Você está na página 1de 358

DADOS DE ODINRIGHT

Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e


seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer
conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da
obra, com o fim exclusivo de compra futura.

É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda,


aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

Sobre nós:

O eLivros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de


dominio publico e propriedade intelectual de forma
totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a
educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer
pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site:
eLivros.

Como posso contribuir?

Você pode ajudar contribuindo de várias maneiras, enviando


livros para gente postar Envie um livro ;)

Ou ainda podendo ajudar financeiramente a pagar custo de


servidores e obras que compramos para postar, faça uma
doação aqui :)

"Quando o mundo estiver unido na busca do


conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a
um novo nível."

eLivros .love

Converted by ePubtoPDF
Françoise Ega

Cartas a uma negra


Narrativa antilhana
tradução
Vinícius Carneiro
Mathilde Moaty

posfácio
Vinícius Carneiro
Maria-Clara Machado
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19

Tão longe, tão perto


Vinícius Carneiro
Maria-Clara Machado

Autora
Créditos
1

Maio de 1962

Pois é, Carolina, as misérias dos pobres do mundo inteiro se


parecem como irmãs. Todos leem você por curiosidade, já
eu jamais a lerei; tudo o que você escreveu, eu conheço, e
tanto é assim que as outras pessoas, por mais indiferentes
que sejam, ficam impressionadas com as suas palavras. Faz
uma semana que comecei estas linhas, meus filhos se
agitam tanto que não tenho muito tempo para deixar no
papel o turbilhão de pensamentos que passa pela minha
cabeça. Estou indignada. Uma jovem da minha terra me
contou coisas sobre a sua vida na casa onde trabalha que
jurei verificar. Ganho um dinheiro e já posso fazer um
balanço: sou faxineira há cinco dias, meus empregadores
estão incomodados porque claramente não sou uma recém-
chegada; falo de Champs-Élysées, Touraine ou da igreja
Notre-Dame de la Garde com muita naturalidade. Eles não
podem, sem mais nem menos, me chamar de Marie ou Julie.
Aliás, nem estão preocupados com isso: não me chamam de
nome nenhum.
Quinze dias se passaram e ninguém me perguntou como
eu me chamava nem pediu a minha carteira de identidade,
é incrível!
Duas jovens moram lá, a mais velha está cursando as
aulas preparatórias[1] para as grandes écoles de exatas, a
outra estuda para o baccalauréat.[2] A mais velha me ignora
— está entupida de equações. Ela diz um preguiçoso “Bom
dia, senhora”. Eu pergunto onde devo guardar seus sutiãs.
Ela nem me responde.
A segunda diz do mesmo jeito “Bom dia”, “Boa noite”,
“Até mais”, porém ganhou o meu respeito: no seu quarto,
não havia bituca de cigarro, mas tirei de sua gaveta dez
cabinhos de maçãs devidamente devoradas. Eu a vi revisar
uma lição mordiscando com muita desenvoltura o talo da
fruta; depois dessa imagem simpatizei com ela, apesar de
sua arrogância de controladora. Há também um adorável
garoto, de cabelos ruivos, simples e gentil. Entre nós dois, o
papo é fácil.
A patroa, cuja idade regula com a minha, entrincheirou-se
atrás de uma fachada ridícula de dignidade e rigidez. Às
vezes ela a esquece e vira uma pessoa sorridente;
entretanto, isso dura pouco. Sou a empregada. A patroa
solta depressa um “Bom dia”. Eu, quando chego, digo: “O
dia está lindo, né?”.
Já o patrão, eu o encontro ao chegar, quando ele está
saindo para trabalhar na sua clínica para gente nervosa. Na
verdade, foi ele que me contratou. Ele é muito alto. Por
sinal, todos são altos naquela casa. Trata-se de alguém
ponderado, de gestos calculados; tem olhos azuis tão cheios
de bondade que não consigo imaginá-lo fazendo algo ruim.
A senhora é versátil, eu acho, mas todas as mulheres são
assim.
Maio de 1962

Eu descobri você, Carolina, no ônibus. Levo vinte e cinco


minutos para ir até meu emprego. Penso que não tem a
menor serventia ficar se perdendo em devaneios no trajeto
para o trabalho. Toda semana me dou ao luxo de comprar a
revista Paris Match; atualmente, ela fala muito dos negros.
Foi assim que conheci a sublime sra. Houphouët com seu
vestido de gala. Eu não iria lhe dedicar as minhas palavras,
ela não compreenderia. Mas você, Carolina, que procura
tábuas para o seu barraco, você, com suas crianças aos
berros, está mais perto de mim. Volto para casa esgotada.
Acendo a luz, as crianças estudam, do jeito como se faz hoje
em dia. Elas não têm muitos deveres de casa, seria
cansativo demais, mas me contam o enredo, detalhe por
detalhe, da última história em quadrinhos que foi lida na
escola. Carolina, você nunca vai me ler; eu jamais terei
tempo de ler você, vivo correndo, como todas as donas de
casa atoladas de serviço, leio livros condensados, tudo
muda rápido demais ao meu redor. Para escrever alguma
coisa, preciso esconder meu lápis, senão as crianças somem
com ele e com meus cadernos. Há noites em que os
encontro bem fininhos. Já meu marido me acha ridícula por
perder tempo escrevendo bobagens; por isso, ele esconde
cuidadosamente sua caneta. Como você conseguia segurar
um lápis com a criançada à sua volta? Para os meus filhos,
sumir com um lápis é normal, sempre tem o da mãe ao
alcance. Somente uma coisa os faz parar: quando digo que
temos em casa apenas o dinheiro do pão, eles evitam, por
um breve período, perder seus materiais. É sempre a
mesma coisa, não importa o que estejam fazendo. Só me
resta esperar para ver quem aparecerá primeiro com os
sapatos furados depois de jogar futebol. Meu marido diz: “O
importante é o pão de cada dia, o resto a gente dá um
jeito”. Acho, Carolina, que você conhece essas palavras. Na
favela, você nunca foi capaz de pensar em nada além do
pão de cada dia. Penso que é isso que me aproxima de
você, Carolina Maria de Jesus. Eu também me chamo Marie,
como você, e Marcelle, como Pagnol. Moro muito perto do
povoado dele, nunca o li, mas o escutei no rádio com
paixão. Também me chamo Françoise e, por fim, Vittalline,
como ninguém mais. Não canso de me perguntar onde
meus pais encontraram um nome desses.
20 de maio de 1962

Se um dia eu lhe enviar estas linhas, você vai querer saber


o resto da minha história. Hoje à noite, digo a mim mesma:
“De que adianta?”. Estou cansada. Quando você juntou as
tábuas para o barraco, você não conhecia a expressão “de
que adianta?”, isso me dá uma vontade danada de escrever
meus pensamentos, preto no branco, enquanto as crianças
dormem. Pego de novo a Bic! Para ganhar dez francos à
tarde, fiz quatro quartos, limpei dois banheiros, dois
armários, descasquei dois quilos de ervilha. Em casa, só
como as enlatadas, não gosto de descascar, irrita a ponta
dos dedos. Mas não estou zangada, estamos no final do mês
e é Dia das Mães, com o dinheiro poderei fazer um bolo bem
grande. O Dia das Mães é ainda uma festa dos meus filhos!
Eles pegaram um dos meus cadernos, agora tenho que
copiar de novo todas as folhas. Se você não tivesse se
tornado minha inspiração, eu já teria atirado tudo para o
alto, dizendo: “De que adianta escrever?”. Fecho uma janela
em meus pensamentos, outra se abre, e a vejo curvada, na
favela, escrevendo no papel que tinha catado no lixo. Eu,
que tenho a imensa felicidade de ter um caderno, um abajur
e uma música bem baixinha que sai do rádio, acho que
seria covardia largar tudo porque uma criança rasgou as
folhas do caderno. Só me resta recomeçar.
Timidamente, eu disse para quem estava ao meu redor:
“Estou escrevendo um livro”. Riram de mim. Repeti o meu
leitmotiv a compatriotas que me viam rabiscar quando nos
encontrávamos, fosse no ônibus, fosse nos encontros dos
grupos comunitários. Aos risos, me disseram: “Cuide das
suas crias”.    Houve quem, por pena, levasse a mão à testa.
Comecei então a escrever às escondidas, o que cheguei a
dizer a uma correspondente distante e vivida, num dia em
que ainda queria deixar tudo de lado. Hoje de manhã, essa
senhora admirável respondeu: “Será um belo livro. Apesar
de eu não saber do que trata, desde já sei como a senhora
vai escrevê-lo”.
Ela não me conhece e confia no meu potencial. É a
oportunidade que tenho de avaliar o que posso esboçar, e
isso me deixa animada. De uma só vez, escrevi três
capítulos do Reino desvanecido, título que surgiu porque
alguém tinha confiado em mim, por meio de algumas
palavras.
2 de junho de 1962

Carolina, ontem foi a Festa da Ascensão. Na igreja do meu


bairro, vi uma mocinha da minha raça chorando após a
comunhão. Isso me embrulhou o estômago. Queria saber
quem era e o que estava fazendo ali, no subúrbio de
Marselha, com seu vestido de verão, embora fizesse ainda
bastante frio — eu mesma estava com um pulôver grosso.
Ela sorriu. Falei no nosso patoá, o que a encheu de
confiança. Ela me contou que “pessoas a trouxeram”. Quem
fez isso, que “pessoas”?, perguntei, inflamada.
“Uma patroa pagou a minha viagem! Preciso reembolsar
cento e cinquenta francos por mês. Ganho duzentos e vinte.
Sobram setenta para o dia a dia. Tenho dois filhos lá na
minha terra, lá eu trabalhava como atendente num bar, não
sou casada, sabe como são essas coisas! Eu vim tentar
mandar dinheiro para a minha mãe, para criar os meninos,
mas tenho que ficar oito meses antes de enviar. Estive na
cidade duas vezes e me roubaram setenta francos. O
primeiro táxi que peguei fez um longo desvio, o que me
custou dez francos! Isso me deprime! Não via a França
desse modo! Além disso, olha como eu trabalho! Até as dez
da noite! Me levanto às seis da manhã, nem tenho tempo
de comer!”
Carolina, meu sangue estava fervendo!
“Como as coisas chegaram a esse ponto? Que tráfico de
pessoas é esse! Foi feito um contrato de trabalho? Seu
nome está no sistema de seguridade social?”
“Não! A patroa me disse que em três meses vai me
registrar! A colega que lhe passou meu endereço está na
mesma situação que eu; ‘Só daqui a três meses', ela me
disse. Mas com minha colega é diferente, ela tem família
em Marselha.”
De fato, há muitas moças que “são trazidas” para
Marselha. Deixam as ilhas sonhando com um destino
melhor. Eu as vejo, e é sempre igual, são compradas por um
tempo determinado, ou quase isso. As patroas fazem como
todas as suas amigas abastadas, têm uma empregada
antilhana, mais flexível e mais isolada que a empregada
espanhola de outrora. Nessa loteria, há quem tire a sorte
grande e vá parar na casa de pessoas cheias de dignidade e
humanidade. Há outras, e são a maioria, que se dobram ao
jugo. Esta aqui me conta como, sob pena de sanção, é
forçada a limpar as roupas íntimas da dona da casa. Outra
come de pé. Outra é levada a um chalé na montanha e
obrigada a buscar água na fonte, a qual encontra apenas
depois de remover a neve com picareta. Meu marido
resmungou: eu deveria ter ficado em casa. “Por que
engrossar as fileiras desse gado humano?”, ele disse. É bem
simples: nunca poderei falar sobre isso com conhecimento
de causa se não souber do que se trata.
Foi assim que voltei aos gestos ancestrais, Carolina,
somos do mesmo calibre, e o trabalho não me assusta. Para
me animar, na ida para o serviço, me dou ao luxo de
comprar um café. Custa somente quarenta centavos. Para
ganhar quarenta centavos, preciso dar duro por doze
minutos. Em doze minutos, lavo um monte de louça! Como
é gostoso o café batalhado! E como são infelizes aquelas
cujas vidas são reduzidas a esse cálculo. Quem tem dinheiro
em abundância não pensa nisso. As que, como eu e você,
não conhecem nada além de um futuro incerto, mas que
são livres, que têm a possibilidade de se rebelar, de recusar
a condição de escrava, são abençoadas. Como tenho pena
das pobres meninas a quem se diz: “Fique à vontade para
tomar café o quanto quiser depois de acabar o serviço”.
Diante dessas desgraças, sou invadida por um imenso
desgosto.
2 de junho de 1962

Faz dois meses que sou faxineira, e não tem sido divertido,
Carolina. Pau que nasce torto, morre torto. Com a minha
patroa, não falo apenas de cera, sabão de Marselha e
prendedores de roupa. Sinto que ela está um pouco
desapontada. Sua amiga contratou “uma” que fala muito
mal francês e é bastante ingênua, que lindo! Para ela, sou
uma pessoa esquisita, o que a deixa nervosa e um pouco
cruel. Ela pergunta:
“A senhora já terminou o vestíbulo?”
“Sim, senhora.”
É o sinal: ela pega um tapete empoeirado e se põe a
sacudi-lo justo no lugar que acabei de deixar brilhando!
Preciso então recomeçar. Se disser isso em casa, meu
marido vai gritar “Fique aqui”, e depois tratará de deixar
minha mobilete enguiçada! Se ficar em casa, jamais poderei
ver até onde a estupidez humana pode ir. Na segunda-feira,
limpo a sala de estar até dizer chega, começando por
escovar um tapete bem pesado. Pelo jeito, o aspirador
danifica as fibras desse precioso ornamento. Pessoalmente,
acho que é para melhor me ver de joelhos no chão. Na
terça-feira, quando tudo está brilhando, a patroa decide
costurar, e centenas de fiapos se incrustam na lã do tapete
que me custa tanto limpar. Com um ar negligente, ela diz:
“Preciso lembrar de pôr um lençol velho na frente da
poltrona de costura!”. Ela invariavelmente esquece! Então
faço menção de pegar o aspirador de pó, e ela diz: “Preciso
do aspirador para a sala! Pegue a escova pequena!”. Ou
seja, “Curve o lombo, minha filha, vou te pagar dois francos
por hora pelo serviço”.
Sou uma cobaia voluntária, reprimo o desejo de pendurar
o avental na parede e começo novamente a escovar.
É quando me pergunto como deve ser para as minhas irmãs
que não têm para onde ir caso se rebelem, que são forçadas
a ficar dia e noite na companhia dessas tais mulheres de
bem porque têm uma viagem a reembolsar! Carolina, é
horrível. Carolina, quando você se dobrava toda para ver o
que tinha nas lixeiras, pelo menos não havia ninguém no
seu calcanhar para ter certeza de que você estava curvada,
sorte sua, você sabe! Quando volto para casa, ainda não é
hora de dormir! Tenho filhos para educar, dar umas boas
palmadas, alimentar e amar. Felizmente, isso me faz
esquecer a patroa.
5 de junho de 1962

Hoje consegui adicionar algumas páginas ao livro que tinha


deixado pendente. Isso porque, ontem à noite, enquanto
estava sentada na garupa da motocicleta do meu marido,
que me trazia de volta da cidade, ele deu uma risada e
disse:
“Então, está tudo certo com o seu livro, ele é bem fininho!
Dei uma olhada nele de tarde: cinquenta páginas! Você é
engraçada!”
No início, é claro que O morro dos ventos uivantes era um
livro bem fininho. Fiquei tão exasperada que jurei terminar
esse famigerado Reino desvanecido custe o que custar.
Tenho certeza, Carolina, de que ninguém zombava de você.
Pentecostes de 1962

As tardes na casa onde trabalho são terríveis. A patroa está


ficando cada vez mais irritadiça. Queria tanto dois dias
inteiros de folga! Mas os dias que tenho são estes, e
aproveito o máximo que posso. Eu, filha do vento e dos
espaços abertos, sou forçada a girar em círculos em um
grande apartamento de persianas fechadas. Quando entro
nos quartos das meninas, a náusea me invade, corro para
as janelas para abrir tudo, caso a dona da casa não esteja à
espreita — ela odeia a luz do sol. Nessas horas, penso
apenas no mistral que poderia soprar, purificando essa
residência abafada. Passo o aspirador e me sinto enjoada, a
náusea toma conta de mim depois de respirar aquela
mistura de cheiros, perfume, suor, cozinha. O  meu
momento de desforra é pegar o caminho mais longo de
volta para casa: a subida até o meu subúrbio, dez
quilômetros de estrada a percorrer, passando por canteiros
floridos. Volto para casa feliz, mas feliz de verdade, muito
mais do que se tivesse ficado um dia inteiro ralando em um
ateliê qualquer de costura. As poucas horas que passo na
rua me fazem apreciar onde vivo, e fico contente em
retornar! Embora tenha que fazer horas extras para
recuperar o tempo perdido. Inverno e verão, a brisa do bom
Deus sempre encontra um jeitinho para entrar na minha
morada. Gosto de faxinar com grandes baldes de água
fresca, de deixar as peças cheirando a capim-cidreira. Se
fosse rica, evitaria as cortinas que acumulam poeira e os
imóveis de dois andares nas avenidas movimentadas. Eu
teria uma casa ensolarada no campo, longe do barulho dos
motores, ouviria o vento cantar nas árvores altas, que não
faltariam ao redor.
Mas sou faxineira. Carolina, ando de um lado para outro
entre o fedor das meias, da cera de assoalho e dos produtos
para remover odores; entre livros que nem sequer teremos
tempo para ler e meninas que desconhecem as piscinas
públicas e as caminhadas.
Ao chegar em casa ainda sob o impacto da falta de
ventilação, digo às crianças: “Vamos, depressa, respirem”, e
abro minha casa para que o sol entre por todos os lados. O
mais penoso para uma faxineira, eu acho, é o cheiro da vida
dos outros. Apesar do cansaço, aproveito o sol, perto de
uma janela, depois de ter cozinhado para a família, e penso
em você. Consigo vê-la, um lenço prendendo os cabelos,
pregando as tábuas do seu barraco, e fico motivada. As
crianças continuam a surrupiar meus lápis, mas o livro está
avançando.
Terminei o primeiro caderno e estou exultante; Carolina,
saber reunir palavras, montar frases e poder lê-las, ainda
que o escrito esteja em crioulo ou javanês! Sinto uma
incrível sensação de alívio. O que estou fazendo não é fácil:
há sempre um dos meninos resmungando ao meu redor,
enquanto outro ri. Entre os meus filhos, dois me apoiam:
examinaram as páginas
e arrancaram duas folhas que tinham achado interessantes,
“para ler na cama”. Minha filha achou as páginas brancas
do meu novo caderno ideais para desenhar. Fiquei furiosa e
disse a todos que, caso faltasse papel para escrever, ou
trechos da minha história, aquilo nunca seria um livro;
depois disso, eles se limitaram a rodear as minhas páginas
brancas ou já escritas, mas não ousaram mais tocá-las.
Até identifico um avanço sutil no meu marido: ele ri
menos, me chama de “minha escritora”. “Minha escritora!
Me dê as minhas meias!”, “Minha escritora, faz um bolo
para nós?”. Deixo a caneta de lado e vou fazer o bolo. Mas
quando ele sai de manhã cedo e meus apoiadores ainda
estão dormindo, minha filha sonhando com desenhos ainda
nem esboçados, me alegro: somente a coruja do velho
pinheiro perturba o silêncio, estou no meu hábitat natural.
Talvez o ideal seja ditar os pensamentos a secretárias e
contar com as sugestões de conselheiros; entretanto, como
seria menos prazeroso!
24 de junho de 1962

Agora passou de todos os limites! A jovem da minha terra


ainda está aos prantos. Domingo, fui vê-la, fazia tempo que
ela parecia me evitar, eu tinha que tirar isso a limpo! Subi a
ladeira que leva ao casarão dos “seus senhores”. Acabei por
encontrá-la numa horta de alfaces, o joelho enfaixado com
atadura. Chamei:
— Yolande! O que a senhora está fazendo aí?
Nunca a tratei por “você” porque queria conscientizá-la de
quem ela era. Na casa onde trabalha, todo mundo fala com
ela por meio de gírias e a trata por “você”, até a menina de
sete anos, até a avó velhinha.
— Yolande, hoje, domingo, o que a senhora está fazendo
com essa enxada?
— Estou doente, tenho reumatismo no joelho, todos foram
para o campo.
— E quem cuida da senhora então?
— Ninguém. Comprei uma pomada na farmácia. A patroa
disse que ainda não tenho direito ao sistema de saúde, e
não é com os setenta francos que ganho por mês que vou
conseguir pagar um médico.
Peguei a enxada das mãos de Yolande e perguntei:
— Por que está fazendo isso, já que tem um problema no
joelho?
— A patroa disse que sou uma empregada faz-tudo! Cuido
até da horta!
— Yolande, por que não vem mais nos visitar?
— A patroa disse que, depois que comecei a ver a
senhora, fiquei mais exigente; que foi a senhora quem me
fez perguntar a ela como pensava aquecer o meu quarto
perto da garagem no inverno! Não tem a ver com a
senhora, mas lá está fazendo frio agora, imagina no
inverno!
— A patroa disse… a patroa disse! Pois é, ela continuará
dizendo. Em primeiro lugar, a senhora vai consultar um
médico; em segundo lugar, irei falar com ela; por fim, é
preciso acordar! A senhora não é obrigada a ficar aqui
porque alguém lhe pagou a viagem!
— Mas o que vou fazer?
— A senhora irá a uma agência de emprego, e a agência
encontrará algo. Se quiser voltar a trabalhar, exija ser
regularizada para ter direito à seguridade social!
Yolande tinha medo das pessoas, medo da sua sombra,
medo dos brancos, como nos áureos tempos da escravidão.
Carolina, minha velha amiga, encontrei a patroa da
Yolande, uma ruiva salpicada de pontinhos de chocolate,
uma verdadeira onça-pintada! Fui logo dizendo:
— Senhora, vim buscar a Yolande para levá-la a um
médico; me passe a inscrição dela no sistema de
seguridade social.
Ela respondeu:
— Está em andamento! Mas posso chamar o médico da
minha família.
— Não, o médico que ela escolher! Ela não pode viver
com setenta francos por mês; ela tem dois filhos que estão
morrendo de fome lá de onde ela veio. Vai ser assim ainda
por muito tempo? A inspeção do trabalho vale para ela
também, a senhora sabe disso!
— O que é isso! Por que a senhora está se metendo onde
não foi chamada? Além do mais, quem é a senhora?
Respondi:
— Uma negra indignada, não dá para ver? Por acaso a
Yolande veio a sua casa para cuidar da horta? Onde a
senhora aprendeu esse tipo de coisa?
Aliás, as mulheres europeias não aprendem esse tipo de
coisa; o instinto de dominação desperta quando elas
encontram um elemento que lhes convém. Continuei:
— Yolande está deixando o emprego! Só para chegar ao
serviço ela leva uma hora todos os dias.
A senhora sobressaltou-se:
— Ela não vai a lugar nenhum, ela me deve dinheiro.
— Ela está indo embora, e vai lhe pagar, porém
trabalhando fora daqui! A senhora não fez contrato, mas ela
pode fazer uma confissão de dívida. Quanto ela ainda deve
à senhora?
— Não calculei.
Yolande se vestiu rapidamente e, mancando, me seguiu;
seu rosto estava radiante. Podia enfim cogitar que sua
servidão teria um fim.
26 de junho

Minha patroa tem se retraído cada vez mais. Após um golpe


baixo que teria desorientado qualquer pessoa, menos eu,
ela passou a me ver alegre como no primeiro dia; abasteço-
me de otimismo em casa e continuo a minha experiência.
Além do mais, recebo o suficiente para pagar as minhas
despesas, uma mulher tem disso, pequenas despesas! Esta
semana ganhei cinquenta francos pelas tardes de trabalho;
me pagaram no sábado e hoje, segunda, só me restam dois
francos. Quando levar um franco de pirulitos para casa,
terei que deduzir do orçamento familiar para comprar
minhas passagens. E quem liga para um porta-moedas
vazio quando se pode deixar felizes aqueles que estão à sua
volta, e além do mais, meus filhos estão saudáveis. Isso
vale todo o ouro do mundo! É por isso que esqueço a patroa
assim que deixo a sua casa.
As pessoas ficam surpresas de não me ver por perto na
saída da escola; imaginam que meus meninos voltam
sozinhos. Tenho fé na minha raça, acredito que nunca estão
sozinhos, nunca estarão. No ônibus que me leva até o
aspirador da minha patroa, invoco o Espírito Santo, e Ele os
protege. Se meus filhos voltam antes de mim, sempre
acontece algo errado, é óbvio, cadeiras de cabeça para
baixo, torneiras abertas, mas não é normal? Eu os
repreendo só da boca para fora.
30 de junho de 1962

Carolina, dizem que o futuro é dos que cedo madrugam.


Sempre me levantei cedo, porque o pobre levantar cedo não
é uma questão de futuro, mas de presente. Se meus pés,
Carolina, estão inchados depois de uma tarde passando
roupa, tenho que massageá-los imediatamente, amanhã
preciso deles para subir a escada: há dezenas de janelas
para deixar brilhando. E, acima de tudo, é preciso que eu
esteja em boas condições para subir os oito andares até o
apartamento: o elevador está enguiçado. O futuro para
você, como para mim, é uma questão da ordem do dia. A
patroa notou a minha satisfação em deixar que o ar e o
mistral de Notre-Dame de la Garde purificassem a
atmosfera daquela alcova. Ela então fechou
hermeticamente todas as persianas. No vestíbulo, o
termômetro marca trinta graus — e estamos falando da sala
mais fresca do apartamento. Ela acendeu as lâmpadas
fluorescentes. Eu suava enquanto passava a vassoura e o
esfregão. O suor pingava da minha testa, invadia as
pálpebras; com a mão, tratei de enxugá-lo. Considerei o
gesto indigno. Atirei tudo no chão. E fui pegar meu lenço na
bolsa. A madame, deitada em uma poltrona, perto de um
ventilador, me disse: “Então, a senhora acha que está
quente? Mas na sua terra natal é pior ainda e nunca para”.
Apoiada na vassoura, falei da imensa sombra espalhada
pelas mangueiras, do frescor trazido pelos ventos alísios e
das janelas abertas para abrigá-los, das persianas aspirando
o ar, dos rios, dos banhos de mar. Ela me escutou
atentamente, depois franziu a testa. Disse a mim mesma
que o momento de partir tinha chegado. Em seguida, fiquei
com dó dela. As meninas da casa foram reprovadas nos
exames. Neste momento, vi a patroa como qualquer outra
mãe. Ela passou dias de angústia aguardando os resultados
daquelas famosas provas do ensino médio, depois veio a
tristeza e a decepção de ver suas crias voltarem de mãos
abanando. A tristeza por causa da família, a decepção por
causa do orgulho: ela já havia falado com suas amigas
sobre a festa surpresa que faria em casa se as filhas
atingissem os objetivos. Quando se é mimado pela vida,
como não se tornar alguém orgulhoso? Quis dizer uma
palavra gentil, receava parecer atrapalhada. Encolhida nos
meus pensamentos, eu a observei encolhida na poltrona, e
fiquei calada.
4 de julho de 1962

Ontem, a senhora saiu, e eu fiquei sozinha. Dois homens de


uniforme azul tocaram a campainha. Um carregava um
pacote numa caixa, outro tinha uma ferramenta na mão.
Quando me viram, pareceram surpresos. A visão do pacote
me fez pensar no explosivo plástico que se vê por todo lado
agora. Eu disse então: “O que os senhores querem?”. O
sujeito do martelo respondeu: “Vim instalar grades no
banheiro”. Eu não tinha o que dizer, mas mesmo assim
retruquei: “Não é aqui”. O sujeito
insistia: “É aqui, sim, chame a dona da casa para mim!”.
Com medo do pacote que ele carregava debaixo do braço,
eu disse: “Eu sou a dona! Se é explosivo que vocês estão
trazendo embaixo do braço, vocês se enganaram de edifício
e de moradora. E sobretudo não deixem esse pacote aqui,
que eu o jogo de volta na cara de vocês”. O que o medo não
nos faz dizer ou fazer!
Eles começaram a rir alto: “A senhora não pediu
explicações, mas já instalamos grades em todos os andares.
No ano passado, ladrões passaram pelo pátio; então foram
tomadas as devidas precauções. Enquanto estamos aqui,
passamos para ver se lhe interessa! A senhora não quer
fazer a mesma coisa?”. Um pouco mais tranquila, respondi:
“Não, eu não quero fazer a mesma coisa! Podem ir
embora!”.
Eles se dirigiram até o elevador: “Ainda assim, a senhora
poderia ter sido educada!”.
Nem cinco minutos tinham se passado antes que a voz da
patroa, em alto e bom som, chamasse a minha atenção:
“Mas quem ela pensa que é!”. A patroa trazia os homens de
volta. “Por que não lhes disse para esperar?”. Retorqui: “E
se eles trouxessem uma bomba para cá, com tudo o que
está acontecendo agora?”. Mais uma vez, ela me achou
esquisita e não respondeu nada.
8 de julho

Da minha terra recebi uma carta e recortes de jornais: era


minha mãe me contando sobre o acidente com um Boeing
em Pointe-à-Pitre. Mãe é mãe! Ela não quer que eu esqueça,
fica falando sobre os acontecimentos mais irrelevantes
possíveis da nossa terra: há anos ela mantém o meu
coração aceso, e agora, enquanto procuro no porão as
malas da patroa, que se prepara para tirar férias, é como se
o vento alísio refrescasse todo o cheiro insosso que emana
deste antro bolorento. Pensar na minha terra sem porões
aquece o meu coração! Arrasto um caixote cheio de
garrafas, e lembranças de outrora não saem da minha
cabeça: pelo menos assim as horas vão passar mais rápido
hoje. Quando penso, esqueço os lugares e as pessoas ao
meu redor, possuo um universo próprio, sou um robô,
trabalho três vezes mais do que o normal, mas são apenas
os braços que se movem, a mente está em outro lugar. Não
saberia dizer quantas vezes fui e voltei do porão para o
apartamento! Ao sair do elevador, a voz do patrão me tirou
do transe; ele dizia à esposa:
“Admita que eu tirei a sorte grande, não é sempre que
você tem uma faxineira assim. Não é sempre que eu a vejo
na labuta, mas ela dá duro mesmo!”
A senhora replicou:
“Essas mulheres têm isso no sangue!”
Finalmente, Carolina, um depoimento que não fala de
negros cochilando, um espanador sobre as pernas!
2

17 de julho de 1962

Com um ar culpado, meu patrão, antes de sair, entrou na


despensa e colocou, no pequeno armário dos produtos de
limpeza, uma grande caixa de chocolates: “Isso é para a
senhora, para seus filhos. Volte em setembro, a minha
esposa ficará contente”. Mas a patroa não ousou me dizer
isso diretamente; foi tantas vezes arrogante comigo que
imagina que eu não quero voltar. Pois bem: há um elemento
no grupo digno de interesse. Será que vou voltar?
10 de agosto de 1962

Faz um mês que parei de escrever, de falar com você,


Carolina, porque meu primogênito riu, ele me disse, com
sua lógica infantil, que era ridículo escrever para uma
pessoa que jamais vai me ler. Sei disso, repetia para mim
mesma, bem baixinho, mas naquele momento ele me disse
em alto e bom som, tanto que seus irmãos repetiram em
coro: “Pois é! Por que você conta coisas para a Carolina? Ela
não fala francês”. Nós não falamos o mesmo idioma, é
verdade, mas o do nosso coração é o mesmo, e faz bem se
encontrar em algum lugar, naquele lugar onde nossas almas
se cruzam. Hoje, recuperei a paz de espírito e converso com
você, me sinto descansada. No livro Imitação de Cristo,
destaquei um pensamento: “A glória do homem virtuoso é o
testemunho da boa consciência”: está escrito no começo do
sexto capítulo. Essa consciência tranquila, contudo, não
consigo ter, não com facilidade. A vida me deixa em estado
constante de revolta, e não é por causa de Deus, mas dos
homens. A patroa foi com sua família praticar esqui
aquático, mas antes ela não comeu quase nada para entrar
em forma! Ela provou seu biquíni na minha frente, eu vi
umas gordurinhas que saíam daqui e dali, apesar de tudo.
Quando se está na idade das gordurinhas e bem de saúde,
por que tornar a própria vida um inferno para perdê-las? Ela
partiu debilitada e acreditando ter voltado à boa forma. As
garotas me disseram daquele jeito de sempre “Bom dia!
Boa noite!”, e sumiram dentro do seu Citroën ID.
Voltei para o meu lar e para a criançada! Três meses de
remendos estavam à minha espera, além de uma bela
faxina em casa: já era o bastante para preencher as férias.
Mas não deu! Meu mundo veio abaixo. O meu Jean-Marc,
que estava brincando do lado de fora, voltou com o rosto
torto. Quando falava, ele parecia fazer uma careta; pedi que
ele falasse direito, ele me lançou um olhar desesperado.
Percebi que não estava brincando, algo sério tinha
acontecido. Fui ao médico, de avental e tudo. Ele me
encaminhou imediatamente a um especialista. Peguei
correndo um táxi em direção ao consultório desse doutor. Lá
chegando, o médico pediu que meu filho assobiasse,
olhasse para o teto, depois para o chão, movesse os
músculos do rosto, provocando uma careta horrorosa. Foi
diagnosticada paralisia facial de causa desconhecida. Meu
filho necessitava ser levado ao maior hospital de Marselha.
Um hospital é algo maravilhoso! Mas a hierarquia toda
que há nele geralmente o transforma na antecâmara do
inferno. Minha pobre Carolina! Fui embora com meu menino,
apreensiva com a ideia de que ele poderia ficar lá. O médico
plantonista me disse:
— Não se preocupe, deve ser uma forma de poliomielite!
A simples menção a essa doença terrível me deixou de
cabelo em pé. E logo começou uma série de exames.
Com uma voz angustiada, perguntei ao meu garoto se ele
se sentia bem; ele disse que não, e achei que sua boca
crispada estava ainda mais deformada, seus olhos
minguados.
O especialista desapareceu. De forma exaltada, uma
enfermeira me disse:
— Depressa! Pegue o sangue do seu filho e leve com este
bilhete à Faculdade de Medicina, lá procure pela sra. X…
Peguei meu filho, que felizmente não havia sido
hospitalizado, e pulei para dentro de um táxi.
A faculdade triste e deserta durante as férias era
desoladora. Perguntava a mim mesma em qual porta entrar
no grande hall. Havia muitas, e todas eram iguais. Saltei os
poucos degraus que ali havia. Alguns homens de branco
circulavam naquele espaço. Precipitei-me na direção de um
deles e disse:
— A sra. X… por favor, é para uma série de exames, é
urgente.
O outro respondeu:
— Exames? Aqui não, aqui é uma faculdade — disse ele
com ar arrogante.
Eu insisti:
— Mas está escrito no papel! — e saquei a folha que a
enfermeira tinha me dado. Ele ajeitou os óculos, examinou o
documento e foi consultar um médico plantonista:
— Pode ser aqui? — perguntou.
O homem que ele tinha procurado disse:
— Talvez! Pegue a primeira escada, é no terceiro andar.
Continuava a perguntar ao meu filho como ele se sentia.
Ele dizia:
— Estou bem, está tudo bem.
Ele andava atrás de mim sem dar sinais de cansaço. No
terceiro andar, o hall era tão impressionante quanto no
térreo. Entre os laboratórios fechados, salas de estudo
vazias abrigavam apenas grandes bancos maciços e
envernizados, como se fossem vigias imóveis. Jean-Marc
soletrava cada palavra inscrita nas portas fechadas,
palavras terminadas em “gia”; em outro contexto, aquilo
poderia ter sido alvo da minha curiosidade. Mas naquele
momento tudo parecia sinistro, até mesmo o ruído dos
nossos passos ecoando nos corredores intermináveis. Meu
filho parou em frente a uma porta e leu: “Anfiteatro”.
— Deve ser aqui — ele disse, apontando o dedo. Um
arrepio fez meu corpo tremer de cima a baixo, e tratei de
tirar o menino dali.
Eu tinha andado de ponta a ponta os duzentos metros de
corredores do terceiro andar sem encontrar vivalma. Voltei
para o local onde estavam os homens de branco.
— Não há ninguém lá em cima — eu disse —, e é uma
emergência. O meu menino pode estar com poliomielite, os
exames são urgentes, e ele precisa descansar. Saímos de
casa de manhã cedo, o frasco de sangue está esquentando
na minha bolsa.
Um deles respondeu:
— É preciso voltar ao hospital e pedir mais informações
sobre onde a senhora quer ir!
Nesse exato momento, Jean-Marc me disse que estava
cansado, e vi seu rostinho mais abatido que antes. Quase
aos gritos, eu disse:
— Mas é um absurdo, é quase meio-dia! O doutor e as
pessoas que me mandaram para cá já vão ter ido embora,
olhe o meu menino! Não posso mais fazê-lo andar nesse
sol! E a bendita solidariedade humana existe apenas na
tevê e no cinema?
Minha revolta mexeu com um deles. Ele pediu que eu
esperasse e foi até um telefone, disse algumas palavras e
fez sinal com a mão para que o seguisse: no final do
corredor, uma mulher jovem, bonita, morena e sorridente
apareceu. É bom um sorriso depois de tanto tempo vendo
rostos hostis ou tensos de pessoas que só pensam na hora
de ir embora. Aquele sorriso, Carolina, tocou fundo meu
coração, e toda a agitação da minha mente apreensiva se
acalmou. A mulher de branco se impunha pela calma.
Expliquei-lhe o que queria, e ela respondeu com uma voz
ponderada:
— A senhora perdeu tempo! De fato é para mim: eles
deveriam ter me telefonado antes! Em quinze dias, os
resultados serão comunicados ao seu médico; continue com
as vitaminas e espere! Vai dar tudo certo!
Agradeci e olhei para o rosto torto do meu filho, me senti
abandonada pelos homens. Fiz um sinal e disse: “Que seja
feita a vontade de Deus”. Jean-Marc repetiu meu gesto e
minhas palavras. Ao entrar no táxi que deveria nos levar de
volta para casa, ouvi o seu murmúrio: “Que seja feita a
vontade de Deus”.
Minha velha Carolina, após um medo tão grande, me senti
regenerada ao pronunciar essas palavras, perfeitas para a
minha alma de mulher negra, e um outro eu havia
substituído aquele que minutos antes se desesperava por
tudo. Trata-se da resignação, dom que Deus dá aos infelizes.
Ela impede a revolta, os atos e as palavras impróprios.
No fundo do táxi havia uma revista esquecida por um
cliente; eu a folheei e parei ao ver as fotos de Marilyn, que
acabara de se suicidar. Se ela tivesse conhecido a fé ou a
resignação — ela precisava apenas levantar o mindinho
para ter à sua disposição todos os especialistas da Terra —,
não teria se matado. Fiquei arrepiada só de pensar nisso, e
entrei em casa com o meu menino, umas injeções de
vitaminas e repetindo maquinalmente: “Que seja feita a
vossa vontade”.
11 de agosto

Carolina, você sabe o que acontece? Tenho um público


atento que me pergunta sobre a continuação do meu livro:
minhas crianças! Eles me leem! Riem! Exclamam! Tenho
que fazer alguma coisa enquanto espero que o tratamento
de Jean-Marc funcione: então escrevo, o doutor vem de dois
em dois dias, incitando o menino a fazer caretas e me
encorajando. Para ajudar meu filho a ficar tranquilo, faço um
grande esforço, a promessa de um novo capítulo ainda
durante o dia faz o tempo passar mais rápido para ele e o
encanta: ele se aproxima de mim e pergunta: “O que você
está escrevendo? Lê para mim!”. Eu leio, ele pede a
continuação, e sou obrigada a continuar, a tal ponto que o
que escrevo ganha forma, meu marido não diz mais que o
manuscrito é muito fino; até me empresta suas canetas
esferográficas, e isso não é pouca coisa vindo dele! Os
outros membros da família corrigem, quando podem, os
erros de ortografia. Tudo teria sido encorajador se nesta
semana, no rádio, eu não tivesse ouvido um escritor
profissional contar que precisa de três anos para finalizar
um livro, fazendo só isso da vida! Se começo a trabalhar no
manuscrito, fico cansada com os pensamentos rodando sem
parar na minha cabeça. Tudo muda conforme a ocasião, e
as ideias de ontem mudam de forma de acordo com o local
ou a hora, só é preciso colocá-las no papel. Entretanto, eu
deveria ter relido o que escrevi enquanto descascava os
legumes.
20 de agosto

Renélise quer descansar um pouco, e sua patroa lhe pediu


para encontrar uma substituta por dez dias. Então ela veio
me visitar, toda graciosa, toda delicada com seus olhos de
ébano e suas longas tranças, dispostas como uma coroa. Se
ela não se penteasse assim, seria um “arraso”. É claro, ela
me falou de Fort-de-France, de seus parentes, a quem envia
algum dinheiro no final de cada mês. “Se estivesse na
fábrica de tâmaras ou de anchovas, precisaria pagar meu
quarto, a alimentação, e tudo mais… Ao passo que
trabalhando na casa de alguém, na da minha patroa pelo
menos, consigo economizar dinheiro; minha patroa me dá
sempre um pouco mais, já que eu acabo fazendo uns
trabalhos extras.”
Concordei em substituir Renélise por dez dias, ela me
falou tão bem dessa patroa que me apresentei cheia de
boas intenções. Logo entendi que seu marido estava em
tratamento em Vichy e que ela ficava no vaivém entre Carry
le Rouet e Marselha, só para passar um tempo com ele. Ela
disse a um jovem, surpreso por me encontrar ali naquela
manhã, uma vassoura nas mãos:
“Essa é a senhora que substituirá Renélise por dez dias.”
Virando-se para mim, ela acrescentou:
“Este é o sobrinho do meu marido!”
A patroa é magra e tem uma aparência de quem pratica
esportes: cabelos negros com um corte reto, o que lhe
confere um ar sério. Logo me deixou os tapetes e a
vassoura, partindo com seu sobrinho. Ao voltar, perguntou
se eu tinha achado o sobrinho gentil! Respondi que não
tinha prestado atenção.
22 de agosto

Aquela senhora não se preocupa com a faxina: com ela, não


há tapete a ser limpo dez vezes seguidas, tenho que lhe
dizer onde estão os objetos mais banais. Eu, que estou na
casa não faz dois dias, fiquei constrangida. Para se
desculpar, ela me disse:
“Peguei o hábito de deixar tudo aos cuidados de Renélise,
entende?”, e recomeçou a falar do sobrinho do patrão.
24 de agosto de 1962

Levei meus filhos ao zoológico para que se divertissem um


pouco. Como em todas as tardes, quando saio, Jean-Marc
fica com o pai, recém-chegado do trabalho. Ele também
gostaria de aproveitar o passeio: os músculos do seu rosto
voltaram ao lugar, somente o seu sorriso deixa entrever um
risinho de canto de boca anormal, provando que ele não
está completamente curado. Mas os outros, Carolina,
precisavam dar uma volta. Eles se precipitaram pelas
alamedas do zoológico e, talvez pela vigésima vez, ficaram
extasiados diante dos leões já envelhecidos, diante do urso-
polar tão desgrenhado e de um velho animal, semelhante a
um hipopótamo, que estava mergulhado na água morna da
lagoa, boa somente para os patos. O passeio os deixou com
sede, e eles invadiram, após a caminhada, as magníficas
sombras dos plátanos bem cuidados. Lá se encontram os
quiosques. Nos bancos, na verdade por toda parte, os
namorados se beijam, acreditando estarem sozinhos no
mundo. Não os observo, é tão normal na Europa, as pessoas
fazem sexo em qualquer lugar, e aquilo não me
surpreenderia se meus olhos cabisbaixos não tivessem
reconhecido os sapatos brancos da patroa cuja casa eu
tinha limpado tão bem ontem. Meu olhar deixou os calçados
e seguiu o resto da silhueta que eu enfim reconhecia.
Estavam lá a patroa e o sobrinho do patrão, num abraço
carinhoso. Depressa peguei os meninos e saí dali, desejando
não ter sido vista por ela.
25 de agosto

Ela tinha me visto! Perguntou o que eu achava do sobrinho


do patrão! Eu respondi: “Ele tem um jeito de idiota”. Não é
verdade! Ele está mais para Johnny Hallyday! Mas eu não
conseguia me controlar, eu via o patrão suando e ofegante
nas saunas a vapor (foi ela que me contou), enquanto o
sobrinho, responsável apenas por colocar a correspondência
no correio, apalpava sua esposa. Quando disse que ele tinha
um jeito de idiota, a mulher pareceu escandalizada, virou-se
e me jogou na cara, no momento em que eu saía, que
Renélise trabalhava melhor. Nessa mesma noite escrevi
para Renélise encurtar a sua folga, pois eu iria dar o fora
daquela casa.
28 de agosto

Renélise voltou de noite: contei o que tinha visto e como a


patroa estava “de mau humor” havia dois dias; ela riu e me
confidenciou que estava a par fazia muito tempo, que até
passava os recados entre os amantes quando o patrão
estava lá. Ela era a confidente fiel e assalariada. Ela chegou
a me dizer que era melhor que a patroa estivesse
envenenada com sua vida dupla, que tudo isso lhe era
indiferente. Eu disse: “Ainda assim, e o patrão?”.
Ela respondeu: “Um porco velho, que vive atrás de mim!”.
Estou feliz de deixar essa casa.
1º de setembro

Vou substituir alguém numa casa enorme até o dia 15. A


patroa dessa casa não faz muita sombra, levanta a cabeça
para me ver, sempre com os seus saltos incríveis, ela é
pied-noir[3] e gentil. Tal como o marido, ela é professora, é
exuberante e suas palavras são como ondulações
harmoniosas! Ele é discreto e tranquilo. Noto que os patrões
são sempre melhores que as patroas, esses dois têm um
jeito de se completar, é melhor assim. Eles têm quatro
meninas! Jovens de um a onze anos. Seus quartos são um
depósito de tralha! Quando entrei neles, gritei de susto.
Jeans pendurados no cabide dos casacos, roupas sujas no
chão e sapatos nas mesas de cabeceira. Nos armários,
caixas de bombons vazias; frascos de perfume cobrindo as
estantes da enorme biblioteca. Se tivessem me dado tempo
para desenvolver o meu potencial “ao máximo”, começaria
dando um bom par de bofetadas nessas menininhas
indisciplinadas e trataria de organizar aquele espaço,
centímetro por centímetro. Mas há coisas demais a serem
feitas em três horas, e eu, atordoada, fico observando as
princesinhas.
O patrão e a patroa nunca estão presentes, e as meninas
tomam conta do picadeiro: elas entram e saem sem pedir
licença, trazendo suas amigas a tiracolo.

