estado das Instituições e da Democracia
compatíveis com outras evidências do IPEA.
o número de óbitos tendencial (entre científicas metodologicamente mais daniel.cerqueira@ipea.gov.br

gráfico 4

o efeito do estatuto do desarmamento sobre


as mortes com armas de fogo

62.0000
60.0000
58.0000
56.0000
54.0000
52.0000
50.0000
48.0000
46.0000
44.0000
42.0000
40.0000
38.0000
36.0000
34.0000
32.0000
30.0000
28.0000
26.0000
24.0000
22.0000
20.0000
1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

mortes durante todo o período, incluindo depois do estatuto linear (mortes até o estatuto e tendência depois dele)

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 85


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

notas de rodapé

1. Entre elas o Viva Rio, o ISER, o Instituto 9. Um dos que recomendamos é uma contribui- 18. Measures of gun ownership levels for macro-
Sou da Paz. Uma das organizações mais im- ção da Escola de Saúde Pública da University of -level crime and violence research. Journal or
portantes nessa tarefa foi a Rede Desarma Sydney. Ver http://www.gunpolicy.org/ Research in Crime and Delinquency, 41, 3-36. Con-
Brasil – Segurança, Justiça e Paz, criada em vém mencionar que Gary Kleck, David J. Bordua,
março de 2005. 10. Parker, Sarah. 2011. “Balancing Act: Regula- Professor of Criminology na Florida State University,
tion of Civilian Firearm Possession.” Small Arms é citado frequentemente pelos defensores das
2. Hipotetizamos que essas diferenças dimi- Survey 2011: States of Security; Annex 9.1, pp. armas. É o autor de Point Blank: Guns and Violence
nuem com o desenvolvimento político do país. 38-47. Cambridge: Cambridge University Press. in America e de Targeting Guns: Firearms and Their
6 July. Annex 9.1: Overview of Owner Licensing Control (Social Institutions and Social Change.
3. A tese de Daniel Cerqueira, que recebeu os Criteria and Genuine Reasons for Owning a
dois mais importantes prêmios de economia do Firearm. 19. International correlations between gun ow-
Brasil (Haralambos Simeonidis da Associação nership and rates of homicide and suicide. CMAJ.
Nacional de Centros de Pós-Graduação em Eco- 11. Karp, Aaron. 2007. “Completing the Count: May 15, 1993; 148(10): 1721–1725.
nomia (ANPEC) e o prêmio BNDES): http://www. Civilian firearms - Annexe online.” Small Arms
bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/ Survey 2007: Guns and the City; Chapter 2 20. Firearms and suicides in US states. Justin
bndes_pt/Galerias/Arquivos/empresa/download/ (Annexe 4), p. 67 refers. Cambridge: Cambridge Thomas Briggs, Alexander Tabarrok. International
Concurso0212_33_premiobndes_Doutorado.pdf, University Press. 27 August. Review of Law and Economics, Volume 37, March
a tese de Gabriel Hartung: http://bibliotecadigital. 2014, Pages 180–188 . This study investigates the
fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/6616/ 12. UNODC. 2013. “Homicide in 207 Countries - relationship between firearm prevalence and
Tese%20de%20Doutorado%20-%20Gabriel%20 Japan.” Global Study on Homicide 2011: Trends, suicide in a sample of all US states over the years
Hartung.pdf?sequence=1 e a tese De Marcelo Context, Data; Statistical Annex (with online da- 2000–2009. Ver http://www.sciencedirect.com/
Justus: file:///C:/Users/r12062161/Downloads/ tasets). Vienna: United Nations Office on Drugs science/article/pii/S014481881300077X
Marcelo_Justus_dos_Santos.pdf and Crime. 26 June.
21. http://www.econ.puc-rio.br/uploads/adm/
4. “The Impact of Right to Carry Laws and 13. China. 1996. “Law on the Control of Fire- trabalhos/files/td607.pdf http://www.bndes.gov.
the NRC Report: The Latest Lessons for the arms.” Law of the People’s Republic of China br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/
Empirical Evaluation of Law and Policy”. Dispo- on the Control of Firearms; Article 1 (1996). Galerias/Arquivos/empresa/download/Concur-
nível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers. Beijing: President of the People’s Republic of so0212_33_premiobndes_Doutorado.pdf.
cfm?abstract_id=2443681 China. 1 October.
22. Ver, por exemplo, Small-sample forecasting
5. Philip J. Cook, Jens Ludwig, The Effects of Gun 14. Economicamente, a China, a segunda econo- regression or Arima models? Tilak Abeysinghe,
Prevalence on Burglary: Deterrence vs Induce- mia mundial, dificilmente poderia ser definida Uditha Balasooriya e Albert Tsui, dos Departamen-
ment: http://www.nber.org/papers/w8926 como comunista, ao lado de Cuba e da Coreia do tos de Economia e de Estatística e Probabilidade
Norte. É um arranjo institucional novo. Aplicada da National University of Singapore.
6. Que, nos Estados Unidos, afetam mais ho-
mens e mulheres negras do que brancos, e são 15. Em 1979 foram publicados os primeiros 23. A proxy aqui equivale à proporção entre
facilitados pela presença de arma de fogo em resultados nacionais; 1980 é usado com frequ- homicídios e suicídios por arma de fogo, em
casa. Ver Dugan, L., Nagin, D.S. & Rosenfeld, ência por ser ano censitário. relação ao total de eventos dessa natureza, por
R. (2003). Exposure reduction or retaliation? qualquer meio ou instrumento.
The effects of domestic violence resources on 16. Daniel Cerqueira & João Manoel Pinho de
intimate-partner homicide. Law & Society Re- Mello, 2013. “Evaluating a National Anti-Firearm 24. Começamos uma das análises em 1996
view, 37, 169-198. Law and Estimating the Causal Effect of Guns on porque o Brasil adota o sistema de classificação
Crime,” Textos para discussão 607, Department das mortes da OMS, que mudou do CID 9 para
7. Há mais de uma década Soares alertava of Economics PUC-Rio (Brazil). o CID 10 naquele ano. Talvez seja um excesso
sobre o perigo da arma em casa: SOARES, G. A. de prudência porque essas mudanças afetaram
D. Quem é que a sua arma vai matar? Correio 17. Marcelo Justus dos Santos e Ana Lúcia pouco os homicídios, os suicídios e as mortes
Braziliense, Brasília, p. 6 - 6, 25 jun. 2002. Kassouf, Avaliação de Impacto do Estatuto do acidentais por armas de fogo.
Desarmamento na Criminalidade: Uma aborda-
8. Killias, M.; Rindlisbacher, M. (2001). “Guns, gem de séries temporais aplicada à cidade de 25. Participaram nas pesquisas artesanais para
violent crime, and suicide in 21 countries”. Ca- São Paulo, em Economic Analysis of Law Review, este artigo Gilmar Alves, Bruna Felice, Barbara
nadian Journal of Criminology 43 (4): 429–448. V. 3, nº 2, p. 307-322, Jul-Dez, 2012. Lannes, Caio de Velasco e Letícia de Velasco.

86 fogo na roupa
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Inventário
José Almino
Cientista social, poeta e crítico literário

O andar cambaio era de um amigo que eu tinha.


O amarelo encardido era a cor da maleita.
A madrugada era fosca e enxaguada.
O sentimento era sempre aflito.
Havia ainda outro de andar cambaio.
A moura era torta por portas estreitas.
A natureza era morta e o amor infinito.
O receio era sempre hesitante.
E vagas são as trêmulas estrelas.

O autor é pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB).


almino@rb.gov.br

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 87


Alforria de

ç
ra as
Conceito de liberdade no Brasil (1770-1880)

Christian Edward Cyril Lynch


Jurista e cientista político

88 Pelourinho
E
nquadrando-se no âmbito do estudo da história estendido a esfera de livre uso dos conceitos políticos,
intelectual, o presente artigo apresenta algumas essa extensão se deu de modo limitado, constituindo uma
considerações sobre o conceito de liberdade no esfera pública mais restrita do que aquela existente nos
Brasil entre 1770 e 1870, a partir de quatro dos países centrais, que normalmente excluía quase todo o
sentidos consagrados no dicionário Bluteau de universo de trabalhadores manuais. É o que aqui justifica
1789. Eles dizem respeito, respectivamente, à Nação (liber- também que o período do Sattelzeit seja atrasado em vinte
dade entendida como independência nacional); à sociedade anos, passando a contemplar o período entre 1770 e 1870.
(liberdade civil); à esfera política (liberdade política) e, enfim,
à escravidão (ausência de liberdade civil e política). É sobre Liberdade como independência nacional
cada um desses quatro sentidos ou dimensões do conceito O primeiro sentido trata da compreensão da liberdade
de liberdade que o artigo se detém. A conclusão aponta como sinônimo de independência nacional e de capacidade
como o encaminhamento, pelo Estado, do problema da para mantê-la ou adquiri-la. Ela vinha prevista já no dicioná-
escravidão, ampliando a esfera da liberdade civil ao maior rio Bluteau de 1789: “O estado da nação, que não reconhece
número, se chocou com a percepção das elites escravistas superioridade a outra” (MORAIS, 1789). Como se percebe,
de que, diante do despotismo monárquico, eram vítimas de ela mantém vínculos com a linguagem do republicanismo
uma falta de liberdade política. Ou seja, a alforria dos negros clássico, opondo-se à ideia de escravidão e de cativeiro da
(a abolição pela monarquia) deveria ser sucedida da alforria comunidade política, subjugada por outra. Essa conotação
do branco (a abolição do poder pessoal do Imperador, pelo da liberdade nacional no âmbito da ordem internacional
federalismo, pelo parlamentarismo ou pela república). surge, por exemplo, em 1813 no jornal O Patriota, editado
No ambiente europeu e da Nova Inglaterra, o conceito por Manuel Ferreira de Araújo, no Rio de Janeiro, sede da
de liberdade agiu sobre sociedades que, apesar de hierár- monarquia absolutista portuguesa. De caráter acentuada-
quicas, eram marcadas por certa homogeneidade cultural mente governista, o artigo em questão alude à libertação
e étnica, fosse ela real ou imaginada. Essa homogeneidade da Península Ibérica dos “godos”, isto é, dos exércitos
era pouco visível no Brasil, onde a mestiçagem dos povos franceses. A liberdade, segundo o articulista, era uma força
ibéricos com povos autóctones e outros, trazidos de outros vinculada ao “patriotismo”. Ao contrário do que ele dizia em
continentes, como o africano, conferiram à sociedade uma suas manifestações públicas, “o déspota do continente”,
complexidade que criava novos componentes sobre as Napoleão Bonaparte, não pretendia “devolver a liberdade”
hierarquias preexistentes no universo europeu. Por isso, à Polônia e sim subjugá-la no pior “cativeiro”; do mesmo
a variável da escravidão negra não pode aqui ser deixada modo, o objetivo das coligações antibonapartistas e seus
de lado. Do mesmo modo, a conformação da sociedade “escravos” (leia-se: soldados) era o de restituir “a liberdade”
brasileira era bastante mais atrasada, por assim dizer, que à Europa. Se o Imperador da Áustria havia sido reduzido por
a europeia ocidental, na época em que elas vivenciaram Napoleão à condição de um “Rei escravo”, o Rei da Prússia
as transformações socioeconômicas no bojo da qual foi convidava seus vassalos a “sustentarem o nobre empenho
gestada a modernidade política conceitual. A impressão da liberdade da Europa” (KURY, 2007). Como se percebe,
que se tem é de que a passagem do Antigo Regime para nessa dimensão, o conceito de liberdade se aplica como
o governo constitucional e representativo liberal não veio sinônimo de autodeterminação das comunidades políticas
acompanhado daquelas mesmas mudanças que tinham no plano internacional, nada tendo a ver com o status de
curso em alguns países, como os Estados Unidos, a In- liberdade individual no interior da comunidade política. O
glaterra ou a França. Esse fato refletiu significativamente que se defende é a soberania nacional, pouco importando
em algumas daquelas características do processo de mo- se o governo deste país seja constitucional ou absoluto.
dernização dos conceitos políticos – em particular no de Nesta mesma seara, surge o tema da liberdade en-
democratização. Embora o advento do liberalismo tenha quanto capacidade do povo da América portuguesa para

