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Anais Da Semana de Estudos Classicos Int
Anais Da Semana de Estudos Classicos Int
13 a 16 de setembro de 2005
3
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Reitor: Aloísio Teixeira
CENTRO DE LETRAS E ARTES
Decano: Léo Affonso de Moraes Soares
FACULDADE DE LETRAS
Diretor: Maria Cecília de Magalhães Mollica
Departamento de Letras Clássicas
Chefe: Auto Lyra Teixeira
Subchefe: Ana Thereza Basilio Vieira
Coordenador de Pós-Graduação em Letras Clássicas: Henrique Cairus
Secretária: Roseane Barroso de Franco
Comissão Editorial
Auto Lyra Teixeira • Alice da Silva Cunha • Ana Thereza Basilio Vieira • Carlos Eduardo Costa Scherer
Cecilia Lopes de Albuquerque Araújo • Marinete José de O. Santana Ribeiro • Ricardo de Souza Nogueira
Shirley Fátima G. de Almeida Peçanha • Vanda Santos Falseth
Realização
Departamento de Letras Clássicas da Faculdade de Letras / UFRJ
Diretoria Adjunta de Cultura e Extensão
FUJB – Fundação Universitária José Bonifácio
Informações
Departamento de Letras Clássicas • Tels.: (21) 2598-9716 / 2598-9717
Edição: Antonio Galletti/ Ione Nascimento
Ilustração: Apolo e as Musas, de Giulio Romano
Agradecimentos especiais
FUJB
Fundação Universitária
José Bonifácio
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Sumário
25 A contaminatio de Plauto
Amós Coêlho da Silva
5
109 Ode I, 1 de Horácio: dedicatória do poeta a Mecenas
Mára Rodrigues Vieira
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205 A etimologia: um estudo que encanta
Miguel Barbosa do Rosário
227 Metaplasmos
Miguel Barbosa do Rosário
7
Apresentação
8
Em 1981, quando era chefe do Departamento de Letras Clássicas /
UFRJ a Profa. Doutora Ruth Junqueira de Faria, já falecida, foi realizada a I
Semana de Estudos Clássicos, cujo objetivo inicial era divulgar os estudos
acerca da Antigüidade Clássica e também dar visibilidade às pesquisas dos
docentes. Foi um começo tímido, difícil: apenas uma conferência no final da
tarde no Teatro Gil Vicente, em nossa antiga sede da Avenida Chile. Público
pequeno, formado por nossos alunos de graduação que voluntariamente, bem!,
após muita insistência, compareciam Muitos dos nossos companheiros dessa
etapa encontram-se hoje aqui. Dessa maneira, nosso Departamento inaugurou
o ciclo das diversas Semanas da Faculdade de Letras. Como formiguinhas
laboriosas, demos continuidade ao evento, conseguimos ampliar seus
objetivos, acrescentando aos antes mencionados outros, tais como: promover o
intercâmbio entre nossos professores e os dos demais departamentos da UFRJ,
de outras Universidades do País e do Exterior; discutir metodologia de ensino
e pesquisa. Devo assinalar que a Semana teve e tem prestígio no meio
acadêmico. Se nesta Semana do ano de 2005 tivemos apoio da Direção da
Faculdade de Letras e da Fundação José Bonifácio, contamos, nos idos dos
anos oitenta, duas vezes, com o auxílio do CNPq.
Rememoremos o trabalho dos iniciadores de nossas Semanas:
Suzanna Teixeira Mendes de Mello, Marilda Evangelista dos Santos Silva,
Edison Lourenço Molinari, Carlos Antônio Kalil Tannus, Edna Paiva,
Hime Gonçalves Muniz, Lívia Lindóia Paes Barreto, Manuel Aveleza de
Sousa, Maria Adília Pestana de Aguiar Starling, Miguel Barbosa do
Rosário, Sílvia Damasceno, Alice da Silva Cunha, Vera Regina Figueiredo
Bastian, Vera Lúcia Montenegro Vieira, Cecília Lopes de Albuquerque,
Jacyára Ribeiro Salengue, João Soares, Marinete José de Oliveira Santana
Ribeiro, Tânia Martins dos Santos Fernandes, Vanda Santos Falseth e eu,
Nely Maria Pessanha. Rememoremos os nossos continuadores, os
chegados ao Departamento mais tarde, em momentos vários: Auto Lyra
Teixeira, Ana Thereza Basílio Vieira, Arlete José Mota, Henrique Fortuna
Cairus, Mára Rodrigues Vieira, Michele Eduarda Brasil de Sá, Ricardo de
Souza Nogueira; e os recém-chegados, Carlos Eduardo Costa Scherer e
Maria da Conceição Silveira; e, ainda, Glória Braga Onelley e Jandyra
Figueiredo, hoje professoras da UFF. Rememoremos a todos os que
contribuíram ou contribuem para que este evento floresça cada vez mais e
para que, parafraseando o proêmio das Histórias, de Heródoto, “os
vestígios de nossas ações não se apaguem com o tempo”, pois desejamos
que não sejam ignorados os motivos por que as realizamos.
9
Após rememorarmos, um terceiro acorde ressoa: recordar. Ora,
recordar é fazer voltar ao coração os sentimentos outrora vividos, é dar
vazão a póthos, o desejo da presença de uma ausência. É o momento de
trazermos ao nosso coração a lembrança saudosa, porém agradável, dos que
já se foram: Luiz Carlos Stamato Marcelino de Carvalho, Guida Nedda
Barata Parreiras Horta, Ruth Junqueira de Faria, Antônio Augusto
Carvalho Júnior, Jessé de Macedo e Paulo Roberto Guapiassu. Tenho
certeza de que de onde estejam, contemplam e partilham desta nossa festa.
Só me resta, então cantar com o poeta Estesícoro:
10
ARISTÓFANES E O DISCURSO PELA PAZ
Alair Figueiredo Duarte
1
Tucídides, A História da Guerra do Peloponeso, IV, § 96-101.
11
em negociar o Tratado de Níceas, já que, com sua adesão ao pacto, ficaria
condicionada a devolver os territórios conquistados aos atenienses2.
Segundo Plutarco3, o conflito teria pouca duração se o solo
ateniense não fosse acometido pela peste4. Vejamos sua citação: “é
evidente que não teriam sustentado a guerra por muito tempo (referindo-se
aos inimigos dos atenienses), mas a ela renunciado logo como Péricles
previra desde o início se alguma divindade não se opusesse aos cálculos
dos homens5”.
Quanto à longa duração do conflito6, bem mais extenso que de
costume, favoreceu o crescimento da indústria armamentística, além de
encarecer o valor da matéria prima usada na produção de material bélico,
eram produtos como: couro, ferro e bronze necessários para produção de
espadas e elmos. Com isso os oligarcas responsáveis por essa produção,
ficaram fortalecidos em Atenas.
Estes ricos emergentes, oriundos de atividades mercantis, diante
deste cenário de conflito, não lucraram somente com o comércio, mas
também obtiveram ascensão no quadro político ateniense. Este fato pode
ser observado quando Cléon, oligarca do setor de curtume, chega à
liderança na assembléia ateniense após a morte de Péricles. Na comédia,
Aristófanes direcionou diversas críticas a Cléon, denunciando práticas
irregulares praticadas por este político e seu grupo.
Na apresentação da comédia houve uma encenação do restabele-
cimento da paz na região, e neste momento também foram satirizados os
lamentos dos mercadores de armas, os quais ficariam falidos com o fim do
conflito, como nos indica a citação: “Deste cabo de minha vida e deste e
daquele fabricante de lanças” (Paz, 1210).
Podemos atribuir a Aristófanes o adjetivo de ser um defensor do
homem do campo. Em A Paz deixa transparecer uma distinção entre o
2
Tucídides, A História da Guerra do Peloponeso, V, § 17.
3
Filósofo e Historiador do séc. I d.C.
4
Péricles condicionou toda a população dentro da cidade protegida pelas muralhas. A população acusou
Péricles de ser o responsável pela peste; “... a epidemia brotara da grande massa de camponeses que se
amontoara na cidade, os quais eram forçados a viver, em pleno verão, em habitações exíguas e barracas
abafadas, levando uma existência sedentária e inativa em lugar do regime saudável e ao ar livre que antes era
seu” (Plutarco. Vidas Paralelas, Péricles § 34).
5
Plutarco. Vidas Paralelas, Péricles § 34.
6
Na apresentação da comédia A Paz, já haviam passado dez anos de início do conflito com os espartanos,
porém é possível que Aristófanes atribua seu início às desavenças entre Corcira e Corinto em 434 a.C.,
somando um total de treze anos. Ver A Paz, 990-995. Porém Leeuwen (op.cit., pp. 150-151), recusa-se a
aceitar qualquer intenção de datas por parte de Aristófanes, e interpreta o treze como um número redondo
(cf. Ra. 50, Pl.846), uma boa dúzia de anos.
12
cidadão do espaço urbano e o cidadão do meio rural; observemos mais um
dos fragmentos da comédia: “É assim que eles nos tratam, a nós,
camponeses; aos da cidade nem tanto” (Paz, 1185). Com esta passagem
denuncia a atitude dos taxiarcos7, que por receio de comprometerem sua
popularidade junto às multidões urbanas tratavam com menor consideração
a população camponesa, a qual analisamos nas comédias aristofânicas
como a mais afetada pela guerra.
Com suas denúncias, Aristófanes mostra a verdadeira função do
teatro, ser um veículo pedagógico, ou seja, preparar o cidadão para exercer
sua cidadania na Ágora; defendendo através do voto o bem coletivo e
evitando que políticos, visando interesses pessoais, manipulassem massas
com uso da força retórica.
Segundo J. Rich8, no V século a.C. o termo guerra, possuía sentido
adverso ao que nós compreendemos na atualidade, já que o termo era utilizado
somente para discórdias armadas envolvendo etnias ou regiões distintas.
Destaca que, para casos como o ocorrido no Peloponeso, em que estavam
envolvidos povos que possuíam a mesma língua, etnia e cultuavam os mesmos
deuses, o termo que melhor definiria a situação seria a palavra conflito.
Partindo desta definição é possível identificar uma das razões pela
qual Aristófanes tanto criticou o conflito no Peloponeso. Pois esse conflito
poderia ser classificado como uma autoflagelação, helenos destruindo e
matando helenos. Dessa forma, estes homens estariam se condenando à
miséria, pois enquanto estivessem entregues a este cenário de guerra, não
poderiam cultivar e, portanto, sem condições de tirar da terra a sua
subsistência. Considerações claramente visíveis em A Paz, através da
citação: “Para os camponeses era o pão e a salvação” (Paz, passim 580-
585-590-595-600).
Observando a obra aristofânica, é possível verificar que o
conflito no Peloponeso trouxe: desordem, morte, destruição e corrupção
às pólis envolvidas. O poeta destaca também práticas oportunistas que
determinados seguimentos sociais usaram para benefício próprio.
Com a duração de vinte e sete anos, ao fim da guerra, a pólis
ateniense estava arrasada. Sua armada estava nas mãos dos seus inimigos e
sua muralha, fator de orgulho e identidade, destruída. Sendo possível
observar por este exemplo que a intransigência ateniense foi o ponto inicial
7
Comandantes de infantaria na antiguidade tinham entre uma de suas atribuições fazer o alistamento e
lançar o nome dos convocados à guerra.
8
War and Society the Greek Word.
13
que a levou à destruição. Os clamores da “Paz” em 421 a.C., não se
tratavam de uma profecia; mas as denúncias de Aristófanes, de certa forma,
prenunciaram este fatídico fim.
Restou às gerações posteriores o exemplo. Um exemplo que o
Aristófanes soube abstrair de vozes do passado como fez na apresentação
da comédia citando: “Mas Homero o sábio disse e muito bem: laços de
sangue, a lei e o lar nada têm de valor para aqueles que amam os horrores
da guerra...9” (Paz, 1095).
É possível que Aristófanes tenha citado Homero, não somente pelo
valor que sua memória representava para a cultura helena, mas sim para
mostrar que ele (Homero), que na Ilíada mostra o guerreiro ideal, possuidor
de coragem, honra e caráter firme, não foi um incentivador da guerra,
defendendo a banalização da violência. Mas, na verdade, a mensagem de
seus versos era uma advertência de que disseminar violência para satisfazer
interesses próprios ou de grupos não poderia ser considerado bravura, mas
sim uma falha de caráter.
Com este ultimo exemplo, Aristófanes proporcionou ao cidadão
ateniense e seus aliados, a possibilidade de repensarem os clamores daqueles
que incentivaram homens a lutarem sob alegação de terem seus nomes
imortalizados por defenderem a honra do seu solo, assim como fizeram os
heróis míticos. Mas na verdade esses homens declaravam tais palavras,
ocultando interesses diversos, os quais foram revelados pela comédia.
Por fim é relevante lembrar que estes políticos, aos quais
Aristófanes criticou, foram em grande parte instruídos por um determinado
grupo na sociedade ateniense do V século a.C.: os sofistas10.
Com eles aprendia-se a fazer belos e inflamados discursos,
transformando aparentemente algo prejudicial em bom e útil. O interessante
nisto é que as críticas contidas na comédia de Aristófanes são elementos
que ainda na atualidade nos servem de advertência para o cuidado que
devemos ter em não nos deixarmos levar por belos e comoventes discursos.
Principalmente aqueles que são feitos em nome da liberdade e da
democracia. Pois assim como na antiguidade é comum vermos políticos se
apropriarem destes ideais, para promoverem guerras como vivenciamos
atualmente entre Ocidente e Oriente, Árabes e Israelenses, mas que
abrigam interesses privados como nos apontam as ocorrências de dois mil e
quatrocentos anos atrás entre atenienses e espartanos.
9
Cf. Ilíada; IX, 63-64.
10
Professores de retórica que cobravam altos valores por seus ensinamentos.
14
Documentação textual
ARISTÓFANES. A Paz. Versão do grego de Maria de Fátima de Souza e Silva.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1984.
PLUTARCO. Vidas Paralelas. São Paulo: Paumape, 1991.
TUCIDIDES. A História da Guerra do Peloponeso. Trad. de Mario da Gama
Kury. 2. ed. Brasília: UNB, 1986.
Referências bibliográficas
BOBBIO, NORBERTO. Teoria Geral da Política. Trad. de Daniela Beccaccia
Versiani. São Paulo: Editora Campus, 2000.
GARLAN, YVON. Guerra e economia na Grécia antiga. Trad. de Cláudio César
Santoro. Campinas: Papirus, 1991.
KO RN I C K, ANN A M. O p o d er em q u e stã o n a s co méd ia s d e
Ari s tó fa n es , ( T ex to ) .
RICH, Jhon e GRAHM, Shipley. War and Society the Greek Word. London and
New York, 1993.
VERNANT, JEAN PIERRE. O Homem Grego. Trad. de Maria Jorge Vilar de
Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1994.
15
PIETAS: FATOR DE CONVERGÊNCIA NA CONSTRUÇÃO TEXTUAL
Alice da Silva Cunha
16
Na invocação à musa, o poeta procura auxílio para lembrar as
causas que levaram a deusa Juno a infligir tantas tribulações a um herói
insigne pela piedade. Segundo alguns estudiosos, a razão para tal
procedimento residiria nos estreitos vínculos entre o mito e a história, uma
vez que Juno, protetora de Cartago, tudo fará para impedir a chegada de
Enéias à Itália, pois como divindade tem condições de prever os riscos que
a fundação futura de Roma acarretaria para a supremacia de Cartago.
No momento em que Enéias, levado pelos fados, chega a Cartago,
cidade fundada pela rainha Dido, por quem o herói troiano virá a se
apaixonar, apresenta-se com o epíteto pius junto ao seu próprio nome.
17
Mais uma vez, dentre as inúmeras que perfazem a narrativa épica,
constata-se a piedade do herói para com as divindades de sua pátria. A sua
trajetória será marcada tanto pela fidelidade no cumprimento dos ritos
sagrados devidos aos deuses quanto pela observância dos deveres relativos
ao cumprimento de sua missão. Reside, nesta seqüência, um teor profético
na alusão às majestosas muralhas, símbolo de fundação da cidade, que
serão erguidas, não antes, porém, de Enéias enfrentar os perigos dos mares.
A pietas, como antes fora mencionado, acha-se profundamente
vinculada aos laços familiares. Após a queda de Tróia, Enéias se vê forçado
a abandonar sua pátria, contudo seu amor para com a família não permite
que se afaste deixando algum de seus membros. A relutância do pai,
Anquises, em segui-lo vai de encontro à firme determinação de Enéias que,
em hipótese alguma, considera a possibilidade de abandoná-lo em terras
troianas, estando ele tão fragilizado pela velhice. O amor devotado ao pai
não conhece limites, daí estar o herói troiano disposto a enfrentar os
obstáculos que sobrevierem. Portanto, diante de tamanha convicção e
demonstração de zelo filial, Anquises cede ao desejo do filho:
“Cedo equidem nec, nate, tibi comes ire recuso.” (Aen., II, 704)
[Cedo, pois, e não mais me recuso a acompanhar-te, meu filho.]
18
salvação. A imagem de Enéias levando aos ombros seu pai, bastante
difundida através dos tempos, talvez seja a representação pictórica mais
representativa e freqüente relacionada ao mito de Enéias. Esta cena
aparece, por exemplo, como motivo na pintura de vasos gregos.
Os vínculos familiares constituem, pois, o fundamento de toda uma
relação afetiva que encontra respaldo no compromisso de respeito mútuo,
fortalecendo os laços de parentesco que unem profundamente os membros de
uma família. Enéias parte com os seus companheiros e com a sua família: o
pai, o filho Iulo e a esposa Creusa. Ao valorizar a família, o herói troiano
encarna o ideal preconizado pela pietas, sendo admirado não apenas pelo amor
devotado aos seus, mas também como modelo exemplar de comportamento no
que diz respeito à família, sustentáculo da sociedade romana.
A viagem empreendida por Enéias leva-o a enfrentar grandes
perigos e tormentas, ações às quais não se pode furtar o varão, cuja
heroicidade só pode ser reconhecida mediante as provas necessárias.
Assim, após vencer os desafios impostos pelo destino, Enéias chega, enfim,
à pátria que fora destinada a si e aos seus. Tomado de imensa alegria,
celebra, junto aos companheiros, a concretização dos ideais almejados.
19
[Descendente da estirpe dos deuses, que nos trazes a cidade troiana
arrebatada aos inimigos e que conservas a eterna Pérgamo, aqui, em
solo laurenciano e nos campos latinos está a morada a ti destinada,
aqui os teus Penates (não te afastes); não te deixes atemorizar com
as ameaças de guerra; cessaram a indignação e a cólera dos deuses.]
20
poderosa raça lusitana por tantas superfícies perigosas do mar, por
onde tinha chegado ao Indo, rico em pedras preciosas.]1
1
As traduções referentes ao poema In partum... integram a obra A vertente épica em Miguel de Cabedo.
21
No texto renascentista, a pietas de João encontra o reconhecimento das
entidades míticas, mas aponta, além disso, para um outro aspecto fundamental
– a valorização da ação humana – fator de grande importância, pois coaduna-se
com princípios humanistas vigentes nesse dado momento histórico.
A elocução de Júpiter, numa outra seqüência do poema alusiva à
piedade virtuosa do rei D. João, deixa transparecer a existência de uma
confluência mítico-cristã, reflexo da intersecção paganismo/cristianismo,
comum desde os tempos medievais, e bastante freqüente na época
renascentista.
22
Caelicolae, digno pensemus munere.” (In Part., 225-229)
[Trocando os ritos nefandos, os falsos sacrifícios e os deuses
ignóbeis por um culto melhor – tudo que a verdadeira religião de
Deus exige – é justo meditarmos terem sido dadas todas essas
coisas aos povos por uma digna dádiva divina.]
23
Referências bibliográficas:
DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa,
1984. 2 v.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História e Cultura Clássica. v. II.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
SILVA, Marilda E. dos Santos. A vertente épica em Miguel de Cabedo. Tese de
Doutorado em Letras. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 1980.
VIRGILE. Énéide. Texte ét. par René Durand et trad. par André Bellessort. Paris:
Les Belles Lettres, 1948. 2 v.
24
A CONTAMINATIO DE PLAUTO
Amós Coelho da Silva
25
latim: schole,es, pelo latim schola, que se fixou e se expandiu no
Ocidente, como ocorreu com tudo que foi assimilado da Grécia por Roma.
Na comédia, quando os assuntos eram helênicos e isso implicava
nos atores com traje pallium, pálio – vestimenta grega correspondente a
toga romana-, as peças eram denominadas fabulae palliatae. Só mais tarde
surgiram as fabulae togatae, com temas nacionais. Plauto e Terêncio foram
autores de palliatae.
Titus Maccus (ou Maccius) Plautus nasceu na Úmbria por volta de
250 e faleceu em 184 a.C. Das 130 comédias apontadas como de sua
autoria, Varrão, erudito do século I. a.C., só reconheceu as 21 seguintes:
Amphitruo, Asinaria, Aulularia, Captiui, Curculio, Casina, Cistellaria,
Epidicus, Bacchides, Mostellaria, Menaechimi, Miles Gloriosus, Mercator,
Pseudolus, Poenulus, Persa, Rudens, Stichus, Trinummus, Truculentus,
Vidularia – as quais continuaram a ser lidas e transcritas, graças à definição
varroniana, cujo manuscrito da máxima autoridade é o Vaticanus Palatinus
1615, do século X.
Inspirava-se Plauto na Literatura Grega de IV e III a.C. A sua arte
consiste em E multis unam facere, de muitas fazer uma, isto é, através da
contaminatio, da contaminação de autores como Menandro, Filêmon e
Dífilo. Já havia em Plauto o que Julia Kristeva denominou, em 1969, de
intertextualidade. Intertextualidade refere-se à produtividade da escritura
literária, no sentido de textos anteriores ficarem disseminados ou
redistribuídos em novos textos; por isso, seria preciso pensar um texto
hodierno como um intertexto. A isso, acrescenta Roland Barthes: Todo
texto é um intertexto, outros textos estão presente nele, em níveis variáveis,
sob formas mais ou menos reconhecíveis (…). Em Plauto, e até em
Terêncio, essa intertextualidade estava explícita e, se o poeta imitasse ou
assimilasse o mesmo mais de uma vez, seria considerado plágio. No caso,
de intertextualidade, diz-nos Roland Barthes: O intertexto é um campo
geral de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é recuperável, de
citações inconscientes ou automáticas, feitas sem aspas (CHARAUDEAU
& MAINGUENAEAU, 2004: intertextualidade).
Da Comédia Antiga de Aristófanes, temos em Plauto o prólogo,
mas sem assuntos políticos, estabelecendo a conexão entre autor e platéia.
Na maior parte de suas peças os prólogos introduzem de imediato o assunto
ou tema. Nesses prólogos, utilizou-se Plauto até mesmo da autoridade
divina, estabelecendo não só a função fática da linguagem com a sua platéia
mas também conquistando definitivamente a sua atenção. Era uma platéia
26
formada, em grande parte, da pobre plebe romana, por isso o prólogo, que
adiantava o tema da peça como se evitasse qualquer mistério no argumento
da peça, tornou-se um recurso de captatio beneuolentiae, captação da boa
vontade – a exemplo do prólogo de uma peça sua em estilo de fabula
rinthonica, ou seja, de assunto mitológico, como fazia o poeta que lhe deu
o nome: Rinto de Tarento.
Assim, em Anfitrião, Aululária e O Cabo (Rudens) está a
autoridade divina, respectivamente, de Mercúrio, o deus Lar, a estrela
Arcturo.
Em Anfitrião nota-se a ansiedade de conquistar a simpatia da
platéia pela autoridade da personagem Mercúrio, que, sendo deus dos
negócios, conforme a sua derivação do tema da terceira declinação merx,
mercis: mercadoria, comestíveis; negócio e seguinte família etimológica
portuguesa: mercearia, mercado, comércio, mercantil, supermercado etc.
Com efeito, Mercúrio explica à platéia a sua missão de mensageiro de
Júpiter, mas ainda muda de tragédia para tragicomédia, nos versos 50-1:
Nunc quam rem oratum huc veni primum proloquar, / post argumentum
huius eloquar tragoediae, ora, o pedido que me trouxe aqui declararei em
primeiro lugar, depois explicarei o argumento desta tragédia.
E nos versos seguintes: quid? contraxistis frontem, quia
tragoediam dixi futuram hanc?, por que contraístes a fronte, porque eu
disse que há de ser uma tragédia? Os espectadores não eram afeitos à
reflexão de assunto grave; desejavam mesmo era uma comédia: (verso 54-
5) faciam, ex tragoedia / comoedia ut sit omnibus isdem versibus, farei de
tragédia comédia com os mesmo versos – o que também demonstra que a
linha divisória entre um estilo e outro é muito tênue. Só depende de como
se engendram as palavras, e não apenas de palavras graves propriamente.
Vtrum sit an non voltis? sed ego stultior, / quasi nesciam vos
velle, qui divos siem. / teneo
quid animi vostri super hac re siet: / faciam ut commixta sit:
<sit> tragicomoedia, (56-9)
então, qual dos dois é o vosso desejo? / Como se eu não soubesse
o que vós quereis; eu que sou deus! Conheço bem a vossa
opinião e o que pensa sobre este assunto: farei de tal modo que se
misture e que seja uma tragicomédia.
27
Em troca, a platéia se comportaria e com justiça aplaudiria no final.
Com sua habilidade de comunicação fácil, lhes contrapõe que, como haveria
deuses na peça, não poderia ser comédia. Eis o Prólogo de Anfitrião (1-16):
28
cavea pignus capiantur togae, (67-8) de modo que serão despidas suas
togas na platéia, se pegarem esses cúmplices enviados.
Esse preceito de personagens divinas ou reais numa peça, como
indicativo de estilo trágico, nos lembra do conceito aristotélico: na comédia
ri-se do feio, sustentando-se na expressão: tal é, por exemplo, o caso da
máscara cômica: feia e disforme. Sua deformidade não é causa de
sofrimento. Esses princípios canônicos da arte dramática da época, os quais
eram tratados por Aristóteles, estão presentes na obra de Plauto. Como é o
caso em que o Estagirita afirma que as mais belas tragédias são as que
imitam assuntos sérios e graves, inspirados principalmente em reduzidíssimo
número de famílias, por exemplo, das famílias Alcméon, Édipo, Orestes...
(ARISTÓTELE, 1964: 286) e outras personagens idênticas, que tiveram de
suportar ou cumprir coisas terríveis, ou seja, príncipes, reis ou até deuses
como protagonistas, como observou Plauto em Anfitrião.
Depois de indicar a cidade de Tebas como local da ação cômica, dá
identidade de Anfitrião e Alcmena e o desejo de Júpiter de coabitar com
Alcmena. Justifica a seguir a sua vestimenta de escravo. Como Alcmena
pede a Anfitrião que vingue as desfeitas dos teléboas contra os seus
consangüíneos, o general e esposo atende ao seu pedido. E vai guerrear
contra Ptérela. Ora, já que Júpiter está com a aparência de Anfitrião,
Mercúrio, seu filho, e mensageiro, tomará a aparência de Sósia. No mito, os
deuses só não podem realizar junto aos mortais a epifania, como foi a de
Júpiter, que não pôde negar o pedido de Sêmele, que, instigada por Juno,
duvidara estar amando a Júpiter. Mas a hierofania, ou seja, a sua presença
sem a totalidade da luz, não afetaria os mortais.
Assim sendo, para que os espectadores saibam quem é Mercúrio ele
trará sempre duas asinhas no chapéu (nunc intergnosse ut nos possitis
facilius, ego has habebo usque in petaso pinnulas;(142-3) agora para que
possais mais facilmente nos reconhecer, eu - no meu caso – terei estas
asinhas no chapéu). O chapéu de meu pai terá uma franja de ouro.
Ninguém da família verá isso. Pronto, estar armado o qüiproquó, ou seja, o
trocadilho de situação, explorado por demais em Ernesto Feydeau (século
XIX), autor de comédias burlescas.
Desse modo, dois pares semelhantes: os deuses dissolutos e
desavergonhados, os mortais perturbados e cumprindo a sua sina de
mortais, ou seja, existindo apenas. No meio a virtuosa Alcmena. Logo que
o marido, iludido pela glória da guerra, retorna ao lar com o escravo,
encontra uma mulher sincera a duvidar das atitudes do marido. O escravo
29
na comédia plautina era o principal centro do discurso dramático, e é o
próprio escravo que se rebela contra Anfitrião, já nos versos 398-403:
30
parece justo que um deus pratique o seu delito e transfira sua culpa para
um mortal (versos 334-6).
Ainda, querendo enfatizar o jocoso, mas também o deplorável, um
aparte (que é um expediente comum em Plauto, outra inspiração em
Aristófanes, aliás muito utilizada nos comediógrafos futuros – as outras
personagens não percebem o que está ocorrendo, somente a platéia),
Mercúrio no verso 367: Facitne ut dixi? timidam palpo percutit, acaso
acontece como eu disse?(mas) ele retira o seu susto com carinho.
Porém, em lugar de éleos e phóbos, compaixão e medo, seguidos de
catarse, purificação – categorias aristotélicas da tragédia, Plauto explorou
como expediente de Ridendo castigat mores, Rindo os costumes são
castigados, as velhacarias de escravos, solucionando as dificuldades que
um jovem apaixonado encontraria para conquistar o amor de sua amante. A
condição da menina amante era de escrava, mas, resgatando a cidadania,
como se uma mão justiceira não permitisse a dissolução do direito natural,
passaria a uma situação sublimada, até reconquistando o casamento.
Este passo, o casamento entre um pobre e um rico no desfecho,
denominado por Aristóteles de, ‘mesotés’, em Plauto, e também em
Terêncio, é de inspiração na Comédia Nova, principalmente em Menandro.
Aliás, é a própria trajetória da jovem Planésio na peça Caruncho. Com
efeito, Plauto, sem que se afastasse dos princípios canônicos em voga
então, captou a simpatia romana e superou a adversidade contida na
ignorância da plebe latina, que tão hostil fora contra o grande Terêncio.
Inspiraram-se em Plauto autores como W. Shakespeare, dele
assimilando em Comedy of Errors Os Menecmos; Molière assimilou de
Anfitrião e Aululária, respectivamente, Amphitryon e L‘Avare.
As duas últimas obras plautinas acima despertaram também desde
Camões a Guilherme de Figueiredo, poeta da nossa literatura. E a palliata de
Plauto foi estudada no mundo ocidental, apreciando os apartes bem
humorados, situações equivocadas e trocadilhos da sua personagem
Anfitrião. Assimilaram sua peça Anfitriões, comédia camoniana e Um Deus
Dormiu lá em Casa, que é uma das múltiplas obras de G. de Figueiredo
marcada pelo teor classicizante,mas centrada no tema cotidiano do momento:
a vida de playboys da década de 1950, como Jorge Guinle, que teve ligações
românticas com Rita Hayworth, Ava Gardner, Veronica Lake, Marilyn
Monroe etc. O elemento satírico peculiar à comédia está contido nesta
fugacidade do tempo: a moda do momento. Mas compete ao poeta superá-la.
31
Aululária ainda motivou outro autor consagrado na nossa
literatura brasileira atual: Ariano Suassuna, autor de O Santo e a Porca.
O filólogo F. Ritschl, mestre de E. Nietzche, inaugurou o grande
ciclo dos estudos filológicos modernos sobre o teatro plautino.
(PARATORE, 1983: 61)
Plauto, portanto, integra o elenco de poetas que não serão
ultrapassados, mesmo que tornem anônimas as suas observações sobre o ser
humano. Por exemplo, muitos compêndios afirmam que se trata de provérbio
a expressão homo homini lupus. No entanto, ela nasceu de um momento
plautino, na comédia Asinaria (v. 495), em o mercador se recusa a dar
dinheiro a um desconhecido, justamente porque desconhecido: Lupus est
homo homini non homo, o homem é lobo, e não homem, para outro homem.
Referências bibliográficas:
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho.
São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.
ARISTÓTELES, HORACIO e LONGINO. A Poética Clássica. Trad. de Jaime
Bruna. São Paulo: Cultrix, 1981.
BAYET, J. Littérature Latine. Paris: Armand Colin, 1964.
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1980.
__________. Teatro Grego: Tragédia e Comédia. Petrópolis: Vozes, 1984.
BRUNA, Jaime. Plauto, Comédias. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix,
1988.
CHARAUDEAU, Patrick. & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de
Análise do Discurso. Trad. de Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004.
GAFFIOT, F. Dictionnaire lllustré Latin-Français. Paris: Hachette, 1934.
HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica: Grega e Latina. Trad.
de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
32
HUMBERT, Jules. Histoire Illustrée de la Littérature Latine: Précis Méthodique
Paris: Didier, 1932.
HUMBERT, Jules & BERGUIN, Henri. Histoire Illustrée de la Littérature
Grecque: Précis Méthodique. Paris: Didier, 1947.
PARATORE, Ettore. História da Literatura Latina. Lisboa: Fundação Calouste
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PEREIRA, Maria Helena da R. Estudos da História da Cultura Clássica: Cultura
Grega e Cultura Romana. 2 volumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964.
PLAUTE. Théâtre. Traduction nouvelle de Henri Clouarct. Paris: Garnier, s/d.
Tome II.
TEXTOS CLÁSSICOS. O Gorgulho, Plauto. Introdução, versão do latim e notas
de Walter Medeiros. Coimbra: INL, 1986.
TORRINHA, Francisco. Dicionário Latino Português. Portugal: Porto Editora, s/d.
33
CONCEITOS E MÁXIMAS MORAIS NA ELEGIA DE OVIDIO
Ana Thereza Basilio Vieira
1
Cf. MARTIN, 1981, p. 2.
34
Em Roma, o precursor do gênero foi Catulo, no chamado Século
de Cícero, poeta que soube, mais que nenhum outro, harmonizar um
intenso subjetivismo aos ditames da nova escola e que conseguiu anunciar,
através dos três poemas realmente considerados elegíacos, 65, 66 e 68, a
marca da poesia amorosa e erótica que desenvolveriam os grandes
elegíacos da época de Augusto.
Públio Ovídio Nasão (43 a.C. – 17 d.C.) foi um brilhante e
talentoso poeta lírico da época de Augusto, refinado e por vezes irônico,
elegante e irreverente. Tendo nascido em Sulmona, o pai mandou que ele
fosse estudar retórica em Roma, para que pudesse, assim, ingressar mais
tarde numa brilhante carreira política. Mas, desde cedo se manifesta em
Ovídio a vocação poética, que se reforça durante as tradicionais viagens
feitas à Grécia, às províncias orientais helenizadas e à Sicília. Voltando a
Roma, freqüenta a alta sociedade e entra em contato com os maiores
escritores de seu tempo, dentre os quais podemos contar Horácio e
Propércio. Após dois matrimônios infelizes, desposa uma mulher culta, que
tem relações com a família imperial.
Retomando algumas tendências de Tibulo e Propércio, Ovídio
prefere às Musas habituais a deusa Vênus, que assume o papel de sua musa
inspiradora, visto que é o amor que domina a poesia deste elegíaco.
Entretanto, Ovídio não renuncia às figuras mitológicas em sua obra.
Partindo de Vênus, encarnada em Corina, que estimula seu talento, o autor
chega às deusas, que sustentam a sua existência.
A elegia amorosa celebra, por definição, a puella ou a amica
(designações da amante), mas raramente a esposa legítima. Nos Amores, em
que Corina é a figura central, não há senão uma menção à esposa (Am. III, 13).
Nos Amores poderemos detectar as verdadeiras confidências do
poeta. Ele não é herdeiro de nenhuma família nobre; nasceu numa terra
fértil em trigo, uvas e oliveiras. Entretanto, nesta obra a atmosfera não é
aquela campestre, mas a urbana. Foi em Roma que Ovídio conheceu Tibulo
e lá também chorou a sua morte. Foi na grande cidade que aconteceram os
grandes banquetes, as longas esperas pela amada, as trocas de bilhetes e de
olhares. Foi lá que o célebre elegíaco pôde melhor analisar e enumerar os
diferentes tipos de belezas femininas, como veremos em Am. II, 4. Foi em
Roma que os triunfos imperiais e amorosos se realizaram.
Os encontros amorosos que o poeta evoca se dá de portas
escancaradas, ao contrário do que costumavam cantar Tibulo e Propércio. O
poeta sulmonense propõe as receitas que o amante deveria seguir. Na verdade,
35
a preocupação recai sempre na constante preocupação do distanciamento
entre amante e amado: o conquistador deve consultar o tempo, como os
camponeses ou marinheiros; ficar lúcido, mesmo perdendo seu tempo
seguindo as mulheres; participar de uma bebedeira e ainda assim fazer
declarações em que toda mulher deveria acreditar; chorar copiosamente,
mesmo que as lágrimas sejam falsas, para emocionar a amada.
O outro, a pessoa amada, é algo indefinível com que o poeta sonha
em fazer dele um troféu de vitória, tão fugaz quanto Corina. Ovídio se
apresenta ora como espólio de Corina (Am. I, 3; I, 2), ora como seu
triunfador e Corina torna-se sua presa (II, 12). Se o erotismo é a redução do
outro ao espólio, nada melhor do que a comparação elegíaca do
amante/sedutor ao soldado (Am. I, 5).
Ovídio não é poeta de um amor, mas de vários amores. Ele ensina a
arte de amar, cultivar e dominar novas paixões. O que lhe convém é cantar
o amor, com suas alegrias, esperanças, decepções, tristezas, dúvidas,
sucessos, infidelidades, censuras, traições, dores, suspeitas e rupturas.
Corina, a sua musa, é comumente apontada como uma mulher fictícia, um
nome que o poeta escolheu para poder compor seus versos. Alguns a
apontam como uma poetisa que teria dado conselhos a Píndaro e que teria
composto a primeira coleção conhecida de metamorfoses. Outros lhe
negam tal honra e dizem que se trata de outra pessoa2. A verdade é que não
se sabe se é apenas uma homenagem à Corina grega ou é um pseudônimo
para alguém de carne-e-osso, talvez uma mulher casada, distante das reais
intenções do poeta. No entanto, o amor cantado por Ovídio é um amor mais
carnal, mais próximo da realidade, não aquele das escolas de poetas, tão ao
gosto dos demais elegíacos. Por isso, a sua obra causa espanto; ela vai de
encontro à boa moral, aos ideais de Augusto, que desejava reimplantar os
“bons costumes” esquecidos por um Império que havia passado por tantas
guerras e lutas internas e externas.
O livro dos Amores, inicialmente composto em cinco livrinhos, ao
que tudo indica compostos em épocas diferentes, e mais tarde reduzidos a
três, com prováveis pequenas alterações e correções em seu conteúdo,
apresenta elegias em que Ovídio irá justamente questionar a moral romana
ideal, que está bem distante da realidade.
Na elegia I, 8, por exemplo, Ovídio atacará a proibição à prática da
magia; ele contará a história de uma feiticeira que faz encantamentos para
2
Cf. RIPERT, 1921, p. 46.
