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ISBN 85-87043-54-4

ANAIS DA XXV SEMANA


DE ESTUDOS CLÁSSICOS

Intertextualidade e Pensamento Clássico

13 a 16 de setembro de 2005

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS


FACULDADE DE LETRAS / UFRJ
2
ANAIS DA XXV SEMANA
DE ESTUDOS CLÁSSICOS

3
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Reitor: Aloísio Teixeira
CENTRO DE LETRAS E ARTES
Decano: Léo Affonso de Moraes Soares
FACULDADE DE LETRAS
Diretor: Maria Cecília de Magalhães Mollica
Departamento de Letras Clássicas
Chefe: Auto Lyra Teixeira
Subchefe: Ana Thereza Basilio Vieira
Coordenador de Pós-Graduação em Letras Clássicas: Henrique Cairus
Secretária: Roseane Barroso de Franco
Comissão Editorial
Auto Lyra Teixeira • Alice da Silva Cunha • Ana Thereza Basilio Vieira • Carlos Eduardo Costa Scherer
Cecilia Lopes de Albuquerque Araújo • Marinete José de O. Santana Ribeiro • Ricardo de Souza Nogueira
Shirley Fátima G. de Almeida Peçanha • Vanda Santos Falseth
Realização
Departamento de Letras Clássicas da Faculdade de Letras / UFRJ
Diretoria Adjunta de Cultura e Extensão
FUJB – Fundação Universitária José Bonifácio
Informações
Departamento de Letras Clássicas • Tels.: (21) 2598-9716 / 2598-9717
Edição: Antonio Galletti/ Ione Nascimento
Ilustração: Apolo e as Musas, de Giulio Romano

Intertextualidade e Pensamento Clássico / Anais da XXV Semana de Estudos


Clássicos. Ana Thereza Basílio Vieira e Auto Lyra Teixeira (orgs.), Deptº de Letras Clássicas
da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro: Serviço de Publicações/FL-UFRJ, 2006.
206 p.; 21 cm.
ISBN: 85-87043-54-4
(Fundação Biblioteca Nacional)

