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Experiência e tradição em Walter Benjamin: ressonâncias para a educação

Referencia para citar este artículo: Da Rocha, S. L. Alves (2016). Experiência e tradição em Walter Benjamin:
ressonâncias para a educação. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 14 (1), pp. 121-132.

Experiência e tradição em Walter Benjamin:


ressonâncias para a educação*
Sérgio Luiz Alves da Rocha**
Professor Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, Brasil.

Artículo recibido en junio 26 de 2015; artículo aceptado en septiembre 9 de 2015 (Eds.)

• Resumo (descritivo): O proceso educativo faz com que diferentes gerações tenham que
relacionar-se. Diante das modificações dos últimos anos, alguns professores, adotam ora uma
perspectiva saudosista, ora um discurso que valoriza de modo extremo os jovens e o novo. A ênfase,
seja na experiência dos mais velhos, com a consequente desvalorização dos mais jovens, ou da
experiência dos mais jovens, renegando-se a experiência dos mais velhos, nos impede de estabelecer
pontes entre as gerações. Utilizo alguns textos de Walter Benjamin para refletir sobre o significado
da experiência e da tradição. As ideias de Benjamin me permitem pensar sobre a relação entre
as gerações no interior da escola a partir de uma postura ética que reconheça nosso papel como
representantes de uma determinada tradição sem deixar de estarmos abertos às experiências dos
jovens.
Palavras-chave: geração, tradição, experiência, Walter Benjamin (Thesaurus de Ciências Sociais
da Unesco).

Experience and tradition in Walter Benjamin and its resonance for education

• Abstract (descriptive): The educational process put generations together. The latest changes
made the teachers assume sometimes a nostalgic perspective, holding the past and denying the
present, and other times accept a speech that values, on an extreme way, the youth and the new. The
focus on the older’s experience with the devaluation of the younger’s experience or on the younger’s
experience denying the older’s experience keeps us from establishing links between the generations.
I use some Walter Benjamin’s texts to reflect about the meaning of experience and tradition. The
reflection about such Benjamin ideas made me think about the relation between the generations
inside the school from one ethical attitude, that recognizes our role as representatives of one tradition
and that still makes us open for the youth’s experiences.
Key words: generation, tradition, experience, Walter Benjamin (Unesco Thesaurus Social
Science).
*
O presente artigo revisão de tema foi desenvolvido como parte das reflexões do projeto de doutorado em educação sobre a relação entre alunos
e professores de uma escola pública com a leitura, inserido em um projeto Institucional mais amplo, intitulado “Educação e Mídia: imagem
técnica e cultura escrita”, desenvolvido no ProPEd-UERJ. A investigação que deu origem ao artigo iniciou-se em Março/2007 e foi finalizada
Março/2011. A pesquisa que originou este artigo resultou em uma Tese de doutorado, defendida em 28 de março de 2011. Área: Educação;
Subárea: Educação geral.

**
Doutor em Educação pelo programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd-UERJ). Correio
eletrônico: sergio.rocha@ifrj.edu.br

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Experiencia y tradición en Walter Benjamin: Resonancias para la educación

• Resumen (descriptivo): El proceso educativo hace que distintas generaciones se relacionen.


Frente a las modificaciones de las últimas décadas algunos profesores adoptan desde una perspectiva
nostálgica hasta un discurso elogioso y a veces extremo sobre los jóvenes y sobre lo nuevo. El énfasis,
sea en la experiencia de los más viejos, el desprecio de la experiencia de los más jóvenes o renegando
de la experiencia de los más viejos, nos impide establecer puentes entre las generaciones. Utilizo
textos de Walter Benjamin para reflexionar sobre la experiencia y la tradición. Las ideas de Benjamin
permiten pensar acerca de la relación entre generaciones al interior de la escuela a partir de una
posición ética que reconoce nuestro papel como representantes de una determinada tradición sin
dejar de estar abiertos a las experiencias de los jóvenes.
Palabras clave: generación, tradición, experiencia, Walter Benjamin (Tesauro de Ciencias
Sociales de la Unesco).

-1. Introdução. ­2. A experiência dos mais velhos X (in)experiência. -3. A natureza da
tradição. -4. Reflexões. -Referências.

1. Introdução oposto, acreditando que nela não há nada que


possa ser significativo para meus alunos.
Essa atitude pendular reflete, do ponto de
“Há dois sinais de vista mais geral das ideias, principalmente em
envelhecimento. O primeiro momentos de rápidas mudanças como este que
é desprezar os jovens. O agora vivemos, duas posições sobre a natureza
outro é quando a gente das mudanças e seus efeitos. De um lado, a
começa a adulá-los.”
possibilidade de, diante da novidade, olhar para o
Mário Quintana passado e buscar na tradição uma crítica à suposta
desordem promovida pelas transformações.
Em minha trajetória de professor- Mesmo que não exista necessariamente uma
pesquisador, uma de minhas preocupações foi forte presença do passado como solução para
a de encontrar um lugar que me situasse de aquilo que se identifica como crise, a reflexão
alguma forma entre os dois polos que foram sobre o presente será sempre feita a partir de
tão bem descritos por Mário Quintana (1986) seu caráter intrinsecamente negativo. De outro
na epígrafe deste texto. Um lugar entre o lado, a possibilidade de constituir uma postura
“desprezo” e a “adulação” às novas gerações. essencialmente otimista em relação ao presente
Na verdade, um questionamento que de início e ao futuro que se apresenta, renegando o
era muito menos acadêmico e muito mais passado e a tradição como algo ultrapassado, um
existencial, ligado ao meu cotidiano como empecilho ao progresso. Em nossas sociedades,
professor e ao constante contato com os meus em que o peso da tradição oral foi relativizado
jovens alunos, ora maravilhosos, ora irritantes. por outras diversas formas de transmissão
Em muitos momentos pensei não ter o de nossa história, os depositários da tradição
que dizer ou não sabia como agir em relação são constantemente desqualificados como
a eles; em outros, devo confessar, deixei de fonte de conhecimento válido. A novidade,
lado qualquer senso crítico para fazer apologia principalmente associada aos avanços técnicos,
de suas produções, de sua infinita capacidade tem sido muitas vezes valorada em si mesma.
criativa. Se antes não tinha dúvidas de que a Impõe-se, nessa perspectiva, a necessidade de
minha trajetória de vida deveria ser considerada negar o passado e de recomeçar do zero.
modelar, agora, muitas vezes, corro para o polo