36
uma jovem conseguir um amante rico, que lhe dê muitos presentes. Ora,
havia na Lei Cornélia uma proibição expressa à utilização dos chamados
venenos, destinados a curar ou matar. Antes do século I a.C., acreditava-se
que tais práticas fossem realizadas apenas às ocultas, e por poucas pessoas
iniciadas nessas práticas. Com relação à magia amorosa, seus encantamentos
e filtros tinham por fim tão somente dispor para a paixão uma pessoa que já
nos estaria predestinada e não fazer com que qualquer pessoa ficasse
perdidamente apaixonada pelo requerente da magia. As feiticeiras (nugae) se
gabavam de trazer o amor ou ao menos reanimar o ardor amoroso. A magia
seria, então, segundo Eliane Massonneau3 “um meio infame de fazer com
que o amor nasça: enquanto este deveria ser o prêmio das virtudes e da
beleza”. Recorriam à magia, nesse caso, pessoas que buscavam seus amantes,
de preferência ricos e bem apessoados. Mas, os amantes traídos também
recorrem à magia para punir os infiéis e, sobretudo, seus e suas rivais.
Recorre-se a Vênus, por exemplo, para não acordar os amantes e fazer com
que passem toda a noite dormindo, sem conseguir gozar de seus prazeres, ou
pede-se aos deuses infernais que estes lê vem logo para junto de si a pessoa
odiada, não sem antes desgraçá-la por completo.
Eis os conselhos que a velha bruxa dá à jovem um tanto
inexperiente:
3
MASSOUNNEAU, 1934, p. 87.
37
crimes de magia. E é essa falta de bom-senso nas leis romanas que Ovídio
critica. A lei não é igual para todos; o povo é punido, mas os comandantes e
imperadores podem e devem recorrer à magia.
Outras vezes, Ovídio vai atacar o tema do adultério. Vejamos a
elegia III, 4, dos Amores:
38
In laudem serui casta sit illa rui?
Rusticus est nimium, quem laedit adultera coniunx,
Et notos mores non satis Vrbis habet,
In qua Martigenae non sunt sine crimine nati
Romulus Iliades Iliadesque Remus.
Quo tibi formonsam, si non nisi casta placebat?
Non possunt ullis ista coire modis!
Si sapis, indulge dominae uultusque seueros
Exue nec rigidi iura tuere uiri
Et cole, quos dederit (multos dabit) uxor, amicos.
Gratia sic minimo,magna labore uenit;
Sic poteris iuuenum conuiuia semper inire
Et, quae non dederis, multa uidere domi.
39
Podes te indignar, a volúpia proibida dá prazer; apenas
agrada a que pode dizer “tenho medo”. Contudo, não é justo
guardar uma jovem livre; que esse medo oprima os corpos das
mulheres estrangeiras! Sem dúvida, para que um guardião possa
dizer “é mérito meu”, acaso ela é casta pelo elogio de teu
escravo?
É muito rude quem ofende a esposa adúltera, e não conhece
bem os costumes da Urbe, em que não nasceu sem crime a prole
de Marte, Rômulo e Remo, filhos de Ília. Por que escolheste a
formosa, se só a casta te agradava? Essas não podem coexistir de
modo algum!
Se fores sensato, sê indulgente com a esposa, deixa de lado o
rosto severo, não te sirvas dos direitos de marido inflexível, e
cultiva os amigos que a esposa te der (e ela há de te dar muitos
deles). Assim grandes simpatias vêm com um mínimo de
trabalho; assim poderás sempre ir aos banquetes dos jovens e
verás em casa muitos presentes que tu não deste.
40
marido podia matar o amante da esposa só se o apanhasse em
flagrante dentro de sua própria casa. Até 60 dias da descoberta
do adultério da esposa, o marido podia levá-la perante o
tribunal; se o não fizesse, o pai da adúltera tinha de o fazer; e se
também não o fizesse qualquer cidadão podia acusá-la. A
adúltera era banida, perdia um terço de sua fortuna e metade do
dote, e ainda ficava impedida de casar-se novamente. Penas
iguais incidiam no marido conivente no adultério da esposa. Mas
uma mulher não podia acusar de adúltero ao marido, cujas
relações com prostitutas eram coisa legal. E a lei aplicava-se
unicamente aos cidadãos romanos4”.
Referências bibliográficas:
DURANT, Will. A história da civilização. Vol. III : César e Cristo. Rio de
Janeiro : Record, 1971.
LYNE, R.O.A.M. The latin love poets : from Catullus to Horace. Oxford :
Clarendon Press, 1996 .
4
DURANT, 1971, p. 176.
41
MARTIN, René & GAILLARD, Jacques. Les genres littéraires à Rome. Paris :
Scodel, 1971.
MASSONNEAU, Eliane. La magie dans l’antiquité romaine. Paris : Librairie du
Récueil Sirey, 1934.
OVIDE. Les Amours. Texte établi et traduit par Henri Bornecque. Paris : Les
Belles Lettres, 1952.
RIPERT, Émile. Ovide, poète de l’amour, des dieux et de l’exil. Paris : Librairie
Armand Colin, 1921.
42
OS EPIGRAMAS DE MARCIAL – RISO E CRÍTICA SOCIAL
Arlete José Mota
43
Reconhece-se como traço de originalidade em Marcial o fato de
dedicar-se apenas ao epigrama, abordando, em poemas breves, o compor-
tamento do homem em sociedade, seus vícios e vicissitudes. Como ele mesmo
afirma: Hominem pagina nostra sapit (“o nosso texto conhece o homem”).
Marcial falou das fraquezas do homem com grande habilidade
técnica. Seus críticos são unânimes em ressaltar o caráter encomiástico de
alguns de seus poemas, em especial dos dedicados a Domiciano. Sua obra,
entretanto, reflete uma diversidade de temas que reúne desde os carmina
famosa aos epigramas fúnebres; dos epigramas laudatórios àqueles em que
o olhar do poeta se distancia e estão presentes reflexões sobre a brevidade
da vida e o papel do homem na sociedade.
Talvez Marcial não tivesse propósitos edificantes – como Juvenal, que
se apresenta como moralista. Talvez tenha sido apenas o “colunista social”. O
mestre da ironia vai servir de modelo, mesmo quando se atenua a nota
priapesca e se destaca o dito mordaz e venenoso. Poder-se-ia resumir o seu
estilo nos seguintes termos: riso, crítica social contundente, precisão na forma.
Os epigramas de Marcial (aproximadamente 1500) estão reunidos
em 15 livros e resumidamente assim se encontram divididos:
1) Liber spectaculorum, em que exaltam os jogos organizados por
Tito para a inauguração do Anfiteatro Flávio (o Coliseu), em 80.
2) Os xenia e os apophoreta, reunidos, nos manuscritos, nos livros
XIII e XIV dos Epigrammata – publicados em 84. Note-se que o
vocábulo xenia designa os versos que acompanhavam os presentes
e apophoreta os versos que eram tirados à sorte em festejos.
Quanto a estes, cabe lembrar as palavras da professora Leni
Ribeiro, quando afirma:
Outro tipo de epigrama que se torna mais comum nesta época são
certas variações do epigrama votivo. Ao invés de uma dedicatória
presa a uma oferenda a um deus, o que se vê é a dedicatória de
um presente a um amigo, numa banalização do que antes era
sagrado; ou mais ainda o poema se transforma no espaço da
adulação aos poderosos (...)1.
1
LEITE, Leni Ribeiro. O patronato em Marcial. Rio de janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2003.
Dissertação de Mestrado, p. 36.
44
3) Os 12 primeiros livros dos Epigrammata (publicados em 86).
Dentre estes há quatro livros com prefácio em prosa, a saber: os de
número 1, 2, 8 e 12. O 8º livro é dedicado ao imperador Domiciano.
Seus epigramas eram famosos e Marcial o reconhece:
45
( O Gêmeo q uer se casar co m Maro nila: ele deseja,
insiste, p ede, d á p resentes. Se ela é bela? Que nad a!
O q ue o agrad a então? Ela to sse.)
IX, 80
Duxerat esuriens locupletem pauper anumque:
uxorem pascit Gellius et futuit.
(Gélio, rico e miserável ao mesmo tempo, desposa uma velha
rica. Ela o alimenta, ele a faz gozar.)
X, 8
Nubere Paula cupit nobis, ego ducere Paulam
nolo: anus est. Vellem, si magis esset anus.
(Paula deseja casar-se comigo. Eu não quero casar-me com Paula
porque ela é velha. Eu gostaria sim, se ela fosse mais velha!)
X, 43
Septima iam, Phileros, tibi conditur uxor in agro:
plus nulli, Phileros, quam tibi reddit ager.
(Filero, já enterraste no campo a tua sétima esposa. O campo
recompensa a ti mais do que a qualquer outro.)
XI, 62
Lesbia se iurat gratis numquam esse tututam.
Verum est. Cum futui uult, numerare solet.
(Lésbia jura que jamais trepa com alguém de graça. É verdade: é
ela quem paga sempre.)
3. Um Amor cego?
III, 8
“Thaida Quintus amat.” “Quam Thaida?” “Thaida luscam.”
Vnum oculum Thais non habet, ille duos.
46
(Quinto ama Taís. Quê Taís? A Taís cega. Taís não tem um
olho. Quinto não tem os dois.)
5. Maridos enganados:
II, 83
Foedasti miserum, marite, moechum,
et se, qui fuerant prius, requirunt
trunci naribuss auribusque uoltus.
Credis te satis esse uindicatum?
Erras: iste potest et irrumare.
(Tu mutilaste, marido, um amante, cortando-lhe o nariz e as
orelhas. Foi em vão. Tu crês que foste suficientemente vingado?
Tu estas errado: ele ainda pode meter.)
47
(Quem te persuadiu a cortar o nariz do adúltero? Não foi este
órgão, marido, que te ofendeu. Tolo, que fizeste? Tua mulher
nada perdeu, pois está salvo o pinto de Deífobo.
6. Um exemplo de homem?
I, 84
Vxorem habendam non putat Quirinalis,
cum uelit habere filios, et inuenit
quo possit istud more: furtuit ancillas
domumque et agrs implet equitibus uernis.
pater familiae uerus est Quirinalis.
(Quirino crê que não deve se casar, embora queira ter filhos. Ele
assim resolve a questão: se deita com as servas e assim enche a
casa de cavaleiros-escravos. Ele é um verdadeiro paterfamilias.)
7. A riqueza de detalhes:
VI, 23
Stare iubes semper nostrum tibi, Lesbia, penem:
crede mihi, non est mentula quod digitus.
Tu licet et manibus blandis et uocibus instes,
te contra facies imperiosa tua est.
(Tu ordenas, Lésbia, que meu pênis esteja sempre pronto para ti.
Crê em mim: meu pinto não é como um dedo; convém que tu
trabalhes sem descanso com tuas mãos carinhosas e com tuas
palavras. Tua face severa está contra ti.)
8. Outras preferências:
VI, 91
Sancta ducis summi prohibet censura uetatque
moechari. Gaude, Zoile, non futuis.
(O édito sagrado do imperador condena o adultério. Regozija-te!
Tu não sentes prazer mesmo).
48
9. Finalmente, mais uma face das preferências sexuais do poeta:
I, 57
Qualem, Flacce, uelim quaeris nolimue puellam?
nolo nimis facilem difficilemque nimis.
Illud quod medium est atque inter utrumque probamus:
nec uolo quod cruciat nec uolo quod satiat.
(Qual é, Flaco, meu tipo de mulher? Nem muito fácil nem muito
difícil. Me agrada o meio termo. Quero a que me satisfaça, não a
que me torture.)
49
(Tu não convidas ninguém, Cota, a não ser aquele com quem tu
te banhas - somente os banhos dão convivas. Admiro-me porque
nunca me convidas. Mas agora sei que desagrada-te ver-me nu.)
I, 28
Hesterno fetere mero qui credit Acerram,
fallitur: in lucem semper Acerra bibit.
(Engana-se quem crê que Acerra delicia-se com vinho de
véspera: Acerra bebe durante o dia.)
VIII, 74
Oplomachus nunc es, fueras opthalmicus ante.
Fecisti medicus quod facis oplomachus.
(Agora és gladiador. Eras oftalmologista. Tu fizeste como
médico o que fazes como gladiador.)
X, 43
Septima iam, Phileros, tibi conditur uxor in agro:
plus nulli, Phileros, quam tibi reddit ager.
(Filero, já enterraste no campo a tua sétima esposa. O campo
recompensa a ti mais do que a qualquer outro.)
XI, 59
Senos Charinus omnibus digitis gerit
nec nocte ponit anulo
nec cum lauatur. Causa quae sit quaeritis?
Dactyliothecam non habet.
(Carino anda com seis anéis em cada dedo e não os tira nem de
noite nem quando se lava. Perguntas por quê? Ele não tem uma
“dactiloteca”.)
III, 28
Auriculam Mario grauiter miraris olere.
Tu facis hoc: garris, Nestor, in auriculam
(Tu te admiras, Nestor, que a orelha de Mário cheire tão mal. É
tu que provocas isso, tagarelando em seu ouvido.)
III, 43
Mentiris iuuenem tinctis, Laetine, capillis,
tam subito coruus, qui modo cycnus eras.
Non omnes fallis; scit te Proserpina canum:
personam capiti detrahet illa tuo.
50
(Simulas juventude, Letino, com os cabelos pintados. Eras um
cisne e tão rapidamente te transformas-te em um corvo! Não
enganas a todos. Prosérpina sabe que tu tens cabelos brancos: ela
arrancará a máscara da tua cabeça.)
I, 37
Ventris onus misero, nec te pudet, excipis auro,
Basse, bibis uitro: carius ergo cacas.
(Lamento, Basso, que tu lances o peso de teu ventre numa latrina
de ouro e não te envergonhes disso. E bebes em copos de vidro!
Então teus excrementos são mais caros.)
IX, 33
Audieris in quo, Flacce, balneo plausum,
Maronis illic esse mentulam scito.
(Se, nas termas, Flaco, ouvires um aplauso, saibas que lá está o
pinto de Marão.)
III, 8
Sunt gemini fratres, diuersae sed inguina lingunt:
dicite, dissimiles sunt magis na similes?
(São gêmeos, mas sugam genitálias diversas. Dizei: são
diferentes ou se parecem ainda mais?)
Referências bibliográficas:
FUNARI, Pedro Paulo (org.). Amor, desejo e poder na Antiguidade. São Paulo:
UNICAMP, 2003.
GIARDINA, Andrea (dir.). O homem romano. Lisboa: Presença, 1992.
MARTIAL. Épigrammes. Text. trad et et. par H. J. Izaac. Paris: Les Belles Lettres, 1930.
MARZIALE. Epigrammi. Milano: Arnaldo Mondadori, 1995.
VEYNE, Paul. A sociedade romana. Lisboa: Edições 70, /1990/.
.
51
A ARTE CÔMICA DE PLAUTO E ARIANO SUASSUNA
Cecília Lopes de Albuquerque Araújo
52
espectadores, apóstrofes diretas ao público, com cenas bem montadas em
situações cômicas ou através de palavras, ou através de expressão
fisionômica que depende da arte do ator. Os personagens são tipos comuns
do teatro grego: o leno, o velho, o par amoroso, escravo, parasitas e cortesãs,
acentuando-lhes características romanas e um colorido inteiramente novo. De
um modo geral chama atenção para a parte grotesca, ridícula, os defeitos,
dando-lhes várias facetas: os velhos, por exemplo, ora são severos e
teimosos, ora cheios de bom senso e compreensivos. Suas peças são
compostas com frases simples, curtas, mas ricas. Apresenta muitos jogos de
palavras. Explora mais as formas da comédia de intriga, embora na Aululária
explore também as da comédia de caracteres.
A religião, que na comédia nova quase não existia, aparece às
vezes em Plauto como o centro de toda a peça, mostrando a preocupação
religiosa do autor, refletindo, assim, o ambiente moral de sua época. Em
suas peças há grande número de divindades, resultantes da sua preocupação
de ir ao encontro das paixões e tendências do público. Os deuses são na
maioria gregos, embora apareçam também os tipicamente romanos.
Suas peças mostram a sociedade da época com realismo forte, prendendo-
se sua moral a dois princípios: praticar a virtude e evitar o vício. Inspira-se
na vida do povo, é comediógrafo das massas. Sua comédia é realista, tendo
a preocupação de fazer rir.
Atribui-se a ele a autoria de mais de cem peças, sendo que vinte e
uma resistiram até nossa época, conservando-se quase na íntegra. A
Aululária é uma peça notável, tendo vários seguidores e até hoje alguma
atualidade, principalmente pelo personagem do velho avarento, no qual o
Harpagão de Molière é nitidamente calcado, bem como o Euricão de O
santo e a porca de Ariano Suassuna.
Através de exemplos de O santo e a porca, procuraremos mostrar
as semelhanças existentes entre o texto de Suassuna e a Aululária, de
Plauto, não só quanto à temática, mas também em relação a outros
componentes da peça.
Podemos perceber a absorção do texto latino pelo autor brasileiro, a
partir dos nomes dos personagens. Na Aululária, como ocorria
normalmente nas comédias clássicas, esses nomes não eram arbitrários;
todos apresentavam radicais ou sufixos que levavam à etimologia. Assim, o
velho avarento chama-se Euclião, que pode significar boa fama ou então
aquele que esconde bem; a escrava, Estáfila, cacho de uva, mostrando o
gosto da escrava pelo vinho; o pretendente, Megadoro, aquele que tem
53
bens; Eunômia, justiça, pois apóia o casamento do irmão e depois o do
filho, Licônides, quando soube que ele desonrara Fedra, a filha de Euclião.
Há também Estróbilo, pião, personagem sempre em rodopio, que precede
Euclião em tudo, e os cozinheiros Antrax, brasa, e Congrião, peixe. Em O
santo e a porca há semelhança semântica e etimológica com a peça latina,
Suassuna tenta estabelecer uma identidade sonora ou significativa: o
avarento é Euricão, o pretendente Eudoro, a irmã Benona e o escravo
Pinhão. Com o nome dos pretendentes faz semelhança fônica (doro) e
paralelismo na composição mórfica (mega - eu / doro - doro). Em Estáfila,
escrava de Euclião, e Caroba, criada de Euricão, uma ligação significativa:
ambos são nomes de plantas. Em Euclião / Euricão – Eunômia / Benona,
aproximação sonora.
Suassuna estruturou a intriga de sua comédia nos mesmos
processos de seu modelo. Tudo gira em torno de um avarento e do roubo
de seu tesouro. Em ambas as peças o tema da avareza aparece como pólo
dinamizador da intriga, refletindo a idéia fixa de Euclião e Euricão. Partindo
de um elemento acidental, os autores procuram mostrar a influência exercida
por esse elemento na vida dos protagonistas: na Aululária, através de uma
panela cheia de ouro encontrada por Euclião na lareira de sua casa, em O
santo e a porca, após ser abandonado pela esposa, Euricão passa a viver em
função da porca que contém suas economias, a qual colocou sob a guarda de
Santo Antônio. A panela e a porca são mitificadas pelas duas personagens,
para elas, panela e porca, estará voltada toda a atenção dos donos das casas.
Na Aululária:
Euc: Nunc ibo uti uisam, estne ita aurum, ut condidi,
Quod me sollicitat plurimis miserum modis. (v.26 - 27)
"Euclião- ..................E agora vou ver se o ouro ainda está aonde
eu o escondi; pobre de mim! É o que mais me preocupa"
54
carne, meu pão de cada dia, a segurança de minha velhice, a
tranqüilidade de minhas noites, a depositária de meu amor."
55
Em Suassuna, na carta enviada a Euricão por Eudoro, anunciando-
lhe a intenção de roubar o seu tesouro mais precioso, a filha Margarida,
provoca reações absurdas do avarento. Para maior efeito cômico, o autor
faz com que a carta seja lida aos poucos, ocasionando uma série de mal
entendidos.
Euricão lendo a carta: "Meu caro Euricão: espero que esta vá
encontrá-lo como sempre com os seus, gozando paz e prosperidade.
O velho, quase desmaiando, chama pela filha para que ela continue a
leitura, porque imagina que Eudoro sabe de seu tesouro.
Marg: De minha chegada aí, mas quero logo avisá-lo: pretendo
privá-lo de seu mais precioso tesouro!
Eur: Está vendo? Esse ladrão! Esse criminoso. Meteu na cabeça
que eu tenho dinheiro escondido!
56
Eur: Com a porca? Ai, ai, minha porca! Ai minha porca, pelo
amor de Deus! Santo Antônio, Santo Antônio!
57
Euc: Quia ad treisuiros iam ego deferam nomen tuom.
Com: Quamobrem?
Eur: Quia cultrum habes.
Com: Cocum decet. (v.373-375)
Euc: Vou já levar teu nome aos triúnviros.
Com: Mas por quê?
Euc: Porque trazes uma faca.
Com: Mas é natural num cozinheiro.
58
Referências bibliográficas:
MICHAUT, G. Histoire de la comédie romaine. Plaute. Tome I. Paris: E. de
Boccard Éditeur, 1920.
PLAUTE. Théâtre. Texte établi, traduit d’après Naudet; avec introduction, notices
et notes par Henri Clouard. Paris: Librairie Garnier Frères, 1936.
PLAUTO e Terêncio. A comédia latina. Prefácio, seleção, tradução e notas de
Agostinho da Silva. Rio de Janeiro: Ed. de Ouro, /s.d/.
SUASSUNA, Ariano. O santo e a porca. / O casamento suspeitoso. Estampas de
Zélia Suassuna. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
59
OS DIVERSOS CONCEITOS DE “AMOR” NA CULTURA GREGA ANTIGA
Dulcileide Virginio do Nascimento
60
Mas, que importância teve esta divindade para a sociedade grega
antiga? Por que Eros, o deus primitivo organizador do mundo e que
provoca a união dos corações e dos corpos não tinha um culto oficial11?
Será que os gregos realmente conheciam o amor?
Todos nós sabemos que, principalmente em Atenas, a mulher grega
tinha o mesmo direito que os escravos, ou seja, nenhum, que o amor entre
rapazes tinha um papel importante na sociedade, que o casamento
heterossexual, a maior parte deles, era realizado por conveniência religiosa
e social e não por gosto. Mas, como amar alguém que nunca se viu?
Ao refletirmos sobre esta divindade e sobre os efeitos que tem sobre a
humanidade contrapomos duas sensações, a primeira descrita por Safo:
61
Filé-o, é o amor amizade, o prazer de estar junto e da troca mútua.
Erá-o, é o verbo utilizado para designar o sentimento apaixonado
que unia os corações. É aquele que designa tanto o que é atraído quanto
aquele que atrai (eromena e o erasta), é o encontro da atração sexual com a
atração sentimental. Era o verbo empregado primeiramente entre os gregos
dos séculos IV e V a.C para designar o desejo apaixonado e é o verbo
utilizado no texto de Safo.
Eros, portanto, é uma divindade que está presente tanto na origem
do universo, como no nascimento dos deuses e dos homens. É ele que une
as parcelas dos diversos elementos que constituem o universo, lutando
contra Neikos, a discórdia ou o ódio, que os vem separar.
O deus alado ficou conhecido a partir do século III a.C como o
jovem filho de Afrodite, a deusa da beleza e do amor; deusa conhecida por
sua natureza dupla - ou seja, a Afrodite Pandêmia, deusa do desejo brutal,
ou Afrodite Urânia, deusa dos amores etéreos - assim como sua mãe, duplo
são os sentimentos causados pelas flechas de Eros. Mas na antiguidade
diversas origens são atribuídas ao seu nascimento:
62
O poder de Eros fica bem evidente nos versos 781-800 da Antígona
de Sófocles, assim como a atuação de Afrodite para o mesmo fim
:
“Eros, invencível Eros, tu que subjugas os mais poderosos; tu que
repousas nas faces mimosas das virgens; tu que reinas, tanto na
vastidão dos mares, como na humilde cabana do pastor; nem os
deuses imortais, nem os homens de vida transitória podem fugir a
teus golpes; e, quem for por ti ferido, perde o uso da razão!
Tu arrastas, muitas vezes, o justo à prática da injustiça, e o
virtuoso, ao crime; tu semeias a discórdia entre as famílias...Tudo
cede à sedução do olhar de uma mulher formosa, de uma noiva
ansiosamente desejada: tu, Eros, te equiparas, no poder, às leis
supremas do universo, porque Afrodite zomba de nós!”
13
O mito pode assim ser resumido: Céfalo era um belo jovem amante dos exercícios. Aurora ao vê-lo
se apaixonou por ele e o raptou. Céfalo, porém, recém casado e apaixonado por sua jovem esposa,
recusa o amor da deusa, que o liberta, mas o amaldiçoa dizendo que ele se arrependeria do dia em que
conheceu sua esposa. Sua esposa se chamava Prócris. Ela cultuava a Ártemis e recebeu da deusa como
presentes um cão, mais veloz do que qualquer outro, e um dardo, que nunca erra o alvo. Ela deu os
presentes que recebeu ao seu marido, que os utilizava sempre na caça.
Após a caça diária, fatigado, Céfalo descansava numa sombra perto de um rio onde costumava passar
uma fresca brisa e, ao mesmo tempo, dizia em voz alta: “Vem Brisa, vem afagar-me e leva o calor que
me abrasa”.
Alguém, ouvindo-o falar assim, acreditou que ele estivesse falando com uma mulher e correu a contar
para Prócris. Sua esposa, inicialmente, não acreditou, mas com o coração ansioso, no dia seguinte,
seguiu o seu marido.
Mais uma vez, Céfalo, cansado, senta-se e invoca a Brisa. Ao ouvir um ruído semelhante a um soluço
vindo do bosque, supondo ser um animal selvagem, joga o seu dardo e ao ouvir o grito de sua mulher
correu, mas em vão foi a tentativa de salvá-la. Antes da sua morte, entretanto, Prócris entreabriu os
olhos e conseguiu murmurar estas palavras: Imploro-te, se algum dia me amaste... satisfaças a minha
última vontade: não te cases com essa odiosa Brisa!”. Céfalo, então, entendeu a atitude da sua esposa e
confirmou que a desconfiança prejudica ou acaba com o amor.
14
O mito nos lembra a história de Romeu e Julieta: Píramo e Tisbe eram dois belos jovens que
cresceram próximos e o convívio acabou transformando-se em amor. Os pais de ambos proibiram o
relacionamento, mas não conseguiram impedir que o amor crescesse no coração dos jovens. Eles
continuavam a se falar por sinais, olhares e por uma fenda entre suas casas. Só uma parede, no silêncio
da noite, conseguia separar os amantes que através da fenda marcaram um encontro para a noite
seguinte. O lugar de encontro seria um monumento fora dos limites da cidade, chamado o Túmulo de
Nino, e combinaram que quem chegasse primeiro esperaria o outro junto a uma amoreira branca.
63
pela morte. Só nos romances gregos teremos os finais felizes. Mas um dos
mitos mais representativos, ao meu ver, é o de Admeto e de Alcestis. O mito
pode ser resumido desta maneira: foi decidido pelas parcas que Admeto teria
uma vida curta. Sendo ele um bom rei e um bom marido e ao ter acolhido
Apolo bondosamente, o deus, conhecendo o seu destino, persuadiu as parcas a
aceitar a vida de outro no lugar da sua. Como seus pais, já velhos, não
aceitaram fazer a troca, sua esposa, Alcestes, concordou em fazê-lo e
conseqüentemente morreu. Heracles visitando o palácio e conhecendo o amor
dos dois e vendo o sofrimento do rei com a morte da esposa, foi em busca de
Thanatos, lutou com ele e vencendo-o trouxe Alcestes de volta à vida.
Este mito, para os estudiosos, demonstra que de modo algum o amor,
provocado por Eros, não pudesse nascer entre homem e mulher. Platão, no
Banquete-179, afirma que “morrer por outro, só o desejam os que o amam e
não só os homens como também as mulheres” e cita o exemplo de Alceste
“que os deuses amaram a ponto de lhe permitir que saísse do Hades e voltasse
a ver a luz do sol”; pensamento, também, reforçado por Plutarco, nos Eróticos,
quando afirma que as moças também são capazes de provocar o Eros.
Mas, como manter viva a chama de Eros? Como saciar a sensação
de dois seres que precisam se entregar um nas mãos do outro e, ao mesmo
tempo se reencontrarem um no outro?
O próprio Eros nos ensina o caminho quando experimenta as
sensações causadas por seu próprio toque. Para entender do que estamos
falando basta reler o mito de Eros e Psique. Nele podemos, mais uma vez,
perceber como o amor sofre com a desconfiança. Que a reconquista é uma
tarefa árdua, como foram os trabalhos realizados por Psique a mando de
Afrodite; e que o verdadeiro amor resiste a tudo, até ao sono da morte.
Tisbe chegou primeiro, mas enquanto estava aguardando avistou uma leoa que, com a boca
ensangüentada, aproximava-se de uma fonte próxima para matar a sua sede. Ao vê-la Tisbe fugiu e
refugiou-se numa gruta, deixando cair o véu. A leoa acabou despedaçando, com sua boca
ensangüentada, o véu.
Píramo, ao se aproximar viu as pegadas da leoa e o véu dilacerado e cheio de sangue. Acreditando ter
sido a causa da morte de Tisbe, resolveu seguí-la em seu destino e após cobrir de beijos e lágrimas o
que sobrou do véu mergulhou a sua espada no seu coração. O sangue tingiu de vermelho as amoras
brancas e penetrou nas raízes da árvore.
Tisbe, ao sair da gruta, e encontrar Píramo, viu o véu ensangüentado e a bainha vazia da espada e
percebeu ser a causa da sua morte. E diz: “seguir-te-ei na morte, pois dela fui a tua causa; e a morte, que
era a única que nos podia separar, não me impedirá de juntar-me a ti”. Assim dizendo, mergulhou a
espada no peito.
Eles foram enterrados num único túmulo e a amoreira conservou a marca deste amor, pois até hoje os
seus frutos, que inicialmente eram brancos, são vermelhos.
64
Do amor de Eros e Psique nasceu uma filha chamada Prazer...
Retomando nossas considerações iniciais, diríamos que os mitos
ainda atuam em nossas vidas. Que a presença de Eros ainda continua viva
tanto no individual quanto no coletivo e que na atualidade podemos ter
tantos exemplos de sua atuação quanto no passado mítico grego.
Mas o que era o amor para os gregos? Só existe uma resposta:
Eros... É na dicotomia existente entre o conflito das suas flechas, do mundo
terreno e do celeste, do desejo e do sofrimento, de ações e reações que ora
se conflitam, ora se harmonizam que encontramos a essência do amor
grego e do amor de qualquer época. E se todos os mitos não são eternos
como o de Psique, são intensos como Eros...
Finalizo citando um poeta que conseguiu com seus versos resgatar
a força do Eros grego, por acreditar que é a força do amor é o que nos incita
a viver hoje e sempre...
65
Referências bibliográficas:
BUFFIÈRE, Félix. Eros Adolescent – La Pédérastie dans la Gréce Antique. Paris:
Les Belles Lettres, 1982.
HESÍODO.Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1992.
LACARRIÈRE, Jaques. Grécia: um olhar amoroso. Rio de Janeiro: Ediouro,
2003.
PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Abril Cultura, 1972.
SAPHO. Texte établi et traduit par Théodore Reinach. Paris: Les Belles Lettres,
1989.
SÓFOCLES. Tragédias: Antígona. Madrid: Ed. Gredos, 1986.
66
IDIBUS EST ANNAE FESTUM GENIALE PERENNAE
Eliana da Cunha Lopes
Os Fastos
Os Fastos são um calendário nacional, onde são descritos os cultos
e as festas religiosas dos seis primeiros meses do ano. Esta obra,
pertencente à segunda fase da vida do poeta, foi escrita em dísticos
elegíacos. Divide-se em seis livros, cada um deles dedicado a um mês do
calendário romano, incluindo apenas os seis primeiros meses do ano, de
janeiro a junho.
Fasti, -orum m. pl., em latim, significa calendário. Inicialmente estes
fasti marcavam apenas os dias festivos dedicados aos deuses mitológicos. Na
obra de Ovídio, entretanto, o calendário assume uma característica mais
abrangente. Nele serão anexadas, também, datas nacionais, isto é, datas festivas
que o Senado incluiu no calendário, a fim de comemorar os aniversários de
vitórias de Júlio César e as vitórias de seu filho adotivo, o Imperador Augusto.
15
CORREIA, N. & FERREIRA, D. M. (1992: 11).
67
Deste modo, os Fastos vão abarcar tanto os registros das festas religiosas
quanto das festas cívicas, constituindo-se num calendário poético-religioso-
romano escrito em dísticos elegíacos. E, a partir desta data, iniciam-se os
relatos das festas dedicadas aos homens ilustres de Roma.
O primeiro livro da obra refere-se ao mês de janeiro, Ianuarius
mensis, em latim. É consagrado a Jano, o deus protetor de todos os
começos, representado com dois rostos: um voltado para o passado e outro
para o futuro. As grandes festas dedicadas a Jano, as Agonais (Agonalia),
eram comemoradas, com a oferenda de grandes sacrifícios, no dia 9 de
janeiro (Ov., F. 1, 317-9).
68
Há, neste segundo livro, um prólogo dedicado a Augusto, o
restaurador dos templos santos e fundador de novos templos (v. 59-66).
69
O ano primitivo dos romanos começava em março porque nesta
época ocorria, no hemisfério norte, onde se situa a cidade de Roma, o
desabrochar da primavera que vai eclodir no mês seguinte. Marte é o deus
romano identificado com o deus Ares helênico. Os meses de janeiro e
fevereiro, do atual calendário, foram criados por Numa Pompílio, que
percebeu que não havia coincidências entre os meses e as colheitas efetuadas.
Deve-se acrescentar às datas deste mês, o dia 15 de março, data do
assassinato de Júlio César no Senado. O calendário romano registra neste
dia a sua morte e apoteose: ou seja, a passagem da natureza humana para a
divina de Júlio César, pois o Senado acreditou que César havia-se tornado
um deus.
O quarto livro diz respeito a abril (aprilis, -is, s. m.) que, a
princípio, era o segundo mês do ano romano. Cultuava-se a deusa Vênus,
deusa da vegetação e da fertilidade.
Segundo Pierre Grimal (2000: 466):
70
Nam, quia ver aperit tunc omnia, densaque cedit
Frigoris asperitas, foetaque terra patet,
Aprilem memorant ab aperto tempore dictum;
Quem Venus injecta vindicat alma manu.
Outra etimologia descrita pelo poeta, mas sem tecer opinião de qual
seria a etimologia correta, refere-se ao fato de que o mês era também
dedicado aos antepassados: aos Maiores, ou seja, aos mais velhos. Havia,
neste mês, uma festa dedicada aos que já haviam partido: os Lêmures,
almas dos mortos que aguardavam o descanso eterno. Acreditava-se ser
esta a origem do nome do mês.
Os Fastos de Ovídio terminam com as referências às festas
religiosas realizadas em junho, Iunius mensis, dedicado à deusa Juno.
71
inicialmente honrada no Quirinal, depois no Capitólio, e que
engloba Júpiter, Juno e Minerva. (Grimal, 2000: 260).
72
Idibus est Annae festum geniale Perennae
Haud procul a ripis, aduena Tibri, tuis. (v. 523-4)
Nos idos (15 de março) há a festa popular de Ana Perena, não
muito longe de tuas margens, ó (rio) Tibre estrangeiro.
74
Conclusão:
Nos Fastos, escritos em seis livros, Ovídio nos proporciona uma
visão privilegiada de fatos, lendas, tradições, rituais existentes em Roma,
dos seus primórdios ao governo de Augusto. São narrações de fatos até
mesmo esquecidos ou ignorados pelos romanos na época da publicação
desses livros.
O levantamento, feito pelo poeta, nos pergaminhos e/ou códices
existentes em bibliotecas romanas, trouxe à visão, não só dos leitores de
sua época, mas também aos da Idade Média, o conhecimento sócio-
cultural-religioso de uma fase da história romana. Apesar do banimento de
Ovídio, sua obra não sofreu, por parte do imperador Augusto, nenhum ato
de violência. Assim, ela chegou até os dias de hoje, permitindo que seus
textos sejam pesquisados pelos amantes da língua latina que reconhecem no
poeta Ovídio os traços indeléveis de um gênio criador que, vivendo na
Roma clássica, gravou seu nome entre os poetas da época, cônscio do valor
de seus versos.
Referências bibliográficas:
BAYET, Jean. Littérature latine. 10 éd. Paris: Armand Colin, 1962.
CARCOPINO, J. Roma no apogeu do Império. Trad. de H. Feist. São Paulo:
Companhia das Letras/ Círculo do Livro, 1990.
CARDOSO, Zélia de Almeida. Festas romanas: da época dos reis ao advento do
Cristianismo. Palestra proferida no VI Congresso da SBEC. Rio de Janeiro: UFRJ,
2005.
CORREIA, Natália & FERREIRA, David Mourão. Ars Amatoria. São Paulo: Ars
Poetica, 1992.
ELIADE, M. História das crenças e das idéias religiosas. Trad. R. C. Lacerda. v.1.
Tomo 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
FARIA, Ernesto. Fonética Histórica do Latim. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1970.
_____________. Gramática Superior da Língua Latina. Rio de Janeiro:
Acadêmica, 1958.
GAFFIOT, F. Dictionnaire Latin-Français. Paris: Hachette, 1934.
75
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 4. ed. Trad. de Victor
Jabouille. Rio de janeiro: Bertand Brasil, 2000.
KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1960.
LOPES, Eliana da Cunha. Heroides XVI e XVII de Ovídio: um hino de amor.
Dissertação de Mestrado em Língua e Literatura Latina. Rio de Janeiro: UFRJ/
Faculdade de Letras, 1993.
MAROUZEAU, J. Traité de stylistique latine. Paris: Belles Lettres, 1970.
MARTIN, René. Dictionnaire culturel de la mytthologie gréc-romaine. Paris:
Éditions Nathan, 1992.
MARTIN, René & GAILLARD, Jacques. Les genres litéraires à Rome. Paris:
Éditions Nathan, 1990.
OVID. FASTI. With an english translation by James George Frazer. Cambridge:
Harvard University Press, 1996.
OVIDE. Les Fastes. Trad., introd. et notes par E. Ripert. Paris: Garnier, 1934.
______. Les Fastes. Trad. et annoté par Henri Le Bonniec. Préface de Augusto
Fraschetti. Paris: Les Belles Lettres, 1990.
RIPERT, E. Ovide, poète de l’amour, des dieux et de exil. Paris: Armand Colin,
1921.
SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português 11. ed. Rio de
Janeiro: Livraria Garnier, 2000.
76
OS CONFLITOS NA PÓLIS: UM DIÁLOGO ENTRE TEÓGNIS E SÓLON
Glória Braga Onelley
1
Escassos e às vezes contraditórios são os dados biográficos do poeta Teógnis de Mégara. No tocante à
época que teria vivido tampouco são precisas as indicações. Segundo o verbete da Suda, viveu Teógnis
na 59ª Olimpíada (... gegonw\j e0n nq' 'Olumpia/di), ocorrida por volta de 544 a.C.
Considerando que é difícil distinguir se esse Lexicon emprega o termo gegonw/j ou na acepção de
“nascido” ou na de “florescido”, alguns helenistas interpretam o ano da 59ª Olimpíada como referente à
época de nascimento do poeta, ao passo que outros, como à de sua maturidade literária.
2
A coletânea de elegias atribuída a Teógnis de Mégara, Theognidea, compõe-se de 1389 versos,
divididos desigualmente em um primeiro livro de 1230 versos, de conteúdo parenético, social e político,
seguidos de um conjunto menor de fragmentos de temática amorosa, sobretudo amoroso-pederástica,
conhecido como livro II.