Agradecimentos especiais

FUJB
Fundação Universitária
José Bonifácio

4
Sumário

8 Apresentação: XXV Semana de Estudos Clássicos • Nely Maria Pessanha

11 Aristófanes e o discurso pela paz


Alair Figueiredo Duarte

16 Pietas: fator de convergência na construção textual


Alice da Silva Cunha

25 A contaminatio de Plauto
Amós Coêlho da Silva

34 Conceitos e máximas morais na elegia de Ovídio


Ana Thereza Basilio Vieira

43 Os epigramas de Marcial – riso e crítica social


Arlete José Mota

53 A arte cômica de Plauto e Ariano Suassuna


Cecília Lopes de Albuquerque Araújo

60 Os diversos conceitos de "amor" na cultura grega antiga


Dulcileide Virginio do Nascimento

67 Idibus est Annae festum geniale Perennae


Eliana da Cunha Lopes

77 Os conflitos na pólis, um diálogo entre Teógnis e Sólon


Glória Braga Onelley

86 Repensando o mito de Sapho no V e IV século a.C.


José Roberto Paiva Gomes

93 Emoção e Razão – A relação entre Euclião e Estáfila


no ato I da Aululária
Katia Teonia Costa de Azevedo

103 Saturnais – Tempo de Presentes


Leni Ribeiro Leite

5
109 Ode I, 1 de Horácio: dedicatória do poeta a Mecenas
Mára Rodrigues Vieira

114 Dido em Virgílio e em Ovídio


Márcia Regina de Faria da Silva

123 O discurso mágico que circulava em Atenas do IV a.C.


Maria Regina Candido

131 Navegar é preciso? As palavras proféticas de Nautes


e do velho do Restelo
Michele Eduarda Brasil de Sá

135 Notas sobre administração pública civil e militar romana


Paulo Roberto Souza da Silva

145 A apreensão dos anciãos no Párodo da tragédia Os Persas


Ricardo de Souza Nogueira

154 Rosa Roma: diálogo sobre a definição de poder


Ronald Wilson Marques

159 Um olhar comparativo sobre as fábulas – literatura atemporal


Sandra Verônica Vasque Carvalho Oliveira

165 Homero, Hesíodo e Píndaro: uma reflexão acerca da felicidade


e do mérito
Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha

172 A polifonia nas Bacantes


Tatiana Bernacci Sanchez

179 Heródoto e o estranho mundo dos citas


Tatiana Oliveira Ribeiro

184 Textos bailarinos


Tereza Virgínia R. Barbosa

199 Considerações sobre a Ode II, 5 de Horácio


Vanda Santos Falseth

6
205 A etimologia: um estudo que encanta
Miguel Barbosa do Rosário

227 Metaplasmos
Miguel Barbosa do Rosário

7
Apresentação

XXV SEMANA DE ESTUDOS CLÁSSICOS / UFRJ


Nely Maria Pessanha

Neste treze de setembro de dois mil e cinco, inicia-se a XXV Semana


de Estudos Clássicos, evento promovido pelo Departamento de Letras
Clássicas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
eu, à maneira do “rouxinol de voz suave, mensageiro da primavera”, rouxinol
cantado por Safo de Lesbos (fragm 131 Puech), desejaria poder entoar uma
ode com três acordes: comemorar, rememorar e recordar. É este o
momento oportuno, ou, como diziam os gregos, o kairós.
Comemorar é memorar em comum, é trazer à memória, à lembrança, em
conjunto, as diversas etapas que possibilitaram ao Departamento de Letras
Clássicas da UFRJ – do qual me orgulho de ser um de seus membros –
realizar, sem solução de continuidade, durante vinte e cinco anos, de 1981
até este ano corrente de 2005, a Semana de Estudos Clássicos. Hoje é, pois,
dia de comemorar, de concelebrar, de festejar. E neste espaço da festa,
tivesse eu a áurea lira, para cantar com Píndaro:

Lira dourada, apanágio comum de Apolo e das Musas


De tranças cor de violeta,
Ao teu ritmo principia a entrada para a festa,
e os cantos obedecem aos teus sinais, quando vibras,
entoando os prelúdios que conduzem os coros.
(Pítica, 1, vv.1-5) *

Mas, como não tenho a lira, que as nossas palavras sirvam de


prelúdio aos coros que, através de conferências, comunicações, mini-curso
e tantas outras atividades, serão aqui entoados.
Rememorar significa trazer de novo à memória, isto é, voltar a
lembrar os fatos antes acontecidos. Que Mnemosýne conte para mim, da
maneira que lhe convier, o que transcorreu nesses vinte e cinco anos.

8
Em 1981, quando era chefe do Departamento de Letras Clássicas /
UFRJ a Profa. Doutora Ruth Junqueira de Faria, já falecida, foi realizada a I
Semana de Estudos Clássicos, cujo objetivo inicial era divulgar os estudos
acerca da Antigüidade Clássica e também dar visibilidade às pesquisas dos
docentes. Foi um começo tímido, difícil: apenas uma conferência no final da
tarde no Teatro Gil Vicente, em nossa antiga sede da Avenida Chile. Público
pequeno, formado por nossos alunos de graduação que voluntariamente, bem!,
após muita insistência, compareciam Muitos dos nossos companheiros dessa
etapa encontram-se hoje aqui. Dessa maneira, nosso Departamento inaugurou
o ciclo das diversas Semanas da Faculdade de Letras. Como formiguinhas
laboriosas, demos continuidade ao evento, conseguimos ampliar seus
objetivos, acrescentando aos antes mencionados outros, tais como: promover o
intercâmbio entre nossos professores e os dos demais departamentos da UFRJ,
de outras Universidades do País e do Exterior; discutir metodologia de ensino
e pesquisa. Devo assinalar que a Semana teve e tem prestígio no meio
acadêmico. Se nesta Semana do ano de 2005 tivemos apoio da Direção da
Faculdade de Letras e da Fundação José Bonifácio, contamos, nos idos dos
anos oitenta, duas vezes, com o auxílio do CNPq.
Rememoremos o trabalho dos iniciadores de nossas Semanas:
Suzanna Teixeira Mendes de Mello, Marilda Evangelista dos Santos Silva,
Edison Lourenço Molinari, Carlos Antônio Kalil Tannus, Edna Paiva,
Hime Gonçalves Muniz, Lívia Lindóia Paes Barreto, Manuel Aveleza de
Sousa, Maria Adília Pestana de Aguiar Starling, Miguel Barbosa do
Rosário, Sílvia Damasceno, Alice da Silva Cunha, Vera Regina Figueiredo
Bastian, Vera Lúcia Montenegro Vieira, Cecília Lopes de Albuquerque,
Jacyára Ribeiro Salengue, João Soares, Marinete José de Oliveira Santana
Ribeiro, Tânia Martins dos Santos Fernandes, Vanda Santos Falseth e eu,
Nely Maria Pessanha. Rememoremos os nossos continuadores, os
chegados ao Departamento mais tarde, em momentos vários: Auto Lyra
Teixeira, Ana Thereza Basílio Vieira, Arlete José Mota, Henrique Fortuna
Cairus, Mára Rodrigues Vieira, Michele Eduarda Brasil de Sá, Ricardo de
Souza Nogueira; e os recém-chegados, Carlos Eduardo Costa Scherer e
Maria da Conceição Silveira; e, ainda, Glória Braga Onelley e Jandyra
Figueiredo, hoje professoras da UFF. Rememoremos a todos os que
contribuíram ou contribuem para que este evento floresça cada vez mais e
para que, parafraseando o proêmio das Histórias, de Heródoto, “os
vestígios de nossas ações não se apaguem com o tempo”, pois desejamos
que não sejam ignorados os motivos por que as realizamos.