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Essas duas posições -atribuindo primeiro momento em que travei contato com
importância, seja ao velho, seja ao novo-, quando seus ensaios, identifiquei neles a possibilidade
cristalizadas, inviabilizam a possibilidade de de encontrar um lugar de onde examinar as
diálogo entre as gerações, pois, de maneira questões que me interpelam, definidas a partir
pouco reflexiva, confere-se ora uma autoridade do compromisso ético com o outro.
excessiva às gerações mais velhas, a partir
de uma valorização de uma certa concepção 2. A experiência dos mais velhos X (in)
da tradição, ora às gerações mais novas, experiência
principalmente em função de sua relação com o
novo, a tecnologia, que lhes coloca em posição [...] eles venceram e o sinal está fechado
de superioridade diante dos mais velhos. p’ra nós que somos jovens.
Penso que muito da dificuldade para refletir
sobre essas questões derivam de um olhar menos (Como nossos pais. Composição de
profundo sobre esses dois pontos fundamentais Belchior)
e estreitamente vinculados, separáveis apenas
em termos analíticos. De um lado, o significado Inicio minha reflexão sobre a relação
da tradição e da experiência dos mais velhos entre as gerações mais velhas e as mais
diante daquilo que é experimentado pelas novas novas privilegiando a análise de três textos
gerações. De outro, a partir dessa consideração, Benjaminianos: “Experiência” (1913), “A
o que se define como conteúdo digno de ser posição religiosa da nova juventude” (1914) e
transmitido, ou mesmo se há algo de fato a ser “A vida dos estudantes” (1915), escritos durante
transmitido. a sua juventude. De acordo com Katia Muricy,
Repensar o significado da tradição e podemos identificar nos textos de juventude
da experiência em um ambiente de rápidas de Benjamin, produzidos entre 1911 e 1918,
mudanças tecnológicas parece um bom vários dos temas que serão centrais em sua
caminho para iniciar uma reflexão que não se obra, tratados já em sua forma quase definitiva
hipostasie numa equação simplista que, de um (Muricy, 1999, p. 35).
lado, associa o passado e a tradição a algo que Uma dificuldade inicial em relação aos
não vale mais, contrapondo-se, de outro, ao escritos de Benjamin deriva de seu trato com
presente, à novidade, como necessariamente as palavras, o que se torna muita vezes um
bons. Uma reflexão que busque um meio termo obstáculo à sua leitura. Mesmo a leitura de um
em que possamos considerar de forma crítica texto relativamente conciso como “Experiência”
tanto o novo, como também os aspectos ainda (Benjamin, 1984a), impõe-nos uma atenção
significativos da tradição. redobrada, pois, ao refletir sobre esse tema da
Tento, neste texto, refletir sobre essas experiência, o autor atribui-lhe sentidos que são
questões baseado em algumas das ideias de opostos. Tal procedimento faz parte da própria
Walter Benjamin, particularmente aquelas essência da reflexão Benjaminiana em que a
contidas em seus textos de juventude. Foram escrita constitui uma parte fundamental do
as leituras dos textos de Walter Benjamin fazer filosófico.
que me auxiliaram a repensar minha posição Benjamin inicia o texto “Experiência”,
sobre o tema da tradição e da relação entre as apresentado-nos uma série de significados
novas e velhas gerações que, por sua vez, tem negativos atribuídos a essa noção. A experiência
relação com outras questões ligadas ao meu conota tudo aquilo que foi vivido pela geração
papel como professor. A importância de seus mais velha, que um dia também foi jovem, e,
textos está também no tom que eles adotam. nesse sentido, comungou de uma postura diante
Benjamin não adota em sua reflexão sobre o da vida que é similar à das novas gerações. Uma
tema da experiência uma postura saudosista postura de abertura à possibilidade de escolher
e muito menos apologética em relação às novos caminhos, da defesa intransigente de
transformações que estavam ocorrendo no efetuar escolhas que sejam suas. Entretanto, ao
momento em que escrevia sua obra. Desde o mesmo tempo, como condição para a entrada