A maioria dos críticos modernos, no entanto, nega a autenticidade de grande parte desse acervo de
composições poéticas, apresentando argumentos vários e, às vezes, controversos que, segundo eles, são
incompatíveis com a atribuição da coletânea a um único poeta.
77
juventude, o amor, entre outros, encontra ele no mundo decadente da
aristocracia motivos de sua inspiração poética.
Com efeito, ainda que não sejam testemunhos da realidade
circundante, inúmeros passos dos Theognidea apresentam elementos bastante
expressivos quanto às convicções aristocráticas do megarense e parecem
aludir à conflitante situação política e social em Mégara, em cujo seio
agonizava a aristocracia.
Embora pertençam a regiões distintas, Sólon à Ática e Teógnis a
Mégara, foram eles espectadores de profundas mudanças políticas e sociais,
cujas origens podem ser buscadas nas lutas de classes ocorridas em diversas
cidades do mundo grego, entre as quais Atenas e Mégara.
Na verdade, o regime oligárquico em que vivia a maioria das cidades
gregas do período arcaico começa a enfraquecer-se, ainda no século VII a.C.,
em virtude da ascensão de uma nova classe enriquecida pelo comércio e
conseqüentemente pelo desenvolvimento da indústria. Essa classe de
enriquecidos, oriunda, em sua maioria, de estratos não aristocráticos,
reivindica participar do poder político, já que, detentora do poder econômico,
dispunha de meios para adquirir terras – condição sine qua non para ascender
ao poder político –, recursos para prover-se de equipamentos necessários ao
combate, privilégios anteriormente restritos à nobreza fundiária. Deste modo,
esses novos ricos, se podiam contribuir para a defesa da cidade, passavam a
exigir também voz na definição da política da po&lij.
Essa nova ordem econômica provocara o empobrecimento cada vez
maior das classes menos favorecidas que continuavam submetidas aos nobres
e, em última análise, sofriam as conseqüências da disputa econômica entre a
aristocracia e os plutocratas, designados no Corpus Theognideum, sobretudo
nas elegias de cunho político, de a)gaqoi&/e)sqloi& “aristocratas/nobres” e
kakoi&/deiloi& “não aristocratas/inferiores”, respectivamente. Assim, impossi-
bilitados de estabelecer-se diante do predomínio econômico, os pequenos
proprietários de terra e os trabalhadores livres endividavam-se, empenhando
seus parcos bens e até sua pessoa. Não dispondo de recursos para saldar as
dívidas contraídas com os grandes proprietários, os indivíduos dessas classes
inferiores, mormente os pequenos camponeses, eram obrigados a dar como
pagamento a própria terra cultivada e o trabalho. Entretanto, não tendo muitas
vezes como reembolsar o credor e estando a terra penhorada, nela
permaneciam como arrendatários ou como servos. Enfim, não tendo mais o
que dar como penhor, eram impelidos lentamente à escravidão, hipotecando,
simultaneamente, com a terra, seu corpo, mulher e filhos. Os testemunhos de
78
Sólon, sobretudo o fragmento de número 36 da edição de West, poema que
melhor ilustra a sua atuação de homem público – já que nele faz uma
verdadeira prestação de contas de suas atividades políticas, vangloriando-se de
com elas ter restabelecido a paz e a justiça em Atenas –, e o de Aristóteles, em
Constituição de Atenas II, 1-2, são com relação à cidade de Atenas elucidativos
a esse respeito, muito embora essa precária situação dos camponeses e
pequenos proprietários de terra seja apropriada a outras partes do mundo grego.
O descontentamento era geral e em muitas cidades, como já o
dissemos, instaura-se a luta de classes. Ratificam a existência de momentos
conflituosos na pólis os versos 39-52 do Corpus Theognideum, abaixo
traduzidos:
79
Com base nesses versos, observa-se que a cidade está dividida em
duas classes antagônicas: de um lado, os aristocratas; de outro, os não
aristocratas, possivelmente oriundos das classes dos camponeses,
comerciantes, artesãos e armadores. Na verdade, o emprego metafórico do
verbo ku&ei, presente refeito a partir de kue&*w, cujo sentido primeiro é
“inchar” e do qual se deriva a ação de ku&w “estar prenhe”, parece bem
definir o estado caótico da cidade de Mégara, em cujo seio estava prestes a
eclodir uma revolução social. Teme-se que na cidade, governada por
líderes populares, h(gemo&nej, que se entregam à violência, que corrompem
o povo e concedem sentenças favoráveis aos injustos, na busca de lucro e
poder (vv. 44-6), se instaure uma guerra civil, cujo termo seja a tirania.
Cabe lembrar que a preocupação do sujeito do enunciado pela tomada
eventual do poder por um a1ndra/eu)qunth~ra (vv. 39-40) “um homem que
castigue” reaparece no final da elegia pelo emprego do termo mou&narxoi
(v. 52), “monarcas”, cuja colocação no início do verso reitera o temor pela
implantação do governo de um ditador.
No que concerne ao termo h(gemo&nej de que fala Teógnis no verso 41,
deve-se ressaltar que o helenista Paul Demont (1990:50) julga serem esses
chefes alguns membros da classe aristocrática que, agindo com desregramento
e atirando-se “a uma grave depravação” (v. 42), subornam o povo, a fim de
obterem o poder à força e estabelecerem a tirania. Analogamente, Dominique
Arnould (1981:204) associa-os aos a)gaqoi& que, de conivência com os novos
ricos, corrompem o povo e governam com injustiça. Para este último, o poeta
megarense temia que os excessos de que uma parte da aristocracia se tornara
cúmplice gerassem uma revolta popular que culminasse com a tirania. Sendo
assim, o termo kakoi~sin, presente nos versos 44 e 49, designa, segundo
Dominique Arnould, não só os kakoi& de nascimento, os novos ricos, mas
também alguns a)gaqoi& que, pactuando com os primeiros, se comportam como
homens inferiores. Para Van Groningen (In: THÉOGNIS, 1966:26-31), por sua
vez, o termo kakoi~sin, contrapondo-se a a)gaqoi& do verso 43, refere-se aos
“maus” entre os aristocratas que ainda governam a po&lij megarense. Todavia,
acredita-se que esses h(gemo&nej sejam os líderes das classes inferiores, os
kakoi&, pois os a)gaqoi&, por serem a)stoi/... sao&fronej, “cidadãos... sensatos”,
nunca destruíram uma cidade (v. 43), ao passo que os chefes se atiram a
pollh/n... kako&thta (v. 42), “grave… depravação”, que nada mais é do que a
conseqüência da própria desmedida. São, pois, os h(gemo&nej da classe dos
kakoi& que Teógnis acusa, em alto e bom tom, de terem corrompido o povo e
de obterem, com o mal público, poder (kra&teoj, v. 46) e lucros particulares
80
(oi)kei&wn kerde&wn, v. 46). É, ainda, devido à atuação desmedida e ambiciosa
dos novos governantes que se manifesta o temor pelo surgimento de um tirano,
que venha a assumir o papel de corretor dos excessos sociais e econômicos.
Assim, na ótica do megarense, um a1ndra... eu)qunth~ra (vv. 39-40) jamais
poderia ser um a)gaqo&j, mas certamente algum kako&j que, impelido pela
u3brij e pela kako&thta, buscava poder e riqueza. Os kakoi&, portanto,
acabarão por destruir a cidade, embora ela pareça repousar numa calmaria
profunda (v. 48). Note-se, então, que a tranqüilidade da cidade – enfaticamente
assinalada pela associação de termos pertencentes à mesma esfera semântica,
a)tremi&esqai, “ficar tranqüila” (v. 47), e h(suxi&h, “tranqüilidade” (v. 48) – é
ilusória, pois ela oculta em seu seio sta&sie&j te kai_ e1mfulloi fo&noi a)ndrw~n
mou&narxoi/ te “lutas civis, assassinatos entre compatriotas e também
monarcas” (vv. 51-52).
A preocupação pelo destino da cidade, expressa nos versos 39-52
dos Theognidea, traz à lembrança os versos do fragmento 4 West de Sólon,
no qual também transparece uma inquietante preocupação com o destino da
oligárquica Atenas, que vivenciava, nos inícios do século VI a.C., um
momento de grave crise social e política. Nos versos 1-20 do fragmento
4W, Sólon aponta as calamidades que ameaçavam conduzir a cidade à
perdição, cujas origens se encontravam na ambição desmedida por riquezas
e na injustiça dos cidadãos, em especial dos dirigentes do povo. Assim,
pressentindo as funestas conseqüências que adviriam da inobservância da
Justiça – escravidão (v. 18), lutas civis e guerra (v. 19) –, Sólon adverte os
atenienses da gravidade da situação, nestes termos:
81
ou1q ) i(erw~n ktea&nwn ou1te& ti dhmosi&wn
feido&menoi kle&ptousin e)f ) a(rpagh~i a1lloqen a1lloj,
ou)de_ fula&ssontai semna_ Di&khj qe&meqla,
h$ sigw~sa su&noide ta_ gigno&mena pro& t ) e)on& ta,
tw~i de_ xro&nwi pa&ntwj h]lq ) a)poteisome&nh.
tou~t ) h1dh pa&shi po&lei e1rxetai e1lkoj a1fukton,
e)j de_ kakh_n taxe&wj h1luqe doulosu&nhn,
h$ sta&sin e1mfulon po&lemo&n q ) eu#dont ) e)pegei&rei,
o$j pollw~n e)rath_n w1lesen h(liki/hn:
Nossa cidade jamais perecerá por vontade de Zeus, nem
pelo querer dos bem-aventurados deuses imortais, pois a
tão magnânima guardiã, filha de um pai ilustre, Palas
Atena, tem as mãos sobre ela.
Mas os próprios cidadãos, com seus desvarios, querem
destruir a cidade, cedendo às riquezas, e o espírito injusto
dos chefes do povo, a quem está destinado sofrer muitas
dores, por causa da desmedida excessiva. Pois eles não
sabem refrear os seus excessos, nem controlar, na paz do
banquete, as alegrias de hoje...............................................
Enriquecem, seduzidos por ações injustas...................... não
poupando os bens sagrados nem, de forma alguma, os
públicos, roubam-nos, com rapacidade, cada um por sua
vez; não guardam os fundamentos veneráveis da Justiça,
que, silenciosa, conhece o presente e o passado e, com o
tempo, vem punir inteiramente. Essa chaga inevitável
atinge já toda a cidade e conduz logo à funesta escravidão,
que desperta a rebelião civil e a guerra adormecida, que
destrói a encantadora juventude de muitos;
82
avidez pela riqueza, injustiça, insolência e desrespeito aos bens sagrados e
públicos (vv. 5-14). Assim, para o poeta ateniense, a única salvação para a
sua cidade seria a substituição da desordem reinante – Dusnomi&h (v.31) –
por uma nova legislação – Eu)nomi&h (v. 32) –, baluarte sagrado da vida
social e política, porquanto é baseada na observância da Di&kh, como bem
demonstram os versos 30-39 do citado fragmento 4W:
84
u3brij, entendida como uma transgressão emanada dos indivíduos, que se
encontra em fase embrionária em Homero e se afirma, categoricamente, em
Sólon e em Teógnis, que revelam ser o fatal destino de suas respectivas
po&leij o reflexo da atuação desmedida, ambiciosa e injusta dos cidadãos e
dos líderes do povo.
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THÉOGNIS. Le première livre édité avec un commentaire. B.A. van Groningen.
Amsterdan: N.V. Noord-Hollandsche Uitgevers Maastschappij, 1966.
85
REPENSANDO SAFO DE LESBOS NO V E IV A.C.
José Roberto de Paiva Gomes
86
Os artefatos nos revelam aspectos peculiares da cultura ao qual se
insere. Abordaremos três tipos de caso em que Safo está sendo retratada: 1)
nas imagens nas cerâmicas do V a.C.; 2) nas moedas de Lesbos cunhadas
na Guerra do Peloponeso, e 3) no período helenístico.
1
SNYDER, J. ‘Public Occasion and Private Passion in the Lyrics of Sappho of Lesbos’ In: POMEROY,
S. Women’s History and Ancient History, 1991.
2
CARDOSO, C. F. “Tinham os gregos uma literatura”, In: Phoînix 5, 1999, 109-10.
3
WILLIAMSON, M. Daughters of Sappho, 1995, 14-16.
87
de adivinhação do qual tinha que se ter o domínio da leitura e da escrita.
Platão em Fedro (275ss) também atribui à poetisa a arte da adivinhação.
No entanto, nos questionamos: Que tradição será esta que Safo legou?
Para quem e com que finalidade será reutilizada? Por que privilegiar as
representações de Safo como musicista e professora do coro, por que o público,
que as observa, precisa compreendê-las. Qual a razão? Qual a necessidade de
Safo fazer parte construção da realidade social da Atenas do V séc.?
De 500 a 480, Atenas está passando pelo processo de consolidação da
Democracia4, as imagens relacionadas à sexualidade (hetero e homo), aos
banquetes (práticas dionisíacas e orgásticas) e as imagens relacionadas ao
mundo rural irão diminuir; é o fenômeno da censura por parte da ‘Democracia
Radical’ de Péricles. Os democratas irão ‘apoiar’ as imagens relacionadas ao
centro urbano (com as práticas artesanais – oficinas, artesãos) e no caso
dionisíaco, as cenas em que Dionisos e Ariadne aparecem em repouso5.
A pólis dos atenienses se lançará no comércio comandado pela
aristocracia mercantil detentora de terras. Essa mesma aristocracia definiu
um padrão de contato permeado de valores aristocráticos com o intuito de
estabelecer relações de amizade (phília) entre os helenos e não-helenos a
partir das relações de xenia (laços de amizade e de hospitalidade6). Por esse
intenso comércio não só mercadorias circulavam, o pensamento antigo se
difundia e circulava por todo o mar Egeu.
Pelos laços de amizade e hospitalidade, os valores aristocráticos
circularam e, portanto, o modo de vida de Safo e de Alceu - chamado de
habrosýne – de origem aristocrática onde se cultuava a elegância e o
esplendor, chegaram aos atenienses pelas mãos dos artesãos. É o modo de
vida ateniense era observado pelos outros helenos por meio destes mesmos
artífices que revendiam seus produtos por outros lugares da Hélade.
4
BOWRA, C. M. La Atenas de Péricles, 1994.
5
LIMA A. C. C. Cultura popular em Atenas no V séc. a.C., 2000, 47-48; CHEVITARESE, A. L. O
Espaço Rural da pólis Grega, 2001.
6
TÉNÉKIDES, G. C. Les Relations Internarttionales dans la Gréce Antique, 1993, 288.
88
No caso, da pólis de Metilene, a cunhagem de moedas com a
efígie de Safo, no V a.C., datam do período de 480 a 323 a.C., período que
consideramos como a emergência ou a retomada de prestígio social do
grupo de aristhoí cuja anterioridade data do VII a.C. Temos por suposição
que as moedas de ouro e de prata eram utilizadas para ratificar as relações
de phília/amizade dos remanescentes da hetaireía de Safo e Alceu com os
demais aristhoi residentes em Lesbos ou de Phokaia, que cunhou moedas
em honra a Safo entre 350-340. Safo cita a cidade milésia que, na pessoa de
Mnasis enviou lenços de cor púrpura na forma de presentes (dôra) para a
deusa Afrodite (fr. 101 LP7). A confecção das moedas pela pólis milésia,
ressalta a manutenção de uma aliança política e econômica delineada por
Safo no período arcaico e, posteriormente, mantida como supomos pelos
aristocratas até o período helenístico.
Os presentes integram o universo do dom e contra-dom significam
um tipo de interação de amizade (phília) e, ao mesmo tempo, o
estabelecimento de relação de reciprocidade, ou seja, xénia entre parte dos
helenos e outras comunidades da Ásia Menor. Um conjunto de relações que
coloca os helenos muitas vezes mais próximos dos reinos orientais do que
os próprios gregos do continente, da Hélade.
Temos por hipotése que a resistência da aristocracia frente os ideais
da democracia ocorreu devido ao fato dessa forma política colocar em risco
o seu lugar de poder estabelecido por intermédio do prestígio social
alcançado com as relações de solidariedade e reciprocidade com as
comunidades da Ásia Menor. A identidade da elite da ilha de Lesbos está
ligada ao comércio marítimo de vinho no mar Egeu.
A atividade ligada ao comércio de vinho tornará Lesbos um ponto
estratégico, mesmo após a conquista de Alexandre, como fornecedora de
bebida e alimento para o exército Seguindo os dados arqueológicos
estudados por Labarre8 em um trabalho sobre a ocupação da ilha de Lesbos,
o autor considerada que a localidade era um destacado importador de grão,
mas um produtor e exportador de azeite e de vinho até os tempos da
dominação dos romanos.
Essa rotatividade do poder que caracteriza Lesbos como uma
sociedade que vive em constantes momentos de crise social que pode ser
7
FONTES, J. B. Variações sobre a lírica de Safo. São Paulo: Estação Liberdade, 1992. Em Fontes
verso 36 (poemas e fragmentos) e na edição francesa 90 RP.
8
GUY LABARRE. Les cités de Lesbos aux époques hellénistique et impériale. Coleção de l'Institut
d'Archéologie et d'Histoire de l'Antiquité, Université Lumière Lyon 2, Vol. 1. Limonest: Boccard, 1996.
89
percebida desde a revolta dos metilenos de 431 a.C., quando Lesbos foi
subjugada pela Liga de Atenas até o domínio de Alexandre. Essa crise pode ser
enquadra como a luta social pelo entre dois grupos distintos, a saber: os
aristocratas e os pró-democratas, que através do embate político se revezavam
no jogo político mantendo: a autonomia socioeconômica de Lesbos.
Os gregos da Ásia Menor, desde o período arcaico, demonstraram
ser filolídios, principalmente o grupo aristocrático, do círculo de Lesbos
sob a liderança de Safo e Alceu. A aristocracia de Metilene desenvolveu
um modo de vida particular, denominado de habrosyne9. Safo ao formular
o grupo de jovens, a hetaireía, em Metilene, tinham as jovens da Lídia
participando das atividades rituais que incluía desde jovens locais a jovens
provindas de outras áreas do Mar Egeu. O convívio entre gregos e lídios se
amplia para além do convívio feminino, se estendendo também ao
conhecimento e ao debate das questões políticas. Como exemplo, deste
convívio se indica também Alceu, contemporâneo de Safo, que foi
reintroduzido a sociedade de Lesbos, após um longo exílio, com a ajuda
dos lídios (Alc. fr. 69V10).
Partindo desse princípio, temos por suposição que parte dos
aristocratas de Lesbos não era contrária à forma política dos ‘persas’, mas
sim alguns governantes locais11. A hostilidade também pode ser confirmada
9
Habrosyne representa um estilo ‘de vida’ requintado ou luxuoso, mais especificamente, é um estilo de
vida aristocrático, abraçado por um grupo para os distinguir de outro. No caso de Lesbos, o grupo dos
kálos kagathós se distinguindo do Tirannoi. Um estilo que se definiu pelo contato entre gregos e lídios
(cf. Santo Mazzarino e a Mario Lombardo). Um culto de valorização de um estilo que, ao invés da
riqueza, os distinguisse dos demais grupos sociais emergentes, como a basiléia. Como a adoção de
roupas, sandálias, ornamentos em ouro, enfeites de cabelo, tipo de penteados, determinados tipos de
arranjos florais, instrumentos musicais e o vinho, todos eles cercados da sensualidade, conforme
descrevem Safo, Semonides e Anacreonte. Para Leslie Kurke (1992, 99), o uso do termo habrós, não é
específico do feminino, mas é politicamente programado quando endossa o caminho particular que o
grupo de Safo irá privilegiar dentro do estilo luxuoso da aristocracia, que valoriza quem desfruta de
tempo livre para o amor e a elaboração das composições amorosas. Como salienta o fragmento 58.25
LP ao dizer: “I love habrosunè”. (KURKE, Leslie. “The politics of abrosunh in Archaic Greece”. In:
Classical Antiquity, v. 11, nº 01, April, 1992).
10
Voight, E. M. Sappho et Alcaeus. Fragmenta. Amsterdan, 1971.
11
A Liga de Corinto sob o domínio de Felipe não eliminou por completo o poder das aristocracias nas
ilhas do Egeu. As pólis, enquanto membros da Liga, mantiveram salvaguardadas suas unidades e os
interesses, o que de certa maneira protegeu os gregos de um avanço persa sob o continente. Este acordo
custou a Eressos penalizações quando foi reconquistada pelos persas em 333 a.C. por privilegiar as
sanções impostas pela realeza macedônica. Temos por idéia que a penalização tenha sido imposta ao
grupo aristocrático pró-democrático. Os persas facilitaram o domínio de um segundo grupo
aristocrático, que irão se estabelecer no poder irregularmente entre 335 a 333 a.C. O governo dos reis
macedônicos contra os persas. Por isso, a perseguição e a restrição aos movimentos aristocráticos era a
vitória da ‘isonomia’ contra a tirania. Alexandre pune as aristocracias pró-persas, no caso de Eressos
decide pelo exílio perpetuo delas.
90
através das atitudes de Pítaco, tirano de Metiline, que rejeitava as ofertas
de presentes feitas por Crésus, rei dos lídios, em troca de acordos políticos.
Definimos esse tipo de interação como uma relação de amizade
(phília) e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de relações de reciprocidade, ou
seja, xénia entre gregos e outros povos da Ásia Menor. Um conjunto de
relações que coloca esses gregos muitas vezes mais próximos dos reinos
orientais do que os próprios gregos do continente, da Hélade.
Procuramos identificar o lugar de memória das moedas gregas com a
efígie da poetisa Safo na região de Metilene no IV séc. a.C. Partimos do
princípio de que os artefatos configuram-se como agentes materiais e definem
um lugar de saber, de memória e de poder. Consideramos as moedas como
artefatos cujos símbolos trazem à memória dos habitantes de Metilene a
tradição, o passado em momentos de crise ou embates políticos. No caso, aqui
analisado por nós, a comunidade dos aristocratas de Metilene em confronto
com Alexandre em 333 a.C. em meio à ocupação grega da Ásia Menor.
Compreendemos as moedas e seus símbolos como lugar de
memória pelo fato de relembrar a tradição do passado em momentos de
crise ou embates políticos vivenciados pela sociedade de Lesbos no IV a.C.
Partimos do princípio de que os artefatos configuram-se como agentes
materiais e definem um lugar de saber, de memória e de poder.
As moedas foram forjadas em meio a este clima de crise social que
se estende da Liga de Delos até o domínio mundializado de Alexandre. As
moedas cunhadas com a efígie de Safo demonstram a união dos metilenos
aristocráticos, que assumem a promoção e a preservação dos vínculos
culturais locais e da construção de identidade que integra a coletividade. A
situação específica do metilênio aristocrático colabora para a formação de
figurações e configurações múltiplas de identidade causadas pela busca do
sentido de pertencimento e pela tentativa de recuperar o que Marc Augé12
denomina “lugar antropológico”.
Metilene começa a produzir as moedas que configuram essa nova
identidade. As moedas representam significados, mensagens, do emissor
12
AUGÉ, Marc. Não-lugares. Trad. Lúcia Muznic. Portugal: Bertrand, 1994. Segundo Marc Augé
(1994, 31), a investigação antropológica tem por objeto interpretar o modo pelo qual os indivíduos
interpretam a categoria do outro, conferindo-lhe um lugar, uma raça ou uma etnia. O sentido de
“pertencimento” vai além de um limite puramente físico, portanto, o “lugar antropológico” é a
construção concreta e simbólica do espaço que o indivíduo reivindica como seu; que sintetiza todo o seu
percurso cultural; que é ao mesmo tempo identitário, relacional e histórico.
91
para seus receptores13. Lesbos sempre dependeu para a sua sobrevivência
mais das alianças formuladas com os governos orientais do que da Grécia
continental para manter suas relações econômicas e, portanto, estabeleceu
relações de amizade e de reciprocidade com os reinos da Ásia Menor e com
Egito. Safo, Alceu e Charaux são representantes dessa relação sócio-
política filopersa.
13
CARLAN, Cláudio UMPIERRE. Moeda, simbologia e propraganda son Constâncio II. Dissertação
de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2000.
92
EMOÇÃO E RAZÃO – A RELAÇÃO ENTRE EUCLIÃO E ESTÁFILA
NO ATO I DA AULULÁRIA
Katia Teônia Costa de Azevedo
Introdução
Este trabalho tem por objetivo analisar a relação entre Euclião
(Euclio) e Estáfila (Staphyla) na perspectiva amo-escrava, que perpassa
pelos campos da razão e da emoção. Para isso, foi escolhido o ato I da peça
Aulularia de Plauto, pois é nele que percebemos mais claramente as
características desta relação e por se tratar também de um dos diálogos mais
importantes da peça, pois apresenta em sua estrutura um caráter
eminentemente dialético, uma vez que o cômico incorpora o trágico e se
define por seu intermédio. Assim, paradoxalmente, o que é risível para o
leitor é doloroso para as personagens envolvidas no diálogo.
Além disso, abordaremos também alguns recursos da linguagem
plautina presentes neste mesmo ato.
Escravidão
Um dos temas abordados na Aulularia foi a escravidão e quando
Plauto trata desse assunto ele toca num ponto fundamental para a vida
humana: a liberdade. Tal tema não recebeu destaque em suas obras, porém
podemos perceber, através das falas das personagens servis, comentários
jocosos, que tinham por objetivo, não só instaurar o cômico, mas também
mostrar as condições sociais desses indivíduos.
Ainda que nos tempos hodiernos, a escravidão cause desconforto aos
leitores, devemos levar em consideração que se tratava duma instituição
normal, tanto para os gregos quanto para os romanos. Assim como hoje nos
acostumamos a ver nos jornais trabalhadores mal remunerados, impossibi-
litados de dar à família uma condição de vida compatível com a condição
humana, assalariados que vivem num contexto em que a mais-valia impera e
devora, etc. Os escravos, inclusive, eram tratados por seus senhores, na
maioria das vezes, como seres humanos e não como objetos, desde que se
comportassem satisfatoriamente.
A visão plautina da escravidão é motivo de muitas controvérsias,
pois as insolências praticadas impunemente pelos escravos na peça, nos
93
parecem um tanto quanto impróprias, visto que em situações normais,
escravos trapaceiros, mentirosos ou ladrões teriam sido aprisionados,
chicoteados, ou até mesmo condenados.
• Euclião e Estáfila
Euclião, superficialmente, é o típico mau patrão e esse julgamento
provém da imagem que a ele é atribuída. Ele é o protagonista da peça, a
personagem cômica, aquela que se aproxima da caricatura, um ser esquemático,
criado a partir da sua avareza (característica principal da personagem).
Uma conseqüência dessa simplificação da personagem a traços
marcados justifica a motivação da escolha de seu nome: Euclião – o que tem
glória ou boa fama e também aquele que esconde. O traço mais evidente do
protagonista (a avareza) é revelado de maneira mais convincente nos
monólogos ou falas isoladas. Assim nada é mais contundente do que o
trecho a seguir, em que Euclião diz sozinho: “Estou inquietíssimo por me
ter de afastar de casa1” (Aul., I, 2, v. 105).
Estáfila é a escrava de Euclião e diferentemente da maioria dos
serui ela não é tagarela, insolente e indiscreta.
A fim de alcançar os seus objetivos, os serui não hesitam em
mentir, enganar, trapacear e, quando necessário, roubar. Nesta linha, situa-
se o escravo Estróbilo (Strobilus).
Estáfila é dedicada e sensata. Sabe reconhecer bem os que merecem
a sua dedicação e zelo. É uma personagem incidental, de certa importância e
com uma finalidade definida. Sua função é a de proteger aquela que está
preste a parir, não passando de personagem embrionária. Assim como já
fora dito a respeito da não arbitrariedade dos nomes das personagens, tem-
se no nome Estáfila o significado de vinha, cacho de uva madura –
provavelmente alusão ao gosto da escrava pelo vinho.
Há nesta relação, por parte de Estáfila, algo muito maior do que
uma relação de patrão e escrava. Estáfila mantinha para com Fedra e
Euclião um elo afetivo, pois há muito tempo ela era “responsável” por
aquela casa. Ela, inclusive, manifesta a sua preocupação e aflição, quando
Fedra se aproxima da hora do parto, pois Estáfila teme por sua reputação,
teme que o pai faça algo contra ela. O excerto seguinte poderá nos mostrar
essa preocupação:
1
Tradução de Agostinho Silva. In: Plauto e Terêncio – A Comédia Latina. Rio de Janeiro: Ediouro,
/s.d./.
94
“Est. Não sei já de que maneira se lhe há de esconder o que
aconteceu à filha, por que já se aproxima a hora do parto. Não
percebo nada disto! E acho que o melhor para mim será atar uma
corda ao pescoço e transforma-me numa letra comprida”. (Aul., I,
1, v. 74-78)
95
e que provavelmente o acontecimento da panela, teria alterado o seu
comportamento. O que nos parece é que Euclião é fundamentalmente um
velho decente, enlouquecido pela aquisição repentina da riqueza, como
poderemos observar no desabafo de Estáfila:
“Por Castor, não sei que desgraça é que aconteceu a meu senhor!
Não posso perceber que loucura lhe terá dado! Tem-me feito a
vida negra! Num só dia, já me pôs dez vezes fora de casa! Por
Pólux ! Não sei que fúrias se apoderam dele!” (Aul., I, 1 v. 67-71)
Em alguns casos, essa atitude ríspida e fria dos patrões, provoca nos
escravos uma reação negativa, os quais se vingam da escravidão e dos maus
tratos através de furtos, dando-lhes a má fama.
Há também a situação inversa. O escravo de Licônidas (Lyconides),
por exemplo, pelo tratamento que lhe é dispensado, dedica ao seu amo o
maior apreço e afeição.
Ao comentar os atos do avarento Euclião, em suas atitudes brutais para
com a velha escrava, podemos observar um aspecto regular do pater familias,
que tinha o direito de vida e morte sobre os que estavam sob a sua tutela.
Cabe ressaltar que a atitude violenta e injusta de Euclião para com a
sua escrava não tinha o cunho pessoal. Euclião passou a ter devaneios
através da sua obsessão pela panela de ouro. Qualquer indivíduo que se
aproximasse (mesmo sem saber) do tesouro seria recebido com a mesma
hostilidade. A sua sovinice o cegou e o transformou num homem invasivo,
agressivo e enérgico.
Recursos
Neste item observaremos os processos mais elementares que
contribuem para o cômico: exagero, neologismo, aliteração, metáfora, etc.
Alguns desses recursos além de serem artifícios cômicos, caracterizam
também a linguagem popular, a qual procura constantemente enfatizar as
idéias. Para isso, faremos uma análise dos versos do ato I da Aulularia e
observaremos alguns desses recursos.
• Exagero
96
EVCL. Exi, inquam. age exi. exeundum hercle tibi hinc est
foras, circumspectatrix cum oculis emissiciis. (Aul. I,I v. 40-41)
• Neologismo
EVCL. Exi, inquam. age exi. exeundum hercle tibi hinc est foras,
circumspectatrix cum oculis emissiciis.
Interrogação retórica
EVCL. Tibi ego rationem reddam, stimulorum seges? (...) (Aul.,
I,1, v. 45)
• Anáfora
EVCL. (...) illuc regredere ab ostio. illuc sis vide, ut incedit. at
scin quo modo tibi res se habet? (...) (Aul., I,1, v. 46-47)
Em “illuc regredere ab ostio. illuc sis vide,ut incedit. at scin quo modo
tibi res se habet?”, temos um efeito anafórico fornecido pela morfologia latina,
através do illuc, advérbio de lugar, e do illuc, pronome neutro, com função de
objeto direto da forma verbal vide.
97
• Aliteração
EVCL. Tibi ego rationem reddam, stimulorum seges? (...)
testudineum istum tibi ego grandibo gradum. (Aul., I,1, v. 45 e 49)
Metáforas
EVCL. Tibi ego rationem reddam, stimulorum seges?
(...)
testudineum istum tibi ego grandibo gradum. (Aul., I,1, v. 45-49)
• Oralidade
EVCL. At ut scelesta sola secum murmurat. oculos hercle ego
istos, improba, ecfodiam tibi, ne me observare possis quid rerum
geram. abscede etiam nunc -- etiam nunc -- etiam -- ohe, istic
astato. (Aul. I, 1, v.52-56)
• Sintaxe expressiva
98
STAPH. Noenum mecastor quid ego ero dicam meo malae rei
euenisse quamue insaniam, queo comminisci; ita me miseram ad
hunc modum decies die uno saepe extrudit aedibus. nescio pol quae
illunc hominem intemperiae tenent: peruigilat noctes totas, tum
autem interdius quasi claudus sutor domi sedet totos dies. neque
iam quo pacto celem erilis filiae probrum, propinqua partitudo cui
appetit, queo comminisci; neque quicquam meliust mihi, ut opinor,
quam ex me ut unam faciam litteram longam, <meum> laqueo
collum quando obstrinxero. (Aul., I,1, v. 67-78)
• Interrogações cômicas
STAPH. Quippini? ego intus seruem? an ne quis aedes auferat?
nam hic apud nos nihil est aliud quaesti furibus, ita inaniis sunt
oppletae atque araneis. (Aul. I,1, v.81-84)
99
• Assíndeto
EVCL. ... pauper sum; fateor, patior; quod di dant fero... (Aul. I,
1. v. 88)
• Jogo de palavras
EVCL. quod quispiam ignem quaerat, extingui volo, ne causae
quid sit quod te quisquam quaeritet. nam si ignis uiuet, tu
extinguere extempulo. (Aul., I, 1, v.91-93)
• Seqüências cômicas
EVCL. Tace atque abi intro. STAPH. Taceo atque abeo. (Aul.,
I,1, v.103)
Conclusão
Ao longo do trabalho, procurou-se mostrar a relação de Estáfila e
Euclião, tanto pelo prisma da escrava, quanto pelo do patrão, isso para que
fosse possível chegar à conclusão de como é, de fato, a relação que ambos
mantinham entre si. Vimos também alguns dos muitos recursos utilizados
por Plauto no ato I da Aulularia, que em alguns momentos, exprimiam
aspectos sentimentais das personagens.
100
Percebemos então que esta relação transitava constantemente por
momentos de razão e emoção que se justificam a partir de suas aflições.
Estáfila levava uma vida satisfeita quanto às necessidades básicas,
tais como, teto, alimentação e vestuário, todavia isso não era o suficiente
para suportar os maus tratos que recebia. O que a mantinha firme era a
certeza de que algo tinha acontecido para que Euclião se tornasse tão
violento. No fundo ela sabia que já fazia parte daquela família, mas que não
podia se assemelhar a um membro familiar, pois lhe faltava algo
fundamental para realização humana – a liberdade. E é a liberdade o prêmio
que os escravos almejam, quer pelos benefícios prestados ao patrão, quer
obtida mediante alguma esperteza. E é esse desejo de liberdade que
aproxima a escrava do seu patrão. Ambos têm algo em comum e as suas
vidas giram em torno desses desejos.
O maior desejo de Euclião é viver, que não está apenas no amor à
vida, mas também na cobiça e na avidez, o que justifica o desejo pela posse
material – a panela de ouro.
Euclião também vive numa prisão, talvez até pior do que a de
Estáfila, haja visto que sua prisão ideológica, a sua idéia fixa o leva à
loucura.
Estáfila, por ser escrava, deseja a liberdade, Euclião a panela;
juntos, patrão e escrava caminham lado a lado cada qual com o seu anseio.
E dessa forma com a contribuição de recursos cômicos, nos apresentam um
dos momentos mais divertidos e burlescos da peça plautina.
Referências Bibliográficas
ARÊAS, Vilma. Iniciação à Comédia. RJ: Ed. Zahar, 1990.
BAYET, Jean. Littérature Latine. Paris : A. Colin,1980.
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102
SATURNALIA – TEMPO DE PRESENTES
Leni Ribeiro Leite
103
No calendário romano, as Saturnalia eram consideradas dias
sagrados, ou feriados, em que ritos religiosos aconteciam. Saturno recebia
sacrifícios; no Templo de Saturno, um dos mais antigos segundo os
registros dos pontífices, construído para as Saturnalia, os pés da imagem
do deus eram livrados dos fios de lã que o cingiam, para simbolizar a
libertação do deus.
Mas as Saturnalia eram também dias de festas. Após o sacrifício no
templo, havia um banquete público, costume que, segundo Tito Lívio,
havia sido iniciado em 217 a.C. Pode ter havido também um lectisternium,
ou seja, um banquete para o deus em que sua imagem era colocada junto à
mesa, como um conviva. De acordo com Macróbio, a saudação durante o
período era “Io, Saturnalia”, que os participantes do banquete gritavam
durante a festa no templo.
As Saturnalia eram sem dúvida a festividade mais popular do
calendário romano. Catulo as descreve como “o melhor dos dias”, no
poema 14:
104
Te dá Sila, o gramático, não me parece mal,
Mas sim bom e belo por não desperdiçares teus esforços.
Grandes deuses, que livro horrível e infame!
Este que sem dúvida tu deste a teu Catulo para que ele morra
subitamente
Neste dia de dons, das Saturnais, melhor dos dias!
XIII. 34 – Bulbi
Cum sit anus coniunx et sint tibi mortua membra
Nil aliud bulbis quam satur esse potes.
Cebolas
Já que sua esposa é idosa, e teu membro está morto
Nada mais você pode fazer do que encher-se de cebolas.
XIII. 122 – Acetum
Amphora Niliaci non sit tibi uilis aceti:
Esset cum uini, uilior illa fuit.
105
Vinagre
Não seja desprezível para você uma garrafa de vinagre do Nilo.
Quando era de vinho, era mais barata.
XIII.126 – Unguentum
Unguentum heredi numquam nec uina relinquas
Ille habeat nummos, haec tibi tota dato.
Ungüento
Nunca deixe ungüento ou vinho para seu herdeiro.
Que ele tenha o dinheiro, mas dê estes todos a você mesmo.
XIV. 34 – Falx
Pax me certa ducis placidos curuauit in usus.
Agricolae nunc sum, militis ante fuit.
Foice
A paz duradoura de nosso Governante me curvou para usos
pacíficos.
Agora sou do agricultor, mas antes fui do soldado.
XIV. 40 – Lucerna cubicularis
Dulcis conscia lectuli lucerna,
Quidquis uis facit licet, tacebo.
Sou uma lamparina, confidente de teu doce leito
É permitido que faças o que desejas, eu me calarei.
XIV. 196 – Calui De aquae frigidae usu
Haec tibi quae fontes et aquarum nomina dicit,
Ipsa suas melius charta natabat aquas.
“Sobre o uso de água fria”, de Calvo
Estas páginas que te falam sobre fontes e nomes de rios
Estariam melhor se nadassem em suas próprias águas.
106
soubesse responder à pergunta feita, deveriam dedicar uma coroa de
louros a Saturno.
Uma característica da celebração que ganhou em importância com o
passar do tempo era que, durante o feriado, muitas restrições eram deixadas de
lado, e a ordem social era invertida. Jogos de azar eram permitidos em público.
Os escravos não precisavam trabalhar e podiam jogar com os dados; ao invés
da toga, roupas menos formais eram permitidas (synthesis). Dentro da família,
um “chefe do desregramento” era escolhido. Os escravos eram tratados como
iguais, inclusive usando roupas de seus senhores e sendo servidos nas
refeições. Essa igualdade era temporária, é claro, e Petrônio fala de um escravo
imprudente que agiu em outra época do ano “como se fosse dezembro”.