9
Após rememorarmos, um terceiro acorde ressoa: recordar. Ora,
recordar é fazer voltar ao coração os sentimentos outrora vividos, é dar
vazão a póthos, o desejo da presença de uma ausência. É o momento de
trazermos ao nosso coração a lembrança saudosa, porém agradável, dos que
já se foram: Luiz Carlos Stamato Marcelino de Carvalho, Guida Nedda
Barata Parreiras Horta, Ruth Junqueira de Faria, Antônio Augusto
Carvalho Júnior, Jessé de Macedo e Paulo Roberto Guapiassu. Tenho
certeza de que de onde estejam, contemplam e partilham desta nossa festa.
Só me resta, então cantar com o poeta Estesícoro:

Musa, põe de lado as guerras e celebra comigo


Os deuses, os esponsais dos heróis, os banquetes e festas dos
bem-aventurados.
(fragm. 12 Diehl) *

E eu, valendo-me do amebeu, canto em réplica:

Musa, de tranças cor de violeta, celebra comigo


As bodas de prata da Semana de Estudos Clássicos.

* Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira

10
ARISTÓFANES E O DISCURSO PELA PAZ
Alair Figueiredo Duarte

A comédia de Aristófanes deixa transparecer a preocupação do


comediógrafo com a situação de conflito vivenciada pelos atenienses no V
século a.C.
A comédia A Paz, apresentada nas Grandes Dionisíacas do ano de
421, denuncia a posição daqueles que não queriam o fim dos conflitos por
vantagens provenientes do embate entre atenienses e espartanos. E para
manter, usaram todos os artifícios que estavam ao alcance, tais como:
justificativas em nome dos deuses, violação dos santuários e desrespeito
aos ritos fúnebres.
Aristófanes, diante de uma platéia de atenienses e seus aliados, os
alertou para estes fatos, vejamos: “Esses homens não puxam todos por
igual. E se vocês acertarem o passo?! Vocês ai beócios, cheios de empáfia,
não é? Vão dar o berro, isso vão!” (Paz, 465).
Na obra do historiador grego Tucídides, contemporâneo de
Aristófanes, pode-se observar os acontecimentos que desencadearam os
comentários feitos pelo poeta na apresentação da comédia.
Sobre este fato, Tucídides relata que no combate envolvendo
atenienses e beócios na fronteira da Orópia com Tanágara, aqueles após
serem derrotados, enviam um arauto para reclamar seus mortos. Obtém
como resposta, que só os terão quando deixarem os santuários que estão
ocupando em um território que não é seu. Isto faz com que os atenienses
enviem um novo arauto informando que de acordo com a lei dos helenos,
quem exerce domínio sobre um território tem direito aos templos nele
existentes. Ao término da mensagem, o arauto alega que os atenienses não
entraram nas dependências destes templos com intenção de profaná-los, e
que estavam respeitando os ritos, e se, caso os beócios pretendiam entregar
os mortos em troca dos templos, estavam cometendo impiedade ao impedir
seus sepultamentos dos mortos1.
No fragmento em questão, também são abordadas as atitudes da
pólis tebana que com as recentes vitórias alcançadas, não estaria interessada

1
Tucídides, A História da Guerra do Peloponeso, IV, § 96-101.

11
em negociar o Tratado de Níceas, já que, com sua adesão ao pacto, ficaria
condicionada a devolver os territórios conquistados aos atenienses2.
Segundo Plutarco3, o conflito teria pouca duração se o solo
ateniense não fosse acometido pela peste4. Vejamos sua citação: “é
evidente que não teriam sustentado a guerra por muito tempo (referindo-se
aos inimigos dos atenienses), mas a ela renunciado logo como Péricles
previra desde o início se alguma divindade não se opusesse aos cálculos
dos homens5”.
Quanto à longa duração do conflito6, bem mais extenso que de
costume, favoreceu o crescimento da indústria armamentística, além de
encarecer o valor da matéria prima usada na produção de material bélico,
eram produtos como: couro, ferro e bronze necessários para produção de
espadas e elmos. Com isso os oligarcas responsáveis por essa produção,
ficaram fortalecidos em Atenas.
Estes ricos emergentes, oriundos de atividades mercantis, diante
deste cenário de conflito, não lucraram somente com o comércio, mas
também obtiveram ascensão no quadro político ateniense. Este fato pode
ser observado quando Cléon, oligarca do setor de curtume, chega à
liderança na assembléia ateniense após a morte de Péricles. Na comédia,
Aristófanes direcionou diversas críticas a Cléon, denunciando práticas
irregulares praticadas por este político e seu grupo.
Na apresentação da comédia houve uma encenação do restabele-
cimento da paz na região, e neste momento também foram satirizados os
lamentos dos mercadores de armas, os quais ficariam falidos com o fim do
conflito, como nos indica a citação: “Deste cabo de minha vida e deste e
daquele fabricante de lanças” (Paz, 1210).
Podemos atribuir a Aristófanes o adjetivo de ser um defensor do
homem do campo. Em A Paz deixa transparecer uma distinção entre o
2
Tucídides, A História da Guerra do Peloponeso, V, § 17.
3
Filósofo e Historiador do séc. I d.C.
4
Péricles condicionou toda a população dentro da cidade protegida pelas muralhas. A população acusou
Péricles de ser o responsável pela peste; “... a epidemia brotara da grande massa de camponeses que se
amontoara na cidade, os quais eram forçados a viver, em pleno verão, em habitações exíguas e barracas
abafadas, levando uma existência sedentária e inativa em lugar do regime saudável e ao ar livre que antes era
seu” (Plutarco. Vidas Paralelas, Péricles § 34).
5
Plutarco. Vidas Paralelas, Péricles § 34.
6
Na apresentação da comédia A Paz, já haviam passado dez anos de início do conflito com os espartanos,
porém é possível que Aristófanes atribua seu início às desavenças entre Corcira e Corinto em 434 a.C.,
somando um total de treze anos. Ver A Paz, 990-995. Porém Leeuwen (op.cit., pp. 150-151), recusa-se a
aceitar qualquer intenção de datas por parte de Aristófanes, e interpreta o treze como um número redondo
(cf. Ra. 50, Pl.846), uma boa dúzia de anos.