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 89


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ser livre, no sentido de independente de Portugal. Nessa a tomar uma posição respeitável na brilhante linha dos
chave, a liberdade (independência) era entendida como o povos civilizados”. Desde que sua opinião pública atingisse
resultado natural do progresso das luzes, ou seja, da civi- determinado grau de esclarecimento, seria impossível que
lização. No período colonial, frequentemente se justifica o a Nação permanecesse sob o jugo da tirania ou dependente
governo metropolitano sobre a colônia pela inaptidão dos de outra nacionalidade; ela fatalmente haveria de escutar
colonos ao autogoverno. A falta de liberdade dos súditos é “a voz da liberdade e da independência”. Essa certeza não
essencial ao primado da ordem e da justiça, já que, maus elidia, porém, o receio que tinham os redatores do jornal
e ignorantes, os habitantes da terra tenderiam aos maus de que o reconhecimento internacional do novo país fosse
costumes e à anarquia. Ao aludir, por exemplo, à tentativa dificultado, na Europa, por aqueles que julgassem não ser
de habitantes da capitania de Goiás de questionar a auto- o Brasil ainda suficientemente adiantado para ser livre:
ridade do governador nomeado pela Coroa, o Marquês do “Nós somos no seu conceito uma nação atrasada, um
Lavradio, Vice-Rei do Brasil, recusava peremptoriamente povo imberbe, esquecido na ignorância das artes e das
a liberdade que aqueles “povos sumamente inquietos e ciências.” Incumbia, pois, aos brasileiros provar à Europa
turbulentos” se arrogavam “de se nomearem” governo que, sob o signo da monarquia constitucional, nossa inde-
próprio, “poder que só pertence ao Rei ou às pessoas a pendência não havia sido “feita com precipitação de um
quem ele o quer delegar”. A aversão ao trabalho era outra louco entusiasmo”, mas como resultado de um processo de
característica da população da terra que patenteava sua esclarecimento (DIMAS FILHO, 1987). A independência do
falta de aptidão à liberdade: “A preguiça destes habitantes Brasil teria sido a consequência natural de um processo de
é sumamente extraordinária”, escrevia Lavradio em 1770. amadurecimento de sua sociedade, que tendo progredido
Para o Vice-Rei, as gentes da terra não tinham “interesse em matéria de esclarecimento e civilização, tornara-se apta
que os anime, esmorecem com grande facilidade”. A con- à liberdade, isto é, ao autogoverno.
sequência era a “decadência e miséria em que se acham
estes povos” (LAVRADIO, 1978). A solução estava em que Liberdade civil
o governo metropolitano compelisse os livres ao trabalho, A segunda dimensão do conceito de liberdade que circu-
sempre, porém, com justiça, doçura e jeito. lava no Brasil do período se refere à liberdade como status

D
pessoal. No período, ela possui três diferentes acepções: a
epois da independência, a autonomia do novo antiga, ao Antigo Regime; a jacobina (democrática); e a “bem
Estado brasileiro haveria de ser justificada pe- entendida” ou “constitucional” (liberal). Na primeira acep-
los seus defensores, dentro do mesmo quadro ção, o dicionário distinguia entre, de um lado, a liberdade
explicativo: àquela altura, a sociedade colonial metafísica, entendida como “a faculdade que a alma tem
já teria se aperfeiçoado o suficiente para poder de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, como mais quer”,
se autogovernar e, por conseguinte, emancipar-se de Por- e, de outro, o sentido moderno da liberdade civil, descrita
tugal. Não se questionava, portanto, o postulado básico à maneira de Montesquieu: “a faculdade de poder fazer
de Lavradio, isto é, que devido à sua incapacidade para o impunemente, e sem ser responsável, tudo o que não é
autogoverno (temporária ou permanente), havia povos que proibido pelas leis, sem haver quem arbitrariamente tome
deveriam ser governados por outros. Argumentava-se, sim, conhecimento disso” (BLUTEAU, 1789). Essa tentativa de
que o Brasil amadurecera o bastante para conseguir “a sua distinguir entre o conceito metafísico e o civil da liberdade já
liberdade”. Tomando a teoria da perfectibilidade humana de havia sido empreendida pelo mineiro Tomás Antônio Gon-
Benjamin Constant como base para estabelecer analogias zaga em seu Tratado do Direito Natural (1772). A “liberdade
entre os indivíduos jovens e as nações infantes, o Especta- natural” era o “livre arbítrio”, isto é, a “liberdade da alma”,
dor Brasileiro declarava em 1824 que força nenhuma era a “liberdade moral”. No paradisíaco “estado de natureza”,
capaz de “impedir a marcha de uma Nação, que se decidiu o homem empregava o seu livre arbítrio adequadamente,

90 Pelourinho
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

pois nele a sua “consciência” obedecia às “leis naturais”. so do homem com igual paralelo de uns para os outros,
Sua “liberdade moral”, interna, encontrava assim corres- finalmente a liberdade é o repouso e bem-aventurança no
pondência na “liberdade externa”. Entretanto, depois do mundo”. O exemplo deles era “a república francesa, sobre
pecado original e da subsequente expulsão do “estado de a qual todas as nações do mundo” tinham “os olhos fixos”.
natureza”, tendo perdido sua inocência, o homem esquece- Vitoriosa a revolução, seriam todos “iguais, não haverá
ra a “lei natural”, passando a empregar o seu livre arbítrio diferença; só haverá liberdade, igualdade e fraternidade”
em satisfazer “seus apetites torpes e depravadas paixões”. (apud JANCSO, 1996).
Daí que Deus aprovava a criação das “sociedades humanas”, Intolerável para os defensores da sociedade estamental
nas quais o homem mau ou ignorante seria obrigado pelos e escravista do Antigo Regime nos trópicos, essa concepção
governantes a praticarem as ações justas prescritas pela lei exaltada ou jacobina da liberdade também não agradava
natural, pelo intermédio da lei civil. O papel da lei civil era de todo aos liberais da Revolução Constitucionalista de
assim a de cercear a “liberdade física” incompatível com a 1820, que contaminou o Brasil no início do ano seguinte.
lei natural. Como era a própria lei natural Segundo o “catecismo constitucional” do
que podava a “liberdade externa” dos sú- periódico baiano A Idade d’Ouro no Brasil,
ditos, eles estavam obrigados a obedecer o povo francês fizera um grande abuso
aos seus monarcas, incumbidos de tutelá- da palavra liberdade. Diante das “várias
-los pela lei civil para manter o primado da significações” do conceito, o redator cha-
justiça de Deus na terra (GONZAGA, 2004). mava a atenção para o significado “bem
Não tardou, porém, a conotação revo- entendido” da liberdade: aquela “que se
lucionária ou jacobina de liberdade como goza debaixo dos governos sábios e justos,
status pessoal, entendida como oposição nos quais conta cada um com a segurança
violenta ao governo injusto e à aspiração de sua pessoa e bens, sem receio que a
igualitária de participação nos negócios pú- malícia do seu vizinho o faça suspeito ao
blicos. Por ocasião da repressão à chamada Estado”. Ao contrário da “liberdade sel-
conjuração carioca de 1794 (e que, na verda- vagem”, que era a jacobina, a “liberdade
de, não passara de tertúlias acadêmicas), o política” era regulada pela lei para que se
Conde de Resende, Vice-Rei do Brasil, acusou os membros pudesse dispor dos nossos interesses, sem prejudicar o
da Sociedade Literária do Rio de Janeiro de sustentarem que Estado ou bem-estar dos demais cidadãos. “Nos governos
“os reis não são necessários; que os homens são livres e constitucionais, ninguém é livre para o mal: a Constituição
podem em todo o tempo reclamar a sua liberdade; que as corta o abuso dos tribunais; cada indivíduo pode gritar
leis por que se governa a nação francesa são justas; e que pela lei em seu abono” (apud SILVA, 1978). Esse sentido
o mesmo que aquela nação praticou se devia praticar neste “bem entendido” do conceito de liberdade foi central no
continente; que a Sagrada Escritura, assim como dá poder desenvolvimento do regime monárquico brasileiro. Assim,
aos reis para castigar os vassalos, o dá aos vassalos para por exemplo, na década de 1830, os liberais moderados
castigar os reis” (apud SILVA, 1999). Esta concepção iguali- então no poder repetiriam a cantilena da liberdade bem
tária da liberdade reaparecia quatro anos depois, no aviso entendida por seus principais órgãos da imprensa, como
ao povo baiano lançado pelos sediciosos durante a Revolta O Novo Farol Paulistano, de Costa Carvalho, futuro Mar-
dos Sapateiros. Inseparável da igualdade e da fraternidade, quês de Monte Alegre: “A moderação é a nossa divisa. Nas
a liberdade era compreendida a partir de uma moldura circunstâncias atuais, nenhuma virtude é tão necessária:
republicana que pregava a derrubada do “rei tirano”. Para aborrecemos tudo quanto é excesso; os excessos são
eles, a liberdade consistia “no estado feliz, no estado livre incompatíveis com a liberdade e com a prosperidade da
de abatimento: a liberdade é a doçura da vida, o descan- pátria” (apud CONTIER, 1979). Em 1858, o dicionário Morais