No fim do primeiro século d.C., Estácio ainda podia proclamar:
107
entre os dias devotados a Saturno e os dias comerciais. Se você
estivesse aqui, eu gostaria de debater com você se deveríamos ter
uma noite como as outras ou se, para evitar a diferença,
deveríamos ambos ter um jantar melhor e deixar de lado a toga.”
Referências bibliográficas:
BORNECQUE, H. & MORNET, D. Roma e os romanos. SP: EPU-EDUSP, 1976.
CATULO. O livro de Catulo. Trad. João Ângelo Oliva Neto. SP: EDUSP, 1996.
GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e romana. 4. ed. RJ: Bertrand
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SULLIVAN, J. P. Martial – The Unexpected Classic. Cambridge: Cambridge
University, 1991.
108
ODE I, 1 DE HORÁCIO: DEDICATÓRIA DO POETA A MECENAS
Mára Rodrigues Vieira
109
adjetiva); eos, em acusativo, masculino, plural, sujeito de collegisse (na
substantiva reduzida de infinitivo, sujeito de iuuat).
hunc, si mobilium turba Quiritium
certat tergeminis tollere honoribus;
illum, si proprio condidit horreo
quicquid de Libycis uerritur areis. (v.7-v.10)
(a este (agrada), se a turba dos Quirites inconstantes luta por
elevá-lo às honras tríplices; àquele (agrada), se guardou no
próprio celeiro tudo aquilo que se varre das eiras líbicas.)
Os pronomes hunc e illum, em acusativo, como quos, servem
também de objeto ao verbo iuuat, oculto.
Segundo grupo: do verso 11 ao verso 18
Gaudentem patrios findere sarculo
agros Attalicis condicionibus
numquam demoueas, ut trabe Cypria
Myrtoum pauidus nauta secet mare.
Luctantem Icariis fluctibus Africum
mercator metuens otium et oppidi
laudat rura sui; mox reficit rates
quassas, indocilis pauperiem pati.
(Aquele que se alegra em abrir com a enxada a terra de seus pais
não se o demove com riquezas atálicas, a que, como tímido nauta,
singre o mar de Myrtos. O mercador que teme o Áfrico, que luta
com as ondas icárias, louva o ócio e os campos de sua cidade; logo
repara as naus avariadas, incapaz de suportar a pobreza.)
Gaudentem, em acusativo, é complemento de demoueas, forma
verbal de segunda pessoa do singular, no subjuntivo presente, que, neste
texto, serve de expressão à indeterminação do sujeito. Para o estudo de
gaudentem, adjetivo substantivado, convém examinar dois outros empregos
do particípio presente – luctantem e metuens, ambos adjetivos, em
concordância com os substantivos Africum, em acusativo, e mercator, em
nominativo, respectivamente. O acusativo gaudentem é a expressão reduzida
de eum qui gaudet, em que o pronome qui, com o antecedente eum, não
tem valor determinado. Vale ainda observar a referência feita a mercator –
aquele que comercia –, termo empregado com valor genérico: nome de
agente em –tor.
110
Terceiro grupo: do verso 19 ao verso 22
Est qui nec ueteris pocula Massici
nec partem solido demere de die
spernit, nunc uiridi membra sub arbuto
stratus, nunc ad aquae lene caput sacrae.
(Existe aquele que nem desdenha copos do velho Mássico, nem
(desdenha) subtrair uma parte do dia, reclinado, ora com os
membros sob um arbusto verde, ora junto a uma serena fonte de
água sagrada.)
Qui, sujeito de spernit, na oração adjetiva, é pronome relativo
indefinido do qual se infere o sujeito de est -is -, na oração principal.
Quarto grupo: do verso 23 ao verso 28
Multos castra iuuant et lituo tubae
permixtus sonitus bellaque matribus
detestata. Manet sub Ioue frigido
uenator tenerae coniugis inmemor,
seu uisa est catulis cerua fidelibus,
seu rupit teretis Marsus aper plagas.
(A muitos agradam os acampamentos e o som da tuba misturado
ao da trombeta e as guerras detestadas pelas mães. Permanece,
sob o céu frio, o caçador, esquecido da terna esposa, ou se uma
corça foi vista por seus cãezinhos fiéis, ou se um javali marso
rompeu as redes resistentes).
Multos, pronome indefinido, é o termo introdutor do período
simples e serve de objeto a iuuant, em cujo sujeito, composto,
identificamos os núcleos: castra, sonitus, bella.
Ressaltamos também a menção a uenator – aquele que caça –,
termo que não denota exclusividade: nome de agente em –tor.
Quinto grupo: do verso 29 ao verso 34
Me doctarum hederae praemia frontium
dis miscent superis, me gelidum nemus
Nympharumque leues cum Satyris chori
secernunt populo, si neque tibias
Euterpe cohibet nec Polyhymnia
Lesboum refugit tendere barbiton.
111
(A mim as heras, prêmios das doutas frontes, misturam-me com
os deuses do céu, a mim um bosque fresco e os coros ligeiros das
Ninfas com os Sátiros afastam-me do povo, se Euterpe não coíbe
as flautas, se Polyhymnia não recusa afinar a lira.)
Esta seqüência de seis versos, em oposição àqueles até aqui
estudados, diz respeito a um único indivíduo, a um ser determinado que
reconhecemos pelo emprego do pronome de primeira pessoa do singular –
me –, como introdutor de longo período.
É de si próprio que se ocupa o poeta neste excerto em que todos os
elementos citados estão a seu favor – de um lado, as heras, prêmios das
doutas frontes, colocam-no entre os deuses do céu; de outro lado, as Ninfas
e os Sátiros, habitantes da floresta, afastam-no do povo –, desde que
Euterpe, Musa da poesia lírica, não coíba as flautas e Polyhymnia, Musa
das canções dedicadas aos deuses, não se recuse a afinar a lira.
À exemplificação caracterizada por formas de expressão que
traduzem a indeterminação dos seres referidos fortemente se opõe o último
grupo, com particular relevo para o próprio poeta.
Nos dois últimos versos da ode (v.35 e v.36)
Quod si me lyricis uatibus inseres,
sublimi feriam sidera uertice.
(Então, se me colocares entre os vates líricos, tocarei os astros
com minha cabeça altiva.)
O poeta habilmente faz uso de duas formas verbais em orações
correlatas: feriam, em primeira pessoa do singular, condicionada a inseres,
em segunda pessoa do singular, enfatiza o reconhecimento de Horácio a seu
protetor, Mecenas, já anunciado nos dois primeiros versos da ode, como
termo introdutor, a quem o poeta se dirige com gratidão e exalta com o uso
reiterado do vocativo:
Maecenas atauis edite regibus
o et praesidium et dulce decus meum, (v.1 e v.2)
(Mecenas, descendente de antigos reis, ó meu protetor e minha
doce glória!)
112
Referências bibliográficas:
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ERNOUT, Alfred & THOMAS, François. Syntaxe latine. Paris: C. Klincksieck,
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Belles Lettres, 1991.
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113
DIDO EM VIRGÍLIO E EM OVÍDIO
Márcia Regina de Faria da Silva
114
Poder-se-ia pensar em como serão abordados aspectos trágicos em
obras que, anteriormente, foram designadas como epopéia e elegia, sem
ligação com a tragédia. Contudo, nada de absurdo há nisso. Muitos já
estudaram a respeito da mistura de gêneros nas obras, mas dois autores, em
especial, interessam ao nosso estudo: Emil Staiger, em Conceitos
fundamentais da poética, e Northop Frye, em Anatomia da crítica. Staiger
aborda a questão das classificações fechadas e substantivas de gêneros que
pretendem sempre classificar as obras dentro da lírica, da épica ou do
drama. Ele propõe que existe uma noção adjetiva e, dessa forma, as obras
seriam classificadas através da predominância de traços estilísticos líricos,
épicos ou dramáticos.
Tendo feito este preâmbulo, pretende-se agora iniciar a análise dos
poemas a partir do ponto de vista de suas características trágicas.
O trágico se revela, segundo a definição dada por Staiger:
Quando se destrói a razão de uma existência humana, quando
uma causa final e única cessa de existir, nasce o trágico. Dito de
outro modo, há no trágico a explosão do mundo de um homem,
de um povo, ou de uma classe. (STAIGER, E., 1974, p. 147)
É exatamente isso que acontece com Dido: ela construía um novo
reino, que representava, perante seu irmão e os povos vizinhos, sua “volta
por cima” em relação à morte de seu marido e à fuga de Tiro.
Nunc media Aenean secum per moenia ducit
Sidoniasque ostentat opes urbemque paratam (...) (En., IV, 74-75)
Agora conduz Enéias consigo pelo meio das muralhas
e mostra as riquezas sidônias e a cidade preparada (...)
Nec noua Carthago, nec te crescentia tangunt
Moenia nec sceptro tradita summa tuo?
................................................................................................
Quando erit ut condas instar Carthaginis urbem
Et uideas populos altus ab arce tuos? (Her., VII, 13-14; 21-22)
Nem a nova Cartago, nem as muralhas que crescem
nem o lugar mais elevado dado a teu cetro te impressionam?
................................................................................................
Quando será que fundas uma cidade à semelhança de Cartago
e altivo vejas da fortaleza teus povos?
115
Os dois poemas apresentam Cartago como uma cidade em pleno
desenvolvimento (urbem paratam; noua Carthago). E não é uma
cidadezinha qualquer, mas uma grande cidade. Pode-se notar isso através
da palavra moenia que é encontrada em ambos os poemas. Ora, as muralhas
representam uma cidade que deverá vir a ser uma fortaleza e isso é
percebido claramente nas Heróides, pois Dido duvida que Enéias possa um
dia fundar uma cidade tão importante quanto Cartago. E, ainda, confirma a
idéia da grandeza do reino de Dido a palavra arce, usada para indicar que,
se Enéias permanecesse junto da rainha, ele teria um lugar de onde pudesse
ver essa fortaleza que seria, obviamente, também sua.
Mas Dido apaixona-se e, aí, começa a explosão de seu mundo.
Nota-se isso na passagem da Eneida em que a cidade está parada, como se
esperasse o resultado do amor sentido pela rainha.
Non coeptae adsurgunt turres, non arma iuuentus
exercet portusue aut propugnacula bello
tuta parant; pendent opera interrupta minaeque
murorum ingentes aequataque machina caelo. (En., IV, 86-89)
As torres começadas não se erguem, a juventude não segue a
carreira militar, nem os portos nem as seguras fortificações
esforçam-se para a guerra; os trabalhos, interrompidos, estão
suspensos não só as enormes ameias das muralhas mas também a
máquina que atinge o céu.
Ao lado da grandiosidade hiperbólica da construção (murorum
ingentes aequataque machina caelo), encontram-se os verbos no presente do
indicativo ligados aos advérbios de negação indicando que tudo está à espera
de uma resolução (non adsurgunt, non exercet, -ue parant, pendent),
culminando com o verbo no particípio passado, mostrando a total inércia de
todos os trabalhos (interrupta ligado a opera).
Howard Jacobson (JACOBSON, H., 1974, p. 78-79) comparando
os fragmentos vistos nas duas obras, diz que se pode suspeitar do fato de a
cidade estar crescentia em Ovídio, devendo ser apenas um eco da Eneida,
pois no verso seguinte é utilizada a palavra facta que dá idéia de que a
cidade já está pronta (Facta fugis, facienda petis...) (Her., VII, 15 – Evitas
as obras feitas, desejas as que devem ser feitas...). Segundo o citado autor,
isso é explicado como um argumento retórico, usado na tentativa de
mostrar a Enéias as vantagens de ficar ao lado da rainha. Utilizando esta
idéia, notamos que realmente parece que a retórica é que fundamenta essas
interrogações iniciais (v. 9-24) de Dido, especialmente as aqui analisadas,
116
já que ela está completamente apaixonada e preparando-se para o seu
trágico fim, como se vê no início da carta:
[Accipe, Dardanide, moriturae carmen Elissae;
Quae legis, a nobis ultima uerba legis.] (Her., VII, 1-2)
Ouve, Enéias, o canto de Elissa que vai morrer;
o que lês são minhas últimas palavras.]
Tendo em vista este estado de espírito, ela não deveria estar
preocupada com as obras para o crescimento da cidade, a menos que a
menção a esses fatos fosse apenas para tentar convencer Enéias a ficar.
A inatividade dos trabalhos, observada na Eneida, tem um
momento de trégua após Dido e Enéias unirem-se na gruta.
Vt primum alatis tetigit magalia plantis,
Aenean fundantem arces ac tecta nouantem conspici.(...) (En.,
IV, 259-261).
Logo que toca com os pés alados os casebres, olha Enéias que
ergue as fortalezas e que refaz telhados (...).
Mas, agora, as atividades são feitas pelo próprio Enéias, não mais
pelos súditos da rainha, mostrando que ela está completamente dominada
pela situação amorosa em que se encontra. Situação esta que culminará na
explosão de seu mundo pessoal, através de sua morte, e, conseqüentemente,
na derrocada da cidade em que reinava.
Nas Heróides, percebe-se essa sujeição através da disposição de
Dido para estar de qualquer jeito ao lado de Enéias.
Si pudet uxoris, non nupta, sed hospita dicar;
Dum tua sit, Dido quodlibet esse feret. (Her., VII,167-168)
Se te envergonhas da esposa, não casada, mas que eu seja chamada
forasteira;
conquanto que seja tua, Dido suportará ser qualquer coisa.
Em relação a esta passagem, deve-se concordar com Howard
Jacobson quando diz que a Dido de Ovídio dá um passo além da Dido de
Virgílio em sua prontidão para fazer concessões. Enquanto a segunda é
infeliz com um simples relacionamento hospes-hospita (v. 323-324), a
primeira está pronta a aceitar qualquer coisa para ficar ao lado de seu
amado. Vê-se, com isso, que a Dido de Ovídio é apresentada como uma
simples mulher, frágil e humana ao extremo, que vive o seu amor não como
117
uma heroína, mas sim como um ser humano que sofre e se rebaixa no
intuito de conseguir realizar seus desejos amorosos.
Essa sujeição já marca a derrocada da rainha, que fora prenunciada,
nas Heróides, no momento em que ela menciona o acontecimento na gruta.
Illa dies nocuit, qua nos decliue sub antrum
Caeruleus subitis cumpulit imber aquis.
Audieram uocem; nymphas ululasse putaui;
Eumenides fatis signa dedere meis. (Her., VII, 93-96)
Funesto foi aquele dia, no qual uma tempestade cerúlea com as
águas repentinas nos impeliu para a caverna inclinada.
Eu tinha ouvido uma voz; pensei que as ninfas tivessem chamado;
as Eumênides deram presságios aos meus destinos.
Esta passagem é muito significativa como prenúncio do desfecho
trágico da rainha, já que utiliza a antítese entre nymphas e Eumenides
unidas ao verbo putaui, mostrando nitidamente o juízo errôneo que Dido
tinha feito naquele dia (illa dies) em que estava cega de amor (nocuit).
As ninfas, segundo Pierre Grimal, “são ‘jovens mulheres’ que povoam
o campo, os bosques e as águas. São os espíritos dos campos e da natureza em
geral, de que personificam a fecundidade e a graça. (...) Habitam grutas onde
passam a vida a fiar e a cantar” (GRIMAL, P., 1997, p. 331). Percebe-se,
nitidamente, que elas são designadas como a personificação da fecundidade. O
fato de suas vozes serem ouvidas em uma união designava um bom presságio.
Mas Dido apenas tinha julgado (putaui) que as ouvira, talvez iludida pelo lugar
onde estava, que se constitui a habitação de ninfas (antrum). A realidade
mostrou a antítese. Não houve nem fecundidade, nem graça em sua união com
Enéias, por isso Dido percebe o engano: na verdade eram as Eumênides que se
faziam presentes naquele momento. As Eumênides (as Benevolentes) que
originalmente eram designadas como Erínias, receberam esse nome, segundo
Pierre Grimal (GRIMAL, P., 1997, p. 146-147), para que se sentissem
lisonjeadas e, com isso, fosse aplacada a sua terrível cólera. Junito Brandão
relata que esse nome foi dado às Erínias por Palas Atena, quando os deuses
absolvem Orestes do crime de matricídio, indo contra a vontade dessas deusas
infernais. Que, devido a isso, ameaçavam a cidade de Atenas com a
infertilidade da terra. Expõe Junito Brandão:
Eis aí o motivo por que a sábia deusa Atená procura a todo custo
apaziguar as Erínias, entregando-lhes, até mesmo, como honraria
suprema, a proteção de sua cidade, Atenas. Irremediavelmente
118
derrotadas, mas ávidas de homenagens e de glórias, como se
expressam elas próprias, as Erínias, agora Eumênides, as
Benevolentes, tornar-se-ão a bênção e a dádiva suprema da
cidade de Palas Atena ( BRANDÃO, J. de S., 1999, p. 35).
É muito interessante Dido chamá-las de Eumênides, não de Erínias,
pois também ela demonstra ter a esperança de apaziguar a cólera das deusas
e receber delas a proteção.
Em Virgílio, há a menção de que as ninfas estavam presentes na união
dos dois amantes, mas não aparece aí nenhuma alusão às deusas infernais.
Speluncam Dido dux et Troianus eandem deueniunt. Prima et Tellus
et pronuba Iuno dant signum; fulsere ignes et conscius aether
conubiis, summoque ulularunt uertice Nymphae. (En., IV, 165-168)
Dido e o chefe troiano dirigem-se para a mesma gruta. Não só a
Terra primordial mas também Juno, deusa do casamento, dão o
sinal; brilharam os raios e o éter consciente das uniões, e as
Ninfas gritaram do alto monte.
Há, inicialmente, uma aparência de legalidade na união, pois estão
presentes divindades como Tellus e Juno. Tellus é a deusa romana Terra,
que se encontra em Pierre Grimal (GRIMAL, 1997, p.435) no verbete
Telure. Este autor ensina que essa divindade é a Terra nutrícia e que se
identifica ora com a deusa grega Géia, ora com Ceres-Deméter. A primeira
divindade grega é a Terra primordial, aquela da qual são geradas todas as
outras coisas, e a segunda é a terra cultivada, aquela que é fértil e que
produz. Sua presença no casamento significaria uma união que deveria
frutificar. Há também a presença de Juno que, consoante Pierre Grimal,
... é a deusa romana assimilada a Hera. Na origem, e na
tradição romana, ela personifica o ciclo lunar e figura na Tríade
inicialmente honrada no Quirinal, depois no Capitólio, e que
englobava Júpiter, Juno e Minerva. Mas, para além disso, a
deusa tinha outros santuários;... (GRIMAL, 1997, p.260)
Essa deusa possuía vários epítetos como Iuno Lucina que era usado
por parturientes para invocá-la, a fim de que tivessem um bom parto. Outro
epíteto que possuía, e que é lembrado por Junito Brandão, (BRANDÃO, J.
de S., 1993, p. 188) é usado por Virgílio na passagem acima: Iuno
Pronuba, ou seja, Juno que preside aos casamentos, às uniões. Uniões que
seriam, obviamente legais.
119
Mas a legalidade é apenas aparente, pois no verso seguinte desfaz-
se o equívoco, apontando a união com Enéias como causa principal da
destruição da vida da rainha.
Ille dies primus leti primusque malorum causa fuit (...) (En., IV,
169-170)
Aquele dia foi a causa, o primeiro (dia) da morte e das desgraças
(...).
O narrador da Eneida não deixa dúvidas quanto ao destino de Dido
(leti, malorum), impulsionado por ille dies. Não há qualquer eufemismo, pois é
papel dele narrar os fatos, não amenizá-los. Diferentemente do que acontece
nas Heróides, nas quais é a própria Dido quem fala de suas desventuras.
Virgílio, posteriormente, apresenta Dido invocando contra Enéias as Fúrias:
(...) et Dirae ultrices et di morientis Elissae,
accipite haec, meritumque malis aduertite numen
et nostras audite preces (...) (En., IV, 610-612)
(...) não só Fúrias vingadoras mas também deuses de Elissa que
morre,
ouvi estas coisas, e voltai seu justo poder para os maus
e escutai as nossas preces (...).
As Fúrias eram divindades romanas que foram identificadas com as
Erínias, vistas anteriormente como Eumênides. Consoante Pierre Grimal, elas
eram filhas de Urano, tendo nascido das gotas de sangue deste ao caírem na
Terra quando foi mutilado por seu filho Crono. São divindades que não
obedecem aos deuses da geração mais jovem, guiando-se apenas pelas suas
próprias leis. Inicialmente, eram em número indeterminado, posteriormente,
contudo, seu número se fixa em três: Alecto, Tisífone e Megera. Moram nos
infernos, no Érebo, e são representadas com asas e com o cabelo cheio de
serpentes. Carregam em suas mãos tochas ou chicotes. Torturam suas vítimas
de muitas maneiras, fazendo-as enlouquecer.
Elas têm como função castigar os crimes, especialmente, os
cometidos contra parentes. Nos dizeres de Grimal:
Protectoras da ordem social, castigam todos os crimes suscetíveis
de as perturbar, punindo também o excesso, a hybris, que tende a
levar o homem a esquecer-se da sua condição de mortal. (...) Uma
das funções essenciais das Erínias é naturalmente castigar o
assassino, não apenas o que age voluntariamente, mas o homicida
120
em geral, pois o crime é uma mácula religiosa que põe em perigo
a estabilidade do grupo social no qual é cometido (GRIMAL, P.,
1997, p. 147).
Foi visto que Dido invoca as Fúrias contra Enéias, chamando-as de
Dirae, outro nome usado para elas em Roma., pedindo-lhes que vinguem
(ultrices) o crime que Enéias ainda não cometeu, mas que irá cometer se for
embora (Elissae morientis). Contudo, ela não percebe, nesse momento, que
é ela própria que está enlouquecendo com os preparativos da partida.
Momentos antes ela afirma:
(heu furiis incensa feror!) (En, IV, 376)
(Oh! Sou impelida inflamada pela loucura!)
Nota-se que o substantivo comum furiae, -arum está intimamente
ligado, tanto no sentido como na grafia, ao nome próprio Furiae, -arum,
visto anteriormente, e que agora se encontra relacionado à própria Dido.
Configura-se, assim, tanto na Eneida como nas Heróides, o trágico como
foi definido por Staiger, no início deste trabalho.
Se continuarmos as análises dos aspectos trágicos de Dido nas
obras, encontraríamos o trágico completamente em sua essência, de acordo
com a visão de Albin Lesky (LESKY, A., 1990), pois haverá a queda de
Dido; poder-se-á estabelecer com os acontecimentos, pelos quais ela passa,
uma relação com a realidade empírica, fazendo com que os espectadores
(leitores) sejam tocados pela sua sorte (terror e compaixão); ela sofrerá
conscientemente; sua culpa não será moral; e, finalmente, haverá a
contradição trágica, constituindo-se um conflito trágico cerrado, pois o
conflito que ela vive é insolúvel, constituindo, segundo Staiger (STAIGER,
E., 1974), um fato que destrói a razão da existência humana, já que para ela
não poderia existir vida sem o amor de Enéias.
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Paris: Les Belles Lettres, 1938.
122
O DISCURSO MÁGICO QUE CIRCULAVA EM ATENAS DO IV SÉC. A.C.
Maria Regina Candido
1
Defixios é o termo latino dado ao artefato composto por fina lâmina de chumbo usada para inscrever o
nome do inimigo em sua superfície e fixá-lo na profundeza da terra. Os termos de/defixios ou
kata/katadesmos sugerem o movimento de ligar a alma de alguém no mundo subterrâneo.
123
da magia, um especialista nas práticas mágicas, o nome da vítima e o local
de interdito para o desenvolvimento da ação. As lâminas de chumbo nos
fornecem indícios das crenças que os usuários da magia tinham no poder de
determinar o prejuízo ao oponente, considerado inimigo, através da
manipulação das potências sobrenaturais.
Antes de continuarmos com a nossa análise, devemos ressaltar que
para proceder a uma abordagem científica, teríamos dificuldade em
fundamentar a ação concreta da magia nos seres que integram o mundo do
sobrenatural devido ao potencial de imaterialidade que permeiam as suas
ações. Visando prestar conta do nosso argumento, deteremos a nossa
atenção na presença concreta das duas partes ativas envolvidas no discurso
mágico, a saber: o solicitante e o magus – especialista na prática da magia.
A atuação desses dois agentes do discurso mágico nos possibilita
estabelecer uma aproximação e análise através da materialidade do texto
inscrito na superfície das lâminas de chumbo.
O texto que compõe o discurso mágico forma um código a ser
decifrado o que nos possibilita reconstituir o passado da maneira de fazer dos
usuários da magia dos defixiones. O solicitante recorre às práticas mágicas
por estar envolvido em situação subjetiva: de um lado sente-se lesado,
prejudicado pelo seu oponente que parece usar da lei do mais forte para
tornar inoperante a sua atividade; nesse caso, de forma preventiva, o
solicitante faz uso da magia para assegurar a sua vitória sobre o oponente; do
outro lado, o usuário da magia pode ser acometido pelo sentimento de inveja
e despeito diante da sua incapacidade de sucesso e decide de forma ofensiva
impor a ruína aos adversários através das práticas mágicas. As duas situações
fomentam a desordem pessoal no solicitante que movido por um acentuado
sentimento de raiva, ódio e rancor determina a realização de sua vontade.
Não podemos esquecer que o usuário da magia dos defixiones é
alguém que se sente ameaçado em algo de valor que teme perder. Como
solução, busca forças alternativas no poder mágico para fazer valer o que
considera seu de direito, independente de preceitos éticos e da lei que regem a
comunidade à qual pertence. Além de ser uma situação subjetiva, esta ação
torna-se também uma ação dialógica, isto porque o magus aparece como
aquele indivíduo detentor de um poder e habilitado para interceder a favor do
solicitante visando solucionar o conflito em direção aos seus interesses.
Como podemos observar o discurso mágico evidencia um lugar de
enfrentamento cujas inscrições lingüísticas materializam os antagonismos e
interesses distintos. Destaca-se também por seguir o modelo de uma
124
situação comunicativa imperativa composta de situações específicas
emitidas pelo solicitante, cuja ação imperativa torna-se fundamental para a
realização do desejo do solicitante. O magus com o seu saber deve estar
atento ao desejo específico do solicitante para definir as palavras
adequadas, o formato da lâmina de chumbo e o local de assentamento
eficaz visando à obtenção do sucesso imaginado.
As potências sobrenaturais usadas pelos praticantes da magia
aparecem como dispositivos da atividade ritualizada, instrumento
mediador de uma relação de força que parte do solicitante e do magus. O
solicitante desencadeia o processo mágico por estar envolvido em uma
situação sintomática ao exigir a realização do desejado. O magus apreende
o acentuado sentimento de animosidade do solicitante e o catalisa em
direção aos seres sobrenaturais. Como especialista no assunto, o magus
conhece e domina as características de funcionamento dos procedimentos
mágicos. A elaboração do discurso mágico depende da concordância e do
mútuo entendimento dos partícipes na formulação da magia. Esse
entendimento ocorre no exercício da ação dialógica em realização de
atividade ritualizada do discurso mágico.
Todo discurso é uma mensagem considerada como ação lingüística
que se desenvolve em lugar específico dirigida para um determinado receptor
da mensagem. No caso do discurso mágico, o solicitante da magia dos
defixiones recorre à intervenção do magus e ambos atuam como emissores
que formulam uma situação comunicativa imperativa através do uso de
palavras mágicas dirigidas às potências do mundo subterrâneo como
divindades ctônicas. Os seres sobrenaturais compostos por vítimas de
assassinato, crianças mortas e suicidas são potências sobrenaturais que
carregam uma acentuada animosidade contra os seres vivos pelo fato de
integrarem o universo de seres que morreram antes do tempo. As potências
sobrenaturais como dispositivos de atividades ritualizadas nos leva a afirmar
que a mediação é divina, a finalidade é humana e o resultado é social.
Os indícios sociais podem ser apreendidos através das vítimas do
discurso mágico que integram as categorias de comerciantes, artesãos, juizes,
logógrafos, políticos, prostitutas, atores, córegos, atletas e estrategos. Cada
uma dessas categorias sociais está presente nas diversas lâminas de chumbo
encontradas no Pireu e no Kerameikos. As palavras que compõem o discurso
mágico deixam transparecer que o solicitante está envolvido em uma situação
adversa que pode acarretar danos morais e materiais. As práticas mágicas dos
defixiones tornam-se o único meio considerado seguro e eficaz para remover
125
obstáculos. Através da imprecação contra o inimigo o solicitante determina
aos seres sobrenaturais a imobilização ou mesmo a sua extinção.
A natureza específica do desejo de realização do solicitante tem
seus indícios na diversidade de modelos de fórmulas mágicas inscritas nas
superfícies dos defixiones, o que nos levou a elaborar um corpus
documental com 110 lâminas de chumbo catalogadas, encontradas no
território ático2 que datam do V a.C. ao III d.C3, resultado de escavações
realizadas pelo The German Archaeological Institute in Athenas,
responsável pelo The Athenian Kerameikos – cemitério onde foram
localizadas a maioria dos defixiones e pela The American School of
Classical Studies encarregada pelos artefatos de chumbo escavados na área
do porto do Pireu4; os materiais estão disponíveis em catálogos arquivados
na EFA: Escola Francesa de Atenas/Grécia.
Dentre os artefatos de chumbo, identificamos 25 lâminas que
apresentam uma lista de nomes de prováveis inimigos do solicitante -
imprecação contra os processos; existem 17 lâminas que além do nome
do adversário indicam quais partes do corpo devem ser prejudicadas; 27
lâminas imprecam as atividades profissionais do oponente assim como a
sua família - imprecação contra os ofícios; a singularidade do período está
na presença dos primeiros vestígios das imprecações amorosas, ausentes
no V a.C., uma quantidade de 5 lâminas foi desenterrada de sepulturas e
estavam acompanhadas de figuras de homens ou mulheres feitas de
chumbo, outras 22 estavam perfuradas por pregos/pássalos e, 14 lâminas
cujas inscrições da maldição iniciam-se com palavras incompreensíveis
semelhante a um canto mágico a Hecate.
Os artefatos duráveis que compõem o corpus de defixiones nos permitem
empreender uma abordagem técnica específica para esta documentação e
através dela decodificar e compreender o significado do discurso mágico. O
corpus de lâminas tem em sua superfície textos inscritos de natureza
fragmentada, ou seja, com ausência de algumas palavras que podem ser
2
Devemos esclarecer que temos a posse dos últimos catálogos de lâminas de chumbo nos quais foram
publicados os defíxiones descobertos e identificados na região de Atenas nos período de 1985 a 2000.
Recentemente, maio de 2005, nós recebemos do pesquisador John G. Gager, da Universidade de
Oxford, um corpus de 10 lâminas que foram disponibilizadas para pesquisa e que necessitam de
tradução e análise.
3
Devemos informar que utilizaremos as lâminas de chumbo encontradas em Atenas - do V ao III a.C.
4
Os resultados das escavações estão disponíveis aos pesquisadores na EFA: Escola Francesa de
Arqueologia em Atenas/ Grécia, local onde fizemos estágios em 1995 e 2000, visando à coleta de
material proveniente do cemitério do Kerameikos e do porto do Pireu em Atenas. Logo, estamos de
posse de todo o material necessário para o desenvolvimento da pesquisa.
126
recompostas cotejando fórmulas mágicas de períodos tardios. Após
transpor esses obstáculos e tornar operacional a abordagem das lâminas,
podemos aplicar a análise do discurso mágico (em anexo), técnica
metodológica específica que nos permite dar conta da especificidade da
natureza da documentação.
Compreendermos a grafia dos defixiones como produto cultural em
forma de texto discursivo pessoal que usa uma linguagem verbal comum
que circulava no território ático do IV século. De posse dessa linguagem
verbal, os usuários da magia, formalizam o discurso mágico dos
katádesmoi. Entendemos por discurso mágico a enunciação pessoal na qual
o solicitante interagindo de forma ativa com o magus materializa em
artefatos de chumbo o objetivo de prejudicar o adversário ou oponente
considerado inimigo.
A cada defíxios empreendemos um esquema de identificação que
consiste na descrição dos dados que identifica a lâmina e dessa forma
inventariamos o corpus que compõe o conjunto selecionado. O texto
pertinente presente na superfície da lâmina deve ser submetido à
segmentação visando qualificar os elementos que compõem o discurso, a
saber: o solicitante, o magus, o objeto da magia e o topos.
Devemos ressaltar que temos dificuldades em identificar os
elementos do discurso qualificado de magus e solicitante. Entretanto, a
ação empreendida por ambos determina o objeto da magia que aponta, em
algumas lâminas, o que e/ou quem está sendo alvo da maldição, o topos - o
lugar de depósito em que foi encontrada a lâmina de chumbo.
Na ação de determinar o prejuízo a alguém, o texto pertinente
expressa uma situação comunicativa imperativa composta por categorias
visíveis no texto como termos que indicam o uso de sonoridade semelhante
a um canto; o emprego de palavras indecifráveis e a indicação de parte do
corpo da vítima a ser paralisada. A categoria ação imperativa é
identificada pelo uso de verbos em duas situações, a saber: verbos de
enunciação pessoal quando empregados na primeira pessoa do singular,
deixando transparecer a ação ativa do solicitante e os verbos de enunciação
imperativa ao qual indica que à vontade do solicitante interage com os
procedimentos ritualizados do magus. O conjunto de palavras que
compõem o texto do discurso mágico indica a situação em que foi
produzido, ao qual denominamos de situação sintomática identificada por
termos que expressam o sentimento o ódio, raiva, rancor, medo ou mesmo
inveja do solicitante.
127
O resultado da ação interativa entre o solicitante e o magus é
reforçado pela presença do destinatário do discurso mágico que pode ser
visível ao ser explicitado ou ficar subentendido por indícios de perfurações na
lâmina por estiletes atravessados, o uso de lâminas no formato de sarcófago e a
presença de figuras humanas feitas de chumbo envolvidas em fragmentos de
tecido ou fios de cabelos da vítima colocadas no interior de sarcófago.
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130
NAVEGAR É PRECISO? AS PALAVRAS PROFÉTICAS DE NAUTES E
DO VELHO DO RESTELO
Michele Eduarda Brasil de Sá
1
VIRGÍLIO, 1993: 86.
131
É bem diferente o teor do discurso do Velho do Restelo. Para
começar, ele não tem um nome. Ele é simplesmente o Velho do Restelo. O
restelo (ancinho de madeira), seu instrumento de trabalho, é que lhe dá
identidade. A imagem deste ancião está presa à imagem da agricultura,
outrora mais venerada que o comércio amplamente desenvolvido de
Portugal, seja por meio da atividade comercial individual, seja através das
fortes companhias mercantis do período conhecido como o das Grandes
Navegações. O Velho surge justamente quando os portugueses estão se
despedindo de suas famílias, aprontando-se para uma nova partida.
Também na sua figura está presente o peso da experiência. O tom de
censura é claro desde o início. Vejamos o que nos diz o texto:
“Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
– Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
– "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
– "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
132
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?”2
Quando a obra Os Lusíadas foi publicada, em 1572, vivia-se não
apenas a época das grandes navegações, mas ainda – e em decorrência
disso – um momento intenso de expansão comercial e do cristianismo, além
da consciência da afirmação de Portugal como reino, frente à Espanha.
Neste sentido, uniam-se política, economia e religião nos empreendimentos
lusos, tornando-os um misto de desejo de fama, busca de riquezas, dever
cívico e religioso, enfim, um caminho do qual não se podia fugir, fossem as
motivações divinas ou humanas.
“No entanto essa exploração foi, desde o princípio, mascarada
com o zelo religioso (...). A cobiça pelas riquezas e a paixão por
Deus nunca estiveram em conflito, nem foram inconscientes:
para alguns homens, como foi o caso do Infante D. Henrique, a
religião era mais importante que o comércio, embora não
deixasse de querer ouro, traficar em escravos e não desdenhasse
da riqueza, que considerava uma bênção de Deus.”3
Vale a pena lembrar que em 1572 era rei D. Sebastião, “o
Desejado”, que tinha perfil conquistador, gostava de esportes, caça, de
lançar-se aos perigos. Diz-se dele que duas eram as suas paixões: a guerra e
a religião. Se compararmos este ícone português ao governante romano da
época de Virgílio, o Imperador Otávio Augusto, observaremos que em seu
período, havia semelhantemente um desejo de expansão territorial, política
e econômica, além de uma preocupação com a valorização da identidade
romana, com a busca às tradições, com a glorificação de Roma através do
passado histórico – o que torna a Eneida de Virgílio uma obra
reconhecidamente engajada. Tanto Roma quanto Portugal eram, em suas
épocas, grandes impérios, guardadas as devidas proporções.
“Navegar é preciso, viver não é preciso”, diria outro grande nome da
literatura portuguesa, Fernando Pessoa. Navegar é, na Eneida e em Os
Lusíadas, uma questão de sobrevivência, em última análise. Não se pode
fugir do mar. Para Enéias, o destino é já conhecido, determinado pelos
2
CAMÕES, 1979: 223-4.
3
PLUMB, 1993: 13.
133
deuses. Para os portugueses, navegar é manter sua posição na Europa,
principalmente diante da Espanha. Ainda que a censura do Velho do Restelo
ecoe na epopéia e através dos tempos, Portugal precisa navegar para ser
Portugal, assim como Enéas precisa navegar para se tornar, de fato, Enéas.
Referências bibliográficas:
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KENNEY, E.J. (ed.) The Cambridge History of Classical Literature. Cambridge:
Cambridge University Press, 1979.
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VIRGÍLIO. Eneida. Trad. e notas de David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Edições
de Ouro, 1994.
134
NOTAS SOBRE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CIVIL E MILITAR ROMANA
Paulo Roberto Souza da Silva
Poder em Roma
Roma tinha o que o historiador grego Políbio chamou de
“Constituição mista”, o poder estava dividido entre um elemento
monárquico: as magistraturas, um elemento aristocrático: o senado, e um
elemento democrático: os comícios do povo.
135
Luceres, etruscos. Os plebeus seriam todo o restante, elementos oriundos
de várias origens depois da fundação; estavam privados de direitos políticos
durante a monarquia.
Apenas os patrícios tinham direito a voto nas assembléias, chamadas
comitia curiata. A estes comícios compete quase que exclusivamente
conferir o imperium aos magistrados eleitos pelas comitia centuriata; por
causa desta atribuição puramente simbólica as cúrias passaram a ser
representadas por trinta litores.
Na república, a divisão entre patrícios e plebeus se dissolveu
gradualmente. Logo, muitos plebeus enriqueceram e começam a reivindicar
direitos. A partir destes embates os patrícios começam a ceder poder e os
plebeus se igualam nas prerrogativas. Já no século V a.C, é feita nova
classificação do populus romanus que agrupa patrícios e plebeus com base
no patrimônio; surge assim uma distinção econômico-social e não mais
gentílica. Os cidadãos são divididos em cinco classes e aqueles
extraordinariamente ricos são agrupados em uma classe especial chamada
equites. É essa distinção que persistirá ate o fim da República. Essa
classificação tem origem militar, como cada cidadão tinha que arcar com o
próprio armamento nas guerras, as divisões do exército refletiam as divisões
sociais. Nesta divisão cada classe podia formar um número específico de
centúrias – unidades de cem soldados. Ver:
136
– eleitorais. Eleger os magistrados com imperium e os censores.