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na vida adulta, essa maneira de encarar a vida poderosa, aconselha o jovem a zombar de si
precisou ser abandonada em troca da “grande mesmo” (Benjamin, 1984a, p. 25).
experiência” da vida adulta. Essa mesma concepção crítica em relação
Pelo prisma da “grande experiência” tudo a uma vida na qual não existe o espaço para
o que foi vivido pelos jovens de ontem e pelos a escolha está presente no texto “A vida dos
do hoje não passa de uma etapa sem valor, de estudantes”. Nele, Benjamin (1984c) reflete
uma ilusão. Embora o adulto de hoje também sobre o papel da ciência e sobre a relação entre
tenha desejado, na sua juventude, “[...]o que o Estado e a universidade.
agora queremos [...]” e também não tenha A estreita ligação entre o Estado e a
confiado naquilo que foi sentenciado pelos seus universidade deturpa o real significado da
pais, “[...] a vida também lhe ensinou que eles ciência. A burocratização promovida pelo
[os pais] tinham razão [...]” (Benjamin, 1984a, Estado nas universidades alemãs desvirtuou
p. 23). a ideia de ciência, associando-a a uma
Para alguns adultos, tudo aquilo que é simples preparação para o desempenho de
vivido pelas gerações mais novas, angústias, uma profissão. Com isso o “espírito criador”
sentimentos, não passam de “[...] doces foi transformado em “espírito profissional”
devaneios pueris, em enlevação infantil que (1984c, p. 36). Mais uma vez aponta-se ao
precede a longa sobriedade da vida séria”. Mas jovem, agora como estudante, a segurança da
existem também aqueles, para os quais essa fase vida burguesa, sempre igual a si mesma. “Uma
não tem o menor valor, não merecendo mesmo concepção de vida banal troca o espírito por
ser vivida a não ser rapidamente, e que, por imitações; ele consegue camuflar cada vez mais
tal razão “[...] querem nos empurrar desde já o caráter perigoso da vida intelectual e zombar
para a escravidão da vida”. Anula-se qualquer das poucas pessoas lúcidas que restam como
positividade das etapas da vida anteriores à utopistas” (Benjamin, 1984c, p. 37).
vida adulta, negando-lhes o valor ou definindo Com tal visão, suprime-se do jovem
essas experiências como uma etapa rumo à vida estudante a possibilidade de “[...] submeter-se
adulta (Benjamin, 1984a, p. 23). a um princípio, de imbuir-se de uma ideia.”
Emerge aqui uma visão do passado como (Benjamin,1984c, p. 32). Agindo assim, a
algo morto, condenado a repetir-se. Um juventude anda sempre a reboque da opinião
passado como derrota. À juventude não é dada pública, sendo disputada e adulada por todos
os partidos, ligando-se a eles e deixando de
a oportunidade de fazer escolhas diferentes
se definir a partir do exercício de sua função
daquelas preconizadas pelas gerações mais
criativa. Ela deixa de lado seu papel como
velhas. Restaria apenas a ela vivenciar este
agente de transformação “[...] cuja missão seria
mesmo sentimento de que nada de novo poderia
converter em questões científicas, através de
surgir a partir de sua experiência presente. Uma
um posicionamento filosófico, as idéias que
eterna repetição do sentimento de derrota, que costumam despertar antes na arte e na vida
faz com que a experiência do jovem seja sempre social que na ciência.” (Benjamin, 1984c, p.
“triste”. 37).
As gerações mais velhas não encorajam É essa visão sobre a inevitabilidade de um
as gerações mais novas a criar nada de novo. futuro filisteu burguês que faz com que se gere
Mesmo quando reflete sobre o seu período de uma ideia obsessiva a respeito da necessidade
juventude, o adulto, “o filisteu”, não consegue de se aproveitar ao máximo o período da
estabelecer com os sonhos de sua juventude juventude. Vislumbrando no futuro a imagem
outra relação que não seja marcada pelo ódio. do “velho senhor” (Benjamin,1984c, p. 39), da
Ele sabe que também um dia desejou poder repetição da mesma história, de uma experiência
efetuar suas próprias escolhas, ele foi também sempre idêntica a si mesma, a juventude, “já
convocado pela “voz do espírito” (Benjamin, que vendeu a alma à burguesia [...] valoriza
1984a, p. 25). Por essa razão, ele “[...] apresenta os seus poucos anos de liberdade” (Benjamin,
à juventude aquela experiência cinzenta e 1984c, p. 39).

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Entretanto, Benjamin questiona se o objeto 3. A natureza da tradição


de nossa experiência deve sempre apresentar-se
sob a capa da tristeza. É a tentativa de romper
com uma concepção do passado como repetição, O que há algum tempo
como derrota, que conduz Benjamin a defender era novo, jovem / Hoje
a existência de uma “outra experiência”. Essa é antigo / E precisamos
“outra experiência” (Benjamin, 1984a, p. 25) é todos rejuvenescer / (...) No
prenhe de sentido e imaginação, nela o espírito presente a mente, o corpo
(que também um dia convocou o adulto filisteu) é diferente / E o passado é
se faz presente. A presença do espírito possibilita uma roupa que não nos serve
pensar a construção de novos caminhos, de mais.
vencer o eterno ciclo de fracasso saudado com (Velha roupa colorida Composição de
entusiasmo pelo adulto filisteu1. Belchior)
É nesse sentido que Benjamin aproxima
a posição da juventude à da religião. Diante
Mantendo como estrutura geral sua
de uma experiência que se apresenta como
a repetição do mesmo, de uma concepção preocupação com a ressignificação da tradição
de sua existência como uma etapa recheada como algo acabado e inerte, Benjamin
de sentimentos e preocupações inocentes adicionará novos elementos a sua reflexão em
ou mesmo indignas de tal denominação, a textos posteriores, tais como “Experiência e
juventude anseia pela possibilidade de manter pobreza” (Benjamin, 1994a) e “O narrador”
vivo o espírito, de poder fazer suas próprias (Benjamin, 1994c).
escolhas. Em um mundo onde “[...] a bifurcação Em “Experiência e pobreza”, ele cita a
dos caminhos não aponta para parte alguma história do viticultor que, à beira da morte,
[...]” a juventude vê-se diante do “[...] caos segreda aos filhos a existência de um tesouro
no qual os objetos de sua opção (os sagrados) em sua propriedade. Os filhos, animados pela
desaparecem” (Benjamin, 1984b, pp. 27-28). perspectiva de encontrar ouro, cavam sem parar
A palavra religião não se refere à escolha todo o terreno. Ao acabarem de cavá-lo, nele não
de uma forma de religião institucionalizada. A encontram o tão sonhado tesouro. Entretanto,
juventude está associada à religião na medida com a chegada do outono, animadas pelo
em que o que define a posição religiosa é “[...] a trabalho do revolver a terra, as vinhas frutificam
disponibilidade permanente para uma escolha” de forma soberba, superando todas as outras da
(Muricy, 1999, p. 50). região. Benjamin conclui que nisso consistiu a
Nesses textos emerge a preocupação transmissão pelo agricultor de uma experiência
de Benjamin em conferir à experiência da a seus filhos: a de que o trabalho é a base da
juventude uma positividade. A juventude não é felicidade. Benjamin, então, reflete sobre as
vista como uma etapa preparatória para a vida dificuldades existentes na modernidade para
adulta, mas um momento da vida que deve que a experiência continue sendo transmitida.
ser visto em sua especificidade. Benjamin nos Comparando com o que foi dito antes em
convida a nos relacionarmos com os jovens sem relação aos textos de juventude, pareceria haver
impingir-lhes nosso próprio modelo de vida nesse texto uma mudança de perspectiva no que
como modelo universal de sucesso2. diz respeito às relações entre as gerações mais
velhas e as mais novas. A própria narrativa
1 Identificamos nesta reflexão de Benjamin uma oposição a uma
determinada visão sobre a história, contada sempre do ponto de inicial acentua o caráter agora positivo de uma
vista daqueles que venceram. Daí a necessidade de recuperar a
dimensão criativa, do espírito. Voltaremos a este tema mais adiante
neste trabalho.
à razão organizar o conteúdo da experiência, ultrapassando-a.
2 No texto “Sobre o programa de uma filosofia vindoura”, Benjamin Benjamin, ao contrário, afirma que a experiência supera o tempo,
analisa as contribuições de Kant para a temática da experiência. A pois ela é histórica. Ela incorpora-se à tradição e à cultura. Nesse
reflexão de Kant, inserida no contexto do iluminismo, valorizou sentido ela pode nos fornecer uma outra forma de acesso à realidade
a razão em detrimento da experiência. A razão é universal e que não aquela definida apenas em termos racionais (Benjamin,
intemporal enquanto a experiência é temporal e particular. Cabe 1970).