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 91


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

recolheu essa concepção de liberdade: “Em política e em medida em que deixavam os cidadãos livres para operarem
moral, não há liberdade sem dependência; e por esta ra- conforme seus interesses.
zão a dependência, que põe limites à liberdade, fixa a sua O mais notável arauto dessa concepção “negativa” de
extensão e assegura o gozo dela” (MORAIS, 1958). liberdade na década de 1860 foi o deputado alagoano
Tavares Bastos. Segundo o autor das Cartas do Solitário,
Liberdade política no contexto partidário “para que um povo se aperfeiçoe e aumente em virtudes,
O terceiro sentido ou dimensão geral que apresentava é mister que seja livre. É a liberdade que excita o sentimen-
o conceito de liberdade no Brasil no período em questão to da responsabilidade, o culto do dever, o patriotismo, a
concerne ao lugar ou o papel da “liberdade bem entendida” paixão do progresso”. Em vez de condenar o conflito como
no debate entre os dois partidos ou facções que disputa- manifestação do particularismo, o governo imperial deveria
vam o poder. valorizar “o espírito livre da empresa particular” (BASTOS,
À esquerda estava o autodenominado “partido 1976), desregulando a economia, promovendo a concorrên-
brasileiro”, ou “patriota”, depois simplesmente “liberal”, cia entre os produtores nacionais e estrangeiros, cassando
fosse moderado ou exaltado. Esse grupo era majoritaria- monopólios, privilégios e protecionismos alfandegários.
mente vinculado à grande propriedade rural e acompanha- O Estado deveria se limitar ao papel de “representante e,
va de perto a matriz ideológica e institucional anglo-saxã, por assim dizer, o comissário de uma nacionalidade, cujas
para quem a liberdade dos cidadãos era garantida pela funções se limitam a manter a ordem e distribuir a justiça”
não interferência do Estado na esfera privada. Para além (BASTOS, 1975). Toda a orientação adversária pressupunha
da garantia da ordem pública, no campo da polícia e da um regime de tutela, que para Tavares Bastos era intole-
justiça, o Estado somente intervinha de modo legítimo rável: “Negam ao país aptidão para governar-se por si, e o
quando se dispunha a dinamizar a economia agrária, o que condenam por isso à tutela do governo. É pretender que
se daria pelo investimento em estradas que facilitassem adquiramos as qualidades e virtudes cívicas, que certa-
o escoamento da produção, barateamento do crédito ao mente nos faltam, sob a ação de um regime de educação
produtor e garantia de mão de obra barata à grande lavou- política que justamente gera e perpetua os vícios opostos”
ra. O resto era despotismo. Já em 1821 os jornais ligados (BASTOS, 1997).
à lavoura, como A Idade do Ouro no Brasil, entendiam que De fato, a ala direita do espectro político, dita realista,
o Estado deveria deixar de perturbar os fazendeiros, que depois conservadora, sempre sustentou a impossibilidade
na verdade avançavam sobre as terras da Coroa como se de criar e manter o Império sem garantias de ordem e de
de ninguém fosse, “com chicanas sobre a demarcação de autoridade que compensassem o potencial disruptivo da
suas terras”. O personagem-símbolo do “sistema da Corte” liberdade; por isso reforçavam, ao contrário, o papel do
era, naturalmente, o funcionário público, que se intrometia Imperador e da centralização política. De uma forma ge-
nos negócios das fazendas, regulando a economia e as re- ral, essa orientação era tributária do despotismo ilustrado
lações sociais, embaralhando as relações e as hierarquias. e pressupunha a tese de que a sociedade brasileira era
Para o redator do periódico baiano, no despotismo, apenas ainda insubsistente, frágil. Era, portanto, a necessidade de
os funcionários (os “mandões”) gozavam de liberdade. Ao reforçá-la e protegê-la da desagregação que impunha o
“povo” (os fazendeiros), restava “gemer e calar”. Era por fortalecimento da autoridade do Estado. Assim, por exem-
esse motivo que “o povo quer a Constituição e os mandões plo, embora deflagrada em nome da liberdade, a revolta
a detestam como peste” (apud SILVA, 1978). Em matéria de pernambucana de 1817 era vista pelos defensores da Coroa
organização do Estado nacional, os liberais tendiam à apo- como um artifício por meio do qual, livres da tutela do mo-
logia do governo parlamentar e da descentralização, que narca, os grandes senhores rurais melhor poderiam oprimir
chegava não raro à defesa do federalismo. Para eles, estes o povo miúdo: “A liberdade é capaz de tudo. Os soldados
eram desenhos institucionais que garantiam a liberdade na fazem roubos de noite e dia, e os que governam esta cáfila

92 Pelourinho
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de ladrões andam com o olho em quem tem alguma pata- empregar todos os meios para salvar o país do espírito
ca. Não se vê aqui senão fidalgos e valentões que querem revolucionário, porque este produz a anarquia e a anarquia
esmagar tudo” (apud SILVA, 1978). O já referido Espectador destrói, mata a liberdade, a qual somente pode prosperar
Brasileiro sustentava em 1821 que, para ser verdadeira, a com a ordem” (apud SOARES DE SOUSA, 1944). Frente à
liberdade deveria estar vinculada à centralização monárqui- realidade de abandono e isolamento das populações do
ca: “A liberdade procura um centro para não se confundir interior, dominadas de seus engenhos pelos senhores
com a licença; a liberdade quer, em todos, uniformidade de rurais, equiparados aos feudais, a tarefa integradora e
ideias e de sentimentos” (DIMAS FILHO, 1987). Meio século reguladora do Estado estava apenas no início. Era esta a
depois, o principal chefe do partido, o Visconde de Itaboraí, missão dos conservadores: “A grande missão liberal do
repetiria no Senado a concepção de liberdade defendida Partido Conservador tem sido a de combater e derrocar
pelos conservadores. A liberdade bem entendida era a esses castelos, se não a bem da liberdade (dominação de
liberdade legítima, a liberdade constitucional: poucos), a bem da liberdade de muitos” (URUGUAI, 1865).

“A liberdade que é licença e desordem, o Partido Conserva- A falta de liberdade: a escravidão


dor repele e detesta; a liberdade que é condição suprema e O quarto sentido do conceito de liberdade diz respeito
indeclinável da dignidade e da vida dos povos livres, o Partido ao problema da construção da Nação, tocando no sensível
Conservador zela e a quer. Se a liberdade é pretexto para problema da escravidão disseminada no país a partir do
oprimir direitos, ela é uma ficção detestável; se a liberdade é tráfico africano. O Dicionário Bluteau de 1789 já o previa ao
o símbolo da anarquia, traduzida pela igualdade da servidão, dar, como equivalente de liberdade, a “alforria, que conse-
nós, os conservadores, a não queremos. Os princípios de or- gue ou se dá ao cativo” (BLUTEAU, 1789). Em 1844, surgiu
dem, que têm sido a crença e a prática do nosso partido – não tirado da realidade um exemplo desse sentido do conceito
os abandonemos; não, seja-nos, com eles, cara a liberdade no dicionário Morais: “Dar as liberdades: aos escravos que
constitucional” (apud NABUCO, 1997). vão do Brasil, etc. a lei manda que ao entrar no Reino fiquem
forros” (MORAIS, 1831). No verbete “negro”, a versão de
Percebe-se que, nessa concepção conservadora, o Es- 1813 do dicionário Morais estabelecia a equivalência entre
tado nacional não surge como o destruidor da liberdade, homem negro e escravo: “Cor negra: v.g. vestido de negro.
como se esta preexistisse a ele num estado de natureza. Homem preto: v.g. comprei um negro” (MORAIS, 1813).

N
Muito pelo contrário, o Estado era considerado agente
civilizador em meio bárbaro; introdutor e garante de uma a América portuguesa, predominavam dois
liberdade que deveria beneficiar não apenas os grandes sentidos no conceito de escravidão: o político e
proprietários, mas também o povo miúdo, que eles opri- o civil. No sentido político, a escravidão era um
miam de modo feudal em suas áreas de influência. Essa termo empregado pelas elites para designar a
concepção de liberdade que via com bons olhos a expan- falta de liberdade da colônia em face da metró-
são do Estado e o papel do “funcionário” teve eminente pole e, depois da independência, da classe proprietária em
representante na pessoa do Visconde de Uruguai, prócer face do Estado, em decorrência da centralização política ou
conservador. Segundo Uruguai, não era possível estabele- do poder pessoal do Imperador. No sentido civil, porém, a
cer a liberdade sem a prévia estabilização da ordem pelo escravidão aludia à condição dos escravos, ou seja, a toda
Estado. Discursando em 1842 na Câmara contra os liberais uma parcela da população que estava à margem da cida-
revoltados em Minas Gerais e em São Paulo, ele sustentava dania. As duas esferas – a política e a civil - simplesmente
que, sem a ordem garantida pelo Estado, a liberdade não não se misturavam. Era rotineiro, assim, que um jornal que
passava de anarquia. “Eu amo sim, certamente, a liberda- atacasse o “despotismo” do governo absoluto, ou o estado
de; devo-lhe muito. É por isso que entendo que se devem de “escravidão” a que as Cortes portuguesas queriam re-

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 93


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

duzir o Brasil, ou a interferência do Imperador na política, os obrigue a prestarem o serviço da lavoura” (CONGRESSO
apresentasse nas páginas seguintes, em seus classificados, AGRÍCOLA, 1988). No entanto, o que para alguns era um
anúncios de compra e venda de “escravos” que servissem problema de caráter da população, para outros resulta-
os leitores como cozinheiros, pajens, mordomos, cocheiros, va da própria disseminação da escravidão como regime
carroceiros etc. Senador liberal de tendência federalista que de trabalho nacional. Num país em que trabalhador era
chegou à condição de Regente do Império em 1835, Diogo sinônimo de escravo, o exercício ostensivo do ócio ou da
Antônio Feijó explicava que o “sentimento de igualdade preguiça equivalia a uma manifestação de liberdade! Já em
profundamente arraigado no coração dos brasileiros” era 1800 o comerciante Vilhena escrevia da Bahia que a recusa
tributário da escravidão; isto é, que havia sido sua condição ao trabalho era ainda mais acentuada no caso dos escravos
de senhores de escravos que incutira na nação brasileira alforriados. “Querendo mostrar aos cativos a diferença
um “caráter já de independência e soberania que o obser- que vai da liberdade ao cativeiro”, os forros entregavam-se
vador descobre no homem livre, seja qual for o seu estado, “aos vícios que a ociosidade lhes sugere, e como lhes falta
profissão ou fortuna”. Quando o “cidadão”, isto é, o senhor quem os corrija e os admoeste, vem de comum a morrer
de escravos, continuava Feijó, percebia “desprezo ou ultraje bêbados ou nas enxovias.” A solução de Vilhena, porém,
da parte de um rico ou poderoso”, nele se era a mesma que havia sido oferecida trinta
desenvolvia “imediatamente o sentimento anos antes por Lavradio e que seria suge-
de igualdade; e se ele não profere, concebe rida oitenta anos depois pelos fazendeiros
ao menos no momento este grande argu- de café. Também os livres do Brasil, “onde
mento: Não sou seu escravo” (FEIJÓ, 1999). de tal forma campeia o ócio”, deveriam ser
Ou seja, a virtude pública da liberdade e obrigados “por lei a trabalhar”. Um governo
da cidadania para as camadas superiores cristão deveria impedi-los de se deixarem
da sociedade, contra as pretensões de arruinar-se, o que poderia ser feito caso
regulação, tutela ou ascendência do Esta- os libertos ficassem “responsáveis sempre
do, surgiria da opressão por eles exercida a um tutor ou diretor que coativamente
como senhores, no âmbito privado, contra os desviasse do mal e os dirigisse para o
a camada trabalhadora escravizada. bem, e não deixá-los entregues à sua brutal
É certo que, aos olhos das elites locais, o vontade” (VILHENA, 1921).
problema da escravidão negra se justificava Entendido como ausência de liberdade
de uma forma mais abrangente, porque todos os que não civil da parte mais importante da população economicamen-
eram brancos e pertencentes aos estratos superiores te ativa, o escravismo impedia a expansão dos anseios de
da sociedade eram geralmente vistos como indolentes e liberdade política da própria elite rural ou comerciante em
indispostos ao trabalho e por isso potencialmente passíveis face do governo colonial ou metropolitano. Qualquer con-
de serem a ele obrigados mediante coerção. Essa visão, que cepção mais radical de liberdade poderia incitar os escravos
em 1770 era a do Marquês do Lavradio, continua presente a se rebelarem. “É raro o escravo que não apetece ver morto
na visão de mundo dos grandes proprietários cerca de o senhor, e tardando a alguns o complemento desse ímpio
um século depois. Durante o Congresso Agrícola de 1878, desejo, aproveitam toda a boa ocasião que se lhes oferece,
sequiosos de mão de obra barata, numerosos cafeiculto- matando os senhores, já a cacetadas, já a golpes de machado,
res sustentavam que era dever do governo “acabar com já a facadas” (VILHENA, 1921). Daí a moderação por que os
a vadiação. Nos povoados do interior, em cada porta de insatisfeitos com o status quo político deveriam se manifes-
venda, encontram-se quatro, cinco, seis e mais libertos tar. Em 1817, os rebelados pernambucanos que tomaram o
ou emancipados, que não querem trabalhar. Pois bem, o governo da província contra a “opressão” política e fiscal da
governo promova uma medida correcional ou policial, que monarquia absoluta rapidamente desmentiram os boatos

94 Pelourinho
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de que libertariam os escravos: a abolição do cativeiro só “Alegou-se muitas vezes que a aprovação do projeto era
poderia ser efetuada num futuro distante, de modo lento e uma subserviência à vontade imperial e que, portanto, à
regular (MELLO, 2004). Durante a Revolução de 1821, quem Nação não cabia a iniciativa da ideia! Mas ainda que assim
manifestava seus temores era Joaquim Carneiro de Campos, fosse, o que pretendiam os impugnadores com tão tribunícia
burocrata da Coroa, futuro Marquês de Caravelas e autor apreciação? Deter o carro civilizador, para não parecer que
da Constituição de 1824. Carneiro fazia ver a um colega “o se acompanhara o imperante? Não desenvolver o princípio
quanto é heterogênea a povoação deste país, composta pela da liberdade, continuando a conduzi-la apenas em estátua
maior parte de escravos, inimigos natos, com toda a razão e sobre os ombros dos escravos, para não dizer-se que César
justiça (...), dos homens brancos”. Embora favorável ao go- vivificara essa mesma estátua, imprimindo-lhe o movimento?
verno constitucional e representativo, ele temia que o novo É, em verdade, um dos maiores contrassensos, reservado para
regime político permitisse que “demagogos” incitassem pelo estes tempos, perpetuar a escravidão para atacar o cesarismo”
ódio os escravos à desobediência. Carneiro indagava: o que (RIO BRANCO, 1971).