Carolina, que experiência estou fazendo! Tinha lido num


jornal que precisavam de uma datilógrafa para uma vaga
temporária. Eu me apresentei, mas a diretora do escritório
disse que o lugar não estava mais disponível. Ela olhava
para mim com espanto, percebi que minha pele a tinha
surpreendido. É assim, infelizmente, no interior: você se
apresenta dizendo que pode redigir corretamente uma
correspondência comercial ou administrativa, e lhe é dito
que procuram uma pessoa experiente. Você diz que tem
experiência de sobra e que, por causa da responsabilidade
inerente à cor da sua pele, você é perfeccionista com o
trabalho, você sabe do que estou falando! Ninguém pode
ter a chance de dizer que aquelas negras são uma nulidade,
seja no que for. O que tem que ser feito tem que ser bem-
feito, em benefício de todas as outras negras do mundo
inteiro. Então nos dizem para voltar outro dia, ou que
“entraremos em contato”. Então você fica de saco cheio e
parte para uma agência de emprego para faxineiras se você
tem urgência em garantir o seu ganha-pão. Lá a atendente
abrirá um sorriso: a visão de uma morena vai deixá-la
contente:
“Ah! Procurando trabalho? Não vá embora! Tem a dona
Fulana, a dona Beltrana e a dona Sicrana que procuram
pessoas como a senhora.”
Mas a atendente não chega a dizer “Elas gostariam de
uma negra”, ela não se atreve. Ela nem pede referências,
caso você tenha a sorte de ser antilhana. As antilhanas, por
atavismo, rendem bastante. E você é empregada na casa da
dona Fulana com suas princesinhas, e você vai observá-las
vivendo, sem inveja. Para mim, o chefe da agência disse
que não tem vaga sobrando, mas a atendente não se privou
de me perguntar se eu conhecia uma pessoa interessada
em trabalhar algumas horas na casa de uma família. “Sabe
como é”, ela acrescentou, “alguém como a senhora seria do
agrado deles.” Havia algo de indecente naquele pedido,
mas, Carolina, o que a gente não faz nesta vida. Eu disse:
“Estou livre por enquanto, até a volta às aulas. Eu irei!”
Ela não identificou nada estranho na coisa toda e se
apressou a passar o endereço dos seus amigos. E isso foi
tudo!
8 de setembro

Não direi nada, pois o patrão e a patroa são corretos e


inteligentes, não levantam o tom da voz, não ofendem,
parecem assustados por ter tantas meninas estabanadas. A
patroa me explicou que tinha duas empregadas árabes, lá
na Argélia, que as filhas sempre tinham tudo de mão
beijada, e agora…
16 de setembro

A sra. “Pouca Sombra” é simpática. Fiz hora extra para dar


um jeito nos dois quartos das meninas. Coloquei uma
etiqueta nos lugares exatos onde elas deveriam guardar
cada coisa: talvez elas arranquem tudo assim que eu for
embora para sempre, mas me agradeceram com um sorriso.
Salientei que não havia mais uma única pantufa junto às
mesinhas de cabeceira e que seria bom que continuasse
assim. Despedi-me da sra. “Pouca Sombra” e da sua família.
Ela falou do seu pesar em me ver partir e me pediu para
encontrar para ela “uma mulher como eu”. Entendi que ela
queria uma pessoa que dissesse “Sim, senhor”, “Muito bem,
senhora”, “Perfeitamente, senhorita”. Uma pessoa que
nunca resmungasse. Só não faço isso porque odeio
resmungões. Mas como achar uma sósia? Braços, sim, tem
aos montes em Marselha, mas cabeças que dizem “Com
certeza, senhora”, embora por dentro cantarolem “Com
certeza é ridículo”, eu não acredito. Carolina, mesmo
querendo ser desagradável com as patroas, eu me controlo,
para o bem das minhas irmãs que chegam em barcos
lotados para viver na França. Sim, minha velha, é assim
mesmo!
Desde que Martine Carol trouxe das Antilhas uma negra
para cozinhar na sua casa, patroas de todo tipo aderiram à
moda. Pagam a viagem para as meninas que desejam
conhecer novos ares, e opa! Mulatas, chabines,[4] negras e
cafuzas deixam a ilha e logo se veem com o aspirador na
mão, primeira lição para entender como a banda toca por
aqui. E elas ficam surpresas! Conheci Jeanne, ela está no
prédio onde mora a sra. “Pouca Sombra”; foi trazida para
cá, encontrei-a no elevador, uma grande cesta de frutas no
braço. Ela me olhou com curiosidade, e perguntei em patoá
o que estava fazendo ali. Ela disse que foi alojada no sótão.
Ela me esperou na saída e me contou que, no seu emprego,
toda a família estava fazendo regime. Para aquela garota
rechonchuda acostumada a comer fruta-pão de dois quilos,
os patrões oferecem duas alcachofras e um ovo, à noite. As
alcachofras vão direto para o lixo, ela nunca conseguiu
entender como alguém podia comer aquilo! Ao meio-dia,
tem direito a um bife e quatro folhas de alface. Jeanne
pegou na cintura, esticou-a e disse: “Olhe como emagreci,
não tem nada para comer, tirando um pouco de pão”.
Carolina, dessa vez me fiz de surda! Não estou aqui para
tirar da lama todas as garotas que vou encontrando! Meus
lábios murmuraram, mas na minha cabeça alguma coisa
gritava: é o tráfico negreiro? É o tráfico que recomeça? Meu
Deus, diga que estou exagerando! Meu Deus, diga a essas
garotas que chegam em barcos abarrotados de gente em Le
Havre, Cannes ou Marselha, “Quo vadis?”. Diga-lhes isso,
para apaziguar o meu espírito!
3

17 de setembro

Enquanto escrevia as últimas frases, Carolina, encostada na


máquina de lavar (é preciso encontrar um cantinho
tranquilo), meu marido, desanimado, disse que o que eu
escrevia seria um fiasco, que não era necessário falar de
coisas que não me diziam respeito. Se ninguém não está
nem aí para nada, a palavra “egoísmo” faz mais sentido do
que nunca. Logo depois, comentou que eu folheio meu
dicionário com muita frequência; segundo ele, os
romancistas não necessitam de dicionário. Maldosamente,
acrescentou: “Sua papelada é um papelão, um mamoeiro
macho! Flores ao vento! Nunca dará frutos! Você tem que
falar sobre lanchonetes e piscinas! Garotas bronzeadas
tomando banho nas praias, as pessoas adoram isso! Quem
vai se interessar por histórias de negros?”. Eu poderia ter
desanimado. Mas, Carolina, vejo você escrevendo à luz de
vela, sem a presença de ninguém para lhe dizer que tipo de
mamoeiro você é, me debruço então sobre uma nova
página e a encho de realidade.
18 de setembro

As crianças voltaram à escola; elas ainda estão na excitação


do início das aulas: novas mochilas e aventais, calçados
brilhantes, novas professoras, toda a felicidade que lhes é
característica e que forjamos com nosso suor. Minha antiga
patroa me enviou um bilhete, ela voltou das férias, e seu
marido, que tinha me dado uma grande caixa de chocolate,
acrescentou: “Gostaríamos de tê-la de novo conosco”. Tinha
jurado ficar tranquila em casa, mas um turno de trabalho
não chega a dar medo, e a senhora ainda não me pagou
alguns francos que me devia das férias, irei acertar isso.
25 de setembro de 62

Carolina, ô Carolina! Se você visse, a patroa foi maravilhosa


durante dois dias e, em seguida, a delicada chuva de
outono começou a irritá-la, pagar as férias que me devia
também a irritou, ela acertou tudo e mudou de
comportamento comigo, escondeu o aspirador de pó, suas
vassouras estão todas gastas, e o assoalho ainda precisa
estar reluzente! Ela ficou mais chata que antes. Aponta com
o indicador sabichão as fendas, rastreia os menores grãos
de poeira. Ela é um contador Geiger ambulante, fica imóvel
diante do fogão, franze os olhos, recua a cabeça para ver se
os botões do eletrodoméstico foram polidos como ela acha
que deve ser. Faz quinze anos que é proprietária do
apartamento, e há cantinhos que as domésticas brancas
jamais visitaram. Ela me disse: “Pegue uma cadeira e suba
lá no alto!”. Felizmente mantive um pouco da minha
flexibilidade, caso contrário já teria quebrado o pescoço. A
filha mais velha foi para Paris, deixando a patroa triste, e ela
tem uma tristeza nervosa. A outra que diz “Bom dia” de
modo preguiçoso não saiu. Tem ainda o garoto mais novo,
tão gentil, ele não fala mais comigo, alguém deve ter dito
que já era bem grandinho para falar com as faxineiras.
Quando está sozinho comigo, ele relaxa e volta a ser uma
criança como uma das minhas, o que me faz esquecer as
panelas da sua mãe. Eu disse que ela tem uma tristeza
nervosa, ela não me dá mais tempo de trocar de roupa.
Chego às duas horas, ela já espera na frente da porta.
“A senhora vai fazer tudo, por toda parte! Vai tirar esse
negócio do meu redor!”
É uma loucura o que ela consegue acumular à sua volta
em vinte e quatro horas!
29 de setembro

No pátio, seis andares abaixo, um tanque dormia em paz, a


patroa olhou para os meus sessenta e oito quilos e queria
que eu fizesse vaivéns entre o apartamento e o tanque,
bacia de roupa debaixo dos braços! Nunca quando o patrão
está lá. Eu poderia ter ido embora, mas, se saio, jamais vou
saber até que ponto uma patroa pode ir diante de uma
empregada negra. É  melhor que seja eu quem constate
isso, especialmente porque à noite, ao chegar em casa,
posso cair na gargalhada com a minha família. Uma coisa é
certa, o outono começa e a água já está mais fria, minha
partida está relacionada ao barômetro; quando estiver
quatro ou cinco graus perto do tanque, saberei que é hora
de partir. Depois de lavar a louça na água fervente, deixo os
braços imersos na água fria do tanque durante horas.
A patroa pensou que eu estava farta daquilo tudo, então
me passou umas “coisas antigas”, acreditando assim quitar
a dívida comigo. Ela me vê como uma pessoa
completamente ignorante, incapaz de reagir, mas acho que
à noite ela tem dificuldade em dormir: seu subconsciente,
na verdade! Por oito vezes subi os seis andares, pois não se
pode molhar o elevador! Como você quer que ela durma,
Carolina, com aquele pecado graúdo na consciência? Se
contasse ao meu marido, ele gritaria comigo, e eu seria
obrigada a interromper a minha experiência, só me resta
ficar de boca fechada e aguentar o rojão.
O patrão jamais estando presente, é a patroa que reina
absoluta sobre tudo que a rodeia. Suas filhas não ganham
mesada. Nunca há nem um mísero pedaço de pão
sobrando, nunca um pedaço de queijo a mais, como na
minha casa. O caçula tem direito a dois quadradinhos de
chocolate para o lanche, ele engole tudo de uma vez. Sei
que ele ainda tem fome: quando sua mãe não está, eu
dobro a sua ração, e o menino dá cambalhotas de alegria.
Há uma diferença tão grande entre ela e a sra. “Pouca
Sombra”! Aqui não temos o direito de beber um copo de
água, uma faxineira não pode ficar com sede, não pode ter
nenhuma necessidade natural, perderia cinco minutos.
12 de outubro de 1962

Pois é, me sinto tão cansada que não consigo escrever sem


fazer um esforço. Entre o trabalho e a minha casa, percorro
quilômetros de mobilete. Assim que sento na máquina e o
mistral começa a fustigar meu rosto, a imagem da patroa
desaparece. O outono deste ano é um dos mais belos que já
vi, as folhas desistiram de amarelar; timidamente, como
que contrariada, aqui e ali, uma delas se desprende e cai.
Dirijo a cinquenta por hora, é uma injeção de ânimo para
mim e, se não fosse por prudência, iria muito mais rápido!
Esquecer, esquecer, sentir o vento! Chegar em casa livre
de todos os ressentimentos, com vontade de rir, e uma
história para contar às crianças.
Mais rápido! Mais rápido! Anda! Acabo esquecendo ao
final do quarto quilômetro, e a voz da prudência nessa hora
grita: “Desacelera um pouco, sua maluca! Se continuar
assim, você estará num hospital em breve, com uma tala
em cada perna”. O  velocímetro descendo de quarenta e
cinco para quarenta, depois para trinta e cinco e, quando
estou em casa, recuperando o tempo perdido fora, apenas
uma coisa me lembra a patroa: meus membros, que não
aguentam mais.
14 de outubro

A patroa me perguntou se eu ia votar. “É preciso ir”, ela me


disse, “e dizer ‘sim' ao referendo.”[5] Pela primeira vez em
muito tempo, ela falou comigo sobre algo diferente de
vassouras e produtos para deixar o forno brilhando. Eu
queria rir, pobre Carolina, pois já faz tempo que resolvi meu
problema político em âmbito local. Foi a vendedora de peixe
que resolveu a questão. Ela trabalha no mercado de Lacroix,
só falou comigo em crioulo, é velha e se lembra de ter visto
os barcos a vapor no Vieux Port. Na verdade, ela me
recomendou pedir o título de eleitora ao sr. Defferre[6] e
dizer o que eu pensava. Ela gosta de todo mundo, está
indignada porque recentemente metralharam o chefe de
Estado e não acha ruim o prefeito da cidade.[7]
No exato momento em que as mulheres têm o direito de
votar, tem um monte de coisas acontecendo.
“Não desanime”, ela disse, “um dia o número de mulheres
na Câmara dos Deputados será tão grande quanto o
daqueles homens que vivem trocando palavrões entre si, é
preciso votar, caramba!” Cantarolei para ela:
“Sim, vamos lá, vamos lá, vamos lá.”
A vendedora de peixe levou a mão à testa: “Caramba, a
martinicana está pirando!”. Ela estava realmente com dó de
mim.
16 de outubro de 1962

Ele veio! Lá estava ele, só se falava disso em Marselha! Tirei


o dia de folga. Tinha que ver do que é feito um acadêmico!
Peguei o ônibus em direção a Saint-Loup para chegar perto
da escola que ele iria inaugurar. Por que não deixar a
vassoura de lado e ver Marcel Pagnol? Todo mundo estava
comentando em Marselha, foi o acontecimento do dia. No
ônibus, um olhar carregado me incomodava, virei a cabeça
e me vi diante de uma semelhante. Isso é comum e não
teria me chamado a atenção se seu rosto não expressasse
uma enorme tristeza? Aproveitei-me de uma parada do
trólebus e perguntei quem ela era. Carolina, você sabe o
que é o desespero e como uma palavra de simpatia pode
nos encher de esperança. Senti que ela estava mais infeliz
do que eu. Perguntei se estava doente. Ela contou que vinha
das Antilhas, de Pointe-à-Pitre, tinha ouvido dizer que a filha
estava rica, sendo que esta não lhe escrevia fazia quatro
anos. Foi quando conseguiu seu endereço. Vendeu tudo,
casebre e móveis. Chegou a Cannes. Entre despesas de
viagem, táxi e hotel, gastou tudo o que tinha. Cheia de
esperança, bateu no casarão de Saint Giniez, supostamente
propriedade da filha. Ela a encontrou de avental azul, um
lenço protegendo os cabelos. Pensou que se enganara! Ela
não era cabeleireira em Pointe-à-Pitre? Na hora a filha disse
que aquilo era o que tinha conseguido, por isso não
escrevia. A mulher infeliz continuou:
“Eu a criei sozinha! Não sei o que a fez partir, nenhum
salão de beleza a quis empregar, aliás, ela não tem diploma
de curso técnico, ainda que tenha quinze anos de
experiência! Agora ela é uma empregada faz-tudo! Não se
pode visitá-la a qualquer hora, seus patrões não gostam!
Contou aos marinheiros que tinha uma casa enorme, que
era feliz, claro que os tinha convidado a passar por lá um
dia que os patrões não estavam, fingiu ser a patroa! Eu
acreditei e vim! Só me resta voltar. Faço faxina! Mas estou
velha demais para levar essa vida! Tenho um quarto lá em
La Valbarelle!”
Quando cheguei à escola, disseram-me que o sr. PAGNOL já
havia entrado. Em frente ao portão, alguns curiosos ainda
tentavam ver o que estava acontecendo. De qualquer
forma, como isso teria me ajudado, Carolina? Fiquei
consternada com a história da minha compatriota, meu
entusiasmo tinha desmoronado.
28 de outubro de 62

Pois é, caso encerrado; decidi sair, a água do tanque atingiu


uma temperatura suficiente para espantar os cães do bairro
da patroa. Pedi as minhas contas, e a patroa pareceu mais
entediada do que surpresa! Com a sua personalidade, ela
deve ter ouvido muitas vezes as pessoas pedindo demissão.
Nesta tarde, o ritual das bacias de roupa sendo
transportadas pelos andares recomeçou, “economizando” a
máquina de lavar roupa e o aquecedor de água, depois
tinha os tapetes pesados para sacudir quatro andares
acima, no terraço, “para economizar” o aspirador de pó. Foi
então que, nos últimos dias, as escadas milagrosamente
desapareceram. Para limpar as janelas, tinha que fazer
proezas mirabolantes. Além disso, a partir do momento em
que soube que determinada marca de detergente em pó
descascava os meus dedos, ela comprou uma caixa inteira!
Como agravante, seus dedos sabichões começaram a
passear atrás dos aquecedores exatamente no momento
em que já deixara toda a minha energia nas escadas, aquilo
era pior do que uma linha de produção. E os lenços,
auxiliares diretos da sinusite, que não devem ser esfregados
com a escovinha destinada a esse fim, como faço na minha
casa! E a minha raiva que se enchia de nojo ao fazer aquilo!
E os quartos cheirando a mofo, que não são arejados antes
da chegada da empregada, são detalhes que nunca esqueci,
quando, mais tarde, tive a oportunidade de contratar
alguém.
Lembrei-me de tudo isso quando fazia, pela sétima vez, o
trajeto até o terraço para pegar os tapetes. O plano não era
partir hoje, sabia apenas que a hora havia chegado, mas
não tinha decidido o dia, tudo aconteceu por si só. Disse de
uma vez só: “Senhora, estou indo embora!”, e dobrei o
avental. Ela respondeu: “Mas, afinal, a senhora está doente?
O que há então? Me dê um tempo para pedir alguém à
agência!”. Agora tenho certeza de que partirei, dei-lhe todo
o tempo que ela queria, contanto que eu não voltasse ao
tanque. Ela aceitou o compromisso.
No entanto, Carolina, sou uma pessoa privilegiada,
quando deixar a patroa e seus panos de pó, tenho um
abrigo, uma família à minha espera e mais trabalho do que
se pode imaginar. Na mesma hora tenho com que me
entreter, o rancor não me consome. Como lamento as
antilhanas que são forçadas a ficar vinte e quatro horas por
dia com essas lunáticas a quem servem de cobaias! Muitas
vezes nem devem ter coragem de comer!
30 de outubro

Pessoalmente, não fico triste com a maneira como a patroa


me trata, ela é assim com todo mundo ao seu redor, em
geral. Quando as crianças voltam do colégio e comem uma
maçã a mais, toda a casa treme com o ataque de nervos da
patroa. Hoje aconteceu de novo, a menina devorou um
iogurte sem permissão. A patroa ficou louca de raiva.
É mais forte que eu! Na situação em que me encontro,
não me custava nada dizer o que penso, gritei bem alto a
sorte que ela tinha por ter uma garota que faz equações
pensando, de vez em quando, nos iogurtes da geladeira,
poderia ser bem pior!
A senhora não está acostumada a receber explicações de
ninguém, me ouviu atônita, corou, franziu as sobrancelhas e
teve a coragem de dizer que eu estava certa.
A menina que sempre me diz “Bom dia!” de um jeito
preguiçoso me olhou com interesse e pareceu surpresa ao
descobrir que eu sabia falar. Pela primeira vez, sorriu para
mim.
31 de outubro

Nesta tarde, depois de pedir as minhas contas, passei as


últimas horas na casa da patroa, ela foi compreensiva! O
patrão esperou por mim e me disse para ficar; se fosse só
por ele, teria permanecido para sempre, somente o vi
sorridente e educado, capaz de atenuar os arroubos da
esposa com palavras afáveis. Infelizmente, ele sai quando
chego e vice-versa. A patroa ainda acha que é uma pena eu
ir embora! Quem se ocupará da poeira atrás das portas das
sacadas de cima e da esquerda? Não as mulheres
europeias! Elas ameaçariam entrar na justiça! Quem vai
arrastar os enormes tapetes nas escadas sem gritar como
uma condenada? Teria preferido que ela fosse mais malvada
ainda, para sair feliz. Mas não é que ela me ofereceu um
banco enquanto eu limpava os calçados, de pé, como
sempre faço? Pela primeira vez perguntou sobre os meus
filhos: a patroa afinal me descobre, não como um robô, mas
como um ser humano! Tarde demais! Talvez eu esteja um
pouco para baixo, fico pensando, Carolina, que a vida na
casa dos europeus que empregam negros poderia ser
melhor. O menino disse que gostaria que eu ficasse, seu
rostinho brilhando mexeu comigo. Queria bater a porta
dizendo “Ufa!”. O garoto está lá, tão simpático, que me faz
esquecer o resto. E tem ainda o patrão! Diante da minha
recusa em ficar na casa, ele me disse que era uma pena
que eu fosse embora, mas que compreendia. Naturalmente,
nunca lhe disse que sua esposa era uma chata. Não se diz
esse tipo de coisa para pessoas de certa categoria, ele está
acima disso.
No fundo, a patroa não deve ser tão horrível, mas ela se
fazia de louca: na frente dos negros, as outras pessoas
sempre querem se fazer de loucas, todo mundo sabe, mas
ela passou dos limites. Não podia contar ao patrão como era
difícil trabalhar ali por causa da personalidade instável da
sua esposa. Falei então que estava doente, que estava
cansada, que meus filhos precisavam de mim. Disse adeus,
a patroa me olhou longamente, apertou a minha mão e
parti. Assim terminou o meu passatempo na casa daquela
senhora incomum.
4

2 de novembro de 1962

Carolina, tenho uma pequena pausa, aproveito a


oportunidade para pôr em dia os meus “assuntos pessoais”,
por exemplo, os exames médicos das crianças. Há sempre
exames a serem feitos nas famílias, há também as lojas a
serem exploradas, o que está diretamente ligado aos
sapatos dos rapazes, que furam depressa demais, ou às
suas calças, que possuem a misteriosa habilidade de
rasgarem na altura dos joelhos mais rápido do que se
espera. Nesta manhã, arrastava comigo dois dos meninos
para a segunda dose de uma vacina e, no ônibus que me
trazia de volta para casa, perdi o caderno em que gostava
de escrever para você. Isso aconteceu porque eu estava
carregada de embrulhos e preocupada com a reação que a
injeção poderia produzir. Ambos estavam bem, mas quem ia
me impedir de perguntar o tempo todo:
“Está se sentindo bem? Como você está?”
Estava tão absorta nos questionamentos a serem feitos
que somente duas horas depois de chegar em casa percebi
que minha bolsa havia sumido. Saí de novo para ir à
garagem do bairro da RATVM, a empresa de transporte daqui,
e penetrei no reino dos condutores de trólebus. Expliquei o
meu caso e, educadamente, após consultar o indicador dos
horários, um funcionário me pediu para voltar à tarde.
Obedeci. Na hora marcada, apareci na sala triste e cinzenta
onde, nos bancos de madeira, alguns motoristas estavam
sentados e conversando.
Eles me questionaram, contei o quanto temia a perda de
todos os documentos da minha família e o quanto esperava
que um dos colegas deles tivesse encontrado a minha
bolsa.
Atrás do mesmo guichê, o homem que estava de serviço
naquele momento me tranquilizou: eles tinham uma bolsa,
mas qual era a cor da minha e o que ela continha? Listei
tudo, salientando que havia junto um caderno que me era
caro. Ele sorriu e deu uma olhadela para um dos colegas.
Fiquei constrangida, compreendi que ele não só tinha visto,
mas provavelmente folheado o caderno. Asseverou então
que precisava falar com o chefe da estação para me
entregar a bolsa, que eu precisava voltar no dia seguinte.
6 de novembro de 1962

Voltei hoje de tarde e recuperei o que era meu. Os caras do


guichê me olhavam com curiosidade: afinal, eles não
tinham nada que ler o meu caderno e as minhas
confidências.
8 de novembro

Estou com uma dor de garganta das brabas, que me obriga


a ficar em casa. Repouso na cama. Mas não conheço muitas
donas de casa que ficam na cama. Pessoalmente, me
concedo o direito de ficar em casa com essa chuva que não
para de cair. Mas há muito o que fazer aqui! Meus filhos
estão crescendo, eles têm um jeito todo deles de abrir os
braços para me mostrar que suas roupas estão curtas
demais! Preciso aproveitar a doença para aumentar em
alguns centímetros o comprimento das camisas.
Tem ainda a minha filha, que começou a dar bola para a
aparência. Quando ela não gosta mais de um vestido, curva
as costas ou fica na ponta dos pés: “Curto demais! Apertado
demais! Mãe!”. Finjo que não vejo, que não ouço, mudo
uma gola ou a cor de um botão, e ela fica satisfeita.
Hoje o meu menino mais velho, que é lobinho nos
escoteiros e está se preparando para tirar o “seu certificado
de primeiros socorros”, pediu para deixá-lo cuidar de mim!
Oh, Carolina, juro! Não é engraçado? Ele me preparou um
chá de tília que ficou mais vermelho que as folhas de
outono, depois massageou o meu pescoço com tanta força
que fui obrigada a me vingar beliscando a sua mão. Já Jean-
Marc me pediu para deixá-lo se incumbir da cozinha: “Não
se mexa, eu sei o que estou fazendo”. Seu cardápio era
reduzido: batatas com casca e bife, como no acampamento;
mas, quem diria, não tem como acender uma fogueira aqui,
será preciso esperar pela chegada do pai para que os bifes
não sejam transformados em solas de sapato. Eu disse:
“Tudo bem em relação às batatas, mas não faça mais
nada”.
Sentado numa cadeira, meu cozinheiro se esforçava para
acender o fogão, e o gás corria por baixo do seu nariz com
um assobio sinistro que me tirou da cama. Mas que coisa!
Tudo tem um começo, mas desse jeito não dá para ficar
deitada.
12 de novembro de 1962

A dor de garganta vai de mal a pior! Nem tenho forças para


combater a tristeza. Estar doente quando chove e faz frio
não é bom para o moral. Meu marido é o motor, mas eu sou
o “combustível”, e quando não há mais combustível em
casa, a engrenagem enferruja: onde moro, são cinco pares
de pés para calçar, dez braços gelados para abraçar o meu
pescoço, cinco cabeças que continuam a repousar no meu
peito, embora eu force a barra para achá-los grandes
demais e sabichões demais para isso. Meu colo é
reconfortante quando, na saída da escola, meus filhos são
chamados de chineses, de crioulos, de pieds-noirs ou de
ciganos, dependendo do humor do menino com quem estão
brigando. É a idade em que não há piedade, em que as
crianças são cruéis. Devo persuadir os meus de que os
chineses são gente boa, de que não é ruim ser pied-noir e
que os crioulos, se não servissem para nada, o Bom Deus
não teria dado uma alma aos seus corpos. Aproveito para
dizer isso quando estão no meio do bando todo, que
milagrosamente sossega e se manifesta, cada um tentando
falar mais alto do que o outro: “Não sou eu! Não sou eu!”.
Quando estou doente, meus filhos ficam perdidos no meio
desses jovens selvagens, tenho que me recuperar às
pressas. Mas minha doença me permite escutar
atentamente o rádio, e nesta noite ouvi uma mulher
falando. Seu nome é Anna, ela acaba de receber um grande
prêmio literário.[8] Sentindo-me culpada, deixei cair os meus
rabiscos. Ela está radiante, todo mundo sente, estão
impactados, coisa rara, deixam ela falar! Sua voz é um
pranto cheio de vida, e dá vontade de dizer: “Fique
tranquila, o mundo todo a está escutando e deseja amá-la
de agora em diante”. Minha pobre Carolina, não comprarei o
livro dela, com certeza deve ser muito caro para o meu
bolso, mas não tenho dúvida de que a escrita da Anna vale
tanto quanto a sua voz. Ela está falando sobre os dias irreais
da segunda guerra suja, e vejo mártires vestindo roupas
púrpura, correndo para o purgatório sem passaporte e
chegando ao céu com vestes agora brancas como a neve.
Ao lado de todos que continuam a morrer desse jeito,
aqueles dos nossos barracos e das nossas favelas que
agonizam, mesmo sobre catres, são abençoados.
Ouvi então a voz do orador que falava dos padres
mantendo conciliábulos, quis suplicar para que
acrescentassem algumas linhas à litania dos santos: Dos
campos da morte, livrai-nos, Senhor. Do racismo, de onde
quer que venha, livrai-nos, Senhor.

Não é que tenha medo, mas, quando os holocaustos como o


da Anna começam a falar, ficamos pensativos.
14 de novembro de 1962

Escutar! Que coisa maravilhosa! Coloco uma pastilha no


fundo de um copo d'água, vou e volto para a cama, e as
vozes difundidas pelo meu antigo rádio me seguem sem me
atravancar, não tenho obrigação de ficar lá para “ver”, faço
o que quero, e minha imaginação vagueia livremente. Visto
cada voz com a feição que mais me agrada, de acordo com
o tom. Elas se tornaram tão familiares para mim que receio
descobrir um dia que não pertencem a quem as atribuo.
Vejo muito bem Stéphane Pizella de roupas de gala. Usando
um monóculo, extremamente chique. Vejo Jean Nocher
parecido com um diretor de escola pontual e sorridente,
apesar do necessário decoro. Georges Delamare chega
apressado, falando curto e grosso, já um pouco velho,
sempre saindo para um encontro urgente. Para mim, são
imagens que temo serem extintas pela televisão. E, sim,
Carolina, aconteceu comigo! Em frente a uma vitrine da
avenida Canebière, no centro de Marselha, dei uma olhada
na tevê e vi um homem falando com uma voz que há anos
pensava ser do Tarzan. Mas não, eu estava enganada. O
senhorzinho de meia-idade, provavelmente com
reumatismo, que lia a sua crônica aos telespectadores, era
bastante simpático, mas tive a impressão de ficar frustrada,
observei por um bom tempo os seus gestos sóbrios e
escutei um pouco espantada a sua voz de barítono. A tevê é
a realidade nua e crua ao alcance de todos; a geração que
está chegando jamais será capaz de sonhar. E, minha velha,
o que é uma vida, mesmo endinheirada, sem sonhos?
Desde então, fico na dúvida sobre como dar um corpo às
grandes vozes. Adoraria ser a sra. Dussane só por causa da
voz. Aquela voz diz tantas coisas com conhecimento de
causa! Não a imagino saindo de uma senhora que só come
alface e torradas. Eu a vejo satisfeita à mesa, saudável e
serena! Seu rosto? Os cabelos mais para o grisalho, que ela
mantém tal qual. São raras as vozes de que não gosto, nem
as escuto, não importa.
Estou falando dessas vozes porque imagino que elas têm
um estilo literário, Carolina, acredite em mim! Sinto-me
inferiorizada quando penso nisso! Já o meu filho, que tem
apenas dez anos, mete o bedelho nos meus cadernos e diz
que cometo erros de ortografia! Pois é, o que aquelas vozes
diriam, o que achariam disso tudo? Meu marido sempre me
dá a resposta certa:
“Desliga esse rádio e trata de dormir para curar a
garganta, joga esse caderno para o alto, você nunca será
uma escritora, só as pessoas que têm tempo para gastar
vingam nessa profissão! Cada um na sua.”
Ele tem razão, sei disso, mas uma tristeza infinita toma
conta de mim, apago o abajur, desligo o rádio, solto o lápis
e tento dormir.
18 de novembro de 1962

Meu marido acredita que, para curar um resfriado, não há


nada melhor que se sacudir, ele voltou com dois ingressos
para o banquete da festa dos departamentos franceses.
Resmunguei à beça, mas acabei indo: pagando vinte
francos por pessoa, tínhamos direito a discursos, carne e
batatas com certeza refogadas com banha de porco. Ainda
bem que a atmosfera nos fazia esquecer a comida. Quando
vi chegarem os grupos folclóricos, parei de pensar no que
poderia ter feito com os quarenta francos que havíamos
gastado. Os corsos, mestres da arte regionalista,
imediatamente nos fizeram esquecer que a carne do
banquete não estava macia. Os bretões e suas gaitas de
fole me fizeram sonhar com charnecas, ondas fortes e
névoa: naquele momento, meu marido parou de dizer que
não gostava de batatas, mesmo refogadas. Foi quando as
“antilhanas” chegaram! Três mulatas que nunca tinham
pisado nas Antilhas! Elas dançavam, uma cintura mais dura
que a outra. Felizmente, tinham rostos encantadores. Elas
eram donas, foi o que ouvi, de um carro comprido. Há
muitas meninas das Antilhas em Marselha, sabem lavar a
roupa da patroa ou cozinhar a sopa do patrão, mas destas
os governantes antilhanos não querem tomar
conhecimento, e ainda assim elas conseguem levar um
cacho de banana na cabeça — coisas da região que
ninguém quer ver. No entanto, o europeu nos ama como
somos, com nossas tradições, nossos hábitos, nossas vidas
tecidas com risos e lágrimas! Pois então, Carolina, quase me
rebelei quando uma das mulheres de cintura dura da minha
terra me disse que nunca aceitaria cantar um beguine
crioulo nessa “língua de selvagens”. Aquilo era o fim da
picada, preferi interagir com os corsos. Evidentemente,
após as apresentações dos grupos, dançamos.

Eu me meti no meio dos corsos! Foi um deleite! Eles


estavam lá, mostrando suas danças e músicas para nós.
Para os reles mortais, isso é mais do mesmo; mas eu, uma
antilhana acostumada a ver negros de tantas classes, mais
uma vez notei que essas diferenças sociais eram o principal
pecado que retardava nossa evolução. Hoje à noite, os que
mais me agradaram eram simplesmente corsos: o
estudante, a ajudante, o pescador, o advogado e o violeiro
formavam um todo homogêneo. Jamais os antilhanos
conseguiriam ter tal harmonia, tal fusão. Quem sabe falar já
sai reprovando aquele outro que não pronuncia os erres.
Quem está misturado com o europeu vai censurar aquele
outro por sua pele herdada da esplêndida África. Eles dizem
isso entre si, baixinho, minha pobre Carolina, nunca vão
admitir que carregam consigo uma coisa ruim, mas é
verdade, os antilhanos vivem com muito mais dificuldade
entre si, na Europa ou em outro lugar, do que qualquer
outra comunidade estrangeira. Como lesma na alface, fico
curvada diante de tanta bobagem. E ainda tem os “nossos
homens”. Quando as esposas vestem as roupas das avós,
eles desencorajam: “Mas como? Vocês têm filhos e ainda
usam colares de ouro da Martinica e um madras? Vamos lá,
isso é bom para as gavetas”. E as senhoras provençais,
como bonecos de barro veneráveis e venerados, vestem
seus chapéus de renda, para alegria dos maridos. Tenho
vontade de gritar para esses palermas:
Homem é um bicho engraçado! Após os discursos sobre
amizade, os elos que unem os federados uns aos outros,
indiscretamente começam a fitar o corpete das mulheres,
avaliam-nas com o olhar e as escolhem, dirigindo-se em
seguida às eleitas.
Um sujeito gordo me falou do amor embaixo dos
coqueiros e das bananeiras. “Não sei”, eu lhe disse. Ele me
abraçou e respondeu: “Impossível”. Ele estava todo
vermelho; aproveitei o chá-chá-chá que nos unia para
improvisar, me desvencilhei do seu peitoral atrevido e me
movimentei como bem queria: dançar por dançar, não para
agradar o sujeito que faz par comigo. Ao me ver girar à sua
volta sem poder me tocar, ele baixou a bola e, ao final da
música que tínhamos dançado duas vezes, éramos os
melhores amigos do mundo.
Outro senhor muito bem-intencionado falou do azar que
tinha em não conhecer o “intermediário” que lhe permitiria
ter uma empregada antilhana com intenção de se expatriar.
Ele nunca conseguiu ter “uma”, sendo que isso teria
agradado tanto a sua esposa. Gentilmente, respondi que,
para esse novo tráfico negreiro, o “intermediário” tinha que
ser oficial, era só ir à prefeitura.
Muito educado, o senhor me disse:
“É mesmo”, e me pediu para lhe ensinar o beguine…
Acredito do fundo do meu coração que, tirando os
políticos, que são obrigados a mentir, o resto dos franceses
não são complicados. Imediatamente sabemos o que
pensam, o que querem, bem ou mal: isso é uma qualidade.
“Bando de idiotas! O que as mulheres da sua terra têm de
tão especial para desprezar as saias das avós?”, parto para
o contra-ataque!
Quando dá na telha, coloco um madras sobre a cabeça,
exibo o meu vestido florido com cauda e passeio no meio da
Canebière!
Sou parada, sou fotografada, ouço perguntas! Já que a
Europa me ama tanto, danem-se os nossos homens!
Sempre quis parabenizar as mulheres senegalesas, as
hindus ou as daomeanas que não hesitam em usar os
próprios adornos em todos os momentos, sem
constrangimento, sem hesitação.
Elas estão mil anos-luz à nossa frente, e eu sigo o bom
exemplo.
No trólebus que nos trazia de volta, conversei sobre isso
com meu marido. Quando o faço, ele sempre desvia do
assunto, de um jeito ou de outro. Hoje ficou me falando
sobre a qualidade dos vinhos servidos no banquete.
22 de novembro de 1962

Finalmente estou curada, e já penso em outra patroa, pois


as experiências de faxineira não podem parar agora. No
momento, estou misturando farinha para meu bolo de
aniversário: durante todo o mês, os aniversários das
pessoas de sagitário foram chegando com grande alarde. O
papa, De Gaulle, Churchill, todos já passaram. Eu disse às
crianças:
“Ontem foi o dia de João XXIII ter um ano a mais de vida,
hoje é a minha vez de ficar, oficialmente, mais velha!”
O papai chegou com flores e os meninos prepararam
“pinturas” em minha homenagem. Na verdade, esses
borrões me custaram duas caixas de tinta, e eu não ouso
resmungar, pois minha filha já está fazendo isso, seus
irmãos usaram seus tubos de guache. Foi quando quiseram
saber a minha idade, eles esquecem todos os anos. Tenho
os anos que mereço, o suficiente para rir desinibida, o
bastante para chorar com prudência. Pépé, pondo a língua
para fora, fez as contas e me achou muito velha. O meu
envelhecimento a deixa contrariada: se minhas pernas
travarem de dor, ela não poderá mais dançar o twist comigo
ou aprender corretamente o beguine. Ela queria entender.
Carolina! Se você tivesse visto! Coloquei um disco na vitrola
e tranquilizei o meu mundo. A barulheira era tanta que o
papai destacou que nem De Gaulle, nem João XXIII dançavam
daquele jeito, e que eles eram de sagitário! Claro que não
dançam, mas, tendo em conta as preocupações que têm,
quando um pouco de alegria ilumina as suas vidas, é muito
provável que sintam vontade! Serão eles mais felizes do
que eu, eu podendo fazer o que me dá prazer?
2 de dezembro de 1962

A inflamação na garganta contribuiu para alguma coisa:


enchi umas cem páginas, formando um todo e parecendo
com um livro cheio de personagens oriundas do meu
passado. Elas são tão parecidas com você, Carolina, só o
idioma as separa. O  mesmo sol brilha sobre suas tristes
vidas, e a busca pelo pão de cada dia é tão semelhante à
sua luta para não morrer de fome que digo a mim mesma:
“Meu Deus, uma vez que você permitiu que isso
acontecesse e que você continua permitindo, deve haver
um motivo”. Talvez para que os ricos, ao ler o seu diário e as
minhas cartas, possam fazer melhor uso dos bens materiais.
Talvez também para que nós, os pobres, que não o somos
mais completamente, olhemos um pouco para aqueles que
estão enterrados até o pescoço na miséria? Eles estendem
os braços, abrem as mãos, como eu e você já vimos, e
muitas vezes suas mãos nada apanham. Eles se voltam
então para Deus, a barriga apenas cheia de resignação e
esperança por um futuro melhor para aqueles que viverão
no século do átomo. Um fragmento de átomo! Centenas de
milhares de pães! Somente pão, sem nada em cima, para
centenas de milhares de homens que morrem de fome!
Uma pequena bomba de hidrogênio: milhares de metros de
tecido grosseiro revestindo corpos ressecados pela monção
do Pacífico ou pelo harmatã da África… Mas droga: percebo
que sou eu quem vê isso, a realidade é bem diferente. A
inflamação na garganta foi embora, o Natal se aproxima,
vou procurar um jornal para examinar em detalhes as vagas
anunciadas para trabalhos em casa de família, lá tenho
certeza de que encontrarei exatamente o que procuro.
Depois vou ver o que aconteceu com o meu mendigo que
toca violino quando passo. Ele toca quando dou um franco,
logo que recebo meu ordenado das patroas, mas há muitos
sábados que não passo por ele… Ele é mendigo, nunca
compra vinho, mas corre para o vendedor de sanduíches e
pede um de linguiça com bastante mostarda; para ele, é um
banquete. Acredito que aquela silhueta arqueada, aquela
barba branca e aqueles doces olhos azuis de Jesus
esperando que eu passe valem trinta minutos do meu
trabalho. É uma resposta às minhas preces.
5

10 de dezembro de 1962

Pois é: fui até a patroa Fulana de Tal, perto da sede da


polícia, ela não se encontrava lá, mas a zeladora estava
firme em seu posto, perguntei onde ela morava.
“Para quê?”, ela respondeu, e eu satisfiz sua curiosidade.
Pobre de mim! A senhora disse que aquela nobre madame
era rica e “mesquinha”, que não pagava as faxineiras e que
tinha muito trabalho na sua casa: o apartamento era um
verdadeiro museu!
“Não vá lá, vou encontrar um trabalho para a senhora.”
Num piscar de olhos, ela me levou à modista do sótão, ao
garagista do pátio, ao bazar da esquina. Em seguida veio
uma mulher, uma inválida de olhar abatido, me disse que a
zeladora era sua mãe, que ela queria me contratar.
“É melhor trabalhar na casa de pessoas como nós!
Quando eles têm nomes como o da patroa aonde a senhora
queria ir, nem imagina o quanto são insuportáveis!”
Queria conhecer a dona Fulana de Tal, mas não tive tempo
de dizer uma única palavra. A zeladora disse que eu iria
lavar os seis lances de escadas do edifício, três vezes por
semana. Aquelas escadas me esperavam, tortuosas como
os labirintos do Purgatório. Logo a seguir, o garagista veio
me dizer que, todos os dias, eu iria lá escovar, com potassa,
a graxa e outros produtos especiais necessários ao seu
trabalho, espalhados no seu estabelecimento. Menos
ousada, a modista queria que eu viesse das cinco às sete da
manhã para limpar o seu ateliê. A  zeladora exultava, me
explicou que fazia tempo que precisava mandar embora
uma menina que trabalhava no edifício, que ela havia
surrupiado um avental, às vezes bebericava o seu vinho e
recolhia todas as gorjetas.
Aproveitando um momento em que ela tinha parado de
tagarelar, perguntei:
“E eu, a senhora não está com medo de que eu faça a
mesma coisa? A senhora não me conhece.”
Peremptoriamente, ela respondeu:
“As negras são sérias e trabalhadoras; além disso, não é
por acaso que dizemos ‘trabalhar como um negro'! Com o
devido respeito, mas é verdade!”
Com uma chefe dessas, seria o fim da picada trabalhar ali.
Prometi voltar na manhã seguinte. Para o meu bem, ela
aconselhou:
“Não vale a pena se vestir tão bem, a senhora não
ganhará gorjetas: use pantufas quentes e um par de meias
de lã. Está frio nas escadas e será preciso lavar o quintal em
frente à garagem! Amanhã à noite, quando a senhora for
para casa, terá que pegar as lixeiras e enxaguá-las no
tanque.”
Dei uma olhada para o tanque em que tremulava uma
água quase congelada; cúmplice, a água que saía da
torneira cantarolava: “Fuja depressa! Fuja depressa!”.
Tinha esquecido a zeladora e, ao som daquele canto, eu
sorria. Ela notou:
“Então, a senhora está contente? Tudo certo.”
Expliquei a minha atitude:
“Seja como for, não é o correto, eu gostaria de ver a dona
Fulana de Tal, eu conversei com ela por telefone!”
“Chega dessa história!”, responde a zeladora. “Ela paga
duzentos francos, os comerciantes do edifício dão duzentos
e cinquenta, e eu e minha filha trezentos e cinquenta pelas
escadas, não tem o que pensar. Até amanhã de manhã! Não
se esqueça das lixeiras: a vassoura para limpar está ali!”
Cristalina, a água continuava cantarolando: “Fuja
depressa, fuja depressa!”.
Minha pobre Carolina, eu não fiz cerimônia: saí correndo
dali e peguei meu ônibus. O que seria de mim com aquela
zeladora? Rindo, contei minha aventura à família! Meu
marido foi ao armário pegar para mim um bolo de roupas
que eu planejava costurar numa noite dessas. Ele não ria,
estava quase com raiva:
“Qualquer dia, você vai acabar caindo num lugar horrível!
Você tem trabalho e pão quando chega em casa! Pare com
essa história de arranjar patroas e me deixe em paz!”
Que coisa! Quando ele se acalmar, voltarei à agência de
empregos e pedirei o endereço de uma patroa sem zelador.
24 de dezembro

Está tão frio que, mesmo se eu tivesse uma patroa, eu a


teria deixado na mão: a mobilete está no porão e as
camadas escorregadias de gelo cobrem as calçadas da
cidade. Marselha atordoada dá arrepios, não compreende
nada. Pus em dia as minhas costuras e meu livro ganhou
algumas páginas novas. Um primeiro livro é engraçado, é
como o primeiro filho. No embrião inerte, as mãos e os pés
crescem: perguntamo-nos como será o bebê, que já anda
dando náuseas, imaginamos apenas que será lindo. Do
mesmo jeito, não digo que meus rabiscos sejam uma obra-
prima, mas gosto de pensar que meu livro está bem vivo:
quando acontece de as crianças lerem umas linhas,
perguntam: “E depois?”. Acredito que não há julgamento
melhor do que o delas. Ao me pedirem a continuação da
história, já valeu a pena escrevê-la.
28 de dezembro

A cada inverno, a tristeza toma conta, me penetra, só se


dissipando na primavera. O verão só chega daqui a seis
meses, preciso continuar vivendo. Passei perto do local
onde ficava o “meu mendigo”, a vendedora de sanduíches
me disse que a polícia havia recolhido o pedinte e seu
violino: ele tinha desmaiado na calçada, e aquilo era um
estorvo. Fiquei perturbada: eu adorava ouvir as melodias
que saíam das cordas daquele violino; como
acompanhamento, ele cantarolava “Oh, Magali!” com o
autêntico sotaque da Provence. É isso, fiquei perturbada,
Carolina.
É a época de trocar presentes, odeio receber sem dar:
uma senhora pagando três francos por hora seria uma boa,
mas está muito frio e as bacias nas varandas ou nos pátios
me matariam. A experiência penosa na casa de terceiros me
faz desfrutar do meu lar e me permite pagar os meus
caprichos.
3 de janeiro de 1963

A jovem que tirei do meu bairro me escreveu. Ela subiu um


degrau na sociedade, “chegou” a Paris, é auxiliar de
serviços gerais num hospital, para ela não se trata de um
sonho realizado, mas lhe permite sentir o gostinho da
liberdade. Carolina, olha o que ela me diz: é mais simples
copiar a carta do que explicá-la a você.
“Apenas antilhanas fazem esse tipo de trabalho. Não tem
graça nenhuma, mas vejo outras compatriotas e isso me dá
força. Dizem que em breve poderei me tornar auxiliar de
enfermagem. Faz cinco meses que estou em Paris e ainda
não vi quase nada: só ando de metrô, é mais rápido; tenho
dois dias de descanso por semana, aproveito para escrever
à minha família, lavar roupa e cozinhar um pouco. Moro no
Quai de la Rapée, da minha janela só vejo o Sena, nesses
dias o rio leva consigo cubos de gelo, e um nevoeiro me
impede de distinguir as barcaças que circulam por ali: isso
dura quase toda a manhã (quando estou em casa). Divido
meu quarto com outras duas compatriotas, que também
trabalham em hospitais. Não há problema para dormir, pois
à noite sempre tem uma fora de casa, na labuta. Assim,
ficamos menos espremidas. O dono do apartamento nos dá
um recibo de sete mil francos, em nome de uma de nós, e
pagamos individualmente vinte mil francos velhos: as duas
outras inquilinas do quarto têm direito a um atestado de
acolhimento. Nunca recebi um comprovante pelos vinte mil
francos que pago, não posso fazer nada nem dizer nada, é
igual em todo lugar; e, se o fizer, corro o risco de ser
despejada. Nesse frio, não seria nada divertido. É difícil,
mas é melhor que a patroa em Marselha.
“Agradeço antecipadamente etc.”
Este é, Carolina, o sonho parisiense das antilhanas, e elas
continuam a chegar em embarcações lotadas, algumas por
causa dos auxílios do governo da França, tal como qualquer
francês da França, outras na esperança de ter um
vencimento mais substancial. No final das contas, são
devoradas pelo metrô, engolidas pelas fábricas. Acabam
ficando aflitas, não riem mais como em Fort-de-France ou
em Pointe-à-Pitre, não têm tempo para nada. Às vezes,
encontram descanso em sanatórios, ou muito dinheiro perto
de Clichy, pois é, aqui não é nem o barraco, nem a favela,
mas o pardieiro e a esperança que nunca abandonam os
infelizes.
Esse sonho sem horizonte da minha semelhante me deixa
perplexa: não a desencorajo, mas ela me deixa tão
perturbada como o mendigo que foi recolhido na calçada.
6 de janeiro de 1963

Cécile chegou às “Antilhas”: atravessou a França, de Le


Havre a Marselha, em busca de sol. O sol existe e sempre
existirá, mas fica gelado com o vento que passa no Mont
Ventoux antes de rumar para Marselha, penetrando nos
casacos mais grossos, e todo mundo parece possuir um
cachimbo invisível, a fumaça sai das narinas e da boca.
Cécile veio me dizer que esse vapor natural a assusta.
Vivo prometendo não meter o bedelho no que não me diz
respeito: por que ela precisou vir à Europa, sabendo que o
termômetro cai para menos oito aqui e que os javalis na
Provence estão ao alcance de um tiro de fuzil? Eles vêm de
fora das florestas procurar comida e acabam morrendo.
Todos os açougues da cidade comercializam o que é caçado,
vendem até porções de meia dúzia de esquilos. Eles são
apanhados facilmente nesta época do ano. E Cécile não
sabia disso? Deram meu endereço para ela, sempre tem
alguém com meu endereço para repassar às antilhanas em
caso de contratempo. Isso não me ajuda. Toda vez, Carolina,
que decido ser horrivelmente egoísta, Deus me pune e me
faz refletir. Bem, quando vi Cécile hoje de manhã, seus
longos dedos completamente inchados, só consegui lhe
dizer para entrar e esperar que o tormento diminuísse. Ela
era formada em contabilidade em Fort-de-France, tinha até
uma empregada. Passou por todas as agências de emprego
da cidade, sendo enviada de um emprego para outro: as
pessoas olhavam sua pele preta e educadamente
respondiam: “Entraremos em contato”. Na primeira semana
de dezembro, esperou de verdade, não sabia o que
“Entraremos em contato” significava na França, e então
teve que se resignar, era necessário pagar o pequeno
quarto no Panier, bairro onde morava.
Concordou em passar roupa na sórdida lavanderia perto
da sua casa. Viveu no meio do vapor exalado pelo ferro, que
molhava tudo em volta. Para completar a renda, concordou
em lavar o enxoval de um bebê, à noite, ao voltar para o
seu quarto sem aquecimento. O resultado não demorou a
chegar, as frieiras tomaram conta de suas mãos e de seus
pés. Ela fala comigo esfregando os pés um contra o outro
para acalmar a coceira. Olha para os dedos abertos, e uma
lágrima cai em seus longos cílios. Ainda assim, eu não
deveria chorar ao seu lado. Ajudaria em quê? Vesti uma
carapaça dura de roer e disse:
“É assim na França, a senhora pensava o quê? Não é todo
mundo que tem uma manicure como a sra. Baker; para
ganhar o pão de cada dia, será preciso trabalhar e cuidar
dos dedos das mãos e dos pés. Para começar, coloque sua
mala no quarto da minha filha. Deixe o Panier, caso
contrário morrerá de tristeza antes do final do inverno. Se
aqueça, irei à fábrica de biscoitos do bairro conseguir um
emprego para a senhora, assim vai poder esperar mais
tranquila o seu noivo retornar do Laos. A propósito, por que
ele a fez vir tão cedo, já que vai ficar ainda mais seis meses
por lá?”
Cécile distinguiu na hora que meu tom áspero se tratava
de fingimento, era absolutamente necessário recuperar o
seu pobre maquinário enguiçado pelo inverno. Ela sorriu.
Enquanto escrevo para você, ela vai e volta, e até vi um
sorriso iluminar sua pele de ébano. Você pensa, Carolina,
que eu sou ridícula? Quando chegar o ano que vem, ela será
uma lembrança do passado, mas o momento presente é o
que importa. Está frio, uma jovem da minha terra está
aquecendo o corpo e o coração debaixo do meu teto,
aconteça o que acontecer.
12 de janeiro de 1963

Cécile está trabalhando na fábrica e se contenta com isso:


ela terá tempo para voltar a ser contadora quando retornar
à nossa terra. Diz estar feliz, não a desminto. E o frio
continua. A zeladora me escreveu: ela guardou o meu
endereço, apesar da minha almejada “aposentadoria”.
Encontrou um trabalho para mim! De novo! Desconfio dela
e do inverno. Vejo meu livro tomando forma, Carolina, e
esfrego as mãos. As tardes são longas e calmas, somente o
inverno acalma os provençais, assim consigo escrever, mais
dois capítulos e acabou! Mas quando terminar, o que devo
fazer? É hora de pensar nisso! Vou pedir conselho a uma
francesa que sabe ler e escrever de verdade, que não é
uma mera “senhora que paga três francos por hora”.
20 de janeiro

Como não rir quando Solange aparece? Ela chega com sua
dose de humor de todo dia, tem o dom de ver a vida em
cor-de-rosa. Solange é a madrinha da minha filha. Ela é uma
mulata vivaz que se recusa a falar francês, mesmo com as
“suas madames”. Ela encontrou uma linguagem
intermediária entre o crioulo e a língua de Voltaire, o
suficiente para se comunicar. E ainda assegura que, quando
fala sem utilizar algumas sílabas do patoá, sente muito mais
frio.
“Sei que, com o frio, você fica por aqui, vim lhe trazer
meus votos de feliz Ano-Novo antes do fim de janeiro. Não
trabalho, pedi minhas contas para a ‘minha madame'.
Imagine que a peguei em cima de uma cadeira, atrasando o
relógio do vestíbulo. Achava os turnos dos dias muito longos
fazia tempo! Jurava de morte cada ônibus que me fazia
chegar atrasada. Até dei o meu relógio de pulso para um
relojoeiro consertar, mas era inútil! Sempre chegava com
meia hora de atraso. Foi então que, na véspera do Natal,
precisei comprar um pouco de visco para o meu presépio, ia
dizer para ‘a madame' que queria sair um pouco mais cedo,
foi então que a vi, sim, minha velha amiga, a ‘vi'
empurrando o grande ponteiro do relógio com o polegar
meia hora para trás! Pensei que estava sonhando e prometi
a mim mesma ficar de olho: durante toda a semana que
antecede o Ano-Novo a vi refazer o mesmo gesto. Então, no
dia de réveillon, eu lhe disse que ela me devia cento e vinte
meias horas, que ela podia descer daquela cadeira. A
família dela tinha vindo de todos os lados. Bem alto,
perguntou o que eu tinha, se estava maluca, respondi que
havia uma semana a observava e que, sem entender, havia
três meses eu sempre chegava atrasada em casa. Aquela
mulher desprezível ficou vermelha com a confusão, e eu
vermelha de raiva. Falei em entrar na justiça, ela pagou o
que devia dizendo que aquilo era uma gratificação, que não
admitia minhas declarações. Claro que me demiti, fiquei em
casa! Roubar meia hora de uma pobre negra, enquanto se
viaja de avião para praticar esportes de inverno! É
degradante, você não acha?”
Solange riu como só ela sabe fazer.
Então Cécile chegou, com uma caixa de doces. Solange
disse:
“Quem é essa negra? Ela é nova?”
Fiz as apresentações. Solange olhou para a aparência
doce de Cécile e seus gestos ponderados, puxou os cabelos
e exclamou:
“Jamais alguém deveria entrar na casa de uma patroa
com um rosto como o seu. Não seria nada fácil! Faz vinte
anos que trabalho na casa dos outros, ou quase. Cheguei no
fim da última guerra, até peguei o tempo das rutabagas e
da sacarina. Fiquei seis anos na casa de uma mulher, criei
sua filha como se fosse minha. Ela me via com mais
frequência do que a seus pais, e um dia fui buscá-la na
saída da escola, ela não me deu mais a mão, como
costumava fazer desde sempre: ela acabara de perceber
que eu era uma mulher negra, me disse para andar atrás
dela. Certamente os pais tinham lhe dito algo. Fiquei dois
passos atrás da menina, e me doeu tanto que saí de mala e
cuia. Desde então venho trabalhando com as mãos, não
com o coração. Logo que o caldo começa a entornar, nem
tento entender o que está acontecendo, parto logo para
outro emprego. De tempos em tempos, consulto o preço da
mão de obra, só isso. Eu era cabeleireira na minha terra,
alisava o cabelo das mulheres! Aqui, é necessário
encrespar; apesar das minhas referências, não deu certo, e
eu precisava comer. Nunca consegui sair dessa
engrenagem: uma vez que você está no sistema de
seguridade social como doméstica, tente escapar para ver
se dá! Meu marido é marinheiro, seu porto de origem é Le
Havre! Eu não aguento o nevoeiro, estou aqui! Uma vez por
ano, venho durante a licença dele. Não tenho filhos.” Ela
parou de brincar. “A menina que criei estaria com dezenove
anos! Eu a amava, com aqueles cachos loiros. Eu mesma
lhe fazia os cachinhos de anjo! Pois é… acabei ficando
assim… indiferente! E a senhorita! Não vá à casa das
patroas com esses olhos de jumento.”
Num estalar de dedos, Solange foi embora…
Ela ri, mas está sofrendo… Ela teve um choque, Carolina,
e não há nada que a cure: estou rindo com ela só para não
pôr o dedo na ferida.
23 de janeiro de 1963

Os pais de Cécile escreveram. Eles me pedem que a


aconselhe a retornar às Antilhas se o noivo tardar muito a
voltar para a França. Ele, do Laos, me agradece e pede para
cuidar da sua futura esposa até maio. Cécile trata suas
frieiras e se habitua à fábrica. A contramestre a trata por
“você”, suas novas colegas também, mas todo mundo gosta
dela. Ela tem uma amiga cheia de boas intenções, que
programou o seu próximo ano. Até a Páscoa, elas ficarão na
fábrica de biscoitos. Em maio, irão à fábrica de conservas
para enlatar anchovas. Nas férias de verão, partirão para a
fábrica de limonada e depois para a fábrica de tâmaras.
Enquanto isso, irão ao baile no inverno e vão nadar no
verão, nas calanques.[9] O problema dos homens também é
resolvido pela amiga: a cada estação, saímos com um, até
encontrar o bilhete premiado. Cécile está um pouco
assustada, não por hipocrisia, mas a verdade é que acaba
se perguntando como sua amiga faz para tascar um beijo
em público no noivo, que sempre a encontra na fábrica. “E
dizer que lá de onde vim nunca pude nem andar de braço
dado com o meu noivo para atravessar o meu bairro.”
Carolina, o que você quer que eu diga? “Viva a sua vida e
cale a boca!” A conversa sempre termina com comentários
brincalhões! Cécile ainda me perguntou o que eu escrevia
de manhã cedo, quando as crianças ainda estão dormindo.
Nesse momento, me senti no meio de uma armadilha: disse
que trabalhava de casa para uma gráfica. Isso faria sentido,
reescrevo endereços em faixas, sendo paga a cada cem.
Tenho que fazer isso para ganhar quinhentos francos! O que
ela pensaria se eu lhe dissesse que estava escrevendo um
livro e que estou nos últimos capítulos? Ainda preciso desse
anonimato, senão vou perder a confiança em mim mesma.
No entanto, se desejo saber a aparência do meu bebê, vou
ter que tirá-lo de casa para que as pessoas me digam como
ele é. Cécile lê muitos livros bons; ela tem clareza de
julgamento e entende bem o que aprende. E se um dia
desses eu tentasse falar com ela?
6