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certa forma de transmissão da experiência entre tinham voltado silenciosos do campo de


as gerações3. batalha. Mais pobres em experiências
Um elemento para entender essa mudança comunicáveis, e não mais ricos [...]
é proposto por Kátia Muricy que afirma (Benjamin, 1994a, pp. 114-115).
ter havido uma alteração na perspectiva Essa mesma ideia do fim da possibilidade de
analítica Benjaminiana em função de uma intercâmbio das experiências será discutida no
ressignificação do conceito de experiência. texto “O narrador” no qual, Benjamin (1994c)
Enquanto nos escritos juvenis ainda existe a discute o fim da narrativa contrapondo-a a duas
ideia de possibilidade de construção de uma outras formas de comunicação: o romance e a
experiência totalizante, por volta de 1924 essa informação de cunho jornalístico.
convicção desapareceria. Conjugada a essa A arte de narrar está associada a Erfahrung.
mudança de perspectiva, está a formulação de De acordo com Benjamin, o narrador retira da
uma crítica da modernidade e da consequente experiência, seja a sua ou a de outrem, aquilo
alteração na “estrutura da experiência” por ela que ele conta. Mais do que isso, ao contar ele
provocada. (Muricy, 1999, pp. 46-47). faz com que a narrativa seja incorporada às
O desenvolvimento do capitalismo experiências de seus ouvintes. O romance, em
tornaria cada vez mais difícil a existência de contrapartida, possibilitado pela invenção da
uma experiência plena (Erfahrung). Como imprensa, prescinde da oralidade e, ao mesmo
afirma Katia Muricy, o que definia este tipo tempo, não a alimenta. O escritor de romances
de experiência (Erfahrung) era a relação por é um indivíduo isolado que não poderia falar
ela estabelecida entre a memória individual mais de forma exemplar. Ele esta mais próximo
e a coletiva ao inconsciente e à tradição. No da Erlebnis.
lugar da Erfahrung tomaria corpo a Erlebnis, A consolidação da burguesia também
a vivência. A memória, antes um patrimônio conferiu um novo significado a uma forma
coletivo, torna-se cada vez mais individual, de comunicação que, a exemplo do romance,
confundindo-se com a história privada da cada não era nova: a informação. A informação
indivíduo. Assim, a Erlebnis liga-se à solidão e jornalística vive sob o signo da novidade. Ela
à percepção consciente (Muricy, 1999, pp. 183- busca ser o mais detalhada possível com a
184). intenção de ser absolutamente clara. Ela é,
É o desenvolvimento do capitalismo, com então, produzida para ser consumida, esgotada.
sua divisão do trabalho, que mina a concepção Assim, constata Benjamim, vivemos em mundo
de uma vida comunitária, instituída a partir onde a “cada manhã recebemos notícias de
da ideia de uma anterioridade moral da vida todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em
coletiva e, em seu lugar, institui a forma de histórias surpreendentes. A razão é que os fatos
organização de tipo societário que se constitui já nos chegam acompanhados de explicações”
a partir da justaposição de vontades e desejos (Benjamin, 1994c, p. 1203).
individuais e soberanos4. A informação se entrega totalmente na
É nesse quadro mais amplo que Benjamin sua imediaticidade. Ela se constitui a partir
pode afirmar: da produção de uma contínua proximidade
[...] que as ações da experiência estão em temporal e espacial. A informação trabalha
baixa, e isso em numa geração que entre contra a aquilo que confere especificidade à
1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiência, à densidade, ou seja, o tempo
experiências da história. [...] Na época, preenchido pela experiência em seu significado
já se podia notar que os combatentes forte. Sua lógica é a do abreviar. Tal abreviação
promove um esgotamento na medida em que
3 O que está relacionado à ideia de que o passado não está morto, os acontecimentos desaparecem ao serem
dele emanando uma força que dirige seu apelo às novas gerações
(Benjamin, 1994d).
consumidos.
4 Para sermos fiéis às ideias de Benjamin devemos reconhecer
Larrosa (2002, p. 21), ao abordar a questão
que ele não prega a total impossibilidade da experiência ma da experiência, definindo-a como “[...] aquilo
modernidade, apenas a dificuldade de sua produção nesse novo que nos passa, o que nos acontece, o que nos
contexto histórico.

