Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cartas A Uma Negra - Françoise Ega
Cartas A Uma Negra - Françoise Ega
Sobre a obra:
Sobre nós:
eLivros .love
Converted by ePubtoPDF
Françoise Ega
posfácio
Vinícius Carneiro
Maria-Clara Machado
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
Autora
Créditos
1
Maio de 1962
Faz dois meses que sou faxineira, e não tem sido divertido,
Carolina. Pau que nasce torto, morre torto. Com a minha
patroa, não falo apenas de cera, sabão de Marselha e
prendedores de roupa. Sinto que ela está um pouco
desapontada. Sua amiga contratou “uma” que fala muito
mal francês e é bastante ingênua, que lindo! Para ela, sou
uma pessoa esquisita, o que a deixa nervosa e um pouco
cruel. Ela pergunta:
“A senhora já terminou o vestíbulo?”
“Sim, senhora.”
É o sinal: ela pega um tapete empoeirado e se põe a
sacudi-lo justo no lugar que acabei de deixar brilhando!
Preciso então recomeçar. Se disser isso em casa, meu
marido vai gritar “Fique aqui”, e depois tratará de deixar
minha mobilete enguiçada! Se ficar em casa, jamais poderei
ver até onde a estupidez humana pode ir. Na segunda-feira,
limpo a sala de estar até dizer chega, começando por
escovar um tapete bem pesado. Pelo jeito, o aspirador
danifica as fibras desse precioso ornamento. Pessoalmente,
acho que é para melhor me ver de joelhos no chão. Na
terça-feira, quando tudo está brilhando, a patroa decide
costurar, e centenas de fiapos se incrustam na lã do tapete
que me custa tanto limpar. Com um ar negligente, ela diz:
“Preciso lembrar de pôr um lençol velho na frente da
poltrona de costura!”. Ela invariavelmente esquece! Então
faço menção de pegar o aspirador de pó, e ela diz: “Preciso
do aspirador para a sala! Pegue a escova pequena!”. Ou
seja, “Curve o lombo, minha filha, vou te pagar dois francos
por hora pelo serviço”.
Sou uma cobaia voluntária, reprimo o desejo de pendurar
o avental na parede e começo novamente a escovar.
É quando me pergunto como deve ser para as minhas irmãs
que não têm para onde ir caso se rebelem, que são forçadas
a ficar dia e noite na companhia dessas tais mulheres de
bem porque têm uma viagem a reembolsar! Carolina, é
horrível. Carolina, quando você se dobrava toda para ver o
que tinha nas lixeiras, pelo menos não havia ninguém no
seu calcanhar para ter certeza de que você estava curvada,
sorte sua, você sabe! Quando volto para casa, ainda não é
hora de dormir! Tenho filhos para educar, dar umas boas
palmadas, alimentar e amar. Felizmente, isso me faz
esquecer a patroa.
5 de junho de 1962
17 de julho de 1962
17 de setembro
2 de novembro de 1962
10 de dezembro de 1962
Como não rir quando Solange aparece? Ela chega com sua
dose de humor de todo dia, tem o dom de ver a vida em
cor-de-rosa. Solange é a madrinha da minha filha. Ela é uma
mulata vivaz que se recusa a falar francês, mesmo com as
“suas madames”. Ela encontrou uma linguagem
intermediária entre o crioulo e a língua de Voltaire, o
suficiente para se comunicar. E ainda assegura que, quando
fala sem utilizar algumas sílabas do patoá, sente muito mais
frio.
“Sei que, com o frio, você fica por aqui, vim lhe trazer
meus votos de feliz Ano-Novo antes do fim de janeiro. Não
trabalho, pedi minhas contas para a ‘minha madame'.