O
aconteceria “logo que qualquer dos partidos os convoque,
acenando-lhes com a liberdade?”. A resposta estava “na ilha engenhoso argumento de Rio Branco, que pri-
de São Domingos”. A referência à antiga colônia francesa, vilegiava a dimensão civilizadora do projeto em
cujos escravos haviam se rebelado e massacrado a antiga detrimento da suposta ilegitimidade política de
elite colonial, falava por si mesma (RESENDE, 1864). sua iniciativa, não foi capaz de evitar, todavia,
o consequente desprestígio da monarquia em
Conclusão face da elite escravista, que começou a encarar a possibili-
É interessante perceber como a dimensão política do dade de livrar-se da tutela da monarquia, em nome de sua
conceito de liberdade, tal como vista pelos partidos políticos, liberdade política. Como diziam então, alforriado o negro,
entrecruzava com aquela de cunho civil, decorrente da difusa era hora de alforriar o branco. O liberal Sousa Carvalho pôs
escravidão negra no país. Embora a perspectiva anglo-saxã então o dedo na ferida: “Tem-se falado em libertar os pre-
dos liberais devesse, em teoria, propendê-los a encaminhar a tos (...). No Brasil, não falta somente forrar os negros; falta
extinção da escravatura como regime de trabalho, foram os também emancipar os brancos. O que é vergonhoso é o
conservadores quem tiveram condições práticas de enfrentar absolutismo do governo, a violência da autoridade, a inércia
o problema. Diante da pressão abolicionista da Coroa, os e a inépcia da administração” (Carvalho, 1870). O senador
liberais paralisavam diante daquilo que lhes parecia um liberal Zacarias de Góis e Vasconcelos caminhava pela mes-
despotismo contra cidadãos que gozavam legitimamente do ma senda: “Extinga-se a escravidão dos negros, e um dia
seu direito de propriedade. Já a matriz despótico-ilustrada virá também a liberdade dos cidadãos ora oprimidos” (In:
de pelo menos uma ala dos conservadores lhes permitia, em Rodrigues, 1975). Contra a ampliação da liberdade civil pela
nome dos interesses ou da razão de Estado, colocarem-se emancipação dos escravos, os defensores do establishment
eventualmente acima dos interesses da sociedade escravista. escravista passaram, portanto, a propor, em nome de sua
Em 1871, o dilema se colocou claramente por ocasião da liberdade política, medidas que liquidassem o poder pessoal
passagem da Lei do Ventre Livre, patrocinada então pelo do Imperador, como o federalismo e a república.
gabinete conservador do Visconde do Rio Branco, acusado
O autor é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Univer-
pelos liberais e pelos conservadores dissidentes de ser um
sidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ).
instrumento do despotismo da Coroa: clynch@iesp.uerj.br

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 95


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

96 alzheimer
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NTO
ECIME RICO E AS
O CONH HISTÓ

Ú
ASTCIAS
EM
M RIAÓ DA

hlHiisn g dor
We toria
Arno

O
conhecimento histó- qualquer outra, sem admitir a antiga
rico é aqui admitido distinção neokantiana entre ciências
como um dos ramos nomotéticas e ciências ideográficas, ou
das ciências sociais, se é um tipo de conhecimento do ramo
dotado de procedimentos teórico- denominado ciências humanas ou do
-metodológicos derivados de uma espírito. Numa vertente, o problema
racionalidade crítica e submetida a da história estaria em sua episteme,
certas regras, num campo cognitivo na outra, em sua ontologicidade. A
delimitado. A premissa desdobra-se distinção metodológica, por sua vez,
necessariamente em duas questões, leva à discussão do melhor caminho
uma epistemológica e outra metodo- para a reconstrução de nosso objeto,
lógica. Naquela, a questão consiste em se o analítico, se o hermenêutico, se
saber se a história é uma ciência como o semiótico.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 97


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Provisoriamente, e para os efeitos possível em determinado momento construção do imaginário social, gi-
desta análise, coloquemos em suspen- do desenvolvimento daquele campo1. rando em torno à afirmação de uma
so os desdobramentos epistemológi- Pelo exposto, uma combinação ad identidade grupal – seja ela nacional,
cos e metodológicos e nos fixemos na hoc de categorias que se enraízam em regional, de classe ou de partido.
proposição mais geral. Baseados nela Popper, Weber e Kuhn e tangenciam O problema que estudamos consi-
podemos admitir que a ciência históri- as de Veyne e Bourdieu2. dera as relações entre conhecimento
ca visa produzir um conhecimento que Quanto à questão da memória, histórico e astúcias da memória e flui
seja correto, isto é, isento de erros em- ela é aqui abordada no recorte da do cruzamento, no campo da histo-
píricos e lógicos, contrastável, porque memória social e entendida como um riografia, dessas duas vertentes, a da
as diferentes abordagens teórico-me- tema de estudos interdisciplinares, na história-conhecimento e a da memória
todológicas podem ser comparadas e tradição que se origina em Halbwachs3 social. Assim, procurar identificar algu-
seus resultados avaliados criticamente, e se ramifica por diferentes caminhos mas das estratégias da memória social
e verdadeiro, na medida em que pos- em obras como as de Yates, Namer presentes no próprio conhecimento
sa atingir o grau de verossimilhança e Hardtwig. Seu objeto principal é a histórico, sob o ângulo das astúcias da

ncia
ter ferê e
A in obr
e mó ria s imento
da m nhec
o co ela a
rev er
is tó rico o do dev o
h duçã itóri
intro r no terr
se
ue é
ilo q ente
daqu efetivam

98 alzheimer
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

memória, pode contribuir para torná- mento, para possuir credibilidade, de- Assim, quer na versão dos publi-
-lo mais crítico e menos suscetível a veria antes de qualquer engajamento, cistas, quer na dos ideólogos, ter-se-ia
simplificações ideológicas. “ser ciência”4. Firmou, assim, a posição a afirmação consciente de uma tese
E o que é uma astúcia da memória? do historiador que rejeita a adesão reveladora de determinado projeto so-
Ao utilizar tal expressão, emprestada imediata a um projeto metacientífico cial, fosse ele liberal, tradicionalista, ja-
à filosofia, nos referimos à “astúcia qualquer. cobino ou socialista. Todavia, a mesma
da razão” hegeliana, ou seja, a pos- A terminologia do século XIX de situação poderia ocorrer inconsciente-
sibilidade de a razão enganar-se a si certa forma equacionou o problema mente, ou pelo menos implicitamente,
própria, armadilha sofista somente quando distinguiu entre publicistas e quando o historiador, acreditando
neutralizável, para Hegel, pela rigoro- especialistas. No Dictionnaire général estar fazendo uma história objetiva,
sa aplicação do método dialético que de la politique, dirigido por Maurice efetivamente endossava um ponto de
permitisse a permanente “atualiza- Bock e publicado em 1864, o publicista vista ideológico qualquer, alçando suas
ção” ou crítica da consciência sobre si foi definido como sendo “um escritor conclusões ao patamar das “verdades”
mesma. É a tarefa nobre do espírito, dos tempos novos, um homem que, científicas. Isso mesmo, apesar de seus
associada por Goethe e Hegel a Ver- sem ser exclusivamente um historia- esforços, ocorreu com Ranke, a propó-
nunft, passo adiante do pensamento dor ou um filósofo, é frequentemente sito da unidade alemã e das relações
em relação ao conceito mais simples um e outro, que mistura a filosofia, a com o papado, não obstante ser ainda
de Verstand, este passível de um en- literatura e história, reunindo sob uma válida a maior parte do juízo de Lord
volvimento “astucioso” e enganador forma surpreendente e rápida todos Acton, reconhecendo-lhe o mérito da
da própria razão. os elementos da questão à medida isenção, se comparado a outros maîtres
Procuraremos identificar, no for- que eles se sucedem, condensando à penser da história das gerações do
mato de proposições, algumas das às vezes em poucas páginas a vida de historismo7. Ou, à época do cientifi-
principais estratégias de que a me- uma época ... [o publicista] precisa ter cismo, como Monod, cujo discurso de
mória pode valer-se para interferir no princípios e ideias ... [e] tem uma gran- cientificidade na Revue Historique mal
conhecimento histórico, modificando- de afinidade com o homem de estado encobria o espírito de revanche pour
-o ou mesmo o substituindo como ... o que inclui um certo savoir-faire Sedan e a defesa do modelo positivista-
“verdade” instituída. prático que se exerce menos numa -dantonista para a organização política
vida consagrada ao estudo que numa da III República francesa8.
Pretender ser conhecimento carreira ativa e nas relações múltiplas A interferência da memória sobre
histórico, como forma de adquirir com os homens e as coisas”5. o conhecimento histórico revela a
credibilidade científica Esta definição não só distingue as introdução do dever ser no território
A historiografia dos séculos XIX e diferentes posições como também dá daquilo que – e devemos dizê-lo sem
XX possui incontáveis exemplos de ao publicista uma versão positiva. Ao nenhuma ilusão positivista – efetiva-
como, sob o manto da ciência e no contrário, se considerarmos o conceito mente é. Essa interferência, que se faz
lastro do seu prestígio, buscou-se também oitocentista de “ideólogo”, com o óbvio intuito de fundamentar o
afirmar os interesses ideológicos da conforme aplicado a Destut du Tracy que se acredita dever ser na credibilida-
memória social. Quando Ranke con- e seus seguidores, a versão será ne- de do que é já havia sido enfrentada,
surou em Gervinus a preocupação gativa, aproximando-se do sentido num contexto intelectual tão diverso
com a imediata aplicação da história, atual que Joutard utiliza, por exemplo, do nosso, por Aristóteles, quando
colocando-a a serviço de uma causa, para sublinhar as diferenças entre a diferenciou a poesia da história. Sem
usou o argumento de que o conheci- memória e a história6. desmerecer aquela, antes dando-lhe