30 de janeiro

Abençoados os miseráveis que não sabem que o são. Visitei


o amigo Roland com meu marido, para o batismo de sua
filha. Estava muito frio, e empurramos a moto ao longo de
todo o caminho: o gelo no chão nos impediu de andar.
Fizemos esse exercício por quarenta e cinco minutos antes
de chegar à casa do nosso amigo, que mora no centro da
cidade. Ele tem orgulho disso, mas não o invejo. Só adulta
as minhas pernas conheceram as tortuosas escadas das
grandes cidades, e subir os degraus foi algo que sempre me
desagradou. Retiramos da bolsa o pequeno embrulho para o
bebê e esperamos um bom tempo no corredor para que
nossos pés deixassem de ser cubos de gelo. Depois
começamos a subir as escadas do prédio até o local em que
moram Roland e sua família, no último andar. Janine, linda
como uma fada, veio nos receber, e Roland, feliz como um
rei, nos apresentou sua filha. Eles são diferentes, mas
funcionam bem juntos: Roland é um martinicano forte como
um touro que trabalha no cais, e Janine é uma loira de
Vaucluse que parece adorar o marido.
Entramos. O vidro do postigo está quebrado, Janine
colocou um pedaço de tecido florido para esconder o
buraco, o que não impede o mistral de entrar no cômodo.
Ela ligou o fogão a gás para aquecer a mansarda. Minha
pobre Carolina, esse pardieiro se localiza no centro de
Marselha, e é como em qualquer favela, apenas uma
nuance diferencia os habitantes uns dos outros: ou são
otimistas, ou são desesperados. Esse casal de amigos é
otimista: nada os deixa contrariados, nem as críticas, nem a
mansarda, nem a vida precária que levam.
Os convidados enchem as duas salas, uma meia dúzia de
compatriotas, todos acompanhados de europeias. Roland se
orgulha de ter escolhido a mais bonita, e ele tem razão.
Janine tem três filhos, mas conseguiu continuar jovial como
um dia de primavera, seus longos cabelos claros
acobreados e seu lindo rosto. Ela é toda sorrisos, e seus
olhos brilhantes de ouro fazem esquecer o ambiente onde
mora. Roland adora vê-la resplandecente, deu a ela de
presente um vestido de tule preto salpicado de bolinhas
prateadas. Ele disse: “Comprei na Rue Saint Ferréol, já que
não posso oferecer um apartamento para essa mulher! Pelo
menos a família dela não vai dizer que não lhe dou
roupas!”.
Uma espanhola é a madrinha da bebê. Ciumenta, ela se
agarra ao marido, que parece um gorila. Há também a
vizinha de Janine: ela usa um vestido de veludo grená que
valoriza suas formas protuberantes. Ela está lá, com seus
quatro filhos, preparando sanduíches. E então outra boneca,
toda platinada, que nem sequer levantou os olhos quando
chegamos, tão ocupada estava deixando um guadalupense
de olhos maliciosos lhe dizer galanteios. Todas essas
mulheres, em seus vestidos de festa, tremem de frio no
apartamento, mas não hesitam em deixar os ombros à
mostra. Para elas, pareço alguém de outro mundo, com
minhas calças de lã e meu suéter grosso, estava até de
botinas.
Um monte de comida é colocado no antigo aparador
pintado de branco. As mulheres fumam para fazer tipo, e
uma névoa cinzenta nos envolve. Janine é gentil, gosto dela.
Pego a bebê no berço e imediatamente, no cantinho onde
me escondi, as crianças me cercam. Lá, posso olhar com
toda tranquilidade para esse estranho universo. Disse ao
gordo do Francis que meus sapatos me impediam de dançar
o beguine, e os outros homens me deixaram em paz. Prefiro
a companhia das crianças. As outras mulheres não dizem
nada de consistente, mas uma coisa é certa: eu lhes inspiro
confiança, e elas me fazem confidências. Janine gostaria
que as irmãs do marido fossem como eu. Na verdade,
Roland a escolheu: não canso de repetir para ele não bancar
o galã com outras mulheres, ele já tem três filhos, isso é
bom para Janine, e ela me pede para encorajar Roland a
regularizar a sua situação familiar, pois eles não são
casados no papel. Já tive a minha primeira vitória: os dois
decidiram batizar o recém-nascido, os outros não o foram.
Seus pais estavam ocupados demais fazendo cenas de
ciúme para pensar nisso.
Conheci Roland numa noite, ele tinha vindo com meu
marido para mergulhar na atmosfera de uma família
antilhana. Ele dizia que estava cansado dos sogros, que o
chamavam de preto sujo. Lembrei que os sogros não faziam
parte do casal, e que primeiramente ele devia pensar nas
crianças e na mulher que amava tanto. Acredito que ouvir
isso lhe fez bem, porque na semana seguinte ele trouxe
Janine. Foi quando soube que a união não estava
sacramentada nem junto à lei nem junto a Deus. Roland
pensava que o batismo das crianças era um assunto para as
mulheres, e sua mulher não acreditava em nada. Quanto ao
casamento… ele adoraria fazer a cerimônia nas Antilhas,
longe dos sogros, e ficava projetando datas impossíveis
para o evento.
Ainda consegui convencer ambos a batizarem a criança
que estava chegando. Para tanto, tive que massagear bem
o amor-próprio do Roland: “O senhor acabou virando um
pagão, mas a sua mãe não o criou como pagão! Tenho
certeza de que, enquanto sua mãe o carregava no ventre,
trazendo consigo cestas de legumes e frutas, entre Tivoli e
Fort-de-France, ela pensava apenas em comprar suas
roupas para o batizado! Para ela, tratava-se de uma
tradição sagrada. Por que, depois de chegar à Europa, o
senhor vai pisar nos nossos costumes assim?”.
Ao me ouvir, Janine acariciou sua barriga arredondada e
disse: “Vamos lá, Maméga, o bebê se mexeu enquanto
vocês falavam, vou batizá-lo. Verdade que aqui não temos
muito esse costume! Pelo menos esse assunto não tem a
mesma importância que para vocês, antilhanos!”. Eu fiquei
pensando sobre o momento feliz em que legiões de
missionários vindos dos continentes vizinhos evangelizariam
os casebres, as habitações populares, as mansões, toda a
Europa. Janine agitava seus longos cabelos de cobre e ria,
ria frouxo: aquilo não lhe parecia possível. Imperturbável,
continuei: “Os indígenas acreditavam ou no sol ou num
totem; os negros, nos fetiches;[10] os amarelos, nos dragões,
no sol, em sei lá o quê! Mas acreditavam em algo de bom
ou de ruim. As soluções são variadas. O velho povo europeu
não acredita em mais nada, tudo é apenas formalidade! Os
poucos que escaparam dirão àqueles com um ideal
espiritual que isso não é verdade, perdendo de vista que
seu próprio rebanho está completamente perdido!”.
Finalmente, a pequena mestiça é batizada, e foi obra
minha, Carolina! Eu a tenho no colo, ela é linda, e esqueço
que é preciso enfrentar o gelo no retorno para casa. Roland
conectou o sistema de som da vitrola no teto, instalou uma
tomada múltipla debaixo da lâmpada solta, que difunde sua
luz crua sobre os convidados: eles precisam se abaixar para
passar por ali e não destruir tudo. Chegou um momento em
que meus ilustres antilhanos se cansaram da música que
vinha dos discos! Roland bate na mesa com as mãos, outro
bate com os dois garfos em uma garrafa, e aquele que
flertava com a mulher platinada move seus sapatos em um
movimento cadenciado. Esse jazz improvisado enche o
apartamento. A fulgurante Janine e sua filha mais velha, os
cabelos balançando da direita para a esquerda,
embriagadas com o ritmo, começam a se mexer. A vizinha
de Janine, que é viúva, deixa que um grandalhão a abrace
com força. Seu menino de seis anos, que não tinha me
largado nem por um minuto desde que eu pegara a bebê
nos braços, me perguntou por que aquele senhor olhava
para a sua mãe daquele jeito, e sua irmã, quase uma
adolescente, corou de desgosto. Vi a sua consternação e
fiquei com pena da menina, que não tinha necessidade
daquele espetáculo. Falei para ela sobre a neve que se
recusava a derreter no meu bairro: ela iria me visitar um
dia? Parecia agora esquecer que um grande homem negro
beijava sua mãe, boquiaberta de prazer, mas a sinto
preocupada, mesmo eu falando sem parar. Meu marido se
junta à orquestra. Fiquei contente. Eu não gostaria que
aquela mulher platinada dançasse com ele. Até tarde da
noite, eles dançaram, falaram em patoá: o mistral talvez
não tivesse atravessado a cortina que cobre o postigo, e eu
bem podia me imaginar em um piquenique antilhano.
Antes da nossa partida, Roland, esse cabeça-dura, nos diz:
“Vamos casar neste ano! A senhora será a nossa
testemunha”. Eu digo “Ufa!”. Janine não conhece ainda essa
resolução, mas estou contente pelas três crianças.
De volta para casa, contei a Cécile o que acontecera e
peguei meus cadernos para acrescentar algumas palavras
no final do derradeiro capítulo do meu livro. Cécile se
atreveu a perguntar o que eu tinha anotado naqueles
caderninhos empilhados sobre a mesa. De uma só vez, saí
com esta: “Estou escrevendo um livro!”. Esperava ser
motivo de chacota, mas ela nem riu, e fiquei surpresa. Pois
foi assim, encorajada, que completei: “Leia um deles se
quiser”. Ela se ajeitou no sofá e devorou um, dois, três,
quatro cadernos, ela parava apenas para dizer: “Mas como
é bom! Mas é exatamente assim! Isso vai ser publicado”.
Pela primeira vez, ouço essa palavra e fico um pouco
assustada.
2 de fevereiro de 63

Por nada no mundo eu deixaria de ir à abadia Saint VICTOR


no dia de Nossa Senhora da Candelária. Hoje fui, apesar do
frio, esperando que não houvesse muita gente. Azar o meu!
Toda a Provence, Carolina, ou melhor, a região inteira de
Marselha tinha vindo se prostrar diante da Virgem Negra
abrigada naquela igreja bizantina. As vendedoras de
biscoitos provençais faziam bons negócios com suas
navettes, não davam mais conta da enxurrada de
compradores, e suas bancas iam até a entrada, agora muito
estreita, da abadia.
Nunca soube se aquela estátua era de pedra ou de
madeira, objeto de tanta veneração, cuja origem remete a
tempos imemoriais. Ela tem no braço esquerdo, na altura do
ombro, um Menino Jesus com cabelo completamente
crespo. Está coberta com um tecido verde suntuoso. Faço-
lhe confidências como faço a você, Carolina: com sua tez
morena, ela é tão parecida comigo! Quando rezo uma
oração à Imaculada Conceição, sei que estou invocando a
mesma Rainha, mas lhe peço perdão por orar, caso ela não
seja feita para mim. Aqui não é a mesma coisa: no
momento fugaz em que consigo me aproximar da estátua,
depois de ter seguido uma longa procissão, percebo que ela
tem a expressão serena das mulheres da minha terra, que
penaram muito na vida; talvez encontre o sorriso da minha
mãe, a cabeça erguida das outras mulheres cujas histórias
embalaram a minha infância! Sou eternamente grata a ela
por me dar essa ilusão, e de modo egoísta quase acredito
que foi feita para mim. Estou na fila, desço mais uma vez
até a cripta da abadia, do famoso arquiteto Cassien. Ele fez
bem o seu serviço, e essas pedras velhas estão lá para a
posteridade. Dou uma olhada nos túmulos dos mártires,
desconhecidos por muitos, que lá dormem, e sinto inveja de
todos os povos que só precisam virar-se para trás para ler a
história do seu passado, e grito no meu íntimo: “Onde está
o meu passado? Trata-se de um nada?”. É quando o sorriso
da Virgem Negra me tranquiliza, me acalma. Tem que ser
idiota, Carolina, para pensar tal tipo de coisa, não é?
Munida de algumas velas, com as quais toquei os adornos
da Virgem, sinto-me forte o suficiente para enfrentar a vida.
Pois a vida não é apenas pensamentos, é realidade, e minha
realidade é, neste 2 de fevereiro, uma coisa difícil: gastei
até o último franco das minhas economias nos três meses
de inverno rigoroso. Vou ter que procurar uma patroa não
para continuar a minha experiência, mas para dar um jeito
em questões mais urgentes, se não quero voltar em breve
ao Crédito Municipal. O vendedor do mercadinho perto de
casa estufou o peito e proclamou, diante da clientela
atônita, que a salsa custava doze francos o quilo: de hoje
em diante, seria preciso comprá-la. As batatas chegaram a
um preço astronômico. No bairro, hepáticos não comem
mais alcachofras. Eles costumavam comprar uma alcachofra
e fazer um suco para aliviar o desconforto no fígado. O quilo
está três francos. O espinafre tornou-se produto de luxo, e a
alface anda custando seis francos o quilo. Nessa toada,
todas as donas de casa estão ficando com o pires na mão
com o peso do orçamento familiar, e as mais destemidas já
encontraram um bico.
6 de fevereiro

O noivo de Cécile chega no final de abril. Ela não se contém


de alegria. Passou a mão febril no vestido branco de
casamento que uma costureira gabaritada tinha
confeccionado. Nunca tinha visto o vestido, ela não ousou
mostrá-lo antes que a data da cerimônia fosse marcada.
Pois então, tudo pronto, o casório será no início de maio, no
desabrochar das margaridas, das lilases e das flores de
pêssego, e será mais divertido do que se fosse no inverno.
8 de fevereiro de 63

Hoje de manhã, a rádio disse que dois antilhanos mataram


um ao outro. Espichei o ouvido, mas mesmo assim não tive
tempo de escutar quais eram seus nomes. Meu marido
voltou ao meio-dia, parecia consternado, secou uma lágrima
que caía dos olhos e disse:
“Roland morreu com um tiro no coração numa rua do
Harlem.”
Abalada, larguei os pratos que estava segurando. O
estrondo chamou a atenção das crianças, que vieram se
juntar ao meu redor. Quando ouviram a notícia, foi uma
choradeira só. Todos conheciam bem o Roland, que vinha
com sua grande moto até nossa casa brincar com os
meninos. Ele colocava um na frente da moto e o outro se
agarrava na sua jaqueta. Os pequenos ficavam
impressionados. Roland sentava-se com eles embaixo dos
pinheiros e contava mil e uma histórias, batalhas na planície
dos juncos na Indochina, seus companheiros de equipe que
carregavam, em um só dia, toneladas de bananas do porão
dos barcos até o cais, as caixas do tamanho de armários
transportadas com muito esforço; ele mostrava o bíceps de
Hércules e os meninos tentavam imitá-lo, mas em vão: tudo
terminava em gargalhadas. Ele recobrava o ânimo entre os
meninos, depois voltava à sua vida instável, entre o cais, a
sua mansarda e o Harlem.
Fomos ao necrotério do cemitério de Saint Pierre para
saber a hora do enterro. O guarda nos disse que ainda dava
para ver o martinicano, que a autópsia já havia sido feita e
que seu corpo já estava na “geladeira”. Roland na geladeira
como uma galinha qualquer! Sendo que uma semana antes
trouxera Fort-de-France ao seu pardieiro, sendo que tinha
decidido se casar para entrar na linha! Isso era
inconcebível. Tive que me resignar quando o guarda abriu o
compartimento em que Roland dormia para sempre. Tentei
em vão fechar seus olhos entreabertos, ele parecia sorrir,
parecia fazer uma última piada com seus conhecidos. Disse
meu De Profundis diante do guarda indiferente.
À tarde, voltamos para o enterro. A loira Janine chegou
gritando, vestida com um casaco de couro preto, seus
longos cabelos cor de sol esvoaçavam com o mistral. A
viuvinha, que adorava paquerar, deu-lhe o braço, e a
espanhola, acompanhada pelo gorila, os seguiu. Um a um,
os amigos de Roland chegaram. Eu nunca tinha visto aquela
fauna, estivadores com suas boinas enterradas na cabeça,
peões e todo um grupo de ociosos que aproveitaram a
carona do ônibus que conduzia o cortejo e permaneceram,
por curiosidade, para se deleitar com a dor dos outros.
Eles falavam, riam diante do caixão aberto,
acompanhados pelas suas queridas. Estas estavam mais
reservadas, embora maquiadas e com vestidos curtos.
Finalmente, uma mulher baixinha e loira, vestida com um
casaco de vison, saiu de um carro comprido com uma
enorme coroa. Ela sumia debaixo das flores, e o penteado
tipo couve-flor era a única coisa que se distinguia do seu
corpo. Um murmúrio percorreu o público heteróclito: percebi
que era a amante que eu acreditava existir apenas na
imaginação de Janine. Todos os olhos miravam aquela
aparição, e os espectadores que foram até lá riam sem
parar. Era revoltante, soltei o braço do meu companheiro,
dei meia-volta diante dos meus irmãos de cor e lhes disse
em patoá:
“Então, vocês estão definitivamente perdidos! Não
respeitam nem mais uma pessoa morta, e que pessoa! O
amigo de vocês não tinha familiares aqui, vocês eram a
razão da existência dele, ele só falava de vocês, em
detrimento da família, de como conseguir para vocês um
dia de trabalho no cais, de emprestar alguns francos para
vocês, de encontrar um abrigo para vocês quando
chegavam clandestinamente ao Harlem. E hoje vocês riem,
vocês são nojentos.”
Minha velha amiga Carolina, eles são sujeitos difíceis de
serem enrolados, andam com punhos e às vezes são bons
com facas. Um deles acabou dizendo:
“Caramba! Essa mulher fala como a minha mãe! É a
mesma coisa! Ela tem um jeito todo dela de fisgar as
pessoas! Senhores, chega disso!”
Eles ficaram quietos, não riram mais. Fiquei feliz de lhes
proporcionar de novo, por um momento que fosse, uma
aparência digna. Mas Janine quebrou o silêncio, surtou de
raiva ao ver a loira e a imensa coroa, urrando como uma
tigresa:
“Que ela desapareça daqui, essa p… Foi indo para a casa
dela que Roland encontrou o seu fim no Harlem, foi por
causa dela que ele morreu.”
O guarda já tinha visto outras tantas cenas do gênero no
necrotério. Ele disse:
“A família por aqui, por favor! Vamos fechar o caixão!”
Em três segundos, Roland sumiu da nossa vista, enquanto
Janine rastejava pelo chão. O mestre de cerimônias do
funeral tinha tirado a coroa da mulher de pele de vison, o
rímel tinha saído e seus olhos estavam vermelhos de
lágrimas; ela não tinha pronunciado nenhuma palavra.
Diante da sua mudez, Janine se acalmara.
No meio dos vagabundos que tanto adorava, Roland foi
conduzido para dentro da terra. Não há palavras para
descrever o baque surdo da terra europeia se fechando
sobre um homem que falava apenas de retornar à terra
natal com sua família num imenso barco, das casas nas
encostas do Tivoli e do sol cobrindo a Chapelle du Calvaire
de Fort-de-France. Roland vivia aqui, mas ele não estava
adaptado, procurava um paraíso mesmo no meio dos
delinquentes. Não há nome para isso, melhor esquecer.
Janine quis se jogar no buraco, mas os vagabundos
disseram:
“É besteira, isso não vai durar muito, ela gosta muito de
homem, vocês vão ver!”
Saí dali, pois há momentos de sinceridade que a dúvida
não deve macular.
16 de fevereiro de 1963

Não se fala mais a todo momento de Roland, e posso


ordenar meus pensamentos. Assim, pude enviar algumas
folhas do meu livro a uma grande mulher amante das
Antilhas e dos antilhanos, minha cara Carolina.
Rapidamente, ela me respondeu:
“Devorei a amostra do seu caderno, e um buquê de
perfume e poesia me invadiu. É preciso, sim, continuar esse
livro: cem vezes sim, é muito bonito.”
Pois é, eu poderia ter pulado de alegria, eu tinha agora
um público leitor de duas pessoas, sem contar a família, que
sempre quer saber a continuação dos meus escritos. Então,
não, não pulo de alegria, estou ainda bastante apreensiva
sobre o que sairá de todas essas horas colocando o preto no
branco. Cécile me disse que eu não devia mais ir à casa das
patroas, que devia escrever livros, muitos livros, que valia a
pena. Ela chegou a me dizer que eles seriam publicados.
Então comecei a rir. Publicar, eu! Não conheço ninguém do
ramo, não tenho um centavo no bolso e já estou no outono
da minha vida. Não posso nem contar com um físico
extraordinário para atrair a atenção seja de quem for; sendo
assim, como devo proceder? Cécile tem vinte e dois anos,
mas sabe escolher as palavras para me convencer:
“Maméga, acredite em mim, é bom mesmo! Se eu
pudesse escrever, faria o mesmo, não dá para desistir.”
Uma apoiadora dessas, martelando as mesmas palavras,
dia sim, dia não, me impede de jogar tudo para o alto; pois,
quando a carteira está vazia, só confio nas cédulas que me
permitirão ir ao mercado neste instante: estamos apenas no
dia 15 do mês e o salário do meu marido já evaporou. Que
ideia trabalhar como encanador ou carteiro e ter uma
cambada de crianças! E o inverno não acaba nunca! A neve
voltou a se refestelar no Sul. Decididamente infiel, neste
ano ela abandonou a casa no Norte para vir se divertir com
o mistral. O vento, por sinal, se revolta e faz os pinheiros
chorarem. Os arredores não vestiram o grosso casaco
branco do último mês, a camada branca é fina e frágil, sorte
que por aqui o sol se intromete e perfura esse vestido
insólito.
18 de fevereiro de 1963

Vi, afixado na balança da padeira, um anúncio: procura-se


uma faxineira duas horas por dia. Fui me informar e soube
que uma senhora idosa que morava sozinha, não muito
longe da minha casa, estava procurando ajuda. O inverno
muito longo a deixara presa no seu pequeno apartamento.
Carolina, eu não fui lá por amor ao próximo, mas para trazer
comigo seiscentos francos por duas horas de trabalho: era
tão perto de casa! Pois então, chegando ao novo serviço,
comecei a sacudir todos os locais onde a poeira se
acumulava: escovei o assoalho e esfreguei duas bacias
cheias de panelas e de caçarolas, enquanto a velhinha me
falava dos seus infortúnios. Os filhos não cuidavam mais da
mãe, e ela só tinha a aposentadoria. Escutava aquilo e
trabalhava duro. A vovozinha não tinha lavadora de roupas,
e eu lavei à mão uma meia dúzia de lençóis. As duas horas
não foram suficientes para reorganizar aquela residência. A
velha pequenina consultava ansiosa o velho relógio. “Está
na hora”, ela gritava. “Duas horas são suficientes para
mim!” “Duas horas, pois não! Para dizer a verdade, seriam
necessários dias, vovó! Faz uns três meses que nada é feito
no apartamento.”
Ela tinha contado e recontado as moedas destinadas a
mim, e se perguntava que “cabeça-dura” tinha invadido a
sua residência.
Em seguida, ela me falou em crioulo para que eu
compreendesse perfeitamente que dispunha apenas de
seiscentos francos. Eu disse:
“Está bem, terminei, vovó: guarde os seiscentos francos
para um cozido! De vez em quando vou voltar para visitá-
la!”
Ela não podia acreditar, e tinha tanto medo de eu não
retornar que disse:
“Posso dar seiscentos francos durante um mês, duas
vezes por semana. Até o fim de março estarei em forma, e
espero que nesse momento a assistência social me
encaminhe para uma casa de repouso.”
“Tudo bem! A senhora não está contente por ter uma
faxineira de graça, durante um mês? Isso não é comum, e
eu cobro caro, sabe? Quando as patroas veem meus setenta
e dois quilos, elas me contratam sem hesitação, e eu recebo
o dinheiro delas sem arrependimento. Elas não são más, e
sim burras. Mas com a senhora, vovó, eu não conseguiria
comer o que eu comprasse com suas moedas. E dizer que
suas filhas são madames que andam como pavões por aí
sem se preocupar com a senhora!”
É por isso, Carolina, que tenho trabalho me esperando por
um mês.
7

18 de março de 1963

Conversávamos sobre um jornal antilhano publicado em


Marselha e, hoje de manhã, na minha caixa de correio, ele
chegou, elegante e azulado. Enquanto folheava, Solange
veio voando, segurando o seu exemplar debaixo do braço:
“Temos um jornal! Há uma lista de ‘figurões' na parte
superior. De acordo com aqueles que a fizeram, só existem
antilhanos importantes em Marselha. Quanto aos que
labutam, não há sequer uma linha anunciando quem partiu
dessa para melhor… Leia na seção ‘Obituário', há apenas
um controlador do Tesouro desaparecido neste semestre e,
no entanto, Coppe está a bons sete palmos debaixo da
terra: indo comprar cocos, neste inverno, na região
portuária de Joliette, ele desabou, do lado da sua caixa de
mercadorias. E Guiche, o contramestre, que só falava do
sujeito que faz este jornal, bateu as botas neste inverno,
num leito do Timone: havia apenas três gatos para
acompanhá-lo, porque ele nunca se exibiu em carro de luxo.
Então ele não é antilhano! E Lise, que não pôde ser
representante comercial nas Antilhas! Ela se acabou
trabalhando junto a uma bacia, na casa de uma madame, e
agora está definhando em uma casa de repouso perto da
basílica Vierge de la Garde, ninguém vai visitá-la. Ela é
antilhana, não é? E a tia Dodo, que encerou tantos pisos de
parquê que o reumatismo destruiu seus ombros! Você viu o
pessoal do jornal a visitando no hospital Conception? Eles
têm vergonha de dizer ao nosso capelão que, entre nós, há
alguns que são ‘azarados'. Se ao menos ele, o capelão dos
antilhanos, que é da Provence, viesse lhes dar conforto
moral. E a sra. Marty, que ouvia o pessoal do jornal dizendo
‘Olé, Olé' quando vestia os seus madras. Pois é, ela passa
de uma clínica para outra, também trabalhou a vida inteira
junto às bacias em Marselha, está assolada por dores, e
quem a visita, tirando as enfermeiras? Você faz que não vê,
mas já passou dos limites. Olhe esta lorota:
“‘O círculo antilhano visa ajudar moral e materialmente os
compatriotas infelizes, na medida do possível.'
“Veja bem, eu mesma lhe direi que, quando esses caras
veem um antilhano infeliz de mãos bem calejadas, eles os
esmagam de uma só vez. Não é somente por causa dos
mortos que estou furiosa! Mas por todos aqueles que
pagam enormes anuidades à Associação e a quem não se
envia uma palavra reconfortante nos momentos de
adversidade. E além disso, um ponche por duzentos e
cinquenta francos, para mim que sou membro, é o cúmulo.”
Claro, Carolina, eu sabia que a estupidez antilhana havia
chegado até aqui, mas Solange não me deixava dizer uma
sílaba, ela estava fora de si. Sabia que, quando as faxineiras
das Antilhas vinham à Associação em busca de um pouco
de calor humano, depois de ter dado duro por semanas na
casa das patroas, as filhas dos responsáveis as olhavam
com um ar de NEFERTITI tão intenso que elas certamente
renunciavam qualquer gesto de fraternidade. Elas preferiam
frequentar as boates europeias.
Eu sei! Eu sei! E isso me incomoda. “Saber” e “não poder”
são palavras que nesses momentos assumem um
significado horrível. Para acalmar minha amiga, li um
agradabilíssimo artigo de um jornal da nossa terra:
UMA MULHER TRANSFORMADA EM GADO
É o grande burburinho que corre em Saint-Esprit. Certa
manhã o sr. G. encontrou uma vaca na sua mercearia, ele
estava prestes a expulsá-la quando ela lhe teria dito:
“Olha só, sou sua esposa, não fique com raiva.”
O marido, entendendo que sua esposa estava possuída,
foi buscar o padre. Este fustigou o animal, que, depois de
retomar sua forma humana, foi levado para o hospício
Colson. Transtornado, o marido seguiu para o mesmo
destino.
Solange gritou:
“Não é possível! Em que ano isso foi escrito?”
“Na semana passada mesmo”, eu disse, “acabei de pegar
da caixa do correio.”
Solange começou a rir como só ela sabe fazer. Era uma
risada expansiva, com um pouco de acidez. Tive a
impressão de que ela havia esquecido o motivo da sua
visita. Enquanto a acompanhava até o ônibus, ela despejou
sobre mim milhares de lembranças da nossa região que lhe
vinham à cabeça, e as pessoas, apressadas pelo vento
intenso que soprava, nos observavam, surpreendidas.
Eu me livrei da minha amiga, mas não estou feliz! Oh!
Não estou orgulhosa, não. Primeiro, irei à casa de repouso
para ver Lise e ao hospital Conception visitar tia Dodo,
talvez isso me deixe mais sossegada! Mas o jornal é uma
grande enganação!
Carolina, nesses momentos, penso tanto nas pessoas
desamparadas que se sentem mal de serem assim por
causa do olhar dos imbecis, preciso de muitos argumentos
para me convencer de que eu não sou uma dessas imbecis.
22 de março de 1963

Solange voltou, dessa vez de carro, o marido está de licença


e o Citroën 2CV saiu da garagem:
“Tudo certo! Consegui dois lugares para o negócio dos
antilhanos! Venha ver a cara deles, vale a pena! Quero ver a
cara daqueles que dizem aos europeus que, de onde
viemos, só existem barzinhos e casas enormes com
piscinas, não quero perder isso por nada. Amanhã de
manhã, se a patroa também for lá, direi a ela que é mentira,
que há muito mais casebres do que mansões, muito mais
gente com três madras do que com dois. O terceiro, aquele
na altura dos rins, nunca é apresentado no ‘seu folclore'.”
Quando algo não agrada a Solange, ela atribui a alguém:
assim, ela me atribui “um” folclore.
27 de março

Terminei de ajudar a velhinha; o enxoval está pronto para ir


à casa de repouso. Assim, visitei aqueles que sofrem,
confortei aqueles que choram! As crianças tiveram notas
excelentes, minhas horas extras são recompensadas ao
fazer com que leiam. Por que então não aceitar a proposta
da Solange e visitar aqueles que riem e dizem que a vida é
um mar de rosas?
Havia muitos deles lá, na festa, e a sala estava lotada.
Entrei no meio da multidão e procurei no horizonte um velho
filantropo antilhano que mora em Toulon. O velhote estava
lá, apoiado em uma bengala. Ele parecia surpreso com a
pompa obrigatória da reunião, em que cada família teve que
apertar os cintos para pagar os trinta francos exigidos como
contribuição.
Houve discursos, arroz à moda crioula, ponche e madras.
O capelão dos antilhanos e um provençal erudito falaram
coisas encantadoras de improviso sobre as Antilhas. Logo
depois, oradores, pouco acostumados ao microfone,
travaram uma batalha alucinada entre o texto escrito e o
sistema de som. Durante a cena, Solange me chutava por
debaixo da mesa para chamar a minha atenção. Foi quando
o velhote trouxe um assunto bom para ser discutido em
uma igreja, assunto que toda a gente evita sempre que
pode. Ele disse:
“Todos os homens são irmãos, não deve haver barreira
entre as epidermes, e as visões de mundo devem ser
discutidas normalmente, e não se tornarem objeto de ódio.”
As mulheres desses homens, que têm antilhanas trazidas
sob encomenda e que fazem diárias de catorze horas, não
aplaudiram. Solange então se levantou e gritou “Bravo!”. O
marido lhe puxou o vestido para que ela se sentasse, ela
bateu palmas e pediu “Bis”.
Eu estava sentada entre o marido de Solange e um
professor de não sei o quê. Esses espíritos malignos dos
quais brotam histórias doentias são horríveis! Claro, ele não
percebeu que eu estava incomodada, minhas orelhas de
chocolate não coram, e ele foi em frente com tudo!
Eu não tinha vergonha de não ser culta. De que serve
passar o tempo dissecando Voltaire e outros tantos para, no
final, dizer tais disparates? Caramba, o que um cretino
desse naipe ensina a seus alunos?
Solange provavelmente pensava igual. Ela está produzida,
manicure, pedicure, cabeleireira, não poupou em nada; se
não falasse sem parar em patoá, diríamos que era a própria
Maria Montez! Ela encolheu os ombros e, colocando um
pouco de água no seu vinho, disse:
“Isso alivia a tensão!”
O senhor corou e virou-se para os outros presentes!
Naquela noite, enquanto escrevia para você, Carolina,
disse a mim mesma: dez quilos de laranja a duzentos
francos dariam cinco pacotes para os pacientes antilhanos
que estão nos hospitais, às vezes sem visitantes ou amigos!
Passei muito tempo me revirando na cama tentando dormir.
A consciência é algo que deveríamos colocar ou tirar
quando quiséssemos, infelizmente ela está atrelada ao
nosso corpo, e, naquela noite, mais de uma pessoa devia
estar envergonhada com a sua.
“Suave sossego gozarás se de nada te acusar o coração.
Não te dês por satisfeito, senão quando tiveres feito algum
bem” (capítulo 6 da Imitação de Cristo). Lembrando disso,
todos os eventos diários são autoexplicativos. O orgulho
descomedido de alguns e a imensa ingratidão de outros são
varridos por essas simples palavras.
28 de março

Enquanto ouvia discursos ontem e Cécile cuidava das


crianças (ela se recusa a sair até a chegada do noivo), meus
meninotes se comportaram bem quase todo o tempo.
Chovia, eles não podiam dar um passeio ao ar livre, como
tínhamos combinado. Decidiram então construir uma cabine
para foguetes espaciais. Não foi difícil. Pegaram copos que
escorriam na pia e os preencheram com soldados de
chumbo. O resultado não demorou a aparecer. Dois ou três
foguetes se chocaram, e os cacos de vidro encheram a
minha lixeira.
30 de março de 1963

Enfim tiro os calçados e o cachecol. Sorrateiramente, ao


lado da estrada, pequenas margaridas apontavam um
caminho para o sol. No pátio da casa da vovó, há um pé de
lilás que faz pouco tempo ainda estava lisinho, agora noto
grandes moscas nos galhos esqueléticos! Aproximei-me
para ver esse fenômeno de perto e reconheci botões que
estavam prestes a ornar o arbusto, apesar do frio e da
interminável geada deste ano. Também observei um
pássaro planando no céu: acho que era uma andorinha!
Marselha está revigorada, e as mulheres sentadas nos
bancos públicos tricotam ao sol. Abri todas as janelas para
dar as boas-vindas ao primeiro sol ardente do ano e
desliguei o aquecimento. Não posso lhe dizer, Carolina, o
que sinto com as mudanças de estação, para mim é uma
eterna surpresa, acostumada que estava a uma terra sem
inverno. Fico feliz em ver pessoas sem sobretudo curtindo o
tempo bom. Quando os jogadores de petanca saírem com
suas bolas para jogar, minha alegria chegará ao ápice, a
estação dos ventos frios terá definitivamente terminado.

A vovó não estava acreditando! Fiz as suas malas, limpei a


cozinha e a acompanhei até o ônibus que a levaria a uma
casa de repouso perto do rio Durance. Ela me deu uma
toalhinha de mesa de crochê, feita por ela, à mão, segundo
suas próprias palavras. Não pude recusar, ela ficaria sem
jeito. Ela ainda me garantiu, do fundo do coração, que não
se esqueceria de mim em suas orações. Seus olhos, outrora
azuis, ficaram cheios de lágrimas, emoção que também me
contagiou. Dei meia-volta e gritei:
“Até breve! Seis meses passam rápido! Vou lhe escrever!”
Naquela velha mulher branca abandonada pela família,
encontrei a minha mãe, que, em outras paragens, talvez
tivesse precisado de ajuda, de assistência. No ônibus que
me levava para casa, fiz a minha reza:
“Meu Deus, proteja aqueles que amo da solidão e do
esquecimento.”
31 de março de 1963

Carolina, posso realmente dizer que perdi tempo só porque


não deixei o melhor que eu tinha na casa de “uma
senhora”? Não! Terminei meu primeiro livro, só me resta
colocar a palavra “fim”, não me convenci a fazer isso, uma
imensa apreensão me invade. Enquanto ainda não era um
livro, todas as hipóteses me eram permitidas; às vezes,
podia imaginar pessoas o rejeitando:
“Que fiasco!”
Em outros momentos, podia vê-lo nas mãos de “uma
senhora”, repetindo à sua princesinha:
“Oh! Você pode ler! Eu adorei.”
Agora que terminei o livro, que não faço mais suposições
e que escrevi pedindo conselhos a quem me permitiu
conhecer você, sinto vergonha. É inexplicável, mas eu tinha
mesmo o direito de maltratar a língua de Molière? Eu, uma
pobre negra? Tinha eu o direito de dizer coisas bonitas em
um francês meia-boca? É isso o que me preocupa! Os
particípios irregulares vão embora justo no momento em
que estou escrevendo uma frase! E minhas retinas tão
fatigadas pelas madrugadas sem dormir fazem os toques da
máquina de escrever dançarem quando trabalho à noite, de
tal modo que não há uma linha que não traga consigo uma
gralha! E a fala bonita daqueles que tiveram a sorte de
estudar literatura, em que buraco ela se esconde quando
sou eu que escrevo? Ouço então um imenso clamor e um
monte de gargalhadas! A multidão diz: ela foi corajosa,
tendo só o diploma do curso primário! Que atrevida! O
clamor aumenta, ressoa na minha cabeça com tanta
intensidade que acabo largando tudo para voltar ao
universo do qual nunca deveria ter saído. Limpo o cocô de
uma das crianças, descasco batatas e penso em procurar
uma patroa. É a minha sina: só tenho que ficar no meu lugar
e não vou me incomodar.
Escrevi para o repórter da Paris Match que falou de você
como um náufrago que joga uma garrafa ao mar, de
antemão sem esperança. Ainda bem que a primavera chega
logo, estarei tão ocupada observando a minha cidade
renascer que os pensamentos tristes não durarão quase
nada.
Para me encher de ânimo, enquanto esperava por uma
resposta pouco provável, li para as crianças trechos dos
meus rabiscos. Hoje era o capítulo do vulcão, minha filha
começou a chorar:
“É muito triste! Por que é tão triste?”
Não querendo entristecê-la mais, fechei o manuscrito.
As cinzas das memórias não são apenas restos de
fogueiras. Há também as brasas de sofrimento, as achas de
lenha da maldade, os ramos da ternura e do amor.

Meus filhos trouxeram seus calçados esburacados depois de


um jogo de futebol muito intenso. Haverá custos adicionais
para o casamento de Cécile, e o orçamento da família está
mais do que apertado. Disse então ao meu marido que ia
procurar trabalho, ele gritou como um infeliz:
“Não quero que você vá estragar os seus dedos na casa
dessas dondocas! Fique aqui! Dane-se o casamento! Dane-
se que os calçados estraguem rapidamente, os meninos
ficarão com eles um pouco mais de tempo!”
Quando ele perde a paciência, prometo tudo o que ele
quer e, mesmo assim, faço o que me dá na telha. Parti para
a Agência Pública de Mão de Obra, o funcionário
encarregado de arrumar trabalho para secretárias e
contadoras me avisou que não havia empregos de meio
expediente. Como operária, eu poderia ser enviada para a
fábrica de chicletes, mas seria preciso estar lá às seis e
meia da manhã. Sondei as vagas para “domésticas”. Não
tive muita sorte, o funcionário leu a demanda: procuram-se
pessoas, “alimentação e alojamento” fornecidos. Já tenho
“alimentação e alojamento”, então voltei para casa.
8

2 de abril de 1963

Meu filho perdeu o livro de história. Fui ao livreiro para


comprar outro. Diante de tantas obras alinhadas, veio a
ideia de pedir informações sobre como publicar um livro. Os
livreiros são supersimpáticos, nada os surpreende, já que
estamos perto do dia da mentira. O primeiro que vi, no alto
da Canebière, era bonito, loiro, bem-vestido e elegante.
Disse que eu tinha uma amiga que queria publicar um livro.
Ele me olhou sem rir, com curiosidade. Pense um pouco,
Carolina, eu carregava uma sacola de compras de crochê da
qual saíam longas folhas de acelga, não impunha nenhum
respeito. Mesmo assim, o senhor me respondeu com um ar
bem sério:
“Escreva para a Gallimard, não há nada em Marselha, é
uma pena, muitas vezes me pedem esse tipo de
informação!”
Escrever para a Gallimard, não sou maluca! Eles não vão
me responder. Mas não falei em voz alta e pedi meu livro de
história. Ele não vendia livros clássicos, então comprei um
gibi do Mickey Mouse e fui embora. Entrei depois na livraria
Larousse, fui direto para o sujeitinho magro e de cabelo
preto do caixa: contei a lorota da minha amiga que queria
publicar um livro, ele me perguntou, parecendo interessado:
“Que tipo de livro?”
Eu respondi, e as palavras fatídicas caíram de seus lábios:
“Não tem nada em Marselha! Não tenho também o livro
de história que a senhora quer! Diga à sua amiga para dar
uma volta por Paris!”
Dar uma volta por Paris? Olha só, é uma coisa em que eu
não tinha pensado!
Entrei em outra livraria da Rue Longue des Capucins,
localizada perto de um hotel estranho, na frente do qual
mulheres maquiadas esperavam de pé, paradas. O livreiro,
grisalho e sério, não parecia surpreso; ele tinha o livro que
eu procurava, senti que não precisava falar sobre minha
amiga escritora e, de supetão, perguntei:
“Tenho um livro para publicar, o que eu deveria fazer?”
Ele tirou os óculos e, apesar das folhas de acelga que
brotavam da sacola e embelezavam suas vitrines, disse:
“Mas que maravilha! A senhora deve escrever para o
Sindicato dos Editores em Paris, não sei em qual bairro fica,
mas sei que existe um! Uma futura escritora em Marselha,
que bom, que bom!”
Ele não sabe o que escrevi nem o que poderia ter escrito,
mas adorava o fato de haver escritores em sua cidade.
Gostei da sua reação. Ainda triste, voltei para a rua,
convencida de que as palavras do livreiro não eram uma
brincadeira de 1º de abril. As folhas demasiadamente
compridas da acelga estavam me incomodando, tratei
então de dobrá-las na sacola. Pela primeira vez na minha
vida, ia a uma Agência de Emprego para Faxineiras. Nos
bastidores das Agências Públicas de Mão de Obra, o
indivíduo que entra pode escolher o emprego; numa
agência para domésticas, não há escapatória. Todo mundo
sabe o que acontece com as mulheres que vão lá.
Subi os seis andares até a agência. No vestíbulo, seis
cadeiras de madeira, enceradas por tantas saias miseráveis,
já estavam ocupadas por mulheres cheias de esperança de
encontrar um trabalho. As belas senhoras que procuravam
uma empregada não se instalavam junto a suas futuras
faxineiras, elas têm prioridade e entram na agência sem
fazer fila. Observam com uma óbvia curiosidade aquelas
que são obrigadas a esperar.
Perto de mim, de pé, uma senhora esperava sua vez de
entrar na agência; ela tinha um cheiro bom, as mãos bem
cuidadas e um olhar de abutre. Ela me olhava… me olhava,
com aqueles olhos cruéis. Ainda bem que as empregadas
não eram oferecidas aos gritos; rapidamente ela teria me
levado. A senhora enfim entrou na agência e perguntou à
agente se me conhecia. A agente, que nunca tinha me visto,
disse à senhora que esperasse um pouco e me fez entrar. As
outras mulheres, que estavam lá antes de mim, ficaram
resmungando.
Não há nada mais doce do que uma agente de empregos!
Ela quer agradar todo mundo e se esforça para criar uma
relação de confiança entre empregadores e empregadas.
Imediatamente eu disse que procurava um emprego de
meio expediente. Ela não pediu meus papéis nem
perguntou meu nome. Eu agradava a senhora com olhar de
ave de rapina, e isso lhe bastava.
Gentilmente, a agente me perguntou se eu não podia dar
um jeito e ficar o dia inteiro disponível, o almoço não estaria
incluído no meu pagamento. Como cozinho sempre mais do
que é preciso para a garotada, não tenho interesse no
almoço alheio. Além disso, preciso ao menos de um turno
para cuidar da minha própria casa; por isso, recusei. A
atendente, com seu melhor sorriso, disse que eu estava
perdendo uma oportunidade de ouro. A patroa saiu sem
olhar para mim, ela não compreendia como eu podia
recusar a sua oferta.
Tive que explicar à agente que um papel da sua firma me
designando um empregador era uma espécie de bilhete de
loteria cujos benefícios ou riscos eram por minha conta, mas
que ali, ao me deparar com o olhar de águia e os lábios
finos da patroa, percebi que não valia a pena me embrenhar
na intimidade daquela senhora.
“Oh!”, ela respondeu, “não confie nas aparências!”, e me
passou meia dúzia de endereços em lugares tão distantes
de onde eu morava que fui obrigada a abandonar minhas
buscas por hoje. Só não podia voltar da cidade sem ter feito
algo de bom, fui a um fabricante e peguei uma grande pilha
de pijamas de baetilha para serem costurados: quatro
francos por duas peças, precisarei ralar como uma
condenada para ganhar oito francos por um turno de
trabalho. Pelo menos vou poder encontrar a patroa que mais
me apraz.
E, para ganhar coragem, Carolina, olhei o cartaz de uma
propaganda de viagens: havia um anúncio elogiando o
Caribe e mostrando garotas indolentes acenando lenços de
adeus. Minha alma caiu na gargalhada, ela já viu mulheres
suadas carregando enormes cachos de bananas, ou então
curvadas nas plantações de abacaxi, ou ainda amarrando
um monte de cana-de-açúcar sem pausa para o xixi. E
minha alma gritava:
“Enganem, continuem enganando, já que a vida é uma
grande mentira.”
Eu precisava calar o que vinha do fundo da minha alma,
arrumei de novo a acelga na sacola e disse em voz alta:
“Tenho que voltar para casa e dar um jeito nisto aqui!”
Uma mulher ao meu lado sorriu, e minha alma
definitivamente se recolheu à sua carapaça: há muita coisa
a ser feita agora para eu deixar a minha alma se divertir em
passeios pelas Antilhas.
8 de abril de 1963

Minha pobre Carolina, só consegui costurar quatro pijamas


em seis dias! Tive que interromper meu trabalho a todo
momento por qualquer bobagem, para dar meias ao meu
marido, fazer o dever de casa com meus filhos, bater papo
com a vizinha ou o carteiro: não foi muito inteligente abrir
um ateliê de costura em casa! Acabo de entregar os pijamas
e, desesperada, me encontro diante da agente de emprego.
Ela me cumprimentou, dizendo: “A senhora chegou em boa
hora, há uma vaga na frente do ponto de ônibus da sua
casa, perto do zoológico”. Anotei rapidamente o endereço,
era muita sorte evitar dois quilômetros de caminhada para
chegar, já sem fôlego, ao trabalho.
Tudo foi muito rápido: fui contratada imediatamente, sem
hesitação. Ela é uma senhora idosa, de cabelos tingidos.
Seu vestíbulo é um museu; a sala de jantar, uma
lanchonete; a cozinha, um laboratório. Ela me perguntou se
eu sabia cozinhar. Isso é uma pergunta que se faça a uma
mãe de família? É algo que se aprende mais rápido do que
os bons modos numa mesa com três ou quatro copos ou
com duas ou três facas. Mas ainda seria bom fazer um
estágio com um técnico em eletrônica para conseguir usar
todas as coisas da cozinha que funcionam ligadas à tomada.
Além do mais, nesta época em que todas as mulheres de
fino trato têm a mania de serem magras como um palito,
qualquer pessoa pode se autodenominar cozinheira. Se
você viesse à Europa, Carolina, veria tudo isso: nada leva
manteiga, nada se cozinha com carne de porco! Sem
massas folhadas, sem molhos de dar água na boca!
Cenoura, alho-poró, leite desnatado, carnes assadas, tudo a
gosto, em cozinhas na verdade feitas para fazermos cremes
suculentos, massas gordas, coisas que ficam no fogo baixo
por horas! Com tudo isso, como eu não seria uma
cozinheira?
Em seguida, a senhorinha de cabelos ruivos me
emprestou uma espécie de avental azul de tecido grosso, eu
parecia um mecânico, o que a agradou. Ela pôs para
funcionar os instrumentos do seu laboratório. Para ralar seis
cenouras, ela montou um aparelho de oito peças que
poderiam tranquilamente ralar os meus dedos se eu não
prestasse atenção. Ela me fez recomeçar toda a operação
para que eu entendesse direitinho, uma vez que, ela
declarou, eu iria usá-lo com frequência.
O tempo gasto nesse trabalho meticuloso certamente
seria suficiente para ralar um bom quilo de cenouras com
uma simples faca de vovó. Depois foi a vez de mostrar a
iogurteira e a torradeira. Em seguida, ela me disse que eu
deveria trabalhar cinco horas, das nove às catorze horas. É
um horário que não me agrada, gosto de voltar para casa
ao meio-dia. Mas a vantagem é o ponto de ônibus perto. Eu
aceitei.
10 de abril de 1963

Minha nova patroa me disse: “Somos apenas duas, a


senhora não terá muito trabalho”, e logo depois sua filha
voltou da temporada de esqui na montanha com os dois
filhos: um menino de sete anos, insignificante e malcriado, e
uma adorável bonequinha de dois anos. A bonequinha tem
um jeito enfermiço e de malcuidada; tendo em vista sua
aparência, se fosse uma criança do meu bairro, já haveria
atrás dela uma legião de assistentes sociais para saber se
ela não sofria maus-tratos. Para andar, ela se apoia nas
paredes; há algo de amável nesse bebê puxando o meu
uniforme de maquinista.
12 de abril de 63

No primeiro dia de trabalho na casa da patroa, trouxe


comigo uma marmita. Ela disse: “Não precisa de uma
marmita, aqui não é uma cantina! Sempre haverá algo para
comer!”. Assim, no dia seguinte, não levei nada de casa
para o almoço. A patroa disse aquilo, mas seu marido olhou
para mim de pé, com meus setenta quilos bem distribuídos,
e disse: “Essa mulher deve comer feito um animal!”.
Ao ouvir a frase, perdi o apetite e, de noite, voltando para
casa, senti meu estômago roncar, pois tinha hesitado em
comer direito.
13 de abril

Carolina! Sinto que minha escrita vai se fartar de rir! O


patrão, um velhinho de olhar inexpressivo, voltou trazendo
ostras. Ele me disse:
“Senhora? Há vinho branco na geladeira? Eu trouxe
ostras!”
No meu lugar, sua esposa respondeu de modo imperativo:
“Não!”
O senhor retrucou:
“E aquele vinhozinho branco que daqui a pouco azeda, a
gente nunca vai beber?”
A patroa o deixou ir embora, me fez encher uma garrafa
com um vinho vagabundo e, por fim, resmungou:
“Está bom assim!”
O marido retornou, me fitou com seus olhos vazios e
disse:
“Gosta de ostras?”
Sem me olhar, a patroa respondeu:
“Se ela não gosta, não muda nada! Ainda tem uma
sardinha em conserva de ontem!”
O senhor respondeu:
“Ou ela gosta, ou ela não gosta!”
Com insistência, a patroa disse:
“Talvez ela não goste! A outra negra também nunca
comeu enquanto esteve conosco!”
A outra! Mas eu amo frutos do mar! Para ajudá-los, disse:
“Eu gosto mais de mexilhões!”, e me contive para não
cair na gargalhada.
Na hora, o patrão aproveitou para replicar:
“A senhora vai comer como todo mundo! Iremos comprar
mexilhões, não é?”
A patroa, radiante, retorquiu:
“Olha só, ela não gosta!”
Bem, eu adoraria ter provado umas duas ostras, elas
estavam entreabertas, suculentas, mas como eu não
deveria gostar delas, era preciso me resignar!
13 de abril

Ainda de uniforme azul, fiz o serviço em um ritmo frenético:


foi a primeira vez que aconteceu comigo, e me diverti. A tal
ponto que esqueci a hora de partir, ocupada que estava em
organizar os instrumentos do meu laboratório. A patroa
gostou da cena e dignou-se a sorrir.
14 de abril de 63

Hoje a filha da patroa comeu com a família. Ela é uma líder


por natureza, tem uma voz autoritária e o ar daqueles que
não passam necessidade! Pelo telefone, solicitou uma babá,
como quem solicita produtos na mercearia. Depois disso,
me lançou um olhar desconfiado e disse à governanta,
responsável pelos empregados da casa, que eu entendia
bem o francês, acrescentando:
“E o trabalho? É proporcional?”
A governanta respondeu:
“Sim! Ela é rápida, poderá ajudar a lavadeira!”
Ela se virou para mim e me perguntou onde eu tinha
aprendido a falar francês. Respondi:
“Em Trinidad!”
Certamente sem saber onde fica no mapa, ela deu as
costas!
Fiz mais de dez quilômetros entre a cozinha e a sala de
jantar! Ainda não tinha servido os outros na mesa, não é
nada engraçado, Carolina, especialmente se esses outros
dispõem de uma campainha elétrica para chamá-la.
Começo a guardar os instrumentos do laboratório e, de
repente, um forte TRIMMMMMMM me faz largar tudo! É a patroa
que quer um prato, trimmmm! É o menino infernal que
deseja reaquecer sua alcachofra sem que ela ferva! trrrimm
e trrrrrrimm nesse vaivém me embaralho toda! Passo o
saleiro quando o patrão deseja a mostarda e fico sempre a
ponto de cair na risada. O patrão descasca uma banana
raquítica dizendo que ela tinha vindo direto das Antilhas!
Bananas como aquela devem vir de Tenerife, mas não dos
trópicos! Tudo era muito divertido, mas naquele dia as
minhas pernas não aguentavam mais.
A governanta veio me dizer para terminar a louça de uma
vez e ir logo passar seis lençóis antes de partir. Não ia levar
muito tempo, mas era preciso borrifá-los com água, pois a
filha da patroa só gosta de lençóis completamente lisos! No
final, estava eu lá, suando e bufando, para que todas as
dobras dos tecidos ficassem passadas melhor do que se
tivessem saído de uma lavanderia. Fui embora às quinze
horas, sem que a patroa me dissesse nada!
15 de abril de 63

Como não suporto fazer corpo mole, meu horário de


trabalho na casa da patroa fica cada dia mais longo. Hoje a
governanta me disse para levar as latas de lixo até o
subsolo usando a estreita e tortuosa escada de serviço. Não
dou a mínima, Carolina, mas tenho uma caderneta em que
anoto minhas horas extras: haverá gritos e dentes rangendo
no dia do pagamento. Em seis dias, acumulei cinco, gerando
um interesse admirável por parte da governanta, que, sob
qualquer pretexto, me impede de sair na hora certa.
16 de abril de 63