12
cidadão do espaço urbano e o cidadão do meio rural; observemos mais um
dos fragmentos da comédia: “É assim que eles nos tratam, a nós,
camponeses; aos da cidade nem tanto” (Paz, 1185). Com esta passagem
denuncia a atitude dos taxiarcos7, que por receio de comprometerem sua
popularidade junto às multidões urbanas tratavam com menor consideração
a população camponesa, a qual analisamos nas comédias aristofânicas
como a mais afetada pela guerra.
Com suas denúncias, Aristófanes mostra a verdadeira função do
teatro, ser um veículo pedagógico, ou seja, preparar o cidadão para exercer
sua cidadania na Ágora; defendendo através do voto o bem coletivo e
evitando que políticos, visando interesses pessoais, manipulassem massas
com uso da força retórica.
Segundo J. Rich8, no V século a.C. o termo guerra, possuía sentido
adverso ao que nós compreendemos na atualidade, já que o termo era utilizado
somente para discórdias armadas envolvendo etnias ou regiões distintas.
Destaca que, para casos como o ocorrido no Peloponeso, em que estavam
envolvidos povos que possuíam a mesma língua, etnia e cultuavam os mesmos
deuses, o termo que melhor definiria a situação seria a palavra conflito.
Partindo desta definição é possível identificar uma das razões pela
qual Aristófanes tanto criticou o conflito no Peloponeso. Pois esse conflito
poderia ser classificado como uma autoflagelação, helenos destruindo e
matando helenos. Dessa forma, estes homens estariam se condenando à
miséria, pois enquanto estivessem entregues a este cenário de guerra, não
poderiam cultivar e, portanto, sem condições de tirar da terra a sua
subsistência. Considerações claramente visíveis em A Paz, através da
citação: “Para os camponeses era o pão e a salvação” (Paz, passim 580-
585-590-595-600).
Observando a obra aristofânica, é possível verificar que o
conflito no Peloponeso trouxe: desordem, morte, destruição e corrupção
às pólis envolvidas. O poeta destaca também práticas oportunistas que
determinados seguimentos sociais usaram para benefício próprio.
Com a duração de vinte e sete anos, ao fim da guerra, a pólis
ateniense estava arrasada. Sua armada estava nas mãos dos seus inimigos e
sua muralha, fator de orgulho e identidade, destruída. Sendo possível
observar por este exemplo que a intransigência ateniense foi o ponto inicial

7
Comandantes de infantaria na antiguidade tinham entre uma de suas atribuições fazer o alistamento e
lançar o nome dos convocados à guerra.
8
War and Society the Greek Word.

13
que a levou à destruição. Os clamores da “Paz” em 421 a.C., não se
tratavam de uma profecia; mas as denúncias de Aristófanes, de certa forma,
prenunciaram este fatídico fim.
Restou às gerações posteriores o exemplo. Um exemplo que o
Aristófanes soube abstrair de vozes do passado como fez na apresentação
da comédia citando: “Mas Homero o sábio disse e muito bem: laços de
sangue, a lei e o lar nada têm de valor para aqueles que amam os horrores
da guerra...9” (Paz, 1095).
É possível que Aristófanes tenha citado Homero, não somente pelo
valor que sua memória representava para a cultura helena, mas sim para
mostrar que ele (Homero), que na Ilíada mostra o guerreiro ideal, possuidor
de coragem, honra e caráter firme, não foi um incentivador da guerra,
defendendo a banalização da violência. Mas, na verdade, a mensagem de
seus versos era uma advertência de que disseminar violência para satisfazer
interesses próprios ou de grupos não poderia ser considerado bravura, mas
sim uma falha de caráter.
Com este ultimo exemplo, Aristófanes proporcionou ao cidadão
ateniense e seus aliados, a possibilidade de repensarem os clamores daqueles
que incentivaram homens a lutarem sob alegação de terem seus nomes
imortalizados por defenderem a honra do seu solo, assim como fizeram os
heróis míticos. Mas na verdade esses homens declaravam tais palavras,
ocultando interesses diversos, os quais foram revelados pela comédia.
Por fim é relevante lembrar que estes políticos, aos quais
Aristófanes criticou, foram em grande parte instruídos por um determinado
grupo na sociedade ateniense do V século a.C.: os sofistas10.
Com eles aprendia-se a fazer belos e inflamados discursos,
transformando aparentemente algo prejudicial em bom e útil. O interessante
nisto é que as críticas contidas na comédia de Aristófanes são elementos
que ainda na atualidade nos servem de advertência para o cuidado que
devemos ter em não nos deixarmos levar por belos e comoventes discursos.
Principalmente aqueles que são feitos em nome da liberdade e da
democracia. Pois assim como na antiguidade é comum vermos políticos se
apropriarem destes ideais, para promoverem guerras como vivenciamos
atualmente entre Ocidente e Oriente, Árabes e Israelenses, mas que
abrigam interesses privados como nos apontam as ocorrências de dois mil e
quatrocentos anos atrás entre atenienses e espartanos.
9
Cf. Ilíada; IX, 63-64.
10
Professores de retórica que cobravam altos valores por seus ensinamentos.