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 99


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

um status superior ao da história, diz Hoje sabemos que Ranke é mais Existem “fatos” incontroversos
ele na Poética que “a poesia é mais rankeano ao afirmar que o historiador que embasam nossas teses: logo,
filosófica e possui um caráter mais possuía apenas um ponto de vista é a história que prova
elevado que a história; pois a poesia parcial, ao contrário do de Deus, que A memória social ampara-se em
narra sobretudo o geral e a historia era onisciente, do que quando dissera certezas; as dúvidas e questões em
o particular ... a história expõe o que reproduzir os acontecimentos wie es aberto da ciência soam-lhe estranhas e
é, a poesia o que deve ser”9. Mutatis eigentlich gewesen war – a aceitarmos frequentemente perigosas, para seus
mutandis, atitude semelhante à dis- a interpretação de Marc Bloch, mero projetos de identidade e coesão gru-
tinção oitocentista entre publicistas e conselho de probidade intelectual e pal. Assim, quando as teses tornam-se
especialistas, o que demonstra tanto não afirmativa de pretensão científica. comprovadas por “fatos” chega-se à
a recorrência do problema quanto sua Contudo, muitos de seus seguidores verdade histórica. “É a história que
dupla face, positiva e negativa. dentro e fora da Alemanha, ou as prova...”, diz muitas vezes o homem de
gerações cientificistas que o com- cultura geral, fixando, pelo senso co-
Identificar a interpretação do bateram, associaram estreitamente mum, uma verdade definitiva, quando
historiador com a razão e esta com suas próprias conclusões à “realida- o que se provou foi apenas um sofisma
a realidade de”, tornando-as um “real”, pétreo e bem estruturado.
A identidade estabelecida por He- irreversível11. Existem variantes, mais ou menos
gel entre o racional e o real, cume da E quantos historiadores não orien- eruditas, dessa estratégia da memória.
filosofia idealista e aparentemente, à taram, hoje o sabemos pelo desen- O “tribunal da história”, por exem-
época em que foi formulada, sancio- volvimento dos diferentes campos plo. Os historiadores do historismo
nada empiricamente no mundo físico historiográficos, suas conclusões sentiam-se comumente na pele de
pela epistemologia newtoniana con- de modo apriorístico, deliberada ou juízes, ouvindo as partes, produzindo
forme já fora afirmado antes dele por inconscientemente, para afirmar um as provas e proferindo as sentenças.
Diderot e Kant, fez com que o “nobre ponto de vista doutrinário de qual- Essa concepção judicial da escrita da
sonho” da objetividade cientifica (e quer natureza, amparando-o numa história nós a encontramos, por exem-
histórica) aspirasse legitimamente a descrição supostamente neutra e plo, na historiografia brasileira na obra
uma concretização. inquestionável do real? Quantas ele- de Varnhagen12.
Esse “nobre sonho” 10 não tinha gantes construções lógicas, com base A historiografia não seria nada mais,
muitas vezes a pureza das vestais. empírica meramente impressionista, nessa concepção, do que o agregado de
Revelava antes a projeção de um foram elaboradas, para provar o que sentenças dos historiadores, definindo
desejo, o de compatibilizar os resul- fora definido de antemão? E quantos os “fatos incontroversos” devidamente
tados da investigação científica me- desmentidos, brotados dos arquivos comprovados. Esquecia-se que en-
todologicamente orientada com uma ou de modos diferentes de indagar quanto os juízes, julgando personagens
“reconstituição” integral da realidade a realidade, foram soberbamente coevas, possuíam referentes como as
no espírito do observador. Essa pre- rejeitados com a atitude de D. Quixo- normas de diferente natureza, o his-
ocupação, de todo legítima de acordo te: peor para los hechos? A memória toriador somente dispunha de nada
com os pressupostos da filosofia ide- social, afinal, revela-se muitas vezes mais que documentos bem ou mal
alista como tinham sido lançados no mais congruente e racional, em nosso estabelecidos, modelos aproximativos
século XVII, dava a alguns historiadores espírito, do que esta exaustiva busca e procedimentos hermenêuticos.
a “certeza” de que reproduziam o real relativista da alteridade que é a marca Quando a ideia historista de um
como ele efetivamente era. do conhecimento histórico. tribunal da história foi substituída

100 alzheimer
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

pela concepção cientificista da lei, os explicação histórica para aplicação são praticadas independentemente
resultados não foram diversos. “Esta- em outros grandes projetos de en- dos resultados que delas podem ad-
belecer os fatos para chegar às leis”, genharia social, sempre no sentido vir. Em outras palavras, decorrem de
diziam Langlois e Seignobos em seu do “progresso da humanidade”, fosse puros axiomas éticos sem que sejam
manual; “não sou eu quem fala, é a pela direita positivista ou spenceriana consideradas suas consequências prá-
história que fala por mim”, dizia Fustel ou pela esquerda jacobina, socialista ticas. Transposta do plano individual
de Coulanges; pesquisar os fatos para ou marxista. para o coletivo, identifica-se com uma
chegar a “algumas leis basilares da finalidade de coesão social, que deve
história brasileira”, dizia entre nós o A ética da convicção absorve e ser alcançada ou mantida a todo custo.
jovem Capistrano de Abreu, no auge anula a ética da responsabilidade Nas épocas ou culturas ditas – pelo
das leituras spencerianas, darwinistas Mais uma vez, revela-se fecunda evolucionismo antropológico – primi-
e positivistas13. a dicotomia weberiana. Se há uma tivas, há numerosos exemplos, a partir
Em todos, a mesma preocupação ética da memória social, ela é a ética da antropologia jurídica, de como a
de fixar alguns macropadrões de da convicção. Nela, as ações morais finalidade da sanção por motivo de um

da
m a ética cial,
u o
Se há emória s
m d a
é a ética s ações
ela la, a as
ic çã o. Ne praticad
conv rais são nte
mo teme
ep enden sultados vir
ind e
dos r s podem a
d
el a
que d

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 101


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

crime não é chegar a um padrão qual- recepção oficial do aristotelismo no nição weberiana não está isenta de
quer de justiça, mas a manutenção da pensamento tomista do establishment racionalidade, que pondera nas ações
coesão do grupo14. da Igreja? a relação custo-benefício entre meios
Nada mais contrário ao espírito Por outro lado, a ética da respon- e fins e a responsabilidade pelos atos
de pesquisa como ele se construiu sabilidade pressupõe a combinação praticados.
no mundo ocidental desde a Renas- de aspectos como a percepção do No discurso historiográfico desde
cença, embora ele próprio se mescle propósito a realizar como, por exem- seu auge oitocentista, não é raro se
muitas vezes das duas éticas. Quando plo, a opção de um governante por entrelaçarem as duas éticas, mesmo
Copérnico elaborou 64 epiciclos para determinada política para atingi-lo, de quando a expressão não é assumi-
descrever a órbita elíptica da Terra em um sentimento de responsabilidade damente ideológica. Isso faz com
torno do Sol, em vez de simplesmente em relação às consequências dos atos que muitas vezes ocorra a absorção
desenhar uma elipse, estava ainda praticados e do senso de proporção. e mesmo a anulação da ética da res-
preso aos quadros mentais medievais Mesmo envolvendo um sentimento ponsabilidade em prol das finalidades
ou pagava um tributo consciente à como a paixão, essa atitude na defi- moralmente tidas como mais legítimas

ncia
ter ferê e
A in obr
e mó ria s imento
da m nhec
o co ela a
rev er
is tó rico o do dev o
h duçã itóri
intro r no terr
se
ue é
ilo q ente
daqu efetivam

102 alzheimer
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

da coesão social – e a historiografia no imediato pós-guerra, é notável peia ou o Mercosul, a preocupação em


autoproclamada científica dos últimos exercício de interpretação histórica retirar dos compêndios expressões e
dois séculos apresenta disso numero- realizado no momento mesmo de um interpretações de natureza pejorativa
sos exemplos. trauma nacional, apesar – ou por isso em relação a seus associados.
Na historiografia científica dos últi- mesmo - de ter nascido, como diz o Não ocorreu de modo diferente
mos 180 anos há diferentes situações autor, “de uma meditação engajada nos países da Europa oriental, cujos
que comprovam a absorção e, por fim, pela morte”17. No mesmo espírito, compêndios escolares antes da 2ª
a anulação da ética da responsabilida- mas com um tom mais wagneriano, é Guerra Mundial apresentavam, quase
de em prol dos objetivos maiores da o Die Deutsche Katastroph, de Friedrich sempre, a então União Soviética, e
coesão social. Theodor Mommsenn Meinecke, meditação de um grande particularmente a Rússia, como a fonte
sublimou parte de suas frustrações historiador, com os elementos do de seus males (situação esta compar-
com o fracasso da Revolução de 1848 seu ofício, mas simultaneamente um tilhada, no caso da Polônia, com a
na Alemanha com vigorosas inter- grande exercício de expiação, que, Alemanha, e no caso da Romênia, com
pretações das lutas sociais na Roma sem relativizar responsabilidades, a Turquia). Com o estabelecimento das
republicana, nelas projetando os con- mantém a análise num nível superior repúblicas populares, os compêndios
flitos sociais da Revolução Industrial de ponderação e de reflexão sobre o passaram a louvar o povo russo e a
que vivia. O que de resto não impediu homem e a história. experiência soviética, ao mesmo tem-
que fosse um grande pesquisador e po em que encolhiam as respectivas
editor de fontes primárias.15 Philipe Percepção maniqueísta do processo origens históricas, para valorizar o
Sagnac, diretor da prestigiosa coleção histórico novo regime que se implantava, sem
Peuples et civilisations, publicou, signi- Essa estratégia da memória con- se esquecer de satanizar os Estados
ficativamente em 1917, seu livro Lê siste em fazer crer que o “nós”, qual- Unidos e a OTAN19.
Rhin français pendant la Révolution et quer que seja – nação, classe, região, De modo recíproco, a maior parte
l’Empire, que parece justificar ex ante província – tem sempre a seu lado a dos compêndios da high school norte-
– ou reivindicar – a ocupação francesa razão, o direito e a justiça, enquanto -americana da época da guerra fria
da Renânia após 1918. Há outros casos o “outro”, adversário e inimigo, é sem- incorporavam o discurso duro dos
extremos na historiografia nacionalis- pre movido por interesses escusos e secretários de estado Dean Acheson
ta de vários países, de atitudes franca- subalternos, além de agir de modo e Foster Dulles, apresentando o bloco
mente panfletárias, particularmente caviloso. Na grande historiografia, soviético como a origem dos proble-
na ocorrência de conflitos. No Brasil, esse maniqueísmo, pelo seu simplis- mas do mundo. Nos países do então
Varnhagen, publicando sua História mo, não foi frequente, mas abunda chamado “bloco neutralista”, na déca-
geral do Brasil poucos anos após o fim em diferentes compêndios de ensino da de 1950, Indonésia, Índia e Egito, os
das insurreições regionais, preferiu elementar e secundário, que afinal textos escolares de história, embora
não estudar profundamente a Revo- possuem forte influência na elabora- fortemente anticolonialistas contra
lução Pernambucana de 1817, por ção de estereótipos sobre o “outro”. a Holanda e a Inglaterra, guardavam
considerá-la pouco edificante para a Marc Ferro, ao estudar as falsificações em geral certa distância do conflito
consolidação nacional16. da história em diferentes países18, deu soviético-americano, reservando seu
Existem, por outro lado, exemplos interessante contribuição para o tema, ódio maniqueísta para o adversário
como o de Lucien Febvre, cujo livro e nos últimos anos tem havido em mais próximo – como ocorreu na Índia
póstumo Honra e pátria, original- países comprometidos com projetos em relação ao Paquistão ou no Egito
mente um curso universitário dado supranacionais, como a União Euro- nasserista a Israel.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 103