Imagine que a peguei em cima de uma cadeira, atrasando o
relógio do vestíbulo. Achava os turnos dos dias muito longos
fazia tempo! Jurava de morte cada ônibus que me fazia
chegar atrasada. Até dei o meu relógio de pulso para um
relojoeiro consertar, mas era inútil! Sempre chegava com
meia hora de atraso. Foi então que, na véspera do Natal,
precisei comprar um pouco de visco para o meu presépio, ia
dizer para ‘a madame' que queria sair um pouco mais cedo,
foi então que a vi, sim, minha velha amiga, a ‘vi'
empurrando o grande ponteiro do relógio com o polegar
meia hora para trás! Pensei que estava sonhando e prometi
a mim mesma ficar de olho: durante toda a semana que
antecede o Ano-Novo a vi refazer o mesmo gesto. Então, no
dia de réveillon, eu lhe disse que ela me devia cento e vinte
meias horas, que ela podia descer daquela cadeira. A
família dela tinha vindo de todos os lados. Bem alto,
perguntou o que eu tinha, se estava maluca, respondi que
havia uma semana a observava e que, sem entender, havia
três meses eu sempre chegava atrasada em casa. Aquela
mulher desprezível ficou vermelha com a confusão, e eu
vermelha de raiva. Falei em entrar na justiça, ela pagou o
que devia dizendo que aquilo era uma gratificação, que não
admitia minhas declarações. Claro que me demiti, fiquei em
casa! Roubar meia hora de uma pobre negra, enquanto se
viaja de avião para praticar esportes de inverno! É
degradante, você não acha?”
Solange riu como só ela sabe fazer.
Então Cécile chegou, com uma caixa de doces. Solange
disse:
“Quem é essa negra? Ela é nova?”
Fiz as apresentações. Solange olhou para a aparência
doce de Cécile e seus gestos ponderados, puxou os cabelos
e exclamou:
“Jamais alguém deveria entrar na casa de uma patroa
com um rosto como o seu. Não seria nada fácil! Faz vinte
anos que trabalho na casa dos outros, ou quase. Cheguei no
fim da última guerra, até peguei o tempo das rutabagas e
da sacarina. Fiquei seis anos na casa de uma mulher, criei
sua filha como se fosse minha. Ela me via com mais
frequência do que a seus pais, e um dia fui buscá-la na
saída da escola, ela não me deu mais a mão, como
costumava fazer desde sempre: ela acabara de perceber
que eu era uma mulher negra, me disse para andar atrás
dela. Certamente os pais tinham lhe dito algo. Fiquei dois
passos atrás da menina, e me doeu tanto que saí de mala e
cuia. Desde então venho trabalhando com as mãos, não
com o coração. Logo que o caldo começa a entornar, nem
tento entender o que está acontecendo, parto logo para
outro emprego. De tempos em tempos, consulto o preço da
mão de obra, só isso. Eu era cabeleireira na minha terra,
alisava o cabelo das mulheres! Aqui, é necessário
encrespar; apesar das minhas referências, não deu certo, e
eu precisava comer. Nunca consegui sair dessa
engrenagem: uma vez que você está no sistema de
seguridade social como doméstica, tente escapar para ver
se dá! Meu marido é marinheiro, seu porto de origem é Le
Havre! Eu não aguento o nevoeiro, estou aqui! Uma vez por
ano, venho durante a licença dele. Não tenho filhos.” Ela
parou de brincar. “A menina que criei estaria com dezenove
anos! Eu a amava, com aqueles cachos loiros. Eu mesma
lhe fazia os cachinhos de anjo! Pois é… acabei ficando
assim… indiferente! E a senhorita! Não vá à casa das
patroas com esses olhos de jumento.”
Num estalar de dedos, Solange foi embora…
Ela ri, mas está sofrendo… Ela teve um choque, Carolina,
e não há nada que a cure: estou rindo com ela só para não
pôr o dedo na ferida.
23 de janeiro de 1963
30 de janeiro
18 de março de 1963
2 de abril de 1963
20 de abril de 1963
15 de maio de 63
5 de junho de 63
Faz nove anos que meu marido não é mais soldado! Nove
anos se passaram e ainda está à espera de um posto, na
nossa região, reservado para militares como ele! As pessoas
cuidaram dele, ofereceram um posto de agente florestal no
Allier, carteiro no Baixo Reno, cantoneiro na Bretanha, vigia
em Le Havre! No final das contas, a verdade é que
gostamos de Marselha e do sol daqui; no verão, é divertido
ver os brancos escurecerem sobre as grelhas chamadas
praias, e isso a dez bilhetes de bonde da nossa casa! Então,
por que ir para o Baixo Reno? Os antilhanos ainda não se
animam com o esqui, exceto no cinema. Sempre
conseguimos encontrar um pinheiro vazio para fazer um
piquenique com as crianças, e há calanques cercadas por
um mar tão azul que até o meu chauvinismo se detém na
hora de dizer: “Nas Antilhas o mar é tão celeste”. Por todas
essas razões, não conseguimos partir para outro lugar. Meu
marido, que acaba de receber outra proposta de emprego
reservado para militares, saiu para encontrar o seu
“pistolão”.