14
Documentação textual
ARISTÓFANES. A Paz. Versão do grego de Maria de Fátima de Souza e Silva.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1984.
PLUTARCO. Vidas Paralelas. São Paulo: Paumape, 1991.
TUCIDIDES. A História da Guerra do Peloponeso. Trad. de Mario da Gama
Kury. 2. ed. Brasília: UNB, 1986.

Referências bibliográficas
BOBBIO, NORBERTO. Teoria Geral da Política. Trad. de Daniela Beccaccia
Versiani. São Paulo: Editora Campus, 2000.
GARLAN, YVON. Guerra e economia na Grécia antiga. Trad. de Cláudio César
Santoro. Campinas: Papirus, 1991.
KO RN I C K, ANN A M. O p o d er em q u e stã o n a s co méd ia s d e
Ari s tó fa n es , ( T ex to ) .
RICH, Jhon e GRAHM, Shipley. War and Society the Greek Word. London and
New York, 1993.
VERNANT, JEAN PIERRE. O Homem Grego. Trad. de Maria Jorge Vilar de
Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1994.

15
PIETAS: FATOR DE CONVERGÊNCIA NA CONSTRUÇÃO TEXTUAL
Alice da Silva Cunha

A pietas (piedade) constitui um dos valores mais importantes da


cultura romana; resguarda esta noção, em princípio, um sentimento de
lealdade e obrigação para com aqueles aos quais se está ligado por vínculos
de parentesco: pais, filhos, parentes. Assim sendo, acha-se a pietas
fundamentada em relações de natureza familiar, que ultrapassam a esfera da
vida terrena, para estender-se ao culto dos antepassados. Firma-se, então,
um sentimento religioso entre os romanos que veneram os Manes, Lares e
Penates, divindades vinculadas à religião doméstica. A partir desse vínculo
afetivo que une os membros de uma família, a pietas abrange o culto às
divindades e se projeta nas relações da comunidade com o Estado.
A exemplo do que se verifica no âmbito da estrutura social romana, a
pietas ocupa também lugar de relevo na literatura latina, para tanto basta
apenas mencionar o epíteto pius, atribuído a Enéias, herói da epopéia latina,
ressaltando a piedade como a principal de suas virtudes. Encontra ressonância
esta idéia na tradição vinculada ao longo dos tempos, em obras dos mais
diversos autores, dentre os quais pode citar-se Cícero: “pietas fundamentum
omnium uirtutum” (Planc., 12, 29). Limitar-nos-emos, neste trabalho, a abordar
alguns trechos relativos à pietas na obra virgiliana e a sua repercussão no
poema In partum Ioannae Serenissimae Lusitaniae Principis, de Miguel de
Cabedo, autor renascentista português, cuja obra mencionada trata do
nascimento de D. Sebastião, filho do Príncipe João e da Princesa Joana.
Desde os versos iniciais, a epopéia virgiliana alude à característica
que mais singularmente distingue o herói troiano – a pietas (piedade).

“Musa, mihi causas memora, quo numine laeso


quidue dolens regina deum tot uoluere casus
insignem pietate uirum, tot adire labores
impulerit.” (Aen., I, 8-11)
[Faze-me lembrar, ó Musa, as causas, que divindade foi ultrajada
e por que, incitada, a rainha dos deuses fez com que sofresse
tantos perigos e enfrentasse tantos tormentos um varão insigne
pela piedade.]

16
Na invocação à musa, o poeta procura auxílio para lembrar as
causas que levaram a deusa Juno a infligir tantas tribulações a um herói
insigne pela piedade. Segundo alguns estudiosos, a razão para tal
procedimento residiria nos estreitos vínculos entre o mito e a história, uma
vez que Juno, protetora de Cartago, tudo fará para impedir a chegada de
Enéias à Itália, pois como divindade tem condições de prever os riscos que
a fundação futura de Roma acarretaria para a supremacia de Cartago.
No momento em que Enéias, levado pelos fados, chega a Cartago,
cidade fundada pela rainha Dido, por quem o herói troiano virá a se
apaixonar, apresenta-se com o epíteto pius junto ao seu próprio nome.