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Na América do Sul, os conflitos euro-norte-americano, herdeiro do Se as estratégias de europeização


platinos geraram uma rica historiogra- imperialismo britânico, não justifica os via eurocentrismo chegaram a extre-
fia igualmente maniqueísta, mesmo excessos, tanto nacionalistas quanto mos como o mencionado por André
quando bem documentada. No Para- eurocêntricos. No caso brasileiro, em Gide, que em visita à África antes da
guai, a reabilitação de Solano Lopez relação ao segundo ponto, José Honó- guerra espantou-se com alunos de
foi, em grande parte, obra do partido rio Rodrigues já chamava a atenção, no escolas congolesas recitando o De
colorado, com a crítica mais pesada início da década de 1960, para a impor- Bello galico e proclamando nous, les
voltando-se contra a Argentina, devido tação do eixo Brasil-Angola, tema que gaulois, por outro lado os exageros
a reivindicações territoriais. No Brasil Charles Boxer estudara para o século “politicamente corretos” de grupos
e na Argentina, tanto a historiografia XVII e ele próprio desenvolveu para os afro-americanos fazem as astúcias
como os compêndios arrolaram as dois séculos seguintes21. da memória mudar de objeto, mas
respectivas razões dos dois lados e No Brasil, a tônica dessa questão mantendo as mesmas características.
mesmo as aproximações diplomáticas permaneceu a definida por Martius- O conhecimento histórico neste
periódicas não impediram a persis- -Varnhagen. A interpretação da his- terreno encontra-se com frequência
tência de valorações e estereótipos20. tória nacional deveria prender-se à em situações extremamente delica-
A historiografia mais nacionalista matriz europeia, na medida em que foi das: como resguardar a atitude cien-
desses países e os seus compêndios esta a predominar no desenvolvimen- tífica se em diferentes circunstâncias
abertamente patrióticos possuem to do país, como eles o viam no século cobra-se do historiador menos senso
mais ou menos a mesma construção XIX22. Se isso se tornou uma verdade critico e mais adesão ideológica? Como
semiológica dos discursos: as guer- no século XX, entre outros motivos fazer entender que, no melhor interes-
ras são provocadas pelo “outro”; as pelo estancamento da entrada de se humanista, seu papel, mais ético
vitórias foram sempre “nossas” e as africanos, pelo aumento da imigração que epistemológico, é o do escravo
derrotas sempre do “outro” – mesmo europeia e pelo recuo, extermínio ou que acompanhava o triunfo do gene-
quando se perde a guerra, paradoxo incorporação dos indígenas, não o era ral vitorioso em Roma e o advertia da
que se resolve pela técnica da decre- no momento em que escreviam, como precariedade de seu sucesso?
tação do empate, como na batalha de reconhece o próprio Varnhagen no
Ituzaingó; a liderança do “outro” não Memorial orgânico23. Tratava-se, antes, O emprego da estratégia
era legítima, como no caso de Rosas; da externalização de uma vontade, o do esquecimento
enfim, os valores positivos sempre são projeto político ideológico de centra- Nietzsche, nas Considerações ina-
os “nossos”, enquanto os defeitos, a lizar o país, consolidar as instituições tuais, afirmava que “é possível viver
malevolência e a incompetência são monárquicas e solidificar a presença quase sem lembranças e ser feliz,
do “outro”. europeia. como os animais, mas é impossível
Encontrado um leitmotiv, a história viver sem esquecer”. Os estrategistas
A história gira em torno à nacional, e por extensão a perspectiva da memória social, consciente ou in-
história nacional do restante, passa a dele depender. conscientemente, descobriram esse
Conforme a problemática que se Por isso, Martius escreveu que o his- fato muito cedo.
coloque, tal evidência é indiscutível. toriador brasileiro deveria produzir de Varnhagen, ao desejar passar
Porém, no caso de sociedades trans- um ponto de vista centralizador, mo- por alto a Revolução Pernambucana,
plantadas, como as americanas, ou nárquico-constitucional e português, justificou-se com certa candidez. Ele
fortemente tradicionais, como as modelo que, à exceção do segundo próprio e alguns historiadores das re-
africanas ou asiáticas, o predomínio elemento, teve longa vida24. lações internacionais posteriormente

104 alzheimer
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

preferiram igualmente “esquecer”, nias, como acontece atualmente em Esses objetivos, entretanto, não
minimizando ou omitindo eventos, algumas repúblicas da antiga União se fundamentam em critérios teórico-
como a província de Vera, que Cabeza Soviética ou com relação aos curdos -metodológicos ou, mesmo quando o
de Vaca pretendia estabelecer entre do Irã, Iraque, Síria e Turquia. Mas não fazem, não é esta sua motivação prin-
o Paraguai e o litoral atlântico, ou a é algo do presente, pois se evidenciou cipal. Move-os outro fim, o de substi-
província jesuítica do Guairá, a fim de desde as origens da historiografia cien- tuir uma interpretação inconveniente
evitar eventuais reivindicações territo- tífica do século XIX na Europa, quando para seu grupo, classe, partido, etnia
riais paraguaias ou argentinas25. em áreas germânicas subestimou-se o ou nação por outra, ou outras, que
O deslocamento de eventos, ins- papel dos romanos ou inversamente atendam a esses objetivos. É um ins-
tituições, personalidades e até po- em áreas latinas desconsiderou-se a trumento de combate, não intelectual,
vos inteiros na historiografia e nos influencia ostrogoda ou visigótica26. mas ideológico.
compêndios, embora podendo cor- O caso limite desse revisionismo
responder a defensáveis motivos de A utilização do revisionismo parece ter sido o do desenvolvimento
caráter teórico-metodológico, com histórico do antissemitismo na historiografia
muita frequência deve-se ao empre- Vencidos os preconceitos do po- ultraconservadora do século XIX, que
go da estratégia do esquecimento. sitivismo e, mais amplamente, do desembocou na virulenta campanha
Essa astúcia passa pela minimização cientificismo, parece óbvio que não antijudaica do nazismo. O revisionis-
ou pelo simples apagamento de sua só a história, mas toda a ciência é mo nazista na Alemanha partiu da
existência, procedimentos que os revisionista. Na medida em que as tese do complô judaico-maçônico, cujo
totalitarismos nazista e soviético, no conclusões, conquanto corretas, con- objetivo seria o domínio do mundo.
século XX, levaram ao paroxismo da trastáveis e verdadeiras, são refutáveis Se teorias conspiratórias da história
crueldade. Foi típico das alterações por novas problemáticas ou por novas coexistiram com o avanço da historio-
na liderança soviética o desapareci- evidências factuais, é fora de dúvida grafia científica no século XIX, inclusive
mento, nos grupos fotográficos, de que as conclusões do conhecimento quanto à existência de um complô
personalidades caídas em desgraça, histórico, como de todo o conhecimen- maçônico que teria desencadeado a
mas mais conhecido foi o tour de force to científico, são provisórias e conse- Revolução Francesa, nunca tiveram
dos responsáveis pela Enciclopédia quentemente passíveis de revisionis- consideração especial dada sua fraca
Soviética quando tiveram de retirar do mo. Estamos longe da epistemologia consistência analítica e documental.
primeiro volume a extensa biografia cientificista segundo a qual, atingida Sua difusão a partir das ondas de an-
de Beria, após sua queda em desgra- a lei, fixar-se-ia o quadro definitivo do tissemitismo da virada do século XIX
ça e execução. Como retirar o longo conhecimento. para o século XX, na Europa, chegou
texto revelou-se impossível, dado que Não é desse processo de refutação ao paroxismo na Alemanha nazista,
alteraria toda a sequência de volumes, num campo teórico-metodológico mas teve efeitos colaterais em outros
a solução encontrada foi a de fazer definido que falamos, mas de um re- países, inclusive o Brasil, onde Gustavo
crescer os verbetes da letra B, pro- visionismo diferente, parente próximo Barroso, na História secreta do Brasil,
cedimento com o qual a Enciclopédia da estratégia do esquecimento. Ele procurou desvelar um fundo judaico
passou a possuir, entre as congêneres, consiste em recusar as explicações e maçônico nos principais eventos
o verbete mais detalhado e extenso até então válidas, com o objetivo de que considerava desagregadores da
sobre... o mar de Bering. torná-las esquecidas, substituindo-as consolidação do País27.
Esse voluntário esquecimento por outras que atendem melhor aos Sem embargo de sua inexpressi-
também atingiu e atinge povos e et- objetivos de seus autores. vidade intelectual, esse revisionismo

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 105


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

facilitou, por intermédio dos meios de Os três historiadores paulistas namente definido, com características
comunicação, a difusão e o fortaleci- na primeira metade do século XX e objetivos próprios, quer falemos
mento do antissemitismo, facilitando assumiram a tarefa de reabilitar os da organização do poder na Grécia
certo anestesiamento moral em rela- bandeirantes, num hercúleo esforço clássica, na China dos mandarins, na
ção às perseguições aos judeus. de construir-lhes um panteão, o que Europa absolutista ou entre os aste-
Outro exemplo de revisionismo, efetivamente conseguiram, por meios cas. Ignorando as contribuições da
este no âmbito da historiografia bra- diversos, como a historiografia – em antropologia cultural desde Franz Boas
sileira, muito mais inofensivo, mas especial a monumental História geral e do relativismo histórico, essa inter-
igualmente emblemático das estra- das bandeiras paulistas, de Taunay – os pretação – perfeitamente corrente em
tégias da memória, foi a recuperação livros didáticos de história, monumen- vasto campo do direito, por exemplo
da imagem do bandeirante no início tos e outras estratégias. – projeta para situações inteiramente
do século XX. Contemporâneo da Parte do trabalho dos historiadores diversas o modo de pensar do mundo
afirmação de São Paulo na federação coloniais de hoje consiste na revisão euro-americano nos séculos XIX e XX,
brasileira da primeira república, esse desse revisionismo, não por uma es- ou seja, o modelo liberal-constitucio-
movimento evidenciou-se pela obra tratégia antipaulista, mas num esforço nal de organização da esfera pública.
de vários historiadores, entre eles Wa- para redimensionar o papel do tipo O conceito de liberdade, apesar
shington Luis Pereira de Sousa, Alfredo social bandeirante. do trabalho pioneiro de Benjamim
Ellis Jr. e Afonso d’Escragnolle Taunay, Constant sobre “A liberdade entre
bem como de instituições, como o A naturalização dos conceitos os antigos e os modernos”, é outra
Arquivo do Estado de São Paulo, o A naturalização dos conceitos impli- categoria que sofre os efeitos das
Museu Paulista e o Instituto Histórico ca em sua deshistoricização, frequente- distorções provocadas em sua leitura
e Geográfico de São Paulo. mente pelo emprego de uma estratégia pela historiografia whig inglesa. Não
Embora valorizados por Varnha- reveladora de ingênuo historicismo. deve ser esquecida, também, a dificul-
gen e Capistrano de Abreu, que não Naturalizar os conceitos significa dade de aplicar conceitos econômicos
lhes negaram méritos na interio- descontextualizá-los e deshistoricizá- típicos do capitalismo industrial, como
rização do processo colonizador, -los, considerando-os como entes inflação, mercado, equilíbrio de ofer-
os bandeirantes tinham contra si de razão sub specie aeternitatis. Esse ta e procura, moeda e outros sobre
as críticas dos jesuítas espanhóis, procedimento pode ser encontrado contextos não industriais, o que levou
culpando-os das devastações feitas atualmente menos nos historiadores Pierre Chaunu, já na década de 1970,
nas missões no início do século XVII. do que em outros cientistas sociais, a perguntar sobre a existência de uma
Uma leyenda negra antibandeirante especialmente juristas e economistas. história econômica ou uma economia
em ponto menor que sua congênere Consiste em considerar categorias de “naturalista” do passado30. O mesmo
espanhola fora difundida na Europa modo intemporal, como se seu signi- ocorre com algumas categorias utili-
pelos jesuítas, sobretudo através ficado fosse invariante independente zadas pela historiografia da arte e da
da obra de Charlevoix 28. A defesa das condições de cultura, tempo e literatura, sobretudo quando predo-
mais consistente dos paulistas foi a espaço. minam perspectivas formalizantes e
do abade beneditino frei Gaspar da O uso do conceito de estado evi- estetizantes, “descobrindo-se” alguns
Madre de Deus (ele mesmo membro dencia bem essa perspectiva. A atitude estilos básicos que se reproduziriam
da aristocracia local), publicada em naturalista, inspirada na construção em diferentes culturas e épocas,
fins do século XVIII pela Academia hobbesiana-hegeliana, consiste em muitas vezes professando um ani-
das Ciências de Lisboa29. considerá-lo desde logo um ente ple- mismo intrínseco, expresso em fases