Fui ao subsolo deixar as lixeiras, uma luz fraca iluminava


meus passos e o cheiro de mofo prevalecia. Eram duas da
tarde e estava difícil me convencer de que adultos como eu
não sentem medo. Debrucei-me sobre a lixeira e tive a
desagradável impressão de uma presença atrás de mim.
Logo abaixo da escada, havia uma sombra. A minuteria
desligou e ouvi um pequeno estalo. Pulei para o lado. Com
uma voz átona, que estranhamente ecoava, gritei:
“O que é isso?”
A sombra apertou o interruptor e uma luz bem-vinda
dissipou meu medo. Uma voz trêmula me respondeu:
“Sou a zeladora.”
Na penumbra, vi avançar lentamente um esqueleto
vestido de mulher, que logo falou:
“Eu moro ali!”
Ela me mostrou um compartimento do porão, provido de
uma porta.
Fora de Paris, eu nunca tinha visto aquilo! “Não é
possível”, eu disse. Ela respondeu:
“Mas é verdade! Há dezoito anos que vivo aqui! Imagina,
sem sol durante dezoito anos, com luz artificial, inverno e
verão! Meu marido morreu já faz um tempo, o canário que
estava na gaiola também! Imagina, pouco a pouco ambos
foram asfixiados pelos gases que entram pelo respiradouro!
Nenhuma planta pode resistir, e as flores murcham
rapidamente quando, por sorte, as compro!”
Ela se inclinou para a frente e me encarou com interesse:
“Mas a senhora é negra… como a outra que se foi.
Tínhamos feito um quarto ali para ela.” Ela me mostrou um
compartimento do porão. “Ela não ficou, pena!, tinha medo
de acabar como o canário, com aquela fumaceira saindo
dos carros, bem na frente do respiradouro, entende? Venha
ver o quartinho!”
Ela abriu a porta. Nunca tinha visto nada mais triste do
que essa miséria sem sol: uma cama mal-arrumada, cheia
de calombos, duas cadeiras bambas, móveis tortos. Ela
apontou para um buraco perto do teto, protegido por um
vidro espesso.
“Faz muito tempo que não o abro. Quando me atrevo, cai
um monte de poeira em cima de mim. Meu marido abria
depois da meia-noite, quando passavam menos carros; a
propósito, foi justamente assim que ele ficou doente!”
“E os patrões? O que eles estão fazendo pela senhora?”
“Nada, eu estou aposentada agora! A aposentadoria dos
velhos! Antes, eu era a governanta, mas fiquei velha, e fui
alojada aqui. Eu limpo as escadas: a família toda mora no
prédio, primos, agregados! Eles compraram tudo! Cada vez
tenho menos trabalho, sou muito velha, me disseram para
morrer em outro lugar! Depois da Páscoa, irei morar num
lugar para velhos como eu! Quando estou doente, fico dias
sem que ninguém venha me ver! A outra negra me trazia
tílias de noite! A senhora vai morar aqui?”
“Graças a Deus, não! Mas quem são seus patrões?”
“Um cara importante do porto! A senhora sabe, eles são
bilionários!” Sem amargura, a velha acrescentou: “É preciso
ter ricos e pobres, não é? A senhora sabe bem que não deve
ficar aqui! Quando eu for embora, eles colocarão uma
empregada lá, lembre-se do canário”.
Havia despejado o lixo e me sentado na lixeira. Teria
preferido dormir ao relento a neste calabouço infame. Disse
à senhorinha que eu tinha uma casa embaixo dos pinheiros,
longe da cidade! E acrescentei que meus filhos corriam
pelas veredas em busca de ameixas silvestres, e contei
como as amendoeiras floresceram em abundância no
interior da Provence neste ano. Em seguida falei sobre a
minha terra. Como ela me era todo ouvidos, como uma
criança a quem contamos uma linda história, esqueci os
patrões e a sua cozinha. Também lhe disse que, de onde eu
vinha, as casas são inundadas pelo sol! Falei do sol para que
ela se esquecesse de tanta sombra, nem que fosse por um
momento. Isso levou um tempinho. Quando voltei, vi a cara
da patroa! Ela não parecia nem um pouco feliz!
Expliquei que tinha dificuldades em fechar a porta do
subsolo. De qualquer forma, os vinte minutos que passei lá
embaixo são responsabilidade minha, não vou computá-los
no meu caderninho.
É uma loucura ver esse tipo de coisa nos porões de uma
casa rica. Não tinha mais vontade de rir, estava
absolutamente incomodada em trabalhar para pessoas
assim.
Disse isso a Cécile, que tinha saído da fábrica de
biscoitos; terminada a temporada de trabalho para ela, é
hora da pausa.
A pausa, do seu ponto de vista, é a doce expectativa do
matrimônio, pois em breve ela vai se casar, e seu noivo
chega na próxima semana.
18 de abril de 63

Tenho só a noite livre para recapitular a minha vida de


cozinheira, e por vezes esqueço que estou louca à espera
do carteiro que trará a resposta do jornalista, a quem havia
escrito para falar sobre o meu livro. Implacáveis, as crianças
disseram que ele certamente estava morto, que os
verdadeiros jornalistas fazem reportagens em lugares
improváveis! Consultei as últimas Paris Match, não havia
nem uma mísera nota informando a morte dele. O silêncio
pode ser interpretado de várias maneiras. Pode ser um sinal
de tédio, uma manifestação de desprezo, um momento de
desatenção, há também silêncios carregados de esperanças
ou preocupações. Nesse silêncio que é a minha sina, não há
nem rancor nem amargura; estou simplesmente curiosa. Se
ele escrevesse para mim “Prezada senhora, o que a senhora
escreveu é um fiasco”, eu diria “Pois é, pode ser verdade,
mas o que desagrada uns não necessariamente causa
repulsa em outros”. Nos últimos tempos, as crianças estão
devorando minhas histórias de sol e frutas, é encorajador,
consigo esquecer que já faz duas semanas que convivo com
aquela família.
Hoje o patrão trouxe ouriços, fitou-me com seu olhar sem
expressão e disse:
“Vou abri-los! Imagino que a senhora não goste de
ouriços, não é?”
Respondi de imediato:
“Pelo contrário, eu adoro!”, mas na minha cabeça eu
gritava “Blerg!”.
Nunca gostei de ouriços pretos, com casca e espinhos.
Quando os comprei, em Fort-de-France, pesavam duzentos
e cinquenta gramas e eram marrons, ouriços pretos nas
Antilhas têm fama de venenosos. Os que havia comido até
então tinham um gosto entre o abacate e a banana e
cheiravam a mar.
Disse que sim a esse desagradável e guloso senhorzinho
para ver a cara dele.
Foi a esposa quem reagiu:
“Como assim? Ouriços-do-mar para a cozinheira é uma
maluquice! Além do mais, sobrou o ratatouille de ontem,
quem vai comer esse resto?”
Eu estava rindo por dentro de novo! O patrão disse:
“Já que ela gosta, que se vire para abrir os seus.”
Bruscamente, ele jogou seis ouriços em um prato. Abri
esses bichinhos malditos, coloquei-os num saco com o
macarrão e o ratatouille em cima da lixeira, junto com um
pedaço de pão, e, no momento em que todos saboreavam o
café, fui ao porão visitar aquela velha sombra. Disse-lhe que
me deram a refeição e que, quando chegasse em casa, iria
cozinhar para mim. Ela parecia assustada. Pegou o pão e o
resto, disse para jogar fora os ouriços, não aguentava
aquilo.
O ruído de uma voz me trouxe de volta para a realidade.
A velha senhorinha disse:
“Saia depressa! Se a patroa souber que estamos de
conversinha, a senhora será posta no olho da rua!”
Carolina, na verdade, tenho vontade de sair desse
trabalho. A patroa me pediu para ficar com as chaves ao
sair: assim ela não precisaria abrir a porta para mim. Ela me
examinava atentamente, e meu olhar não conseguia se
dobrar, eu queria mesmo lhe dizer:
“Você não tem vergonha na cara de deixar sua antiga
empregada terminar seus dias como um fantasma lá
embaixo?”
Ela virou a cabeça sem me perguntar nada.
19 de abril de 1963

A patroa me deu dois quilos de ervilhas para descascar; sua


filha, que rondava de négligé de um lado para outro, disse:
“Não é suficiente, nós somos oito!”
Comprimindo os lábios, a patroa respondeu para todo
mundo ouvir:
“Não, somos cinco, as crianças não comem e as ‘outras'
não contam!”
As outras eram: a babá, a mulher que passava roupa e eu.
Essa falta de tato quase me fez ter um troço. A jovem babá
tinha ouvido: da varanda onde ela estava, corou até as
raízes de seus cabelos loiros e me direcionou um olhar
desesperado. Deixei cair o negócio de picar cenoura, sei que
a patroa não gosta que joguemos os instrumentos do
laboratório no chão, mas não me mandou embora.
9

20 de abril de 1963

Dizendo estar com uma febre alta, a babá saiu: a família da


patroa se surpreendeu, precisavam almoçar na cidade, e
era o dia de folga da governanta, então recebi um avental
branco e me disseram para tomar conta das crianças. O
garoto fez um escândalo tão grande que o levaram junto,
deixando comigo o frágil bebê de olhos doces. Quando
todos se foram, a fofurinha veio andando na minha direção,
me livrei das panelas que segurava e a peguei nos braços.
Ela aninhou a cabeça no meu ombro como se sempre
tivesse feito aquilo. Dei um beijo naquela coisinha que tem
avós tão desagradáveis. A presença de pessoas inocentes
em ambientes como aquele faz bem. Depois tive que
adicionar uma ampola de não sei o que ao purê de cenoura
enlatado, que ela devia engolir. Ela não queria comer,
provavelmente estava farta dessas comidas de
nutricionistas e babás. Peguei um aparelho no laboratório e
pus para grelhar duas lindas bananas que tinha comprado
na mercearia do bairro. Peguei uma colher e dei de comer
àquela fofura, que abriu a boquinha diante de um cardápio
tão inusitado.
Sem remédio nem choro, ela brincou e adormeceu
enquanto eu cantava uma velha cantiga crioula.
Às duas horas da tarde, toda a cambada estava de volta,
a vovó logo perguntando:
“Cadê a Evelyne?”
“Ela está descansando”, respondi calmamente.
A mãe da bebê disse:
“Mas o que ela tem? Ela não está doente, né? Não está
com febre?”
Ela acordou a menina para aferir a temperatura: a
garotinha que dormia tão feliz começou a berrar. Quem
procura, acha!
O avô teve a ideia de pedir a minha receita para deixá-la
tranquila daquele jeito. Se tivesse lhe contado o lance das
bananas grelhadas, ele teria chamado o médico para ver se
o estômago da menina não estava perfurado. Cheia de
vitaminas, a garotinha cantava nos braços da sua avó, que
continuava a me olhar com curiosidade. Pela primeira vez
desde que eu estava lá, ela perguntou sobre mim mesma:
“A senhora está acostumada com crianças, pelo visto: é a
primeira vez que vejo Evelyne alegre depois de uma
refeição! A senhora tem filhos.”
Eu não podia acreditar! Ela nunca me chamou pelo nome
até aquele momento, só soava a campainha: duas vezes
para a negra, uma para a governanta. Eu não podia
acreditar! Ela perguntou o meu nome! Eu disse Jacqueline!
Também poderia ter dito Renélise ou Pierrette, tenho
certeza de que ela nunca vai me pedir meus documentos de
identidade. A menos que eu esteja determinada a ficar
legalizada, ou que lhe entregue meus documentos, mas até
lá…
A euforia teria durado mais tempo caso o garotinho
infernal não tivesse me dado uma botinada na perna.
Esqueci que a família estava interessada em meu nome e
ameacei dar um tapa no menino. Ele nunca tinha ouvido
algo assim na vida, olhou para mim, surpreso, tão surpreso
quanto sua avó, que voltou a comprimir os lábios. O avô
observou:
“É verdade, teremos que dar uma lição no menino se ele
começar a agredir as empregadas.”
Carolina, ninguém disse que era errado, vi que ele estava
pronto para fazer de novo. Estou convencida de que não
será comigo, ele não ousaria, mesmo assim…
21 de abril

Entretanto, não dei tapa nenhum, e eles ainda não


digeriram o fato de que eu tive a audácia de ameaçá-lo!
Enquanto fazia a minha corrida diária, da sala de jantar à
cozinha, a filha da patroa, deliberadamente ignorando
minha presença, lançou no ar:
“Que ideia você teve de contratar essa Baker? Você viu,
ela nem usa mais o avental de serviço! A anterior nunca
teria ousado ameaçar dar um tapa no Gilbert! Que mundo é
esse!”
Ela não me dirigia a palavra e eu não me metia em nada,
mesmo naquilo que poderia dizer respeito a mim, estava
muito ocupada salgando, aquecendo o macarrão, esfriando
o assado.
Minha alma voltou à tona e dizia:
“Continue falando ao vento, cara senhora! Se o moleque
continuar a chutar as minhas canelas, você verá como vai
ficar o bumbum dele: dois bons tapas e ele vai entender.
Além do mais, querida, é hora de se retirar!”
Carolina, como é bom poder ouvir essa voz interior e
pensar que, quando queremos, podemos fazer o que ela nos
diz! Isso era tão agradável que eu nem escutava os trimmm
exagerados ou autoritários daquela família.
Pensei então na “outra” que não ousaria fazer o que fiz.
De que buraco ela tinha vindo? Que navio desgraçado a
jogara na França e que infortúnio a levara para a casa
daquela gente intratável? Quando sair de lá, haverá ainda
uma “outra” como a “outra” que me precedeu, sem que eu
nunca consiga saber quando isso vai parar.
Aquela coisinha mais fofa saiu da cadeira e correu na
minha direção, ela não comeu nada da papinha, olhou para
mim, percebi que estava pensando no café da manhã do dia
anterior; nem sequer me atrevi a pegá-la, ficaria realmente
magoada se a ranzinza da avó, ao perceber isso, a fizesse
descer na hora, com alguma palavra humilhante.
Encontrei o noivo de Cécile, ele não quer adiar o
casamento nem por uma semana. Ele já está aqui e quer
sacramentar o matrimônio logo, saí para apressar as
formalidades na prefeitura, sábado é o tão esperado dia de
celebrar o acordo nupcial com a bem-comportada Cécile.
Ela quer me ajudar, disse que tenho talento, descobriu o
endereço de um agente literário e escreveu uma longa carta
com todo o capricho. Achei que era bom ter uma secretária,
só tive de assinar e estava tudo certo. Cécile me disse:
“É inacreditável que a senhora não fique em casa para
escrever mais um monte de coisas!”
Escrever é bonito, mas, como diz meu marido, não se
come o papel à vinagrete. Vamos ver o que dirá o tal agente
literário: tomara que ele não fique mudo como o jornalista
da Paris Match! Seria o fim das ilusões do meu mundinho.
30 de abril

Desde que comecei a vestir um belo avental de náilon,


relegando o uniforme azul da patroa à parte de trás da
porta de um armário, sabia que esse crime de lesa-
majestade não seria perdoado, e eu me perguntava como
ela faria para se vingar. Hoje ela me disse que estaria no
comando do laboratório, e que caberia a mim decapar e
encerar os cômodos da casa. Seis cômodos de quarenta e
dois metros quadrados cada um! Esfregar centímetro por
centímetro para remover uma cera que estava ali por quase
meio século! Desde a época memorável das empregadas
bretãs como a famosa Bécassine![11] E pensar que meu suor
estava pronto para molhar os ladrilhos rebeldes com as
melhores esponjas de aço! Fiz um cálculo rápido: duzentos e
cinquenta e dois metros quadrados de parquê em quatro
horas. Mil francos pelas quatro horas! Vinte e cinco
centavos de franco o metro quadrado de energia! Era muito
pouco! Comecei dobrando meu avental de náilon e pedi à
patroa para me pagar o que ela me devia: nada mais
natural, já que estávamos no fim do mês! Você acredita,
Carolina, que ela estava contente com a minha partida? Ela
pediu um tempo para me substituir. Trabalho quando eu
bem quero, dependendo dos meus caprichos e das minhas
necessidades, e não lhe dei tempo de repetir. Disse: “Nem
um segundo a mais, caso contrário eu não respondo por
mim”. Fiquei com muita raiva: pela primeira vez, ela me via
assim. Ela tinha medo de que eu não respondesse por mim,
mas não perdeu o norte, descontando uma semana do meu
pagamento. Eu estava com raiva, porém ainda sabia contar,
até reivindiquei as horas extras acumuladas desde a minha
chegada; caso contrário, iria à Inspeção do Trabalho, que
também está lá para mim, não é? A patroa pensou que eu
sabia coisas demais, ela precisava de negras vindas
diretamente do mato, que nunca ouviram falar sobre
direitos sociais. Ela me pagou e me deixou ir embora.
Despedi-me da velhinha do subsolo e levantei voo, feliz da
vida, feliz de nunca mais ter de encontrar aquela gente.
Ainda carrego a imagem daquela fofura aninhando sua
inocente cabeça no meu pescoço, e também aquela de um
ser sem familiares e sem amigos, vivendo em um porão
sem sol, na casa de gente sem coração.
1º de maio de 1963

É Dia do Trabalhador, e há lírios-do-brejo em todos os


lugares, até ousaram fabricá-los de plástico. As pessoas que
os compram olharão para eles por muito tempo, e a
deliciosa expectativa do belo mês de maio não terá mais
sentido, visto que a cada dia as flores inodoras estarão lá
para lembrar que maio já passara.
Estamos organizando o casamento na minha casa, cada
um já tem o seu traje de cerimônia. O sol está por toda
parte, e lamento quem não pode aproveitar.
3 de maio de 1963

Solange veio de Citroën 2CV dar uma ajuda. Não temos um


laboratório equipado, mas como é bom aquilo que
produzimos com as próprias mãos, bolos de coco, massas
folhadas; Solange aprendeu a fazer pizzas na casa de uma
corsa, paella com uma espanhola, rolinhos primavera num
restaurante chinês. Ela tagarela, fica acelerada; diz que vai
partir, para “subir de patente”, e caímos na risada como só
nós sabemos fazer.
“Vou trabalhar como cobradora no metrô, furando os
bilhetes, já que Defferre não decide nunca colocar metrô em
Marselha! Se vocês pudessem ver a quantidade de negras
trabalhando no metrô e nos hospitais! Até vi algumas nas
lojas de departamento de Paris! ‘Eles' levam a sério o fato
de as Antilhas fazerem parte do território francês e aceitam
que as antilhanas sejam mais do que faxineiras! A
propósito, minha gente, há uma negra visível assim em
Marselha: vocês têm que ver! Ela trabalha em um grande
açougue na Rue Longue! Se vocês vissem o desfile em
frente ao seu balcão! Todo mundo quer ver se ela sabe
pesar direito, se ela sabe dizer ‘Mais alguma coisa, senhora'
ou ‘De quem é a vez?'. A pobrezinha não para um segundo;
e ainda tem os negros todos orgulhosos comprando no seu
balcão.”
Solange é irresistível, e tudo fica rosa quando ela fala. Ela
olhou para minhas mãos com um ar sem muito entusiasmo,
e disse: “Cuide de suas unhas, caramba! Fique atenta, seus
dedos vão inchar se continuar usando os produtos de
limpeza da patroa desse jeito”. Senti vergonha da
observação e parei de escrever à máquina para mandar
meu filho à mercearia. É horrível, as mãos que esticam
como elásticos velhos, os dedos que incham porque passam
sem transição da água quente da banheira para a água
gelada de uma bacia. Na casa das patroas, não dizemos:
“Acabei de passar, estou com calor nas mãos, amanhã
lavarei a pia”. É exatamente quando você acaba de dar tudo
de si em uma cozinha fervendo que aquelas que lhe pagam
duzentos e cinquenta francos por hora sentem a
necessidade de fazê-la enxaguar lingerie que não toleraria
água quente. Chego a dizer: “Meu Deus, coloque-a na
miséria por uma semana! Só uma, para torná-la uma pessoa
mais compreensiva”. Está vendo, Carolina? Escondi meus
dedos! O moral sempre pode ficar de pé, a despeito do
trabalho; já o corpo, como apanha! É preciso ser como a
Solange, sempre com um pé atrás! Ela pretende furar
bilhetes de metrô para conservar um físico digno durante
mais tempo! Cécile está radiante, escuta Solange ao mesmo
tempo que corta pequenos quadradinhos, formando uma
montanha de pães de fôrma. Ela convidou uns jovens da
fábrica de biscoitos e seu noivo, amigos militares. Empurrei
os móveis para um canto para quem quisesse dançar, e pus
flores por todo canto: desse jeito, acabei criando um clima
de festa na minha morada.
5 de maio

Eles se casaram! Todo o bairro no adro da igreja! Cécile


estava linda em seu vestido branco. Uma espectadora disse
em voz alta: “Não sabia que trajes de festa caíam tão bem
em negras, veja como todas estão bem assim!”. Acho que
estávamos mais do que bem! Nós estávamos mesmo
elegantes! Eu usava luvas compridas, pois não conseguia
deixar de pensar nas palavras da Solange, e meu chapéu
fez sucesso! Solange tinha a desenvoltura de uma senhora
de alta classe, e as outras mostravam que não eram
antilhanas apenas no nome! Durante toda a vida, usaram
apenas vestidos de verão e, naquele dia de maio, era o
momento para se exibirem! E todos os bonitões que a noiva
tinha convidado deixaram de queixo caído mais de uma que
antes dizia não gostar dos negros. Foi de novo a Solange
que veio com essa história ao entrar no seu carro com dois
dos meus filhos. Depois, dançamos, esquecemos as patroas,
esquecemos os rancores. Só pensamos na felicidade de
Cécile, que estava falando em voltar para a nossa terra
natal assim que possível. E depois ela saiu de mala e cuia
durante a noite. Nessa manhã, sobram garrafas vazias,
flores murchas, restos do banquete, lembrando que, de
agora em diante, Cécile faz parte do passado.
6 de maio

Cécile se arriscou a escrever, o que gerou um resultado


inesperado: o agente literário me respondeu. Em um belo
envelope com papel timbrado, lia-se “Maméga, Escritora”.
Sentei na frente da porta, a emoção me deixou de perna
bamba, olhei novamente para a palavra “Escritora” do
envelope, esfreguei os olhos para ver se não estava me
enganando: mas alguém escrevera mesmo “Maméga,
Escritora”. Chamei as crianças:
“Venham rápido! Vejam o que está dito no envelope!”
Uma delas leu e perguntou para quem eu tinha escrito, não
expliquei nada e disse:
“Para um sujeito aí! Olhe o que tem dentro!”
Sentada no meio da molecada, esperava o veredicto
negativo do agente literário! Era certo que ele dissera
“Escritora” para me encorajar a engolir o que viria a seguir:
“A senhora é um asno”, ou algo do tipo. Foi quando um dos
meninos começou a ler, e eu toquei meus ouvidos, minha
velha amiga Carolina, para ter certeza de que eram meus, a
voz do meu filho dizendo: “Senhora, li com grande prazer os
fragmentos do seu manuscrito, cujo final aguardo
ansiosamente. Há muita poesia e um verdadeiro encanto
nessas páginas”. O pequeno lia, os outros ouviam. Foram
apenas parabéns e incentivos. O agente terminava dizendo:
“É aconselhável revisar o texto antes de apresentá-lo a um
editor…”.
Minha filha então disse:
“Ele compra o livro!”
Um dos irmãos pulou de alegria e disse:
“Então você não vai mais à casa das patroas, e vamos
conhecer a vovó Doudou!”[12]
Conhecer a avó, não é este o sonho de todos os filhos dos
desenraizados? A maioria deles nunca soube, ou jamais
saberá, o que é ter de verdade uma tia, um tio, e quando
seus colegas de classe com naturalidade falam de ir à casa
da avó ou dar uma volta com o avô, eles se sentem
frustrados. Nunca paro de lhes repetir:
“Quando a gente tiver dinheiro suficiente, vamos visitar a
avó de vocês!”
Talvez você não acredite em mim, Carolina, mas toda vez
que consigo fazer economias, o dinheiro derrete como neve
sob o sol, pois a Páscoa floresce, e não quero meus meninos
martinicanos nascidos em Marselha sendo menos
primaveris do que os outros, ou é o Natal que se aproxima
justo quando acabo de renovar o guarda-roupa das crianças
antes da volta à escola. Não me martirizo, este é o destino
de muito mais famílias do que se pode imaginar. Mas o que
me aflige é quando em casa falamos da avó:
“Como é a vovó Doudou? Ela tem cabelos brancos?”
Explico como é a sua casinha, embaixo de uma enorme
ameixeira, as galinhas bicando a seus pés. O mais velho me
disse para apostar nos cavalos. Nunca jogo, pois é muito
difícil ganhar alguns francos, não ganho nada, mas também
não perco. Então lhes digo:
“Quando tiver escrito uma biblioteca inteira, terei dinheiro
e iremos visitar a avó de vocês.”
Hoje fui informada do primeiro livro da biblioteca, e todos
os meus filhos já estão pensando na avó. Foi algo
engraçado, Carolina, estávamos todos na frente da porta,
esquecendo que tínhamos de entrar na casa, ansiosos
demais pensando naquele lindo projeto, as crianças não
deixando eu me mexer. Em seguida o pai deles chegou,
estacionou a mobilete contra o plátano, ao lado da rua, as
crianças correram e gritaram:
“Vamos para a Martinica ver a vovó Doudou!”
Imperturbável, ele respondeu:
“Ah, sim! Mas quem vai nos levar dessa vez, será o Papai
Noel com uma caravela, ou vamos de outro jeito?”
Todos queriam contar, a carta, o homem da carta, as
coisas escritas na carta!
Ele não perdeu o norte e me disse:
“Quanto vai custar para você publicar seus rabiscos? Você
já pensou nisso?”, e logo se dirigiu às crianças: “Não se
esqueçam então de trabalharem bastante se quiserem
pagar a publicação do livro da mãe de vocês! Enquanto isso,
parem de fazer piadas”.
Foi um balde de água fria sobre mim, e felizmente foi
assim, existe um mundo inteiro entre o sonho e a realidade.
8 de maio

Carolina, se você soubesse como a Provence é maravilhosa,


apesar das patroas malvadas que cruzam nosso caminho
por aqui! Conversamos sobre coisas sérias em alto e bom
som, com um sorriso que sempre me deixa feliz, mesmo
quando, como hoje, sou invadida por pensamentos
sombrios. De fato, não paro de me perguntar como vou
levantar dinheiro suficiente para pagar uma editora,
publicar um livro não é de graça. Nunca tinha meditado
sobre isso antes. Pensava sobretudo na hora do almoço:
“Como fazer para ficar um tempo sem trabalhar na casa de
alguém?”. É uma encrenca braba. Uma mulher bateu na
minha porta, seus olhos estavam límpidos como o céu. Ela
trazia um grande pacote de jornais. Primeiro achei que era
uma representante comercial entregando panfletos,
querendo emplacar, na sequência, a venda de um aspirador
de pó. Não bati a porta na sua cara porque o sorriso dela
era confiante, e as pessoas confiantes devem ser
respeitadas. Queria gentilmente lhe dizer que minhas
vassouras me bastavam e que ela poderia levar o seu
aspirador de pó consigo. Não tive tempo de soltar uma
palavra que fosse. Ela me entregou uma folha de papel
impressa e me disse que viera em nome de Deus! Só isso!
Como o normal é fazer tudo em nome de Deus, quis saber
qual era a continuação daquilo. Bom, ela me garantiu que
Deus morava na Provence, em Montfavet! Eu sabia que
Deus andava por aqui, pois de manhã, a caminho de Trois
Lucs, colhi um monte de lilases, embora alguns dias antes a
natureza hesitasse tanto! E, apesar do meu desânimo, o sol
entrava com tanto ímpeto por todas as janelas da minha
casa que era capaz de revigorar qualquer um, por mais
triste que estivesse! Talvez seja verdade então que Deus
more mais na Provence que em Finistère. No entanto, é
estranho que ele venha veranear aqui, mesmo que haja
tantas coisas a fazer pelo mundo afora. Disse isso à senhora
sorridente. Ela me respondeu que Deus estava vivíssimo,
que vivia perto de Avignon. Ela enrolava a última sílaba das
palavras, parecia piada pronta. Ri mais alto que São Tomás,
[13] mas tanto que precisei sentar para me recompor. É claro

que não zombei dela, ouço de bom grado quem fala de


Deus, na verdade é um modo de virar a chave das minhas
conversas habituais. Para me desculpar daquela alegria
repentina, eu a fiz sentar e perguntei como era o bom Deus
que vive na Provence. Ela não perdeu a linha e respondeu,
iluminada por um fogo interior, que eu tinha ainda o ano de
1963 para me arrepender e ouvir a voz de Deus, tanto eu
como os outros habitantes da Terra! Depois, o caos reinaria!
Que venha o depois então! Não tenho medo do depois!
O  meu depois fabrico durante o presente, com suor,
lágrimas e perdões. Dizer isso àquela mulher tão segura de
si seria orgulho meu? Mas eu queria pegá-la no contrapé. O
depois dos homens, estou convencida, pode ser assustador
ou radiante, seja qual for sua posição ou raça. Disse isso à
senhora, sem rir, e acrescentei:
“Mas, no final das contas, não consigo acreditar que Deus
esteja tão perto de mim e que eu não largue tudo para
segui-lo, que ele seja tão pouco perceptível, estando tão
perto de Marselha! O Meu, com a testa machucada, os pés
perfurados e as costelas escorrendo ignomínia, eu
reconheceria no meio da multidão. Ele está aqui, mas ainda
não o vemos. Está esmagado na poeira, pisamos sobre Ele,
e por ora Ele não consegue se levantar. Mas, quando Ele o
fizer, felizes daqueles que poderão dizer ‘Que venha o
depois!'”
A senhora foi toda ouvidos para mim, me escutou com
curiosidade, espantada. A seguir me disse que o Deus de
Montfavet é um carteiro dos correios. Foi quando, Carolina,
recomecei a rir e desisti de profetizar.
A senhora iluminada deixou alguns jornais e sugeriu que
eu encomendasse livros milagrosos, porque o Deus da
Provence é tipógrafo e comerciante como qualquer um! Oh!
Que piada!
10

15 de maio de 63

“Se o agente literário pediu os meus escritos, por que não


enviar?”, disse a mim mesma, “ele os lerá na íntegra, e
ainda tem tempo até ele me informar o valor para publicá-
los.” Dito e feito, comprei uma pasta bonita e coloquei
minhas páginas dentro, até enviei uma remessa com
comprovação de entrega! Não gostaria que as páginas
fossem manuseadas sem cuidado, misturadas com
documentos sem importância. Veja bem, Carolina, sou
ambiciosa!
As escritoras, acredito, têm escritórios com luzes
apropriadas. O barulho não entra em seu santuário. Já eu,
lhe escrevo à luz da enorme lâmpada da cozinha, enquanto
as crianças estudam para as aulas de amanhã. Mas fico
pensando em você, menos privilegiada ainda, com apenas
uma lâmpada de querosene em uma favela, e digo para
mim mesma:
“Mas você é uma sortuda, sua bruxa velha! Por que você
está murcha assim?”, e já recomeço a trabalhar nas
primeiras páginas do meu segundo livro, não devo esperar
ser uma milionária para fazer o segundo, corre o risco de
demorar; como os filhos do lavrador, cavo, escavo, revolvo,
certamente encontrarei um tesouro, de tanta paciência e
vontade.
Além do mais, é preciso pensar nas férias: folheio os
jornais, examino em detalhes os pequenos anúncios para
encontrar um emprego que não me deixe presa o dia
inteiro, sem que necessariamente seja um trabalho na casa
de alguém. Após as roupas de inverno, é preciso pensar nas
pequenas coisas para as férias, prometi aos meus filhos que
os levaria a Paris, agora estamos olhando o que fazer lá. O
que seria melhor para meninos criados no meio dos
pinheiros do que uma viagem a Paris em pleno verão,
quando tudo está calmo e a Champs-Élysées é visitada
apenas por alguns poucos turistas! Combinado, mas
necessito ganhar o suficiente para pagar pelo menos o
trajeto, por isso encho minha casa de jornais e mergulho em
todas as seções de oferta de emprego. Encontrei:
DOUTOR PROCURA UMA EMPREGADA ANTILHANA.
Também li:
FÁBRICA DE CHICLETE PROCURA JOVEM PARA TRABALHO SIMPLES.
Fui então à fábrica, não muito longe de casa. É preciso
chegar às sete horas da manhã, pois as grandes empresas
da região desconhecem o trabalho em regime de tempo
parcial. Continuei minha prospecção e vi num jornal o
seguinte anúncio:
HOTEL DE L'ARRIVÉE PROCURA COSTUREIRA, QUATRO MEIOS PERÍODOS
POR SEMANA.
17 de maio

Apresentei-me no Hotel de l'Arrivée, perto do Harlem: havia


na porta muitas mulheres belas, maquiadas e de vestido
curto. Pedi para ver a patroa. Uma delas, parecendo
insolente, disse:
“Qual é o motivo?”
“É para o trabalho de costureira!”
A mulher deu de ombros e respondeu:
“Olha só! Mais uma! Até agora já foram cinco a se
apresentar, e não gostaram de nenhuma! Vai entender!”
Atravessei o corredor estreito e cheguei à recepção do
hotel, uma negra imponente me encarou sem a menor
delicadeza.
“Se é para alugar um quarto, estamos lotados!”
“Não, é para o trabalho de costureira!”
“A senhora sabe costurar?”
“Sim, o que tem que costurar?”
Ela não me respondeu e continuou a me lançar um olhar
inquisidor.
“Aqui é um pouco diferente, não quero pegar uma
costureira que vai me trazer problemas! É por quinze dias,
sem registro, tudo por fora, e depois posso lhe encontrar um
trabalho, todos os hotéis da redondeza precisam de uma
costureira. O serviço consiste em cortar os lençóis usados
ao meio e virar cada parte pelo avesso para prolongar sua
vida útil. Há dois anos que não faço esse trabalho, e tenho
um armário cheio! Por acaso é antilhana?”
“Sou!”
“Caso concorde em trabalhar sem ser registrada, a
preferência é sua!”
Eu não ia reclamar por não ter direito ao sistema de
seguridade social, ela me oferecia três francos e cinquenta
a hora, mais do que as outras patroas e do que a fábrica,
onde só se ganha dois francos e vinte e cinco centavos;
além disso, eu tinha direito a dez passagens de ônibus por
semana para o trajeto! Disse que sim: começo amanhã.
18 de maio de 63

A hoteleira me acomodou em uma sala grande e vazia,


com uma máquina de costura, linha e uma montanha de
lençóis. Da porta de vidro, vejo mulheres entrando e saindo
com cavalheiros a manhã toda, não acabava nunca. Saí sem
rever a patroa. Uma mulher veio me pedir linha e agulha,
pois um botão da sua blusa havia caído, e depois
acrescentou:
“Trabalho de merda, hein? Está cheio de pó! Verifique se
você está sendo paga corretamente, a chefe ganha dinheiro
suficiente para isso!”
19 de maio de 63

Há mais lençóis do que eu pensava, e quanto mais corto e


pedalo, mais eles se acumulam. Quando a hoteleira está
ausente, as mulheres vêm falar comigo. Tem uma que
chega completamente ofegante e é magra como uma
modelo, ela entra no cômodo, empurra a pilha de lençóis
que eu tinha colocado numa cadeira e se senta:
“Ufa! Preciso parar um pouco! Estou cansada de tanto
trabalhar!”
Imediatamente pensei no trabalho que ela podia estar
fazendo, mas nunca ousei falar no assunto. Como ela me
disse que está cansada, perguntei por que continuava
trabalhando lá, se ela não tinha uma casa, uma família.
“Sou casada”, ela disse, “e foi justamente o meu marido
que conseguiu esse trabalho para mim!”
Fiquei chocada e comecei a pedalar como uma louca.
22 de maio de 1963

O vaivém das mulheres não para, e só vejo a hoteleira


quando ela vem pegar o meu trabalho pronto. Hoje, ela
sugeriu que viera “da colônia”. Ela não precisava me dizer,
o vento alísio ainda passa no seu sotaque, posso bem
imaginá-la saindo de Pointe-à-Pitre ou de Fort-de-France.
23 de maio de 1963

Hoje uma correria frenética quebrou a monotonia, mulheres


cruzavam o corredor como doidas: pelo que eu entendi, elas
estavam fugindo da presença de um inspetor de polícia que
fazia a ronda nas proximidades. Uma delas dizia:
“Ele é pérfido! Trocou de chapéu e, você viu, estacionou o
carro na contramão! Felizmente Juliette teve tempo de
observar isso! Perdi um bom cliente!”
Uma outra, que não aguentava mais aquilo, acrescentou:
“Isso sempre assusta, e ficarei doente ainda por mais dois
dias!”
A patroa gritou:
“Calem a boca! Sentem-se na sala de costura e
encontrem algo para costurar!”
Olhava as mulheres de penteado couve-flor, afagando
seus cabelos volumosos, lixando as unhas bem-feitas e
lançando um olhar de reprovação para o monte de
remendos amontoados na sala. A hoteleira deu as costas,
resmungando:
“Com gente frouxa assim nunca vou sair daqui! Elas
‘somem' toda vez que um rato passa pela calçada! Vou ter
que trazer outras ‘funcionárias'.”
A mais indomável daquele estranho bando disse:
“Funcionárias! Somos nós que pagamos você, certo? Você
recebe quinhentos francos e prefere ficar sem comer, sem
passar na feira, com medo de que façamos programas por
debaixo dos panos!”
A patroa, sem problemas de audição, voltou e gritou:
“Você, cale a boca, ok? Você não para de reclamar! Já
estou cheia dessa história!”
A mulher virou um túmulo. Um silêncio pesado caiu sobre
a sala empoeirada. Uma das meninas abriu a cortina com
cuidado e anunciou que o perigo havia passado:
“A Adèle está morrendo de rir do outro lado da rua!”
Do outro lado da rua, havia outros hotéis e mais garotas:
se elas desceram para a rua, as outras que
involuntariamente me faziam companhia estavam livres
para sair. Foi uma afluência alegre pelo corredor, sob o olhar
impiedoso da hoteleira. Pois é, antes de se deparar com tal
situação, Carolina, é difícil se dar conta dessa escravidão
voluntária.
26 de maio de 1963

Meu marido veio me encontrar hoje à noite, eu o vi entrar


ao mesmo tempo que ele era anunciado pela hoteleira:
“Então, você se esqueceu de me dizer que está cheio de
rameiras por aqui!”
“Rameiras? Só vejo lençóis e trabalho como uma
condenada, não cuido de nada que não me diz respeito.”
Não tinha lhe contado sobre o ambiente do meu trabalho:
isso teria sido uma pá de cal na minha experiência
documental. E só podemos falar com propriedade sobre o
que presenciamos.
A hoteleira me deixou ir embora, subi na parte de trás do
banco da mobilete, agarrando-me ao meu marido, que
estava furioso. O vento refrescava o meu rosto e minhas
ideias, embora não tivesse percebido que meu motorista
não havia pegado o caminho mais tranquilo, como
normalmente fazia para evitar a polícia. De fato, estava
longe de ter catorze anos, limite de idade para andar na
garupa de uma mobilete.
Ele acelerava por entre os carros, intrometia-se com
incrível destreza no meio das filas de automóveis, acelerava
pelas avenidas como um louco, o que queria dizer que ele
estava realmente zangado. Nessas horas, é melhor deixá-lo
aliviar sua irritação sem falar nada; aliás, ele tinha um
pouco de razão.
Depois, sem que ninguém visse, nos encontramos na Rue
Saint Pierre em direção à Saint Marcel. Duas motos
passaram muito depressa, a mais de oitenta por hora, e eu
gritei:
“A polícia! Eles não nos viram, que bom!”
Andávamos na direção oposta à das motos já havia pelo
menos
dez minutos quando o ruído dos seus veículos me fez virar a
cabeça. Eles vieram até nós! Não valia a pena tentar
enganá-los, fingir encher um pneu, o que fosse. Eles já
tinham nos visto.
Meu marido parou e os policiais vieram até nós. Olhei para
eles, bastante bronzeados, botas no pé, cinta no peito,
capacete na cabeça, pareciam gigantes no crepúsculo que
avançava, completamente violeta. Um deles fez o pedido de
praxe:
“Documentos!”
O outro acrescentou:
“A senhora não sabe que não deve sentar no bagageiro?”
Respondi:
“Não, senhor!”
O policial parecia um boneco de brinquedo, e pensei:
“No Natal, vou comprar motoqueiros no Magasin Général
para as crianças, um motoqueiro não é nada mau!”
Enquanto isso, meu marido estava fazendo o possível
para escapar de uma multa.
“Não moro longe! Isso nunca acontece comigo! Sou muito
cuidadoso.”
O policial que tinha examinado os documentos estava
dando uma bronca nele:
“O senhor diz que tem filhos! Mas andando desse jeito
corre o risco de nunca mais voltar para casa!”
“Senhora, vá para o ponto esperar o ônibus e não su-ba-
de-no-vo na mobilete!”
Era pegar ou largar: de qualquer modo, não havia como
retrucar. Fui até a parada vazia e, sob o olhar daqueles
anjos inusitados, vi meu marido desaparecer na curva que
levava até Valentine. Já fazia mais de vinte minutos que eu
estava à espera do coletivo, e os policiais haviam
desaparecido em direção ao sul — a essa hora, eles já
deviam estar na autoestrada —, quando um zumbido
acompanhando dois pontos negros indo para o norte
anunciou que aqueles homens tão prudentes tinham feito
um enorme desvio e vieram conferir se por acaso eu não
havia desobedecido às suas ordens. Instintivamente,
levantei o braço para cumprimentá-los. Um daqueles
extraordinários brinquedos desacelerou e, com um aceno de
mão, me devolveu o cumprimento.
Cheguei tarde em casa, meu marido misturava a polícia, o
meu desejo de trabalhar em qualquer lugar e as garotas de
programa que me contaminariam.
“As coisas vão mudar! Você ficará em casa: não são três
vinténs que vão mudar as coisas por aqui!”
Mas, Carolina, é tão bom não ficar dizendo: “Quando meu
marido trouxer o pagamento, comprarei um par de meias
novo!”.
Tenho que convencê-lo de que fico intocável no meu
quarto empoeirado e que recentemente até se instalou uma
cortina na janela da porta para me deixar ainda mais
apartada. E o mais importante: é apenas temporário. Para
mim, tudo deve ser temporário, com exceção da criançada
e dos cadernos avidamente preenchidos em qualquer lugar.
28 de maio de 1963

Ufa! Consegui sair e quase terminei meu trabalho: hoje, a


hoteleira, diante do meu silêncio constante, estava menos
feroz, veio me perguntar se eu gostava da casa, ofereceu
um café, finalmente falou comigo em patoá e até me
confidenciou:
“É maçante administrar uma casa dessas, é preciso ficar
de olho em tudo! Não posso contratar um vigia noturno, não
boto fé. Estou sozinha! Meu marido me abandonou por uma
branca! Desde então, estou me virando, e dei um jeito de
mostrar para ele o que as brancas são capazes de fazer
aqui! Elas dormem até com os mendigos, desde que
tenham dinheiro! Acho nojento, mas estou me vingando!”
Carolina, ouvir aquilo era abjeto! Lembrava daquela
mulher baixinha assustada fugindo diante da ameaça de
uma operação da polícia de costumes! E a gorda que
espreme todas as espinhas o tempo todo, que vai embora
cheia de dinheiro à noite e que ouço de manhã lamentar
estar sem um centavo no bolso, a ponto de seus amigos lhe
oferecerem um almoço. Conhecendo a fé instintiva dos
negros, acabei por lhe dizer em crioulo:
“Não tem medo de que Deus a castigue?”
“Deus! Faz tempo que ele me largou de mão! Fui levada
para Paris em 1939, com dezessete anos! Os patrões
fugiram enquanto eu dormia no sexto andar, e, quando
acordei, havia alemães os procurando! Não me mataram!
Mas me estupraram e me espancaram. Então, Deus…”
Eu queria gritar. Olhava para aquela mulher monstruosa e
via lágrimas escorrendo no seu rosto inchado pelas noites
sem dormir, era de dar pena. Evitei falar sobre aquilo ao
voltar para casa naquela noite, meu marido disse:
“Quantos dias mais você vai lá? Olha o que trouxe para
você, papel para máquina, um calhamaço de mil folhas, e
tirei a sua máquina da casa de penhores! Escreva se você
estiver entediada, copie o Chapeuzinho Vermelho se ficar
sem ideias, mas não vá mais para aquela rua. Imagina se as
pessoas que conhecemos vissem você lá!”
As pessoas! Tudo bem se inquietar com elas, Carolina,
mas há coisas que é preciso encarar, em menos de um mês
aprendi mais coisas através dessa experiência do que teria
aprendido na maioria dos livros!
2 de junho de 63

Ah! Agora sim, terminei o serviço e ainda estou enojada. No


entanto, a hoteleira foi gentil, me deu um extra e o
endereço de duas de suas amigas proprietárias de hotéis,
que estariam dispostas a me dar trabalho como costureira.
Mas, apesar disso, não consegui encará-la ao sair, estava
com vergonha do que tinha visto à tarde.
Nunca ficara surpreendida com a presença daquele jovem
no hotel, pois infelizmente havia famílias morando nos
andares de cima. Eu estava persuadida de que seus pais
moravam lá, o que explicaria suas idas e vindas no corredor.
Até que uma garota enfurecida entrou na lavanderia
enquanto eu transformava toalhas de banho usadas em
luvas de banho.
Ela gritou:
“Me alcance uma toalha furada para eu repassar ao
fedelho! A  patroa não está, vamos ter que fazer isso em
outro lugar! Somos honestas! Agora nem podemos trabalhar
mais em paz, sempre tem uns jovens para competir com a
gente. Se meu filho fizer isso, vou estrangular ele com
minhas próprias mãos! Eu me encarrego dos homens, por
que ele não se ocupa das mulheres?”
A cortina estava aberta, vi um senhor esperando. A
menina passou uma toalha furada ao jovem, que seguiu o
senhor. Pensava que esse tipo de coisa acontecia nos filmes
para maiores de dezoito anos, mas eis que, em pleno mês
de maio, embora a alguns passos da Canebière, onde
centenas de mulheres andavam para lá e para cá (uma
mais linda que a outra, deixando margem para escolha
mesmo para os mais exigentes!), um jovem, uma criança
que poderia ser de uma mãe qualquer, entrava
furtivamente em um hotel mal frequentado pelo motivo
mais ignóbil possível! Minha empatia por essa mulher atroz
evaporou, e o fato de ela ser da minha raça fez minhas
orelhas ferverem! Puxa vida, ela deveria ter deixado esse
tipo de trabalho para os outros!…
Agradeci a hoteleira pelas boas intenções comigo e disse
tchau, entrei como uma maluca na igreja Les Réformés,
acendi velas para todos os santos com o dinheiro extra que
ela havia me dado e que estava queimando nas minhas
mãos. Corri para a minha casa, colei em cima da cama dos
meninos imagens que recortara das revistas de esporte,
Anquetil e Rummel, Sainte Rose e Kopa. Eles ficaram felizes,
mas ainda estou assombrada com a lembrança do menino
do hotel.
11

5 de junho de 63

Faz nove anos que meu marido não é mais soldado! Nove
anos se passaram e ainda está à espera de um posto, na
nossa região, reservado para militares como ele! As pessoas
cuidaram dele, ofereceram um posto de agente florestal no
Allier, carteiro no Baixo Reno, cantoneiro na Bretanha, vigia
em Le Havre! No final das contas, a verdade é que
gostamos de Marselha e do sol daqui; no verão, é divertido
ver os brancos escurecerem sobre as grelhas chamadas
praias, e isso a dez bilhetes de bonde da nossa casa! Então,
por que ir para o Baixo Reno? Os antilhanos ainda não se
animam com o esqui, exceto no cinema. Sempre
conseguimos encontrar um pinheiro vazio para fazer um
piquenique com as crianças, e há calanques cercadas por
um mar tão azul que até o meu chauvinismo se detém na
hora de dizer: “Nas Antilhas o mar é tão celeste”. Por todas
essas razões, não conseguimos partir para outro lugar. Meu
marido, que acaba de receber outra proposta de emprego
reservado para militares, saiu para encontrar o seu
“pistolão”.
Ne verdade, como todo provençal digno do nome, ele
pensa que “ir a Paris” daria um jeito nas coisas. Dessa vez,
foi lhe oferecido um posto de guarda num museu nacional
da capital, em um futuro próximo. Ele vai perguntar se não
tem vaga em um museu em Marselha, para evitar a
mudança e, sobretudo, a falta de sol. A ida a um ministério
representa quatro dias longe de casa. Quando estamos de
viagem, é bem legal poder dizer: “Vou ao ministério de
alguma coisa”. Em geral, nunca funciona, mas ficamos
satisfeitos de ir até lá e tentar. Não lhe contei nada sobre o
assunto, mas também aproveitei sua “viagem” a Paris e
pedi que ele fosse pessoalmente à sede da revista Paris
Match ter notícias do jornalista a quem eu escrevera.
Recortei cuidadosamente o endereço de uma das edições
da revista e lhe entreguei uma carta para o redator-chefe.
Talvez o jornalista, o pobrezinho, esteja morto, ou não tenha
secretária! Nessas condições, é difícil responder. Mas o
redator-chefe, se bem entendo como as coisas funcionam,
deve ter uma multidão de datilógrafas a quem dá ordens
para responder as cartas. É claro que falo das poucas
páginas que enviei ao jornalista. Essas poucas páginas eram
preciosas para mim, Carolina, eu as tinha extraído do meu
livro. Poxa, amputei o texto, agora sou obrigada a
datilografar tudo de novo. Meu marido me disse que Paris
Match não era a casa da sogra, mas, já que “ia para lá”,
aceitava entregar a minha carta.
6 de junho de 63

Hoje é dia de ir à feira. Quando o tempo está bom, meu


marido me dá uma carona, mas mesmo se ele estivesse
agora em Marselha, não me levaria, ele está com muito
medo de encontrar os policiais. Pena, andar com ele na
mobilete era um momento de descontração, o mistral
fustigava o meu rosto e regenerava minha pele. Tenho uma
mobilete mais leve que a dele, mas não funciona mais, um
idiota roubou uma roda em um estacionamento no centro.
Agora tenho que atravessar de ônibus os dez quilômetros
que me separam da cidade, algo banal, é claro, mas quando
o tempo está bom, fica difícil esperar na parada do ônibus,
eu que estou acostumada com o oposto! O hábito, pelo que
vejo, é uma coisa que escraviza quem a ele “se habitua”.
Conheci uma mulher de Guadalupe que tem sete filhos e
que veio à França para ter os mesmos benefícios sociais que
os franceses da França. Ela conseguiu. Seu marido vai ao
cais de tempos em tempos e ela mora num casebre, à
espera de algo melhor. Ela está feliz com os benefícios,
apesar disso, pois acredita ser uma cidadã plena. Desse
modo, ela me diz, quando os meninos forem à próxima
guerra, não vai ter a impressão de que só servem como
bucha de canhão. Ela me disse ainda para ir ao mercado
hoje de noite após as cinco horas, que se vendia carne a um
preço incrível em um açougue de vanguarda da Rue Longue
des Capucins. Valia a pena, ela me garantiu. Todas as donas
de casa bem informadas iam para lá nessa hora.
À tarde, saí de casa com um dos meninos e encontrei a
minha compatriota, que também trazia consigo duas
crianças. Na hora combinada, ela me levou até a frente do
estabelecimento onde iria acontecer a venda. Uma outra
mulher disse:
“Seria bom o Ernest não começar a vender as ‘sobras'
tarde como na semana passada.” Olhei ao redor, lá estavam
todos os miseráveis de Marselha, e um monte de curiosos
para vê-los. Tentei me misturar aos curiosos, mas minha
compatriota me chamou e me disse para ficar onde estava;
caso contrário, eu não faria uma boa compra.
Ernest vende a carne como em um leilão: todos os restos
do enorme açougue onde trabalha são transportados para o
fundo do estabelecimento, que dá para a rua de trás. Com
tranquilidade, Ernest organizou o balcão: regularmente, um
auxiliar de açougueiro lhe traz uma bandeja sobre a qual
encontramos peças variadas e não identificáveis. Em um
piscar de olhos, a multidão crescera consideravelmente, e
eu tinha que empurrar meu filho a todo momento para que
ele não fosse pisoteado. Ernest não tem nem pesos nem
balança. Com os restos que recebe, monta uma porção e
vende por cinco francos. Primeiro vieram costelas de
carneiro intragáveis misturadas com alguns pedaços de
uma linguiça merguez[14] nojenta. Cada um pegou o seu
quinhão, minha compatriota ressaltou que, enquanto ele
não tivesse acabado de vender o que eu acreditava vir do
carneiro, não passaria para as outras bandejas. Nesse
momento, Ernest gritou:
“Passemos para o cozido! Quem levar a carne para o
cozido ganhará umas sobras!”
As sobras, pelo que entendi, são um pedacinho de bife
que Ernest colocou generosamente sobre as porções.
Quando fez o anúncio, houve mais mãos levantadas do que
porções para vender. Ernest conhece seus clientes, oferece
vitela para fazer uma blanquette ou uma carne não muito
estragada para um assado, pelos mesmos cinco francos. A
visão dessas inúmeras possibilidades de escolha ouriça o
público, que grita:
“Então, Ernest, se esqueceu de mim? Agora é minha vez!”
Ernest não sabe mais para onde virar a cabeça, uma
cabeça coberta com uma boina xadrez. Os homens são os
mais inflexíveis, esquecendo a cortesia que deveria lhes
permitir ceder a vez às mulheres. Ali o negócio é encher a
barriga, Carolina, e conseguir algo comestível é uma vitória
para aqueles que esperaram mais de uma hora.
Ernest parou de cortar e embrulhar e, de repente, ganiu:
“Senhoras! Cuidado, por aqui não tem nenhum batedor de
carteira, mas o calhorda do último sábado que fez minhas
clientes fugirem voltou. É o palerma que está aí no fundo!
Ele vai apalpar as senhoras! Ele veio só para isso, todo
mundo foi avisado!”
Olhei para o palerma avermelhado que desaparecia sem
cerimônia, pois todas as mulheres ameaçavam agredi-lo,
com seus saltos agulha, com suas cestadas certeiras. Minha
compatriota disse:
“Entende agora por que é melhor chegar cedo? Os
calhordas sempre ficam esperando que se forme uma
multidão para se esgueirar entre as compradoras!”
Nesse momento, Ernest pegou do balcão duas grandes
bandejas de coisas não comestíveis; ele montou porções e
berrou de novo:
“Vejam! O valor não aumentou, a porção continua
custando cinco francos, o preço de um maço de cigarros!
Sei que ninguém quer pedaços escuros! Pois então,
acrescento mais umas sobras!” Algumas mãos se
estenderam, com lassidão! Ernest achou que a resposta dos
clientes não correspondia à oferta, cruzou os braços e
ameaçou sair com as bandejas de entrecôte que tinham
acabado de chegar, caso não conseguisse se livrar da carne
que tinha preparado.
Não funcionou, e Ernest misturou tudo: entrecôte, umas
outras coisas e a linguiça que sobrara, até enfeitou as
porções com fatias de lombo de porco. Feliz da vida, ajeitou
a boina e colocou as mãos no avental demasiadamente
comprido:
“Depois disso, quero ver alguém dizer que eu não mimo a
minha clientela!”
Minha compatriota disse:
“Duas ou três porções: é agora ou nunca! Podem deixar
de lado as merguez e o que não quiserem levar!”
Comprei três porções e fiquei na frente da mulher de
Guadalupe, selecionei os pedaços e fiquei com apenas um
quilo de entrecôte! O resto era muito gordo para um cozido
ou com muito osso para um ensopado. Coloquei-o no
amontoado de lixo ali perto, no canto da rua, porque
aqueles que não têm grana para comprar começavam a
aparecer no mercado e vasculhavam o que os outros
jogavam fora. Meu embrulho foi rapidamente recolhido, o
que me deu a impressão de não ter jogado dinheiro fora!
Pelo menos!…
11 de junho

Meu marido voltou de Paris, ele estava no ministério de não


sei o quê, voltou sem nenhuma nomeação, mas está feliz,
“foi até lá”, viu uma espécie de chefe de gabinete e um
ordenança que sabe tudo. Por sorte, Carolina, existe esse
tipo de pessoa. Eles encorajam os que sonham em expor
seus problemas a um ministro absolutamente inacessível
para um pobre-diabo deste mundo. Eu escutava o que meu
marido dizia sem convicção, ele percebeu e me disse com
um tom irônico:
“Fui ver o tal jornalista! Tive que abrir a carta para
lembrar o nome dele! Uma coisa é verdade, sabe? Ele não
cobre faits divers, tem uma sala com um assistente na
frente, estive duas vezes no mesmo dia para tentar
encontrá-lo, não teve jeito, ele não tem hora para entrar e
sair. Acima de tudo, você não deve esperar por uma
resposta… Quando ele vir a carta aberta! Você imagina o
que ele vai pensar? Ainda assim, o assistente a pegou, me
dizendo para retornar!”
“Mas o assistente garantiu que minha carta vai ser lida,
não é?”
“No seu lugar… Não muda nada se ele ler ou não! Tive
que pegar o trem e não tive tempo de voltar lá! E é claro
que eu não perderia um dia de trabalho por uma bobagem
dessas.”
Então o assunto está encerrado. De qualquer forma, fico
feliz por não ter sido informada sobre o falecimento do
jornalista, tratarei de me preocupar com coisas mais
importantes.
12 de junho

Pois bem, a Cécile retornou da sua lua de mel; com o verão


e sua alegria novinha em folha, ela está radiante. Durante o
inverno, agora serão dois à espera de dias ensolarados.
Cécile me aconselhou a ir eu mesma a Paris! Lá, há um
monte de editores, ela também repetiu que não era
brincadeira quando o representante literário me escrevera
“MAMÉGA, escritora”. Mostrei então o orçamento que ele me
passou para a correção do manuscrito, o qual também não
era brincadeira. Ponho assim a palavra “Fim” nos meus
rabiscos e me contentarei em conjecturar o que seria um
livro de verdade.
15 de junho de 1963

Vou substituir a Renée no trabalho, ela vai tirar o apêndice.