“Sum pius Aeneas, raptos qui ex hoste Penatis


classe ueho mecum, fama super aethera notus
Italiam quaero patriam et genus ab Ioue summo.”
(Aen., I, 378-380)
[Sou o piedoso Enéias, que trago comigo, na frota, os Penates
arrebatados ao inimigo, célebre pela fama que atingiu o alto céu.
Procuro a Itália, minha pátria e origem de minha estirpe, que vem
do supremo Júpiter.]

Ressalte-se que o adjetivo pius precede o próprio nome do herói, e a


razão por que lhe fora atribuído tal epíteto encontra justificativa na seqüência
oracional explicativa, ao assinalar que, em sua frota, ele trazia consigo os
deuses Penates, arrebatados ao inimigo. Esse fato demonstra, sem dúvida,
devoção e lealdade para com as divindades protetoras da pátria, o que,
certamente, prefigura desvelo no cumprimento do dever para com a pátria.
No relato das agruras vivenciadas na guerra de Tróia, Enéias relembra
as palavras de Heitor que o aconselha a abandonar Tróia e seguir o seu destino.

“Sacra suosque tibi commendat Troia penatis;


hos cape fatorum comites, his moenia denique quaere
magna, pererrato statues quae denique ponto.”
(Aen., II, 293-295)
[Tróia confia a ti seus objetos sagrados e os seus Penates; toma-os
como companheiros de teu destino, procura para eles muralhas
grandiosas que, finalmente, erguerás, depois de teres percorrido, sem
rumo, os mares.]

17
Mais uma vez, dentre as inúmeras que perfazem a narrativa épica,
constata-se a piedade do herói para com as divindades de sua pátria. A sua
trajetória será marcada tanto pela fidelidade no cumprimento dos ritos
sagrados devidos aos deuses quanto pela observância dos deveres relativos
ao cumprimento de sua missão. Reside, nesta seqüência, um teor profético
na alusão às majestosas muralhas, símbolo de fundação da cidade, que
serão erguidas, não antes, porém, de Enéias enfrentar os perigos dos mares.
A pietas, como antes fora mencionado, acha-se profundamente
vinculada aos laços familiares. Após a queda de Tróia, Enéias se vê forçado
a abandonar sua pátria, contudo seu amor para com a família não permite
que se afaste deixando algum de seus membros. A relutância do pai,
Anquises, em segui-lo vai de encontro à firme determinação de Enéias que,
em hipótese alguma, considera a possibilidade de abandoná-lo em terras
troianas, estando ele tão fragilizado pela velhice. O amor devotado ao pai
não conhece limites, daí estar o herói troiano disposto a enfrentar os
obstáculos que sobrevierem. Portanto, diante de tamanha convicção e
demonstração de zelo filial, Anquises cede ao desejo do filho:

“Cedo equidem nec, nate, tibi comes ire recuso.” (Aen., II, 704)
[Cedo, pois, e não mais me recuso a acompanhar-te, meu filho.]

Então, Enéias toma o pai em seus ombros e, deixando Tróia, parte


com toda a família.

“Ergo age, care pater, ceruici imponere nostrae;


ipse subibo umeris nec me labor iste grauabit;
quo res cumque cadent, unum et commune periclum,
una salus ambobus erit. Mihi paruos Iulus
sit comes, et longe seruet uestigia coniunx.”
(Aen., II, 707-711)
[Vamos, pois, meu querido pai, coloca-te sobre a minha cerviz,
eu mesmo levar-te-ei em meus ombros, e este fardo não me será
pesado. Portanto, o que quer que venha a acontecer, único e
comum será o nosso perigo, única a nossa salvação. Que o
pequeno Iulo seja meu companheiro e minha esposa siga de
longe os meus passos].

As condições de Anquises revelam-se precárias, no entanto, o amor do


filho para com o pai concretiza-se no desvelo com que se dedica à sua

18
salvação. A imagem de Enéias levando aos ombros seu pai, bastante
difundida através dos tempos, talvez seja a representação pictórica mais
representativa e freqüente relacionada ao mito de Enéias. Esta cena
aparece, por exemplo, como motivo na pintura de vasos gregos.
Os vínculos familiares constituem, pois, o fundamento de toda uma
relação afetiva que encontra respaldo no compromisso de respeito mútuo,
fortalecendo os laços de parentesco que unem profundamente os membros de
uma família. Enéias parte com os seus companheiros e com a sua família: o
pai, o filho Iulo e a esposa Creusa. Ao valorizar a família, o herói troiano
encarna o ideal preconizado pela pietas, sendo admirado não apenas pelo amor
devotado aos seus, mas também como modelo exemplar de comportamento no
que diz respeito à família, sustentáculo da sociedade romana.
A viagem empreendida por Enéias leva-o a enfrentar grandes
perigos e tormentas, ações às quais não se pode furtar o varão, cuja
heroicidade só pode ser reconhecida mediante as provas necessárias.
Assim, após vencer os desafios impostos pelo destino, Enéias chega, enfim,
à pátria que fora destinada a si e aos seus. Tomado de imensa alegria,
celebra, junto aos companheiros, a concretização dos ideais almejados.