106 alzheimer
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

“ingênuas”, de “apogeu clássico” e de ingênuo historicismo: o de estabele- verificado na história e na antropologia


“decadência”. cer uma evolução linear do conceito, cultural em relação à questão. Isso
Mesmo na historiografia espe- normalmente etnocêntrico, de que parece ainda mais evidente quando
cializada, em épocas de menor rigor padecem alguns manuais de história verificamos que, em setores da própria
conceitual, a naturalização de conceitos das instituições políticas, de história antropologia a partir de Levy-Strauss,
como “burguesia”, “classe média” ou econômica, de história do direito e na sociologia, na economia, na ciência
“proletariado” fez com que análises do história da arte, quer estabelecendo política e no direito prevaleceram no
mundo grego ou romano nos séculos V patamares de “progresso”, quer iden- segundo pós-guerra as tendências
e IV AC parecessem avatares de arqué- tificando recorrências matriciais. estruturalistas, cuja inclinação sem-
tipos cuja última manifestação seria na O declínio das várias formas de his- pre foi a da valorização dos modelos
própria época o autor – isto é, os con- toricismo no século XX até certo ponto sincrônicos sobre os diacrônicos. Se a
flitos sociais da III República francesa. pode explicar o recrudescimento de longo prazo todos estaremos mortos,
Tal procedimento naturalizador uma visão naturalista, inteiramente como queria Keynes, então as ciências
leva, por aparente paradoxo, a um conflitante com o aprofundamento sociais lucrariam em resultados se o

cia
erf erên e
A int ia sobr to
emór hecimen
da m n
o co ela a
ev r
ó r ico r do deve
his t o o
duçã itóri
intro r no terr
se
ue é
aq u ilo q ivamente
d efet

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 107


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

abandonassem, concentrando-se no reótipos tradicionais, se Hexter falou de social permanente e sorrateiramente


presente e em movimentos cuja tem- um storm over the gentry para ironizar os à espreita de enlaçá-lo num abraço
poralidade não excedesse a de uma exageros de interpretação da ação des- mortal. Essa visão maniqueísta seria
conjuntura econômica. se segmento social, então fica patente um engodo da consciência histórica
As astúcias da memória também que grupos sociais, mutáveis no tempo sobre si mesma e, portanto, outra
podem ser efeito de uma perspectiva e no espaço, precisam ser traduzidos estratégia da memória.
vesga das ciências congêneres em em categorias sociológicas igualmen- História e memória correspondem
relação à história. te flexíveis e, sobretudo, entendidas a perspectivas éticas e a necessidades
como auxiliares metodológicos e não sociais distintas, cuja convivência no
A reificação ou antropologização realidades históricas últimas, quase mundo cultural enriquece a percepção
dos conceitos metafísicas. Em resumo, menos Platão da realidade, pela multiplicação de
Uma aporia comum entre os es- e mais Heráclito. códigos e comportamentos que ense-
tudantes de história dos cursos de Quando Weber propôs o uso de jam. A função de cada uma é teórica e
graduação31, também encontradiça tipologias sociais, fê-lo no sentido socialmente delimitável, assim como
em manuais universitários e até em de construtos metodológicos, não de as intersecções. Suas finalidades, di-
trabalhos de maior densidade, a reifi- objetos ônticos. Como tais tipologias, ferentes e eventualmente conflitantes,
cação ou antropologização dos concei- no mundo social, foram igualmente são indispensáveis à percepção das
tos é das piores astúcias da memória. apropriadas por cientistas sociais, culturas sobre si mesmas. A oposição
Parente próxima da naturalização, ela políticos e doutrinadores sociais, entre memória feliz e história infeliz de
consiste em dar ao conceito uma exis- sua utilização abusiva acabou por Ricoeur se aplica a outros ângulos des-
tência objetiva no mundo concreto em descaracterizá-las. Quando aplicados sas relações, mas no caso da presença
vez de considerá-lo um modelo que, ao processo histórico, mas com fins da memória na historiografia parece
sem encarnar-se historicamente, des- declarada ou veladamente ideológicos, mais correto pensar-se no par memó-
creve algumas características comuns esses conceitos transformaram-se de ria encantada/história desencantada.
a um grupo, coletividade etc. modelos em caricaturas, ressaltando Esse desencantamento do mundo
Ao afirmarmos que “a burguesia fez, traços “positivos” e “negativos” que, histórico nada mais é do que o de-
optou, aderiu, combateu”, ou o proleta- em vez de permitir uma aproximação sencantamento do mundo científico
riado, ou a nobreza, ou o campesinato, conceitual do objeto, levaram a reifica- como ele se construiu desde o Renas-
ou qualquer outra categoria social, es- ções e julgamentos de valor. cimento; sem desprezar o universo da
tamos atribuindo qualidades subjetivas Restabelecer a historicidade dos memória, antes valorizando-o como
de caráter individual a entes coletivos conceitos, fazendo-os aproximar su- uma forma de perceber o real, o his-
cuja própria existência histórica con- jeito cognoscente e objeto conhecido toriador tem a obrigação científica e
creta em determinada conjuntura pode em bases diferentes de uma ingênua o dever ético de identificar, criticar e,
ser estruturalmente diversa daquela de ou esperta antropologização, é tarefa finalmente, neutralizar as astúcias da
uma conjuntura anterior ou posterior. do historiador capaz de precisar seu memória, para que Clio seja Clio e não
Se Braudel, referindo-se ao Antigo instrumental de investigação. apenas a persona de Mnemósine.
Regime, pode falar de uma “traição da Por último, observe-se que a so-
burguesia” no trânsito de uma geração lução não parece ser simplesmente
O autor é professor Titular da Universidade Fe-
para outra, se Furet encontrou uma no- opor o caráter impoluto, puramente deral do Rio de Janeiro (UFRJ), Professor Emérito
da UNI-RIO e presidente do Instituto Histórico e
breza investidora na França do século epistemológico e ético, do conheci-
Geográfico Brasileiro.
XVIII, diferente do que admitam os este- mento histórico, ante uma memória presidente@ihgb.org.br

108 alzheimer
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

NOTAS DE RODAPÉ

1. O tema já foi por nós discutido, em outra 12. Arno Wehling. Estado, história, memória: 22. Arno Wehling, A concepção histórica de
pespectiva, em Arno Wehling, Os níveis da Varnhagen e a construção da identidade na- Martius, in Staden Jahrbuch, n. 42, 1994, p.
objetividade histórica, Rio de Janeiro, APHA, cional. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, 119 ss.
1974, p.22. p. 75 ss.
23. Francisco Adolfo de Varnhagen. Memorial
2. Karl R. Popper. Conhecimento objetivo. 13. João Capistrano de Abreu. A literatura bra- orgânico. Madrid, D.R. Dominguez, 1849-1850,
Belo Horizonte, Itatiaia, 1975, p. 55ss. Paul sileira contemporânea, in Ensaios e Estudos. 1 p. 20 ss.
Veyne, Como se escribe la historia, Madrid, série, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975,
Fragua, 1974, p. 150. Pierre Bourdieu, O p.55 ss. Arno Wehling, Capistrano de Abreu, e 24. Karl F.P. von Martius. Como se deve es-
poder simbólico, Rio de Janeiro, Bertrand, fase cientificista, in A invenção..., p. 169 ss. crever a história do Brasil. RIHGB, vol. 6 1844,
1998, p. 59. p. 381 ss.
14. Jan Gilessen (dir.). Le pluralisme juridique.
3. Maurice Halbwachs, A memória coletiva, São Bruxelas, SJB, 1971, p. 102 ss. 25. Arno Wehling, Estado..., op.cit, p. 153 ss.
Paulo, Vértice, 1990, p. 53 ss.
15. James Westfall Thompson. History of 26. Anne-Marie Thiesse. La création des iden-
4. Arno Wehling. Em torno de Ranke: a ques- historical writing. NovaYork, P. Smith, 1967, tités nationales. Europe XVIIIe. e XIXe siécles,
tão da objetividade histórica, in A invenção da vol. II, p. 502. Paris, Seuil, 1999, p. 83 ss e 147 ss.
história, estudos sobre o historicismo. Rio de
Janeiro, UGF/UFF, 1994, p. 244. 16. Francisco Adolfo de Varnhagen. História geral 27. O autor, refutando “a mania generalizada
do Brasil. São Paulo, CEN, 1975, vol. V, p. 149. do cientificismo”, afirmava que “a história não
5. F. E. Hervé Thévenard, Publiciste, in Maurice é propriamente uma ciência; é antes uma arte”,
Bock (dir.), Dictionnaire genérale de la politique, 17. Lucien Febvre. Honra e pátria. Rio de o que de certo modo deixou-o à vontade para
Paris, Lorenz, 1864, vol II, p. 721-722. Janeiro, Civilização Brasileira, 1998, p. 25 ss. construir generalizações e estabelecer relações
com pouco ou nenhuma base empírica. Gus-
6. P. Joutard, Mémoire collective, in André Bur- 18. Marc Ferro. A manipulação da história no tavo Barroso, História secreta do Brasil, São
guiére, Dictionnaire des sciences historiques. ensino e nos meios de comunicação. São Paulo, Paulo, CEN, 1937, vol. I, p. 13.
Paris, PUF, 1986, p. 447 ss. Difel, 1983, passim.
28. Pierre François-Xavier Charlevoix. Histoire
7. Citado em Herbert Butterfield, Man on his 19. Idem, p. 143 ss. du Paraguay. Paris, Didot, 1796, p. 142 ss.
past. Londres, B.Sons, 1969 p. 93.
20. Carlos Escude. Los conflictos territoriales e 29. Frei Gaspar da Madre de Deus. Memórias
8. Guy Bourdé e Hervé Martin. As escolas internacionales em la historiografia argentina, in para a história da capitania de São Vicente. São
históricas. Lisboa, PEA, 1990, p. 97. Nilda Giugliemi et allii, Historiografia argentina Paulo, Edusp, 1977, p. 58 ss.
(1958-1988), Buenos Aires, Comitê Internacio-
9. Aristóteles. Poética, 8-9. nal de Ciências Históricas/Comitê Argentino, 30. Pierre Chaunu, História econômica: re-
1990, p. 551. trospectiva e perspectiva, in Anais de História,
10. A expressão foi utilizada com esse sentido UNESP-Assis, n. 3, 1971, p. 9 ss.
por C.A. Beard, The case of historical relativism, 21. José Honório Rodrigues. Brasil e África.
in Roy Nash, Ideas of history, NovaYork, Dutton, Outro horizonte, Rio de Janeiro, Civilização 31. E não apenas no Brasil. Ver Pierre Saly et
1969, v. II, p. 166. Brasileira, 1964, 3 ed. Charles Ralph Boxer, allii, La dissertation en histoire, Paris, A. Colin,
Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1994, p. 93.
11. Arno Wehling. Em torno..., op.cit., p. 111 ss. 1602-1686, São Paulo, CEN, 1973, p. 13.