– legislativas. Fazer leis. Exceto no que concerne às declarações de
guerra, na prática esse direito foi mais utilizado pelos comitia tributa.
– judiciários. Fazem o papel de corte de apelação em caso de penas
capitais, posteriormente desenvolveram-se as quaestiones, tribunais
permanentes para tipos específicos de causas, que passaram a
desempenhar esta função.
Por elegerem os magistrados maiores, que posteriormente tornar-
se-iam senadores, esses comícios permitiram aos ricos, e não mais aos
patrícios, controlar a república. A partir desta rotina surge uma nova classe:
a nobilitas. Os nobres eram exatamente aqueles que ocupavam ou já tinham
ocupado magistraturas e seus descendentes. Assim, os mais ricos
controlavam, por meio desses comícios, as magistraturas e o senado; ou,
observando por outro aspecto, os nobres criaram estes comícios para
consolidar seu domínio sobre a república. O nome plebs passou a designar
aqueles que estavam excluídos do poder.
Também no século V a.C., surgiram as comitia tributa, estes
comícios eram o veículo de expressão da plebe em oposição aos comitia
curiata dos patrícios. Com o surgimento da nobreza e o compromisso
aristocrático dos comitia centuriata, eles passam então a expressar os
movimentos populares contra a aristocracia. Suas atribuições eram:
– eleitorais. Eleger os magistrados não-curuis: tribunos da plebe,
edis plebeus e questores.
– legislativas. Votar plebiscita; até 286 a.C. os plebiscita precisavam
de ratificação por parte do senado, mas a partir desta data, com a lei
Hortênsia, tinham automaticamente o valor de lei.
Esses comícios eram o grande meio de oposição ao senado durante
toda a república e nas ações dos tribunos da plebe, especialmente a partir
do século III a.C., está a origem do partido popular, que mais tarde causou
a revolução romana.
Senado
O Senado era órgão consultivo, conjunto daqueles que detêm a
dignitas et auctoritas. Estes conceitos estavam intimamente vinculados à
riqueza do cidadão e à sua capacidade de intervir numa guerra. Durante a
137
monarquia seu papel era muito restrito, com a república, o conselho do
senado, senatusconsultum, passa a ter o valor de lei e compete com as
atribuições dos comitia. Uma longa disputa se desenrola entre o senado e os
magistrados, em especial o tribuno da plebe, que culmina com a guerra
civil e o fim da república.
De início, os senadores são escolhidos pelos pretores, depois os
cônsules e, a partir de 318 a.C., pelos censores. O censor tira do album
senatorum (a lista do Senado) os nomes dos membros mortos e os dos que
a lei ou eles próprios julgam indignos e completam o número normal dos
senadores escolhendo primeiro todos os ex-magistrados pela ordem: ex-
ditadores, ex-censores, ex-cônsules, ex-pretores, ex-edis curuis os ex-
tribunos, os ex-edis plebeus e ex-questores, com preferência aos patrícios
em relação aos plebeus, excetuando-se os excluídos por indignidade. O
princeps senatus (primeiro senador) era o ex-ditador ou ex-censor mais
antigo. O número normal de senadores foi inicialmente 300; Sila, já no século
I a.C., eleva o número para 600 e César para 900.
Os senadores tinham por insígnias a túnica laticlava (laticlaua, de
tarja larga, a faixa púrpura que enfeitava as togas), o anel de ouro e celceus
senatorius (um calçado especial), de couro vermelho, se foram magistrados
curuis, de couro negro, se não curuis.
Atribuições
– eleitorais: a data das eleições dos magistrados e serve de mediador
em caso de conflito.
– legislativas: até 287 a.C., as leis votadas pelos comícios precisam
ser referendadas por um senatusconsultum, mesmo depois dessa data
esta decisão ainda tem um grande peso junto aos magistrados; o
Senado pode também convidar os cônsules e tribunos a proporem
um projeto de lei.
– executivas: quanto às finanças, vota todas as despesas, fixa as
receitas a tirar das províncias, cuida do patrimônio do Estado.
Dirige os assuntos estrangeiros, recebe os embaixadores, assina os
tratados. Regulamenta a situação dos países conquistados,
administra os territórios submetidos, cuida dos aliados e
regulamenta as dificuldades que podem surgir entre eles, recebe as
delegações provinciais com suas reclamações e pedidos. Em tempo
138
de guerra, designa as tropas destinadas à frente de batalha, indica as
regiões onde se deve operar, reparte os comandos militares.
– religiosas: cuida da manutenção do culto tradicional, provê às despesas
religiosas, as supplicationes ou os lectisternia .
Procedimento
Qualquer magistrado, com exceção dos questores e edis, pode convocar
o Senado. A sessão é presidida pelo magistrado que a convocou.
Depois de um sacrifício e da consulta aos auspícios, o presidente abre
a sessão com algumas preces. A seguir ele anuncia sua proposta, a qual pode
ser votada imediatamente ou colocada em discussão. Neste último caso, o
presidente pede o parecer de cada senador pela ordem de inscrição no
álbum. O voto final é dado por discessio, isto é, os senadores se agrupam
de um lado da sala, conforme são a favor ou contra a proposta; daí a
expressão pedibus ire in sententiam alicuius, "aderir ao parecer de
alguém"; a seguir termina a reunião.
Uma decisão, não atingida por intercessio (ver abaixo), chama-se
senatusconsultum, do contrário é apenas um senatusauctoritas, que não tem
valor legal algum.
Os magistrados
Nomeação dos magistrados
Os candidatos devem ser cidadãos romanos no gozo de seu
plenos direitos civis e políticos, ser isentos de enfermidades físicas
(vistas como de mau agouro), seguir uma ordem determinada (cursus
honorum):
Questura, a edilidade ou o tribunato (este apenas para plebeus),
pretura, consulado; a censura e a ditadura, vinham depois do depois do
consulado;
Após 180 a. C, preencher certas condições de idade:
139
O ditador é nomeado por um dos cônsules e este, designado pelo
Senado; – o magister equitum, pelo ditador; – os pretores e censores são eleitos
pelos comícios centuriatos; – os outros magistrados, pelos comícios tributos.
Atribuições
Os magistrados possuíam a potestas, prerrogativa executiva,
legislativa e judiciária que concede os seguintes direitos:
– publicar editos; infligir multas; convocar o Senado (exceto os
questores e os edis); convocar e dissolver os comícios — com a
justificativa de que os auspícios são desfavoráveis, ou de que se quer
observá-los.
– opor-se (veto ou prohibitio) a que um ato seja levado a cabo por
um magistrado inferior (pela ordem: ditador, tribuno, cônsul, censor,
pretor, magister equitum).
– anular o ato de um colega ou um magistrado superior (intercessio).
– impedir que um magistrado superior realize comícios (obnuntiatio
ou spectio).
Os magistrados eleitos formam um colégio de vários membros,
todos possuindo a mesma potestas; aliás, eles repartem geralmente entre si
as funções do seu cargo. Todas as magistraturas são anuais, exceto a
censura que tem a duração teórica de cinco anos e a real de dezoito meses.
Todas as magistraturas são gratuitas.
140
conforme o magistrado; vão à frente dele para afastar os transeuntes; levam
ao ombro esquerdo os fasces, feixes de varas de bétula ou de olmo, entre as
quais se achava o cabo de um machado, cujo ferro se projetava fora do feixe.
Quanto às insígnias:
Quanto às insígnias, em não curuis (tribunos e edis da plebe) e
curuis (as demais). Os magistrados curuis tinham direito à cadeira curul;
usam a toga pretexta (orlada com uma faixa de púrpura) e, nos dias de festa, a
toga de púrpura. Os magistrados plebeus tinham assento num subsellium e
não tinham insígnia.
Quanto ao ius auspiciorum:
Do ponto de vista religioso, em maiores, que possuem o ius
auspiciorum maiorum (cônsul, pretor, censor, ditador, comandante da
cavalaria) e menores, que tinham apenas o ius auspiciorum minorum (questor,
edil curul, edil da plebe). Os auspícios maiores podem ser tirados pelos
magistrados onde quer que se encontrem, ao passo que os menores, somente
em Roma. Além disso, as magistraturas são chamadas auspicato, se seus
titulares são nomeados depois de tirados os auspícios, e inauspicato, no caso
contrário; só os magistrados plebeus (alínea seguinte) são criados inauspicato.
Magistraturas ordinárias
Cursus honorum:
QUAESTORES (questores) a princípio são dois, César aumenta
para quarenta. São os guardiões do tesouro público que era conservado no
templo de Saturno, recolhiam as receitas, repassavam dinheiro para os
magistrados e verificavam todas as contas, inclusive a de seus
predecessores. Nas províncias, além da administração financeira, eram
encarregados da suplência do governador.
AEDILES (edis curuis) eram dois e tinham como função:
a) A supervisão dos mercados;
b) A manutenção da polícia da cidade;
c) O aprovisionamento de Roma (cura annonae):
d) O cuidado dos jogos;
e) A guarda dos arquivos conservados no tabularium.
141
PRAETORES (literalmente, o que comanda, prae itor), a princípio
eram dois, César passa para dezesseis. Tinham atribuições eminentemente
judiciárias, faz a primeira avaliação dos processos e escolhe os juízes.
Depois da criação das questiones perpetuae, é ele quem escolhe os
componentes. Um tem jurisdição sobre os cidadãos (praetor urbanus); o
outro sobre os estrangeiros (praetor peregrinus); os demais presidiam as
quaestiones perpetuae.
CONSULES (cônsules) eram dois, tinham atribuições:
Políticas: convocar e presidir o Senado, os comitia curiata e
centuriata, fazer executar as decisões do Senado e do povo;
Militares: recrutar e comandar os exércitos e nomear oficiais até à
época de Sila.
Além disso, como os censores, eleitos por cinco anos, só exerciam
de fato sua magistratura durante dezoito meses, eram os cônsules que, no
intervalo, cumpriam suas funções de arrendamento da arrecadação dos
impostos. Nas épocas de crise, os poderes dos cônsules são aumentados pelo
senatusconsultum ultimum.
Magistraturas plebéias
TRIBUNI PLEBIS (tribunos da plebe), eram dez, não tiram os
auspícios, nem possuem o imperium, não eram propriamente magistrados
romanos, pelo menos em suas origens; mas antes representantes da plebe
junto ao Senado; eram de fato os supervisores de todos os magistrados e
dispunham dos meios para tornar a sua supervisão eficaz. – Só tinham
poder em Roma e uma milha ao redor; e não podiam deixar a cidade por
um dia inteiro. Tinham tais prerrogativas:
Eram invioláveis (sacrosancti, consagrados por um sacrifício).
Aquele que os mata ou ergue a mão contra eles é declarado homo sacer,
entregue aos deuses infernais, condenado à morte.
Tinham direito de veto sobre todos os magistrados, exceto o
ditador, e censores; em certos casos, esse direito pode ser suspenso pelos
comitia centuriata.
Podiam abrigar um acusado, impedindo sua prisão.
Presidiam os comitia tributa.
Tinham o direito de aplicar multas e de efetuar prisões; podem
mandar encarcerar qualquer magistrado, exceto o ditador.
142
AEDILES PLEBEI (edis plebeus): tinham as mesmas atribuições
dos edis curuis.
Os tribunos e edis da plebe deviam ser plebeus; só eles tinham o
direito de convocar a plebe.
CENSORES (censores):
Eleitos a cada cinco anos para uma gestão de dezoito meses,
sempre dois por vez. Tinham como principais funções:
a) o recenseamento (census), que permitia preparar a lista dos
eleitores e contribuintes; repartiam os cidadãos em classes e tribos;
b) O recrutamento do Senado; a partir de Sila, que abriu essa
assembléia a todos os antigos magistrados, limitavam-se a cancelar
o nome dos membros indignos;
c) A vigilância sobre os costumes públicos e privados (regimen
morum). A repreensão (nota censoria), infligida por covardia, ou
negligência no cumprimento do dever, etc., cobre de desonra
(ignoiminia), aquele que é por ela atingido e pode acarretar a
exclusão do Senado, da ordem eqüestre ou da tribo;
d) Arrendavam por adjudicação e durante cinco anos a arrecadação
dos impostos, os fornecimentos e, enfim, os trabalhos de construção
e de reparação (opera publica); redigem todos os contratos relativos
a essas questões e dirimem todas as contestações sobre o assunto;
e) Encerram o mandato com uma cerimônia que tem caráter de
expiação (lustrum).
Magistraturas extraordinárias
DICTATOR (ditador): era nomeado no caso de crise externa ou
interna; sua nomeação suspende o das outras magistraturas e não há
apelação das suas decisões. Nunca suas funções duram mais de seis meses.
Era auxiliado por um comandante da cavalaria (magister equitum).
MAGISTER EQUITUM (comandante da cavalaria): designado
pelo ditador, uma espécie de chefe de estado maior.
143
Referências bibliográficas:
BORNECQUE, Henri e MORNET, Daniel. Roma e os Romanos. Edição revista e
atualizada por A. Cordier, tradução de Alceu Dias Lima. SP: EPU/ EDUSP, 1990.
FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar Latino Português. 2ª Edição. RJ: MEC, 1956.
HACQUARD, Georges. Guide Romain Antique. Édition revue et augmentée. Paris:
Hachette, 1952.
MENDES, Norma M. Roma Republicana. SP: Ática, 1988.
144
A APREENSÃO DO CORO NO PÁRODOS DE OS PERSAS DE ÉSQUILO
Ricardo de Souza Nogueira
145
mãos humanas. Ésquilo participou das duas batalhas, de modo que, como
todo ateniense do V século, compreendeu perfeitamente esse caráter divino
agindo por trás de cada momento de superação. Mas é o emprego desse traço
como algo fundamental para que se entenda a perdição em que se enveredam
os seus heróis é que faz de Ésquilo um tragediógrafo. De fato, em sua obra,
ele se apossa por completo da idéia de que uma justiça divina age por trás
dos acontecimentos mostrados em cena, o que faz de sua tragédia a expressão
de um lugar misterioso onde os personagens são, a todo tempo, rodeados por
forças sobrenaturais. Essa relação que se estabelece entre uma justiça divina
e o mundo dos homens se mostra muito forte na tragédia Os Persas, tendo
em vista o caráter verídico que norteia a peça.
A tragédia Os Persas foi apresentada pela primeira vez por volta de
472 a.C., portanto, pouco tempo depois da Batalha de Salamina. Dado que,
por si só, já enfatiza a importância dessa peça no contexto de uma
comemoração cívica. Apesar de terem existido tragédias anteriores a Os
Persas tal obra representa, para nós, um marco tanto para o gênero
dramático, quanto para esse momento glorioso por qual Atenas se encontrava
(na verdade, Os Persas nem se afiguram como a primeira peça de fundo
histórico, pois Frínico já havia composto uma tragédia, As Fenícias, baseada
no mesmo tema). Ao se utilizar de um fato histórico, no intuito de expressar
pela arte dramática um momento tão importante na história de Atenas,
Ésquilo se desvia dos temas mitológicos que comumente figuram nas
tragédias gregas; mas o que poderia parecer um empecilho ou uma
contradição para a presença de agentes sobrenaturais se torna exatamente o
lugar ideal para o desenvolvimento desses mesmos agentes, uma vez que a
veracidade do acontecimento não o impede de recriar o evento, utilizando-se
para isso dos elementos extraordinários e fantasiosos que tanto caracterizam
o seu estilo. Um verdadeiro mundo paralelo, sobrenatural, está por trás das
ações humanas nos dramas de Ésquilo para infligir ao homem sua perdição e
tal caráter não se mostra diferente em Os Persas.
A peça possui quatro personagens, a rainha persa Atossa, um
mensageiro persa, o espectro de Dario e o rei Xerxes, além do Coro de
Anciãos Persas, que funciona como mais um personagem. Um dado
interessante, portanto, é o fato de todos esses personagens serem persas, ou
seja, são os bárbaros, inimigos dos gregos, que irão expor para o público do
teatro seu sofrimento diante da derrota. Logicamente, não poderia haver
tragédia se o drama focalizasse a alegria dos atenienses com a vitória.
146
Assim, é Xerxes, o grande rei persa, que possui nessa obra a típica
função do herói trágico, que, por seus excessos, cai em desgraça em sua
oposição com o divino. Entrementes, é bom frisar que não é apenas sob o
ponto de vista da queda do herói que se percebe o trágico em Ésquilo e nos
outros tragediógrafos gregos.
Nossa concepção de trágico começou a se delinear graças a Poética
de Aristóteles, que, ao fazer de Édipo Rei sua peça-paradigma, apresenta
claramente a queda do herói da fortuna a desgraça como um dos requisitos
básicos para a expressão do trágico, o que, de modo algum, significa dizer
que este seja o único requisito. Também os finais extremamente mórbidos
das tragédias shakespearianas, em que morrem um bom número de
personagens reforçam o fato de que, para o homem moderno, uma tragédia
se afigura como uma história de final terrível, de modo que, muitas vezes,
utilizamos o termo tragédia para fazer referência a um desenlace em que
um grande número de pessoas morre, seja numa catástrofe natural
(furacões, terremotos) ou em mortes causadas pelo próprio homem (uma
chacina, um atentado). Mas essa idéia de tragédia que culmina na desgraça
de um herói não pode ser percebida nem mesmo na totalidade do escasso
número de peças que nos chegaram completas. O próprio adjetivo trágico
não se sabe ao certo em que momento teria sido usado no sentido moderno,
pois a palavra tragédia (tragw|di/a) etimologicamente possui o significado
de canto do bode (tra/gov = bode / w0|dh/ = canto), indicando simplesmente
uma origem religiosa, por estar esse bode, de alguma maneira, ligado ao
rito sagrado que deu origem à tragédia grega. Em Aristóteles, já aparece o
adjetivo trágico no sentido que se tornou comum posteriormente, na
passagem em que o filósofo faz menção a Eurípides como o mais trágicos
(tragikw/tatov) de todos os poetas (Poética, 1453a 30). Contudo, é bom
frisar que tal filósofo pertence ao IV século a.C., de modo que não se pode
afirmar que essa conotação já estivesse em voga no século V.
Qual seria, então, o critério para se classificar uma peça ática de
tragédia no sentido em que os gregos lhe atribuíam? Seguramente, como foi
visto, não é o seu final trágico no sentido moderno do termo, nem os temas
mitológicos, já que nem sempre estavam presentes. Certamente, a tragédia
era um gênero que se opunha à comédia, de caráter bem leve e divertido, e,
assim, pode-se dizer que uma tragédia se faz pelas diversas forças
conflitantes que nela se apresentam em estórias sérias e de caráter elevado.
O efeito trágico que, segundo Aristóteles (1449b 27), deve causar terror e
piedade (e1leov kai\ fo/bov) se dá assim por várias oposições ou conflitos
147
que estão presentes em diversas passagens da ação. O helenista Albin
Lesky (1996, p. 39) se manifesta da seguinte maneira sobre a trilogia
Oréstia de Ésquilo, cuja última peça possui um final não trágico:
O conflito em que está envolvido Orestes é inimaginavelmente
horrível, mas como conflito não é cerradamente trágico, pois admite
a reconciliação das potências combatentes e, nessa reconciliação, a
libertação da dor e do sofrimento. Assim, a participação que seu
destino tem no trágico se nos apresenta como situação trágica
através de cujas tormentas o caminho conduz à paz.
Para se chegar a essa conclusão, Lesky primeiramente distingue
conceitos que se dirigem para uma definição de trágico. A visão
cerradamente trágica do mundo (p. 38), não admite nenhuma salvação e o
resultado é um aniquilamento completo das forças envolvidas. Tal visão
provavelmente se mostra insuficiente para vislumbrar por completo a
complexidade e o valor de transcendência inerente à tragédia grega. Já no
conflito trágico cerrado (p. 38), apesar do aniquilamento também estar
presente, essa destruição traz em si um germe de caráter transcendental que
pode levar a ação a se resolver num plano superior. É o que ocorre nas peças
Agamêmnon e Coéforas em que a morte do personagem homônimo na
primeira peça e de Clitemnestra na segunda preparam, de certo modo, a
redenção de Orestes que se dá na última peça da trilogia com a participação
fundamental da deusa Atena, ou seja, aqui o aniquilamento dos personagens
nas primeiras peças impulsiona uma reconciliação das forças envolvidas que
se resolvem num plano superior. Por fim, Lesky apresenta o conceito de
situação trágica (p. 38), conceito este que justifica até a ocorrência de
tragédias com final feliz, e que pode ser exemplificado exatamente pela
reconciliação a que chega Orestes na citada tragédia Eumênides. As forças
em oposição se dissipam, o que é bem representado na transformação das
Coéforas, deusas que se opõem aos indivíduos que perpetraram um
assassínio em família, em Eumênides, deusas benévolas.
Pode-se perceber, então, que, em todas essas definições de trágico,
as oposições estão presente, e esse conflito é o que caracteriza, de fato,
uma tragédia grega, não excluindo assim a possibilidade de existirem
conflitos que se resolvam por uma reconciliação dessas forças combatentes.
Não há essa reconciliação em Os Persas de Ésquilo, mas tampouco
ocorre o aniquilamento do personagem que se opõe a determinadas forças, no
caso em questão, o personagem Xerxes. Na verdade, quando a ação de Os
persas tem início, a derrota persa já havia se concretizado, e, quando um
148
Xerxes acabado, entra em cena no Êxodo da peça, o Fantasma de Dario, no
Terceiro Episódio, com sua autoridade do além, já havia dito os motivos que
levaram o exército bárbaro à destruição. A intenção última desse trabalho não
é se deter no desenvolvimento da peça, mas sim mostrar que as oposições
trágicas em jogo já são visíveis no Párodo dessa obra (vv. 1 – 154).
O párodo é a parte da tragédia em que o coro adentra, cantando e
dançando, na orquestra (o0rxh/stra), plataforma circular que fica em frente
ao lugar onde os atores atuavam (proskh/nion). O Párodo vem depois do
Prólogo, a parte que abre a tragédia, com um monólogo de um personagem
ou com diálogos de vários personagens. As tragédias mais antigas, como
Os Persas, não possuíam Prólogo. Por isso, Os Persas começam com a um
Párodo, a entrada do coro, composto por sábios anciãos, fiéis ao rei Xerxes.
A primeira palavra que aparece na tragédia é um pronome
demonstrativo catafórico ta/de (v. 1), em que o Coro de Anciãos se remete
a sua própria aparição em cena, se apresentando aos espectadores: Estes
aqui presentes. A utilização desse pronome logo de início remete a uma
função tipicamente teatral, pois, enfatizando a sua presença, o coro mostra
que numa peça são os atores em carne e osso que, por meio de suas falas,
vão expressar e sentir os horrores em cena, ou seja, por meio deles se
desenvolve a ação trágica. Como esse coro de anciãos, com seu caráter
coletivo de indivíduos velhos e sábios que zelam pela cidade na ausência
do rei, funciona como mais um personagem, então, são esses anciãos que
irão começar por apresentar, no momento presente, a situação que se
encontra na cidade de Susa, capital persa, e também são eles que, com
lembranças, vão se referir ao passado para começar a apresentar as
oposições trágicas que se apresentam no enredo de Os Persas.
O momento é de apreensão, pois Ésquilo, num toque teatral de gênio,
coloca o coro como ainda desconhecedor da derrota sofrida. O desejo de
conhecer os fatos se afigura como um impulso que leva os anciãos a
rememorar as ações feitas por Xerxes e seu exército. Nesse desconhe-
cimento, surge uma apreensão que se inclina para o pior (vv. 8–11):
a0mfi\ de\ no/stw| tw~| basilei/w|
kai\ poluxru/sou stratia~v h1dh
kako/mantiv a1gan o0rsolopei~tai
qumo\v e1swqen.
Sobre o retorno do rei
e do exército repleto de ouro, desde já,
um profeta de males atormenta fortemente
149
meu coração por dentro.
Na seqüência, quase em desespero, o coro clama (v. 14) por um
mensageiro (a1ggelov) ou cavaleiro (i9ppeu/)v , que contudo não aparece. A
dúvida e a angústia se misturam nesse Párodo para formar o efeito trágico
desejado, e é de posse desses sentimentos conflitantes que o coro irá expor
os elementos também conflitantes que formam o enredo da peça.
No plano não divino, há a lógica oposição entre gregos e bárbaros.
Ésquilo por várias vezes enfatiza o apego à riqueza dos persas, numa clara
alusão de que, para o povo grego, existem valores muito mais elevados do
que esse mero desejo. No Párodo, precisamente, o adjetivo poluxru/sov
(repleto de ouro) é repetido num curto espaço de versos; primeiramente,
referindo-se às moradas dos persas (v. 4) e, depois, ao exército de Xerxes
(v. 9). Sob outra perspectiva, esse ouro persa se opõem à prata dos
atenienses, descoberta numa nova mina em Láurion, que possibilitou a
construção de uma poderosa frota, indispensável para a vitória em
Salamina. Nos dois pontos de vista, a oposição entre gregos e persas se
mostra presente, assim como também esse mesmo conflito se reflete
metaforicamente no uso de palavras ligadas ao campo semântico de lança
(do/ru) e arco e flecha (to/con) como na seguinte passagem (vv. 84 – 86):
Su/rio/n q 0 a3rma diw/kwn
e0pa/gei douriklu/toiv a0n-
dra/si toco/damnon 1Arh.
Conduzindo o seu carro sírio
(Xerxes) leva, contra os homens célebres pela lança,
Ares, que doma com arco e flecha.
Nessa passagem, os gregos são referidos como douriklutoi/
(célebres pela lança) e os persas, por trás da citação do deus da guerra
Ares, são qualificados como toco/damnoi (que domam com arco e flecha)
numa clara alusão à maior coragem dos gregos em relação aos persas; se os
bárbaros são hábeis na luta à distancia, desferindo suas flechas contra os
inimigos, os gregos preferem a luta corpo a corpo, um enfrentamento direto
que possibilita o uso da lança como arma.
Ainda nessa oposição gregos e persas, digno de nota é o excessivo
número de palavras citadas no Párodo, que buscam enfatizar o excessivo
número de combatentes bárbaros numa suposta oposição a um pequeno
número de guerreiros gregos. Pode-se encontrar os substantivos sti~fov
(massa – v. 20), plh~qov (turba – v. 40), o1xlov (multidão – v. 42, 54),
150
r9eu~ma (fluxo – v. 88), lew/v (multidão – 127), smh=nov (enxame – v. 128) e
os adjetivos pa/v, pa/sa, pa/n (todo (a) – v. 12), a0na/riqmov (inumerável -
v. 40) polu/androv (repleto(a) de homens - v. 73), polu/v, pollh/, polu/
(muito(a), grande – v. 25, 46, 74), polunau/thv (repleto de marinheiros – v.
83), me/gav, mega/llh, me/ga (grande – v. 88). Algumas dessas palavras
estão numa espécie de lista (vv. 21–57), em que o coro faz menção a todos
os chefes persas e a seus respectivos exércitos, numa clara influência de
Ésquilo pelo denominado Catálogo das Naus que está no Canto II da Ilíada
de Homero (vv. 494–877), onde o poeta épico se refere aos guerreiros
gregos e aos aliados troianos que foram combater em Tróia. Tal
procedimento, em Ésquilo, é um modo de enfatizar, por números, a feição
de um exército poderoso que, contudo, não logrou êxito no seu intento.
Como, nesse Párodo, o coro ainda desconhece a derrota, um contraste
tipicamente trágico se dá, já no Primeiro Episódio, quando o Mensageiro
anuncia que todos os guerreiros bárbaros foram mortos (v. 255): strato\v
ga\r pa~v o1lwle barba/rwn - Todo exército dos bárbaros pereceu.
Mas provavelmente a oposição trágica mais relevante de Os Persas
seja a que se estabelece entre Xerxes e os poderes divinos. Apesar desse
personagem só entrar em cena bem mais tarde, o Párodo já antecipa de
modo enfático tal oposição. Primeiramente, o coro faz menção ao momento
em que os persas atravessam o Helesponto por uma ponte construída para
esse propósito, atitude que se afigura como se, ao mar, fosse lançado um
jugo (vv. 65–72):
pepe/raken me\n o9 perse/ptoliv h1dh
basi/leiov strato\v ei0v a0n-
ti/poron gei/tona xw/ran,
linode/smw| sxedi/a| porq-
mo\n a0mei/yav
0Aqamanti/dov 3Ellav,
polu/gomfon o3disma
zugo\n a0mfibalw\n au0xe/ni po/ntou.
O exército real destruidor de vilas já
penetra no país
vizinho, situado na costa oposta,
após ter suplantado, com uma ponte atada
por cordas, a passagem
da filha de Áthamas, Hélle,
lançando o jugo da construção
sólida sobre o estreito do mar.
151
Nessa passagem, Xerxes nem é citado diretamente, mas, depois da
entrada do Fantasma de Dario, no 3º Episódio, esse personagem do além
deixará claro (vv. 743–751) que a perdição de Xerxes se deu por causa de
seu excesso para com os deuses e, em especial, para com o deus do mar
Poseidon; trata-se de uma loucura da mente (no/sov frenw~n) que se
apossou do jovem rei, causando a sua perdição.
Numa outra implícita alusão a Xerxes, o coro canta a desgraça do
mortal que se deixa levar pela 1Ath, termo grego que significa calamidade,
crime, ruína, e que aqui aparece personificado como a deusa que arruína o
juízo dos homens, levando-os à destruição (vv. 93–100):
dolo/mhtin d 0 a0pa/tan qeou~
ti/v a0nh/r qnato\v a0lu/zei;
ti/v o9 kraipnw~| podi\ ph/dh-
ma to/d 0 eu0petw~v a0na/|sswn;
filo/frwn ga\r parasai/nei
broto\n ei0v a1rkuav 1Ata,
to/qen ou0k e1stin u3perqe/n
nin a1naton e0calu/cai.
Do astuto artifício de um deus,
que homem mortal poderá escapar?
Quem se lançará a este salto,
com o pé ligeiro?
Certamente, a astuta Áte
desnorteia o mortal para suas redes;
depois, não há como escapar
impune dos deuses.
Xerxes, como o rei dos persas e como o responsável por todas as
ações contra gregos e deuses, é o personagem que mais se encontra
envolvido em oposições trágicas. É através de suas ações que Ésquilo irá
desenvolver no decorrer da tragédia, com uma atuação mais direta dos
personagens, os conflitos que justificam o seu fracasso, um destino
fortemente trágico, visível na humilhação que sofreu pela perda de seu
exército. Mas, como foi possível perceber, o coro, desde o início da tragédia,
prepara e já mostra, em sua apreensão, esses elementos de choque.
152
Referências bibliográficas:
AESCHYLUS. Suppliant Maidens, Persians, Prometheus, Seven against Thebes.
Greek text with translation by Herbert Weir Smyth. Massachusetts: Loeb Classical
Library, 2001.
AESCHYLUS. Persians. Greek text with introduction, translation and commentary
by Edith Hall. Warminster: Aris & Phillips LTD, 1996.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. do grego por Eudoro de Souza. SP: Ars Poética, 1993.
BAILLY, A. Dictionnaire grec francais. Ed. rev. et aum. par L. Sechan et P.
Chantraine. Paris: Hachette, 1983.
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Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1992.
LESKY, Albin. A Tragédia Grega. Trad. do alemão por J. Guinsburg, Geraldo
Gerson de Souza e Alberto Guzik. SP: Perspectiva, 1996.
MOREAU, A. Eschyle, la Violence et le Chãos. Paris: Les Belles Lettres, 1985.
MOSSÉ, Claude. Atenas – A História de uma democracia. Trad. do francês por
João Batista da Costa. Brasília: UnB, 1997.
_________. Dicionário da Civilização Grega. Trad. do francês por Carlos
Ramalhete. RJ: Jorge Zahar, 2004.
ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega. Trad. do francês por Ivo
Martinazzo. Brasília: Unb, 1998.
ROSENMEYER, Thomas G. The Art of Aeschylus. Los Angeles: University of
California Press, 1982.
153
ROMA: DIÁLOGO SOBRE A DEFINIÇÃO DE PODER
Ronald Wilson M. Rosa
1
Estados clientes eram as sociedades que ficavam a sobre a órbita de influência do Império Romano,
eram utilizados como estados tampões entre Roma e reinos inimigos. Ver mais em: MENDES, Norma
M. Sistema Político do Império Romano do Ocidente: Um modelo de colapso. Niterói: UFF, 1996, p.
85.
2
Ver: ROULAND. Norbert. Roma, democracia impossível? Os agentes do poder na Urbe Romana.
Brasília: UNB, 1997.
3
GUARINELLO, Norberto L. Imperialismo Greco-Romano. São Paulo: Ática, 1994, PASSIM.
154
sociedade civil. Viver em sociedade tem-se tornado uma prática difícil na
atual conjuntura. A diversidade de conflitos idéias negociações nos permite
estabelecer comparações.
Há muitas semelhanças entre o período atual e a mudança sobre a
ordem e o poder estabelecidos, no que concerne ao séc. XVIII, a Revolução
Francesa, o fim do antigo regime. Consideramos que na sociedade atual,
com o fim da guerra fria, a eleição do presidente americano George Bush,
provocou o estabelecimento de uma nova ordem mundial, que pôs fim ao
mundo bi-polarizado. Durante a guerra fria existiram dois discursos sobre
projetos políticos: o discurso capitalista e o socialista. Cada um tinha uma
visão diferente sobre a história, mas com uma característica em comum: as
mesmas projeções sobre o curso da história da humanidade. A vitória do
projeto político significava estabilidade social que trará o fim de todos os
conflitos, guerras e embates4.
Na atualidade, os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, em
que as torres gêmeas foram derrubadas por um ataque terrorista, atingem o
conceito de estabilidade social preconizada por teóricos liberais, e revelam
o aumento das desigualdades sociais, não só nos paises subdesenvolvidos,
mas também nos paises de maior economia mundial5.
Tais questões e mudanças estão presentes em textos de historiadores,
juristas e jornalistas da atualidade. Percebemos a construção de discursos
cujo olhar volta-se para o passado em busca de respostas, seja para
compreender este presente, seja para referendar ideologias ou ações políticas
aplicadas na atualidade. O que ratifica esta tendência, esta na observação da
proliferação de filmes com temáticas voltadas, em especial, para a
Antiguidade como: Tróia, Gladiador e Alexandre, o grande, entre outros,
acrescentamos os filmes como Star Wars que, mesmo não sendo voltados
para a Antiguidade, se apropriam de instituições e características existentes
em sociedades antigas.
O retorno ao passado nos leva a supor que a nossa sociedade está
buscando respostas para as drásticas mudanças vivenciadas por nós.
Busca-se um ponto de interseção entre o passado e o presente no qual nos
permite identificar crenças, valores e tradições. Nossa pesquisa se insere
4
Com o fim da guerra fria, o que aconteceu foi a supremacia do modelo capitalista na sociedade
ocidental, que trouxe profundas mudanças em nossa sociedade, e a principal delas é a mudança sobre o
conhecimento histórico, provavelmente ocasionado por causa do incentivo ao consumismo. Com isso, a
sociedade perdeu o sentido de perspectiva para o futuro, tornando-se mais imediatista, onde cada
momento é histórico.
5
Ver Perry Anderson. O fim da história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
155
nessa perspectiva de refletir, se repensar as relações de poder entre
Roma e o Egito a partir da intertextualidade, ou seja, o diálogo com
historiadores contemporâneos e a polifonia, vozes do passado em Cícero e
Iluministas, mas antes torna-se primordial apresentar o que entendemos
por relação de poder.
Consideramos que o termo Imperialismo não abrange suficientemente
as características peculiares do contato entre Roma e o Egito. Na historiografia
alguns pesquisadores têm inovado com novos conceitos, como a pesquisadora
Norma Mendes, que utiliza o termo romanização e o Prof. Noberto L.
Guarinelo6, que aborda o caráter econômico do processo de expansão
imperialista romana. Em nossa pesquisa, optamos por manter o foco no viés
político baseado nas relações de poder, para efetivar temos por suposição que
Roma interagia com as regiões de interesse através das seguintes relações de
poder, a saber:
1. O que o Prof. Guarinelo indica como ato de destruição do
adversário7 nós identificamos como relação de poder coercitivo,
em que, por vezes observamos o uso e a aplicação de violência;
2. A identificação do Prof. Guarinelo de zonas de influência8, nós
definimos como relação de poder mercantil, não necessariamente
com interesse político;
3. E, o que foi chamado de alianças igualitárias9 nós denominamos
de relação de poder negociável, que conta com a presença de
interesse político.
Pretendemos aplicar esta nova abordagem nas relações entre Roma
e o Egito, principalmente as relações de poder mercantil e relações de poder
negociável, para isso indicamos o contato mercantil como elemento
principal destas relações, pois temos por suposição, que as sociedades do
mundo antigo, não eram sociedades estanques, que só interagiam através da
guerra e após as conquistas de um reino ou império mais forte sobre outro.
Mas como é uma relação de poder? Para Rousseau, o poder era
exercido pela força, mas o forte só conseguiria a dominação se
transformasse a força em direito10. Entretanto, para Max Weber, a violência
6
GUARINELLO, Norberto L. Imperialismo Greco-Romano. São Paulo: Ática, 1994, PASSIM.
7
Idem, p. 12.
8
Idem, ibidem.
9
Idem, nota 16.
10
Rousseau. Contrato Social I: III.
156
é um instrumento legal do estado no exercício do poder11 e, para Hannah
Arendt, o poder está relacionado ao vigor, à força, à autoridade, à
violência12. Todas estas definições e conceitos sobre o poder nos remetem à
dominação e à centralização institucional do poder. Michel Foucault
considera que o poder não é um fenômeno de dominação maciço e
homogêneo de um indivíduo sobre os outros e sim deve ser analisado como
algo que circula, que só funciona em cadeia e se exerce em rede13. A partir
das considerações acima compreendemos que as relações de poder entre
Roma e o Egito, durante o séc. I a.C., não deve ser apenas analisada pela
ótica da dominação exercida pela força, e sim como uma rede de contatos e
relacionamentos, que tem como fator condutor o contato mercantil.
No período do século das luzes, buscava-se expandir os mercados a
partir da ideologia de levar a “civilização” para as áreas consideradas
primitivas, esta trajetória era composta pelos administradores, os
missionários e os mercadores. Na Antiguidade, os entrepostos comerciais
fixados nas áreas litorâneas nos remetem à nossa suposição de ser o contato
mercantil as primeiras formas de relacionamento entre Roma e o Egito.
Referências bibliográficas:
ALFOLDY, Geza. História Social de Roma. Lisboa: Presença, 1989.
ANDERSON, Perry. O fim da história: de Hegel a Fukuyama. RJ: Jorge Zahar,
1992.
ARENDDT, Hannah. Sobre a Violência. RJ: Relume, 2000.
BRAUDEL, Fernand. Memórias do Mediterrâneo, Pré-História e Antiguidade.
Lisboa: TerraMar, 2001.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. SP: Graal, 2004.
GRIMAL, Pierre. O Império Romano. Lisboa: Edições 70, 2003.
_____________. Os Erros da Liberdade. Lisboa: Edições 70, 1992.
11
Weber, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1999.
12
Arendt, Hannah. Sobre a Violência. Relume Dumará, 2000, p. 36.
13
Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Graal, 2000, p. 183.
157
GUARINELLO, Norberto L. Imperialismo Greco-Romano. SP: Ática, 1994.
HADRILL, Andrew W. Patronage in Ancient Society. Londres: Routledge, 1990.