“Nunc pateras libate Ioui precibusque uocate / Anchisen


genitorem et uina reponite mensis.” (Aen., VII, 133-134)
[Agora, fazei libações a Júpiter, invocai em vossas preces meu
pai Anquises e colocai vinho nas mesas].

Os primeiros instantes de Enéias, em terras da Itália, acham-se


marcados pela observância dos ritos devidos às divindades, é evidente que
esta atitude do herói troiano coaduna-se, em essência, com os princípios
consagrados pela pietas, tanto na libação a Júpiter, de cuja estirpe
descende, quanto na honra devotada ao pai, uma vez que por esse ato
consolida-se a intersecção entre o plano mítico e o humano.
Assinale-se, ainda, que a chegada dos troianos à Itália conta com o
beneplácito da divindade local, o Tibre, que, nestes termos, se dirige a Enéias:

“O sate gente deum, Troianam ex hostibus urbem


qui reuehis nobis aeternaque Pergama seruas,
Exspectate solo Laurenti aruisque Latinis,
hic tibi certa domus, certi ( ne absiste ) penates;
neu belli terrere minis; tumor omnis et irae
concessere deum.” (Aen., VIII, 36-41)

19
[Descendente da estirpe dos deuses, que nos trazes a cidade troiana
arrebatada aos inimigos e que conservas a eterna Pérgamo, aqui, em
solo laurenciano e nos campos latinos está a morada a ti destinada,
aqui os teus Penates (não te afastes); não te deixes atemorizar com
as ameaças de guerra; cessaram a indignação e a cólera dos deuses.]

As palavras proféticas do Tibre revelam ao herói que chegara,


enfim, à terra que lhe fora predestinada; sua missão, contudo, continua em
solo italiano, não lhe sendo permitido esmorecer, até que possa cumpri-la
na íntegra, em consonância com a predestinação dos fados.
O poema In partum, de Miguel de Cabedo, reveste-se de um teor
eminentemente laudatório, ao celebrar a chegada de um herdeiro tão desejado,
face às vicissitudes que atingiram de forma trágica a Casa Real Portuguesa,
com o falecimento prematuro do Príncipe João, esperança única do reino. O
nascimento de D. Sebastião, filho do desventurado Príncipe, acha-se, então,
envolto numa atmosfera de grande expectativa vivenciada pela sociedade lusa,
que à época corria o risco de não ter sucessor na linhagem dinástica, fato que
poderia comprometer a soberania da nação lusitana.
Os versos iniciais do poema renascentista constituem uma evoca-
ção aos deuses pagãos, seguindo, em consonância com a época, a tradição
mitológica da Antigüidade Clássica. É evidente que esta retomada mítica
obedece a outros princípios, norteados por mudanças ocorridas ao longo do
tempo e, que alteraram substancialmente o contexto sócio-cultural vigente
nesse dado momento histórico.

“Dii, quibus imperium hoc semper stetit, ortaque paruis


Principiis uicto se Lusitania Gangi
Imposuit, domitoque polum per utrumque profundo
Signa tulit, postquam Hesperias eoa carinas,
Litora Pelei prolem indignata tyranni,
Ignotis uexere uadis, Lusique potentem
Progeniem per tot, qua uenerat, aspera ponti
Aequora gemmiferum tandem duxistis ad Indum”
(In part., 1-8)
[Deuses, por quem este império sempre se manteve e a Lusitânia,
nascida de origens simples, impôs-se ao Ganges vencido e,
dominado o mar, levou suas insígnias por um e outro pólo e, depois
que os litorais do Oriente maltrataram os navios hespérios,
indignando-se contra a prole do tirano Peleu, guiastes, enfim, a

20
poderosa raça lusitana por tantas superfícies perigosas do mar, por
onde tinha chegado ao Indo, rico em pedras preciosas.]1