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toca”, em contraposição ao que “[...] se passa, o muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”
que acontece, ou o que toca”, ressalta também (Benjamin, 1994c, p. 204). Esta é sua força.
o papel da informação na produção de seu A reflexão e o espanto derivam desta falta de
declínio. explicação e de uma certa distância, produzida
Há, segundo ele, um excesso de informação duplamente, tanto pelo que Benjamin qualifica
no mundo contemporâneo. Acentua-se a como o “[...] longe espacial das terras estranhas
importância de estarmos informados e, com [...]” (Benjamin, 1994c, p. 202), quanto pelo
tal objetivo, engajamos-nos em uma frenética “[...]longe temporal contido na tradição [...]”
busca pela informação, preocupados em não (Benjamin, 1994c, p. 202). Aquele que ouve
obtê-la em quantidade suficiente. Conseguimos, é, então, tentado a também tornar-se parte da
assim, muitas informações e nos tornamos história, emulando com ela. Não há um simples
pessoas bem informadas. desejo de consumi-la, ou seja, de esgotá-la. Ao
Entretanto, ao agir assim, o que consegue contrário, há o desejo de criar, de participar das
o homem contemporâneo é “[...] que nada lhe suas possíveis ressonâncias.
aconteça [...]” pois “[...]a informação não é É nesse contexto que podemos refinar de
experiência [...]” e, mais do que isso, “[...] ela que tipo de tradição Benjamim fala. Longe de
não deixa lugar para a experiência” (Larrosa, pensar a tradição como repetição do sempre
2002, pp. 21-22). idêntico, a reflexão sobre a arte de narrar nos
Junto com a informação, Larrosa enumera coloca diante da ideia daquele legado que é
como inimiga da experiência a opinião. Além transmitido às gerações futuras como uma base
de sermos informados, somos indivíduos a partir da qual se constituem novas tradições.
obrigados a ter sempre uma opinião sobre Nesse sentido, Benjamim pode afirmar que
qualquer assunto. Quando não temos uma “Aconselhar é menos responder a uma pergunta
opinião formulada sobre algum tema, sentimos- que fazer uma sugestão sobre a continuação de
nos inseguros. uma história que está sendo narrada” (Benjamin,
Citando Benjamin, ele afirma que o 1994c, p. 200).
periodicismo, ao unir informação e opinião, É, em certo sentido, uma visão muito
seria um “dispositivo moderno” que poria fim contemporânea sobre o tema da tradição,
à experiência, pois ele se configura como a dispensando-a de uma visão essencialista e
fabricação da informação e da opinião5. Nesse permitindo-lhe ser compreendida sob o prisma
sentido: da mudança. Isso vai de encontro ao significado
[...] quando a informação e a opinião se comum da tradição como aquilo que permanece
sacralizam, quando ocupam todo o espaço sempre idêntico a si próprio.
do acontecer, então o sujeito individual Ao mesmo tempo, isso nos remete à ideia
não é outra coisa que o suporte informado muito cara à reflexão de Benjamim sobre o
da opinião individual, e o sujeito coletivo, estatuto do passado. O passado não é aquilo
esse que teria de fazer a história segundo que já ocorreu e que está morto para sempre.
os velhos marxistas, não é outra coisa que Ele é algo sempre citável, que necessita sempre
o suporte informado da opinião pública. ser revisitado na medida em que dele emanam
(Larrosa, 2002, p. 22). as vontades e desejos daqueles que foram
Se a informação e a opinião reduzem vencidos. Cada geração recebe, assim, do
significativamente a possibilidade de passado “[...] uma frágil força messiânica [...]”
constituição de uma experiência em seu sentido (Benjamin, 1994a, p. 223).
forte, a narrativa, ao contrário, constitui-se a A história tem se apresentado até os dias
partir dela (Benjamin, 1994c). A narrativa tem de hoje como um “[...] cortejo triunfal [...]”
a sua arte determinada em grande medida em (Benjamin, 1994a, p. 225) em que os vencedores
“[...] evitar explicações”( Benjamin, 1994c, p. desdenham e zombam daqueles que foram
203), ela “[...] conserva suas forças e depois de derrotados. É preciso então, arrancar da tradição
esse elemento de conformismo e recuperar as
5 Larrosa (2002) cita ainda como a falta de tempo e o excesso de contradições ainda vivas deste passado, pois
trabalho.