HARVEY, David. O Novo Imperialismo. SP: Edições Loyola, 2004.
KOSSELECK, Reinhart. Crítica e Crise. RJ: EDUERJ, 1999.
MENDES, Norma M. Sistema Político do Império Romano do Ocidente: um
modelo de colapso. Niterói: UFF, 1996.
ROULAND, Norbert. Roma, democracia impossível? Os agentes do poder na
Urbe Romana. Trad. Ivo Martinazzo. Brasília: UNB, 1997.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os Pensadores: Rousseau. SP: Nova Cultural, 1991.
RUSEN, Jorn. Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência
histórica. Brasília: Editora da UNB, 2001.
158
UM OLHAR COMPARATIVO SOBRE AS FÁBULAS – LITERATURA
ATEMPORAL
Sandra Verônica Vasque Carvalho de Oliveira
159
senso comum – à qualidade ou defeito temas da fábula, por exemplo, a
raposa como representação da esperteza, o leão da força e assim por diante.
A palavra “fábula” deriva do verbo latino fabulare (conversar,
falar), o que indica, fortemente, o teor oral desse tipo de literatura. Sabe-se
que as narrativas fabulísticas foram transmitidas, inicialmente, oralmente,
pelos antigos.
Essa forma de contar histórias é muito antiga, presente nas mais
diversas culturas humanas. Está estritamente ligada à sabedoria popular, e
vem sendo recontada ao longo da história do homem.
Os textos das fábulas provocam sempre uma reflexão sobres os
valores, conceitos e comportamentos dos indivíduos. Apresentando conflitos
e diferenças, proporcionam ao leitor ou ouvinte o conhecimento sobre o
outro, com as particularidades das relações humanas. Conseguindo, assim,
compreender melhor o mundo e refletindo a respeito do que é certo e errado.
Tendo uma característica forte de oralidade, a fábula é uma
literatura de caráter universal, pois aborda fatos comuns a homens de todos
os gêneros. Ela traz implícita uma analogia com a vida do homem. Por esse
motivo, é indicada para o trabalho educativo com crianças, pois pode
propiciar a essas o entendimento do seu próprio mundo, percebendo as
artimanhas das relações sociais e, ao mesmo tempo, se preparando para elas
e se entendendo como parte integrante desse processo.
As fábulas proporcionam à criança, assim como ao adulto, o acesso ao
significado mais profundo existente nas entrelinhas de suas narrativas. Fato que
se torna uma oposição à lição de moral, que aparece explícita no texto.
Percebe-se que há um confrontamento do indivíduo que lê ou ouve
fábulas, com características inerentes ao ser humano, com os conflitos
próprios deste. Possibilita, desse modo, uma reflexão, que desencadeará
entendimento de algumas questões não pensadas anteriormente e, também,
a segurança para o enfrentamento do mundo.
Em relação à forma, trata-se de narrativa curta, direta e simples, em
que o título, também simples, não sugere o tema. O desfecho, geralmente,
combina com a “moral da história”, a qual pode vir antes da narrativa em
si, ou ao final.
Com origem remota no Oriente, muitas fábulas se eternizaram para
nós, através de autores do Ocidente. Na Grécia Antiga, pode-se destacar
Esopo, que teria vivido por volta do século V a.C.
Costuma-se falar que Esopo era um escravo e foi vendido e
comprado muitas vezes. Contudo, diz-se que era muito inteligente e esperto
160
conquistando, assim, a liberdade e contando suas fábulas pelos vários
lugares para os quais viajou.
Existe uma versão sobre Esopo, segundo a qual ele apresentava uma
aparência estranha, sendo corcunda e tendo a cabeça deformada. De acordo
com lendas a respeito desse autor, ele também possuía um defeito na fala,
que devia incomodá-lo; pois era o contador das histórias que inventava.
A obra atribuída a ele demonstra um profundo conhecimento da
natureza humana, abordando as mais variadas fraquezas do homem e fazendo
reflexões sobre o comportamento e costumes deste. Contudo, costuma-se
afirmar que a existência dele talvez não seja real. A tradição lhe confere
diversos textos fabulísticos, que foram transmitidos oralmente e mais tarde
registrados por outros autores através escrita. O que se conhece, atualmente,
como fábulas esopianas, são adaptações feitas por diversos escritores ao
longo dos tempos. Não se pode dizer com certeza o que de fato é de sua
autoria ou não. Existe, até mesmo, a possibilidade de Esopo tratar-se de um
pseudômino utilizado por diversos escritores. O próprio Esopo – se existiu
realmente – teria adaptado, aos moldes gregos, antigas fábulas do Oriente.
O romano Fedro, que viveu por volta de 10 a.C. e 69 d.C.
(GONÇALVES, 1981), era grande admirador de Esopo e reescreveu
diversas fábulas desse autor – o que se constata em alguns textos de sua
autoria, como no exposto abaixo – prólogo do Liber Primus:
Aesopus auctor quam materiam repperit,
Hanc ego poliui uersibus senariis.
Duplex libelli dos est, quod risum mouet
Et quod prudenti uitam consilio monet.
Caluumniari si quis autem uoluerit
Quod arbores loquantur, non tantum ferae,
Fictis iocari nos meminerit fabulis.
Tradução:
Escrevi, em versos senários, o assunto destas fábulas que Esopo
imaginou. Duas grandes vantagens, a meu ver, possui este
livrinho: recreia-nos pelo jocoso do estilo e orienta-nos a vida
com sábios conselhos.
No entanto, se alguém nos censurar, por havermos personificado
não somente as árvores, mas ainda os animais, recorde-se que
gracejamos em fábulas, onde tudo é ficção.
Fedro escreveu, também, muitas fábulas de sua própria autoria.
Assim verifica Gonçalves:
161
A sua obra literária é assombrosa. Não lhe coube somente a
glória de haver introduzido na literatura latina as fábulas de
Esopo, como muitos críticos propalam, mas a de ter escrito...,
inúmeras fábulas novas adaptadas à sociedade do seu tempo...
(GONÇALVES, 1981, p. l 21)
Todavia, o responsável por difundir e popularizar as fábulas em
nosso tempo foi o francês Jean de La Fountaine, que viveu no século XVII.
Ele usava esse tipo de literatura para transmitir as injustiças e misérias do
momento histórico que presenciou.
No Brasil, muitos escritores se dedicaram a recontar fábulas
antigas, assim como a compor outras novas. Entre eles, podemos citar
Monteiro Lobato (início do século XX), que reescreveu, a seu modo,
fábulas de Esopo, Fedro e, também de La Fountaine e criou as suas
próprias. Os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo são responsáveis
por transmitir muitas dessas fábulas, além de realizarem comentários a
respeito delas, demonstrando, através disso, a opinião do autor. Assim
como La Fountaine, Lobato utilizou as fábulas para criticar o momento
histórico em que viveu, denunciando injustiças e misérias.
Do mesmo modo, na atualidade, temos o escritor Millôr Fernandes,
por exemplo, que critica a realidade sócio-políitca-econômica de nossa época.
Utilizando humor e ironia, para refletir sobre o comportamento e os valores
atuais, faz uma sátira de nossa sociedade nos livros “Fábulas fabulosas” e
“Novas fábulas fabulosas”.
A seguir, coloca-se para a demonstração de intertextualidade, a
fábula “A raposa e os cachos de uvas” de Esopo e algumas das várias
versões que ganhou, ao longo dos séculos:
162
Aqueles que desdenham com palavras as coisas que não podem fazer,
deverão aplicar a si este exemplo. (Fedro)
A RAPOSA E AS UVAS
Certa raposa esfaimada encontrou uma parreira carregadinha de
lindos cachos maduros, coisa de fazer vir água à boca. Mas tão altos
que nem pulando. O matreiro bicho torceu o focinho.
– Estão verdes – murmurou – Uvas verdes, só para cachorro. E foi-se.
Nisto deu o vento e uma folha caiu. A raposa ouvindo o barulhinho
voltou depressa e pôs-se a farejar...
Quem desdenha quer comprar. (Machado de Assis)
A RAPOSA E AS UVAS
De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e
gula de todos os tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra
deliciosa do parreiral que descia por um precipício a perder de vista.
Olhou e viu, além de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas
maravilhosos, uvas grandes, tentadoras. Armou o salto, retesou o
corpo, saltou, o focinho passou a um palmo das uvas. Caiu, tentou de
novo, não conseguiu. Descansou, encolheu mais o corpo, deu tudo o
que tinha, não conseguiu nem roçar as uvas gordas e redondas.
Desistiu, dizendo entre dentes, com raiva: “Ah, também, não tem
importância. Estão muito verdes”. E foi descendo, com cuidado,
quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a
pedra até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra,
perigosamente, pois o terreno era irregular e havia risco de despencar,
esticou a pata e... Conseguiu! Com avidez colocou na boca quase o
cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes!
A frustração é uma forma de julgamento tão boa como qualquer
outra. (Millôr Fernandes)
163
Monteiro Lobato imprime um caráter mais lúdico à narrativa e finaliza
com o provérbio conhecido até os dias de hoje. Outra característica, é que
no seu livro “Fábulas”, por exemplo, depois da narrativa fabulística, o
autor insere um comentário dos personagens do Sítio do Pica-Pau
Amarelo a respeito delas.
Millôr Fernandes reescreve a narrativa, modificando-a, inclusive no
final e na moral e inserindo o toque humorístico e sarcástico, próprio de
seu estilo. Há a utilização do lúdico para chegar ao humor e não a
intenção explícita de ensinamento, transformando, desse modo, a moral.
Referências bibliográficas:
FARIA, E. Dicionário superior latino – português. RJ: FENAME, 1982.
GONÇALVES, M. A. Fábulas de Fedro. RJ: Livraria H. Antunes, 1981.
LODEIRO, J. Traduções de textos latinos. RJ, SP, PA: Globo, 1948.
SARAIVA, F. R. S. Novíssimo dicionário latino – português. BH: Livraria
Garnier, 2000.
164
HOMERO, HESÍODO E PÍNDARO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
FELICIDADE E DO MÉRITO
Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha
1
Dentre as correntes mais importantes, destacam-se o Orfismo, o Pitagorismo e a doutrina de Empédocles.
Entretanto, a vertente mística mais antiga de que se tem conhecimento acerca de crenças no além e da qual se
encontram, ao que parece, reminiscências nos versos pindáricos é a dos Mistérios de Elêusis, que, segundo
dados arqueológicos, data da época micênica. O documento literário mais antigo acerca dessa vertente
religiosa é o Hino a Deméter, datado do VII século a.C. Nos versos 480-2 do referido hino, o poeta denomina
ólbios “feliz”, o homem que, tendo participado dos sagrados ritos de Elêusis, usufrui uma sorte privilegiada no
além. Logo, nesses versos encontra-se, ao que tudo indica, o ponto de partida da promessa de uma vida feliz no
além-túmulo, possível a qualquer indivíduo, desde que fosse um mystés “iniciado nos mistérios”.
165
concepção existente desde as épocas mais longínquas até a Antigüidade
tardia, de ser o Hades a última estância dos mortais:
... que dentre os que morreram aqui
imediatamente os espíritos perversos
lhes expiam as faltas e os delitos, neste reino de Zeus,
alguém os julga sob a terra, proferindo uma sentença,
com hostil necessidade... 60
Nesses versos, o poeta aborda a questão da responsabilidade dos
homens, tendo em vista que a alma do morto será julgada no além, katà
gâs, v. 59, “sob a terra”, segundo as ações praticadas por ele em vida. Se
condenado, suas faltas serão expiadas por sua própria alma. Com isso, o
poeta introduz, pela primeira vez na literatura grega, o tema da
transmigração da alma, tratado por quase todos os círculos místicos
anteriormente referidos.
Acerca desse assunto, Burkert (1993, p. 570-1) assinala que, a
despeito de no V século a.C. a doutrina da metempsicose ainda se encontrar
em fase de desenvolvimento, um dos aspectos mais expressivos, resultantes
das especulações místicas, foi justamente a modificação do conceito de
alma. Diferentemente da concepção homérica, encontrada, e.g., em
Odisséia, XI, vv. 29-49, de serem os mortos retratados como amenenà
kárena “cabeças impotentes”, “sem força”, a doutrina da transmigração
postula a existência de uma força individual, psyché, no interior dos
homens e dos animais, capaz de preservar sua identidade, mesmo quando o
corpo que a contém pereça. Considerada desse modo imortal, a alma é, de
acordo com as correntes místicas, passível de reencarnação, deliberada seja
pelo acaso, seja pelo tribunal dos mortos.
Com efeito, os versos 57-60 de Olímpica 2 discorrem sobre o
julgamento das almas, muito embora o poeta não tenha feito menção nem
ao tipo de faltas julgadas nem ao nome do juiz, uma vez que o designa de
modo indefinido, através do pronome tis. Contrariamente, em Ilíada XIX,
vv. 258-65, o poeta evidencia que a única falta passível de provocar
punição no além é o perjúrio. Segundo Burkert (1993: 478), era idéia aceita
na Grécia antiga constituir o juramento um verdadeiro princípio ao qual
estavam subordinadas a religião, a moralidade e a organização da
sociedade. Os versos homéricos supracitados são reveladores de ser o
juramento um ato irrevogável, em virtude de terem sido os deuses
invocados como testemunhas da palavra proferida. Destarte, o indivíduo
que incorresse em perjúrio deveria ser punido.
166
A despeito de não haver referência explícita a um julgamento no
além, como há nos versos pindáricos, a seriedade atribuída ao juramento
também ultrapassa, na concepção homérica, o termo da vida, razão por que
as Erínias, divindades que na concepção helênica representam a ordem
social, atuam no mundo subterrâneo como potências vingadoras contra os
perjúrios. Assim sendo, a observância à palavra empenhada estava
subordinada ao temor aos deuses e, em Homero também às Erínias, pois,
sem medo da justiça divina, os mortais poderiam transpor todas as barreiras
morais e instaurar a desordem no mundo.
O destino das almas dos nobres, definidos por Píndaro, na
supracitada Olímpica, como hoítines échairon euorkíais (v. 66), “os que se
alegravam com a fidelidade ao juramento”, é descrito pelo poeta nos versos
61-7: possuíam uma existência despreocupada, caracterizada pelo
comparativo aponésteron (v. 63), ‘‘com muito menos sofrimento’’, em
contraposição à existência dos outros homens, para os quais foi reservado
um aprosóraton pónon (v. 67), “um sofrimento terrível”. Com efeito, essa
passagem evidencia a inviolabilidade do juramento e, por conseguinte, a
responsabilidade do homem como fundamentos para a vida isenta de
sofrimentos, pois, muito embora não se encontre explícito o motivo das
provações experimentadas por alguns homens, a referência à observância
ao juramento faz supor tratar-se de perjúrio. No tocante à intensidade do
sofrimento imposto ao perjuro, vale assinalar a semelhança temática entre a
expressão pindárica aprosóraton pónon (Olímpica 2, v. 67), “sofrimento
terrível”, e expressão homérica álgea pollà mála (Ilíada, XIX, vv. 264-5),
“sofrimentos extremos”.
Os nobres receberam, ainda, como prêmio, por sua conduta, uma
vida livre de preocupações e da necessidade do trabalho agrícola e
marítimo para sua subsistência. A descrição de Píndaro acerca desse lugar
ideal para a existência post-mortem harmoniza-se com o mito da raça de
ouro, narrado por Hesíodo em Os trabalhos e os dias, em cujos versos 109-
26 o referido poeta deixa transparecer sua concepção a respeito das diversas
gerações existentes até sua época, classificando-as segundo os valores dos
metais, que parecem caracterizar a índole de cada uma delas. À primeira,
denominada raça de ouro, pertencem os homens cultores da justiça, e, por
isso, merecedores, aos olhos do poeta, de uma existência consentânea com
as qualidades representadas pelo ouro, como atestam os versos 112-24:
167
E eles existiam no tempo de Cronos, quando ele reinava no céu;
como deuses viviam, com o coração isento de preocupações, longe
dos sofrimentos e do infortúnio; não os atingia a velhice miserável,
mas, sempre iguais em relação aos pés e às mãos, alegravam-se
nos banquetes, 115
longe de todos os males; morriam como se fossem dominados pelo
sono; todos os bens existiam para eles: a terra fecunda produzia,
espontânea, frutos abundantes e generosos; eles, contentes e
tranqüilos, viviam de seus campos, junto com numerosos bens
{possuidores de frutos em abundância, amados pelos deuses Bem-
aventurados}. Mas, quando a terra encobri 120
essa raça, eles são, por desígnios do grande Zeus, gênios bons,
ctônicos, guardiães dos mortais, {então, eles vigiarão as decisões
e ações cruéis, vestidos de bruma, vagam por toda a terra},
doadores de riquezas; eis a dádiva real que eles receberam.
Ressalte-se que Píndaro, ao discorrer a respeito do lugar reservado
aos nobres, em Olímpica 2, não faz nenhuma referência precisa à sua
localização, deixando transparecer que o fator mais importante para a
ascendência desses homens no além-túmulo é a capacidade de suportarem
sofrimentos, como assinalam os versos 66-7 de Olímpica 2. Hesíodo,
diferentemente de Píndaro, não faz qualquer distinção de classe. Além disso,
nos versos 90-2, fazendo uma breve menção aos homens da raça de ouro,
assinala que eles viviam epì chthónos, “sobre a terra”. Isso significa que os
homens dessa raça eram presenteados pelos deuses com uma vida
despreocupada e próspera, comparável à dos deuses, como se observa no
verso 112, durante seu ciclo de vida terrena e não após a morte. É
interessante ainda notar o destino post-mortem dos homens dessa raça, pois,
ao atribuir-lhes as funções de phýlakes thnetôn anthrópon, v. 123, “guardiães
dos mortais”, e ploutodótai v. 126, “doadores de riquezas”, Hesíodo, como
poeta-agricultor, destaca o que em sua opinião seria o fundamento para uma
existência feliz: a justiça e a prosperidade.
Vale notar que os nobres c itados por Píndaro, assim como os
homens da raça de ouro usufruem todas as benesses da natureza, sem
empreender nenhum esforço. Contudo, a expressão pindárica keinàn parà
díaitan (Olímpica 2, v. 65), “ao longo de uma vida vazia”, sugere que as
almas que experimentassem esse estado de inalterabilidade podiam
ascender, se desejassem, a um lugar ainda superior, provavelmente à Ilha
dos Bem-aventurados, descrita nos versos 70-83 da supracitada Olímpica
como um lugar aprazível, não só pelo clima oceânico e pela beleza das
168
flores de ouro, com as quais os Bem-aventurados entrelaçavam guirlandas
e coroas, mas também pela justiça distribuída pelo legislador Radamanto,
célebre por seu bom senso, e pelos heróis que a habitavam, como Peleu,
Cadmo e Aquiles. Todavia, enfatiza o poeta nos versos 69-70, esse lugar
era reservado apenas aos homens justos:
Mas quantos ousaram, permanecendo de um e de outro lado, por
três vezes, afastar completamente sua alma das injustiças,
percorreram o caminho de Zeus até a 70 fortaleza de Cronos;...
Referência anterior à de Píndaro, acerca da morada dos Bem-
aventurados, encontra-se nos versos 156-73 de Os trabalhos e os dias,
passo em que Hesíodo, ao discorrer sobre a raça de bronze, a geração
denominada dikaióteron kaì áreion, v. 158, “mais justa e mais valente”,
descreve as Ilhas como um lugar especial reservado aos heróis semidivinos
da quarta geração que não morreram em Tebas e em Tróia, mas que, eleitos
por Zeus, foram conduzidos para esse lugar, onde passaram a desfrutar uma
vida afortunada, retratada do seguinte modo pelo poeta de Ascra:
Certamente, ali, o termo da morte os envolveu e, longe dos
homens, tendo-lhes dado recursos e moradias, Zeus pai, filho de
Cronos, estabeleceu-os na extremidade da terra. E eles, com o
coração isento de preocupações, habitam nas Ilhas dos Bem-
aventurados 2², junto ao Oceano de turbilhões profundos; ditosos
heróis, para quem a terra fecunda produz frutos doces como mel,
que florescem três vezes ao ano. (vv.166-73)
Convém lembrar que Hesíodo descreve, nesse poema, o quotidiano
do homem simples e as dificuldades por este encontradas, mostrando sua
luta pelo estabelecimento do trabalho, sobretudo o agrícola, como princípio
basilar da justiça. Essa temática reflete-se nos versos supracitados na
expressão akédea thymón, v. 170, “um coração isento de preocupações”,
sugestiva de uma existência regida pela eqüidade, e na referência à
fertilidade do solo, contida nos versos 172-3, que sintetizam o ideal de
felicidade para um agricultor.
2
O texto pindárico apresenta o substantivo ilha no singular na expressão makáron nâson (Olímpica 2,
vv. 70-1), “Ilha dos Bem-aventurados”, enquanto em Hesíodo esse vocábulo ocorre no plural: en
makáron nésoisi (Os trabalhos e os dias, v. 171), “nas Ilhas dos Bem-aventurados”. A respeito dessa
questão PEREIRA (In: HUMANITAS, 1952: 9) afirma que os autores sectários dessa concepção
escatológica preferem a forma do plural, com exceção de Eurípides, em Helena (v. 1677). De acordo
com a referida helenista, a expressão no plural é mais indeterminada, e, portanto, mais apropriada à
idéia do além, sobre a qual nunca houve uma teoria unânime entre os antigos.
169
Estância similar à Ilha dos Bem-aventurados é apresentada pelo
poeta da Odisséia, que, no canto IV, vv. 563-8, menciona os Campos
Elísios como local destinado aos eleitos dos deuses, como Menelau, genro
de Zeus, que recebera o privilégio de ser arrebatado da vida terrena, sem
experimentar o transe da morte:
Mas os imortais te enviarão para os Campos Elísios, nas
extremidades da terra, lá onde está o louro Radamanto. Ali,
certamente, se encontra uma existência mais fácil para os
homens: não há neve, nem mesmo inverno longo, jamais chove;
mas o Oceano não cessa de soprar, de modo sempre intenso, as
brisas do Zéfiro, para refrescar os homens. (vv.563-8)
Estabelecendo-se um cotejo entre os versos desses três poetas, a
fim de se examinar o conceito de felicidade, verifica-se que a generosidade
da natureza, revelada pela amenidade do clima - seja por sua regularidade,
tendo noites e dias iguais, seja pela agradável frescura das brisas oceânicas,
seja pela fertilidade do solo -, é um ponto convergente entre eles. A
natureza é, pois, o elemento que oferece, na ótica homérica, a rhéïste bioté,
v . 565), “uma existência feliz”, na hesiódica, um akédea thymón (v.170),
“um coração isento de preocupações”, e, na concepção pindárica, é o
elemento que proporciona um estado anímico permanentemente tranqüilo.
A questão do mérito para atingir a bem-aventurança no além é
um pecto distintivo e digno de realce nos três poetas: em Homero e em
Hesíodo, a ascensão aos Campos Elísios e às Ilhas dos Bem-aventurados
é, respectivamente, uma prerrogativa divina concedida somente a heróis,
como Menelau, e aos homens da quarta geração - a raça dos heróis
semidivinos; em Píndaro, por sua vez, apenas os verdadeiramente
corajosos e justos, isto é, os nobres, podiam lograr a morada dos Bem-
aventurados. Logo, aos olhos do poeta tebano, a felicidade no além é um
prêmio concedido pela virtude e não um mero privilégio divino, destinado
a heróis semidivinos ou aos que, como Menelau, tinham certo parentesco
com um deus.
Referências bibliográficas:
BURKERT, Walter. Religião grega na época clássica e arcaica. /Griechische
religion in der archaischen und Klassischen epochen/. Tradução de M. J. Simões
Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
170
DODDS, E. R. Os gregos e o irracional. /The greeks and the irrational/. Tradução
de Leonor Santos B. Carvalho e revisão de José Trindade dos Santos. Lisboa:
Gradiva, 1988.
DUCHEMIN, Jacqueline. Pindare poete et prophète. Paris: Les Belles Lettres,
1955.
HESIOD. Works and Days. Edited with prolegomena and commentary by M. L.
West. 3th. edition. Oxford: at the Clarendon Press, 1982.
HOMÈRE. L’Odyssée. Texte établi et traduit par Victor Bérard. Paris: Les Belles
Lettres, 1956. 3 v.
________. Iliade. Texte établi et traduit par Paul Mazon. 4 éd. Paris: Les Belles
Lettres, 1957. 4 v.
________. Hymnes. Texte établi et traduit par Jean Humbert. Paris: Les Belles
Lettres, 1941.
PEREIRA. Maria Helena da Rocha. Notas a um passo de Píndaro. In: Humanitas,
v. IV (Nova Série, vol. 1), Coimbra: 1952. p. 7-12.
PINDARI CARMINA CVM FRAGMENTIS PARS I EPINICIA. Edidit Hervicus
Maehler. Bruno Snell. B. S. B. G. Teubner Verlagsgesellschaft, 1971.
171
A POLIFONIA NAS BACANTES
Tatiana Bernacci Sanchez
1
P. 111
2
P. 17
172
Dioniso-Zagreu foi destroçado pelos titãs. O coração pulsa – movimento
semelhante ao de uma mênade, que não cessa de palpitar quando entra em
estado de êxtase. Aristóteles afirma, citado por Detienne3, que o coração tem
autonomia, “privilégio que partilha em plena fraternidade dionisíaca com o
órgão masculino, o phallós”4. Esse palpitar, cardíaco e/ou fálico, marca
também o movimento corpóreo das bacantes, pois o transe dionisíaco
começa nos pés, e, assim, a mulher salta, pula, jorra de si mesma. O mesmo
movimento perpetua-se e ratifica o valor desse gesto quando Dioniso instrui
Penteu sobre como empunhar o tirso5 corretamente, com a mão direita, ao
mesmo tempo em que se levanta o pé direito (vv. 943-944).
Vemos, assim, que Dioniso está ligado às forças da natureza – indica
o viver na selvageria. Dessa maneira, forma um par de oposição com Penteu,
que representa o viver na cultura. Propomos que tal antagonismo possa ser
visto também em termos geográficos: de um lado, temos Dioniso, que está
ligado a Creta, às divindades femininas, ao múltiplo, às forças descontroladas
da natureza, não-domesticadas, naturais e inatas ao homem, que deve estar
em comunhão com a natureza; de outro, Penteu, que representa a Atenas
racional, apolínea, singular, regrada e de total supremacia masculina. Tendo
citado Apolo, há mais uma interessante informação que a peça de Eurípides
nos oferece. Já trabalhada por muitos autores, como Nietzsche, a saber: a
oposição entre Apolo e Dioniso é um símbolo utilizado para diferentes áreas
de conhecimento, até mesmo para classificar escolas literárias. Mas Tirésias,
repreendendo Penteu por este negar-se a prestar culto a Dioniso, afirma a
respeito do deus (vv. 298-300 e 306-308):
Profeta é também este deus, porquanto o transe báquico e o
delírio têm grandes poderes divinatórios. É que, quando o deus
penetra com força no corpo, faz com que as pessoas em delírio
possam predizer o futuro.
(…)
Ainda hás de vê-lo nas rochas de Delfos, a saltar com archotes
de abeto nas planuras de dois cumes, brandindo e agitando o
báquico ramo: como ele será grande através da Hélade!
Em seguida, o coro (formado por mulheres bárbaras que
acompanham Dioniso de cidade em cidade) responde, nos versos 328-329:
3
P. 105.
4
P. 105.
5
O tirso é um bastão enfeitado com hera e ramos novos de videira.
173
Ó ancião, tu não ultrajas Febo com as tuas palavras; e, ao
prestar honras a Brômio6, o grande deus, és sensato.
Segundo Mario Vegetti7, tentou-se integrar, na Antiguidade,
Dioniso e Apolo, dois diferentes aspectos do sagrado. E para tal, chegou-se
a instalar Dioniso junto a Apolo no templo de Delfos, para ser adorado
como seu irmão. Fora da religião oficial, no Orfismo, eram eles grandes e
importantes divindades, lado a lado.
Lembramos o discurso de Tirésias nos versos 266-318, segundo o
qual, Deméter e Dioniso são os deuses mais consideráveis, pois abastecem
os homens com o sólido e o líquido – Deméter, os cereais; e Dioniso, o
vinho – ambos estão, portanto, ligados a terra e a sua fertilidade. Ao final
de seu discurso, ele ressalta importante característica dos rituais: quem for
realmente sensato não se corromperá, nem no meio das bacanais. Ou seja,
as orgias – palavra que significa “mistérios de Baco” ou “qualquer
cerimônia religiosa” – fundamentavam-se na comunhão com a natureza, no
encontro com o verdadeiro “eu”; bem diferente, portanto, do que o rei
Penteu esperava (e desejava) encontrar. A partir daí, estreitam-se ainda
mais os laços existentes entre Deméter e Dioniso. Esses deuses, que são a
personificação da fertilidade, caminham juntos desde Creta, onde havia o
complexo “Deusa Mãe/Touro Divino”, e lugar em que foram encontrados
relevos decorativos que mostram a Deusa Mãe dando à luz o touro sagrado.
Acreditamos que esse passado de Dioniso tenha sido uma influência para
que ele não se encaixe nos padrões misóginos do V século a.C.,
evidenciando mais uma diferença sua em relação ao rei de Tebas, que
afirma a Dioniso (vv. 510-514):
E essas mulheres que trouxeste contigo para serem comparsas
das tuas malfeitorias, ou as vendo, ou ponho termo ao ruído das
suas mãos a bater nos tamboris, e apodero-me delas como
escravas, para as pôr ao tear.
Nesse embate, Dioniso versus Penteu, vê-se como o deus representa
uma tradição primitiva, anterior, até mesmo matriarcal, mas ao mesmo tempo
ele é o novo, pois quer resgatar e trazer à tona esses valores da natureza
humana, ofuscados pela racionalidade (que é opressora do inconsciente).
Exatamente aí reside a perseguição promovida por Hera (além de Dioniso ser
um filho bastardo de seu marido Zeus): ela luta para impedir que o mundo
6
Brômio é outro nome de Dioniso, é o ruidoso e palpitante.
7
P. 240.
174
volte “a cair na ferocidade desregrada do estado natural”8. Erroneamente, o
trono é passado, por Cadmo, para Penteu, seu neto, um tirano assoberbado
que baixa leis visando a impedir o culto a Dioniso9.
Por que Penteu nega tão furiosamente o culto? A partir desse
questionamento, vamos observar alguns aspectos do ritual. A cada três
anos, em pleno inverno, um grupo de mulheres (o chamado tíaso),
embrenhava-se na vegetação de montanhas, como o Parnasso, vestidas com
leves túnicas, descalças, os cabelos enfeitados por ramagens de hera e
videira, e tirso em punho. Elas próprias tocavam flautas e tamboris, e
dançavam freneticamente diante do ritmo acelerado promovido pelos
instrumentos musicais – cabe ressaltar que os instrumentos de percussão
eram próprios dos rituais em honra ao deus do vinho. Essas atividades
preparavam as participantes para o grande momento do êxtase. Tomadas de
poder sobre-humano, eram capazes de atos como fazer jorrar leite de uma
simples pedra. Além disso, possuíam tal força divina que as permitia caçar,
estraçalhar (sparagmós) e matar um animal com as próprias mãos; em
seguida, praticavam o ritual da omofagia, alimentação de carne crua, daí
um dos nomes de Dioniso ser Omádio, o que se alimenta de carne crua. As
mênades, como também eram chamadas as seguidoras de Dioniso, tinham
durante o ritual seu momento de total afastamento da vida doméstica e das
atividades cotidianas. Na floresta, espaço do desconhecido, prestando
honras ao deus, encontravam a natureza, e com ela entravam em comunhão,
expressando os atributos da ausência de controle da figura masculina.
Acontece que Dioniso provoca esses laços imediatos entre homem, animais
e natureza, proporcionando experiências10 para além da cidadania apolínea
(o mesmo ocorre com as demais religiões de mistérios). E não eram apenas
as mulheres que se sentiam atraídas para o dionisismo, mas também
estrangeiros, escravos e todos aqueles concentrados à margem da
comunidade políade. Especificamente no que diz respeito aos estrangeiros,
há referências ao longo da peça, e o deus chega mesmo a afirmar que entre
os bárbaros é possível encontrar maior sensatez do que entre os helenos (v.
484), que passaram um longo tempo envolvidos na Guerra do Peloponeso.
E seu ritual tem dois princípios fundamentais: êxtase e entusiasmo, por
8
VEGETTI, M. p. 239.
9
Lembremos que Cadmo tinha um filho homem: Polidoro, que, sendo homossexual, não herda o trono.
Trata-se de um dado importante para que se tenha noção de que a sexualidade na Grécia antiga era
regrada.
10
Op. cit. p. 245.
175
meio dos quais o homem experimenta a superação de suas limitações,
ultrapassando a barreira que o divide do imortal. Assim como o Orfismo, os
mistérios dionisíacos buscam uma paz e uma harmonia que não eram
condizentes com a realidade bélica daquela sociedade e nem com a religião
olímpica. Para citar outro exemplo da proposta de igualdade social desse
deus, recorremos às palavras proferidas pelo sábio Tirésias (vv. 204-209),
personagem do drama, que prestará culto a Dioniso:
Haverá quem diga que não tenho respeito pela minha velhice, ao
preparar-me para dançar, de cabeça coroada de hera?
É que o deus não distingue se é o jovem ou o mais idoso o que
deve dançar, mas da parte de todos quer receber honrarias por
igual; quer ser engrandecido sem discriminar ninguém.
Marcante diferença de tratamento observa-se entre Dioniso e seus
seguidores, e entre Penteu e seus serviçais. Naquele caso, há compreensão,
respeito e devoção, não sendo demonstrados traços de temor por parte do
coro de mulheres, que adoram e defendem seu deus. Elas certamente têm
seus olhos voltados para o céu e orgulham-se de seu caminho, o qual
trilham sem sentirem-se obrigadas ou oprimidas. Já neste, a situação não é
a mesma, e no lugar daquela compreensão, está a submissão, e lá onde se
tem respeito, aqui se manifesta medo, e, por fim, a devoção para com esse
deus das massas é a subserviência dos trabalhadores da corte de Penteu.
Voltamos a questionar: por que Penteu nega tão furiosamente o culto?
Somando-se ao caráter libertário de Dioniso, acima apresentado, o fato de ter
Penteu recebido o trono de forma não correta, temos por hipótese que o tirano
temia perder o controle de Tebas para Dioniso, que, afinal, era seu primo, filho
de sua tia materna Sêmele. O que o rei não entendia era que Dioniso não
buscava esse tipo de poder, ele apenas queria ser honrado e considerado tal
qual um deus, oferecendo em troca seu arrebatamento. Ao mesmo tempo,
Dioniso tinha o apoio de segmentos que eram excluídos da participação ativa
na pólis: escravos, estrangeiros e mulheres, seres à margem da cidadania.
Trata-se, portanto, de um outro poder – diferença essa notável em vários
momentos da peça, mas sobremaneira nos versos 655-656, que tanto dizem, a
respeito da oposta noção de sabedoria que cada um possui:
Penteu
És muito sábio, menos naquilo em que devias sê-lo.
Dioniso
Aquilo em que mais se deve ser sábio, disso sou eu sabedor.
176
Penteu julga que “o estrangeiro” não é sábio no que deveria ser –
presumimos que se refira a atitudes como respeitar ao comando real e
obedecer à lógica precisa, afinal, trata-se de um típico tirano e sempre faz
menção ao saber comandado pela razão. Por outro lado, “o estrangeiro”
considera-se, sim, sabedor do que se deve saber: conhece aquela experiência
mais profunda, citada anteriormente, que está para além da cidadania, pois o
dionisismo pressupõe liberdade para o homem. Confundindo-se com a
própria videira, os participantes necessariamente cometem deicídio (e
teofagia), e assim o deus é “iniciado” em seus próprios mistérios cada vez
que se corta uma videira, pois é o próprio deus que se partilha.
Acreditamos que não se trata de separar o que é lógico e o que não o
é, e sim, antes, trata-se de definir qual o parâmetro para lógica, o que torna
mais complexo o tema, pois parte-se para o ponto de vista; assim, Dioniso
está apenas relacionado a uma lógica outra. As leis jurídicas podem
modificar-se, as leis de Penteu podem ser revogadas; em contrapartida, as
pulsões inconscientes e naturais, embora possam ser proibidas ou permitidas,
não podem ser alteradas por meio de comandos de permissão e proibição –
elas apenas existem, e dentro de cada ser humano. Citando Dodds11, “a moral
das Bacantes é que ignoramos à nossa custa a exigência, por parte do espírito
humano, da experiência dionisíaca”. Para Penteu e sua mãe, a experiência
dionisíaca foi bastante dolorosa, pois o contato com o deus realizou-se por
meio de sua face cruel – pois Dioniso tem essa ambigüidade marcante,
oferece a comédia e a tragédia, a alegria arrebatadora, eudaimonía, e a
desgraça horrenda. Como diz o coro (vv. 417-426):
O deus, filho de Zeus,
Compraz-se em festins,
Ama a Paz, que concede o bem-estar,
A deusa criadora dos jovens.
Em igual medida, a ricos
E modestos outorga do vinho
O deleite sem pena.
Mas aborrece aqueles que não cuidam,
De dia ou durante a noite amiga,
11
P. xlv.
177
De viver o bem-estar
Com ódio por aqueles que caluniam sua mãe e não realizam as
libações, insufla-lhes a sua manía, fazendo-os descer a uma condição
animalesca, e a tomarem parte nas bacanais. Nesse ponto, há consideráveis
divergências interpretativas, no que se refere ao estado atingido por Penteu. O
deus da alteridade provoca mudanças nos homens que partilham a experiência
dionisíaca, Penteu parece finalmente perder a máscara (elemento tão
fundamental nesse mito) e deixar vir à tona, ainda que forçosamente, o que está
em seu inconsciente, algo tão freudiano (e tão anterior ao próprio Freud), o seu
desejo em ver a mãe em meio às bacantes, e todas “como aves que acasalam,
presas na doçura do amor” (v. 958); chega até mesmo a visualizar a epifania
tauromórfica do deus, vendo-o como um touro dotado de chifres (v. 920).
Retomando a dualidade do deus, a jornada do rei aos seus delírios íntimos não
é prazerosa, pois Dioniso zangou-se – não quer mais partilhar com ele as
maravilhas sobre-humanas da experiência dionisíaca, quer, sim, que ele passe
pelo ritual do sparagmós, sendo destroçado pelas bacantes, que nele vêem um
animal. Penteu incorpora-se ao estado da natureza, da selvageria que ele tanto
luta para não integrar e/ou pertencer.
Referências bibliográficas:
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Bertrand Brasil, 1999.
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70, 1998.
ISIDRO PEREIRA, S. J. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 6ª ed.
Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1984.
NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. Trad.: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães, 1978.
SOUZA, E. de. Dioniso em Creta. [In: Dioniso em Creta e outros ensaios: estudos
de mitologia e filosofia da Grécia antiga. SP: Duas cidades, 1973.]
VEGETTI, M. O homem e os deuses. [In: VERNANT, Jean-Pierre (dir.). O homem
grego. Trad.: Maria Jorge Vilar de Figueiredo. [Lisboa: Editorial Presença, 1994.]