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 109


MYSTERIO (Ao meu amigo Markoslav Sozovowsky)

Este conto é de um autor pouco conhecido chamado Tomás Lopes,


que era simbolista e diplomata. Morreu jovem, como convinha à
época. Saiu publicado pela Garnier em 1907 num volume chamado
Histórias da vida e da morte. Nunca foi republicado.

110 simbolismo satânico


– Agasalhado, guardado, envolvido, eu esperava que olhos humanos; e havia uma volupia tragica no seu modo
se fechassem as portas para dormir o meu somno incons- de sorrir. Elle era mais alto do que ella, tão loiro como ella,
ciente, quando ella entrou. Pediu-me. Na sua voz meiga, menos bello do que ella. Ella era Olga, elle era Dmitry Fer-
com um dôce timbre, não houve o menor tremor. Ninguem fitehine. Eram casados.
lhe oppoz a menor resistencia. De resto, quem ousaria des- Passaram-se dias, e o no seu decorrer suave e lento,
confiar de senhora de tão alta nobreza, frequentadora as- eu percebi que Dmitry Ferfitehine amava-a com uma pai-
sídua da côrte, e que com tão discreta elegancia recebia no xão ardente e meridional. Acariciava-a com uma bondade
esplendido palacio da Perspectiva Millionaia, onde quasi ingenua de creança, dizia-lhe nomes ternos, chamava-lhe
só se falava francez? Era apenas extranho que fosse ella e liouba. Outros dias passaram, passaram semanas. De dia,
não um creado; mas um creado, na Russia, quem ousaria eu tinha o calor do branco seio; á noite, depois de reco-
confiar semelhante incumbencia? Em fim: ella levou-me, lhido, o calor de sua alcova. Assisti ás recepções; conhe-
e no carro que rodava apressado, passâmos pela praça de- ci princezas e principes, dancei ao lado de muito titulo
solada e núa do Palacio d’Inverno. Eu então, astutamente pomposo e muita farda luxuosa; porque eu estava sempre
perscrutei-a, procurei adivinhar-lhe o pensamento: ella, com ella, ouvi seducções diplomaticas e enredadas de pos-
porém, tranquilla, nem sequer deu um olhar á casa impo- solsivos extrangeiros. Uma vez, n’uma volta de valsa, um
nentemente lugubre, onde cem anos trabalharam os pe- Conselheiro de Embaixada murmurou-lhe por cima dos
dreiros e de onde reina o Tzar poderoso... Bem! – pensei cabellos loiros:
commigo, - não é para este... – Então?
A neve cahia, o frio cortava; foi quando eu senti o calor E ella, n’um sorriso divino:
do seu branco seio. E nada mais vi até chegarmos á casa. – Espero o momento...
Nos seus aposentos particulares, em quanto a senhora Oh! as incoherentes injustiças da alma feminina! No-
se despia, pensei estes pensamentos: N’um palacio como bre e bello Dmitry Ferfitchine! Si eu pudesse salvar-te!
este, com tanto luxo e tanto conforto, naturalmente deve Mas como? Si eu não tenho nem vontade nem querer?
haver felicidade! Portanto eu sou perfeitamente inutil. E Nunca lamentei tanto a minha immobilidade passiva; si
justo que me amem e me procurem os desgraçados, os sem eu pudesse desfazer-me e queimar-lhe o seio branco onde
alegria e sem esperança, condemnados ao gelo rigoroso do arfava uma doçura de rôla e se escondia manhosamente
inverno e ao esquecimento da humanidade egoista! Lá um coração de vibora! Ah! aquella mulher, que tão calma
fóra gela; os caminhos estão brancos e o céo está cinzen- e capciosamente enterrava na terra humida o dôce Dmitry
to: quanto miserável, com fome e com frio, sem amizades Ferfitchine, tão bom e tão amoroso!
e sem afflições, alimentado por um coração que não en- Philosophos e poetas, artistas e sabios de todos os
controu jamais um coração que palpitasse com o seu, não tempos, desde a China confusa até o espirito contempo-
renderia agora graças ao seu Deus ou aos genios da Mãe- raneo cheio de revoltas, quem de vós poude ainda prevêr
-Volga, si me visse em seu caminho, e eu fôsse o seu amigo e explicar a inconstancia e a injustiça da alma feminina?
e fôsse o seu amor? Mas n’este palacio, que inutilidade! Que sciencias ou que iniciações hão de demonstrar um
Aqui, o meu pensamento se interrompeu: ella olhou- dia os casos extranhos d’essa psychologia inconsciente e
-me, ella sorriu-me; e beijou-me, não sei porque! Seus curiosa? Uma mulher bella, que em toda a sua mocida-
labios humidos e vermelhos pousaram no meu frio corpo de só tem recebido caricias e sacrificios d’aquelle a quem
insensível, e dentro do meu frio corpo, a alma diabolica entregou o seu coração, que por um pensamento pensa-
estremeceu... Ia eu, pois, ser o seu amante supremo? Senti do tem a surpresa da obra realisada, por quem nunca se
novamente o calor do seio branco; e no quarto de dormir hesitou, de quem nunca se duvidou, que acolheu bene-
permaneci oculto. Em breve a escuridão se espalhou... vola, que acreditou, que sorriu, e de repente, atirando
No outro dia, á hora do almoço, eu os revi e os con- para uma sombra ignara todo um luminoso passado de
templei melhor: ella era alta, formosa e loira; os seus olhos verdade e de amor, ouve o primeiro sussurro da calum-
azues tinham um extranho encanto que eu jamais vira em nia, e crê e afirma! Quem explicará essa mulher? Ella a

JANEIRo • FEveREIRo • MARÇo 2015 111


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

si mesma confessa que sente uma repulsão organica, um – Porque estás triste, meu amor? Dá-me para eu beijar
nojo inilludivel pela peçonha que lhe destróe o ídolo. Mas a tua mão branca! Que desejas? Tu és a minha felicidade,
insensivelmente, como os marinheiros que se deixam e eu te amo!
embalam pelo dôce canto da Sereia, ella escuta a palavra Beijou-a nos labios; e houve n’aquelle beijo tanto
luminosa e perversa. Nem crê n’outra coisa; o seu ouvido amor, que a minh’alma estremeceu dentro do meu frio
compassivo e bom não quer escutar em defesa honrada a corpo. Que volupia! E Olga, então sorrindo nos labios e
voz purissima da innocencia! E’ que na mulher, os sen- nos olhos:
timentos positivos são apenas um caminho facil para os – Não estou triste. Eu tambem te amo... Amo-te muito!
sentimentos negativos. Ella ama para odiar mais tarde, Beijou-o nos labios; sobre o seio branco refleti e pen-
e si salva um berço é para cavar uma sepultura. Mas eu sei: Oh! Senhor, será possivel que haja tanta mentira den-
por suspeito me dou porque não creio nem nos seus ri- tro de um coração? Olha que eu estou aqui, e sei o teu se-
sos nem nas suas lagrimas, nem no seu amor nem na sua gredo e sei o teu crime!
amizade, que umas e outras são fingidas, e unicamente Dmitry Ferfitckine teve um acesso de tosse. E ella, com
creio no que lhe possa causar prazer. Oh! a intangivel carinhos de enfermeira e mencios de cobra, levou-o para
subtileza da alma feminina! Uma linda senhora desfez o o quarto. Ahi, preparou o leite com vodka. E eu já estava
casamento porque pensava que o uniforme de seu noivo fóra do seio, espreitando, olhando, adivinhando... Os seus
era azul bordado a oiro, quando o bordado era sobre pre- olhos languidos, cheios de volupia e crime, faiscaram á mi-
to! Um homem de bem e de talento é acusado de infamias nha procura: os seus dedos longos, finos, esculpturaes to-
imbecis; e logo, credula e facil, a mulher crê na calumnia maram-me o corpo, abriram-me o corpo, dilaceraram-me
e despresa a defesa! o corpo. Que ancia! Por fim, minh’alma infernal provou o
Mas é assim mesmo que a mulher é uma divindade. leite. Dmitry Ferfitkine bebeu o copo. Meia hora depois,
Apesar de certa maldade, ella é infinitamente melhor do ella sorria, elle gemia. N’uma subita comprehensão fixou-a
que o homem; ella é a razão de sêr da vida, a explicação das com os grandes olhos azues, parados, admirados; e n’uma
philosophias, o ideal das artes, o entendimento das religi- voz que era debil e triste murmurou:
ões! Que importa a sua ingratidão, si tem o pranto facil e – Quero escrever!
os olhos bellos? Si occulta no mysterio do seu coração uma – Não te cances, querido!
caridade que se expande como um perfume que se evola? – Preciso escrever!...
Si não fosse a perversa inconstancia feminina, quê seria Duas lagrimas lhe corriam na face branca e doente. Em
dos poetas? Quem escreveria a Bíblia? Onde estaria o en- silencio ella deu-lhe papel e pena. Com um pesado esforço,
canto da vida? Onde estaria o encanto da morte? Bemdita Dmitry Ferfitckine virou-se sobre o travesseiro e escreveu
seja a Mulher! Mas voltemos á narração: esta phrase que eu de dentro espiei: “Suicido-me: perdôa,
Era uma noite de inverno, cinzenta e fria. Eu, no calor Olga!” Só, mais nada. Guardou a folha de papel dentro
do seio alvo, meditava e considerava meditações e conside- de um livro de versos, estremeceu, olhou-a, sorriu, disse:
rações que o meu genio distingue. Acho (porque sou máo) “como eu te amo!”, e ficou. Ella então abriu o livro, tirou a
que o desequilibrio de condições e fortuna é necessario á folha de papel, depol-a na mesa de cabeceira, em eviden-
valorisação dos bens. Que riqueza encerraria o diamante cia, beijou o meu corpo frio, morto com a minh’alma que
si, - oh! homens! – os mendigos que vos pedem esmola morrera... Olhou o cadaver sereno, estirado sobre o leito.
estendessem os dedos hirtos e aureolados de pedras cla- Sorriu. Duas lagrimas correram. Lagrimas de que? De re-
ras? Mas é doloroso, que em quanto os ricos se agasalhem, morso? De pena por ter sido tão suave a agonia e tão ines-
morram de fome tantas creancinhas! perado o perdão? Não sei. Quem o saberá?
Nós estavamos na sala ingleza: ella, o marido e eu. Fui D’aqui a tres dias é o enterro de Dmitry Ferfitckine:
despertado do meu scismar porque elle lhe dizia palavras que será de Olga? Que miseria! Que frio! De que terá sido
meigas: o sorriso? Era quasi meia noite; ella apagou a luz...

112 simbolismo satânico


# enteFaz
ESTRADAS, METRÔS E AEROPORTOS PARA A FERNANDA
PASSAR MAIS TEMPO COM A JÚLIA.

Todo empreendimento da AG tem o poder de transformar vidas


e escrever novas histórias. Estradas, estações de metrô e aeroportos
mais modernos facilitam novos encontros. Assim, a Fernanda, a Júlia
e você ganham mais tempo para passar ao lado de quem se ama.
Para nós, qualquer projeto sempre começa e termina com o mesmo
objetivo: fazer a diferença na vida das pessoas.

andradegutierrez.com Investimentos em infraestrutura

Você também pode gostar