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estas possibilitam que, no momento presente, Nossa experiência tornou-se pobre.


sejam vislumbrados outros futuros possíveis Entretanto, este é o aspecto positivo da
(Benjamin, 1994d). barbárie, a constatação dessa pobreza instiga o
Mais uma vez vemos como a tradição homem a inventar, a criar uma nova tradição. A
apresenta-se na forma de elementos invenção dessa nova tradição exige o abandono
contrários. de uma determinada tradição que agora parece
Assim, a transmissão da tradição, na forma um peso morto e que se estabelece como um
de bens culturais, traz consigo não só a alegria compromisso com o presente.
daqueles que venceram, como também as dores Podemos avaliar como o compromisso
e o sofrimento dos vencidos. Nesse sentido, com o presente se manifesta em Benjamin em
afirma Benjamin, todos os bens culturais: sua análise sobre as relações entre a arte e a
Devem a sua existência não somente técnica na modernidade em seu texto “A obra de
ao esforço dos grandes gênios que os arte na época de sua reprodutibilidade técnica”
criaram, como à corvéia anônima dos (Benjamin, 1994b). O desenvolvimento técnico
seus contemporâneos. Nunca houve um permitiu uma forma de reprodução das obras de
monumento da cultura que não fosse arte distinta daquelas até então existentes.
também um monumento da barbárie. A obra de arte, reproduzida em grande
E, assim como a cultura não é isenta de quantidade, perde a sua aura, aquilo que lhe
barbárie, não o é, tampouco, o processo confere particularidade. Cada obra tem uma
de transmissão da cultura (Benjamin, existência, uma história única, ao longo da
1994d, p. 225). qual sofre transformações (na estrutura física e
na forma como se insere nas relações sociais
A tradição, seus bens culturais, e o próprio
de propriedade). É essa autenticidade que
processo de sua transmissão trazem a marca das
não acompanha a sua reprodução técnica que
gerações que lutaram, de seus desejos de vencer,
“[...] destaca do domínio da tradição o objeto
de construir um mundo melhor. Ao mesmo reproduzido. Na medida em que ela multiplica
tempo, porém, elas trazem a marca daqueles a reprodução, substitui a existência única da
que venceram, constituindo-se também como obra por uma existência serial” (Benjamin,
elemento de justificação de sua dominação. 1994b, p. 168).
Enquanto o acento em “O narrador” recai Mas Benjamin não vê esse processo
sobre a ideia de uma tradição e um passado como intrinsecamente negativo, como um
que não estão imobilizados, em “Experiência e desvirtuamento ou uma degeneração da
pobreza” uma questão muito importante é a de verdadeira arte. Isso ocorre por dois motivos. De
instituir ou valorizar a novidade no momento um lado, a utilização da técnica confere maior
em que essa tradição tornou-se um peso morto autonomia à reprodução, permitindo que sejam
(Benjamin, 1994a, p. 115). Daí a utilização do acentuados ou destacados aspectos que não
termo barbárie usado em sentido duplo. ganhariam destaque na reprodução manual. De
De um lado, Benjamin identifica a barbárie outro lado, a reprodução técnica pode permitir
com este momento em que a experiência que a cópia ocupe espaços que não poderiam
comunicável e coletiva, por tornar-se apenas ser ocupados pelo original. Desse modo, a
repetitiva, deixa de possibilitar a construção de reprodutibilidade técnica abala a tradição e abre
novas perspectivas. Mas, ao mesmo tempo, este caminho para a “[...] renovação da humanidade
também é um “[...] conceito novo e positivo de [...]” (Benjamin, 1994b, p. 169).
barbárie” (Benjamin, 1994a, p. 116), pois é a A destruição da aura e a existência de
partir da pobreza da experiência que o bárbaro novas forma de reprodução técnica ocorrem ao
é impulsionado a “ [...] partir para frente, a mesmo tempo em que há uma modificação na
começar de novo, a contentar-se com pouco, forma de percepção. Como afirma Benjamin,
a construir com pouco, sem olhar nem para a “[...]a forma de percepção das coletividades
direita nem para esquerda” (Benjamin, 1994a, humanas se transforma ao mesmo tempo
p. 116). em que seu modo de existência” (Benjamin,

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1994b, p. 169). A percepção depende não só de necessária liquidação da experiência em seu


características naturais, mas também históricas. sentido forte. O que Benjamin aponta é para
Entretanto, o desenvolvimento da técnica a possibilidade de estabelecer densidade em
em nossa sociedade fez com que aos olhos do nossas experiências em um mundo marcado por
homem moderno, ela se apresente como algo novos ritmos.
que, em certo sentido, lhe é estranho. Ele a Essas reflexões de Benjamin que aqui
inventou, mas não a controla, sentindo-a como resumimos nos permitem afastar qualquer
uma segunda natureza. Como consequência, o traço de nostalgia em sua obra. Ele apresenta-
homem, assim como fez em relação à natureza se, assim, como um autor profundamente
primitiva, deve aprender como se relacionar engajado na reflexão sobre o seu tempo, na sua
com ela. Deriva daí o caráter positivo de compreensão, sem abandonar qualquer tema,
algumas das novas produções culturais de mesmo aqueles que poderiam ser tomados
massa, como, por exemplo, o cinema. De um por mais “insignificantes”. De outro lado,
lado, o cinema tem seu valor ligado à “(...) essa reflexão se pauta em um compromisso
liquidação do valor tradicional do patrimônio ético, ancorado no legado de luta das gerações
da cultura” (Benjamin, 1994b, p. 169). De passadas, de uma determinada concepção de
outro lado, suas produções possibilitam ao
tradição que não deseja reforçar o poder dos
homem exercitar novas formas de percepção e
vitoriosos. Só este posicionamento de valorizar
de reação, originadas da crescente importância
em sua vida do aparelho técnico. o presente sem renegar o passado já o faz
Essa função do cinema é mais detalhada por admirável.
Benjamin (1994b) a partir da comparação entre
as imagens cinematográficas e uma pintura.
Uma tela convida o espectador a contemplá-la.
Ao observá-la, ele deve entregar-se aos seus 4. Reflexões
pensamentos, instaurando, diríamos nós, um
tempo lento. A imagem do cinema produz outra As reflexões contidas nos escritos de
reação no espectador. Mal ele percebeu uma Benjamin foram realizadas em um momento
imagem e ela já foi substituída por outra. Seu histórico diferente daquele que agora vivo.
processo de reflexão associado àquela imagem Nesse sentido, não me cabe buscar nelas um
mal se iniciou e já foi interrompido. Isso leva o remédio para solucionar os desafios que me são
cinema a produzir um efeito de choque que deve apresentados no momento atual, principalmente
ser interrompido por um excesso de atenção. aqueles que me interessam mais de perto e que
Daí a afirmação de que o cinema corresponderia estão relacionados à prática educativa. Seria
“[...] aos perigos existencias mais intensos com mesmo temeroso e totalmente contrário ao
os quais se defronta o homem contemporâneo” espírito de sua obra realizar tal comparação,
(Benjamin, 1994b, p. 192). Todo seu valor está ou supor uma continuidade entre esses dois
relacionado às transformações no processo momentos. No entanto, parece-me que, em
perceptivo. seus escritos, posso encontrar determinados
Tal polêmica encobre uma importante elementos para balizar, ou instigar uma reflexão
consequência dessas transformações históricas sobre o tema abordado neste texto.
que emanciparam a arte de seus fundamentos Em primeiro lugar, parece-me de
de culto. O desenvolvimento da técnica havia fundamental importância refletirmos sobre
alterado a própria natureza da arte, ou seja, minha relação, como educador que sou, com
produziu a sua “refuncionalização”. Com isso, as novas gerações. Se, por um lado, posso me
a função social da arte sofre uma modificação. identificar como sendo um depositário de uma
Ela não se funda mais no ritual, mas, antes, na determinada tradição calcada em uma cultura
política. denominada erudita, clássica ou letrada, e em
Não seria, pois, um aspecto intrínseco da uma experiência de vida, devo pensar também
tecnologia estar associada à dominação e à