Faz três meses que sente dores na barriga, mas tem tanto
medo da patroa que ainda estaria trabalhando se eu não lhe
dissesse que ela corria risco de ter algo grave. Perguntei,
Carolina, se seus empregadores estavam cientes do seu
problema. Ela respondeu que a patroa constantemente lhe
repetia que não pagara a viagem das Antilhas a Marselha
para vê-la doente. E acrescentava:
“A patroa disse que eu seria operada só depois de pagar
os noventa mil francos que ela havia me emprestado para
eu vir.”
Essa conversa aconteceu durante uma reunião de negros
soberbos que definitivamente não queriam ouvir nada sobre
os problemas das “empregadas” antilhanas. No entanto,
Carolina, desde que a empregada não é mais uma
Bécassine vinda da Bretanha, a Doudou das Antilhas
assumiu o comando, nós a encontramos nos lugares mais
inesperados da França. Assim, eu mesma tenho uma prima
solteirona e tola que foi enviada para a fronteira dos
Pireneus e se deu mal. Quando ela vai para a cidadezinha
mais perto, todas as crianças a seguem, verdadeiras pestes,
ela me escreve contando! De qualquer modo, não se deve
conversar sobre essas coisas quando estamos entre
antilhanos, e Renée, diante daquelas mulheres soberbas,
finge ser uma secretária executiva. A mim, ninguém vem
com essa. Olhei para suas mãos calejadas e disse:
“Então, está tudo certo na casa da patroa?”
Ela parecia envergonhada e finalmente se abriu comigo
quando deixei claro que eu não ficava sempre posando em
torno de um ponche, ao lado dos grandes figurões da
cidade.
Pouco a pouco, percebi que ela estava à beira do
precipício e que não estava determinada a se salvar, com
medo dos brancos que a empregavam.
Tendo em vista que sua vida talvez dependesse disso,
ofereci-me para substituí-la por quinze dias: caso contrário,
ela continuaria com o apêndice infectado por mais oito
meses, o tempo para se liberar da sua dívida.
16 de junho de 1963

Com um grande decote, fui ver os patrões da Renée,


porque, quando está frio, me cubro além da conta e, quando
está quente, não suporto nada no pescoço e nos braços.
A patroa é gorducha e excessivamente preocupada com a
aparência. Pela primeira vez desde que iniciei minha
carreira de faxineira, tenho um nome, dado pela patroa. Ela
não quer mudar seus hábitos, sou eu quem mudará o nome,
me chamarei Renée enquanto espero a verdadeira Renée
voltar. É evidente. E assim será, me chamem de Renée, e eu
responderei quando achar que estão falando comigo.
17 de junho

Um ano nessa profissão, Carolina, e estou cada vez mais


segura de que as pessoas que afirmam que o tipo de
trabalho não afeta o físico falam sem experiência própria.
Tinha voltado a ser uma mulher digna ficando em casa, mas
agora já me encontrava de novo pingando de suor, tirando
“poeira de trás dos móveis”. Transformei-me em uma
máquina a ser explorada, mas talvez não manipulada, pois
a patroa quase engasgou quando não respondi a seu
chamado, simplesmente porque meu nome não é Renée.
Ela me disse: “Renée é mais gentil! Espero que ela fique boa
logo!”. Acabei por irritá-la de vez ao anunciar que estava
ajudando a antes mencionada Renée a partir para uma casa
de repouso.[15] Por causa disso, sou punida, tendo que
esfregar um pano nos lugares mais improváveis da casa.
São os meus primeiros dias de trabalho, ainda estou me
divertindo loucamente, depois também ficarei irritada, será
preciso encontrar outra Renée.
No final das quatro horas de serviço, eu estava em um
estado tão deplorável que parecia uma das coisas antigas
empilhadas no sótão onde passei minha última hora de
trabalho. No corredor, antes de voltar para a rua, dei um
jeito no meu cabelo e na minha saia com as mãos e fui
embora visitar a Renée. A verdadeira.
A patroa, que não pega ônibus, chegou à clínica antes de
mim. Renée, ao me ver, parecia aterrorizada. A patroa então
se levantou e lhe disse:
“Até breve! Como combinado, não é, Renée?”
Renée murmurou uma palavra vaga.
Ela esperou cinco minutos antes de falar comigo, com
medo de que a patroa voltasse e ouvisse nossa conversa.
Finalmente, ela desabafou:
“Não poderei ir para lugar nenhum repousar, foi a patroa
que disse! A senhora não fica na casa o suficiente! Quatro
horas são muito pouco para ela! Olha eu, que me levantava
às sete da manhã e ia dormir quase à meia-noite.”
“Não me surpreende que não sejam apenas os seus
intestinos que estão com problemas! O médico diz que a
senhora tem uma anemia grave e que precisa de glóbulos
vermelhos. Antes de chegar o inverno, com essas suas
quinze ou dezessete horas de trabalho por dia, vai cair dura
de cansaço.”
Dizia aquilo com irritação, pois eu já sentia que ela se
recusaria a sair de férias. Um fio invisível a segurava.
Ela repetia:
“Ainda não fiz o reembolso! Ainda não fiz o reembolso!”
Naquela noite, ela estava muito cansada, e saí sem
resolver o problema.
19 de junho de 1963

Cumprimentei os membros da família com uma retumbante


saudação:
“Bom dia, senhoras e senhores!”
As meninas continuaram arrumando seu penteado no
vestíbulo, de costas para mim, e a patroa começou:
“Renée! Teremos que agir rapidamente! Há roupa para
passar e vidros para limpar!”
Uma escada já estava contra a parede. Nessa antiga casa
do bairro do Prado, as janelas eram mais altas que portas de
igreja. Seis andares abaixo, coisas e pessoas pareciam
miniaturas. Comecei a pensar que necessitava ter sangue-
frio para não despencar quando estivesse no topo da
escada. Impassível, a patroa continuou:
“Sua amiga não pode mais levantar os braços para limpar
as janelas: faz dois meses que ninguém toca nelas! A
senhora, pelo menos, não tem dor de estômago!”
Eu não tinha dor de estômago, mas um aperto no
coração.
Portanto, ela estava ciente de como era grave o estado da
menina martinicana encalhada ali, na sua casa! E mesmo
assim se mantinha contra qualquer princípio de
humanidade, simplesmente por uma questão de grana!
Carolina, isso causa mais cólica do que apendicite,
quando se para para pensar.
Passei uma montanha de roupas sem ver nada. Limpei as
janelas sem um risinho sequer, estava muito concentrada
no serviço para ficar pensando no que acontecia lá
embaixo, desconsiderei a vertigem e coloquei um pé na
borda de uma janela e outro na escada para limpar por fora.
Imaginei que estava de pé em um porão. O patrão
apareceu, a pasta debaixo do braço. Sua voz me tirou do
meu devaneio. Ele gritou:
“Desça daí! Mas desça já!”
Ele correu para a sala, enxugando a testa. Eu conseguia
ouvi-lo jorrar sua raiva com uma voz frenética:
“Você ficou louca! Já lhe disse para ligar para uma
empresa especializada quando for preciso limpar os vidros!
Da rua, observei pessoas olhando para cá, levantei a cabeça
e vi uma mulher esfregando essas benditas janelas! Se ela
quer se suicidar, que ela vá fazer isso em outro lugar!”
Desci, não dava a mínima para o bate-boca deles. Eu
ainda podia ver a garota sem conseguir levantar os braços
por causa da dor aguda na barriga.
A patroa me trouxe de volta à realidade:
“Está bem então: limpe a gaiola dos pássaros e depois vá
embora!”
Quando se tem o poder de dizer “Faça!”, “Vá embora!”,
“Suba!”, “Desça!”, que no mínimo seja dito de modo gentil.
25 de junho

Estou cansada demais para lhe escrever, minha amiga


Carolina, e desanimada demais também. Renée decidiu não
sair de férias, pois quer pagar por sua alforria o mais rápido
possível.
A vida continua, e lamento não ser africana, pois uma
africana não vira faxineira. As mulheres desse continente
não são trazidas para cá, a sua paixão inconsciente pela
liberdade é forte demais para isso.
30 de junho de 1963

Renée voltou para a casa dos seus proprietários. O patrão


estava de bom humor quando retornou da clínica. Renée
tinha emagrecido bastante. Ele conhece as ilhas Canárias,
disse que em lugares como aquele se morre jovem, uma vez
que não há estações. Depois perguntou a idade média dos
antilhanos, e notei que era bem informado sobre o Terceiro
Mundo. Assim, se Renée bater as botas, é porque a sua
idade de habitante do Terceiro Mundo chegou ao limite, e
ele nada poderia fazer. Trata-se de um ponto de vista que
Renée facilmente assimilaria, tendo-se em conta a
capacidade de se resignar que carrega consigo.
30 de junho de 1963

A velhinha com quem me correspondo me enviou uma


longa carta, ela poderia estar contente na ensolarada casa
de repouso, mas sente saudade da sua casa cheia de
lembranças. Minha pobre Carolina, eu estava em tal estado
de espírito quando recebi a carta da minha velha amiga da
Provence que tive que recomeçar duas vezes a leitura, para
me convencer de que ainda há gente aqui embaixo que
pode amar alguém ou alguma coisa que não seja a si
próprio.
12

3 de julho de 1963

Solange terminou sua mudança, comprou um pequeno


apartamento e decidiu trabalhar como fiscal no metrô,
furando bilhetes. Rindo, acrescentou que “subiu de
patente”. Gostaria de saber se Solange se acostumará a
viver embaixo da terra. Ela me convidou para brindar a sua
despedida em um baile negro presidido por funcionários
públicos vindos de Paris.
Antes de sair, tive que pôr meus filhos na cama e esperar
a chegada da estudante que ia tomar conta deles. Ela
chegou cansada e se jogou no sofá da minha filha. Fiquei
com muita pena pois ela contou que, após ter de colocar
para dormir bebês que não querem dormir de jeito nenhum,
frequentemente precisava deitar para, no dia seguinte,
pegar muito cedo o ônibus até a faculdade de Aix. Então eu
lhe disse:
“Feche os olhos hoje à noite e tente dormir como uma
pedra! As crianças não são mais bebês.” Ela não perdeu
tempo e já dormia profundamente quando nós três saímos.
Como de hábito, Solange está alegre, está confiante sobre
o futuro, afirma ter aprendido a conviver com suas patroas:
“Quando somos empregadas faz-tudo, estamos vacinadas
contra o que a vida pode apresentar, porque facilmente nos
despojamos de qualquer pretensão à dignidade humana,
somos uma coisa, como uma vassoura ou uma geladeira! Se
um dia eu for rica, fico enojada só de pensar em contratar
uma faxineira, tenho medo de me tornar uma daquelas
mulheres que ainda se dizem cristãs! Que comédia!”
Cem casais multicores escutavam um europeu falando
sobre as Antilhas. Fomos acomodados perto de um grupo de
jovens decididos a se divertir a qualquer preço, que,
ansiosamente, aguardava o final de um discurso cheio de
lugares-comuns. Os  jovens conseguiram distrair parte da
plateia desenhando seus perfis em pedaços de papel. O
resultado era cômico, e as pessoas riam. Os funcionários, no
meio daquela situação inusitada, ativaram a função de virar
a cabeça para o outro lado.
A comida foi servida: houve uma corrida até o bufê.
Perguntei ao tio Fulano como ele comia tanta charcutaria; é
incrível como as pessoas sentem fome quando surge uma
refeição grátis, seja lá onde for! Parece que ninguém tem
comida em casa! Encontrei ali uma amiga dos meus patrões
que adorava ostras. Visivelmente espantada, ela me olhou e
disse:
“De onde eu conheço a senhora?”
Eu respondi:
“De um trem, de uniforme azul!”
É incrível como o hábito faz o monge nesse tipo de lugar.
Todas as meninas empregadas da Rue Paradis ou da Saint
Giniez estavam lá: tinham ouvido no rádio o anúncio da
noite antilhana. Uma estava mais elegante que a outra.
Tiveram que fazer longas horas de faxina para comprar
vestidos tão bonitos, e ainda levaram bronca das patroas
para terminar a louça antes de se embelezarem. Mais de
uma, enquanto pintava as unhas, deve ter ouvido “sua
madame” dizer:
“Limpe meus sapatos para amanhã!”
Apesar disso, elas chegavam leves e sorridentes, mas
com um pé atrás. Viravam-se sozinhas para encontrar um
lugar onde sentar, pois eram solenemente ignoradas pelos
soberbos. Para eles, as garotas eram pragas, e se gabavam
de serem íntimos das personalidades mais na moda de
Marselha. Pensavam mesmo que deveriam ostentar uma
certa rigidez, por medo de ouvir uma garota dizer aos
quatro ventos:
“Ele é meu primo!”
As jovens faxineiras eram cada vez mais numerosas e,
amiga Carolina, fiquei feliz em vê-las enfim longe da
opressão do dia a dia. Talvez agora elas estivessem
voltando a ser como as outras pessoas… Era cedo demais
para pensar nisso: um dos soberbos se aproximou de um
grupo de lindas meninas que pagavam a entrada e disse:
“Quem as convidou? Aqui não é baile para vocês! Há
gente importante.”
Uma delas retrucou:
“É um baile antilhano, sim ou não? Quando vou ao baile
corso, sou mais bem recebida!”
Interpelei um garçom que estava passando na hora:
“Encontre um lugar para aquelas meninas, elas pagaram
por isso, não deixe nenhuma ficar de pé! Os funcionários
não pagam nada e estão sentados com as suas respectivas
esposas e até com os amigos dos seus amigos!”
O rapaz todo despenteado foi procurar cadeiras, não sem
ressaltar:
“Não estou deixando ninguém de pé. Recebo ordens do
negro que organiza tudo, eu só executo! Mas por que ele
não quer nem saber dessas garotas?”
Enquanto falava, uma menina com olhos doces, vestida
de azul, acompanhada por um rapaz tímido, veio à minha
mesa. Ela lamentava:
“O martinicano de casaco branco, que é o dono do seu
clube, me insultou, ele repetiu para mim ‘Seu lugar é aqui
mesmo?', mas onde é meu lugar? Na casa da patroa que
não é! Sou e permanecerei sendo a estrangeira, por causa
da minha pele, e aqui, no meio dos negros, dizem que não é
o meu lugar, só porque sou faxineira! Se eu for para a Rue
Thubaneau,[16] talvez seja mais bem tratada!”
Havia muita amargura naquelas declarações,
aproximamos as cadeiras umas das outras, e Solange
gritou:
“Garçom, champanhe para todo mundo! Espere só esse
sujeitinho vir aqui implicar com você! Até os funcionários
vão saber que ele é um racista imundo! E pensar que isso
vai ser a classe dirigente de amanhã!”
O rapaz que acompanhava a menina de azul a pegou
pelos braços:
“Venha! Vamos mudar de bairro, ir para Catalans! Lá não
tem esse tipo de história, felizmente nos bailes europeus
ainda podemos dançar! Vamos pedir reembolso!”
E ele arrastou consigo a companheira.
A menina que sempre ouve “vai”, zanzando para lá e para
cá como palha ao vento, veio apertar minha mão e
desapareceu no meio da noite, carregando consigo a sua
desilusão e a minha. Mas por que há negros que fecham os
olhos para o que é a nossa negritude? Não é escondendo
uma ferida que a curamos, pelo contrário.
Sabendo disso, uns vigaristas chegaram, decididos a criar
confusão:
“Então é assim, tem um evento antilhano, e não se quer
os antilhanos que ralam até cansar, sendo que em Marselha
somos maioria, é só olhar o cais ou a Rue Paradis! Não tem
chefe de gabinete por lá! Então, o que significa
‘empregadas não', já que as meninas não podem fazer nada
além disso? Se elas estivessem na Rue Thubaneau, até
entenderíamos os soberbos fingindo estarem
envergonhados! Mas aquelas infelizes trabalham
honestamente, e hoje são vergonhosamente acolhidas por
pessoas que as rejeitam!”
O jovem que estava na bilheteria tinha medo de que os
funcionários ouvissem mesmo que um pouco daquela
conversa, então os deixou entrar; eles caminhavam feito
valentões; um garçom se curvou na frente deles e um dos
soberbos deu um sorriso complacente. Carolina, essa é a
lógica do mais forte, e comecei a pensar na menina com
unhas roídas pelos produtos de limpeza, que só tinha como
defesa as próprias lágrimas.
Solange, em sua linguagem imagética, me disse que em
Paris existe um escritório chamado “Zubidom”[17] que lida
com os trabalhadores oriundos dos departamentos
ultramarinos.
“Seria bom se assistentes sociais fizessem parte desse
serviço, elas poderiam discretamente investigar a vida das
jovens que são enviadas para qualquer buraco! Tem gente
que é menor de idade! Mas a proteção das menores não é
para as antilhanas: nós somos menores desde sempre!”. Ela
ria, mas sua risada tinha algo de trágico.
4 de julho de 1963

Este é o meu último bico antes das férias de verão: a


padeira das redondezas me pediu para achar uma
costureira para uma mulher que mora no bairro vizinho.
Quando disse que eu poderia fazer o serviço, ela pareceu
cética. É que faço e aconteço por aqui, e a padeira supõe
que sou uma mãe sem problemas de dinheiro; quando estou
no vermelho, vou ao Crédito Municipal, jamais ela soube dos
dias em que conto os trocados para comprar o pão de cada
dia. Depois que pago pelo pão, esqueço que contei os
trocados ou que me desfiz de uma joia qualquer que ficará
descansando na penhora até que a pegue de volta.
6 de julho

A mulher da Córsega tem cinco meninos, tão agitados


quanto os meus, um pouco mais malcriados, mas nossa
relação está quase em perfeita harmonia. De manhã diziam
“a negra”, de noite já me chamavam de “Maméga”. Eu
simplesmente lhes disse: “Eu não chamo vocês de
‘foguinho', mesmo que vocês sejam ruivos! Sou uma negra,
mas tenho um nome, ora ora!”.
A mãe, surpresa, me ouviu e disse: “A senhora está certa,
não é gentil da sua parte falar isso”. Ela me deu uma cesta
de jeans para fazer bermudas, uma série de meias para
fazer a triagem, instalou uma máquina de costura em um
canto da cozinha e me disse para começar.
Não tinha feito nem duas bermudas e ela já estava me
pedindo para ajudar a estender as roupas no varal, entre as
árvores frutíferas do quintal; em seguida, descasquei os
legumes e ajudei a arrumar as sete camas. Hoje à noite,
coloquei as duas bermudas incompletas na cesta para
costurar depois. Nesse ritmo, o serviço não vai acabar tão
cedo.
8 de julho

Escovei os degraus do casarão, pintei as grades, esfreguei


as cadeiras e lavei as bicicletas dos meninos que estavam
na garagem. Sobre a costura, nada a declarar: a cesta para
depois desapareceu.
9 de julho

Finalmente: as férias estão logo ali, restam ainda cinco dias


de trabalho. A patroa é gentil, fala da sua terra natal e me
conta da surpresa quando me viu conquistar a estima das
crianças em tão pouco tempo. Talvez eu pudesse ficar em
casa, ela me disse. Sobre costurar, nem um pio.
11 de julho

Uma jovem veio para remendar as bermudas. Enfim eu


disse à patroa:
“Pensei que tinha sido contratada para costurar!”
Soltei a frase com um ar ingênuo, e a senhora respondeu:
“Faz tanto tempo que queria uma negra para a faxina!
Quando a vi chegar, não tive coragem de lhe contar de
imediato, mas já que a senhora dá conta do serviço! A
senhora não pode ficar mais? Só saio de férias em agosto!”
Vim como costureira e, sem pedir minha opinião, ela
gentilmente tinha me dado as vassouras, como lhe
convinha. Eu poderia ter ido embora no primeiro dia, mas
queria saber até que ponto e por quanto tempo aquilo
continuaria! E eu vi o filme todo! Pobre Carolina, não estou
ressentida, pois assim são as coisas! Somos classificadas
pelo governo e por toda a França como sendo, antes de
tudo, faxineiras, do mesmo modo que os poloneses são mão
de obra no campo e os argelinos nos aterros. É uma ideia
corrente que continua a se propagar, e a patroa, que está
longe de ser má, põe em prática o que sempre ouviu. Pois
então: é inconcebível que uma datilógrafa não seja
datilógrafa, que uma costureira não seja, de imediato, uma
costureira. Eu não iria explicar isso à madame, ela não teria
entendido nada. Disse apenas que meus dez dias como
costureira terminariam em cinco dias, e que cuidaria dos
meus meninos durante as férias. Diante da minha
insistência em repetir a palavra “costureira”, ela ficou
envergonhada e não insistiu.
13 de julho de 1963

Hoje é a minha última tarde na casa da corsa, e não pude


dar jeito em nem um par de meias.
Dezenove horas — ainda é dia, e até o último segundo a
patroa aproveita os meus serviços: do porão ao sótão,
mexemos em tudo, meu rosto ficou cinza de tanta poeira,
mas não fiquei irritada, pois sabia que, depois da minha
saída, quando a madame tiver uma italiana ou uma
marselhesa, vai perceber que pegou pesado e poderá dizer,
do fundo do seu coração: “Pois é, exagerei com aquela
negra”. Empurrei o enorme fogão a óleo para dentro do
porão, levei os cobertores de lã para o sótão nos cestos de
vime, coloquei gesso em uma fenda que as crianças tinham
feito na garagem, lavei por três vezes a grande escadaria
de pedra, pois os meninos subiam e desciam sem esperar
que ela secasse, e desentupi o cano que liga a caixa-d'água
à casa. A patroa me dizia com sua vozinha doce:
“Faça o serviço para mim, já que a senhora não volta!” Ela
não acrescentava: “E já que nenhuma branca o faria”. Dei-
lhe o prazer de possuir uma mulher negra até o último
minuto, e saí rindo ao longo do caminho que me levava para
casa.
14 de julho de 1963

Ontem de noite, passei uma boa camada de creme no rosto,


preciso ficar bonita, irei para Allauch com umas
conterrâneas dançar beguine.
No ônibus que me levava até a cidade em festa, o
condutor me disse que eu precisava comprar duas
passagens para sentar com aquela saia, e acrescentou
maliciosamente: “Dona, eu carregaria esse troço para a
senhora com muito gosto”. Tanto bom humor me fez
esquecer as tarefas absurdas da semana. Há coisas que não
se podem esconder, as mãos são os cartões de visita dos
indivíduos. Hoje, as minhas mãos não têm unhas, ou quase
isso, e estão completamente enrugadas, mesmo com a
camada de glicerina que passei nelas. Por isso, coloquei
luvas. Desde que faço parte do mundo infernal dos
empregados domésticos, minha testa adquiriu traços de
preocupação, não consigo ter um ar leve sem algum
esforço, e as duas empregadas que me acompanham
também não transmitem mais a segurança das pessoas que
têm um lar para chamar de seu.
Que se dane! A Provence nos convida! Esqueçamos os
problemas. Até enfeitei minha filha com acessórios lindos, e
as pessoas ao meu redor começavam a aplaudir assim que
ela passava.
Na praça principal, no meio do cheiro de crepe e pizza,
havia uma divindade verde e pagã, mistura de dragão,
crocodilo e leão, sentada em uma antiga charrete. Pensei
que estava sonhando, acreditava ter sido teletransportada
para o meio da África. Para uma jovem que tocava com
devoção nas patas daquilo, perguntei o que era, ela me
informou que se tratava do símbolo da cidade de Allauch,
que saía para a rua somente uma vez por ano. Tive que me
contentar com essas explicações, todas plausíveis. Minhas
companheiras passavam de uma barraca a outra sob os
olhares indulgentes dos curiosos transeuntes. A  noite caía,
uma noite morna e cinza, que nos convidava a desfrutar
aquele momento. Os diabos vindos do Norte estavam
decididos a aproveitar ao máximo. Eles batiam as solas dos
tamancos e tilintavam seus guizos, enquanto, no meio dos
plátanos, suas plumas brancas se destacavam, insólitas,
entre os galhos mais baixos. Um diabo girava em torno da
minha bela compatriota. Com certeza ele era o cabeça
daquela horda barulhenta. Nunca um campo de cana-de-
açúcar florido tinha usado esse tipo de pluma. A floresta se
inclinava para a frente, para trás, para a direita, para a
esquerda, como se fosse movida por um sopro invisível.
Nem podíamos atribuir aquilo ao mistral, pois o tempo
estava mais do que calmo. O brincalhão olhava com
interesse cada vez maior para Suzette, secava a testa,
cuspia, dava ordens aos seguidores, que paravam ou
gingavam, e sempre voltava para a Suzette, que estava
orgulhosa da conquista. Ela entrou no jogo, respondendo
com piscadelas maliciosas: foi o suficiente para o cabeça da
trupe, que esqueceu os companheiros.
Ele se aproximou do nosso grupo e disse à Suzette:
“Por que o seu vestido está levantado desse jeito? É
excitante!” A menina lindíssima começou a rir, e o diabo,
atrevido, se aproximou, completamente agitado. Seus
amigos o imitaram e vieram cantando para o meio do nosso
grupo. Não vi sentido em sermos engolidas por esses
demônios. Alguém que não falava francês direito me pegou
pela cintura e assobiou de surpresa, certamente eu não
estava bonita como as garotas que me acompanhavam e,
além disso, tinha um olhar severo. Eu tive que dar um fora
no engraçadinho e disse:
“Aqui é um desfile, não uma sessão de massagem! Com
esses penteados, vocês vão roubar todos os holofotes!”
Ele não se assustou porque, aproveitando-se de uma
sombra, inclinou seu enorme rosto vermelho na minha
direção!
Suzette não conseguia parar de rir:
“Veja, até Maméga encontrou um nórdico para ela na
noite de hoje!”
Caí fora e respondi que era por culpa dela que tínhamos
todos aqueles diabos na nossa cola, que tínhamos que parar
de provocar aqueles palhaços:
“São mesmo verdadeiros capetas! Não é só a fantasia!”
Enquanto isso, na iluminada Allauch, os grupos
regionalistas avançavam sob os aplausos da multidão
reunida ao longo da avenida principal.
Eu me virei para o chefe dos diabos e gritei:
“Nossa! Nós vamos atravessar a cidade, comportem-se
um pouco!”
Ele proferiu sons guturais para o resto dos diabos que
estavam entre nós.
Suzette desdobrou a saia e reajustou o madras, bateu os
sapatos de salto alto, enquanto a multidão aplaudia
loucamente. De repente, ouvi meu nome: era a mulher da
Córsega e seu bando, eles tinham me visto e não se
controlaram, as crianças chegaram chutando os meus
calcanhares. Aproximei-me da minha ex-patroa, seus olhos
se arregalaram:
“A senhora não me disse que participava desse tipo de
evento! Imaginei que estivesse descansando hoje!”
A patroa tinha motivos para chegar a essa conclusão:
qualquer outra pessoa além de mim estaria exaurida após
ter passado pela sua casa, mas é exatamente para ter um
bom motivo para estar cansada que eu estava lá naquela
noite.
Respondi, quase rindo:
“Isso é o tipo de coisa que não se diz a uma mulher!”
Ela olhava as luvas de náilon nas minhas mãos, mãos que
vinte e quatro horas antes estavam cheias de graxa, de
tinta ou de decapante, ela olhava para o penteado que as
meninas tinham feito, olhava meus sapatos de salto alto,
ela que só tinha me visto com chinelos velhos, com os
cabelos cobertos por um lenço, ela não compreendia,
parecia que eu a tinha enganado. Relaxei o máximo que
pude e ofereci sorvete aos seus filhos, que não cansavam
de olhar a minha filha brincando com as bolinhas douradas
do seu colar da Martinica. E opa! Desapareci no desfile para
que, daquele momento em diante, eles fossem apenas uma
lembrança, uma das menos desagradáveis da minha vida
como faxineira, pois a madame só tinha posto em prática a
teoria: para uma mulher negra, trabalho duro. Eu já tinha
trabalhado como uma condenada sem nunca supor que a
madame poderia ter pensado de modo diferente.
O desfile terminou, meu diabo com plumas veio me pedir
uma lembrança: dei um lencinho de seda em nome do meu
grupo, ele o enfiou no bolso da sua blusa bufante.
Suzette não segurou a gargalhada:
“Imagina só chegar à minha terra natal com meu diabo
loiro! O que minha mãe diria?”
“O que temos que pensar é o que diria a sua mãe se a
senhorita se apaixonasse por ele!”
Minha resposta foi uma ducha de água fria, o que a
sossegou.
As duas empregadas tentaram reagir, como todo mundo,
mas sem sucesso, a servidão as marcou para sempre.
Facilmente consigo amainar a sujeição moral que
acompanha essa maldita profissão porque tenho um lar
para chamar de meu, uma família para chamar de minha.
Mas como compreendo essas garotas presas dia e noite às
ordens das malditas madames.
No final da noite, suspirando de alívio, guardei meus
adereços. Dois meses de interrupção forçada serão bem-
vindos, assim poderei realizar meu projeto de ir a Paris.
13

16 de julho de 1963

Não há crianças indo para a escola, nenhuma casa de


madame para tirar o pó, há um sol tropical, alguns francos
na bolsa, é só alegria! E, cúmulo da felicidade, não preciso
me levantar às seis da manhã, encontrei minhas pantufas e
um velho roupão que provavelmente nunca usei. Ontem
preparei potes de geleia “para o inverno”, mas que já
começaram a ser degustados pelas crianças. E este monte
de roupa para remendar! Descubro que há muito o que
fazer em casa e que sou eu que precisaria de uma faxineira.
18 de julho de 1963

Solange me escreveu de Paris, ela está encantada com a


sua nova vida. Claro que o inverno ainda está longe. Ela diz
para eu apressar a minha vinda, caso queira encontrar uma
editora aberta. Decidi não continuar com a história do
agente literário, custa muito dinheiro. Talvez, indo até a
Gallimard ou a Julliard, não teria nada a pagar tão cedo,
estou decidida a me virar por conta própria. Solange me diz
para vir, mas acrescenta: “Me informei, você já perdeu essa,
não tem contatos, não tem um nome de impacto, você não
é nada, e não se faz nada para quem não é nada, a menos
que você tenha muito dinheiro para gastar, talvez; o meu
sobrinho que está na universidade me contou isso, ele me
pediu para convencer você a colocar tudo na lata do lixo;
seja como for, você pode vir, o tempo está ótimo e seus
filhos poderão conhecer a Torre Eiffel”.
Melhor estar prevenida, assim não ficarei decepcionada,
tirarei conclusões por minha conta e risco. Carolina, a
resignação nem sempre é uma coisa ruim.
20 de julho

Sempre tiro com prazer meu roupão às seis horas, quando


as cigarras já estão cantando, há giestas por toda a casa e a
magia do auge do verão provoca um relaxamento
automático em tudo o que faço.
Começo a arrumar as malas, todos vamos a Paris na
próxima semana, exceto o pai dos meninos.
A sra. Roland veio à noite, quando estava dobrando o
último par de meias das crianças. Pode não parecer nada,
meia dúzia de pares para dar um jeito, mesmo assim a
minha tarde se foi. A sra. Roland me viu ocupada e me
perguntou por que eu parecia tão apressada. E logo me
disse:
“Minha filha só vai entrar em férias no dia 6 de agosto, ela
trabalha no escritório de um advogado; sua colega de
trabalho já foi embora, então ela é a única em serviço, e
não é que, em pleno verão, ela fica com a garganta
inflamada? Pensei que a senhora poderia ficar no lugar dela
até o dia 6, sabe como é, se ela puser uma mulher branca
no trabalho, talvez não consiga voltar depois, não queria
que minha menina começasse a fazer faxina como eu, ralei
tantos anos para que ela fosse a uma escola técnica, ela
acabou de sair da Marie Curie, sabe, o grande
estabelecimento perto do Boulevard Chave. Isso não me
impediu de ter enormes dificuldades para lhe arranjar um
emprego.”
Respondi:
“Estou saindo de férias, vou para Paris com a criançada
durante dez dias: parto no dia 25 e volto no 11 de agosto, já
está tudo programado.”
A sra. Roland começou a chorar, o que fez meus braços
amolecerem e meu estômago embrulhar.
“Não é que o advogado não encontre substituta, pelo
contrário! Mas é que eu não queria que ela perdesse o
lugar, já disse que ela enviaria alguém por dez dias,
imaginei que a senhora estaria disponível, já que são
férias!”
Exatamente, as férias chegaram, e eu não queria ver as
madames e os senhores nos seus escritórios ou na
intimidade, estou farta, mas a mulher começou a chorar,
confiava em mim, pensava que eu ainda podia exercer um
trabalho não tão degradante. Ela não tinha olhado as
minhas mãos sem unhas, eu tinha conseguido limpá-las,
mas elas não pareciam mais as mãos de uma secretária.
Eventualmente, quando eu não estava coberta pelo
uniforme azul, poderia me vestir de modo adequado, mas
nada daria jeito nos malditos dedos. O reumatismo já está
deformando as articulações, toda vez que os mergulho nas
bacias geladas das madames fico muito complexada.
Disse então à sra. Roland:
“Está vendo! Minhas mãos estão rígidas e eu perdi toda a
agilidade necessária para o trabalho! E ainda tem as férias:
como adiar em dez dias?”
Com as mãos neste estado, não se diz aos quatro ventos
que o plano é procurar um editor em Paris, o medo é que a
cidade inteira comece a debochar. O álibi das férias é
excelente. Meu marido chegou nesse meio-tempo, tomou
conhecimento do pedido da sra. Roland, da minha hesitação
e exclamou:
“Esta é a oportunidade para você se afastar de vez das
panelas e largar a sua vida de cobaia, indispensável para a
sua pesquisa, na teoria! Logo logo você estará tão
impregnada dessa vida que será impossível sair dela!”
Fiquei aterrorizada: até o fim da minha vida não conseguir
sair da servidão, não posso nem imaginar! Vejo a tia Jeanne
toda entravada no subúrbio de Paris depois de passar trinta
anos da sua vida na casa dos outros. Ela está no sistema de
seguridade social e tem aposentadoria por idade, mas não
recebe nem um olhar de gratidão de quem viu nascer,
crescer, se casar. Contudo, ela amava aquela família mais
do que seus próprios pais! Agora só lhe restam lembranças,
um cacho castanho da burguesinha que viu crescer, um
cachorro de gesso que lhe foi oferecido num final de ano e,
claro, a resignação. Quando a vejo, ela invariavelmente fala
comigo sobre os patrões, sem amargura, com orgulho:
“Fiquei com eles durante trinta anos! Foi uma época boa!
Teve a guerra, que mexeu com os nossos costumes, os
jovens não se lembram mais de nada e os velhos tiveram
tantas preocupações!”
Eu a admiro tanto que não me atrevo a lhe dizer que
detestaria terminar meus dias nesse clima. Consinto com a
cabeça, e minha alma se apavora com aquilo tudo.
Eu me perdi em pensamentos, não via mais a sra. Roland,
pensava na tia Jeanne. A senhorinha notou:
“Então, a resposta é sim?”
“É sim!”
Meu marido suspirou de alívio:
“Talvez voltar para um escritório vá desintoxicar você.”
Quando agosto bate na porta, não há nada que seja capaz
de desintoxicar, salvo ar puro e liberdade. Assim mesmo,
respondi que “sim”, e a sra. Roland saiu tranquilizada. Hoje
à noite, não estou feliz nem braba, passo creme nos meus
dedos rijos para encarar decentemente as teclas de uma
máquina de escrever.
20 de julho de 1963

Entrei no escritório com ar seguro, determinada a não dizer


que era faxineira na casa dos outros. Logo perdi minha
pose, pois o advogado já tinha me visto na residência do
médico, um dia em que viera com a esposa tomar chá. Senti
um frio na barriga e esperei que ele me dissesse para limpar
o corredor do prédio. Houve um breve momento de
surpresa, e ele gentilmente me falou:
“Então, a senhora sabe fazer tudo? Que bom, sente-se
aqui à mesa!”
Eu esperava tudo, exceto aquilo; balbuciei:
“É só por alguns dias, a menina logo estará curada!”
Tive vontade de chorar e entendi que minha temporada
no cheiro da vida dos outros tinha me marcado, me deixado
complexada.
Busquei refúgio atrás da mesa móvel, onde uma pilha de
pastas esperava sem indulgência. O advogado me disse:
“Responda aos clientes, fórmulas tradicionais, anotei o
essencial, consulte as pastas que estão ali!”
Ainda bem que o caro doutor foi embora! Tudo parecia
inacessível: por cinco vezes seguidas, recomecei a primeira
carta. A cada ligação, largava meu texto e, febrilmente,
pegava o telefone:
“Alô! Não, o doutor não está! Deixe um recado.”
Durante o dia inteiro não ousei dizer “É a secretária que
está falando!”, como deveria. Meus interlocutores eram
invisíveis e, entretanto, acreditava estar vendo seus olhos
escrutinadores imaginando onde tinham me visto, em quais
casas, nas casas de quais patroas. Desde que troco de dono
como se troca de meia, tenho que estar pronta para todo
tipo de surpresa. Enfim, Carolina, o dia passou, meu
constrangimento também. Está tão quente que não tenho
vontade de dormir, estou batendo à máquina, batendo,
batendo, mas para lhe escrever, e de repente sinto as mãos
relaxadas, me sinto em casa, a confiança sempre faz
milagres. O dr. Bracci foi mais do que um mero patrão.
Pacientemente, corrigiu meus erros de datilografia e me
disse que eu tinha um estilo bonito, o que foi suficiente para
que, ao fim do dia, eu esquecesse que ele tinha me
conhecido passando o espanador numa mesa de trabalho
em vez de sentada atrás desse mesmo móvel.
24 de julho de 1963

Pego dois ônibus para ir ao escritório do dr. Bracci, chego


num estado deplorável, corro para a sala estreita com
apenas uma janela que dá para o pátio, vejo os telhados
vermelhos barrando o horizonte e capturando os raios do sol
saariano. Sonho com uma rede, e o doutor, impecavelmente
vestido, parece ter saído de uma vitrine da Canebière.
Depois de copiar duas páginas, começo a suar, não tem um
mísero sopro de ar e o ventilador está estragado, seco a
testa sem parar, o doutor afrouxa levemente a gravata e
diz:
“O que será de nós se o tempo continuar assim?
Felizmente a senhora está acostumada!” Até ele diz isso! Se
um dia eu estive acostumada a sentir calor sem poder abrir
as portas e as persianas ou sem andar descalça em um
parquê encerado, certamente já esqueci, o calor me faz um
mal terrível, sobretudo porque me europeizei, ando debaixo
do sol sem sombrinha e sem uma capelina de palha na
cabeça, exatamente quando o equador está passando por
Marselha.
À máquina, escrevo, escrevo e reescrevo. Pego ou arrumo
folhas em um monte de pastas multicoloridas
cuidadosamente organizadas. Já consigo responder sem
gaguejar. O calor me sufoca, apesar da minha blusa aberta
ao máximo. O doutor está mais fora do escritório do que
dentro. Depois que ele parte, ponho os dedos para funcionar
e divago: bilhetes de trem com tarifas reduzidas… irei a
Paris, verei de novo Paris, visitarei as lojas de
departamento! Encontrarei um editor! Vou percorrer a
Champs-Élysées com as crianças. Enquanto isso, o trabalho
está concluído e já são quase seis horas; na sala de espera,
os clientes também secam a testa aguardando a chegada
do chefe.
Ele entra já emendando uma conversa, anotando coisas,
sem parecer sentir calor. Assina as cartas, as quais ponho
em envelopes, antes de deixá-las na caixa dos correios mais
próxima. Chego em casa completamente sem fôlego e vou
correndo para um banho salvador.
27 de julho de 1963

Quando meus olhos se abaixam para não ver mais as telhas


fumegantes iluminadas por uma claridade intensa, meu
olhar se debruça sobre as janelas do outro lado do pátio,
num andar onde uma voz de mulher recita salmos todas as
tardes. Fiquei intrigada, eu ouvia, mas não podia ver: o calor
após o almoço era horrível, mas me levou a compreender
quem tinha aquela voz tão impostada. Uma mulher
corpulenta abriu os dois vidros da janela, que escondiam
uma aglomeração barulhenta e esquisita.
A mulher invocou a graça e a força de Deus e gritou:
“Silêncio, por favor!”
Ela então chamou pelo nome uma lista de pessoas;
percebi que ela dirigia uma instituição de caridade israelita.
Vigorosa e asperamente, ela dizia:
“Nos seus lugares! Não é o seu dia! Já a vi ontem! Não
posso fazer nada pela senhora!” Sua voz, agora que a janela
estava aberta, cobria o som da minha máquina e me
obrigava a fazer longas pausas para entender o que estava
acontecendo. Ouvi “Não posso fazer nada pela senhora”, e
vi uma senhorinha de luto, toda curvada, olhando atordoada
a mulher corpulenta responsável pelo local. O doutor tinha
saído e eu havia terminado a correspondência. Mais de uma
vez, notei a velhinha voltando para perto de quem, pouco
antes, rezava de qualquer jeito um “Deus de caridade”.
Agora, ela não tinha mais paciência diante da velha senhora
esfarrapada e suplicante:
“Não quero saber de nada! Não posso fazer nada pela
senhora!” Fiquei de cabelo em pé e senti um frio na barriga.
Sempre temos algo para dar a alguém. Uma palavra de
conforto, uma recusa bem-educada, um olhar que diz muito.
É inútil servir em nome de Deus se você tem um coração
vazio. Fiquei triste ao pensar isso, e o dr. Bracci entrou sem
que eu percebesse, viu que eu observava os vizinhos e
simplesmente falou:
“Aqui é triste! Somente as pessoas da frente mudam esse
cenário, a senhora está certa em relaxar!” Eu não podia
acreditar! Faz dezoito meses que ninguém me diz isso,
muito pelo contrário!
Carolina, preciso repensar minha maneira de ver as
coisas, mas antes gostaria de saber se o doutor agiria do
mesmo jeito comigo se um dia eu varresse a casa dele!
Agora, para escrever a você, Carolina, tenho um sistema:
no ônibus, uso minha bolsa como suporte para o caderno e
pego uma Bic. É quase uma hora de trajeto, e uso esse
tempo perdido como posso, escrevendo sem parar. A
mulher de cinza que sempre senta na minha frente ficou
intrigada. Ela me perguntou a quem eu escrevia, e emendei:
“Para a Carolina!”
“É a sua filha?”
“Não, é minha irmã!”
Não parecendo convencida, acrescentou:
“É para seu namorado, provavelmente!”
Dá para ver que ela imaginava coisas, agora não se
escreve mais para o namorado, a gente telefona para
marcar um encontro, eu ponderava e sorria, e a mulher de
cinza tratou de confirmar sua hipótese:
“Acho que eu adivinhei.”
Aquela senhora me fez evaporar definitivamente da
memória a mulher corpulenta que dissera “não”.
29 de julho

A sra. Roland vem preparar comida para meus filhos a


tempo, não tenho um minuto de descanso, e no escritório
não se pode chegar atrasada como nas casas das patroas.
Preciso trabalhar o dia todo nesse ritmo e, ao chegar em
casa à noite, noto os cabelos mal e mal desemaranhados,
sandálias sem cadarços: a sra. Roland não consegue impor
disciplina à criançada, que só pensa em caçar cigarras
enquanto espera meter o pé na estrada rumo a Paris. Hoje,
o doutor me serviu um refresco. O  verão anterior parecia
distante, quando eu, embaixo da luz fluorescente duma
casa de família, para refrescar minha garganta queimando
não tinha outra escapatória senão passar a língua nos lábios
ressecados. É assim que me dou conta de que existem
profissões realmente bestas, visto que, dependendo se você
se dedica à faxina ou às letras,[18] passa da condição de
burro de carga à de ser humano. No entanto, continuo,
minha velha amiga Carolina, com meus dedos rijos e sendo
a mesma pessoa; então chora, chora minha alma, pois há
muito mais irmãs na primeira categoria do que na segunda.
Quando serão finalmente rompidas as correntes que elas
não forjaram? Bebi meu refresco, e o doutor, me vendo
perturbada, exclamou:
“Pode abrir a janela, essa onda de calor definitivamente
derruba qualquer um.”
Pois é: está quase acabando. A garota voltará para o
escritório e eu irei a Paris justo para encontrar, acho, todas
as livrarias fechadas. Mas me fará um bem enorme
enquanto aguardo a volta às aulas e as futuras agitações
nas patroas.
2 de agosto

Fui regiamente paga pelo dr. Bracci, corri direto à estação


de trem para comprar nossas passagens. Enviei um
telegrama a Solange para que ela nos receba na Gare de
Lyon. As crianças estão em polvorosa. Para elas, a primeira
vez em Paris soa como um mundo maravilhoso.
4 de agosto

Segurando firme, em uma pasta, meus manuscritos e minha


esperança de encontrar um editor, olha eu aqui, enfiando os
meninos em um táxi. Meu marido vai fazer a própria
comida. Solange estará lá na hora combinada.
14

5 de agosto

Pela manhã, encontrei Paris como a deixei há dez anos,


silenciosa, úmida e disciplinada. Ainda sonolentas, as
crianças se misturaram à multidão de viajantes que estava
na fila para pegar um táxi. Minha menina, como boa
marselhesa, me perguntou por que o policial que organizava
a longa fila não falava nada. Em Marselha, todos os policiais
falam. Felizmente Solange ainda era uma provençal,
ficávamos atordoados ao ouvi-la falar, seus esforços para
arrumar um emprego num hospital como faxineira, suas
aventuras nas agências de emprego. Por fim, acabei
entendendo que ela era lanterninha num cinema do seu
bairro:
“O trabalho é fácil, eu digo ‘Siga-me, senhor', ‘Por aqui,
senhora', ninguém percebe que eu não falo bem francês.”
Ela dizia isso rindo, e a multidão silenciosa e cansada a
olhava com espanto. Meu caçula exclamou:
“Mãe, por que as pessoas são tristes em Paris? Por que é
assim?”
“Eles não são tristes, mas em Paris é preciso ser desse
jeito, mesmo no verão, todo mundo está sempre com
pressa, isso deixa qualquer um para baixo.”
Solange ria:
“Até os taxistas são assim, beiram a grosseria. Você tem
noção, com esse verão lindo, em Marselha, o taxista iria
propor passar na praia, dar um pulo em Catalans, puxaria
conversa, teria dito algo, enquanto este aqui é surdo e
quase cego.”
O motorista sobre quem Solange falava já tinha arrumado
nossas bagagens no porta-malas do carro quando, de uma
hora para outra, percebeu que éramos sete.
“Não vou levar todo mundo, decidam, tenho mais o que
fazer.”
Ia ser assim. Solange se amontoou com as três crianças
no táxi do pouco afável motorista e me fez entrar em outro
veículo, que estava sendo muito disputado por outros
apressadinhos. Ela disse ao taxista que a levava:
“Estamos indo para Villejuif.” Repeti a mesma coisa para o
nosso motorista, recomendando que seguisse o veículo da
frente. Sem um olhar, sem uma palavra, ele rapidamente
ligou o carro.
Jean-Pierre continuava:
“Por que o tio está triste, o que que ele tem?”
Depois da Porte d'Italie, sem dificuldade, chegamos à
ruazinha onde Solange está hospedada. Ela empurrou a
cerca de madeira e entrou na sua casinha que, de tão
pequena, tão pequena, lembrava um pombal.
“Pois então”, disse ela, “este é o meu cantinho! Aos
poucos eu vou ampliando. Para pagar, vendi as minhas joias
e até mesmo meu Citröen 2CV, até as economias de vinte
anos se foram. Meu marido está feliz, quando chega de Le
Havre é mais fácil para ele vir e para eu visitá-lo! A
propósito de Le Havre, minha amiga! Se você tivesse visto o
número de negros que chegam por lá, é muito mais do que
em Cannes ou Marselha! Fui ver meu marido, o cais estava
cheio de antilhanos, pensei estar em Fort-de-France! Mas o
que acontece para que todos os habitantes da ilha saiam de
mala e cuia?”
Enquanto ela falava, não perdia tempo: em menos de
quinze minutos, ela converteu sua sala minúscula em um
quarto de hóspedes. Nos dois divãs transformados em
camas, estendera lençóis branquíssimos, ela era
extraordinária, incrível:
“Mantive o hábito de ser ligeirinha, tenho ainda a
impressão de ter uma patroa nos meus calcanhares! Meu
marido pergunta o que tenho para sempre pular da cama,
fiquei condicionada, não consigo ter uma vida mais pacata.
Hoje estou livre, ou melhor, pedi quarenta e oito horas de
folga, vamos ao mercado de pulgas em Bicêtre!”
Abri as cortinas, vi um pequeno quintal, cabiam doze pés
de alface, em frente à pequena casa que Solange chamava
de “meu lar”. Ela estava tão orgulhosa do ninho todo
cuidadinho que entrei na onda e desejei que ela
rapidamente realizasse o seu sonho e o ampliasse.
6 de agosto

Dois dias com Solange em Paris é algo incrível. Ela me levou


a Les Halles de manhã cedo, enquanto as crianças ainda
dormiam, encontrei todas as Antilhas andando entre
caixotes de legumes ou caixas de peixe. Falava-se crioulo,
interpelavam uns aos outros: a manhã no mercado cinza
não era nada triste. Compramos um atum-gaiado por sete
francos e dois grandes cestos de legumes por uma ninharia.
Ficamos tentadas pelos preços módicos, sem pensar que
seria preciso carregar aquilo tudo no metrô. Ao chegar a
Porte d'Italie, estávamos exaustas: chamamos um táxi. Foi o
tempo de preparar as crianças para sair e já era meio-dia.
Disse a Solange que, se continuasse assim, nós,
marselheses, não teríamos tempo de ver Paris. Ela não
perdeu o foco, foi buscar um carro para o dia em uma
garagem próxima e nos amontoou num Simca Aronde,
anunciando que conhecia bem Paris: “Em caso de
problema”, ela acrescentou, “não há nada a temer, todos os
guardas de trânsito hoje em dia são antilhanos”. Disse tudo
isso às gargalhadas. Com surpresa, compreendi que
Solange não estava de brincadeira, conhecia perfeitamente
o caminho. Ela se dirigiu para o rio, mostrou tudo, com
explicações bastante razoáveis.
No Quai Branly, as crianças começaram a pular de alegria,
gritando: “Que lindo agora! Paris às cinco da manhã é triste,
mas no meio da tarde, durante o verão, quando a beira do
rio é nossa, é quase o Paraíso!”. Solange freou bruscamente
perto de uns arbustos, as crianças saltaram do veículo e
correram para chegar o quanto antes aos pés da Torre Eiffel.
Elas gastaram toda a sua mesada em cartões-postais. Tive
que pagar pelos broches e pelas miniaturas da torre.
Chegando ao primeiro andar, estávamos com tanto calor
que Solange exclamou: “Nossa, que sol danado!”. É claro
que meus filhos partiram de lá deslumbrados; depois de
visitar o Palais de Chaillot, decidiram morar em Paris, era
tudo tão bonito.
Solange me disse que ela já tinha procurado por todo o
bairro Saint-Sulpice e que havia notado que de lá até Saint-
Germain-des-Prés, passando por Odéon, todas as editoras
estavam fechadas.
“Não se empolgue! De manhã você dá uma volta,
tranquila, enquanto eu tomo conta das crianças, só pego no
batente à uma da tarde. Quando você for famosa, lembre-se
de que fui eu quem lhe abriu as portas.”
Cara Carolina, é melhor encarar a vida assim, como um
raio de sol: nem decepção, nem mágoa, nada ofusca o jeito
de ser maravilhoso da Solange, e as crianças estavam
encantadas por terem uma amiga dessas.
9 de agosto