178
HERÓDOTO E O ESTRANHO MUNDO DOS CITAS
Tatiana Oliveira Ribeiro
179
inova ao estabelecer uma comparação entre os relatos e ao formular juízos
acerca da probabilidade intrínseca a cada uma das histórias recolhidas.
Conforme pontua Arnaldo Momigliano em La Historiografia Griega
(1984: 12), o historiador jônico parece ter sido o primeiro a operar uma
descrição analítica de guerra – da Guerra Pérsica; primeiro a utilizar dados
etnográficos na tentativa de explicação da guerra e suas conseqüências.
Na forja de sua verdade histórica, Heródoto muitas vezes privilegia
a verossimilhança em detrimento da percepção empírica das fontes. Em
seus variados lógoi, seus relatos, o Historiador não só apresenta os
caracteres, os éthe, de alguns soberanos asiáticos, como também, em
muitos casos, opera a descrição geográfica e etnográfica de povos,
sublinhando seus costumes, seus nómoi, e ressaltando as diferenças e
semelhanças que estes guardam com os gregos. Gregos esses que ali são
sempre o parâmetro para a observação de qualquer cultura outra.
Conforme ressaltou François Hartog em O espelho de Heródoto (1999
[1980]: 45), os citas aparecem, nas Histórias, como um outro privilegiado. São
eles, depois dos egípcios, o povo sobre o qual o Historiador apresenta a mais
longa exposição, ocupando, o lógos cita, quase que inteiramente o livro IV de
sua obra (caps.1-144; o livro IV estende-se até 205).
Ainda que esses dois povos mereçam uma descrição minuciosa por
parte do Historiador, egípcios e citas representam na obra de Heródoto, em
seu projeto de construção identitária grega, um duplo aspecto da imagem
do outro. Se por um lado os egípcios surgem como o extremo da alteridade,
como homens que “vivem num clima outro, à margem de um Nilo de
natureza diversa da dos demais rios, e que adotaram, em quase todas as
coisas, costumes e leis inversos aos de todos os outros homens” (II, 35);
por outro, são eles portadores de uma cultura fundadora. Na terra do Nilo,
Heródoto mergulha em um passado bem distante, anterior mesmo à noção
de unidade helênica, e discursa sobre as origens que geram um discurso
sobre a Grécia e sua cultura. É precisamente essa antigüidade, quiçá
ancestralidade, que permite que o Egito seja visto, no imaginário grego,
como uma Escola da Grécia, o modelo inspirador de sua organização
religiosa – de seu panteão, dos nomes dos deuses.
Já os citas, também extremo de alteridade, são representados de
modo a evocar a imagem de um mundo que traduz um primitivismo, que
tange a fronteira da esfera do selvagem, e que pode mesmo trazer à
lembrança a imagem da terra dos Ciclopes, descrita por Homero em sua
Odisséia (IX, v.106 ss). À semelhança do território dos Ciclopes, a Cítia é
180
apresentada como espaço não cultivado, desprovido de sociabilidade,
isolado e sem limites determinados. Os citas de Heródoto não cultivam a
terra, não possuem cidades nem muralhas, nem moradia outra senão suas
próprias carroças. Seus limites são demarcados pelos rios, que lhes servem
de defesas naturais (IV, 46).
Ao contrário do Egito, o território cita “nada possui que possa
despertar o maravilhamento, exceto os rios que o banham” (IV, 82).
Acerca de seu papel na obra de Heródoto, como lembra ainda
Hartog (1999 [1980]: 245-51), poder-se-ia dizer que o thôma – que é o que
se sente diante do absolutamente diferente, do maravilhoso, do curioso;
algo como o espanto – é um produtor geral da narrativa, à medida que é ele
o determinante da composição, do que deve ser dito ou escrito. É
exatamente isso o que afirma Heródoto, no livro II. 35, ao narrar sua
trajetória no Egito: “passo então ao Egito, prolongando meu discurso, pois
encerra mais maravilhas do que qualquer outra região e oferece o maior
número de obras que ultrapassam o que se pode dizer delas”.
Já nas palavras iniciais de Heródoto, no famoso proêmio de suas
Histórias, fica claro o relevo do conceito de thôma: “Esta é exposição da
investigação de Heródoto de Halicarnasso, para que nem os feitos dos
homens sejam esquecidos com o tempo, nem as grandes e maravilhosas
ações (érga thomastá) realizadas tanto pelos gregos, quanto pelos bárbaros
fiquem sem glória”.
Nômades e não possuidores de thomasía alguma, a representação
dos citas vai-se construindo na narrativa herodotiana por meio de uma série
de negações: no que concerne ao modo de vida, os citas não comem pão,
não lavram a terra, não semeiam, não habitam casas, não possuem cidades e
muralhas. Privados do estatuto de ‘comedores de pão’ (sitóphagos), não se
pode perceber na terra dos citas o que se identificar-se-ia como o ‘trabalho
dos homens’ (cf. Hartog, 2004 [1996]: 34). Ocupantes do território cita, os
arimaspos (IV, 13 e 27) , assim como os ciclopes de Homero, são seres de
um só olho, sem leis, desconhecedores da agricultura.
Quanto aos costumes religiosos, os citas não possuem templos,
estátuas, nem altares; quando sacrificam, não acendem fogo, não
consagram primícias, não aspergem libações. Todo esse conjunto de
negações, como bem observou Hartog (1999 [1980]: 223), faz dos citas, em
certa medida, a imagem do não civilizado, traduz a imagem do nômade
como ápolis. E para os gregos, mais precisamente para os gregos da Atenas
do V século que constituíam a audiência de Heródoto, é justamente a pólis,
181
com suas instituições, que consolidava sua identidade. Ser ápolis era,
portanto, para aquela audiência um quase não ser ninguém. Uma condição
potencialmente trágica, na qual se encontraram temporariamente o Édipo
sofocliano, o Hipólito euripidiano e o Polinices esquiliano.
Território de confins, a Cítia representa no imaginário grego o
espaço do deserto, o território inóspito. Nos versos iniciais (1-2) do
Prometeu Acorrentado, é para a Cítia que o herói da tragédia esquiliana é
conduzido, a fim de ser encadeado por ordem de Zeus; conduzido para uma
'terra longínqua', o território dos Citas, 'deserto sem humanos'. O
distanciamento da terra cita é mencionado ainda no verso 416 do Prometeu
Acorrentado, onde se lê que as hordas citas ocupam 'os confins do mundo',
um espaço para além da cultura.
O tratado hipocrático Ares, águas e lugares, apresenta também uma
descrição da terra cita, onde se tem que “o chamado deserto dos citas é um
platô, coberto de pradarias (...) Precisamente nesse lugar os citas passam a
vida, e são chamados de nômades porque não possuem casas, mas moram
em carroças” (XVIII. 2).
É a partir desse imaginário da Cítia construído pelos gregos como
espaço do deserto e território dos confins que Heródoto opera sua
representação dos citas. Não obstante, o Historiador não se limita a
reafirmar essa imagem da terra Cita, o que, em certa medida, significaria
reduzir sua classificação. Heródoto nos apresenta uma Cítia que é formada
por vários desertos e por várias margens; seus citas, longe de constituírem
um povo único, apresentam-se como uma pluralidade de povos que habitam
um território ocupado também por homens de outras raças. Homens que
possuem um nómos distinto e, por vezes, graus diferenciados daquilo que
os gregos entendiam por selvageria. Os andrófagos, por exemplo, são os
que conservam hábitos mais selvagens, não considerando a justiça, não se
valendo de nenhum nómos (IV. 106).
É a partir desse inventário das diferenças que Heródoto constrói
sua imagem dos Citas. Ocupantes de espaços diversos, detentores de
caracteres diversos e nómos distinto, os citas têm por traço fundamental o
nomadismo. Passam da Ásia à Europa, caracterizando-se sobretudo pela
mobilidade. Não europeus, os citas de Heródoto são asiáticos que transitam
entre mundos, sem reconhecer a separação fundamental entre Europa e
Ásia. (Woortmann, 2000: 27). Sem cidades, sem muralhas, sem semeadura,
os citas têm por 'código de sua alteridade' o nomadismo, como bem
ressaltou Hartog. Assim, no imaginário dos gregos, que tanto prezavam a
182
vida na cidade; e sobretudo dos Atenienses, que tanto reivindicavam sua
autoctonia, os citas são aqueles que não têm lugar, que não delimitam
fronteiras e que talvez pudessem mesmo ter por nome de 'ninguém'.
Referências bibliográficas:
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183
TEXTOS BAILARINOS
Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa
Introdução
Apresento-lhes algumas reflexões sobre a inserção de ‘citações’ de
narrativas míticas em textos de Plutarco e de Luciano com o intuito de
mostrar movimentos que se dão de um texto para outro, bem como os
efeitos de expansão do pensamento provocados nesses movimentos, que
chamo de ‘dança textual’ e ‘dança cognitiva’.
Subjaz a essas metáforas, um tanto simplórias, é verdade, o
entendimento do texto como uma produtividade1 nos moldes de Kristeva,
ou seja, o texto será tratado como uma infinidade dinâmica e
translingüística.
Gostaria ainda de evidenciar, sustentada por Genette, que observo
o texto como o resultado de um processo que procura “fazer o novo com o
velho”. Contudo, no que diz respeito a Genette e aos textos específicos que
vou discutir, não se trata de fazer o novo com o velho ‘palimpsestamente’,
porque não há nesses textos que ora observo a intenção de produzir objetos
mais complexos e mais atraentes do que os que antes foram ‘fabricados’.
Poderíamos talvez afirmar que o texto de Luciano, aqui observado, parece
propor uma função nova que se superponha à antiga para sofisticá-la2, mas
ao contrário do que afirma Genette, essa prática atua no sentido de
simplificar o modelo original.
Sem dúvida, além de conceitos forjados por Kristeva e Genette,
sustento-me em conceitos advindos dos estudos teóricos de Bakhtin, o
conceito de dialogia e polifonia. Mas, no caso dessa exposição, não se trata
de usá-los em sentido estrito, pois nos textos de Plutarco e de Luciano que
vou abordar as vozes que surgem têm independência relativa e não total
como a que propõe Bakhtin em sua obra Problemas da poética de
Dostoiéviski. Acrescente-se que tais vozes não se colocam em contraponto,
1
Segundo Kristeva, o texto é produtividade e isso significa que “1- sua relação com a língua da qual faz
parte é redistributiva (destrutivo-construtiva) sendo por conseguinte abordável através de categorias
lógicas mais do que puramente lingüísticas; 2- e uma permutação de textos, uma intertextualidade: no
espaço de um texto, vários enunciados, vindos de outros textos, cruzam-se e neutralizam-se.”
(KRISTEVA, 1980, p. 143).
2
Essa intenção manifesta-se em outros textos de Luciano que não o que aqui tratamos.
184
mas em graciosa parceria. Elas formam, antes, um par que dança num
espaço delimitado. Não as vejo como se cada membro, isoladamente,
produzisse diferentes movimentos de dança. Elas, a partir de um centro de
gravidade, fabricam movimentos de expansão conjunta ao som de muitas
outras vozes.
Tenho, portanto, motivos para não me servir dos termos
tradicionalmente estabelecidos. Esclareço, então, que tomo a metáfora da
dança porque minhas pretensões são mais pontuais e limitadas. Pretendo
apenas observar uma concordância graciosa que produz, em um só espaço e
em uma só cadência, um movimento em grau elevado de harmonia,
mobilidade e leveza e, em seguida, mostrar que esse movimento que se faz
ao som agradável de uma polifonia mítica, ou seja, passado e presente se
tornam um tempo fora do tempo. Assim, o que faço, é localizar diálogos –
em ‘pas de deux’ - e neles realçar movimentos de expansão que se fazem
ao som de uma combinação agradável de vozes atemporais. Pensamos em
um bailado lingüístico e simbólico.
Plutarco e Homero
Sacerdote de Delfos, Plutarco3, foi autor de inúmeras obras, dentre
elas um conjunto muito conhecido de textos que a tradição reuniu sob o título
de Vidas. Dentro do corpus de obras que lhe são atribuídas, há uma diatribe
(exercício de conversação), intitulada Po/teron ta\ th~j yuxh~~j h22 ta\ tou~
sw/matoj pa/qh xei/rona - Se os sofrimentos da alma são piores que os do
corpo, encontrada no Catálogo de Lâmprias4, sob o nº 208, que nos parece
interessante para abrir o nosso assunto. Embora sua autenticidade seja
questionada, o trecho segue grosso modo o estilo de Plutarco. Willamowitz
acreditava que essa diatribe poderia integrar um tratado maior juntamente
com outro intitulado Se o vício pode causar infelicidade. A nossa escolha,
porém, deveu-se a dois motivos: ao fato de que Plutarco soube, como
ninguém, escutar vozes passadas e colocá-las em harmonia em suas obras e à
3
Nasceu em Queronéia, Beócia, por volta do ano 45 de nossa era e veio a falecer em 120. De família
nobre, seu pai era Autóbulo, seu avô Lâmprias. Aprendeu filosofia e matemática com Ammonio, um
filósofo neo-platônico. Assumiu muitos cargos públicos. Foi sacerdote de Delfos, onde revitalizou o
culto a Apolo. O Catálogo de Lâmprias atribui a Plutarco 227 obras, das quais se conservam 78 títulos.
Esquecido na Alta Idade Média, Plutarco veio a ser divulgado pelo trabalho do bizantino Maximus
Planudes. Sua obra foi vertida para várias línguas no período do renascimento.
4
Na época medieval esse material menor foi reunido sob o título de Moralia, juntamente com textos
referentes a retórica, temas religiosos, filosóficos e literários.
185
riqueza e amplitude que uma só de suas citações – que vou examinar aqui –
pôde angariar para o texto que a acolheu.
Em Se os sofrimentos da alma são piores que os do corpo, Plutarco
discorre sobre a origem dos males na vida humana e sobre os efeitos que as
doenças e vícios têm sobre o corpo. Nessa proposta, como lhe é habitual,
Plutarco fundamenta suas hipóteses e sugestões em autores diversos, de
épocas diversas. Na diatribe que estamos investigando, o sacerdote de Delfos
abre sua fala a partir de Homero, que é citado nominalmente nesses termos:
186
afirmar que tanto no corpo quanto na alma vivemos em meio a uma guerra
e guerra que não é de pouca monta!
Mas o que significa estar em guerra na Antigüidade?
Desnecessário é afirmar que ela faz parte do dia-a-dia dessas sociedades
antigas. Recordemos da guerra dos poemas, a guerra de Tróia, ou das
magníficas guerras Médicas, ou da fratricida guerra do Peloponeso...
Porém, dentre as muitas guerras do mundo antigo, Plutarco escolheu a
remotíssima mítica e épica guerra entre os gregos e os troianos. Essa
articulação consciente e intencional do autor intenta, e realiza de fato,
assimilar o discurso homérico no nível simbólico, semântico e lingüístico.
Quando digo que Plutarco intenta assimilar o discurso homérico no
nível simbólico refiro-me a um movimento provocado pelo autor que leva
seu ouvinte para um tempo que não é histórico, um tempo que não é tempo
mas literatura mítica, que por ser fora do tempo está na literatura e em
todos os tempos, abarcando-os e envolvendo-os. Quando digo que Plutarco
assimila o discurso homérico no nível semântico, digo que ele nos leva
para o campo semântico, ou melhor, para o espaço de um campo de
batalha. Por fim, ao afirmar que Plutarco assimila o discurso homérico no
nível lingüístico, refiro-me ao processo de produção de um texto, o Se os
sofrimentos da alma são piores que os do corpo, que incorpora em si dois
versos preciosíssimos do canto 17 da Ilíada.
Assim é que Plutarco está dançando no escuro mítico, mas com
Homero, não com Lars Von Trier. Harmonia simbólica, dialogia e
polifonia bakhtiniana que sai do espaço do texto e invade o mito; cadência
guerreira de hexâmetros, passos de uma dança que se realiza no campo de
combate e no espaço da arenga de quem fala. Agora, Homero e Plutarco
fazem par na dança viva e cruenta de Ares e nós, os ouvintes e leitores de
Plutarco, aprenderemos que nosso corpo e nossa alma enfrentam inimigos
terríveis, inimigos interiores. Nas palavras do próprio Plutarco:
sauto\n e2ndoqen a0noi/ch||j, a ti mesmo, por dentro, se abrires, coisa
poiki/lon ti kai\ polupaqe\j variada e susceptível a muitas afecções,
kakw~~n tamiei~~on eu9rh/seij kai\ encontrarás; um celeiro de males, um
qhsau/risma w#j fhsi tesouro - como disse Demócrito - que
Dhmo/kritoj, ou0k e1cwqen não vem de correntes externas, mas
e0pirreo/ntwn, a0ll’ w3sper como coisas que têm fontes profundas e
e0ggei/ouj kai\ au0to/xqonaj autóctonas, através das quais brota a
phga\j, e)xo/ntwn, a4j a0ni/hsin h9 maldade que é transbordante e
kaki/a polu/xutoj kai\ dayilh\j abundante por causa das paixões.
ou]satoi~~j pa/qesin.
187
Regendo os passos da dança, Plutarco, ao citar Homero, define sua
individualidade, estabelece uma assinatura, marca sua leitura e toma o
poeta antigo para fazer dele seu ‘partner’, para tomar dele, como se toma
de um parceiro de dança, concordância de movimentos no compasso de
guerra. Nessa perspectiva, marcados pelo ritmo do combate, vamos analisar
qual guerra será mais temerária: se a que trava o corpo com as doenças ou
se aquela que amarga a alma com seus vícios.
Entretanto, vale detalhar um pouco mais. Lembremos com que ardor
os guerreiros descem de seus carros e em que duelos bem orquestrados e
‘coreografados’ eles combatem até que um deles morda com os dentes a terra.
Recordemos as panóplias. Cada guerreiro com a sua. O escudo, as couraças
metálicas decoradas com emblemas apotropaicos, o capacete, as perneiras
(cnêmides), as braçadeiras, a lança de madeira com ponta aguda de ferro ou
bronze e a espada curta para o combate corpo a corpo.
– Mas, afinal, em que ponto de Homero estamos? Onde estão os
versos citados por Plutarco? - No canto das façanhas de Menelau.
Pátroclo, que tinha entrado em combate revestido pelas armas de
Aquiles, foi abatido pelos troianos. Menelau se pôs a girar à volta de seu
cadáver. Vigiava, com lança e escudo, o corpo inerte de Pátroclo. Contra
Menelau avançava Euforbo. Homero compara Euforbo a uma pantera, a um
leão e mais, a um javali feroz que deseja os espólios sangrentos da vítima.
Menelau, aos gritos, rechaça o inimigo que avança.
Bastava recuperarmos a visão dessa cena e imediatamente
perceberíamos o tom de toda a diatribe de Plutarco. Há um corpo inerte
sobre o qual avançam os inimigos. Há um defensor forte e bem equipado.
Mas vamos além, mesmo porque estamos somente nos versos que vão de 9
a 30 e a citação de Plutarco está, exatamente, nos versos 446 e 447.
Diante dos gritos de Menelau, Euforbo não esmorece e ataca. Ele
quer não só o espólio de Pátroclo, mas a cabeça do Atrida que defende seu
corpo. Deseja levá-la e entregá-la ao pai Panto como desagravo pelo irmão
morto em combate pelo mesmo Menelau.
Reagindo, o Atrida atinge o adversário na garganta e atravessa-
lhe o pescoço. Euforbo tomba por terra. Agora é Menelau quem será
comparado a um leão e, através de comparações, o mundo animal convive
com o humano. Estamos no verso 61.
Contudo, logo e poderosamente, sobre Menelau, por ordem de
Apolo, investe Heitor. Menelau desanima e reflete consigo: ‘Que fazer,
188
desistir do espólio precioso de Euforbo e abandonar o corpo de Pátroclo
ou enfrentar Heitor e seus companheiros?’ Entre dois corpos inertes, o de
Euforbo, que lhe confere um bem material, o espólio e o de Pátroclo que
significa um valor moral, Menelau se divide e, com pesar, como um leão
acuado, abandona o corpo de Pátroclo. Todavia, avistando Ájax, grita por
auxílio e atravessam, ambos, com furor, as primeiras fileiras. Alcançam
Heitor, que já arrasta o corpo de Pátroclo, porque pretendia cortar-lhe a
cabeça e jogar o restante para os cães. Mas Ajax, contra Heitor,
circundando o corpo inerte de Pátroclo se põe como um leão ao redor dos
filhotes. Recua o filho de Príamo carregando consigo as armas sobre-
humanas de Aquiles que revestiam o corpo do filho de Menetes.
Plutarco é atento para as vozes do canto 17. Ouve os brados de
Menelau, vê o movimento de assistência de Ájax e aprende que na defesa do
corpo inerte daquele que está acometido de afecções também os gestos devem
ser os mesmaos. Plutarco aprendeu a coreografia do combate e diz que
“ei]q’ oi9 me\n kalou~~si tou\j “... Então, porque percebem do que
i0atrou/j, ai0sqa/nontai ga\r w[n precisam contra o que os fazem doentes
de/ontai pro\j a4 nosou~~sin: oi9 de\ uns chamam os médicos; outros fogem
feu/gousi tou\j filoso/fouj...” dos filósofos...” assim pensando
[...] le/gomen o3ti koufo/tero/n “dizemos que é mais leve a cegueira que
e0stin o0fqalmi/a mani/aj kai\ uma loucura e a gota que um delírio, já
poda/gra freni/tidoj, o9 me\n que o que as percebe chama o médico
ga\r ai0sqa/netai kai\ kalei~~ to\n aos gritos.”
i0atro0n kekragw/j.”
189
Mais numerosos, os Aqueus começam a vencer a batalha. Em
debandada os troianos fogem, entretanto Hipoto, furtivo, já arrastava o
corpo de Pátroclo pelo pé quando foi ferido por Ájax. A disputa recrudesce.
Entra em cena novamente Heitor e com ele Forco. Ájax rechaça-os todos.
Apolo incita Enéias, que se junta a Heitor. Na refrega morrem Leócrito,
Apisaon e Esquédio. Os melhores, inimigos entre si, cercavam o corpo
inerte de Pátroclo no combate que perdurou todo o dia até que os cavalos
de Aquiles, imóveis, com a cabeça inclinada para o chão, saudosos de
Pátroclo, começam a chorar. Comovido, Zeus lamenta a sorte deles e
exclama, no verso 446, que não há nada ‘mais miserável que o homem de
tudo quanto sobre a terra respira e também se arrasta.’ Ei-nos no verso que
buscávamos. Vejam a amplitude que ganha o texto de Plutarco
acompanhado pelas muitas vozes míticas que falam em Homero. Zeus é
seu verdadeiro emissor. Na voz de Zeus retumba a triste sentença.
Tomemos o ‘leitmotiv’ do canto: a disputa pelo corpo de Pátroclo e
pelas armas de Aquiles. Posse e proteção fazem par nesta dança de guerra.
Atemporais, posse e proteção fazem par na diatribe de Plutarco. Homero e
Plutarco dançam em ritmo de guerra uma dança pela vida. A apropriação de
Homero – é certamente muitíssimo oportuna e familiar para o ouvinte de
Plutarco. O pranto dos cavalos falantes diante da degradação dos corpos
combatentes por causa da desmedida e da ambição revela o absurdo a que o
ser humano pode chegar. A adequação e propriedade dessa citação se fazem
na disputa por um corpo; no ataque de inimigos; na desmedida e furor dos
atacantes; na passividade do corpo e, por fim, no pedido de auxílio.
Luciano e Faetonte
Contudo o que nos leva a aceitar com facilidade uma verdade
construída pela associação de vozes remotas de um tempo em que cavalos
podem falar, um tempo em que deuses combatem junto a homens? O que
nos leva a aceitar o mito e entender a situação de um corpo que no nosso
tempo se expõe a inimigos de todo o tipo e que combate com eles em lutas
homéricas?
Sabemos que mitologia é recorrente na literatura antiga. Sabemos,
também, que os autores antigos nada têm de ingênuos. São autores que
sabem que fazem literatura e que discutem entre si a melhor forma de fazê-
la. Ora, destas coisas sabendo, vamos para a segunda parte de nossa fala na
intenção de mostrar que esses movimentos simbólicos, semânticos e
190
textuais de que falei se dão também no pensamento e adentrando o
pensamento, podemos falar de mitos.
A idéia não é nova, é antiga.
Em um prolaliá5 de Luciano de Samósata, autor do séc. II de nossa
era, há uma crítica mordaz quanto à utilização da mitologia para a
explicação de fatos e realidades ordinárias. Segundo Luciano, existia no
seu tempo uma história que dizia que os álamos às margens do rio Erídano
eram as irmãs de Faetonte, que derramavam suas lágrimas de âmbar pelo
irmão querido que se afogou nas águas daquele rio ao cair do carro do sol.
Pouco sabemos de Faetonte, o filho de Hélios que foi precipitado
céu abaixo. Nosso conhecimento advém apenas de citações e alusões
curtas. Da tragédia Faetonte (frag. Nauck, 779) de Eurípides existem
somente fragmentos.
Qualquer estudioso de cultura clássica vive acostumado e se
satisfaz plenamente com fragmentos e ruínas. Não há lástima nisso, porque,
nessa arqueologia, descobrem-se tesouros, palavras preciosas que
reconstroem mundos e pensamentos. Isto é o que veremos nos versos que
cito agora, pois é por meio deles que aprenderemos qual foi a razão da
queda do Helíada. Trata-se, portanto, de um trecho tirado da fala do
pedagogo que na peça faz as vezes de narrador6, descrevendo o ocorrido
antes da catastrófica queda, quando Hélios dá instruções ao filho para bem
dirigir o carro solar. Hélios diz:
“e1la de\ mh/te Libuko\n ai0qe/r’ “Avança, mas sem jogar [o carro] para o
ei0sbalw/n: lado do éter líbio,
kra~sin ga\r u(gra\n ou0k e1xwn, pois [no éter líbio], que não tem clima
a9yi~da sh\n úmido, tua roda
ka/tw dih/sei ... para baixo vai derrapar7...
i3ei d’ e0f’ e9pta\ pleia/dwn Vai fazendo corrida acima das sete
e1xwn dro/mon... Plêiades...”
tosau~t’ a0kou/sav pai~v Ouvindo tais o menino agarrou as rédeas
e1maryen h9ni/av: E açoitando o flanco das condutoras
krou/sav de\ pleura\ aladas,
pterofo/rwn o0xhma/twn Deixou [as] ir; elas, então, voam pelos
meqh~ken, a4i d’ e1ptant’ e0p’ recôncavos do éter.
5
Prolaliá é o que se chamava de ‘exercício de retórica’.
6
Adoto, de Lesky, a identificação de ‘pedagogo’ para a personagem que fala no trecho. Apud. Diggle in
Phaethon, p.41.
7
Adoto para a tradução a correção do termo grego diései por dioísei. Diggle, Phaethon. Cambridge:
Cambridge University Press, 1970. p. 136.
191
aiqe/rov ptuxa/v. O pai, atrás, montado no dorso de Sírio
path\r d’ o1pisqe nw~ta Cavalgava advertindo o menino: por
seirai/ou bebw\v aqui, vai
i3ppeue pai~da nouqetw~n: Aqui! Vira o carro, aqui.”
e0kei~s’ e1la,
th|de stre/f’ a3rma, th|de....”
8
A palavra grega que significa, estritamente, mistura de elementos – frio com quente, úmido com seco e
que aqui traduzimos por clima é ‘krasin’.
192
Suponhamos que existam apenas duas formas de raciocinar. Parto
de uma divisão arbitrária, mas que julgo funcional. Prefiro refletir sobre o
limitado para, a partir dele, entender o ilimitado. Suponhamos que essas
duas formas sejam as seguintes:
– uma que se utiliza da sensação e que aufere das coisas tangíveis e
sensíveis o conhecimento. Essa forma de raciocínio os gregos chamavam
de ‘aísthesis’.
– e outra que se utiliza do raciocínio que vai para além dos dados
fisicamente percebidos para alcançar o conhecimento pelas coisas
abstratas, menos tangíveis pelos sentidos. A essa forma de raciocínio os
gregos chamavam ‘nóesis’.
Entre os filósofos antigos essas duas linhas de apreensão da
realidade às vezes geram conflitos. Entretanto, na literatura a sensação é
matéria de elaboração de pensamento textual e, nesse sentido, tanto o
pensamento abstrato, a ‘nóesis’, quanto o pensamento concreto, a ‘aísthesis’,
são meios eficazes para a produção de textos. Então, suponhamos que essas
formas de pensamento, esses meios de chegar ao conhecimento possam
interagir uns com os outros, fazendo pares, dançando uma dança cognitiva.
Suponhamos que nesses movimentos o pensamento lógico se insira no
pensamento concreto e que com muita facilidade esse mesmo pensamento
concreto faça o mesmo com o pensamento lógico. Parece-me que a literatura
se constrói por uma reciprocidade dessas formas de pensar, uma certa
‘cortesia’ que mantêm os ‘partners’ durante a dança. Estamos agora num
terreno mais amplo que o do texto, um terreno que meios diferentes de
pensamento que interagem na produção do que talvez se possa chamar de
‘transmidialidade cognitiva’ e que consiste no movimento poético de apagar
a motivação intelectual em favor de associações sensíveis e físicas e, vice-
versa, no movimento poético de apagar as sensações e buscar as abstrações.
A interação e cumplicidade de uma forma de pensamento com a
outra permite a criação de imagens compósitas que devem atingir o que
nunca será visto concretamente, a saber, nas nossas narrativas, os cavalos
homéricos que lamentam a degradação humana, os deuses guerreiros, os
álamos com suas lágrimas de âmbar e o carro de sol9. O acolhimento
9
Muito provavelmente os gregos conheceram os álamos e o âmbar. Aqueles que nunca viram o âmbar
podem imaginá-lo a partir das seguintes características: ele tem a cor amarela, alaranjada, vermelha,
marrom ou dourada. Há também o âmbar azul e verde. É amorfo, fluorescente e tem eletricidade
estática. Quanto ao rio Erídano, alguns dizem ser um rio lendário - e se for assim - também os gregos
desconheciam-no.
193
integral dessas imagens pode ser encarado como uma credulidade ridícula,
um delírio poético, uma narrativa absurda. Porém, afirmo que o
estabelecimento desta ‘dança cognitiva’ para o raciocínio científico e
abstrato é enriquecedor.
Se seguirmos a linha de Luciano no ‘prolaliá’ examinado, as
narrativas fabulosas de um tempo mítico devem ser destruídas porque são
meras charlatanices aprendidas inadvertidamente. Luciano propõe
substituí-las por narrativas produzidas de forma simples, sem mistura, com
desenvolvimento linear e sem qualquer mitologia (haploikòn kaì ámython -
simples e sem mito). Para ele pensar miticamente é mergulhar o objeto
pensado num meio diverso que o comum, a saber, o ar. O resultado dessa
forma de pensamento é um deslocamento e uma ampliação enganadores.
Luciano é arguto, ele define a mitologia pelo processo que hoje chamamos
de refração.
Diante dessa argumentação, não há quem queira tolerar os mitos
como processo razoável para aquisição de conhecimento. Os mitos são uma
interpretação desviante e dilatadora. Sim, Luciano ter-nos-ia (con)vencido
da periculosidade do mito10, da periculosidade que há em se misturar meios
de conhecimento, se não tivéssemos conhecido Plutarco; dele tomaremos
dois outros tratados para resolver o impasse: De Liberis e De audientis
poetis. No primeiro desses, já na sua introdução, Plutarco coloca um
problema que até os dias de hoje inquieta pais e educadores – como educar
os filhos para se tornarem cidadãos livres, homens de bem e felizes? Ele
próprio responde afirmando que se deve evitar a improvisação e os
exageros além de cuidar para não cair na pobreza de estilo que torna o
ensino árido e ineficaz.
Ao tratar do cuidado com o estilo, no tratado De Liberis, Plutarco
demonstra claramente a intenção de desenvolver na criança,
simultaneamente, o gosto e a prática pela filosofia e pelas artes. O autor
justifica-se afirmando que as artes são fontes de prazer e que a filosofia é
remédio para os sofrimentos e para as debilidades da alma. Há que se
ressaltar, contudo, que a filosofia privilegia a verdade enquanto as artes
buscam a ‘mímesis’.
E é nesse ponto que, parece-nos, há uma incoerência na
metodologia plutarquiana. Como sabemos, a prática e o gosto pelas artes
10
Não estou afirmando que Luciano exclui o mito de suas narrativas. Não é isso. Nossas reflexões estão
concentradas apenas no ‘prolaliá’ analisado e neste ‘prolaliá’ ele faz apologia do discurso simples, sem
mitologia.
194
não desenvolvem zelo pela verdade11 (desde a famosa comparação de
Aristóteles na Poética12). Essas questões fazem-nos recordar das
advertências de Luciano.
Felizmente, tal incoerência metodológica será resolvida no
segundo tratado mencionado, De audientis poetis. Esse tratado, que foi
destinado a mestres de poesia, intenta explicar textos poéticos acusados de
ter um caráter condenável, fantasioso, exagerado e mentiroso. Na análise
dos referidos textos, Plutarco repara que os jovens se deleitam com a
variedade. Eles sentem prazer na fantasia e julgam a monotonia cansativa e
custosa13 e só se entusiasmam quando lêem doutrinas filosóficas misturadas
à mitologia. O educador de Queronéia, então, nesse passo, conclui que, no
processo educativo, deve-se observar a mistura.
Lembramo-nos aqui de Faetonte! Lembramo-nos que o ar sem
mistura é perigoso e associando concreto e abstrato, concluímos que a
mistura de formas de pensamento talvez possa ser muito interessante.
Plutarco pensa do mesmo modo. Ele propõe a mistura como um bom meio
para fortalecer o discernimento. Afirma ele que ao mestre cabe a direção de
leitura voltada para a verdade. Por esse raciocínio, a narrativa fantasiosa
inserida na poesia é acolhida e a mitologia passa a ser chamada de ‘merenda
escolar’ por oposição à refeição completa, a filosofia; a mitologia é também
uma ametista enquanto que a filosofia é pedra preciosa de valor eterno14.
Utilizando-se uma vez mais da metáfora alimentar, Plutarco diz que assim
como na cabeça de um polvo há algo bom e algo mau - e é por isso que ela é
saborosa, mas causa pesadelos - assim é a mitologia. Em outro passo, o
moralista de Queronéia conclui que a mescla de vinho com água suprime o
mau sem destruir o útil15. Assim, a poesia, carregada de mitologia, embora
perturbadora e vacilante, é agradável, é útil e alimenta a alma16.
11
Plutarco, em De audientis poetis 17d, afirma que não é fácil compreender a verdade e que a arte
poética – em absoluto – não se preocupa com ela mas com a ‘mímesis’. Para ele, captar a verdade no
meio das coisas é uma ciência difícil, mesmo para os filósofos (17 D). O prazer do reconhecimento, no
mito que narra um fato com imagens diferentes do real, existe independentemente de sua retratação
perfeita do real. cf. Aristóteles, Poética, 1448 b.
12
Poética, 1451 b.
13
De Liberis, 7c. Com a mesma intenção em De audientis poetis, 15c-f, Plutarco cita Homero –
Odisséia IV, 230 – que afirma que as drogas misturadas podem ser ao mesmo tempo veneno ou
remédio.
14
De audientis poetis, 14e.
15
De audientis poetis, 15e.
16
De audientis poetis, 16 b.
195
Cumpre, portanto ao mestre, ensinar ao discípulo as regras do
jogo e o que podemos aprender a partir desse jogo. Cumpre-lhe fazer o
jovem ser capaz de discernir entre o que fosse inventado para veicular uma
verdade difícil de exprimir e o que fosse inventado para o assombro dos
homens17. Cumpre-lhe ensinar onde, quando e porque um poeta passa de
uma forma de pensamento e de uma forma narrativa para outra, de um
tempo real para um tempo literário e de um tempo literário para um tempo
mítico.
Ora, acusar o mito de ser uma narrativa construída a partir de
imagens grotescas (entendemos por grotesco a prática da transferência de
tudo o que é elevado, espiritual, ideal e abstrato para o plano material) tal
como o fez Luciano já não nos parece correto. O grotesco mítico, se lido à
luz das ponderações de Bakhtin (BAKHTIN, 1999, p.17) pode ser
assimilado como uma degradação positiva e regeneradora de um abstrato
distante. Bakhtin afirma que a vida dupla, intensa e contraditória do
grotesco constitui uma força. O mesmo caminho destrutivo-construtivista
percebido no texto é proposto por Kristeva no conceito de produtividade. E
na mesma esteira seguem os comentários de Genette acerca do par formado
pelas palavras ‘jour’ e ‘nuit’ na língua francesa.
Suponhamos, por fim, que os mitos sejam imagens grotescas, mas
narrantes. Uma forma de pensar concretamente que dialoga com uma forma
abstrata de pensar por conceitos. De repente, percebemos que as narrativas
míticas são uma produção textual de pensamentos que transitam em meios
diferentes, o abstrato e o concreto. Assim o mito sendo narrativa que se
movimenta em processos de raciocínio diversos pela ‘dança cognitiva’ é
‘intermidialidade’ que pode forjar aquilo que nunca vimos nem veremos.
Voltarei à teoria da refração. Se a refração amplia e desloca a
imagem do objeto, ela e só ela nos permite perceber a visão do espectro
solar e das cores fascinantes que contém um raio de luz.
Conclusão
Não há monologia. Tudo é dialógico. Todo texto –
conscientemente ou não - é resultado de vozes que atuaram sobre um autor
que dialoga com símbolos, significados e linguagens diversas. Nada é
absolutamente uno no texto. Todas as manifestações da vida humana
17
De audientis poetis, 20 f.
196
consciente e racional são relações dialógicas com um outro seja ele
identificável ou não.
O mito, quando inserido num texto, confere a ele uma dimensão de
interação entre formas de pensamento distintas. A narrativa mítica desloca
e expande o pensamento como se ele fosse um objeto dançante que se
movimentasse em turbilhão. A intertextualidade, o dialogismo, a polifonia
nada mais são do que sinais concretos de uma criação permanente que
mantém – através da interação – vivo o mundo. A vida é um sistema
constante de metamorfose. Um texto e um pensamento que se transformam
por causa da interação com um outro é o que chamo de criação, experiência
decisiva na vida de cada um de nós.
Ambas as formas de movimentos aqui observadas – os movimentos
que se dão nos textos - os quais podemos chamar de dialogismos, polifonias
e intertextualidades os movimentos que se dão de um modo de pensar para
outro – os quais chamei de ‘intermidialidade’ – estabelecem uma forma
complexa de transformações que amplia a possibilidade do texto e do
pensamento e fazem deles ‘textos em constante movimento’. Parodiando
Kleist ao falar das marionetes, eu afirmo que a força da literatura está naquilo
que nos suspende no ar para realizar um movimento e não naquilo que nos
prende a terra.
Referências bibliográficas:
ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Casa da moeda, 1992.
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Núcleo de Filosofia Sônia Viegas, 1994, pp. 93-111.
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de Filosofia Sônia Viegas, 1994, pp. 69-82.
198
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ODE II, 5 DE HORÁCIO
Vanda Santos Falseth
1
A tradução apresentada é de nossa responsabilidade.