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sobre o significado desse pertencimento6. de meus jovens alunos. Minha prática, por
Possibilitaria ele a assunção de uma posição de mais questionada e questionável que seja é,
superioridade em relação às experiências das assim como a de outros colegas, realizada por
novas gerações? acreditar que tenho um compromisso com cada
Acredito que, na maioria dos casos, jovem com quem convivo e que estou implicado
somos caudatários daquele tipo de “grande naquilo que irá lhe acontecer para o melhor ou
experiência” a que se refere Benjamin. Não para o pior.
me parece correto afirmar que o discurso dos Entretanto, devemos também perceber que
educadores sobre os condicionamentos de sua muitas das dificuldades que vivemos para poder
prática exclui totalmente a consideração sobre fundar um diálogo entre as gerações deriva da
características do mundo moderno. Nele estão força que muitos de nós ainda concebemos a
presentes as modificações no contexto familiar, esse passado mítico e, como consequência, na
o surgimento de novas tecnologias e a percepção autoridade daqueles que nele viveram, que o
de que o jovem de hoje não é idêntico ao de experimentaram, ou seja, de nós mesmos.
outros tempos, ou diríamos melhor, iguais a nós Daí a importância de uma reflexão sobre
mesmos quando éramos jovens. o presente, apontada por Benjamin como tão
Entretanto, mesmo quando esses fatores são necessária. Não basta perceber que mudanças
levados em conta, eles o são majoritariamente ocorreram. É necessário avaliar os seus efeitos
de um ponto de vista negativo. Não há uma sobre a experiência das novas gerações, o que
atitude de pensar essas mudanças a não ser do exige um compromisso de parte das gerações
ponto de vista da crise. Ou seja, eles remetem mais velhas em conferir positividade à
necessariamente a uma formulação negativa. experiência dos mais jovens.
Nesse sentido, continuamos a avaliar aquilo Reconheço que ser jovem hoje é uma
que as novas gerações experimentam do ponto experiência muito diferente daquela de ter
de vista de nossa experiência, de nosso tempo e sido jovem há 25, 30 anos. Mesmo a minha
daquilo que julgamos como correto. geração, que já foi embalada pelas imagens da
Defrontados com as novas gerações, televisão, encontra-se hoje diante de um mundo
continuamos a lhes apontar a nossa experiência. completamente distinto. O que interessa aos
“No meu tempo...”, “a escola pública jovens de hoje? Que aspectos da modernidade
era de qualidade”, “os alunos estudavam são por eles valorizados? Como eles os
e eram cobrados por seus professores”, “a vivenciam?
educação fazia a diferença”, “não havia Quais são suas angústias? Quais são as
tantas facilidades”, “o aluno lia”, “o aluno era suas fantasias? Que elementos hoje mediam
educado”, “a família estava na escola”, etc. a construção de sua identidade e de sua
Percebo que esse passado de “ouro” ainda é a subjetividade? Responder a tais perguntas é
referência para muitos de nós. A presença de tal buscar entender as novas gerações. É, também,
passado mítico, imobilizado e sempre presente, construir pontes, criar uma possibilidade de
é um impedimento para que possamos sequer diálogo.
perceber aquilo que os jovens experimentam Ao mesmo tempo, isso possibilitaria
hoje. às gerações mais velhas, perceber como
É claro também que, como professor, ou também aponta Benjamin, o caráter dinâmico
seja, como representante das gerações que me da tradição, ou seja, de que modo ela se
antecederam sinto-me responsável pelo futuro transforma. Embora alguns elementos podem
ainda parecer os mesmos, na realidade estão
tendo seu papel alterado, pois passam a se
6 Devo salientar que a compreensão da relação entre professores
e alunos a partir do conceito de geração exige uma reflexão
inserir em um novo contexto produzido por
mais cuidadosa. Professores recém formados, ao entrarem essas transformações. No caso específico da
para o magistério, passam a adotar um discurso que é comum
aos professores que já atuam há muito mais tempo. Assim,
educação, tais modificações têm incidido sobre
neste trabalho, geração está sendo utilizada para acentuar a própria definição do trabalho escolar.
certas continuidades no discurso dos docentes que não estão Mais ainda, cabe-nos perceber que, mesmo
necessariamente relacionados à questão geracional.