Ne verdade, como todo provençal digno do nome, ele
pensa que “ir a Paris” daria um jeito nas coisas. Dessa vez,
foi lhe oferecido um posto de guarda num museu nacional
da capital, em um futuro próximo. Ele vai perguntar se não
tem vaga em um museu em Marselha, para evitar a
mudança e, sobretudo, a falta de sol. A ida a um ministério
representa quatro dias longe de casa. Quando estamos de
viagem, é bem legal poder dizer: “Vou ao ministério de
alguma coisa”. Em geral, nunca funciona, mas ficamos
satisfeitos de ir até lá e tentar. Não lhe contei nada sobre o
assunto, mas também aproveitei sua “viagem” a Paris e
pedi que ele fosse pessoalmente à sede da revista Paris
Match ter notícias do jornalista a quem eu escrevera.
Recortei cuidadosamente o endereço de uma das edições
da revista e lhe entreguei uma carta para o redator-chefe.
Talvez o jornalista, o pobrezinho, esteja morto, ou não tenha
secretária! Nessas condições, é difícil responder. Mas o
redator-chefe, se bem entendo como as coisas funcionam,
deve ter uma multidão de datilógrafas a quem dá ordens
para responder as cartas. É claro que falo das poucas
páginas que enviei ao jornalista. Essas poucas páginas eram
preciosas para mim, Carolina, eu as tinha extraído do meu
livro. Poxa, amputei o texto, agora sou obrigada a
datilografar tudo de novo. Meu marido me disse que Paris
Match não era a casa da sogra, mas, já que “ia para lá”,
aceitava entregar a minha carta.
6 de junho de 63
3 de julho de 1963
16 de julho de 1963
5 de agosto
15 de agosto de 1963
16 de agosto
20 de setembro
11 de novembro de 63
5 de dezembro de 63
Cada dia é único e todos os dias são parecidos, não vou lhe
contar, Carolina, tudo o que tomo contra a hipertensão, aí já
é outra história. A esperança ressurge apesar disso, pois o
meu manuscrito está sendo lido, me falam de um comitê de
leitura, os escritores negros aceitaram dar uma olhada nas
minhas folhas. Eles estão me lendo, eu mesma, Maméga!
Sei que todos estão lisos, um mais do que o outro, mas
estão me estendendo a mão, esqueço os meus
comprimidos, estou pulando de alegria.
23 de junho de 64
FIM…
Tão longe, tão perto
Vinícius Carneiro
Maria-Clara Machado
1
Somos daqueles
que dizem não à
sombra.
Aimé Césaire,
Trópicos, n. 1
Esqueça o
quarto só para si
— escreva na
cozinha,
tranque-se no
banheiro.
Escreva no
ônibus ou na fila
da previdência
social, no
trabalho ou
durante as
refeições, entre
o dormir e o
acordar.
Gloria Anzaldúa,
“Falando em
línguas: Uma
carta para as
mulheres
escritoras do
Terceiro Mundo”
Picket lines
School boycotts
They try to say
it's a communist
plot
All I want is
equality
for my sister, my
brother, my
people,
and me
Nina Simone,
“Mississippi
Goddam”
Hay tantísimas
fronteras
que dividen a la
gente,
pero por cada
frontera
existe también
un puente.
Gina Valdés,
“Somos una
gente”
Carolina, você
nunca vai me
ler; eu jamais
terei tempo de
ler você, vivo
correndo, como
todas as donas
de casa atoladas
de serviço, leio
livros
condensados,
tudo muda
rápido demais
ao meu redor.
Françoise Ega,
Cartas a uma
negra
capa
Violaine Cadinot
imagem de capa
Peter Uka. Front yard things, 2020, 200 × 140 cm.
Cortesia do artista e de Mariane Ibrahim
preparação
revisão
Ana Alvares
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
——
Ega, Françoise (1920-1976)
Cartas a uma negra: Narrativa antilhana: Françoise Ega
Título original: Lettres à une noire: Récit antillais
Tradução: Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty
Posfácio: Vinícius Carneiro e Maria-Clara Machado
São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2021
256 páginas
ISBN 978-65-5692-095-5
846
CDD
——
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura francesa: Cartas 846
todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
1.Curso para alunos de alto rendimento que seleciona
estudantes para as faculdades de elite na França, as
grandes écoles. [Esta e as demais notas são dos
tradutores.]
[ «« ]