Fui até o metrô Odéon, segurando com cuidado um


endereço que me fora dado havia quase três meses.
Embora prevenida, achei que encontraria aberta a primeira
porta em que bati.
Simplesmente li, num cartaz pendurado nessa bendita
porta, as palavras FECHADO DURANTE O MÊS DE AGOSTO. Peguei
um ônibus para ir a Saint-Sulpice, onde planejava recuperar
meus manuscritos das mãos do agente literário, também li
na porta FECHADO EM AGOSTO. Já era meio-dia e eu só tinha
conseguido visitar dois lugares. Bateu uma tristeza, quis
pegar o trem de volta.
10 de agosto de 1963

Enquanto Paris é invadida por turistas que só pensam em


tirar fotos, eu pulo de um metrô para outro, de um bairro
para outro, e as zeladoras sempre me dizem gentilmente
que devo voltar após as férias. Hoje, em Saint-Michel, uma
delas me disse para deixar os meus escritos com ela. Ela
parecia saber de muitas coisas. Disse, por exemplo, que os
manuscritos às vezes levam seis meses para serem lidos. E
ainda tinha uns que nunca eram lidos. Eu bem que podia
deixá-los com ela, ela me achou simpática, me
recomendaria com todas as suas forças. Foi a pá de cal para
me “murchar” por completo, ainda mais que meus pés me
doíam até dizer chega, Solange tinha me aconselhado a
usar salto alto para parecer “mais apresentável”.
Pouco antes, eu não estava nada apresentável, mancava
de uma das pernas e começava a me desesperar, o que me
fazia sentir ainda mais calor.
Para não deixar que o desânimo tomasse conta, uma
peregrinação a Montmartre. Ficaremos lá em cima o dia
todo.
Solange voltou ao trabalho. Quando retorno ao meio-dia,
ela está partindo às pressas, regressando para casa à noite:
logo, não a vejo muito.
12 de agosto de 1963

Calcei sandálias e fui à região dos Grands Boulevards à


procura do Museu Grévin. Havia uma longa fila disciplinada,
cheia de garotos irritados, não conseguia ver o preço da
entrada. “Talvez cinquenta francos, como nos museus de
Marselha”, disse um dos meus meninos; comecei a contar,
pois o dinheiro acaba tão rápido quando estamos de férias
que já parei de comprar lembranças para os vizinhos, e
também disse às crianças para enviarem menos cartões-
postais, elas queriam mandar cartões em cada agência dos
correios. A visita ao Museu Grévin era imprescindível, mas
quando a caixa engoliu minhas três notas de mil, achei a
situação desagradável. Disse aos meninos para não me
pedir coca-cola ou amendoim, pois tinha deixado o dinheiro
da bebida na bilheteria. Isso esfriou o entusiasmo deles,
fazendo com que passassem com indiferença por
Robespierre, Margaret e as outras estátuas de cera que eu
queria tanto mostrar. O espetáculo “som e luz” consegue
impressioná-los, mas também desperta o apetite e a sede,
sentida por todos ao mesmo tempo. Não pude me privar
então de comprar refrescos e depois, acredite, Carolina, tive
que me controlar para não dizer aos gritos que minha bolsa
esvaziara antes do esperado. No metrô, as crianças,
finalmente satisfeitas, estavam fascinadas com as nossas
viagens subterrâneas. Sob os pinheiros, não era a mesma
coisa, mas agora terão o que contar a todos os seus amigos
que tinham ido às montanhas! Liam em voz alta os nomes
das estações, sob o olhar surpreso dos passageiros.
À noite, receberam uma carta do pai, aí viraram
chauvinistas, disseram a Solange que os Grands Boulevards
eram mais feios quando comparados à Canebière e que
tudo na capital era mais caro do que em Marselha.
Perguntaram quando voltaríamos para lá. Dei uma olhada
na carta. Ele contava sobre a tarde que passara em
Catalans com uma família amiga: por causa disso, meus
pequenos marselheses, em plena Paris, começaram a
sonhar com seixos e castelos de areia. No entanto, antes de
partir, preciso passar por Saint-Germain, o único
compromisso da temporada parisiense relativo aos
manuscritos ocorrerá lá amanhã.
13 de agosto de 1963

Tomada de emoção, apresentei-me à senhora mais


encantadora que Paris possui. Ela publica apenas revistas
históricas. Suas palavras de incentivo pareciam sinceras,
me dizendo por fim para voltar após as férias de verão,
quando poderei encontrar as pessoas certas. Peguei a
criançada, que me esperava no corredor com a sacola de
comida, pois a ideia era fazer um piquenique em
Montmartre.
Para percorrer Paris nesse dia de sol, e especialmente
para “estar apresentável”, Solange, que está no seu dia de
“folga”, me deixou com um visual que observo nas poucas
vitrines sem cortina de ferro. Solange tem uma cabeleira
formidável; no entanto, para ficar na moda, se vale de uma
inacreditável coleção de perucas, de tranças falsas. Ela tem
um rosto harmonioso e é bonita, mesmo sem nenhum
artifício, o que não a impede de ter uma gama de cremes e
frascos de hidratante. Pegou essa mania depois que
começou a trabalhar em um salão de beleza. Aí, hoje de
manhã, ao raiar do dia, veio me dizer que queria me deixar
“sexy”. Quando a vi encurtar em pelo menos três
centímetros meu vestido reto, fiquei bastante resistente à
ideia. Ela riu e disse: “Como você está indo para um
encontro importante, não pode ter o ar de uma senhorinha,
conta bastante, sabe como é!”.
Eu também não queria parecer estar nessa moda do iê-iê-
iê e olhei desconfiada os dedos ágeis da Solange diminuindo
o vestido. Quando terminou, ela me colocou em uma
cadeira e cuidou do meu visual. Pegou cremes, pomadas,
sei lá o quê, e começou a transformar a minha pele, pegou
pincéis e fez dos meus olhos dois peixinhos. Em seguida,
plantou na minha cabeça uma alcachofra gigantesca, a qual
recusei sustentar: eu alcançaria facilmente um metro e
noventa com aquilo. Ela a substituiu por um par de tranças
que me fazia parecer uma garotinha, as crianças pularam
de alegria… Depois, diante da minha hesitação, ela ajustou
apenas uma trança e acrescentou uma espécie de franja
que tapava a minha testa. As crianças enlouqueceram, e eu
decidi manter aquele penteado de que tanto tinham
gostado. Calcei os sapatos de salto alto, o que para Solange
era fundamental, tomando cuidado para camuflar na minha
sacola de compras um bom e belo par de sandálias com
pontas gastas, mas muito confortáveis de usar. Escondi,
antes de sair, os peixes debaixo dos óculos de sol, mas seria
preciso lidar com o resto. Tudo começou no ônibus, onde o
cobrador assobiou quando me sentei. A mulher com quem
tinha marcado um encontro me disse, sem rodeios, que não
me via assim, supunha que eu fosse alguém mais
convencional e comedida. Mas Solange tinha deixado a sua
marca em mim, não podia explicar e engoli os elogios com
ar natural. Cada vitrine me gritava “Quo vadis?”. Tirei
aqueles sapatos danados para ficar mais à vontade e entrei
no metrô para ser menos notada. Saboreava
antecipadamente a emoção que sentia toda vez que ficava
em frente à basílica de Montmartre quando um homem
baixinho, sentado ao meu lado, começou a aproximar sua
perna da minha, enquanto lia atentamente seu jornal.
Afastei-me o máximo que pude, mas a perna incrivelmente
indiscreta do sujeitinho imediatamente encontrou um
pedaço do meu joelho que o vestido não cobria. Peguei um
dos meus meninos e o coloquei no colo, transversal a mim,
assim o sujeito, para se distrair durante o trajeto, passou
seu tempo a desviar, em vão, de um par de pezinhos. Notei
que ele ficou furioso, o que me divertiu demais.
Desci na estação Blanche. Meus filhos, morrendo de calor,
levavam seus casacos embaixo dos braços. Já tinha lhes
falado muito sobre o elevador que leva à basílica, agora foi
o momento de mostrá-lo, e então todos ficaram olhando
para cima. Eles estavam procurando descobrir até onde iria
o aparelho; vitoriosamente, um deles anunciou:
“Olha só! É mais baixo que o da basílica Bonne-Mère!”
Enquanto os outros concordavam, a irmã era fotografada
por um grupo de turistas. Arrastei-os da entrada do
elevador para deixá-los em frente ao harmonioso conjunto
de degraus que leva à basílica. Eles pararam por um
momento para olhar. Como eu gostaria que eles vissem
tudo o que tem de bonito em Paris! O caçula disse:
“Nós poderíamos morar por aqui! Tem um monte de
passarinhos!” E ele se precipitou para um gramado verde,
onde pássaros marrons debicavam. Minha alegria durou
pouco, o pestinha do bando quebrou o feitiço ao mostrar o
majestoso cenário:
“Seria bom brincar de pega-pega, não é?”
E a irmã acrescentou:
“Diz para mim, mãe, por que não tem pinheiro-manso
como no morro da igreja Notre-Dame de la Garde? Onde
vamos parar para comer?”
Aquele que queria brincar de pega-pega tomou a rédea
das operações e, super-rápido, subiu metade dos degraus,
logo seguido pelos três irmãos. Havia muitos visitantes,
desisti de chamá-los, também não me atrevi a ir atrás deles,
minha saia, curta e justa demais, impedia essa utopia. No
topo, meus filhos, todos de camisa vermelha, como
papoulas no verão, me observavam chegar com dificuldade.
Acenavam para mim em júbilo, como se tivessem
conquistado o topo do Everest. Eles também tinham
conquistado um vendedor de imagens da basílica de preços
proibitivos. É evidente que as crianças já queriam gastar
com lembrancinhas. Desviei a atenção deles ao mostrar um
ônibus bege de dois andares, atolado de turistas.
Eles não paravam quietos, e tive de fazer, antes de entrar
na basílica, um pequeno discurso sobre a devoção. Só isso,
minha pobre Carolina, para contê-los: uma espécie de temor
a Deus. Depois, sabia que poderia orar em paz enquanto
eles visitariam mais sossegados aquele conjunto
arquitetural. No entanto, ao entrar na igreja, minha filha me
perguntou baixinho:
“Por que está tão escuro aqui?”
Uma mulher, com uma câmera debaixo de um lenço,
tirava fotos às escondidas. No coro, pessoas ajoelhadas
oravam. Tudo era tácito e contemplativo. Decidimos rezar
um terço inteiro; eu estava acabando as primeiras dez
orações, e os meninos já tinham dado a volta. Estavam
impressionados com o ambiente e não gostavam daquilo
tudo; discretamente, o mais novo puxava as mangas do
meu casaco de malha. Eu me segurei, me concentrei ao
máximo para ignorar as cabeças virando para todas as
direções, os terços dando uma volta pelos bancos. Cedi à
vontade deles de deixar a igreja somente quando uma das
vozes sussurrou: “Mãe, a gente tá com fome…”. Junto às
portas que davam acesso à basílica, duas religiosas pediam
doações, uma era velha e enrugada. O mais atrevido do
bando, que brincava de pega-pega em qualquer lugar, se
postou na frente da lastimável religiosa e disse:
“Coitadinha! Ela deve estar com frio, nossa! Como é que
deixam a coitadinha ficar aqui?”
Quando os “por quês” e os “como” começam a brotar aos
montes, é preciso ser engenhosa para escapar sem parecer
ignorante. Dessa vez, escapei, respondendo:
“É quase meio-dia, vamos procurar uma sombrinha para
almoçar.”
Tínhamos encontrado um pórtico que nos levava até o
outro lado do morro, subimos os degraus para chegar até lá
e começávamos a devorar os sanduíches quando passou
por nós uma turma de um internato do mais puro estilo
inglês. As meninas vestidas como convinha, sem requinte,
mas sem desleixo, andavam com disciplina, acompanhadas
por duas monitoras.
Ao chegar perto de nós, elas gritaram e pararam. Uma
tribo de negros comendo nos degraus daquela basílica era
insólito, certamente ausente nos folhetos sobre Montmartre.
Depois de conversar com as alunas, uma das monitoras veio
até nós e me pediu, com um sotaque característico,
autorização para nos filmar. Os meninos quiseram bancar as
vedetes, salvo o caçula, que na hora se recusou, escondeu a
cabeça entre os braços cruzados e, em seguida, fez uma
careta tão grande para a câmera que a monitora abandonou
o projeto e voltou ao seu grupo, que chorava de rir.
Após comerem e beberem, fiz um breve sermão para
encorajá-los a entrar de novo na basílica: haveria tempo
para quantos banhos de sol quisessem quando voltassem
para Marselha. Retornamos então à igreja, eu queria nutrir
os olhos deles com aquelas pedras veneráveis, queria
sobretudo que guardassem pelo menos uma frase dentre
tantas inscrições, lembrando as origens daquele lugar. Eles
fizeram uma volta completa pelo recinto com muita calma,
leram meticulosamente tudo o que eu queria e esqueceram
tudo quando cruzamos a saída pela última vez.
15

15 de agosto de 1963

Os cartões-postais devem ser enviados no calor da emoção


causada pela beleza das coisas vistas ou ouvidas: decidi
então redigir sem demora os meus. Mas nesse ato havia
também algo provocador. O que seria mais divertido do que
escrever as seguintes palavras a uma patroa que a imagina
enraizada numa região: “Envio lembranças de uma Paris
ensolarada”. Já a vejo jogando com desprezo o cartãozinho
numa cesta de lixo, ou dizendo: “Só faltava essa!”. Já vejo a
minha amiga velhinha perto do rio Durance ajeitando os
óculos e chamando os amigos, o rosto radiante, os olhos
azuis turvos de lembranças, sacudindo o meu cartão
retangular e exclamando: “Minha negra pensa em mim! Ela
virá me visitar antes do inverno”. Já vejo Angèle irradiando
emoção no asilo dos velhos, lendo e, de vez em quando,
esfregando as mãos: “A martinicana vai me trazer um
suvenir”.
Para escrever, voltei ao local em que tínhamos almoçado;
as minhas crianças que também sabiam escrever se
regozijavam. Os dois mais novos tinham recomeçado a
brincar de pega-pega: assim, tive um tempinho de sossego,
pois se esqueceram de me encher de perguntas começando
com “por quê”.
Isso não durou muito: o mais novo acabou com a minha
paz ao gritar de alegria:
“Nossa! Mãe! Um padre preto! Preto como nós!”
De fato, meus olhos caíram sobre um padre alto e negro
que andava de um lado para outro, não muito longe do
nosso grupo, lendo um breviário. Por que seria diferente? As
palavras de Jean-Pierre atraíram sua atenção. Visivelmente
surpreso, ele avançou na nossa direção. Os meninos logo o
cercaram:
“Bom dia, padre!”
Seu espanto era igual ao meu, guardei a minha caneta e
respondi à sua saudação.
“Bom dia, padre! O senhor veio em uma peregrinação?”
“Não”, respondeu ele, “estou fazendo um estágio aqui,
sou da África Negra!”
“De Dakar, padre? Eu conheço! Do Daomé ou da Costa do
Marfim? São países incríveis!”
Enumerei os nomes dos países outrora sob o controle
francês, naturalmente esquecendo que o continente
africano era imenso.
O padre respondeu:
“Não, venho do Congo Belga!”
As crianças não se continham de alegria: pela primeira
vez na vida, viam um padre negro, podiam conversar com
ele, poderiam no futuro contar aos amigos em Marselha:
“Tem até um padre negro em Montmartre!”
Não para se gabar, já que era verdade, seria só algo mais
a acrescentar à lista de coisas que teriam visto, a Torre
Eiffel, os Grands Boulevards, o metrô e os pães chamados
“parisienses”. Além disso, observavam o padre com muito
mais interesse do que tiveram ao examinar a basílica, havia
agora orgulho nos seus olhos, curiosidade, tinham parado
de correr, não escreviam mais, ficavam em volta daquele
homem como se fosse o ser mais extraordinário que já
tinham conhecido. Fiquei feliz, pedi ao padre que me falasse
sobre a Igreja congolesa no meio da revolução que está
ocorrendo no país. Ele era testemunha do fim de uma era…
e que era! Ele respondeu:
“A Igreja sofreu com os eventos, mas a população acredita
piamente, ansiamos pela paz… estamos esperando…”
Então ele perguntou sobre mim, meus filhos. Eram do
mesmo pai? Tinham tons de pele tão variados! Fiquei
surpresa com a pergunta, mas respondi:
“Sim, padre! É o mesmo pai! É assim nas Antilhas! As
crianças escolhem os tons sem o consentimento dos pais, a
mistura de raças talvez seja mais frequente que no Congo
Belga!”
Em seguida o padre perguntou se eu já tinha feito a visita
completa da basílica, respondi que sim. Então o religioso
acrescentou:
“A senhora não irá embora sem mostrar a seus filhos a
famosa Place du Tertre: se quiser, eu a acompanho, vou me
preparar, volto em um minuto.” Amiga Carolina, sentia um
orgulho incomparável toda vez que conhecia um homem da
minha raça no sacerdócio, fiquei honrada pela sua proposta
e tomei cuidado para não recusar. Pensei que ele iria avisar
o secretariado de que se ausentaria por alguns instantes. Eu
estava errada: preparar-se era colocar a batina num
armário, pois em cinco minutos ele voltou vestido com um
terno escuro de belo corte! Ele tinha a desenvoltura e a
envergadura de Sugar Ray.[19] Isso me deixou um pouco
incomodada. Não ousei mais chamar aquele belo homem
em trajes civis de “padre”. Meu entusiasmo caiu por terra.
Dizia então:
“Olha quem chegou, o senhor pároco!”
Os meus filhos, que sempre perguntam o porquê das
coisas, disseram:
“Mãe, por que o padre está fantasiado?”
Eu não sabia por quê, mas não gostei nada daquilo.
Caminhamos por um pequeno caminho que ligava a basílica
à Place du Tertre. Os vendedores de quadros nos
observavam passar com ar de indiferença. Eles não se
preocupavam em atrair os clientes, gravações sonoras
ligadas a alto-falantes habilmente camufladas chamavam a
atenção dos transeuntes. O padre apontou, com razão, que
essa publicidade de vanguarda estava em contradição com
o cenário antiquado dos lugares que visitávamos. As
crianças, que nunca haviam visto tantas pinturas e pintores,
passavam tagarelando de uma imagem a outra. Achei que
fora uma boa ideia do senhor pároco nos levar para lá.
Enfim as crianças estavam diante de algo realmente novo,
não me falavam mais do Vieux Port de Marselha. Como
bônus, tive ainda sobre o que conversar com o padre para
dissipar o desconforto que pairava depois que ele se
apresentou à paisana.
No caminho, as pessoas se viravam, eram uma legião
inteira, de todas as raças e todas as línguas.
Um grupo de turistas parou, e logo eu ouvi:
“Olha só, um pastor negro, e com filhos!”
Percebi que o senhor pároco usava um colarinho à
maneira protestante e, erguendo a cabeça em sua direção,
notei também seus olhos observando com um interesse
mais do que singelo os peixinhos que Solange havia
desenhado no meu rosto. Fiquei sem jeito, e procurei na
mala de mão o par de óculos escuros que eu havia enfiado
ali. Com os olhos protegidos, entrei no meio da multidão ao
redor da praça. Após pegar na mão do caçula, o padre
conseguiu estragar tudo sussurrando para mim com uma
voz confiante:
“Dá para pensar que são meus filhos! Em breve teremos o
direito de nos casar!”
Eu me fiz de surda, encontrei uma maneira de passar à
frente dele para ajeitar as fivelas das sandálias da minha
filha, que, no entanto, não estavam soltas. Uma ducha de
água fria me arrefeceu de vez quando uma das mãos bem
cuidadas do homem de Deus roçou o meu braço nu. Depois
dos olhos, agora escondi os braços embaixo do colete de
náilon que antes havia tirado, estava tão quente! Porém,
corri para abotoar a camisa até a gola, sem remorso. O
homem, que tinha voltado a ser o boxeador na minha
cabeça, expressou seu ponto de vista sobre a tolerância
carnal em certas ordens religiosas.
Aquilo não só me incomodou, como atentou contra todas
as tradições sólidas que foram inculcadas em mim desde
pequena. Respondi que, no dia em que os católicos
descobrissem, num catecismo, que se tolera esse
comportamento dos padres, seria o fim da sua fé, e eu seria
a primeira a ficar desesperada. Para mim, um padre é um
sacrifício vivo, ele não deve burlar as regras, especialmente
em pensamento. Ou se é padre, ou não.
O homem de Deus me disse para falar mais baixo, as
pessoas podiam ouvir o que estava dizendo. Eu tinha me
refugiado no meio de um grupo que admirava um artista
reproduzindo o perfil de pessoas com uma tesoura e um
papel preto.
Fiquei irritada com aquilo e disse que os homens que
servem à minha Igreja não deveriam falar nada que não
fosse possível de ser dito em voz alta a todo mundo.
Minha pobre Carolina, que vespeiro! Imagine que meu
Sugar Ray não perdeu a pose nem por um segundo, ele
ofereceu doces às crianças, me falou sobre o Moulin de la
Galette e Montmartre à noite.
Perguntei o nome dos sinos de Montmartre e qual era a
igreja que estava a cinquenta passos de nós. Ele não
respondia nada, mas devorava com os olhos o penteado
andaluz que Solange havia plantado na minha cabeça.
Levantei a trança e escondi a cabeça com um lenço que
tinha tirado de novo da minha bolsa… Assim, toda coberta,
eu estava com calor, muito calor, mas não tinha
importância. Nada em mim deveria encorajar a
surpreendente atitude do padre em quem antes eu tinha
confiado.
Minha filhinha estava plantada em frente ao cavalete do
artista, ele recortava em segundos uma cabeça no papel
bem parecida com a dela, enquanto os quatro meninos me
empurravam:
“Mãe, também queremos as nossas cabeças!”
Bom, pensei, cinquenta francos por peça! É acessível. Um
segundo depois, o homem que recortava o papel com
destreza se virou para mim e me apresentou os perfis
saídos de suas mãos ágeis:
“Não é parecido? São só dois mil e quinhentos francos!”
Engasguei na hora, não ousava recusar o trabalho
encomendado por mim, mas entre duzentos e cinquenta
francos e dois mil e quinhentos havia uma grande diferença!
Fuçava ansiosamente minha carteira tentando reunir a
quantia solicitada pelo comerciante, enquanto os turistas
sorridentes observavam as crianças pularem de alegria com
seus pedaços de papel. Como eu podia ter me enganado a
tal ponto? Na verdade, olhei mais de perto a plaquinha onde
se lia que a obra custava cinco francos. Era um preço
tranquilizador para aqueles que, como eu, nunca
conseguiam fazer corretamente as contas em novos
francos, mas garanto que vez por outra descambava em
drama.
Eu tinha ainda mil e quinhentos francos para o dia. Havia
comprado círios, cartões-postais, colocado dinheiro em
todas as caixas de doação da basílica, pensava que, pela
primeira vez, poderia economizar o dinheiro destinado ao
meu dia de turista amadora e me vi confrontada com uma
realidade cruel. Eu tinha que pedir às crianças que
esvaziassem suas carteiras para juntar o valor dos nacos de
papel preto. O homem de Deus entendeu o imbróglio e se
ofereceu de bom grado para pagar a conta. Desconfiei e
recusei sem remorso. Disse ao artista que havia me
enganado sobre o preço, que ficasse com dois dos pedaços
de papel. Dei o que tinha no bolso e devolvi os desenhos
pelos quais não podia pagar. O padre os pegou e pagou,
oferecendo-os aos meninos, que ficaram felizes por não
serem privados daquelas lembranças um pouco caras
demais para nós.
O padre parecia mais razoável, jogava conversa fora com
as crianças, era como se tivesse esquecido a minha
presença; fiquei aliviada, mas pensei que era hora de fugir
dali, minha filha já estava fazendo pose na frente de um
artista que pintava bustos coloridos em poucos minutos.
Prometi uns bons tapas na modelo demasiadamente dócil
caso ela não desse o fora na mesma hora. O religioso me
mostrou a agência centenária dos correios no topo do morro
e começou a falar sobre tudo, exceto sobre religião. Ele
voltou a ficar muito descontraído, eu tinha que fazer algo
por ele, por minha fé abalada por sua linguagem de homem
comum. Meu menino que ainda brincava de pega-pega se
apegara ao homem, segurava a mão dele como se fosse a
de um amigo, enquanto o padre recomeçava a me fitar
avidamente. Era preciso dar cabo daquilo. Tirei alguns
cartões da cesta de compras e disse às crianças que
pretendia passar pelos correios para enviá-los. O homem de
Deus entendeu que eu queria me livrar da sua presença. Ele
não se deu por vencido e de pronto revelou que também
precisava comprar selos. Ele não largava o Jean-Pierre.
Enquanto o padre entrava na agência dos correios, eu disse
em patoá ao meu menino:
“Largue a mão do senhor pároco! Venha ver este artista
aqui!” O padre tinha ido para a fila comprar selos. Jean-
Pierre o soltou e veio para o meu lado. Disse às crianças:
“Vamos rápido, está ficando tarde, já são dezesseis horas!
O senhor pároco precisa fazer as vésperas, agora ele vai ter
que partir para se vestir adequadamente, não teremos
tempo para assistir à liturgia, vocês estão acabados!”
Peguei correndo o caminho de volta, contornando a Place
du Tertre: levava meus filhos ao Moulin de la Galette. Parei
um pouco para despir meus braços que ferviam embaixo do
colete de fibra sintética, tirei o lenço de seda e os óculos de
sol, enxuguei a testa, que mais parecia um riacho: os
peixinhos de Solange, completamente umedecidos, não
estavam mais em forma, e eu estava irritada, humilhada
naquilo que era mais caro para mim, minha fé e minha raça.
Por que Solange quis fazer aquele visual a tal ponto
mentiroso que até um padre caiu na armadilha? Eu tentava
culpar Solange, isso me deixava mais calma. As crianças
olharam atentamente para trás e um deles gritou:
“Mãe, o padre está lá, ele está nos procurando, olha, mãe!
Por que não vamos dar um tchau para ele?”
De fato, de onde estava, no alto da Rue Lepic, vi a
estatura avantajada daquele negro elegante, ele andava
para lá e para cá na multidão quando de repente olhou em
direção ao Moulin e viu nosso grupo. As crianças levantaram
os braços, esbocei um movimento para batermos em
retirada, foi a minha salvação: a sua dignidade, que ele
nunca deveria ter deixado de lado, talvez tenha voltado
com tudo, ele ergueu os grandes braços e fez um aceno de
despedida, não nos seguiu mais. Fiquei contente, estava
livre. Quem sabe, pensei, ele tivesse retomado o seu
breviário. A imagem do padre lendo as palavras de
sabedoria d'Aquele a quem deveria servir me deixou
reconfortada; ao me salvar, falando com ele rispidamente,
tive a impressão de tê-lo salvado dele mesmo. Mas salvar-se
de si próprio é uma batalha árdua, a qual só se pode lutar
dentro de si mesmo.
Não podia explicar isso para meu filho, que caminhava a
contragosto, ainda assim respondi:
“Não temos como voltar para lhe dar tchau! Devemos
deixá-lo em paz, ele me disse que está com dor de cabeça
por causa do sol!”
Os vendedores ambulantes de frutas e legumes haviam
evacuado a Rue Lepic. Aqui e ali, pombos deixavam os
telhados cinza e vinham à calçada procurar comida. Uma
vendedora de ameixas estava na frente de uma carrocinha.
Correndo, as crianças desceram a rua e pararam em frente
à minguada barraca de frutas cor de vinho que tinham
ficado grudadas com o calor. Eles vasculharam suas moedas
e compraram um estoque de ameixas:
“Finalmente”, observaram, “uma coisa que não custa
mais que em Marselha!”
Meu menino que sempre brinca de pega-pega, o mais
sentimental da trupe, virava e revirava o pedaço de papel
recortado que guardava em um saquinho de plástico:
“O padre negro era gentil! Pena que ele não veio com a
gente!”
Nunca mais o veremos, ele nunca virá. Enquanto eu dizia
isso, o metrô da praça Blanche estava à nossa espera.
Entramos às pressas! Ali, ao menos, a ruptura com
Montmartre se tornou definitiva.
No vagão em que nos sentamos, uma garota negra
extremamente triste observava as crianças se mexerem.
Fiquei muito impressionada com a expressão de abatimento
que os negros têm em Paris, mesmo no verão, quando há
um sol que nunca deveria deixá-los com saudade.
Fiz uma parada no Quai de la Rapée, onde mora Yolande,
em frente ao Sena. Já fazia um ano que ela era uma
parisiense e que se gabava da nova vida para mim. Ela se
atrevia a pegar o ônibus e já tinha visitado o Palácio de
Versalhes. Procurei o corredor que levaria ao seu
apartamento, vi apenas um pequeno bistrô, dentro do qual
havia um cliente de boina com cotovelos sobre o balcão.
“Srta. Yolande!”, perguntei à mulher que estava servindo.
Meus filhos, intrigados, aguardavam.
“Srta. Yolande? Segundo andar, à esquerda. A entrada é
por aqui.” Compreendi que, para entrar no apartamento,
era obrigatório passar pelo bistrô. Apertei o interruptor em
vão. Às cegas, procurei os degraus: na escada sinuosa,
nossos pés batiam contra ladrilhos soltos que deveriam
protegê-los. Por fim, entendi que estávamos no segundo
andar, mas, sem distinguir entre esquerda e direita, bati na
primeira porta que apareceu. Uma senhora já de certa idade
informou:
“As antilhanas? Dois apartamentos para lá.”
Imediatamente depois fechou a porta na minha cara, e eu
me encontrei outra vez no escuro. Gritei:
“Srta. Yolande! Srta. Yolande!”
Entreabriu-se uma porta. Uma garota que eu não conhecia
me disse para entrar. Depois que estávamos todos dentro, a
sala ficou lotada tal como a Place de l'Étoile no Catorze de
Julho. A garota olhou para nós com espanto:
“Estou à procura de Yolande, venho de Marselha, gostaria
de vê-la antes de partir.” A garota queria nos dizer para
sentarmos, mas ela só tinha duas cadeiras, eu via o seu
constrangimento. Soube que Yolande tinha dois dias de
folga, que ela partira para Le Havre no fim de semana da
Assunção. Soube também que eram três a compartilhar o
cubículo e que, sempre que possível, uma delas ia embora.
Fiquei admirada que as visitas tinham que passar pelo
bistrô, a garota me disse que era assim e que muitas vezes
o proprietário, dependendo do seu estado de espírito, dizia
que uma das inquilinas estava ausente, apesar de não ser
verdade. Ela concluiu, dizendo:
“Não se pode ter tudo, trabalho e moradia. Mas um dia a
gente chega lá, tenho dinheiro suficiente para pagar as
luvas, me prometeram um quarto no Faubourg Saint-
Antoine, apenas cento e cinquenta mil francos, depois terei
apenas nove mil de aluguel por mês.” Para ela, era uma
dinheirama. Eu disse que era ótimo e fui em direção às
escadas com as crianças. Dessa vez, a garota iluminaria
nossos passos com uma lanterna. Eram dezessete horas. A
essa altura, o Quai de la Rapée já estava deserto.
Caminhamos até chegar perto da Gare de Lyon, tinha que
comprar as passagens para o retorno.
Pois é, Carolina, a hora de partir havia chegado, só me
restava colocar meu manuscrito e minhas ilusões na mala,
retornar para a minha saudosa Marselha e curtir o fim das
férias ou recomeçar o trabalho. Desde já tenho que pensar
na volta às aulas.
Hoje à noite, enquanto lhe escrevo, as crianças, mortas de
cansaço, mas felizes, estão dormindo, e Solange voltou da
rua: é uma hora da manhã. Ela se livrou dos sapatos de
salto alto e me disse:
“Então, e a maquiagem, minha querida? Fisgou alguém?”
“Sim”, respondi, “um padre congolês.” Solange esqueceu
que estava cansada e não pôde segurar a gargalhada, que,
de tão forte, acordou as crianças. Sua alegria me contagiou
e, enquanto ela me ajudava a arrumar as malas, esqueci a
tristeza que tomara conta de mim no final daquele dia
memorável.
A viagem que preparara por tanto tempo tinha chegado
ao fim, minhas férias estavam terminando, só me restava a
alegria dos filhos e, no fundo da sacola de compras, minhas
folhas intactas que agora eu levava de volta para o ponto
de partida.
Como o retorno está marcado para amanhã, vou
descansar um pouco e esquecer que o mundo é estranho.
Solange, do quarto, meio adormecida, continuava falando
comigo:
“Sabe, não é para desencorajar você, mas não é bom
fazer projetos para as coisas que você escreve ou para o
que planeja escrever! Melhor um bom emprego que lhe
renda uma grana! Agora, ninguém a conhece, você só vai
gastar dinheiro! O que você acha: e se nós duas fôssemos
proprietárias de um pequeno restaurante? Eu entraria com a
grana e você me ajudaria! As pessoas comem todos os dias.
Prepararemos linguiças merguez para os pieds-noirs,
rolinhos frescos para os vietnamitas e caldo de peixe para
os antilhanos! Seria demais! Mas não é a mesma coisa com
os escritos, você sabe! Não lemos todos os dias, não
compramos livros o tempo todo! E são necessárias noites
em claro para escrever um! Enquanto que o rango! Todo
mundo tem que comer! Não fique presa no seu sonho.” Ela
bocejava, e o resto do seu discurso se perdeu na escuridão.
Essas duras verdades me fizeram um bem imenso e,
Carolina, nesta noite, estou convencida de que Solange está
certa.
16

16 de agosto

Anteontem, meu marido estava me esperando na estação,


as crianças monopolizaram a sua atenção para contar
desordenadamente tudo o que se passara: os Grands
Boulevards, o padre negro e o mistral que ultrapassamos no
caminho. Durante o dia inteiro de ontem evitei falar da
minha busca por editores. Mesmo assim, ele perguntou
durante o almoço:
“Então, minha escritora, tudo bem? Fui dar uma volta em
Cannes com uns amigos, vi todo mundo dos livros e do
cinema se bronzeando nas praias! Melhor seria ter passado
pela Riviera para encontrar um editor!”
“Pois é, sabe como é, tudo está fechado em Paris nessa
época do ano!” Eu estava quase contente de que todas as
editoras estivessem fechadas. Assim, não precisaria lhe
dizer que meu texto havia sido recusado e ouvir na
sequência o seu comentário:
“Olha só, eu estava certo!”
Verdade! Ele está certo, Carolina! Solange está certa! Mas
agora que essa ideia entrou na minha cabeça, não tenho
como me livrar dela! Quando sacudo a poeira dos tapetes
das patroas, até consigo esquecer, mas logo depois me vejo
procurando um caderno velho para encher de palavras. Mas
hoje, nem tem como: a máquina de lavar está abarrotada
de roupa suja, meu marido admitiu que não sabe usá-la! Os
armários precisam de uma arrumação colossal, tem poeira
acumulada em todos os cantos. As batatas que havia
deixado num caixote começaram a brotar e as paredes da
geladeira estão cobertas de gelo. Sair de férias é muito
cansativo e retomar o curso normal da vida também é. O sol
continua escaldante e as cigarras cantam feito loucas!
Na realidade, queria descobrir por que ele foi para
Cannes, pensava que ele não saberia o que fazer longe da
sua tribo. Preciso achar um jeito de ele desembuchar, mas
antes tem um monte de coisas a serem feitas em casa! E
ainda tem as crianças num agito só, já se coçando para ir à
praia. Com o bolso vazio depois de Paris, será preciso
esperar o final do mês para que nos aproximemos da mais
ínfima enseada.
18 de agosto

Um sujeito estranho veio aqui em casa procurar o meu


marido, ele estava de calças de lona branca e uma camisa
rosa! Soube que ele era de Guadalupe e que acabara de
chegar a Marselha, não quis me dar mais satisfações,
esperou duas horas do lado de fora, pois não fui capaz de
convencê-lo a entrar e se sentar. As crianças, tão intrigadas
quanto eu, ficavam à sua volta, o que o deixava
incrivelmente desconfortável.
Por fim, o vi partir a passos largos, ele tinha notado o meu
marido ao longe e não teve paciência para esperar mais. O
meu marido literalmente o empurrou para dentro de casa.
Cabisbaixo, o jovem não tirava os olhos das sandálias de
couro que calçava. Eu disse:
“Mas o que que ele tem?”
Meu marido, sarcástico, respondeu:
“É um imigrante clandestino que encontramos em
Cannes.”
“‘Nós' quem?”
Compreendi o porquê do ar misterioso do meu marido
desde que retornei quando ouvi:
“Pois é! Lembra, eu disse que estava em Cannes. Era para
desembarcar uma família martinicana que estava
chegando: a mulher de um carteiro e quatro filhos, a mulher
do camarada que me trouxe…”
“E aí?”
“E aí é que este rapaz veio clandestinamente no Irpina! Eu
estava no cais quando o vi com um grupo de militares que
também tinham saído do navio, um deles nos informou
sobre a situação do garoto. Não era brincadeira, a polícia e
os funcionários da alfândega conferiam os passaportes a
cem metros de onde estávamos. Os soldados disseram a
mim e a meus colegas que, durante a viagem, de gozação,
deram comida e roupas ao rapaz. Tinham mesmo o ajudado
a descer até o barco de desembarque. Agora que estavam
na França, se deram conta de que o passatempo já havia
durado tempo demais. O clandestino se aproximou e pediu
para atravessar o cais conosco. Ele pegou pela mão um dos
filhos do meu camarada e, sem pressa, foi em direção ao
ancoradouro. Eu disse que, se ele pudesse se safar, melhor,
mas que não era para nos causar problemas. Ralhei duro
com ele, as pessoas observavam, ainda bem que eu falava
em patoá. Como você pode imaginar, estávamos lá desde
as oito da manhã, os funcionários da alfândega já haviam
nos visto, o pessoal da polícia provavelmente já tinha
notado quem estava à espera dos passageiros. Pensei que
ele, com aquela camisa rosa, não iria muito longe. Meu
camarada tirara o colete cinza, estava muito quente, o
Irpina tinha chegado lá pelas onze horas…”
“E aí, pai? O que aconteceu depois?”
As crianças se aproximaram, observavam o jovem que
encarava sem trégua as sandálias. Tinha lhe trazido uma
xícara de café e uma fatia de pão, ele comia sem nos olhar.
Certamente estava rememorando a cena, um filete de suor
escorrendo na testa. Um passageiro clandestino! Os
meninos não podiam acreditar no que ouviam! Um herói de
romance de aventura em carne e osso, e na casa deles.
Senti que queriam enchê-lo de perguntas, seria uma
indiscrição, talvez mesmo um calvário para o rapaz. Mandei
a criançada embora, meu marido continuou:
“Um soldado que já havia passado pela alfândega gritou:
‘Senhor! Senhor! Empreste o seu colete para esse doce de
pessoa, caso contrário ele vai direto para a delegacia de
polícia'. O meu colega passou o colete para ele, não
precisou insistir, o garoto o vestiu na hora e fez o sinal da
cruz…”
Agora entendia por que aquele jovem de camisa rosa
estava sem jeito, ele estava emocionado, tinha largado o
copo e estava pronto para desabafar, levantou o rosto e
disse:
“Eu estava resignado, o mais difícil era sair do
ancoradouro, as crianças da moça estavam perto de mim,
peguei uma nos meus braços e, ao passar perto dos
policiais, falei: ‘Então, você não ficou enjoada com a
viagem?'. À distância, os soldados me observaram
atravessar a cancela, os pais da criança que eu carregava
estavam com os funcionários da alfândega, que marcavam
as malas já examinadas, deixei o garoto e fui para a
calçada, não sabia para onde ir. Perguntei ao seu marido o
caminho para Fréjus. Eu tenho, ou melhor, tinha um irmão
em Camp Robert. Os militares me levaram para fazer um
lanche perto da estação de Cannes, e seu marido me deu
uma passagem de trem para Fréjus, foi gentileza dele me
deixar o endereço de onde morava dizendo para aparecer
um dia.”
Pensando que o dia tinha chegado rápido, perguntei:
“E o seu irmão?”
O rapaz pegou um pedaço de papel do bolso e continuou:
“Ele está em Bourges. Foi o que me disseram quando
cheguei a Camp Robert. Bourges é longe daqui?”
Ele era uma incógnita. Eu queria saber por que ele se
atreveu a sair ilegalmente, sem uma passagem, sem malas,
talvez sem nenhum projeto…
Ele respondeu:
“Eu queria ser militar, mas não tinha vaga para
antilhanos,[20] então não podia sair de lá. A fábrica onde
trabalhava reduziu a equipe, solicitei a ida para um centro
de aprendizagem acelerado, mas fui reprovado nos exames;
me disseram que na França era menos difícil passar. Por
isso, vim tentar a minha sorte aqui!”
“Que sorte! Mas o moço não percebe as dificuldades que
vai ter para se adaptar, não tem dinheiro, e Bourges não é
ali na esquina! E mesmo que fosse aqui perto, acha que o
seu irmão poderia, sem estar ciente da sua chegada, de
uma hora para outra, fazer algo para ajudá-lo?”
Minha amiga Carolina, quando estamos na lama, só as
necessidades mais urgentes importam: a perspectiva de
uma vida cor-de-rosa não é suficiente para amenizar quando
necessitamos urgentemente de ajuda.
Meu marido tinha me encontrado na cozinha, ele não
sabia o que me dizer: eu estava mais incomodada do que
zangada, e ele falou, coçando a cabeça:
“Que história! Nunca pensei que fosse vê-lo de novo, e ele
veio: o que vamos fazer?”
“Vamos dar uma camisa limpa e também uma calça, a
dele provavelmente era branca antes, mas agora… Vamos
dar comida para ele e, enquanto ele come, você pensa
numa solução!”
Meu marido parecia contente, eu tinha dado o braço a
torcer.

Em Fréjus, os militares deram um endereço no Harlem.


Depois de comer, ele quis ir para lá. Era o lugar mais
propício para uma batida policial, todos os maus elementos
de Marselha estão lá, de um lado a outro. O clandestino
parecia ignorar isso, tinha um documento de identidade,
mas não um comprovante de residência, supostamente
mora na Rue Frébault em Pointe-à-Pitre. Eu não podia adotá-
lo, a minha família e o meu fim de mês zerado já eram
demais! Mas também não podia, sem ficar com a
consciência pesada, deixá-lo ir ao Harlem: ele não tinha
cara de malandro.
Enquanto pensava no que fazer, eu o vi saindo do
banheiro, para onde meu marido o tinha levado, bem
barbeado e bem penteado. Ele parecia um pouco mais
confiante do que antes.
“A senhora é como a minha mãe, Deus lhe devolverá em
dobro!”
A mãe dele! Hum! Hum! Deus tinha inspirado o meu
marido, mas eu continuava contrariada! Meu marido sabia o
que se passava na minha cabeça e me disse na frente do
garoto:
“Vou procurar o endereço de um abrigo noturno, vou levá-
lo para a cidade e depois vemos no que dá…”
O rapaz me agradeceu de novo e pulou para a garupa da
mobilete do meu marido. Uma das crianças que aguardava
na janela gritou:
“Pronto, o clandestino do pai se foi!”
Esperei meu marido voltar tarde da noite, ele encontrou
um abrigo para o garoto de camisa rosa. Só dá para ficar lá
de noite, de manhã cedo ele tem que sair para se inscrever
na Agência Pública de Mão de Obra. Soltei um suspiro de
alívio ao saber que o sujeito tinha onde pernoitar. Todo dia a
Divina Providência alimenta os pássaros, torço sinceramente
para que esse rapaz não seja esquecido por ela.
18 de agosto de 63

Cécile está grávida, ela escreve e conta como se sente feliz


por estar à espera de um filho, pois será um filho, ela tem
certeza. Também quer saber se encontrei uma editora. Essa
história começa a me incomodar. Adoraria esquecer isso, de
uma vez por todas, mas o que não consigo esquecer é que
terei que pensar na volta às aulas e quanto isso vai me
custar. Já estou cogitando encontrar um emprego, pois
gostaria que as crianças tivessem os famosos aventais de
náilon que tanto cobiçam.
20 de agosto

O rapaz clandestino voltou de tarde pedindo um


comprovante de residência para se inscrever na agência.
Ainda nos implorou que fizéssemos uma carta de
recomendação, para poder entrar num centro de
aprendizagem intensiva, e nem precisou pedir duas vezes,
ficamos muito felizes em identificar nele boas intenções. O
garoto também escreveu ao irmão: ele acha difícil dormir no
abrigo noturno, é pior que no barco. Parece que dois
hóspedes do estabelecimento brigaram bem ao lado da sua
cama, a polícia teve que vir e restabelecer a ordem. Ele está
aprendendo tudo na marra e já sente saudades de onde
veio. Percorreu a pé os dez quilômetros que nos separam da
cidade, ele não tem mais dinheiro. E, mesmo que tivesse,
admitiu que não sabia como usar as passagens de ônibus.
Evidentemente ele não pegou o caminho mais curto.
Durante o trajeto, perguntava às pessoas “O ônibus 9 passa
por aqui?”, e ia refazendo o zigue-zague do 9. Disse que
está começando a se acostumar: na primeira vez, também
tinha vindo a pé. Eu não sabia desse detalhe, o que me
chamou a atenção no rapaz, ele poderia ter chegado a
Marselha e afundado no submundo, mas não, preferira
seguir um ônibus até o fim da linha, onde uma família
parecida com a dele podia lhe dar alguns conselhos.
Quando nos contou o que fizera, viu em nosso sorriso que
havia se tornado um de nós. Então, velha amiga Carolina, fiz
o que gostaria que alguém fizesse um dia para um dos
meus filhos, ofereci-me para acompanhá-lo amanhã até a
agência. Meu marido só poderia levá-lo lá daqui a uma
semana, ele tem que ganhar o nosso pão de cada dia. Não
sei se o garoto se atreveria a tentar ir sozinho; suspeito que
ele poderia passar pelo local sem jamais ter coragem de
entrar, por timidez ou por medo. Trata-se do seu primeiro
contato direto com europeus. Havia, é claro, muitos policiais
em Guadalupe, mas com eles não tem como ter algum tipo
de relação amigável, mesmo que sejam vizinhos de porta.
Havia também dois padres brancos no seu bairro, mas ele
acredita que são canadenses. Conta ainda que, lá de onde
veio, o europeu do pós-guerra virou alguém muito
problemático, um pouco racista e arrogante. Os que vinham
para a colônia antes da enxurrada de 39 eram mais
compreensivos e até protetores. Quando não se sente
observado, o rapaz fala solto; acima de tudo, tomo cuidado
para não o questionar; se o faço, ele olha para os pés e
fecha a boca; entro e saio de um cômodo para outro
enquanto ele fala, o que o deixa mais à vontade. Expliquei
que felizmente, na França, um funcionário de agência é um
funcionário de agência, um pouco lamuriento em Marselha,
é verdade, mas, de qualquer forma, não é “o europeu do
guichê” de onde viemos, que se acha descendente direto do
Olimpo. Ele ainda não se permite acreditar nas minhas
palavras. Decidi então levá-lo amanhã.
22 de agosto de 1963

Quando cheguei em casa ao meio-dia, meu caçula me disse


de modo triunfante que o moço da luz tinha passado e que
ele lhe explicara que a mãe tinha ido se encontrar com o
clandestino do pai. Tive que proibi-lo de usar esse termo,
pois o garoto não é mais clandestino, ou só o é na cabeça
dele. Consegui um emprego de estoquista para ele numa
fábrica de água com gás. É a época em que todo mundo fica
com sede, e mais funcionários são requisitados nos
estabelecimentos onde se engarrafam bebidas refrescantes.
Entramos na agência de manhã bem cedo. O rapaz seguiu
direitinho minhas instruções e ficou me esperando lá no
terminal do meu ônibus. Na mesma hora notei que era ele
por causa da camisa rosa. Ao longo do caminho que nos
levava à casa da esperança, tentei em vão deixá-lo mais
confiante. Ele continuava olhando para os próprios pés.
Disse-lhe que era preciso relaxar, pois, apesar do seu
tamanho, seria difícil que alguém o contratasse com aquele
ar triste.
Não deu certo. Depois de ficarmos um bom tempo na fila,
finalmente tinha chegado a nossa vez de entrar na agência.
Apesar da amabilidade do funcionário, o garoto de rosa não
conseguiu pronunciar uma sílaba sequer. Logo tomei conta
da situação, explicando que ele havia acabado de chegar,
que desconhecia as formalidades para se inscrever nas
agências. Mas não podia dizer que ele tinha medo dos
europeus e que esperava ser tratado de cima para baixo
como nas Antilhas.
Mais do que tudo, pedi ao funcionário para achar uma
solução rápida para o rapaz. O moço do guichê foi ótimo!
Ele coçou a orelha, olhou os registros por um momento e,
no final, disse:
“Olha só, eu tenho algo aqui. Vá a essa fábrica com este
papel, estão procurando gente lá! No verão, é possível
trabalhar até doze horas por dia.”
As mãos do garoto de rosa tremiam, ele lia e relia o
retângulo de papel que o funcionário lhe dera. Sem dizer
uma palavra, estendeu-lhe a mão grande. O funcionário,
que já tinha visto de tudo, simplesmente disse:
“Boa sorte! Se não der certo, venha me ver de novo!”
A minha missão não tinha acabado, subi as escadas que
levam ao setor de orientação profissional. Curiosamente, e
sobretudo para a sorte do meu protegido, todas as pessoas
com quem lidei naquela manhã eram encantadoras.
Um negro havia nos precedido, o que me permitiu dizer ao
rapaz:
“Veja, nós não somos os únicos!”
A mulher sorridente que nos recebeu tinha um rosto
amável, o que não impediu o meu garoto de olhar para os
pés. Eu começava a me acostumar com aquilo; expliquei o
desejo do rapaz de se inscrever em um centro de
aprendizagem, onde ele poderia morar. Sem pestanejar, a
funcionária lhe disse:
“A seleção será realizada em setembro, dá para chegar na
hora, não terá que esperar muito tempo, o estágio
começará logo depois, não sei aonde vão levar o senhor,
preencha este formulário!” Para meu espanto, notei que a
caligrafia dele era bonita e soube que já tinha carteira de
motorista.
A cara dele iluminou-se com um sorriso feliz quando lhe
disse que íamos imediatamente para a fábrica. Mudamos de
ônibus e de bairro outra vez.
Apresentei o documento que meu protegido tinha me
dado ao setor de recrutamento, eu o sentia febril e ansioso.
Fazia tempo que o expediente tinha começado, mas aquela
era a manhã do seu dia de sorte, pois era precisamente o
chefe do setor quem estava arquivando os registros dos
recém-chegados. Digo-lhe que vivemos bem longe da
cidade e que “meu jovem irmão” tinha acabado de chegar,
que era o seu primeiro emprego na França. O chefe tirou os
óculos, parecia interessado, deu ordens a uma secretária:
“Passe-lhe um formulário, ele começa agora mesmo! Ele
bate o ponto de tarde. O senhor só fará duas horas nesta
manhã! Tudo bem assim?”
O rapaz balbuciou algumas palavras, seguindo o chefe na
sequência, e as portas móveis de um imenso armazém
barulhento se fecharam atrás dele.
Claro que não foi hoje que minha família almoçou um bom
cozido. Fiz uma massa para poupar tempo, e os bifes
ficaram um pouco malpassados demais. À mesa, ninguém
fez careta, ficamos todos muito ocupados falando do garoto
de rosa e, ao final da refeição a jato, estávamos alegres
como se tivéssemos ganhado na loteria. A consciência é
algo danado, Carolina! Hoje a minha me faz refletir, tenho
quase vergonha de me sentir tão leve, embora minha
carteira esteja vazia. Digo: “Meu Deus, que isto seja alegria,
e não orgulho, caso contrário meu ato não faria sentido”.
Quanto ao meu marido, sei que ele sente o mesmo que eu,
pois nem sequer me disse: “Uma massa, neste calor!”.
30 de agosto

O irmão do rapaz veio de Bourges, conseguiu uma licença,


foi direto lá em casa. Eles são incrivelmente semelhantes,
mas ele não parecia orgulhoso ao falar do caçula.
Tranquilizei-o quanto ao comportamento do rapaz e
acrescentei que o “nosso clandestino” tinha trabalhado
duro. Ao que parece, está fazendo jornadas de catorze
horas, enviou-nos uma carta, que mostrei ao militar. Ele
ficou mais sossegado, mas ainda murmurava:
“Se ele tivesse sido pego na chegada e jogado na prisão,
minha mãe teria morrido; além do mais, ela está doente
desde que ele partiu, ela viu o jeito como ele foi embora, só
com a roupa do corpo. Ela está enviando a mala dele para o
seu endereço.” O garoto, que largara o rosa de mão, pediu
em sua carta que o ajudássemos a encontrar um quarto, ele
chega tarde demais ao abrigo para poder entrar à noite,
então combinou com um vigia noturno de compartilhar a
guarida; mas é temporário, essas coisas são proibidas pela
administração. Ele acrescenta:
“Eu estava errado, nem todos os europeus são
inacessíveis, eu não sei por que, de onde eu vim, eles são
assim…”
Ainda bem! E que essa euforia dure bastante!
4 de setembro de 1963