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Experiência e tradição em Walter Benjamin: ressonâncias para a educação

algumas das práticas que merecem nossa perfeita para contemplá-la e admirá-la:
aprovação como sendo representantes de uma a espatifa contra o solo, a quebra em
verdadeira educação, estão, na realidade, sendo mil pedaços, recolhe os pedacinhos e os
profundamente alteradas e ganhando novos incorpora à sua própria argila. (Galeano,
significados. Continuamos a afirmar que nossos 2007 , p. 86)
alunos não se interessam pela leitura e pela Cabe-me buscar um caminho, decerto nada
escrita. Mais ainda, que tecnologias como o fácil, entre as duas posições citadas no início
computador e o uso da Internet são responsáveis deste trabalho: um caminho entre o “desprezo
diretos por essa falta de interesse. aos jovens”, baseada na supervalorização da
Não se pode abandonar todo o legado experiência e da autoridade dos mais velhos,
positivo que permanece como conquista da e a prática de “adulá-los”, supondo que nossa
humanidade. Em relação a ele temos uma dupla experiência é vazia e nada teria de acrescentar
responsabilidade como educadores e como às novas gerações.
representantes daquilo que o passado pode Isso supõe um difícil meio termo em que,
nos proporcionar como força contestadora. de um lado, não posso supervalorizar a “minha
Tal legado é que nos permite também assumir tradição” em detrimento daquilo que as novas
o papel crítico em relação às novas produções gerações têm vivido, ao mesmo tempo em que
dos jovens, uma crítica, uma valoração, um não posso supervalorizar a “vivência dessas
julgamento, baseados sempre na perspectiva da gerações”, considerando que nada tenha a lhes
emancipação, do diálogo e do respeito. dizer.
Posso admitir que a escola em que trabalho Se abdicar do papel de educador, formal
parou, sim, no tempo. Que a educação que recebi, ou não, estarei abrindo mão também da
da forma pela qual recebi, hoje não está mais possibilidade de transmissão daquela força
adequada aos novos tempos e aos novos jovens. transformadora a que se refere Benjamin passada
Mas não questiono a importância da escola na a cada nova geração. O autor aponta para a
construção de competências fundamentais para dificuldade de constituição de uma experiência
que nossos alunos possam apropriar-se de tudo plena na modernidade, mas não para sua total
o que de mais significativo produzimos. impossibilidade. Por isso, creio que devo
Ao mesmo tempo, não se pode deixar comprometer-me com a valorização daquilo
de conhecer as novas produções culturais que de melhor fomos capazes de transmitir
aos quais alguns jovens estão vinculados. É de nosso legado cultural. Não acredito, talvez
esse diálogo comprometido que possibilita o por vício de formação, na possibilidade de que
reconhecimento dos aspectos que nos tocam, cada geração possa começar seu caminho sem
nos passam, ou seja, que são significativos na levar em consideração tudo o que foi feito antes
medida que possibilitam um compromisso com dela7. Defendo, sim, essa ligação.
um homem melhor e, como consequência, com Termino com uma profissão de fé. Acredito
um mundo melhor. que aquilo que produzimos de melhor deve ser
Como educador, devo me comprometer incorporado às produções das novas gerações,
com a construção de tal experiência que requer : não da mesma forma que um objeto valioso é
À beira de outro mar, outro oleiro se herdado, devendo ser mantido sempre idêntico
aposenta, em seus anos finais. a si mesmo pelo resto dos tempos. Da mesma
Seus olhos se cobrem de névoa, suas forma que a melhor obra do velho oleiro, desejo
mãos tremem: chegou a hora do adeus. ver toda esta parte significativa de nosso legado
Então acontece a cerimônia de iniciação:
o oleiro velho oferece ao oleiro jovem sua
7 Pasolini (1990) afirma que “um homem de cultura (...) só pode
melhor peça. Assim, manda a tradição, estar extremamente adiantado ou extremamente atrasado, ou ambas
entre os índios do noroeste da América: as coisas ao mesmo tempo.” Tal posição lhe confere um papel
o artista que se despede entrega sua obra privilegiado na medida em que o presente, no qual estão inseridos
os jovens, só pode ser vivido, pois este possui apenas a linguagem
prima ao artista que se apresenta. das coisas. Pasolini reivindica, dessa forma, para o passado um
E o oleiro jovem não guarda esta peça papel de importância, pois é a partir dele que as gerações mais
velhas distanciam-se do presente, não assimilando-o como natural.

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cultural transformar-se em nova tradição,


pontuando as novas produções culturais das
novas gerações.

Referências

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uma filosofia vindoura. Caracas: Monte
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a criança, o brinquedo e a educação. São
Paulo: Summus.
Benjamin, W. (1984b). A posição religiosa
da nova juventude. Reflexões: a criança,
o brinquedo e a educação. São Paulo:
Summus.
Benjamin, W. (1984c). A vida dos estudantes.
Reflexões: a criança, o brinquedo e a
educação. São Paulo: Summus.
Benjamin, W. (1994a). Experiência e pobreza.
Magia, técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense.
Benjamin, W. (1994b). A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica. São Paulo:
Brasiliense.
Benjamin, W. (1994c). O narrador:
considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov. São Paulo: Brasiliense.
Benjamin, W. (1994d). Sobre o conceito de
história. São Paulo: Brasiliense.
Galeano, E. (2007). As palavras andantes.
Porto Alegre: LP&M.
Larrosa, J. (2002). Notas sobre a experiência e
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Pasolini, P. P. (1990). Os jovens infelizes. São
Paulo: Brasiliense.
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Paulo: Círculo do Livro.

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