199
Horácio inicia a ode fazendo a comparação entre Lálage e uma
jovem novilha, lembrando a usada em Lidéia, caracterizada como uma
potranca de três anos (equa trina) que evita qualquer aproximação do sexo
oposto (cf. Ode III, 11, 9-12), ou aquela relativa a Cloé, semelhante a uma
corça (inuleo) (cf. Ode I, 23, 1). Nos três casos o foco da comparação é a
idade da jovem. Entretanto, a ode analisada é a única que envolve o macho e
a fêmea. Tal recurso era caro à lírica grega arcaica, como se pode observar
no fragmento 75 de Anacreonte, que, sem dúvida, inspirou nosso poeta:
E se agora ainda livre, pastas,
correndo saltitante pelos prados,
é que um ginete, bem treinado,
ainda não te tomou por montaria2.
A escolha do animal varia de acordo com o tom que queira dar.
Aqui, por exemplo, a figura masculina é representada pelo touro – tauri (v.
3), ligado à expressão subacta ferre ceruice iugum (v. 1 e 2) – capaz de
suportar o jugo – com a idéia do amor-prazer presente – nec tauri in
uenerem tolerare pondus (v. 3 e 4). É interessante observar que tal
comparação confere ao poema um ar de erotismo, o que fez o mesmo ser
retirado dos livros didáticos e de algumas edições críticas.
Prossegue, na segunda estrofe, dirigindo-se ao anônimo, falando na
novilha – iuuencae tuae (v. 5), que, por ora, só deseja brincar com os
bezerros – uitulis (v. 8), com a intenção de ressaltar a inocência da jovem.
Na poesia lírica há a integração do "eu" com a natureza -
animal, como acabamos de ver, e vegetal, uma característica bem
marcante da lírica grega arcaica. Digno de nota o que afirma Francisco
Adrados (ADRADOS, 1981, p. 127): “O amor humano e o amor vegetal
são os mesmos. A comparação da mulher ou do homem levam-nos ao
ambiente dos antigos cultos agrários em que a vida humana e a vegetal
andam juntas”.
Encontramos campos uirentis (v. 5 e 6 ), fluuiis (v. 6), salicto (v.
8). Há, também, duas estações do ano presentes: o incômodo calor -
aestum (v. 7), representando a paixão, a inquietação – provocadas na época
do calor, ou seja, durante a juventude, quando todos os desejos se acendem
e o autumnus (v. 11) – simbolizando a idade madura. A passagem parece
pretender reforçar a sensualidade que caracteriza os versos iniciais.
2
Tradução de Guida N. P. Horta.
200
To11e cupidinem
immitis uuae: iam tibi liuidos
distinguet autumnus racemos
purpureo uarius colore; (v. 9-12)
Afasta o desejo da uva verde:
já o outono variado matizará para ti
os cachos acinzentados com a cor púrpura;
201
O tema ecoa em Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga na
Lira 38, v. 13-15, em que o poeta demonstra fragilidade pelo passar do
tempo que desgasta o amor:
Assim também serei, minha Marília
daqui a poucos anos,
que o ímpio tempo para todos corre.
E também, no século XX, em Fernando Pessoa, na ode de seu
heterônimo Ricardo Reis:
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
Interessante observar que foram muitas as mulheres que perpassaram
as Odes de Horácio, como Glicera, Lide, Barina, Galatéia, Lice, Cloé,
Neobule, para não falar de outras. Algumas são caracterizadas por aspectos
negativos, como Clóris (v. 18), a mulher velha que quer rivalizar com a filha,
Fóloe (v. 17), esta, por sua vez, vista como inconstante e devassa (cf. Ode III,
15). Já por Lálage (que em grego significa tagarela), apontada pelo doce
sorriso e pela voz agradável (Ode I, 22), o poeta demonstra ter admiração.
iam te sequetur; currit enim ferox
aetas et illi quos tibi dempserit
adponet annos; iam proterua
fronte petet Lalage maritum,
dilecta, quantum non Pholoe fugax,
non Chloris albo sic umero nitens
ut pura nocturno renidet
luna mari Cnidiusue Gyges,
quem si puellarum insereres choro,
mire sagacis falleret hospites
discrimen obscurum solutis
crinibus ambiguoque uoltu. (II, 5, v. 13-24)
Logo ela te seguirá, pois o tempo indomável corre e ele lhe
acrescentará os que tiver tirado de ti; logo com a fronte ousada,
Lálage, que brilha com seu alvo ombro, como a lua clara brilha no
mar durante a noite, provocará seu marido, querida como não foi a
fugidia Fóloe, nem Clóris, ou como Giges da Cnido, o qual se
misturasses ao coro das jovens, enganaria maravilhosamente os
202
hóspedes sagazes, diferença obscura sob seus cabelos espalhados
e seu rosto ambíguo.
No terceiro movimento, o poeta nos apresenta Lálage - ousada –
proterua (v. 15) que logo procurará um marido, num futuro próximo,
como podemos observar com a dupla colocação do advérbio iam em
anáfora (v. 10, 13 e 15).
Na quinta estrofe, o poeta afirma que Lálage será mais amada do que
Fóloe, Clóris e Giges, lançando mão de um recurso comum ao 1írico que é o
da comparação. Para tais símiles Horácio emprega palavras de origem grega:
Pholoe, Chloris e Gyges, presentes em outras odes. Embora procure
freqüentemente as fontes mais antigas da lírica grega, recorre também às
práticas alexandrinas, como quando faz localizações geográficas: Cnidus (v.
20), cidade da Cária, onde havia um templo consagrado a Vênus, ou ainda
alusões mitológicas, como Gyges (v. 20), empregado na Ode como nome de
um jovem. Há aqui uma referência à lenda de Aquiles escondido com roupas
femininas entre as filhas de Lycomedes e reconhecido por Ulisses. Com o
episódio pitoresco, o clima erótico do início da ode, já enfraquecido com o
imperativo tolle (v. 9) e o particípio dilecta (v. 17), deixa de existir.
Emil Staiger (STAIGER, 1972, p. 35) ao discorrer sobre as formas
de expressão do lírico, mostra que:
a linguagem lírica parece desprezar as conquistas de um progresso
lento em direção à clareza, – da construção paratática à hipotática,
de advérbios a conjunções, de conjunções temporais a causais. As
canções não são igualmente sensíveis a todas as conjunções... Um
"se" ou "mas" de quando em vez quase não perturbam o clima
lírico, mas o que melhor se adapta no caso é a parataxe simples.
Examinando a ode II, 5, constatar-se-á que tal afirmação se adapta a
ela, com a ocorrência de apenas duas orações subordinadas sic... ut (v. 17 e 18)
e si (v. 21). O tempo gramatical do lírico é o presente, realçado nesta ode pelo
advérbio nunc: ualet (v. 1), est (v. 5), currit (v. 13), renidet (v. 15). O futuro
é um tempo que aparece com alguma freqüência também: distinguet (v. 11);
sequetur (v. 13); dempserit (v. l4); adponet (v. 15); petet (v. 16), ao lado de
advérbios que marcam a proximidade da ação verbal.
Quanto à escolha das palavras (delectus uerborum), sabe-se que
Horácio aprovava a inovação lexical, privilegiando o enriquecimento
semântico das palavras antigas, uma vez que o mesmo correspondia ao
desejo de exprimir exatamente os aspectos e os matizes do pensamento.
203
Isto posto, teceremos breves observações com relação à seleção
vocabular da ode estudada. O vocábulo comparis (v. 2) - que aparece aqui
substantivado tinha o sentido de companheiro, camarada e posteriormente,
de amante, com registro também em Catulo, como atestam os dicionários,
sendo, pois, de uso poético.
Corroborado pelas mesmas fontes de consulta está o uso poético de
nitens (v. 17) - particípio presente do verbo nitere, que significa brilhar,
reluzir (falando-se do céu, da lua). Compare-se com o seu emprego na ode
I, 5, 12 a Pyrrha, em que aparece com o sentido de ser brilhante, ser bela
(nites). Uma outra ocorrência eminentemente poética é o uso adverbial do
adjetivo noturnus – noturno (v. 18)
O substantivo iuuencae (v. 6), que reitera a integração
homem/natureza (animal e vegetal), tratada anteriormente, tem como primeira
acepção "novilha" e por renovação semântica "jovem" – de uso poético. Esta
inteiração é tal que ao lado da expressão ceruice ferrum iugo (v. 1), o poeta
emprega comparis – termo usado comumente para a esfera humana.
O venusino utiliza, referindo-se a Lálage, o particípio passado -
dilecta (v. 17) do verbo diligere, que quer dizer estimar, amar (com uma
afeição fundamentada na escolha e na reflexão), talvez para enfatizar que a
jovem é merecedora não do amor-desejo, mas de um sentimento
verdadeiro, baseado na estima e aceitação dos mesmos valores morais
propostos pelo estoicismo a seus seguidores romanos.
Conclui-se, assim, que as odes ligeiras, nas quais se inserem as de
cunho amoroso, servem de veículo aos pensamentos de Horácio, tais como a
moderação, a efemeridade da vida e conseqüentemente, o carpe diem. O vate
latino, que, através da imitação direta ou de temas, ou ainda de idéias morais e
filosóficas, inspirou outros poetas, perpassou todas as épocas, muitas correntes
literárias ou simplesmente determinados autores, chegando à modernidade.
Referências bibliográficas:
ADRADOS, F. Rodrígues. El mundo de la lirica griega antigua. Madrid: Alianza
Ed., 1981.
COMMAGER, Steele. The odes of Horace. London: Indiana University Press, 1967.
HORACE. Odes et Épodes. Texte ét. et trad. par F. Villeneuve. Paris: Les Belles
Lettres, 1959.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Trad. de Celeste A. Galeão.
RJ: Tempo Brasileiro, 1972.
204
A ETIMOLOGIA, UM ESTUDO QUE ENCANTA
Miguel Barbosa do Rosário (Prof. Dr. – UFRJ)
16
GNERRE, Mauricio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. 19.
17
MIOTO, Carlos et alii. Manual de Sintaxe. Florianópolis: Ed. Insular, 2000, p.
84.
205
as regras gramaticais de sua língua, as quais são processadas de forma
inconsciente; essas regras ficam armazenadas em seu cérebro. Condições
sociais e econômicas, relações familiares, escolas de boa ou má qualidade
permitirão a essa criança a potencialização de seu desempenho lingüístico.
Nesse sentido, pois, a criança já vem marcada socialmente, desde o seu
nascimento, quanto a esse seu desempenho lingüístico. Alguns conseguem
romper esse ferrolho, esse bloqueio. É que a “linguagem”, no entender de
Mauricio Gnerre18, “constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear
o acesso ao poder”.
Independentemente de ser ou não fluente em sua própria língua
nativa, independentemente de ter ou não domínio da modalidade culta da
mesma, o falante não tem consciência explícita de sua língua. É o que nos
diz Waldemar Ferreira Netto19, em Introdução à fonologia da língua
portuguesa: “Ora, os falantes não pensam rotineiramente sobre sua própria
língua, eles apenas a usam”. É oportuno lembrar, continua o autor, que
Bakhtin chamou a atenção para o fato de que o falante não tem consciência
da materialidade do sistema. A língua materna é formada só de idéias, só de
emoções, pois, segundo ele, “não são palavras que pronunciamos ou
escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou
triviais, agradáveis ou desagradáveis”.
18
GNERRE, Mauricio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. 22.
19
FERREIRA NETTO,Waldemar. Introdução à fonologia da língua portuguesa.
São Paulo: Ed. Hedra, 2001, p. 26.
206
Esse mesmo raciocínio desenvolve Mário A. Perini em Gramática
Descritiva do Português20:
“Deve-se entender a gramática como um conjunto de instruções que o
falante da língua domina implicitamente – ele sabe muito bem pô-las em
ação, ao julgar a boa ou má formação de uma frase ou de uma palavra.
Mas isso não quer dizer que ele tenha consciência dessas instruções, não
mais do que tem consciência dos processos de sua digestão ou
circulação. É um mecanismo que ele põe em funcionamento de maneira
automática”.
20
PERINI, Mário A. Gramática Descritiva do Português. São Paulo: Ed. Ática,
2001, p. 52/53.
207
volta no tempo, verificar-se-á que mensurar provém do verbo latino
mensurāre, que significa medir, que mensurāre, por sua vez, se prende a
mensūra, medida, que mensūra é originário de metiri “medir”, cujo
particípio passado é mensus. Além de mensurar, mensura, há, ainda, em
português, a forma mesura, originária também de mensūra.
Ao fazermos essas aproximações, estamos investigando a origem
da palavra, sua etimologia. Etimologia, palavra de formação grega significa
estudo do verdadeiro, de etimo- “verdadeiro” e –logia “estudo”. Em latim,
esse termo foi vertido por Cícero para ueriloquium “maneira de falar
verdadeiro”. Em português, o sempre notável escritor Guimarães Rosa, no
conto Famigerado, cunhou o termo verivérbio, que traduz exatamente o
que se entende por etimologia. Etimologia, pois, é a disciplina que busca
estabelecer a origem formal e semântica de uma unidade lexical. É
importante frisar que não basta apenas o aspecto semântico, muitas vezes
enganador, é necessário também que haja o vínculo formal.
Examine-se, por exemplo, a palavra charme, cuja origem remota é
o latim carmen, que tem o sentido de poema, verso, encantamento. O c (k)
inicial latino antes das vogais a, o, u, conforme nos explica E. Williams, em
Do latim ao português, trad. de Antonio Houaiss21, evolui para c (k) em
português, como em cantare > cantar, colore(m) > cor, cura(m) > cura.
Ao se examinar o sentido de carmen, em latim, verifica-se que um
dos sentidos da palavra se manteve na derivada charme. A questão
semântica está, então, satisfatoriamente resolvida. No plano formal é que se
encontra a dificuldade, já que, como se viu, o fonema c (k) inicial latino
21
WILLIAMS, E. Do latim ao português. Trad. de Antonio Houaiss. Rio de
Janeiro: TB, 1975, p. 71.
208
evolui para c (k) em português. Esse fato torna evidente que a palavra
charme não proveio diretamente do latim. De fato, ela entrou no português
através de outra língua, no caso, através do francês charme. Em francês,
essa evolução do k para ch, nesse contexto, é regular. É o que se observa,
por exemplo, em chefe, proveniente de caput, cher, de caru(m). É
necessário, pois, conhecer os mecanismos de evolução histórica da língua
para se poderem traçar com segurança as modificações ocorridas ao longo
dos tempos.
Veja-se o caso curioso das palavras feitiço e fetiche. Ambas,
segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa,
de Antônio Geraldo da Cunha22, são provenientes do latim facticiu(m), que
significa artificial, não natural. A forma portuguesa feitiço tem sua
evolução natural, a partir da vocalização do c, da assimilação do a ao i, a
mudança da seqüência –ciu em –ço. Já fetiche, informa-nos A. G. Cunha, é
palavra francesa proveniente do português feitiço. Depois de ter
contribuído, portanto, para a criação da palavra francesa fetiche, o
português recorre ao francês para tomar-lhe emprestado o termo fetiche,
que tem traços semânticos que a aproximam de feitiço, mas desta se
diferencia por necessidade de especialização semântica.
Além do aspecto semântico e formal, há que se verificar ainda, se
possível, em que século ou ano a palavra ingressou na língua. Para feitiço,
por exemplo, A. G. Cunha nos informa que sua datação é do séc. XV. Já
fetiche aparece registrada pela primeira vez apenas em 1873.
22
CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, /s.d./.
209
Verifica-se, assim, que, freqüentemente, é possível não só traçar a
evolução de uma palavra, determinar-lhe a etimologia, mas também saber-
lhe o trajeto cronológico. E com a história da palavra caminha também a
história do homem, da sociedade.
Há aquelas que ingressam na língua, mas desaparecem, somem,
como aconteceu, por exemplo, com a preposição per, que no português
atual só aparece em combinação com o artigo definido o, a, os, as: pelo,
pela, pelos, pelas. Parece mesmo que alguns falantes estão perdendo a
consciência dessa combinação do artigo com a preposição. Vejamos a
seguinte frase: “É esta a nossa fé que nos faz rezar pelos os que o Senhor
levou”. Chamou-me a atenção o pelos os, já que o mesmo vem impresso
num lembrete de uma Paróquia sobre missa que seria rezada em intenção
da alma de uma pessoa. Para o autor da frase, o artigo não está presente em
pelos. De qualquer forma, o desaparecimento de per oferece dificuldade em
termos de descrição do português atual.
A palavra homem, no português antigo, além de ter o sentido que
hoje tem, era um pronome indefinido. Com esse valor, aparece, ainda, na
Carta de Pero Vaz de Caminha23. Vejam-se as seguintes passagens:
23
PEREIRA, Paulo Roberto. Os Três Únicos Testemunhos do Descobrimento do
Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999, p. 47 e 54.
210
(Id., p.47)
211
uirīle(m). As mudanças sonoras são bem regulares: a consonantização da
semivogal u para v, e a queda do fonema e, em posição final de palavra,
pois precedido de –l. Mas está-se verificando que não basta um exame
apenas formal e semântico para o levantamento etimológico. Para tornar
mais rica e fecunda a investigação, é da mais alta conveniência buscar na
língua original os mecanismos de relação existentes nas palavras. Passa-se,
então, a ter uma visibilidade mais profunda da língua que se examina. E
esse é o encanto que se apossa de quem lida com esse campo fantástico da
linguagem humana.
Veja-se o termo oral. Oral provém do latim ōrāle(m), que significa
relativo à boca. Boca, por sua vez, significa ōs, ōris, forma que
desapareceu, na sua evolução para o português e para as outras línguas
românicas. Temos, portanto, em latim, o adjetivo ōrāle(m), que pode ser
separado em ōr- o radical e –āle(m) o sufixo formador de adjetivos, como o
– īle(m) o é de uirīle(m). Em uirīle(m), portanto, registra-se o radical uir- e
o sufixo –īle(m), que também é um sufixo formador de adjetivos. Há, pois,
todo um jogo nas relações complexas que existem nas línguas, que precisa
ser descoberto pelo investigador.
Outra forma extremamente curiosa é a origem do infinitivo do
verbo ser em português. Ele surge do verbo sedēre, que tem, em latim, o
sentido de “estar sentado”. De estar sentado para ser, portanto, houve uma
mudança de sentido muito profunda. O aspecto sonoro é normal: sedēre>
seer > ser, ou seja, apócope do –e, síncope do d, porque intervocálico, crase
das vogais. Mas se o infinitivo esse foi abandonado, outras formas do
mesmo não o foram, como o presente do indicativo, o imperfeito do
212
indicativo, por exemplo, que são provenientes das formas do verbo esse
latino.
Certas formas do português atual se tornam bem nítidas, quando se
examina seu percurso histórico, como é o caso, por exemplo, dos verbos
fazer e dizer, que, provenientes de facere e de dicere, possuem as variantes
far e dir no futuro do presente e no futuro do pretérito. De fato, ao examinar
as formas far-te-ei e dir-te-ei, não resta ao investigador outra possibilidade
de interpretação que não a de analisá-las como variantes do infinitivo fazer
e dizer, respectivamente.
No plano histórico, Edwin Williams24 nos diz: “os infinitivos curtos
encontrados em farei e direi originaram-se, provavelmente, em latim
vulgar”.
Quero deixar bem claro que não estou advogando aqui a mistura da
sincronia com a diacronia. Esse método de investigação proposto por
Saussure deve ser preservado.
O exame histórico da língua, no entanto, permite perceber aspectos
muito curiosos como a do verbo comedĕre, comentado por Mattoso
Câmara25. Em comedĕre, o com- é um prefixo, já que existe a forma
simples edĕre, que também significa comer. A forma simples edĕre deixou
de ser aproveitada, tendo sido inteiramente absorvida pelo verbo comedĕre,
cuja evolução em termos sonoros se processa normalmente: a apócope do e,
a síncope do d e a crase do e: comedĕre> *comedēre> *comeer > comer. O
24
WILLIAMS, E. Do latim ao português. Trad. de Antonio Houaiss. Rio de
Janeiro: TB, 1975, p. 212.
25
CÂMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de Filologia e Gramática. Rio de Janeiro:
J. Ozon Editor, 1968.
213
elemento com-, prefixo em latim, tornou-se radical em português, uma
mudança notável.
O latim constitui a base do léxico das línguas românicas. É uma
língua bem conhecida e pesquisada. Sob esse aspecto, pois, essas línguas
ocupam na etimologia um lugar privilegiado. Muitas vezes, é difícil
explicar a seleção vocabular que uma língua faz em relação a determinadas
palavras.
Em situação bem diversa se encontram o latim e suas línguas
irmãs, cuja língua-mãe, o indo-europeu, não deixou vestígios. O indo-
europeu, língua hipotética que é, é uma reconstituição a partir do grego,
latim, sânscrito, germânico, hitita.
Basta, portanto, dispor de bons dicionários de latim e do
conhecimento dos mecanismos de mudanças históricas, para se ter meio
caminho andado nesse maravilhoso mundo das palavras. É uma satisfação
enorme penetrar no âmago de determinada palavra e, se possível, desvendar
todo o mistério que a envolve.
A propósito, de onde vem o termo palavra? Em latim palavra é
uerbum. Observem-se as expressões: uerbum Domini “palavra do Senhor”,
uerba uolant “as palavras voam”, in principio erat Verbum “no princípio
era o Verbo, a Palavra”. Palavra provém de parabola, que, em latim,
significa “narração de um acontecimento, envolvendo, alegoricamente, uma
instrução”. As mudanças sonoras são regulares: a síncope do o, mudança do
grupo bl para br e dissimilação: parábola > paravra > palavra.
Um bom dicionário etimológico nos fornece não só a origem da
palavra, mas também a data da primeira entrada na língua. Examine-se, por
exemplo, a origem do verbo cuidar, proveniente do verbo latino cogitāre,
214
cujo significado básico era pensar, meditar. As mudanças sonoras são
regulares: a queda do e final, a apócope, precedida de r, já que com o
mesmo pode formar sílaba, a mudança da consoante surda para sonora, pois
está em posição intervocálica, a queda da consoante sonora em posição
intervocálica. Sua entrada na língua, conforme informação de A. G. Cunha,
se deu no séc. XIII. Proveniente também do verbo latino cogitāre,
encontramos a forma verbal cogitar. Ao observarmos atentamente cogitar,
verificamos sua enorme semelhança com o latim. Essas formas com
formato quase latino são as chamadas formas eruditas. Sua entrada na
língua surge, sobretudo, a partir do século XVI, com o movimento da
Renascença, quando os eruditos e os escritores retornam ao latim e ao
grego para buscarem termos que traduzissem suas necessidades
intelectuais. A forma em questão cogitar só entrará na língua no séc. XVII.
Está-se verificando, portanto, que um outro dado importante se
apresenta ao estudioso da história das palavras: identificar-lhes seu formato
para saber se se trata de uma forma de evolução popular ou não.
O conhecimento dos fenômenos presentes na evolução das
palavras, repito, se torna imprescindível para entender-se o
desenvolvimento do léxico de uma língua.
Examinem-se outros pares em que paralelamente à forma de
evolução popular, aparece a forma erudita: dedo / digital [latim digitu(m)],
selo / sigilo [latim sigillu(m)], cabelo / capilar [latim capillu(m)], região /
regional [latim regione(m)], mão / manual [latim manu(m)], pé / pedal
[latim pede(m)], cheio / pleno [latim plenu(m)]. Pode notar-se que todas as
formas que se aproximam do latim constituem as formas eruditas.
215
Além do conhecimento dos mecanismos históricos, há que se
levar em conta também outros aspectos que, ao longo dos tempos, foram-se
introduzindo na língua. Veja-se, por exemplo, a palavra famigerado
utilizada por Guimarães Rosa no conto com esse título, em Primeiras
Estórias26.
Para efeitos de etimologia, basta dizer que famigerado é
proveniente do latim famigerātu(m), cujo sentido é famoso, afamado,
falado, célebre. A palavra não tem conotação negativa em latim.
26
ROSA, J. Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988,
p. 13 a 17.
216
No português atual, seu significado passou a ter um sentido
negativo. Na seção de Economia de O Globo do dia 09 de agosto de 2002,
diz Joelmir Beting: “As eleições presidenciais acabam de perder peso
emocional em nossa famigerada crise cambial”. Ainda em O Globo do dia
10 de agosto do mesmo ano, na seção Tema em discussão, de Reinaldo
Gonçalves, também economista: “O enfrentamento dos problemas
financeiros custou dezenas de bilhões de reais ao povo brasileiro em 1995,
via o famigerado Proer”. Na crônica O presidente que ri, de Affonso
Romano de Sant’Anna, publicada no Estado de Minas Gerais de 25 de
agosto, também de 2002: “O presidente teve todo o tempo para fazer as
famigeradas reformas, e não as fez.”
27
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2000, p. 400.
217
notável pelos seus dotes positivos ou negativos; todavia, no uso mais
geral, a palavra se aplica às qualidades negativas”.
Em seu sentido original, ela só tem sentido positivo. Examinemos
mais detidamente no próprio latim o termo famigerātu(m). Famigerātus,
informam-nos os dicionários latinos, é o particípio passado do verbo
famigerāre, que significa espalhar, fazer correr boatos. Famigerāre é
formado de fama “notícia, boato” e de gerĕre “levar”. Note-se que em
latim, quando uma vogal breve passa a ocupar uma posição no interior de
um vocábulo, essa vogal no contexto de uma sílaba aberta, isto é, sílaba
terminada por vogal, muda para i, como acontece, por exemplo em amicus,
inimicus, em que o a de amicus, mudou para i, já que o contexto fonológico
passou a ser o descrito há pouco. É o que se chama apofonia.
O fami de famigerāre, portanto, é uma mudança de fama, cujo
significado já foi apontado. Se se quiser aprofundar mais ainda no exame
da palavra, verificar-se-á que fama é palavra derivada de fari, verbo
depoente que significa falar, dizer, forma que aparece também em fabula.
Que é fabula? Fabula é uma narrativa. Nossa palavra fala é proveniente de
fabula: fabula > fabla > falla > fala. Fabulare dá origem a falar. Fala, falar,
confabular, fábula, fama são todas formas em que aparece uma raiz
comum, que é fari, já comentado acima.
Ora, Guimarães Rosa se serve do termo famigerado com duplo
sentido no famoso conto. O conto é pequeno e vale a pena reproduzi-lo:
Famigerado
João Guimarães Rosa
218
Foi de incerta feita – o evento. Quem pode
esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa,
o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o
tropel. Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um
cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e,
embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num
relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro
esse – o oh-homem-oh – com cara de nenhum amigo. Sei o
que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele
homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto
pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado,
ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam
olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente
receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos –
coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o
ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de
pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a
frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e
dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um
encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o
homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos
vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar
que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham
de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da
219
topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus
sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia
ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe.
Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de
temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também,
não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O
medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O
medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a
entrar.
Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de
chapéu. Via-se que passara a descansar na sela – decerto
relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de
pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente,
nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava,
querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez
são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada
alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso
brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um
és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me
organizar. Ele falou:
- “Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua
explicada...”.
Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a
catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que
sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por
se cumprir do maior valor de melhores modos; por
220
esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão
era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais
os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se:
estava em armas – e de armas alimpadas. Dava para se
sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para
ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se
persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo
a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de
se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de
gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções.
Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore.
Sua máxima violência podia ser para cada momento.
Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim,
porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez
de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem
certeza.
- “Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras...
Estou vindo da Serra...”
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias
de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem
perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para
uns anos ele se serenara – evitava o de evitar. Fie-se,
porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de
mim a palmo! Continuava:
- “Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente,
se compareceu um moço do Governo, rapaz meio
221
estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu
não quero questão com o Governo, não estou em saúde
nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto
esmiolado...”
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter
começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o
fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado.
Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu:
aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só
se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso.
Redigiu seu monologar.
O que frouxo falava: de outras, di versas pessoas e
coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos,
inseqüentes, como dif icultação. A conversa era
para teias de aranha. Eu tinha de entender -l he as
mí ni mas entonações , seguir seus propósitos e
silêncios. Assi m no fechar -se com o j ogo, sonso,
no me iludir, ele eni gmava. E, pá:
- “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me
ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-
gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase.
Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu ,
imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença
dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse
de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me:
222
alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me
a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que
aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosta a rosto, o
fatal, a vexatória satisfação?
- “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que
vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor
de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...”
Se sério, se era. Transiu-se-me.
- “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum
ninguém ciente, nem têm o legítimo – o livro que aprende
as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem
de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz,
mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A
bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, do pau da
peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe
perguntei?”
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
- Famigerado?
- “Sim senhor...” – e, alto, repetiu, vezes, o termo,
enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já
me olhava, interpelador, intimativo – apertava-me. Tinha
eu que descobrir a cara. – Famigerado? Habitei
preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em
indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus
cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
223
- “Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São
da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...”.
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito
o caroço: o verivérbio.
- Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”,
“notável”...
- “Vos mecê mal não vej a em minha grossari a no não
entender. Mais me diga: é desaforado? É
caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de
ofensa?”
- Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões
neutras, de outros usos...
- “Pois... e o que é que é, em fala de pobre,
linguagem de em dia-de-semana?”
- Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece
louvor e respeito...
- “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na
Escritura?”
Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o
diabo, então eu sincero disse:
- Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria
uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que
pudesse!...
- “Ah, bem!...” – soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si,
desagravava-se num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez
224
aqueles três: - “Vocês podem ir, compadres. Vocês
escutaram bem a boa descrição...” – e eles prestes se
partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava
um copo d’água. Disse: - “Não há como que as grandezas
machas duma pessoa instruída!” Seja que de novo, por um
mero, se tornava? Disse: - “Sei lá, às vezes o melhor
mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei
não...” Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação.
Disse: - “A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas
desconfianças... Só pra azedar a mandioca...” Agradeceu,
quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em
minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não
pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o
famoso assunto.”
Vejamos o final:
225
Disse: - “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra
esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não...” Mas
mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: - “A gente
tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só
pra azedar a mandioca...”.
226
METAPLASMOS
Crase [Reunião, numa sílaba de vogal una, de duas vogais iguais em hiato]
salute- > saúde | XIII (lat. salūs, - ūtis ‘salvação’; ‘saudação’; ‘saúde’)
cogitare > cuidar | XIII (lat. cōgǐtāre < contr. de coagitare ‘pensar’,
‘meditar’; ext. ‘tratar de’)
227
fidele- > fiel | XIII (lat. fidelis, -e ‘em quem se pode ter confiança’;
‘fiel’)
legenda- > leenda | XIII > lenda (lat. legenda, pl. neutro do gerundivo
legendus, a, um ‘que deve ser lido’)
sigillu- > sseello | XIII, seelo | XIII > selo (lat. sigillum, -i ‘marca
pequena’, ‘sinalzinho’)
colore- > coor | XIII, color | XIII > cor | XIII (lat. color, - ōris sm ‘cor’)
228
uolare > voar | XIII (lat. uŏlāre ‘voar’)
dolore- > door | XIII [dolor | XIV] > dor | XVI (lat. dolor, -ōris ‘dor’)
polire > puir | 1813, forma divergente de polir (lat. pŏlīre ‘nivelar’;
‘limar’)
uidere > * veder > veer > ver | XIII (lat. uǐdēre ‘ver’)
palatiu- > paaço | XIII > paço | XVI (lat. pǎlātium, -i ‘residência
imperial’, ‘palácio’)
[“A forma paço, já documentada no port. med., é de uso comum no port.
mod., embora com pequena restrição semântica, visto que só se emprega
para designar o ‘palácio real’”] In: CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico
da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
uidi > vi ( uīdī: 1a. pess. sg. do pret. perf. ind. do v. uǐdēre)
crudu- > cruu | XIII, cru | XIII (lat. crūdus, a, um ‘cru’; ‘verde’; ‘duro’,
‘cruel’)
crudele- > cruel | XIII (lat. crūdēlis -e < lat. crūdus, a, um ‘duro’, ‘cruel’)
macula- > mágoa | XV, forma divergente de mácula | XVI (lat. mǎcŭla, -
ae ‘mancha’, ‘nódoa’, ‘marca’)
229
ficu- > figo | XIII (lat. fícus, -i ‘figo’)
nudu- > nuu | XIII, nua f. | XIII (lat. nūdus, a, um ‘nu’, ‘despido’)
sedere > ser | XIII (lat. sĕdēre ‘estar sentado’, ‘assentar’. Da idéia original
de ‘estar sentado’, o latim passou à de ‘estar’ e, daí, à de ‘ser’)
sede- > séé | XIII ‘jurisdição episcopal’ > sé [sede | XV] (lat. sēdes, -is
‘orig. lugar onde alguém pode sentar-se’)
rete- > rede | XIII (lat. rēte, -is (n) ‘rede’, ‘laço’)
[-t- > -d-]- > “Esta sonorização, segundo Rydberg, citado por Grandgent,
verificou-se no século V e princípios do VI”. In: Coutinho, op. cit., p.
116.]
*sapēre > saber | XIII (lat. sǎpĕre ‘ter sabor’; ‘ter o cheiro de’; ‘saber’,
‘conhecer’)
230
[-p- > -b-]- > “Esta permuta parece que se deu no século V e VI”. In:
Coutinho, op.cit., p.116]
231
securitate- > seguridade | XV (lat. secūrǐtas, - ātis
‘tranqüilidade’)
N.B. Modificações por que passou o fonema k : lat. cl. k > lat. vulg. ts > dz
> port. z.
tensu- > teso | XIV, forma divergente de tenso |1858 (lat. tensus, a, um
‘estendido’, ‘esticado’)
232
● Nasalação ou nasalização [Passagem de um fonema
oral a nasal]
mi > mim (lat. mī /mihi, dativo de ego ‘eu’)
mea- > mĩa | XIV > minha (lat. mĕus, mĕa, mĕum ‘meu’)
nidu- > nĩo > ninho | XIV : queda do –d, nasalação do i e posterior
palatalização (lat. nīdus -i ‘habitação das aves’)
una- > ũa | XIII > uma | XVI (lat. ūnus, a, um ‘um, uma’)
bonu- > bõo | XIII > bom | XIV (lat. bŏnus, a, um ‘bom’)
lana- > lãa | XIII > lã | XVI (lat. lāna, -ae ‘lã’)
tenes > tẽes > tens (tĕnēs: 2a. pess. sg. do pres. ind. do verbo lat. tĕnēre
‘ter’)
“A nasalação produzida pelo n intervocálico é um dos principais
característicos fonéticos do português”. [In: COUTINHO, Ismael de Lima.
Pontos de Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978,
pág. 115]
“No curso do século X, o n intervocálico nasalizou a vogal precedente e
caiu”. [In: WILLIAMS, Edwin B. Do Latim ao Português. Fonologia e
Morfologia Históricas da Língua Portuguesa. Trad. de Antônio Houaiss.
Rio de Janeiro: TB, 1975]
233
persona- > pessõa | XIII > pessoa | XIV (lat. persōna, -ae ‘máscara’;
‘pessoa’)
corona- > corõa > coroa | XIII (lat. corōna, -ae ‘coroa’)
luna- > lũa | XIII > lua | XIV (lat. lūna, -ae ‘lua’)
tenere > tẽer > teer | XIII > ter | XIII (lat. tenēre ‘segurar’; ‘ter’)
anellu- > ãelo > aelo > eelo > elo (lat. anĕllus, -i ‘anel’)
tenebras > tẽevras > teevras > tevras > trevas (lat. tenĕbrae, - ārum
‘trevas’)
tenebras > tẽevras> teevras > tevras > trevas (lat. tenĕbrae, -ārum
‘trevas’)
fenestra- > feestra | XIII > fresta | XV (lat. fenestra, -ae ‘janela’, ‘fresta’)
capio > *cabio > caibo (lat. capio : 1ª pess. sg. do pres. ind. do v. capĕre
‘pegar’)
234
● Vocalização [Mudança fonética que consiste na passagem de uma
consoante a vogal.]
doctu- > douto (lat. dŏctus, a, um ‘instruído’)
directu- > lat. vulg. derectu > direito (lat. directus, a, um ‘colocado em
linha reta’, ‘reto’)
235
● Assimilação [Aproximação ou perfeita identidade de dois fonemas,
resultante da influência que um exerce sobre o outro; regressiva – o fonema
assimilador está depois; progressiva – o fonema assimilador está antes;
total/parcial ]
palumba- > paomba | XIII > poomba XIII > pomba (lat. palumba -ae
‘pomba’)
calente- > caente | XIII > queente XIV > quente | XIV (lat. calens, -entis,
part. pres. de calēre ‘estar quente’)
persona- > pessõa | XIII > pessoa | XIV (lat. persōna, –ae ‘máscara’;
‘personagem’; ‘pessoa’)
236
● Dissimilação [Diversificação ou queda de um fonema por já existir um
fonema igual ou semelhante no mesmo vocábulo.]
rotundu- > rodondo > redondo (lat. rotŭndus, a, um ‘redondo’)
tonsoria- > tosoira > tesoira | XIV (lat. tōnsōrius, a, um ‘que serve para
cortar’)
locusta- > logosta > lagosta | XVI (lat. locŭsta, -ae ‘gafanhoto’; ‘lagosta’)
anima- > alma | XIII (lat. anǐma, -ae ‘sopro’; ‘respiração’; ‘alma’)
memorare > * memrar > membrar | XIII > nembrar | XIII > lembrar
| XV (lat. memorāre ‘memorar’, ‘recordar’)
parabola- > paravra > palavra | XIII (lat. parabola, -ae ‘parábola’)
uenit > vem (uĕnit: 3ª pess. sg. do pres. ind. do v. uĕnire ‘vir’)
237
quaerit > quer (quaerit: 3a. pess. sg. do pres. do ind. do v. quaerĕre
‘procurar’)
facit > faz (fǎcit: 3ª pess. sg. do pres. do ind. do v. fǎcĕre ‘fazer’)
fecit > fez (fēcit: 3ª pess. sg. do perf. do ind. do v. fǎcĕre ‘fazer’)
N.B.:
grande- > grande > grão | XIV (usado apenas em nomes compostos) (lat.
grandis, -e ‘grande’)
238
Algumas formas apocopadas são encontradas apenas em expressões
239
posui > pousi > posi > pus (pŏsui ‘1a pess. sg. do pret. perf. do ind. do v.
pōnĕre ‘pôr’)
feci > fezi > fizi > fiz (fēci ‘1a pess. sg. do pret. perf. do ind. do v. fǎcĕre
‘fazer’)
frenu- > freo | XIII > freo XIII > freio | XIV
memorare > *memrar > membrar | XIII nembrar | XIII > lembrar | XV
(lat. memŏrāre ‘lembrar’)
audit > ouve (audit 3a pess. sg. do pres. ind. do v. audīre ‘ouvir’)
laudat > louva (3a pess. sg. do pres. ind. do v. laudāre ‘louvar’)
240
*kruppa (germ.) > *grupa > garupa | XVII
blata- > *bratta > barata | XVI (lat. blatta, -ae ‘traça’)
língua popular do Brasil, passa a vogal plena (cf. adevogado por advogado,
peneu por pneu etc.) ” . In: CÂMARA JR., J. Mattoso, op. cit.
241
stare > estar | XIII (lat. stāre ‘estar de pé’)
“O português primitivo:
242
a) latim lusitânico, língua falada na Lusitânia, desde a implantação do
latim até o século V;
dos séculos XIII e XIV; outra, a do português médio, que iria do século XV
243
Autores
ALAIR FIGUEIREDO DUARTE
Pesquisador do Núcleo de Estudos da Antigüidade - NEA / UERJ
244
Professora Adjunta de Língua e Literatura Latina / UFRJ
245