Fazia alguns dias que eu estava tranquila, mente vazia,


ainda hão de surgir as preocupações com a chegada do
inverno e a volta às aulas. Ontem mesmo eu estava
tomando banho… de petróleo! Havia tanta gente torrando
no sol que tive de esperar anoitecer para colocar um maiô.
Quando entrei naquela substância cinzenta que era o
motivo da alegria de tantos veranistas, já estava frio,
apesar do sol incansável que continuava a queimar os
fanáticos pelo bronzeamento. Uns minutos depois, a duras
penas, me sentei num rochedo recém-desocupado por um
casal. Percebi que estava toda pegajosa e imediatamente
compreendi por que os banhistas não foram nadar ali.
Consequência de uma maldição que ainda desconheço,
havia uma onda que retinha uma mancha de petróleo no
mesmo lugar. Voltei à praia e ouvi uma mulher gorda
explicando à sua família:
“É o que dizem, todos os petroleiros de Mourepiane
despejam seus dejetos na corrente perto do rochedo! Que
beleza, hein! Não tem como sair cheirando bem depois de
nadar por ali…”
Só me restava voltar para casa o mais rápido possível,
entrar no banho e me esfregar com toda a minha força;
antes, tinha dois ônibus para pegar com crianças
superexcitadas e cansadas, mas satisfeitas. Eu é que não
vou feder para sempre a depósito de petróleo. Carolina, a
verdade é que, quando entramos na água nos arredores de
Marselha, temos que ficar com um pé atrás! Podemos
mergulhar em Pointe-Rouge e trazer para a superfície todos
os tipos de latas de conserva vazias, gatos mortos, capazes
de deixar com nojo os mais apaixonados!
É preciso estar por dentro e conhecer os lugares que
ainda não estão infestados de óleo queimado ou lixo, ou se
contentar apenas em se bronzear! Bronzear! Maldita
palavra que faz os brancos delirarem! Eu, que sou de
bronze, evito cuidadosamente me expor ao sol com medo
de uma “insolação”, fico sempre estarrecida com a visão
das pessoas torrando desse jeito. É claro que há sóis e sóis!
Chamo tudo isso de estar tranquila, e durou até hoje de
manhã, quando um cavalheiro, impecavelmente vestido,
com uma esplêndida indumentária de verão, veio me visitar.
Fiquei surpresa quando ele anunciou que era o agente
literário da Rue Saint-Sulpice. Ele estava de passagem por
Marselha e veio me ver por curiosidade. Já eu, descascava
batatas, os meninos queriam comer batata frita, e bastante,
diziam. Com uma mão, abri a porta, segurando firme uma
batata com a outra. Ele parecia surpreso quando lhe disse
que a escritora que estava procurando era eu mesma, mas
seu espanto não durou muito. Disse-lhe que não tinha um
tostão para gastar numa aventura literária que talvez não
desse em nada.
Ele então me perguntou o que eu estava fazendo naquele
momento. Respondi:
“Hum! Hum! Estou escrevendo para a Carolina!”
“Quem é Carolina?”, ele perguntou.
Minha cara, desde que comecei a traçar estas linhas,
sempre esqueço o nome da sua cidade, mas lhe disse:
“Uma sul-americana, sabe? O senhor gostaria de ver
algumas páginas?”
Ele mergulhou na leitura dos meus rabiscos enquanto eu
fazia um ponche, minha presença foi esquecida, mas vi que
estava sorrindo, fiquei envergonhada, e ele finalmente
exclamou:
“Que engraçado! Não parece com nada que eu já tenha
lido! Temos de preparar um manuscrito!”
Ele não estava de brincadeira, até disse para agilizar
aquilo, mas não estou com pressa, pois será a mesma coisa
de sempre, sem grana para uma empreitada dessas, não
muda nada enviar agora ou daqui a dez anos…
8 de setembro de 1963

Não faz nem quinze dias que nosso protegido vem se


europeizando, sua postura já está até mais destemida. Ele
veio nos ver e me trouxe um ramo de flores. Está contente
por ter encontrado um quartinho no subúrbio perto da
fábrica onde trabalha. Notei que não fica mais olhando
fixamente para os pés, agora fala de projetos, conta sobre o
que está acontecendo no galpão em que lida com garrafas.
Mostrou-nos uma foto em que havia uma jovem de tipo
mediterrâneo e disse, sorrindo:
“Vamos ao baile juntos, ela trabalha perto de onde moro,
seus pais são armênios!”
Quando partiu, meu marido disse:
“Não tem mais por que se preocupar, não há nada melhor
para um moço como ele superar as dificuldades do que uma
menina nascida aqui na cidade que lhe estende a mão…”
É claro, eu não partilhava totalmente da opinião, mas
melhor isso para o rapaz do que a corja do Harlem.
10 de setembro

Dei uma volta pelas lojas e percebi, apavorada, que preciso


comprar tanta coisa que, mais cedo ou mais tarde, terei de
procurar um emprego, apesar dos clamores do meu marido.
12 de setembro de 63

A Feira Internacional abrirá as portas por doze dias, mais de


um décimo das mulheres vai correr para o local, um bom
punhado de estudantes também, todo mundo em busca de
um trabalho não muito difícil e temporário. Minha
compatriota de Guadalupe que conhece muitos esquemas
me disse que era ajudante de cozinha num restaurante na
feira, um baita emprego, sem madames, sem patrões
fungando os pratos para ver se ainda cheiram a peixe.
Mergulhamos os pratos na água ensaboada, depois
enxaguamos, frequentemente eles secam sozinhos. “O mais
engraçado”, ela me disse, “é que são os mesmos patrões
que vêm correndo comer naqueles pratos mais do que
suspeitos.” “E então”, ela acrescentou, “é hora de eu ter um
emprego, não importa onde; como lojista, como vendedora,
ou como estoquista.” Eu vou amanhã, não é por um sonho
que eu sairei de casa, mas por necessidade. Não acredito
que haja muitas mães de família deixando suas crias por
capricho quando estão numa situação como a minha. De
qualquer forma, não há outra saída, tenho duas mãos e
devo me servir delas, só digito com seis dedos, talvez seja
por isso que a minha papelada não me alimenta, então vou
usar os meus dez dedos, minha pobre Carolina, e a sério,
para não ser apanhada de surpresa, o outono já está
batendo na porta. Entre dois dias quentes, uma rajada de
vento mais fria anuncia que o verão está indo embora.
Arbustos de giestas já não têm flores e faz um bom tempo
que as cerejas são vistas apenas em caixas, devidamente
cristalizadas. Há uvas por todo lado, a época da colheita
está chegando; mais uma vez, esse maldito inverno vai
deixar tremendo a minha carcaça, que não consegue se
acostumar ao frio. Já é hora, já é hora… se eu pudesse ficar
em casa enquanto o mistral faz o povo da Provence
caminhar curvado, diria que sou uma privilegiada. É por isso
que, enquanto ainda há tempo, preciso planejar a compra
de calçados a mais e casacos confortáveis… Vou sair para
batalhar o pão de cada dia, como se costuma dizer aos
homens, com o suor do meu rosto. É necessário, e fico
atormentada ao me sentir inútil, visto que posso ganhar três
francos por hora. Irei à feira. A propósito, não sou a única:
os negros que vêm aos montes não devem se iludir, um
Henri Salvador ou uma Joséphine Baker nascem a cada
vinte anos, e é preciso ter o estômago forte para não se
perder no turbilhão. Com a chegada do outono, todas as
mães negras deixarão suas casas, seus quartos de hotel,
colocarão os filhos na cantina da escola, na creche, irão
para a fábrica e para a casa das patroas, ao menos em
Marselha é assim. As fábricas de tâmaras abocanharão uma
grande parte, as fábricas de biscoitos ficarão com outro
tanto, e quando todas essas mulheres tiverem acumulado o
suficiente para enviar um pacote para os que
permaneceram na terra natal, elas terão o orgulho, a
coragem ou o atrevimento, diga como quiser, Carolina, de
escrever aos seus: “Eu estou bem, encontrei uma mina de
ouro”. Então outros mais virão em barcos cheios, vindos de
todos os portos e, por sua vez, entrarão na engrenagem e
começarão a pensar nos invernos que sempre duram e
nunca acabam. Não muda nada escrever para você, mas é
bom poder compreender por que no inverno minhas irmãs
têm o ar mais triste.
Há também uma coisa que notei e que não para de me
surpreender: quando uma francesa daqui, seja qual for sua
posição social, chega às Antilhas ou a outro país do Terceiro
Mundo, ela está predestinada a uma vida melhor. As
camponesas tornam-se secretárias executivas, as faxineiras
são imediatamente alçadas ao patamar de mulheres de
respeito. Aquelas que só tinham visto um banco em fotos
logo começam a trabalhar em um; se não sabem escrever,
contam as notas. Por isso, dizemos a nós mesmas, no
momento em que soubermos falar bem francês, ao chegar à
Europa seremos vendedoras nas lojas de departamento,
seremos secretárias se soubermos escrever corretamente
uma carta. Mas é tão longo o caminho entre o sonho e a
realidade que nunca deixarei de ficar perplexa.
Pois é, tudo isso, somado à chegada dos ventos mais
frescos, me deixa para baixo e, para escapar desse
sentimento, nada melhor que a Feira de Marselha.
14 de setembro de 63

Estava na agência de emprego no Parque Chanot. Os


guardas me disseram para voltar no dia 17, estarei lá sem
falta.
16 de setembro

Nosso protegido está radiante, acaba de ser chamado para


fazer um teste de aptidão física na Rue Sylvabelle, sua
alegria é contagiante.
17 de setembro

Caminhei por todo canto na cidadezinha que se tornou o


Parque Chanot. Um guarda me pôs para dentro porque foi
com a minha cara, disse-me para tentar encontrar um
trabalho. Enquanto isso, uma enorme fila composta de
mulheres de todas as idades esperava pacientemente que a
agência de empregos solicitasse os seus serviços. Quando o
moço me acenou, um alvoroço surgiu no meio da multidão:
“Eu estava aqui antes!”
“Faz três dias seguidos que estou vindo!”
“Já vimos esse filme!”
Privei-me de responder, o moço corria o risco de cair em
maus lençóis se seu gesto provocasse uma pequena guerra.
Ele gritou bem alto:
“Ela não vai entrar na fila, ela já tem um estande! Vá logo,
seus familiares chegaram ao estande das Antilhas!”
Eu não tinha parentes feirantes, mas comecei a procurar o
estande das Antilhas, de um extremo a outro da feira;
felizmente tinha lembrado de trazer comigo um par de
sandálias a mais, a moda das bolsas grandes pelo menos
serve para alguma coisa, posso enterrar meus saltos altos
ali a qualquer momento. Parei diante dos demonstradores
de trituradores de legumes, dos vendedores de iogurte, dos
sujeitos que manuseiam máquinas agrícolas, dos livreiros e
dos comerciantes de café, tudo em vão! Dei uma volta pelos
estandes dos Estados jovens, tentei vender meu peixe para
um diplomata negro, mas acabei ouvindo que a maioria dos
países delegava representantes versados no que era
exposto. Fui ainda aos apicultores e horticultores, não tinha
o sotaque para falar sobre mel e lavanda da Provence.
Depois tomei uma coca-cola na parte de fora de uma
grande cervejaria, aproveitei a oportunidade para perguntar
ao garçom se seu estabelecimento contratava ajudantes de
cozinha ou vendedoras, “o quadro de funcionários está
preenchido”, ele respondeu, “mas dê uma passada lá pelos
lados das barraquinhas de comida, nos vendedores de
sanduíche”. Apresentei-me aos comerciantes de presunto
de Auvergne, aos vendedores de charcutaria da Bretanha,
aos expositores de salames de Lyon. Andei em círculos
perto das barracas de crepes à maneira normanda e dos
vendedores de vinhos leves. Eles nem sequer me olhavam e
diziam: “Não, ninguém”. Acontecia que outras mulheres que
como eu procuravam um emprego se deparavam comigo e
me perguntavam:
“Então, a senhora encontrou alguma coisa?”
Eu dizia que não, e tratávamos de encorajar umas às
outras, talvez daqui a pouco… Talvez ali nos comerciantes
magrebinos!… É provável que nas cervejas falte gente
amanhã de manhã… A gente sabia que eram apenas
palavras, mas eram pronunciadas para esquecer todos os
quilômetros atravessados nas alamedas poeirentas. Apoiei-
me então contra um grande plátano em busca de sombra. E
ali, atrás daquela árvore enorme, ouvi homens falando
crioulo, um deles dizia:
“Caramba! Gostaria tanto de uma antilhana no estande
neste ano.”
Prendi a respiração, pois o outro continuou:
“Elas não são raras por aqui, faz uma semana que vou
para cima e para baixo na feira e já vi uma boa dúzia
procurando emprego.”
Deixei que partissem e os segui à distância para ver onde
se localizava esse estande providencial, no qual, enfim, se
requisitava a presença de uma negra. Os dois homens
entraram numa barraca de madeira ainda bagunçada, uma
mixórdia de escadas, caixotes e caixas de todos os tipos
atulhando o espaço.
Sem medo, apresentei-me e fui logo dizendo:
“O senhor está à procura de uma vendedora? Já tem
uma?”
Meu compatriota abriu um sorriso largo e exclamou:
“Não temos! A senhora conhece alguém?”
Mesmo surpresa, consegui dizer que queria trabalhar! E o
homem olhava para as minhas luvas e para o meu traje
elegante! Eu ostentava o meu vestido de verão mais lindo.
Ele disse:
“Pensei que a senhora tinha um estande seu, eu a vi
passar mais cedo, mas nem por um segundo suspeitei que
estivesse à procura de emprego. Qual é o seu nome? Talvez
eu conheça a sua família.”
Ele foi simpático comigo, finalmente um empregador me
pergunta quem eu sou! Em seguida, disse que eu tinha que
começar naquele instante. Desse jeito, abriu-se um novo
parêntese neste ano que caminha para o fim.
18 de setembro

Durante doze horas, falei sem parar, será assim em todos


os doze dias? Não sei quantas vezes repeti:
“Uma olhadinha só, senhoras e senhores! Deem uma
olhadinha nas especiarias. Montem o seu estoque de
especiarias!”
Repetia essas palavras em frente a uma montanha de
tubos cheios de ingredientes com nomes sugestivos:
baunilha de Guadalupe, pimenta-da-jamaica, curry da Índia,
açafrão de Madagascar, harissa da Argélia, canela da
Martinica. Em Marselha, pode-se encontrar essas coisas por
toda parte, mas o entusiasmo com as feiras é tamanho que
dá para passar para a frente qualquer coisa a quem quer
que seja, desde que se saiba vendê-la. Expliquei umas mil
vezes como fazer arroz com curry aos “clientes”, que,
depois de me ouvir, deixavam a mercadoria, dizendo que o
seu fígado não andava bem! Quando o chefe não está, é
uma barbada, é só retomar a ladainha para reunir outros
clientes e dar receitas para chá do Ceilão ou sopa de peixe
com açafrão; mas, quando o patrão está por perto, é preciso
emplacar algumas vendas! Caso contrário, ele franze as
sobrancelhas e bate impacientemente no balcão:
“Em Marselha, é sempre assim! As pessoas vêm dar um
passeio e nunca pensam em comprar alguma coisa! Arranje
uma maneira de identificar os clientes de verdade!”
Velha amiga Carolina, fiz isso o dia todo, e o chefe me
agradeceu de noite, antes de eu me despedir.
19 de setembro

Renée, caminhando dois passos atrás dos seus patrões,


passou perto do meu estande. Ela veio me cumprimentar
um pouco sem jeito. Eles tinham os olhos presos na pilha de
manjar turco que eu acabara de expor junto a um monte de
outros produtos orientais. Ao ouvir Renée falando, eles
olharam na minha direção, e a madame disse sem parecer
me ver:
“É ela quem substituiu a Renée, agora é vendedora!!!”
Falei com a Renée sem olhar para a madame:
“Então, ainda trabalhando na casa dos rabugentos?”
Renée curvou-se e os seguiu, sem pestanejar; furiosa, eu
não fechava a matraca:
“Por aqui, senhoras e senhores, temos toda gama de
especiarias e todos os produtos das colônias”, e seguia com
o canto do olho a silhueta resignada da Renée se perder na
multidão quando uma voz engraçada me fez virar a cabeça:
“Não diga ‘todos os produtos coloniais'! Diga: ‘todos os
produtos de além-mar'.” Era uma nuance e apenas fazia
referência à canela; no entanto, na minha frente, um
produto colonial em carne e osso, sem rir, ia atrás dos
patrões intransigentes. Fiquei muda, e meu chefe me
perguntou:
“Com o devido respeito, mas agora só se usa ‘além-mar',
o resto é o resto, não existe mais.”
É claro, o resto não existe mais! Ele não sabe que esse
resto ainda resta para as minhas irmãs! E até quando?
O mistral começou a soprar e levou junto redemoinhos de
poeira para os produtos expostos, coloquei cocos para
segurar o papel-jornal que protegia do sol alguns tubos de
baunilha tomados pelo calor.
E Renée, dessa vez sozinha, veio correndo me dizer:
“Terminei de pagar a minha viagem neste mês! Poderei
me demitir.”
Nem sequer olhei para ela, com medo de ouvi-la
abandonar a ideia. O proprietário do estande estava lá, era
um bom pretexto para não responder, é proibido perder
tempo com pessoas que a princípio não vão comprar nada.
A chuva veio depois do mistral e, de noitinha, as
alamedas do parque estavam desertas, a multidão
apressada invadiu os ônibus e os táxis estacionados. A água
passava pela minha camisa, aquilo não era nada divertido,
tinha ainda dois ônibus para pegar até chegar em casa.
Perto do estacionamento do Boulevard Rabatau, ouvi
alguém buzinar loucamente, olhei para ver o que estava
acontecendo. Os passageiros de um Citroën DS me
acenavam com as mãos. Pensei por um momento que tinha
perdido alguma coisa… Mas não! Minha cara Carolina, vi a
silhueta alta do meu primeiro patrão, o médico, vindo na
minha direção, cortês e sorridente:
“Definitivamente encontramos todo mundo na feira. A
senhora quer vir conosco? As meninas vão junto: tem lugar
no carro, podemos deixá-la no ponto de ônibus mais
próximo.”
Ele não precisou dizer duas vezes, eu não tinha mais força
nas pernas e estava de barriga vazia: obrigada a ficar
chamando clientes, tinha perdido a vontade de comer meu
sanduíche no almoço.
As meninas me disseram daquele jeito preguiçoso:
“Bom dia!”
O patrão, por sua vez, começou a falar: ele tinha todo o
tempo do mundo, tendo em vista a multidão de carros na
lenta procissão para subir o boulevard.
Ele perguntou sobre a minha família e prometeu voltar à
feira para comprar algumas especiarias comigo. Mais do
que tudo, insinuou que queria encontrar uma antilhana para
a sua esposa. O que não se poderia fazer por um homem
assim, tão cortês? Mas pela sua esposa, eu não sou louca
nem nada!
17

20 de setembro

Hoje, Carolina, o serviço estava desumano, não podia ir ao


banheiro com medo de que um cliente fosse embora. Já
perdi quatro quilos — recomendo vender produtos aos
berros para manter ou retomar a boa forma. É incrível a
quantidade de gente que podemos ver na feira! Há alguns
que não param para nada, correndo direto para as
barraquinhas de comida. Já vi tanta gente comendo
sanduíche, perdi o apetite também por causa disso.
Bem na frente do meu estande, um pied-noir teve a
grande ideia de grelhar linguiça merguez para vender,
cobertas de harissa. Multidões do outro lado do
Mediterrâneo se precipitaram depois do seu anúncio:
“Merguez grelhada na lenha: é só chegar!”
E eles se aproximam, e as linguiças de fato grelhando no
fogo de lenha. Não somos só eu e meu patrão na barraca
onde trabalho. Ela é dividida em quatro, formando quatro
estandes distintos, enfumaçados durante todo o dia. Ao
meio-dia, já não se sabe qual aroma sobressai mais, se o
odor acre da gordura ou o cheiro ruim da fumaça escura
que invade as instalações. Às vezes, o mistral travesso leva
uma nuvem com aroma de Spigol[21] até o estande em
frente, aí o meu chefe esfrega as mãos:
“Opa! Olha só o estande dos vinhos italianos ali! Antes do
fim da feira, estarão defumados como arenques!”
Essas reflexões não tiram o seu foco, e ele emenda de
imediato:
“Maméga! Vai para cima dos visitantes! Vai logo! Eles
ficam comendo em vez de comprar especiarias! Olhe lá,
tem fila no Landouillard. O camarada vai nos afundar com
os patês de Auvergne dele! Senhoras e senhores! Pimenta
no seu sanduíche de patê ajuda a dar energia!”
Depois dessa lenga-lenga convincente, recomecei:
“Comprem especiarias, senhoras e senhores!”
Em seguida, alguns glutões se aproximam e, me olhando
falar, compram qualquer coisa. São clientes estranhos, um
só queria um tubo de açafrão, entrego-lhe de bom grado,
mas uma olhadela implacável do meu empregador me faz
“atacar”:
“O senhor não se esqueceu de nada? Temos chás, os
melhores de todos! Olhe este pó aqui: podemos colocar em
qualquer molho, também dá para fazer um chazinho bom
contra o reumatismo.”
Eu não sei de nada, foi o chefe que me disse, apenas
repito, e o glutão vai embora com vários tubos de pó
cinzento com cheiro de fricassê de coelho!
Há sobretudo os que vêm por curiosidade:
“Oh! Uma negra!”
Apesar de habituados com a nossa presença em Marselha,
não nos veem com frequência anunciando produtos. Eles
param, se aproximam, e eu consigo fazê-los comprar pó de
salsa ou louro em frasco, embora, em torno de suas casas, a
natureza generosamente tenha feito crescer boas e
perfumadas ervas da Provence!
Há alguns que vêm por simpatia! O comerciante de rum
das Antilhas, ainda que não queira vendedoras antilhanas,
me empresta uma caixa vazia para eu me sentar entre uma
e outra leva de clientes. Tem o enorme Landouillard que me
trata por “você” e me oferece cidra a todo momento. Ele me
falou de todos os lugares onde a degustação ainda é grátis,
felizmente eu não estou nem com fome nem com sede;
senão, a cada noite sairia de lá com indigestão. E também
tem alguém que está apaixonado por mim, um vendedor de
refrigeradores que adora raviólis, ao contrário do meu
patrão. Quando meu admirador passa na hora do almoço, o
prato de massa com molho vermelho nas mãos, e chega
perto do balcão para me perguntar em que dia eu poderia ir
ao restaurante com ele, meu patrão fica furioso. Ele tapa o
nariz e grita:
“Saia daqui! Saia daqui! O senhor impede que os clientes
se aproximem.”
Ele vai embora, permitindo-me detectar uma categoria de
compradoras que é difícil de enrolar. Trata-se de mulheres
grandes que levam consigo sacos de malha e sacolas de
compras, das quais saem cabos de utensílios para a
cozinha, na maioria das vezes frigideiras. Elas são
minuciosas, preparam com antecedência a lista de compras.
O chefe as reconhece: são donas de casa de mão-cheia que
não têm medo nem de diabetes nem de colesterol. Elas
pedem baunilha para os cremes e os sorvetes, extratos para
os bolos, especiarias para o peru de Natal.
O patrão é só sorrisos, a voz dele amolece, não há
nenhuma demonstração a fazer, enfia o dinheiro no caixa,
bajula. Quando a cliente que sabia o que queria vira as
costas, ele esfrega as mãos e exclama:
“Maméga! Essa foi boa!”
Entendo que essa foi boa! E a cliente em questão tem
direito a um chapéu de papel colorido e um panfleto. Ao
entregá-los, preciso dizer:
“Se a senhora se esqueceu de algo, não hesite em voltar,
estou à sua disposição.”
Se omito esse bordão, ai de mim! No entanto, peço a
Deus para não trazer de volta aquela dona de casa bem
informada, pois, durante minutos intermináveis, eu teria
que falar de improviso sobre um prato que desconheço,
incorporando na receita, a qualquer preço, os ingredientes
que ela comprou.
Há também umas pessoas bonitas que ficam olhando com
desprezo aqueles que comem todos os patês, salsichas e
cremes. São esbeltas e, nas suas caras crispadas, vejo que
todo esse cheiro de cozinha deve lhes fazer cócegas nas
narinas e, sobretudo, no estômago! Mas manter a linha,
essa maldita linha, as impede de entrar na fila do vendedor
de merguez, as fazendo virar a cabeça e partir rapidamente.
Tenho prazer em chamá-las:
“Então, senhora! Vai embora sem comprar temperos? Não
há comida boa sem temperos! Já provou a sopa chinesa?
Temos camarão e cogumelos desidratados.”
Às vezes elas me lançam um olhar irritado, às vezes
respondem gentilmente:
“Estou de dieta, obrigada.”
Tem gente que está de dieta e que vai até as
barraquinhas de degustação! Não faz sentido!
Há ainda os que se lembram, caminham na minha
direção, não olham para o balcão, mas para o meu rosto, e
vêm me dizer:
“Veja só! Fiquei três anos em Fort-de-France! O coco não
custava tão caro, não é?”
“Sou de Duala! Uma mulher intratável me fez voltar para
cá e agora é a independência, sinto saudade do meu
boy.”[22]
“Nossa! Uma Doudou! Uma Doudou! Eu tinha uma
durante a guerra, tinha uma durante a guerra, eu estava no
porta-aviões Béarn, por três anos fiquei nas Antilhas, eu
tinha uma mulher, como eu a amava!”
“Diego Suarez, em Madagascar! A baía! Os molhos
rougails? As mulheres de lá!”
Homens, mulheres ou crianças evocam o passado com
arrependimento, com saudosismo, mesmo que esse
passado não esteja tão distante. Isso me relaxa e me faz
esquecer a música ininterrupta difundida da manhã à noite
pelos alto-falantes da feira, tento conversar um pouco; o
chefe aparece e diz:
“As senhoras e os senhores querem alguma coisa?”
Eles batem em retirada levando consigo suas lembranças
encantadoras.
O que faz o meu chefe perder as estribeiras, na verdade,
é gente de cor, como eu e ele, rindo em voz alta ao olhar
para a baunilha bem civilizada e arrumadinha em tubos de
vidro, para o pau de canela, padronizado, esculpido,
simetricamente cortado e à espera de compradores. Os
africanos se apoderam do frasco de noz-de-cola e dizem:
“O que é isso? Não é de verdade! Parecem pedrinhas.”
Fico rindo por dentro e ainda faço um sermão sobre a
necessidade das embalagens que reduzem as nozes-de-cola
a lentilhas. Daí chega um antilhano ingênuo perguntando ao
meu patrão:
“Quantas pimentas são colocadas no frasco de cinco
francos? Ali tem apenas o suficiente para dois ensopados de
peixe! O senhor está de brincadeira! Vou pedir para alguém
me mandar direto de lá!”
Outros olham maliciosamente as caixas de fruta-pão e
perguntam:
“Uma fruta-pão serviu para preencher quantas caixas?”
O patrão ficou roxo de raiva:
“Saia daqui! Os negros não compram nada mesmo! Eles
preferem encomendar caixas de patê de lebre para o Natal!
O senhor sabe ao menos se não tem carne de gato nas
caixas que recebe?”
Às vezes consigo arrumar tudo:
“Imagina, ao olhar para o seu balcão, eles já veem, assim
como eu, gigantescas árvores de frutas-pão em torno de
suas casas, baunilhas inchadas com almíscar perfumando
as feiras da terra natal deles, e as baunilhas aqui são tão
prensadas, tão secas, como não rir disso? Mas não é por
mal!”
De tarde, estava eu outra vez defendendo essa causa
quando uma senhora loira apareceu, disse que era das
Antilhas e falou comigo em crioulo:
“Um ciclone devastou as ilhas, não resta nada de pé…
pessoas morreram, parece…”
Emocionada, esqueci as instruções do meu patrão me
proibindo de falar com antilhanos. A mulher começou a
chorar calmamente, e uma a uma as lágrimas caíram em
cima de um monte de bengalas de açúcar que estavam
diante dela. Meu chefe, que o bem-estar havia tornado
insensível, pegou um espanador e tirou o pó dos tubos que
não aguentavam mais serem limpos:
“Daqui a pouco vão dizer que o ciclone passou sobre as
mercadorias! Está chovendo aqui!”
A béké [23] apertou minha mão e fugiu. O chefe
resmungou:
“Felizmente não existem só as Antilhas para lembrar a
essas mulheres que elas são como todo mundo!”
Dos estandes de rum em volta chegavam as notícias,
espalhadas pelos bebedores de ponche. Soube que a
tempestade que tinha devastado o país se chamava Edith.
Os boatos mais fantásticos passavam por lá; o grande
Landouillard, mastigando sua guimba que não acabava
nunca, me disse:
“Há um ciclone empurrando a Martinica para o Vieux Port,
o rum não teria por que ser tão caro!”
O chefe bem podia ter me dito “Vai para cima deles! Vai
logo! A senhora deixa o vendedor de merguez ficar com
todos os clientes!”.
Eu não conseguia mais, Carolina. Só de imaginar a casa
da minha mãe destruída, a casa dela, a razão de viver dela,
a de todos os da sua idade que nunca se deslocarão para
habitações sociais, mesmo que luxuosas! E onde estavam
agora todas essas mulheres sem morada?
Esse pensamento foi suficiente para me deixar com uma
terrível enxaqueca. Duas horas antes de terminar o
expediente, desisti do serviço:
“Estou voltando para casa! Pode descontar duas horas do
meu salário?”, eu disse.
Tirei os madras de gala e pus na minha bolsa o colar de
bolinhas douradas que me estrangulava desde que soube
que a Edith andava pelas Antilhas. Fui correndo pegar um
táxi e cheguei justo quando as crianças voltavam da escola.
Eles já sabiam, estavam acompanhados por alguns amigos
que lhes contaram sobre o ciclone. Eles, que conheciam
todos os detalhes dos arredores da cabana da avó, detalhes
que eu não lhes poupava, ficaram devastados:
“E a ameixeira, você acha que ela caiu? E a árvore de
fruta-pão, será que o vento…!”
Eu era o porto seguro da minha família, em torno de quem
todos se refugiavam e se acalmavam, mas nem eu nem o
meu marido tínhamos descanso, e pensar que, na nossa
terra, os nossos talvez estivessem, naquele momento, à
procura de uma proteção contra o sol ou de abrigo para a
noite. Era horrível se sentir impotente perante uma
adversidade tão dura. A gente gostaria de estar com eles,
compartilhar a desgraça com eles. Quando os homens riem,
raramente precisam de amigos que pensem neles; quando
choram, como é bom serem compreendidos e consolados!
29 de setembro de 63

Quem diria? O rechonchudo do Landouillard veio oferecer-


me roupas para as vítimas! Disse-lhe para ir ao lugar
encarregado de recolher donativos, então ele reuniu
casacos, cobertores e ceroulas de lã numa mala. Não podia
lhe dizer que, depois de um ciclone, o sol lança seus raios
ardentes na miséria deixada pelo seu rival, o vento.
No formigueiro onde a minha gente recupera a esperança,
os habitantes devem estar correndo, suando, pregando,
carregando vigas e telhas metálicas. Devem estar na fila
para pegar o pão, limpar as estradas, devem também estar
brigando para comprar um pouco de carne. Nos trópicos,
tudo isso deixa as pessoas com mais calor ainda, mas como
contar ao Landouillard, que faz caridade de modo tão
espontâneo?
1º de outubro de 63

Os soberbos organizam uma manifestação em nome das


vítimas. Como podem se valer de tantas lágrimas para fins
publicitários? Como poderão dançar, fazer amor, enquanto o
jazz ditará o ritmo da desgraça daqueles que estão lá longe
rangendo os dentes?
Da minha gente, ouço um grito agudo, e sofro no mais
íntimo de mim mesma. Essa coisa imunda não quer partir
do lugar no qual se instalou no mar do Caribe; ela anda em
círculos, derruba as casas em Cuba, em Guadalupe, e de
Santo Domingo ao México, pobre das pessoas assustadas, à
espera.
Recebi algumas palavras de angústia dos meus pelo
correio e, impotente, sequei uma lágrima enquanto meu
marido lia em frente ao balcão. Já meu chefe, que tinha
virado um fatalista, soltou de maneira grosseira:
“Vocês vão ver a quantidade de negros que virão para cá
em breve, em vez de ficar lá e reconstruir suas casas… E
nunca vão comprar nada!”
Ai, meu Deus! A que ponto chega essa gente que só
pensa na moeda a ser enfiada em um cofre abarrotado!
Queria sair dali, mas pensei:
“Mais quatro dias e ponto-final.”
3 de outubro de 63

Todos partem do Parque Chanot, dos comerciantes


magrebinos aos estandes do Exército: é o vaivém dos
expositores, que invadem os correios para enviar
correspondências ou informar que trocaram de endereço. O
vendedor de refrigeradores me pediu para ir a Dijon para a
próxima Feira de Novembro, ele vai me contratar e vamos
comer ravióli. Com a desculpa de trazer uma lembrança da
feira, comprei uma garrafa de vinho italiano e xícaras de
pirex, sei que é bem mais caro do que nas lojas de
departamento, mas tudo bem.
Biombos azuis e biombos vermelhos são dobrados,
guarda-sóis listrados e guarda-sóis xadrez se fecham,
estandes feinhos e estandes bonitos ficam vazios, clientes
que comem e clientes que passeiam andam indiferentes
entre as montanhas de embalagens de papelão que agora
bloqueiam as alamedas. Os vagões do trem recolhem
encomendas que vão diretamente para outras feiras. Aos
gritos, os feirantes combinam de se encontrar nas cidades
mais remotas da França ou da Europa. O mistral começa a
soprar, e todo mundo já tratou de vestir um pulôver. O
tempo da feira passou, em breve será apenas uma memória
para mim, Parque Chanot, o patrão negro, conversas sobre
o ciclone. Os estudantes das universidades vizinhas que
vieram vender crepes ou bibelôs espanhóis reuniram-se
perto da fonte e estão fazendo um balanço da temporada: a
personalidade dos seus chefes e o dinheiro que ganharam.
Em breve, retornarão à universidade, e a imagem da feira
também desaparecerá para eles, assim que chegarem aos
anfiteatros. Fiquei amiga de uma moça cheia de boa
vontade que trabalhava para o vendedor de merguez, mas
que era constantemente repreendida por não ter uma voz
forte o suficiente para chamar a atenção dos clientes. Ela
veio despedir-se de mim trazendo consigo artigos de
papelaria:
“Eu não tive tempo de ver nada na feira: apenas comprei
um pequeno estoque de material escolar! Logo logo as
aulas recomeçam… Adeus!”
Eu estava enchendo as caixas de tubos, o trabalho tinha
que ser feito com todo o cuidado, e o patrão gritou:
“Volte no ano que vem antes do começo da feira para a
gente bater um papo…”
A estudante encolheu os ombros e foi trilhar o próprio
caminho. Enchi as caixas e fui trilhar o meu, sem
arrependimentos, sem rancor. Já que a vida é assim, para
que ficar analisando?
8 de outubro

A sra. Roland substituiu-me durante doze dias, lavou tudo,


mas não passou nada, todos os armários estão cheios de
roupas à espera da minha chegada, e sem descanso
compenso o tempo perdido na feira, sem descanso tapo os
buracos surgidos durante a minha ausência. Descobri ainda
que um dos meus filhos estava trocando as aulas de
aritmética pela leitura de histórias de caubói; virando o
colchão, encontrei uns dez desses livrinhos.
Pergunto-me por que me cansei tanto para ganhar alguns
poucos francos que evaporaram tão depressa, paguei à sra.
Roland, comprei um guarda-chuva e uma bolsa, dois pares
de calçados e umas bobagens para as crianças, de modo
que não sobrou mais nada do que tinha ganhado. Estou me
perguntando se eu não deveria, tal como as aves do
Evangelho, ficar esperando pelos grãos que Deus traz todo
o dia.
Meu marido chegou furioso com um recorte de jornal que
circulava no seu trabalho. Dizia-se que as autoridades
tinham visitado os vilarejos atingidos e que encontraram os
habitantes alegres e despreocupados, apesar da desgraça.
Porém, não foi lá que eu aprendi esta lição: “Muitas vezes,
os infelizes riem e cantam para nós e choram entre si”?
Se as autoridades soubessem o que acontece quando
viram as costas: os habitantes trocam inhames por um
pouco de arroz ou bacalhau. Vejo os mais velhos pregando
pela milésima vez as tábuas que mil ventos já levaram
consigo, e aqueles que não têm mais a força para pregar
ficam à mercê dos “békés França”, esperando que em seus
grandes aviões eles tenham pensado em trazer pregos para
fixar as telhas de zinco das suas casas. Também vejo que o
mito da felicidade eterna nas ilhas, antes e depois do
ciclone, ainda está vivo.
“Droga!”, disse o meu marido. “Agora meus camaradas
ficam me perguntando o que vamos fazer com o dinheiro
recolhido, já que lá não estamos mais passando
necessidade.”
Durante esse tempo, os meus filhos esvaziaram o seu
cofrinho para doar aos necessitados, depois juntaram todas
as roupas que não usávamos mais. Para agradá-los, fiz
pacotes que não serão mais do que uma gota no oceano da
miséria dos meus próprios parentes. Meu marido estava
sempre se queixando:
“Por que eles tinham que rir bem na frente daquele
jornalista?”
Eu sei o porquê. Eles riram de gratidão e ficaram
esperando, desesperadamente, pelos pregos, telhas e
caixas de mantimentos que a Mãe Pátria devia lhes enviar.
Eles riram porque queriam abraçar quem chegava para
ajudar, mas não se atreviam a tanto: as pessoas são tão
esquisitas, não tem como saber como reagiriam! Além do
mais, velha amiga Carolina, após um cataclismo, um
jornalista não deve tomar nota acompanhando uma
comitiva oficial, mas sim, munido de uma câmera e uma
boa Bic, atravessar morros e rios para ver que rir é tudo o
que resta para os infelizes. Seria preciso, sobretudo, que ele
não dissesse quem era, eles esconderão a fome e
prepararão a casa para esperá-lo… Pois é, é claro que eles
riram…
18

11 de novembro de 63

A sra. Roland me disse:


“Toma lá dá cá. Minha patroa deixou a filha organizar uma
reunião dançante domingo de tarde. A madame vai viajar
para um lugar com neve. Já eu vou ficar, mas ela me pediu
para encontrar alguém que me ajudasse. O que acha de me
dar uma mãozinha? Cuidei direitinho dos seus meninos,
quebre esse galho para mim.”
Saí na chuva para encontrar a sra. Roland e, chegando ao
casarão no Boulevard de la Corniche, eu já estava um pouco
mal-humorada.
Ela me levou para uma enorme cozinha onde estava
fazendo sanduíches com pão de fôrma. Mostrou-me duas
grandes toranjas e me pediu para fazer espetinhos de
azeitonas e queijo.
Ouvi risos, vi uma menina de calças e sapatilhas falando
com uma outra vestida com um tailleur creme. Elas
estavam em uma sala imensa como eu nunca tinha visto, e
havia flores exóticas importadas de avião por todo lado,
disse a sra. Roland. Quando me viram, ambas vieram me
cumprimentar, sorridentes:
“Ainda bem que a senhora veio”, disse uma delas.
Percebi que naquela tarde ela era a dona da casa. Os
garotos chegaram a pé, de mobilete ou, no mais das vezes,
de 2CV: rapidamente os arredores da casa foram
transformados em estacionamento, os jovens subiam
animados os poucos degraus até o caminho que levava à
porta de entrada e, em seguida, sumiam na residência.
A garota de calça comprida levava muito a sério o seu
papel de anfitriã: sorrindo, acomodava os convidados. Ela
havia me pedido para montar um vestiário improvisado. A
sra. Roland rapidamente me chamou:
“Maméga, deixe os meninos se virarem sozinhos com os
seus sobretudos: logo logo eles vão acabar com todo o
bufê!!!”
De fato, nas duas mesas dispostas num dos cantos da
sala, os salgadinhos deixados pela jovem dona da casa
desapareciam: um grupo de jovens famintos,
provavelmente de dieta há algum tempo, estava
recuperando a forma sem se preocupar com mais nada. Fui
para perto das mesas e olhei para os pequenos glutões de
um jeito que eles largaram seus pratos.
A fita com uma sucessão ininterrupta de músicas de
dança convidou todo mundo a dançar. Eles se faziam de
difíceis, marcavam território, conversavam, circulavam com
um copo na mão, até que veio uma balada: eles se
abraçaram. Era bonitinho, nada de mais; para a felicidade
da mãe da anfitriã, poderia ter mesmo durado mais tempo.
Mas os twists começaram a suceder as bambas. A Europa
fugiu, a América do Sul se estabeleceu e depois a generosa
África tomou conta dos convidados em delírio. Já tinha visto
fetichistas dançando assim nas ruas de Cotonu, havia sol e
cactos ao fundo. Já aqui, chovia, e as rajadas no golfo cinza
que se via não muito longe espalhavam gotinhas tristes por
todos os lados. Os jovens não se importavam com a
decoração à la Luís XV da senhora, tinham a deles na
cabeça. Outros batiam palmas e marcavam o ritmo com os
calcanhares. A sra. Roland levou a mão ao rosto e me disse:
“Que bando de selvagens!”
Bom, era o jeito de os jovens europeus extravasarem!
Todos os programas de rádio repetem isso, não há nada de
mais. Contudo, fiquei zangada, um rapaz que tinha cabelo
até a nuca deixou a sala na escuridão. Por três vezes, o
cabeludo, rindo e sob os aplausos do bando, desligou os
lustres, e por três vezes a mocinha da casa foi lá reacendê-
los. Chamei a sra. Roland, e ela me disse:
“Ou ele para com isso, ou nós duas o jogamos pela janela.
Ele é magro como um palito; vestido com aquele casaco
curto, dá para ver que ele nem sequer tem bunda para
tomar um pontapé, vamos pôr o rapaz para correr.”
A sra. Roland está bem com seus oitenta quilos: tirou o
madras que trazia na cabeça e enrolou-o em torno da
cintura como se fosse carregar nos ombros um cacho de
banana. Ficou plantada na frente dos interruptores, e eu do
lado dela. A moça disse:
“Olha, sra. Roland, ele bebeu demais!”
A sra. Roland respondeu:
“Problema dele, que vai acabar dando uma volta lá fora se
tocar no interruptor.”
O cabeludo parecia ter passado muito mais tempo em
discotecas do que em academias de judô. Ele se virou para
a sra. Roland, que tinha tirado os saltos para ficar com uma
base mais estável, depois me fitou com desprezo, pois eu
tinha pegado como arma, pelo sim, pelo não, um grande
guarda-chuva preto que pingava num porta-guarda-chuva
de porcelana, e não parava de encará-lo. Os outros
berravam de alegria e gritavam ao amigo doidinho:
“Vai lá então?”
Eles esperavam por um entreato divertido que não
aconteceu! O cabeludo colérico e sempre desdenhoso bateu
em retirada:
“Ela precisava trazer essas negras para acabar com a
nossa farra.”
A sra. Roland não se mexeu.
“Fale o que você quiser”, ela murmurou, “você não passa
de um menino malcriado, e não vai causar confusão na casa
da madame quando ela não está por perto!”
Os outros procuravam diferentes maneiras de se divertir.
Já que não tinha como ficar no escuro, não importava, o
pessoal decidiu se beijar embaixo das muitas lâmpadas de
duzentos e vinte volts que adornavam os candelabros de
cristal! E, velha amiga Carolina, eles se esforçaram! As
moças agarraram-se no pescoço dos rapazes como se
abraçassem uma boia salva-vidas, e a balada que os unia
não acabava mais. A sra. Roland ia e vinha, tilintava os
copos vazios que recolhia, rosnava quando passava perto
dos interruptores se um rapaz se aproximasse demais. Ela
praguejava quando apanhava um cavaleiro descarado
beijando a sua bela. Provavelmente eram menores de idade
que se faziam de adultos.
A sra. Roland achou necessário executar um plano de
combate que os impediria de chegar aos finalmente. Ela me
pediu para ajudá-la. Começou por fechar a porta que dava
para as escadas do porão, trancou a biblioteca, os quartos,
a pequena sala de estar onde um casal apressado já havia
se refugiado. Ela disse:
“Ainda não tirei a poeira daqui”, e abriu as grandes
janelas: uma brisa fresca correu pelo cômodo e acabou com
a alegria dos jovenzinhos. A dona da casa compreendeu o
que se passava pela cabeça da sua empregada. Ela
desviava o olhar cada vez que sentia os nossos olhos
voltados para ela e se recusava a flertar como os outros.
Havia nela um resquício de pudor que inspirava um respeito
por si própria e, ao mesmo tempo, por nós.
A sra. Roland lhe disse:
“Senhorita, devemos ter cuidado com essa gente, nunca
se sabe o que tem na cabeça, eles têm que ir embora às
nove da noite, como a sua mãe pediu!”
A mocinha reagiu na defensiva:
“Eles não são ‘essa gente', são meus colegas!”
“Pois é!”, disse a sra. Roland, “são seus colegas: mas se
eu os vir entrando num dos quartos que fechei por
precaução, vou chamar a polícia! Como assim! Bando de
diabinhos! Vocês brincam de destruir a sua juventude!
Quando tiverem idade para o serviço militar, já estarão
velhos e estragados. Além do mais, senhorita, se não está
contente, dá na mesma! Olhe isso, olhe só isso!”
Os jovens não gostam que chamemos sua atenção. Um a
um os casais foram saindo, as mobiletes roncaram no
Boulevard de la Corniche, e os carros arrancavam como
cavalos em disparada. Eram só oito e meia da noite, e o
baile já tinha acabado, graças à sra. Roland. Eu lavava os
copos, guardava a prataria, estava com pressa de ir
embora. A mocinha tinha se escondido num cômodo com
uma amiga; ao fundo, ouvia-se um murmurinho sobre as
desvantagens de ter uma velha martinicana cheia de
antigas manias das ilhas.
Eu achava que a anfitriã estava contrariada, mas eis que
a vejo sair de seu abrigo num sorriso só, quase aliviada:
“A senhora fez bem, sra. Roland, de mandar todos eles
embora: estavam bêbados. Eles até se comportam direito
quando não bebem!”
A sra. Roland, sem perder a compostura, respondeu:
“A senhorita tinha que receber uma entrega de
espumantes e pegar licores no porão, embora sua mãe
tivesse recomendado sucos de fruta? Enfim, eles vão se
agarrar longe daqui, isso é o que importa!”
A jovem não estava acostumada a ouvir alguém falar com
ela desse jeito, arregalava os olhos espantados, alisava com
uma mão distraída o cabelo curto e continuava a sorrir. No
fundo, pensei, ela não era uma pessoa ruim, mas, no meio
de um grupo como aquele, ela não seria por muito tempo
quem parecia ser.
Ainda estava chovendo: lá fora, debaixo de um guarda-
chuva, eu esperava um táxi. Tinha de apressar o passo; no
dia seguinte, segunda-feira, precisava levar toda minha
cambada para a escola. Ganhei cinco mil francos pelo meu
trabalho extra extraordinário, e ainda me pergunto até
quando as minhas irmãs terão de cuidar dessas mocinhas e
suas reuniões dançantes! Limpar as crianças que fazem xixi
e ficar de plantão bem na hora em que todo mundo dança.
No Vieux Port, apesar da chuva, os cafés e os restaurantes
estavam cheios, a Canebière brilhava intensamente,
convidando-nos a ter esperança. Arquivei meus
pensamentos e tratei de voltar para casa e pôr na cama os
que estavam à minha espera.
Eles não sabiam de onde eu vinha, exceto o meu marido.
Quando saí mais cedo, disse-lhes que ia visitar uma amiga.
Agora todos queriam saber: quem era a amiga? Onde ela
vivia? Como ela era?
Eu disse que ela era bonita, que tinha ponche em copos
de cristal finíssimo e fazia sucos de frutas numa terrina de
prata, mas que estava tão infeliz que já não sabia se era
jovem demais ou velha demais! Foi assim que, nesta noite,
pus um fim nos por quês e nos comos.
15 de novembro

O nosso protegido veio despedir-se de nós, ele vai fazer um


estágio em Nantes… Nantes em novembro, lá ele vai ver
que nem tudo são flores! Ele vai ser marceneiro. A sua mãe
lhe enviou uma mala cheia de roupas leves, ele acabou de
comprar o seu único pulôver de lã, e tenho dificuldade em
fazê-lo aceitar uma velha mas confortável calça quente para
usar na obra. Comprou macacões azuis de operário! Até
agora, ainda confunde Nantes com Marselha. Para ele, todas
essas cidades são a França; ele percebeu que o mistral não
era o ventinho que soprava nas ilhas, mas ponderou que era
suportável. Também não quis comprar botas curtas,
acreditando que “ficaria estranho”; não sai mais de
sandálias, mas continua usando os sapatos com solas finas.
Enfim, será preciso que ele passe por isso para virar
finalmente um homem.
20 de novembro

Nenhuma madame à vista. Meu marido foi ao cais fazer


horas extras:
“Um trabalho danado”, diz ele, “ganhamos bem,
comemos bem, temos frutas para dar e vender, vemos
outros negros contar o quanto sofrem, mas eu não pretendo
ficar com eles, a gente ganha bem apenas durante uma
época do mês, o resto do tempo é desemprego, pretos
esperando no Harlem que o trabalho recomece na Joliette!
Sabe o Lucien, o fortão que antes era pugilista, agora tira o
sal dos cascos, lixa, pinta e limpa os navios! É um trabalho
pesado, mas bem pago, os pretos vão correndo para lá. Ele
já está começando a estragar os pulmões de tanto escarrar,
se meu pistolão não tivesse sido o Robert, eu não teria
conseguido o emprego, não sou registrado, e se você visse
ainda a procissão de negros no cais esperando serem
contratados e sendo recusados, é por isso que o Harlem não
esvazia… Todos os barcos estão sendo vendidos! Joliette
não é mais o que já foi, quando penso como era antes do
fiasco da Indochina! Tinha sempre três ou quatro navios
para descarregar ao mesmo tempo, os antilhanos sempre
acabavam encontrando um trabalho; agora, me pergunto do
que vivem todos os que ficam perambulando pelo cais.”
Já é muito para mim ouvir as moças que são trazidas para
cá, não posso também dar conta dos pretos procurando
bananas no cais! Então, Carolina, me fiz de surda, mas o
meu marido continuou:
“Vou para o cais fazer uma grana extra, a gente guarda
esse dinheiro, você não vai mais precisar ir para a casa de
nenhuma ‘madame', nem penhorar a máquina de escrever
no Natal… Fico triste quando você vai às casas dos
senhores, como as nossas avós, como as nossas bisavós,
como se nada tivesse mudado para nós durante todo esse
tempo… enquanto se fabricam bombas atômicas, se fala da
libertação dos povos. Não entendo por que você vai lá, logo
você.”
Pois é, já fui lá, e provavelmente voltarei ainda. É assim
que são as coisas. Fico tão inquieta com este problema: as
antilhanas que chegam em massa para servir nas casas das
madames.
23 de novembro

Minha amiga Carolina, quando acontecem coisas horríveis,


minha alma entristece. Escutei no rádio a notícia atroz e não
pude segurar o choro:
“Meu Deus, por que o Senhor permitiu que isso
acontecesse?”
As crianças queriam saber:
“O que foi que aconteceu, mãe? Por que você está
dizendo isso?”
Eles me cercaram e já estavam quase chorando ao me ver
aos prantos, os rostinhos crispados:
“Mataram o presidente Kennedy”, disse.
“Por quê? Quem é Kennedy? É o pai da ‘mocinha',
coitada?”, e as perguntas brotaram a torto e a direito.
Respondi:
“Ele está morto provavelmente para que negros como
vocês possam ir à escola sem serem chamados de
macacos!”
As crianças não entendiam nada, eles têm tempo para
compreender, e sempre que posso lhes poupar de
explicações pouco esperançosas, eu o faço. Isso não me
impediu de lamentar por aquele que folheava o testamento
de Abraham Lincoln, ele só estava nas primeiras páginas, e
a tempestade já tinha arrancado o galho tão verde e tão
cheio de esperança. Descascar batatas está mais difícil do
que o normal, e o meu choro não seca nunca, pois hoje a
fonte dele é importante demais. Choro porque as crianças já
não têm mais pai, acho que ele morreu para que os homens
fossem livres. Choro porque mais uma vez me enganei. Não
se diz mais: “Meu Deus! Proteja aqueles que o Senhor me
deu como líderes espirituais e temporais”. Se as gerações
futuras ainda disserem isso, é sinal de que entenderão que
as instituições são concessões divinas, que o crime não traz
nada de justo, nada de bom. Um regicida é um maldito,
mesmo que a vítima tenha sido um homem mau.
Esses pensamentos assolam a minha já velha cabeça, que
deveria se ocupar de outras coisas, apropriadas ao mundo
das faxineiras: o preço da cera para passar no piso, o novo
removedor de gorduras para fornos automáticos e outras
coisas que vão me transformar em um robô. Mas agora,
além do oceano, centenas de milhares de homens e
mulheres negros procuram às cegas, na noite do passado e
do presente deles, um caminho que os levará à dignidade
definitiva; é por isso, Carolina, que choro por aquele que me
estendeu a mão. Choro, e o meu rosto negro se contrai, as
minhas mãos cinzentas ficam febris e o meu coração afunda
tal como a esperança dos homens depositada em um único
indivíduo. De Johanesburgo ao Mississippi, passando por
Duala e Fort-de-France, os negros devem estar tão
comovidos como eu. Deslumbrante, um trovão cruzou a
tenebrosa noite dos negros, e sinto um profundo pesar
como senti pelo meu pai. Fico confusa com este século tão
primitivo que partiu a testa teimosa de Kennedy. Já não me
atrevia a falar com ninguém, decidi que este seria um dia
de luto. As crianças foram fazer as compras, assim evitei
ver a padeira e a mulher da mercearia, sempre dispostas à
conversa fiada. No final das contas, à tarde, acabei
recebendo a visita da velhinha que deixara a casa de
repouso:
“Cheguei! Pensei na senhora quando soube que um moço
idiota tinha matado o Kennedy! Atiraram nele
provavelmente por causa dos negros de lá!” Os negros de
lá! Que referência egoísta e mesquinha! Ofereci um café à
minha amiga e disse:
“É por minha causa também! Olhe para o meu nariz
achatado! Olhe para o meu beiço, é por minha causa
também!”
A minha amável provençal ficou surpresa. Para ela, tão
humana, não havia problema, era eu que estava de má
vontade em insistir em algo que vinha do seu coração.
Durante muito tempo jogamos conversa fora, e a tarde
acabou sem que eu percebesse que a minha dor se
esvanecia. Escutávamos as notícias transmitidas pelo rádio
quando ela disse:
“Então o Ocidente e o Oriente só podem ouvir um ao
outro em torno de um caixão, a paz em torno de um
ferimento vermelho…”
25 de novembro de 63

Rapidamente terminei de limpar a casa e fui visitar a


velhinha querida. Ao notar minha presença, ela exclamou:
“Chegou a minha martinicana!”
Enfim, houve progresso, ela não disse a “negra”. Tirei o pó
de todas as peças enquanto ela me falava o que tinha feito
em La Roque-d'Anthéron durante sua estada, também me
contou sobre Beaucaire, Sisteron e Miramas, onde os netos
dela moram. E pela centésima vez lhe descrevi a casa da
minha mãe e as árvores que a rodeavam. O que ela não
entende de jeito nenhum é que os invernos nunca chegam
lá; por ela, tento esquecer que outras mulheres de olhos
azuis têm o coração sombrio.
19

5 de dezembro de 63

Nosso protegido escreveu: ele está morrendo de frio e sente


falta de Pointe-à-Pitre.
“Eu não sinto meus pés quando estou na obra, mas estou
feliz em aprender um novo ofício. Quando a minha irmã
chegar, não vai precisar correr atrás de uma patroa, pois
antilhanas são despachadas até para cá, para Nantes. Agora
estou entendendo que a França inteira é abastecida por
martinicanas e guadalupenses, o que me envergonha um
pouco…”
O fato de ele estar envergonhado me deixa incomodada,
ele irá correndo se casar com uma moça europeia e em
breve terá se esquecido de Pointe-à-Pitre, da irmã e das
preocupações de agora.
10 de dezembro de 63

Escrevi àquele agente literário, disse-lhe que minhas cartas


terminarão em breve. É verdade, Carolina, não há mais
nada que eu lhe diga que você já não saiba. Os dias serão
semelhantes uns aos outros, os anos uns aos outros, já as
madames serão sempre as mesmas, anônimas e tristes. O
gado humano que vem da minha terra será distribuído ao
acaso por todos os cantos da França. Ninguém vai perceber,
vai se tornar algo natural. Tendo uma irmã que conseguiu
um trabalho assim, o estudante evitará falar sobre o
assunto, e a irmã dirá que não é o caso dela: então tudo
ficará bem, para a alegria de uns.
Já que minha máquina não foi para a penhora, quando
esses pensamentos vierem me atormentar, vou escrever
sobre outras coisas, para que eu mesma consiga esquecer,
mas ainda… tem a Renée, que vem me contar como ela,
durante toda a tarde, teve que pegar água do poço com
uma enorme bacia para regar as plantas em volta da casa
de campo dos patrões, carentes de uma boa jardinagem,
apesar do inverno. Tem a sra. Roland, que virá me pedir
para fazer mais horas extras. Tem as ruas Paradis e Saint-
Giniez, onde, nos alojamentos luxuosos, as meninas negras
somem nos elevadores. Tem todos os portos da França, que
recebem aqueles que vêm como abelhas pousar sobre a flor
medonha da servidão. Isso não tinha por que ser da minha
conta, eu deveria cuidar da minha vida. Mas por onde
começar?
23 de dezembro de 63

Solange virou uma parisiense em tempo integral, vai ao


teatro quando pode, corre para pegar o metrô, se adapta à
chuva e está por dentro de tudo, ela me escreve e, na
miscelânea de coisas que me conta, é só sortear um
assunto:
“Queria vender a minha casinha em Villejuif para comprar
um pequeno apartamento em Strasbourg Saint-Denis, mas
o meu marido não quis. Pior que era um bom negócio, eu
não precisaria pegar o metrô para ir ao trabalho. Ainda
penso no restaurante que nos deixaria ricas. Você continua
pondo o preto no branco? Já lhe disse que isso é ‘bobagem',
pior do que confeccionar golas de camisa nas fábricas, pelo
menos ganhamos cinquenta centavos para coser uma que
seja, ao passo que as palavras você não vai usar nem à
vinagrete, nem com molho branco. Então, minha cara,
largue de mão essa história. Quando eu encontrar uma
oportunidade interessante, lhe direi, daí você poderá
planejar a mudança. Comece a falar com seu marido sobre
isso para habituá-lo à ideia de não ouvir mais o vento
soprando no Vieux Port…
“Eu estava em uma festa onde havia um grande número
de negros, conversamos sobre o Bumidom, um escritório
que, eu acho, foi criado para trazer as negras, digo,
oficialmente, assim as madames não vão precisar mais ‘se
mexer' para pagar o translado, é só telefonar e terão o que
precisam ao alcance das mãos. Há pessoas a favor, eu sou
contra, e você?…
“Comi ostras…”
24 de dezembro de 63

O nosso protegido veio passar o Natal aqui. Está muito frio,


não tem como perambular por aí com esse mistral, então o
convidamos para passar a noite de hoje conosco. Ele não
tinha vindo sozinho: junto dele, na porta, havia outro moço
negro. Fizemos com que ele também entrasse, não era hora
de deixar ninguém do lado de fora, mesmo um animal. O
garoto disse que era estudante, da Universidade de Caen.
No momento de ir à mesa, ele quis partir. Numa noite de
Natal, onde comem oito, comem nove, a menos que haja
má vontade por parte da dona da casa. Mas eu estava cheia
de boa vontade, Carolina, pois o convidado surpresa, depois
do segundo ponche, iniciou uma longa conversa, durante a
qual descobri que ele era um nacionalista. Depois do queijo,
ele falou da independência de todas as ilhas do Caribe e da
confederação que elas formariam. Então o meu marido
disse:
“E o seu pai? O que é que ele acha disso? Ele concebeu
você logo depois da última Guerra Mundial, experimentou o
desenraizamento dos antilhanos, a longa caminhada deles
da América até o monte Cassino,[24] ele arriscou a pele em
Royan, e deseja agora ver você vivendo em paz. Será que a
nação que você ajudará a construir com o seu suor e o seu
sangue resistirá por muito tempo no lugar onde está, ao
alcance dos canhões dos navios americanos? Sempre os
vemos passando ao largo de Fort-de-France.”
O rapaz, empolgado, repetiu que cuidará para garantir a
neutralidade do seu território.
Pobre Carolina, não temos o direito de destruir o sonho de
ninguém, mesmo quando podemos. Disse isso ao rapaz e é
o que eu penso, estou com medo, quando se formar a
confederação, metade dos confederados tentará aniquilar a
outra metade. Mas não é disso que tenho medo, entre nós
acabamos sempre nos entendendo, mas a que preço! Tenho
um medo do diabo, medo dos capacetes coloridos falando
todas as línguas, chegando para ensinar a minha velha mãe
a marchar! Afinal, não sinto vergonha em admitir que, se
não tenho medo de morrer, pois o lugar dos mortos é no céu
ou no inferno, tenho medo das consequências do
movimento, se estiver viva para assistir. Haverá alguns
grandes países que vão querer nos proteger, e alguns que
não vão, e todos virão se explicar, até debaixo da árvore da
fruta-pão, que faz sombra no casebre que deixei na minha
terra! E a mim restará apenas chorar!…
O rapaz relaxou, seu riso ecoou na sala. Estou tão
habituada a ver os jovens compatriotas que vivem na
Europa falando apenas de festinhas e namoro que gostei
dele. Seja como for, é melhor um jovem com um ideal do
que um cabeça de vento. Para mudar de assunto,
começamos a entoar cânticos de Natal de uma velha
antologia que guardo com todo o cuidado. Bela lembrança,
fomos levados de volta às origens, nos sentíamos na noite
de Natal nas Antilhas, no interior. O nacionalista olhou para
nós com pena, desdém, até que, sem perceber, se
esqueceu, talvez por delicadeza, da revolução que carrega
consigo, e começou a cantar “Jesus Cristo nasceu jôdi,[25]
nasceu, nasceu mesmo, minhas crianças”. Ele voltou a ser
um rapaz feliz por estar no meio da sua gente.
Percebi logo que o nosso protegido não esquentava a
cabeça teorizando muito sobre as coisas, ele estava ali, já
era bom demais. Ele viera para Marselha com o objetivo de
ver a moça que não o tinha desdenhado quando ele usava
apenas uma camisa rosa.
“Os pais da Florette são teimosos! O pai é grego e a mãe
é da Armênia. Eles são gentis comigo, mas não muito
entusiasmados, nunca falam francês quando estou lá!”
Era uma história de amor, algo pessoal, só me restava
cumprimentá-lo pela escolha e desejar boa sorte. Os jovens
tomaram o primeiro ônibus da manhã e voltaram para a
cidade levando na mala projetos e sonhos.
Não posso ir para a cama agora, tenho tanto o que
escrever a Solange que não sei por onde começar. Um livro,
talvez! Que Deus me dê tempo para esboçá-lo, e proteja
aqueles que partem em busca do pão de cada dia.
1º de fevereiro de 1964

Carolina, as coisas não vão nada bem, já estava cansada


demais cuidando dos meus cinco filhotes para encarar o
maldito trabalho de faxineira. De uma hora para outra, senti
o peso dos anos, prematuramente, é verdade, mas para
valer. Sofro do mal do século. Pensava que só os bons
vivants, com os bolsos cheios de grana, podiam sofrer um
enfarte, mas a minha pressão arterial agora começou a
subir como a de uma velhinha herdeira qualquer. Percebi
isso na semana passada, quando estava no açougue onde
eu era “ajudante”. Esfregava as mesas com uma espécie de
plaina para tirar os resíduos grudados na madeira. Vi
milhares de borboletas voando em torno da minha cabeça,
também vi uma espécie de auréola escura em volta dos
olhos, não sei como deitei no chão. Apavorado, o açougueiro
pediu socorro. Voltei para casa só mais tarde, não queria ir
para hospital nenhum. Como sempre, tenho de achar um
maldito emprego desses caso queira passear, ganhar
dinheiro e encontrar um editor. O meu manuscrito está
terminado, tem a palavra “fim” na última página, e eu não
posso me mexer.
Páscoa de 64

Cada dia é único e todos os dias são parecidos, não vou lhe
contar, Carolina, tudo o que tomo contra a hipertensão, aí já
é outra história. A esperança ressurge apesar disso, pois o
meu manuscrito está sendo lido, me falam de um comitê de
leitura, os escritores negros aceitaram dar uma olhada nas
minhas folhas. Eles estão me lendo, eu mesma, Maméga!
Sei que todos estão lisos, um mais do que o outro, mas
estão me estendendo a mão, esqueço os meus
comprimidos, estou pulando de alegria.
23 de junho de 64

Sucessivamente, passo por laboratórios e faço exames


minuciosos de toda a minha anatomia:
“Temos de descobrir a causa da sua doença”, dizem os
médicos.
Vamos lá então! No hospital, o cateter entra nas minhas
artérias, a urografia precede outras coisas com nomes
complicados. Durante esse tempo, sinto, do fundo do meu
coração, uma imensa dor. Solange teve o corpo inteiro
esmagado em plena faixa de segurança, ao atravessar os
Grands Boulevards. Ela não terá uma casinha em
Strasbourg Saint-Denis. As economias servirão para
comprar um belo caixão. Ela também vai ter a alegria de
uma aposentadoria definitiva na terra dos seus
antepassados. Um avião levará seu corpo para casa. Ela
devia ter algumas boas piadas em mente naquela noite, eu
gostaria de vê-la dando risada ao partir. No pequeno
cemitério do povoado onde nasceu, haverá areia branca em
seu túmulo, e conchas de lambis, rosas e pérolas adornarão
a sepultura.
Faz calor, e as gietas já se enrugam sob o sol escaldante.
Minhas folhas estão circulando, elas passam de leitor a
leitor; na falta de um acordo mais sério, sinto que chegará o
dia em que meu livro encontrará destinatário, assim me
esqueço de que queria ser “ajudante” e acabei virando
carpinteira! Que queria ser babá para cuidar de um anjinho
loiro e acabei virando cozinheira! O que estou dizendo?
Queria ser, queria ser… não tive tempo para ser nada,
fizeram com que eu fosse, fico pensando nisso, sem
ressentimento, faz calor, posso escrever sob o meu pinheiro
favorito enquanto as cigarras cantam, perto de mim
Solange está rindo, que bela peça ela me pregou partindo
assim! As outras, Yolande, Renée, a sra. Roland, contarão
daqui a alguns anos aos filhos, aos parentes:
“Vocês têm sorte! Vocês têm todas as condições para
fazer o que bem quiserem! Vocês estão nas lojas de
departamento e onde quer que o seu mérito os possa levar,
ninguém mais fica surpreso! No nosso tempo, só podíamos
ser faxineiras! A vida realmente mudou, acreditem em nós!”
Sim, Carolina! Eu acredito! Estou à espera dessa
mudança!

FIM…
Tão longe, tão perto
Vinícius Carneiro
Maria-Clara Machado
1

Somos daqueles
que dizem não à
sombra.
Aimé Césaire,
Trópicos, n. 1

A segunda metade do século XX testemunhou a emergência


na cena literária mundial de uma literatura caribenha de
língua francesa, na qual figuram nomes como Simone
Schwarz-Bart e Maryse Condé. Mas essa geração de autoras
e autores originários (ou de famílias originárias) de
Guadalupe ou da Martinica não surgiu do dia para a noite,
sendo a continuação de uma produção literária anterior, em
que a escritora Françoise Ega (1920-76), agora traduzida
pela primeira vez em português, é uma das pioneiras.
Nascida em 11 de novembro de 1920, em Morne-Rouge, e
falecida em 7 de março de 1976, em Marselha, Ega cresceu
em um meio modesto. Sua mãe era costureira; o pai,
guarda-florestal. Com a morte prematura do marido, a mãe
se viu sozinha, com cinco filhos para criar e grávida de um
sexto bebê, dos quais pôde cuidar sobretudo costurando
para os vizinhos e vendendo legumes da horta. Ega, já
crescida, vê as circunstâncias da Segunda Guerra Mundial
transformarem a sua história. Primeiro, a obediência das
colônias ultramarinas ao marechal Pétain após a ocupação
da França pelos nazistas; depois, o desembarque aliado no
norte da África, em novembro de 1942, e a consequente
insubordinação das Antilhas ao regime de Vichy; por fim, os
jovens se acotovelando nos locais de alistamento para
defender a Mãe Pátria junto às forças aliadas. Muitos partem
da terra natal, transtornando o cotidiano dos habitantes e
maculando o imaginário coletivo.
Nesse contexto, Ega deixa a Martinica, com ensino médio
completo e um diploma de datilografia. Na França, casa-se
em 1946 com um militar de origem antilhana, Frantz Julien
Ega, e o acompanha nas viagens a serviço do Exército para
a Costa do Marfim, Senegal e Madagascar. Em meados dos
anos 1950, o casal se instala definitivamente em Marselha.
À beira do Mediterrâneo e com um curso técnico no
currículo, Ega não consegue emprego na sua área e, assim
como a esmagadora maioria das antilhanas em Marselha,
resigna-se a trabalhar de faxineira para complementar a
renda familiar. Apesar do racismo que a impede de obter o
emprego desejado (e talvez em reação à discriminação
racial sofrida), a autora busca se inserir no meio intelectual
e associativo local, sendo integrante do Clube de Poetas de
Marselha, membro fundadora de associações antilhano-
guianenses da cidade, professora de catequese e educadora
infantil.
Ega acumulou os papéis de mãe, trabalhadora doméstica
e escritora, tendo produzido três romances e um pequeno
conto natalino, Le Pin de Magneau (editado pelo Comité
Mam'Ega em 2000). Seu primeiro livro publicado foi Le
Temps des madras, lançado em 1966 pela Éditions
Maritimes et d'Outre-Mer e reeditado em 1988 pela editora
L'Harmattan. Os dois outros romances, Cartas a uma negra
e L'Alizé ne soufflait plus, também publicados pela
L'Harmattan, são póstumos, de 1978 e 2000,
respectivamente. Essas três obras partem de experiências
pessoais da autora: Le Temps des madras aborda a infância
na Martinica nos anos 1920 e 1930; L'Alizé ne soufflait plus
narra a vida nas Antilhas durante a Segunda Guerra
Mundial; e Cartas a uma negra apresenta como pano de
fundo o cotidiano de exploração e violência enfrentado
pelas antilhanas ao chegarem à França. Para além da
descrição e de ponderações sobre esse cotidiano, a
narradora reflete sobre o processo de escrita (por vezes
questionando as próprias aptidões literárias) e a falta de
tempo para escrever (em busca que estava por uma editora
que publicasse seu primeiro livro, Le Temps des madras).
Em todos os casos, o momento de confecção dos textos
foi consideravelmente anterior à data de edição. Quanto a
Cartas a uma negra, segundo testemunho dos filhos de Ega,
Jean-Marc e Jean-Pierre, o grosso da escrita teria ocorrido
efetivamente entre 1962 e 1964, datas das cartas no
romance, enquanto Le Temps des madras teria começado
um pouco antes, entre o final da década anterior e o início
dos anos 1960. L'Alizé ne soufflait plus teria sido escrito
entre a segunda metade da década de 1960 e o princípio
dos anos 1970.
2

Esqueça o
quarto só para si
— escreva na
cozinha,
tranque-se no
banheiro.
Escreva no
ônibus ou na fila
da previdência
social, no
trabalho ou
durante as
refeições, entre
o dormir e o
acordar.
Gloria Anzaldúa,
“Falando em
línguas: Uma
carta para as
mulheres
escritoras do
Terceiro Mundo”

Ao longo dos anos, a obra de Ega tem sido classificada pela


crítica como essencialmente testemunhal, o que não é
incomum na análise dos textos literários de mulheres
escritoras, sobretudo negras. No ensaio L'Écriture-femme,
de 1981, Beatrice Didier revela que, da Grécia Antiga até a
contemporaneidade, não raro as mulheres recorreram à
escrita confessional. No entanto, suas narrativas são muitas
vezes deslegitimadas por se valerem de construções mais
voltadas à oralidade, mais livres do ponto de vista da
gramática normativa ou do que convencionalmente se
reconhece como “literário”. Somam-se a isso os
preconceitos étnico-raciais costumeiros que destinam a
autoras negras, quando publicadas, o lugar de porta-vozes
das mazelas sociais de toda a população negra — em
detrimento, inclusive, das características estéticas de sua
obra. Na produção de Ega, o carimbo de “testemunho”
tende a eclipsar o desdobramento de gêneros e subgêneros
literários seculares de que a autora lança mão sem pedir
licença, o ineditismo do seu trabalho, a sua sensibilidade
incomum ao descrever personagens, espaços e episódios, e
sua engenhosidade narrativa.
Para ficarmos no caso de Cartas a uma negra, podemos
afirmar que emergem da narrativa da protagonista,
Maméga (alcunha respeitosa pela qual era conhecida a
autora, contração créole de madame com Ega), uma série
de histórias, endereçadas à escritora brasileira Carolina
Maria de Jesus, de antilhanas que trabalhavam como
faxineiras na França, identificadas como “irmãs”. Tal como
Ega, a narradora, martinicana, mãe de cinco filhos e
moradora da periferia de Marselha, por ser casada com
alguém com certa estabilidade financeira, levava uma vida
menos precária do que a maior parte das conterrâneas
emigradas. Porém, escandalizada com as histórias que
ouvia das irmãs antilhanas, e a contragosto do marido,
decide mergulhar mais fundo no mundo de miséria e
exploração dos subempregos.
Maméga resolve, então, escrever sobre os quartos
fechados, as cortinas cerradas e o cheiro de guardado das
casas de famílias burguesas onde bastaria abrir janelas para
sentir o mistral, vento que sopra forte na região; sobre os
embates por uma melhor condição de trabalho para as
irmãs; sobre a rabugice e a mesquinhez insuportáveis das
patroas, capazes de adiantar e atrasar o relógio da casa em
busca de horas extras não remuneradas, mas incapazes,
por vezes, de chamá-la pelo nome, trocando-o pelo da
faxineira antiga, marcando o caráter desumanizado e
mercantilizável daquela relação. Mas não são só as patroas
que são descritas: a arrogância e o elitismo dos antilhanos
mais bem posicionados na hierarquia social não passam
despercebidos pelo olhar irônico e assertivo da narradora,
orgulhosa de suas origens.
Cartas a uma negra entrelaça os gêneros autobiográfico e
epistolar e o subgênero prosa de autoria feminina,
adicionando a isso pelo menos mais uma tradição literária:
a do romance de autoria negra. Assim, a obra de 1978 pode
ser filiada aos relatos autobiográficos, que compreendem
Confissões (final do século IV), de Santo Agostinho; As
confissões (1781-8), de Jean-Jacques Rousseau; Minha
formação (1900), de Joaquim Nabuco; e Infância (1945), de
Graciliano Ramos. Ou à tradição epistolar, que vai das
Cartas persas (1721), de Montesquieu, passando por Os
sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, As
ligações perigosas (1782), de Laclos, e A senhora de Wildfell
Hall (1848), de Anne Brontë, até a Crônica da casa
assassinada (1959), de Lúcio Cardoso. Talvez pela incrível
semelhança temática, Cartas a uma negra se aproxime mais
do romance realista O diário de uma camareira (1892), de
Octave Mirbeau, no qual o autor dá voz a uma empregada
doméstica, Célestine, nos descortinando o inferno social que
as criadas viviam nas casas de famílias burguesas francesas
na segunda metade do século XIX.
Mas as narrativas de Ega se inscrevem, sobretudo, numa
outra linhagem, que vem se fortalecendo nas últimas
décadas, tendo surgido como uma resposta à pergunta da
pensadora Gayatri Spivak: pode o subalterno falar? Fazemos
referência a autoras que escrevem em qualquer lugar,
trabalhando na lavoura ou cozinhando para os filhos, para
usar as palavras da também pensadora Gloria Anzaldúa em
“Falando em línguas: Uma carta para as mulheres escritoras
do Terceiro Mundo” (1981). Essa perspectiva de dentro,
como diria Regina Dalcastagnè — no caso de Ega, de
mulher, imigrante, negra, trabalhadora e mãe —, lhe
permite arquitetar textos que expõem construções mais
complexas de personagens subalternizadas. Percebemos,
assim, a relação estreita de Cartas a uma negra com outras
obras de autoria negra e feminina, como Amada (1984), de
Toni Morrison; Quarto de despejo (1960) e Diário de Bitita
(1977), de Carolina Maria de Jesus; Ponciá Vicêncio (2003),
de Conceição Evaristo; e Um defeito de cor (2006), de Ana
Maria Gonçalves.
3

Picket lines
School boycotts
They try to say
it's a communist
plot
All I want is
equality
for my sister, my
brother, my
people,
and me
Nina Simone,
“Mississippi
Goddam”

Outro dado relevante no universo do romance de Ega é o


fato de que a primeira correspondência de Cartas a uma
negra data de 1962. São exatos dez anos depois do
lançamento de Pele negra, máscaras brancas, de Frantz
Fanon, pontapé inicial do combate pela descolonização das
mentes dos povos da diáspora negra, e um ano antes da
morte de Fanon, quando este já era um dos líderes da
Frente de Libertação Nacional da Argélia (FLN). O paralelo
entre Ega e Fanon não é à toa: nascidos na mesma década
na Martinica, ambos sentiram na carne e na alma as
desgraças da Segunda Guerra Mundial. Tal como o marido
de Ega, Fanon lutou pela França contra o fascismo. Tanto o
autor de Os condenados da terra quanto a autora de L'Alizé
ne soufflait plus queriam mais (melhores condições de
existência para a sua gente, diferentes espaços de
circulação social, novos meios para interpretar e reinventar
o mundo a sua volta), o que os impulsionou a enveredar
para as letras. Ambos engajados, disseram muito em
poucas publicações, a maior parte delas póstuma. Ambos
antirracistas, fizeram, cada um a sua maneira, da própria
vida um exemplo, e da escrita um campo de batalha.
Os anos 1950 e 1960 foram, de fato, um período de
erupção das lutas contra a discriminação social e racial pelo
mundo. De todas as latitudes e longitudes, surgiam
produções que davam voz àqueles e àquelas que sempre
foram oprimido(a)s e desumanizado(a)s. Nina Simone, no
seu álbum de estreia na Philips, gravado em 1964, canta
pela primeira vez a desigualdade racial nos Estados Unidos.
Trata-se de “Mississippi Goddam”, canção-resposta ao
assassinato de Medgar Evers, em 12 de junho de 1963, e ao
atentado a uma igreja batista no Alabama, no dia 15 de
setembro do mesmo ano. Nela, entoa-se “All I want is
equality/ for my sister, my brother, my people and me”
(Tudo o que quero é igualdade/ Para minha irmã, meu irmão,
meu povo e para mim).
Em 1966, é lançado na França o primeiro longa-metragem
do senegalês Ousmane Sembène, La Noire de…, adaptação
de um conto da sua antologia de 1962, Voltaïque, vencedor
do Prix Jean-Vigo. No filme, Diouana, jovem senegalesa de
Dakar, deixa a terra natal para se tornar faxineira na casa
de um casal francês em Marselha. Chegando à Europa,
mesmo com a promessa de trabalhar como babá, logo se vê
confinada na casa dos patrões na Côte d'Azur, onde se
encarrega da faxina e da cozinha. A heroína conhece então
o desprezo dos empregadores e a solidão — experiência não
muito distante da que encontramos em Cartas a uma negra.
Retratar o cotidiano de traumas e perseverança não era
novidade para Sembène, que havia contado com amargura
o destino trágico de um estivador em Marselha em Le
Docker noir, de 1956. No romance, o protagonista Diaw
Falla, jovem escritor imigrado do Senegal, entrega seus
manuscritos a uma parisiense que lhe prometera encontrar
um editor. A mulher, no entanto, publica o livro com o seu
nome, e Diaw parte desesperado para Paris a fim de
encontrá-la.
E há o caso já mencionado de Carolina Maria de Jesus, a
destinatária das cartas da obra de Ega. Em 1960, é
publicado Quarto de despejo, que também tem a estrutura
de um diário, com início em 15 de julho de 1955 e término
em 1º de janeiro de 1960. Ega e Jesus se valem, assim, do
mesmo gênero para falar de problemas semelhantes no
mesmo período. Mas o fato de Maméga escrever
especificamente para a destinatária Carolina cria um outro
tipo de elo entre elas, para além da crítica ao colonialismo,
do racismo, da diáspora negra e da exploração de classe
que une as autoras a Fanon, Sembène e Nina Simone. Em
Cartas a uma negra, a narradora, ao partir da escrita da
brasileira para desenvolver a sua própria escrita, almeja
estabelecer com ela um encontro, possível apenas
literariamente.
4

ELA ESCREVEU UM BEST-SELLER COM PAPEL RECOLHIDO NO LIXO.


Essa foi
a manchete escolhida para apresentar Carolina Maria de
Jesus na França, na edição da revista Paris Match de maio
de 1962. Na capa, uma foto da atriz italiana Sophia Loren,
coberta de joias. A matéria conta com trechos da tradução
em francês de Quarto de despejo, Le Dépotoir, à época
recém-lançado pela editora Stock. Somam-se a eles,
intercalados, comentários sobre a obra e a vida de Carolina
de Jesus, além de fotos da autora: no barraco onde morava
no Canindé, em São Paulo; entre mocinhas brancas na praia
de Copacabana; em família na casa nova; junto ao jornalista
Audálio Dantas, que a ajudou na sua primeira publicação;
na sessão de autógrafos de Quarto de despejo, com um belo
vestido e joias; e, por fim, visitando os pobres de uma favela
do Rio de Janeiro. As duas primeiras fotos, as de maior
destaque, no barraco e na praia carioca, servem como
resumo iconográfico do artigo: trata-se do registro de um
fenômeno literário e social, uma mulher saída da miséria
direto para o estrelato. Realizada pelos jornalistas Robert
Collin e Jean Manzon, a reportagem tem sete páginas: nas
três primeiras, a matéria ocupa folhas completas da revista,
com texto e fotos; nas quatro restantes, a história de
Carolina de Jesus toma, em regra, uma coluna vertical de
cada página, dividindo espaço com anúncios publicitários de
toda sorte, de relógios a água mineral.
No perfil da Paris Match, a escolha das passagens
selecionadas para exemplificar a obra da brasileira é bem
particular. Numa delas, lê-se: “No lixo, encontrei um inhame
e batatas. Cheguei na favela e meus filhos estavam roendo
pão duro”. Logo a seguir, o mesmo tom: “Quando acordei,
tive vontade de morrer. Já que os pobres são tão
desgraçados, para que viver? Será que os pobres dos outros
países sofrem como os pobres do Brasil?”. Nada é em vão: a
reportagem da Paris Match é caracterizada por um viés
“documental”, o que acaba por edificar um perfil sob as
cores do exotismo, quase uma caricatura. Emerge da revista
a figura de uma personagem negra oriunda de uma
realidade alienada do mundo desenvolvido, marcada pela
indiferença, pela miséria e pelo atraso. A imagem contrasta
com o(a) francês(a) branco(a) de classe média, perfil do que
seria um(a) escritor(a) para o(a) leitor(a) do periódico. Como
consequência da lupa sobre seu barraco e suas roupas
rotas, perde-se de vista a análise crítica dos artifícios de
escrita de seus textos, praticamente ignorados. O curioso é
que, na matéria, os trechos que fazem da autora brasileira
uma figura exótica ao público francês são os mesmos que a
tornam familiar para Françoise Ega.
5

Hay tantísimas
fronteras
que dividen a la
gente,
pero por cada
frontera
existe también
un puente.
Gina Valdés,
“Somos una
gente”

A prosa epistolar de Ega inicia de maneira contundente e


primorosa: “Pois é, Carolina, as misérias dos pobres do
mundo inteiro se parecem como irmãs. Todos leem você por
curiosidade, já eu jamais a lerei; tudo o que você escreveu,
eu conheço, e tanto é assim que as outras pessoas, por
mais indiferentes que sejam, ficam impressionadas com as
suas palavras”. No romance, a narradora decide fazer do
trabalho um momento de observação, descrição e reflexão.
Isso lhe permitiria relatar a sua experiência de trabalhadora,
sobretudo como faxineira (mas também como feirante,
operária numa fábrica e ajudante num açougue), a fim de
contar a história das imigrantes que viviam realidades
semelhantes no sul da França. Em plena Guerra Fria,
Maméga é como uma espiã infiltrada no seio da família
burguesa francesa.
Conforme Mireille Rosello em Infiltrating Culture: Power
and Identity in Contemporary Women's Writing (1996), a
pesquisa de campo do etnógrafo é substituída na narrativa
pelo crivo da escritora-faxineira, estrangeira que toma nota
sobre a opressão de classe (personificada na figura das
patroas), subvertendo a lógica da antropologia europeia do
século XIX e, por consequência, do colonialismo. Isso porque,
tendo sido uma das ciências utilizadas para criar o “racismo
científico”, a antropologia do século XIX foi uma ferramenta
poderosa para justificar as práticas colonialistas do período
e, por conseguinte, do racismo, ainda generalizado. Em
Cartas a uma negra, se o europeu é analisado, não é ele
quem analisa, sendo, então, objeto, e não agente. É como
se, por meio da prática de observação antropológica, fosse
suspensa a lógica científica que amparou o racismo e a
consequente possessão das colônias durante séculos.
Há, pelo menos, mais uma subversão em jogo na escrita
de Maméga, dessa vez de ordem literária. Quando
transforma em literatura sua vida como faxineira, ela se
refere às próprias experiências, mas seu status como
empregada é o de quem ocupa esse papel criticamente,
decidindo fazer dessas vivências objeto e lugar de escrita.
Logo, no momento em que aceita trabalhar em empregos
subalternos, Maméga se torna também escritora. A sua
escrita, como a de Carolina de Jesus, põe em xeque a noção
de intelectuais versus trabalhadores — afinal de contas,
trabalhadores(as) podem refletir sobre sua existência,
transformando-a em arte.
A dicotomia entre universo letrado e iletrado, presente em
sociedades cruelmente desiguais como a francesa e a
brasileira (cujo episódio latino-americano já foi tão
pertinentemente diagnosticado por Ángel Rama em A
cidade das letras, de 1984), encontra em Ega uma
formulação lapidar. Vide o paroxismo da condição da
narradora no momento em que trabalha e escreve. Maméga
se dá conta de que “existem profissões realmente bestas,
visto que, dependendo se você se dedica à faxina ou às
letras, passa da condição de burro de carga à de ser
humano”. Mas Maméga é justamente as duas coisas: uma
femme de ménage e uma femme de lettres (num trocadilho
em português, uma criada e uma criadora). Tal condição,
rara, mas não sui generis, está no cerne de tudo que é dito.
A narradora é aquela que trabalha para testemunhar a
penosa condição de vida de suas semelhantes, as
imigrantes, mesmo que o sofrimento que estas são
obrigadas a suportar não seja uma questão de vida ou
morte para ela. A operação do texto é dupla, tal como nos
remete etimologicamente o vocábulo operātiō, ōnis em
latim: almeja-se exercer uma ação (trabalho) enquanto ato
de criação e provocar uma reação (obra) perante a
realidade degradante.
6

Carolina, você
nunca vai me
ler; eu jamais
terei tempo de
ler você, vivo
correndo, como
todas as donas
de casa atoladas
de serviço, leio
livros
condensados,
tudo muda
rápido demais
ao meu redor.
Françoise Ega,
Cartas a uma
negra

Essa operação está intimamente conectada à destinatária


das cartas. Como vimos, tocada pela história de Carolina de
Jesus, cujos livros nunca teria tempo de ler, Maméga resolve
contar também a história de mulheres que, imigrantes como
ela, sofriam por causa de sua condição de classe, raça e
gênero, fazendo de destinatária dos relatos a escritora
brasileira. Um dado importante nessa equação é que a
narradora nunca teve acesso (assim como a própria
Françoise Ega) à obra de Carolina de Jesus. Segundo Cartas
a uma negra, o marido de Maméga chegou a procurar o
jornalista da matéria na sede da revista, em Paris, para
saber mais sobre a escritora brasileira, sem sucesso.
O interessante é que os trabalhos sobre o romance
epistolar igualmente parecem não ter conseguido acessar a
obra da escritora brasileira. Muitas são as análises que se
contentam em acrescentar algum comentário em nota de
rodapé sobre a autora de Quarto de despejo. Outras tantas
se deixam levar pela falta de curiosidade, limitando-se a
repetir o que Maméga fala sobre a escritora.
Assustadoramente, não identificamos ainda um estudo
sobre Cartas a uma negra que se proponha a ler Carolina de
Jesus e responder a perguntas que a nós, brasileiros, saltam
aos olhos: por que escrever as cartas justamente a essa tal
de Carolina? Quem é de fato a autora brasileira? Quais são
os sentidos que emanam desse diálogo além-mar?
Tal anedotário bibliográfico nos remete ao vazio profundo
que envolve a atividade criativa de Maméga: sua
correspondente, Carolina, conhecedora de realidades
semelhantes à sua (o universo da pobreza, do racismo, da
exploração e da escrita literária), também sabe que a
destinatária não receberá as cartas. A conexão entre ambas
é trágica, pois resulta de uma experiência de carência a
princípio intransponível. A brasileira e a martinicana têm
experiências parecidas, mas não podem falar uma com a
outra, nem mesmo se ouvir. Na figura de Carolina,
amalgamam-se a única correspondente possível e a mais
inacessível.
Assim, Françoise Ega apropria-se criativamente das
convenções da prosa epistolar ao repensar os limites da
figura do(a) destinatário(a) (pois escreve para alguém que
não lerá as cartas), mas também do gênero como um todo
(pois as cartas existem ficcionalmente para não serem
lidas). A obra é, portanto, desde o início, uma
correspondência intransitiva. Essa subversão potencializa a
reflexão de Maméga sobre a escrita e a angústia de
existências precárias de personagens oprimidas, já que
caberia ao leitor do romance desafiar e desvendar o silêncio
da destinatária — o silêncio quanto aos escritos e à escrita
da destinatária.
Maméga lê muitos livros condensados, resumos
publicados em revistas destinados, em geral, à classe
média, para que tivesse sobre o que conversar em
encontros sociais. Já para a narradora, acessá-los era como
um privilégio que lhe permitia entrar diretamente num
universo letrado e literário. Devido a sua condição social e
suas circunstâncias de leitura (no ônibus, entre um esbarrão
e uma freada; em casa, entre fazer a comida e pôr as
crianças para dormir), Maméga pratica aquilo que Pierre
Bayard nomeia provocativamente, em Como falar dos livros
que não lemos (2007), como uma leitura “não leitura”, pois
o processo de ler de Maméga não envolve somente a leitura
completa de um texto, linha por linha, página por página, da
esquerda para a direita, de cima para baixo, do início ao fim.
Lemos livros, e lemos muito, por outros caminhos: através
de fragmentos escolhidos ao acaso, de capítulos relevantes
para a nossa pesquisa ou de trechos citados, folheando uma
publicação que nos interessa e até mesmo ouvindo falar de
uma obra. Todos esses exemplos seriam práticas de “não
leitura”, uma vez que nos possibilitam tecer comentários
sobre tais obras e, o mais importante, criar a partir do que
lemos. Nesse sentido, Maméga conheceu Carolina de Jesus,
e muito bem, tão somente nas sete páginas da Paris Match
de maio de 1962, o que foi suficiente para dar sequência a
um diálogo iniciado pela irmã brasileira, mesmo que esta
provavelmente não tivesse consciência da abrangência e da
repercussão do que escrevia.
A questão do exemplo, aqui, é fundamental: é da periferia
que emerge uma escrita capaz de impulsionar a ambição
poética em Ega, latente enquanto potência. É como se o
romance fosse, sim, sobre a diáspora negra, o trabalho de
imigrantes, a literatura antilhana e a militância feminina,
mas também sobre algo mais. Esse algo mais existe e
persiste na câmara literária de ecos em que reverberam
vozes historicamente sufocadas, mas que, quando
espelhadas, se reforçam mutuamente rumo ao
protagonismo. Por meio da escrita, funda-se, então, uma
espécie de genealogia além-mar. Se, por um lado, a
reportagem da Paris Match parece alienar do mundo (pelo
menos do mundo desenvolvido) a narrativa de vida da
escritora brasileira, por outro, constrói uma ponte que
permite o encontro entre as duas escritoras, unidas pelas
margens. Tal ponte é relevante porque existe, como vimos,
um vazio crítico quanto à presença de Carolina Maria de
Jesus na obra de Ega.
7

Nós não falamos


o mesmo
idioma, é
verdade, mas o
do nosso
coração é o
mesmo, e faz
bem se
encontrar em
algum lugar,
naquele lugar
onde nossas
almas se
cruzam. Hoje,
recuperei a paz
de espírito e
converso com
você, me sinto
descansada.
Françoise Ega,
Cartas a uma
negra

A tradução de Cartas a uma negra nos impõe uma série de


questões, ligadas, sobretudo, às implicações indissociáveis
da publicação em português, mais precisamente à
destinatária nada irrelevante. Num mundo onde saber quem
você é significa primeiro saber quem são os outros, a
tradução é um elo fundamental, pois é a prática pela qual
se pode conhecer e reconhecer o outro para se conhecer e
se reconhecer de modo distinto. Em Translation and Identity
(2006), de Michael Cronin, a tradução é vista como uma
forma de aumentar a nossa compreensão de determinado
texto-fonte no momento de negociação com a cultura de
chegada (no nosso caso, o português brasileiro),
fomentando o desenvolvimento da diversidade (em
oposição à universalidade eurocêntrica). Na passagem de
Lettres à une noire a Cartas a uma negra, esse ganho pela
diferença está intimamente conectado ao horizonte de
leitura do leitor familiarizado com a literatura brasileira.
Para nós, Carolina Maria de Jesus não é apenas assunto de
uma reportagem da Paris Match, mas uma escritora
nacionalmente renomada, precursora da literatura de
autoria negra e feminina na América do Sul, cujos textos
puseram de cabeça para baixo a lógica do sistema literário
nacional e cuja leitura é base para se pensar a relação entre
o lastro escravocrata, o abismo sócio-econômico, a cultura
letrada e a produção literária no Brasil.
Ao se traduzir o romance de Ega para o português, o
silêncio altissonante da destinatária ecoa através de toda
uma tradição literária e iconográfica, em igual medida rica e
enriquecedora. Esta tradução é, portanto, a concretização
dos alicerces do diálogo lançado na prosa epistolar
publicada postumamente, uma vez que o horizonte de
expectativa do leitor de literatura brasileira, diante da
narrativa de Ega, desencadeia os intertextos com a obra de
Carolina de Jesus, sua trajetória de vida e os paradoxos de
sua produção. É desse modo que a marca de alteridade do
relato em francês, idioma no qual Carolina de Jesus é um
grande outro, seria finalmente acessada pelo leitor lusófono
dos trópicos, tão longe e tão perto.

Esta tradução foi resultado do diálogo instaurado entre nós,


autores deste posfácio, em La Rochelle, em 2017, por
ocasião da jornada de estudos Cultures, Arts et Littératures
Périphériques dans le Brésil Contemporain, e continuada na
forma do trabalho acadêmico conjunto “Cartas de Françoise
a Carolina: A  construção literária de uma amizade”,
apresentado no VII Colóquio Internacional sobre Literatura
Brasileira Contemporânea: Contrabandos Literários,
Resistências Epistêmicas, realizado na Dinamarca, na
Universidade de Copenhague, entre os dias 17 e 18 de
dezembro de 2018. Gostaríamos de agradecer à professora
Regina Dalcastagnè pelo apoio e estímulo, tanto para os
trabalhos acadêmicos de pesquisa envolvendo as produções
de Françoise Ega e Carolina de Jesus quanto para o projeto
de tradução; ao Comité Mam'Ega, por todas as prontas
respostas, sobretudo a Jean-Pierre e Jean-Marc Ega, que
continuam o legado associativo da mãe, sendo os
responsáveis pelo seu espólio intelectual; e, finalmente, à
poeta Lorena Martins, pela contribuição valiosa.
Nascida na Martinica, Françoise Ega (1920-1976)
trabalhou como doméstica antes de se tornar escritora e
uma importante ativista social em defesa dos imigrantes
caribenhos na França. Lançou, em vida, Le Temps des
madras: Récit de la Martinique, em 1966, e teve mais dois
livros publicados postumamente, este Cartas a uma negra:
Narrativa antilhana, em 1978, e L’Alizé ne souflait plus
(Antan Robè), em 2000.
Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la
Publication année 2019 Carlos Drummond de Andrade de
l’Ambassade de France au Brésil, bénéficie du soutien du
Ministère de l’Europe et des Affaires étrangères.

Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à


Publicação ano 2019 Carlos Drummond de Andrade da
Embaixada da França no Brasil, contou com o apoio do
Ministério francês da Europa e das Relações Exteriores.
Originalmente publicado na França sob o título Lettres à une
noire:
Récit antillais © L’Harmattan, 1978, www.harmattan.fr

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em
2009.

capa
Violaine Cadinot
imagem de capa
Peter Uka. Front yard things, 2020, 200 × 140 cm.
Cortesia do artista e de Mariane Ibrahim
preparação
revisão
Ana Alvares
Jane Pessoa
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
——
Ega, Françoise (1920-1976)
Cartas a uma negra: Narrativa antilhana: Françoise Ega
Título original: Lettres à une noire: Récit antillais
Tradução: Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty
Posfácio: Vinícius Carneiro e Maria-Clara Machado
São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2021
256 páginas

ISBN 978-65-5692-095-5

1. Literatura francesa 2. Cartas 3. Martinica I. Carneiro, Vinícius II. Moaty,


Mathilde III. Machado, Maria-Clara IV. Título

846
CDD

——
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura francesa: Cartas 846
todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br
1.Curso para alunos de alto rendimento que seleciona
estudantes para as faculdades de elite na França, as
grandes écoles. [Esta e as demais notas são dos
tradutores.] 
[ «« ]

2.Exame equivalente ao vestibular brasileiro. 


[ «« ]

3.Referência aos cidadãos franceses que nasceram na


Argélia e, por extensão, no norte da África. 
[ «« ]

4.Nas Antilhas, pessoa negra de pele clara. 


[ «« ]

5.Referendo apresentado pelo presidente Charles de Gaulle


propondo a eleição presidencial por sufrágio universal, e
não via assembleia de notáveis. 
[ «« ]

6.Gaston Defferre (1910-86) foi prefeito de Marselha por 33


anos, até sua morte.  
[ «« ]

7.Referência ao atentado sofrido por De Gaulle em 22 de


agosto de 1962. 
[ «« ]

8.Provável referência à escritora Anna Langfus (1920-66),


de origem polonesa, que em 1962 recebeu o prêmio
Goncourt com o livro Les Bagages de sable. 
[ «« ]
9.Acidente geográfico encontrado no mar Mediterrâneo sob
a forma de angra, enseada ou baía. 
[ «« ]

10.Referência aos praticantes do fetichismo, culto de


objetos — os fetiches  — considerados possuidores de
poderes sobrenaturais ou mágicos. 
[ «« ]

11.Empregada doméstica protagonista da história em


quadrinhos da revista infantojuvenil La Semaine de Suzette
(1905). O sucesso da personagem fez com que bécassine
entrasse no vocabulário francês como sinônimo de garota
provinciana e ingênua. 
[ «« ]

12.Nas Antilhas, designação afetuosa atribuída a uma


mulher. 
[ «« ]

13.Possível referência a Tomás de Aquino (1225-74), visto


como um defensor do riso na Igreja católica após seu
Tratado sobre o brincar. 
[ «« ]

14.Linguiça originária do Magrebe, tradicionalmente feita


com carne de carneiro e especiarias, muito popular na
França. 
[ «« ]

15.Na França dos anos 1950 e 1960, as casas de repouso


eram destinadas, além dos idosos, a pessoas mais jovens
que buscavam a cura de algum mal longe dos miasmas e
micróbios das grandes cidades. 
[ «« ]

16.Rua conhecida por ser área de prostituição em Marselha. 


[ «« ]

17.A personagem confunde “Zubidom” com Bumidom,


acrônimo do Bureau pour le Développement des Migrations
dans les Départements d'Outre-Mer, órgão francês
responsável pela emigração dos habitantes dos
departamentos ultramarinos para a França metropolitana.
Com esperança de trabalhar na Europa, muitos antilhanos
passavam por formações dos Centres de Apprentissage
ligados ao Bumidom. 
[ «« ]

18.Em francês, há o jogo de palavras entre femme de


ménage (faxineira) e femme de lettres (escritora), que dá
conta da relação trágica entre profissões e classes sociais. 
[ «« ]

19.Sugar Ray Robinson (1921-89), pugilista norte-


americano, campeão mundial peso meio-médio de boxe
entre 1946 e 1951. 
[ «« ]

20.No original, congé budgétaire, situação na qual se


encontravam antilhanos aspirantes à carreira militar que,
por falta de vagas na França continental, não eram
chamados. 
[ «« ]

21.Nome de uma marca de temperos que, popularmente,


designa uma alternativa mais barata para o açafrão. 
[ «« ]

22.Nos países colonizados, empregado doméstico nativo. 


[ «« ]

23.Nas Antilhas, designação atribuída a um antilhano de


pele branca descendente de europeus. 
[ «« ]

24.Referência à Batalha de Monte Cassino durante a


Segunda Guerra Mundial, que contou com o Batalhão das
Antilhas, formado por 2500 dissidentes martinicanos,
guadalupenses e guianenses. 
[ «« ]

25.Em crioulo martinicano, jôdi, jodi-a ou jodi-jou vêm de


aujourd'hui, “hoje”. 
[ «« ]
Afetos ferozes
Gornick, Vivian
9786580309498
208 páginas

Compre agora e leia

Publicado em 1987, é uma verdadeira obra-prima


entre os livros de memórias. Um clássico dos nossos
dias.
"Mal me lembro dos homens. Eles estavam por toda parte,
lógico — maridos, pais, irmãos —, mas só me lembro das
mulheres", escreve Vivian Gornick a certa altura deste livro.
O território é o Bronx nova-iorquino da década de 1940, um
lugar cercado de mulheres ansiosas e boas de briga,
destacando-se entre elas a indomável mãe judia da autora.
Afetos ferozes é a história de um elo delicado e muitas
vezes exaustivo, a crônica de uma ligação que define e
limita ao mesmo tempo. É também o retrato de uma
sociedade e de uma era em que as mulheres começaram a
se tornar protagonistas de suas próprias histórias — além de
uma das mais profundas meditações sobre a experiência de
ser mulher. Crítica, jornalista e ensaísta experiente, Gornick
perambula pelas ruas de Manhattan com sua mãe idosa. Ao
longo desses passeios repletos de histórias, lembranças,
reprimendas e cumplicidades, conhecemos a história da luta
— ferrenha e muitas vezes dolorosa — de uma filha para
encontrar o seu lugar e a sua voz no mundo. Desde cedo, a
pequena Vivian sofre a influência de dois modelos femininos
bastante distintos: o da mãe neurótica, teimosa e
inteligente; e o de Nettie, sua apaixonada vizinha, viúva,
mãe de um bebê, perfeitamente consciente de sua própria
sensualidade. Essas duas figuras representam padrões que
a jovem Gornick a um só tempo anseia e detesta, e que vão
determinar seu relacionamento futuro com os homens, com
o trabalho e com outras mulheres pelo resto da sua vida.
Escrito com uma clareza atordoante que fascina desde a
primeira linha, Afetos Ferozes pode ser lido como um grande
romance da tradição literária norte-americana do século xx.
Mas um romance de não ficção em que a memória, a
família, a palavra escrita e a força inesgotável das mulheres
são as grandes protagonistas.

Compre agora e leia


O espelho e a luz
Mantel, Hilary
9786556920924
768 páginas

Compre agora e leia

Desde que o encontramos pela primeira vez, Thomas


Cromwell vem tentando precisamente lutar contra os
mortos e impedir que continuem determinando o presente e
o futuro dos vivos. Em Wolf Hall e Tragam os corpos,
assistimos à ascensão desse plebeu que se tornou o
principal ministro de Henrique 8º, ajudando-o a se
divorciar de Catarina de Aragão e guiando a Inglaterra em
seu rompimento com a Igreja de Roma. Transcorrido entre
1536 e 1540, O espelho e a luz começa no ponto exato em
que o segundo volume acabou: no cadafalso ensanguentado
onde jaz o corpo de Ana Bolena. Após auxiliar o rei a se
livrar de mais uma esposa indesejada, Cromwell alcança o
auge de sua glória. Mas há velhas sombras e novos
obstáculos em seu caminho. No Norte da Inglaterra,
rebeldes marcham em defesa do catolicismo; no exterior, os
inimigos do rei conspiram para destroná-lo. Além de frustrar
esses planos, o múltiplo ministro de Henrique 8º precisa
lidar com o caótico temperamento do monarca, que fica
mais feroz conforme ele envelhece. O maior adversário de
Cromwell, contudo, será sua própria consciência. À medida
que sua aventura se aproxima do fim, ele terá de arcar com
o peso das vidas que destruiu (e dos princípios que
escamoteou) em sua missão de reformar a Inglaterra.
Compre agora e leia
O cadete e o capitão
Maklouf Carvalho, Luiz
9786580309368
256 páginas

Compre agora e leia

Uma investigação sobre um momento controverso na


trajetória de Jair Bolsonaro: o abandono da carreira
militar e o ingresso na vida política.

Jair Bolsonaro tornou-se uma figura pública em 1986,


quando assinou na revista Veja um artigo em que reclamava
do baixo soldo pago aos militares. Um ano depois, nas
páginas da mesma revista, reapareceu numa reportagem
que revelava um plano de estourar bombas em locais
estratégicos do Rio de Janeiro. A revista publicou um
desenho que detalhava o plano. O croqui, supostamente de
autoria do capitão, comprovaria a conspiração em curso no
Exército. Instado a prestar contas, Bolsonaro foi considerado
culpado no primeiro julgamento, e mais tarde inocentado
pelo Superior Tribunal Militar (stm). Após a decisão da corte,
deixou a farda, passou à reserva e ingressou na política.
Esta é a reportagem mais completa já escrita sobre esse
período pouco conhecido. O autor examinou a
documentação do processo (reproduzida no livro) e escutou
as mais de cinco horas de áudio da sessão secreta — ambos
disponíveis no stm. Também entrevistou personagens que
atuaram no caso, entre jornalistas de Veja e militares
colegas de Bolsonaro. Além de reunir indícios suficientes
para apontar que a autoria do croqui, como sustentou Veja
até o fim, era mesmo do capitão, Maklouf reconstitui um
episódio decisivo não apenas para a trajetória do presidente
eleito em 2018, mas também para a redemocratização e o
jornalismo no Brasil.

Compre agora e leia


Memórias de um doente dos
nervos
Schreber, Daniel Paul
9786556921006
480 páginas

Compre agora e leia

Um juiz alemão relata a própria experiência com a loucura.


Desde que serviu de base para o clássico "Observações
psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em
autobiografia", de Freud, o livro ganhou edições mundo
afora e segue como referência para o debate sobre os
limites da razão. Esta edição, além de contar com
introdução e tradução de Marilene Carone, traz ainda dois
ensaios que ampliam a compreensão do caso Schreber e
atestam sua atualidade.

Compre agora e leia


Torto arado
Vieira Junior, Itamar
9786580309320
264 páginas

Compre agora e leia

Um texto épico e lírico, realista e mágico que revela,


para além de sua trama, um poderoso elemento de
insubordinação social.

Nas profundezas do sertão baiano, as irmãs Bibiana e


Belonísia encontram uma velha e misteriosa faca na mala
guardada sob a cama da avó. Ocorre então um acidente. E
para sempre suas vidas estarão ligadas — a ponto de uma
precisar ser a voz da outra. Numa trama conduzida com
maestria e com uma prosa melodiosa, o romance conta uma
história de vida e morte, de combate e redenção.

Compre agora e leia

Você também pode gostar