Ressalte-se, pois, que a primeira palavra do poema – dii (deuses) – traz


à memória de ouvintes ou leitores, habituados ao estudo das obras clássicas, a
ressonância de textos clássicos, desejada pelo poeta, que busca no diálogo
estabelecido com as fontes textuais, a construção de um novo texto, de inédito
significado. Portanto, a evocação aos deuses, no poema cabediano, resgata, no
nível mítico, toda uma tradição cultural fortemente enraizada no legado de
civilização deixado pela Antigüidade em terras da Lusitânia. É interessante
notar que a alusão à Descoberta do Caminho Marítimo para as Índias está, no
poema, vinculada ao plano mítico, como sinal de predestinação dos deuses, em
reconhecimento à pietas, virtude atribuída de forma especial a D.João III, rei
de Portugal, a quem o poema é dedicado. Releva-se, de imediato, a antítese em
que se contrapõe a origem humilde da Lusitânia face à grandeza dos feitos por
ela realizados, feitos esses de inegável importância histórica; no entanto, acha-
se também circunscrito este ato heróico à esfera mítica, encontrando, assim,
justificativa no beneplácito dos deuses, e a razão da proteção divina vincula-se,
essencialmente, à pietas. No âmbito da intertextualidade, não nos podemos
furtar ao estabelecimento de uma correlação entre o texto virgiliano e o texto
renascentista, visto que há em ambos os textos pontos de convergência no que
tange à pietas como fator essencial para o cumprimento do destino.
A referência à piedade de João, assinalada por Júpiter, no poema
cabediano, reveste-se de enorme importância, pois contribui de forma
efetiva para a integração do rei João no plano mítico, investindo-o dos
requisitos necessários para, a exemplo de Enéias, tornar-se merecedor da
proteção dos deuses pagãos.

“... nec uos castae reuerentia mentis


Ioannis latet in superos, qui regna paternis
Atque suis quamuis sudata laboribus olim
Ampla tenet uos”. (In Part., 213-216)
[Não vos escapa a reverência aos deuses da piedosa mente de
João que, por vosso intermédio, possui extensos reinos, ainda que
conseguidos, um dia, com dificuldade, pelos próprios esforços e
pelos paternos.]

1
As traduções referentes ao poema In partum... integram a obra A vertente épica em Miguel de Cabedo.

21
No texto renascentista, a pietas de João encontra o reconhecimento das
entidades míticas, mas aponta, além disso, para um outro aspecto fundamental
– a valorização da ação humana – fator de grande importância, pois coaduna-se
com princípios humanistas vigentes nesse dado momento histórico.
A elocução de Júpiter, numa outra seqüência do poema alusiva à
piedade virtuosa do rei D. João, deixa transparecer a existência de uma
confluência mítico-cristã, reflexo da intersecção paganismo/cristianismo,
comum desde os tempos medievais, e bastante freqüente na época
renascentista.

“.... Non sanguine auorum


Tot supra regum, blandis luxusue profusi
Intumet illecebris, toto famulantibus orbe
Diuitiis, sed mente Deum complexus in omne
Numinis obsequium regnat non limite moto
Longius imperium censens, sed finibus illud
Terrarum cessisse suis ratus.” (In Part., 219-225)
[Acima de tão grande número de reis, ele se eleva, em todo o
mundo, não pelo sangue dos antepassados ou pelos suaves
enganos do luxo excessivo, que estão a serviço das riquezas, mas,
ligado a Deus pelo pensamento, reina em obediência à divindade,
não imaginando ser o império maior do que o limite estabelecido,
mas persuadido de terem aquelas terras passado aos seus
domínios pela mão do destino.]

Os versos mencionados, relativos ao reinado de D. João III,


ressaltam a sua notória piedade, perpetuada pelo epíteto que lhe fora
conferido: “o piedoso”. Convém assinalar que a menção à piedade de D.
João, neste contexto, apesar de profundamente marcado pelo paganismo,
diz respeito à sua crença em Deus, Único e Verdadeiro, segundo os
princípios do Cristianismo.
Na seqüência do poema, atesta-se, de forma mais contrastante, a
devoção cristã de D. João, assinalada, em meio a uma atmosfera de teor
eminentemente mítico, pela elocução do supremo Júpiter.

“... Asserit omne


Relligio quod uera Dei, meliore nefandos
Permutans cultu ritus, et adultera sacra
Degeneresque deos, haec nos data gentibus aequum est

22
Caelicolae, digno pensemus munere.” (In Part., 225-229)
[Trocando os ritos nefandos, os falsos sacrifícios e os deuses
ignóbeis por um culto melhor – tudo que a verdadeira religião de
Deus exige – é justo meditarmos terem sido dadas todas essas
coisas aos povos por uma digna dádiva divina.]

Estes versos configuram, por assim dizer, uma visão aparentemente


caótica que se instaura no plano mítico, iniciando um processo de
desmistificação, que se fará sentir no contexto da obra como um todo. Nota-se,
na articulação do texto, uma estrutura fundamentada no paradoxo existente
entre o plano mítico e o histórico, em que se percebe um esvaziamento do
significante relativo ao mito, resultando, daí, uma valorização do significado
no nível do contexto sócio-cultural. Então, em consonância com o momento
histórico vivenciado, observa-se que todo esse processo de desmistificação do
mito, reduzido a parâmetros puramente estéticos, configura, de forma
exemplar, a supremacia da fé cristã face aos cultos pagãos.
Assim, pietas, sentimento tão caro aos antigos romanos, encontra
em Enéias, o herói troiano, o modelo por excelência. A manifestação da
pietas, no entanto, resiste aos séculos e a sua trajetória configura-se de
acordo com os ideais e princípios inerentes a cada época e sociedade. No
poema renascentista, a pietas significa, em essência, o respeito e a gratidão
devidos à divindade. Num primeiro momento, assinala-se a piedade de D.
João III, motivo pelo qual encontra o beneplácito dos deuses, para os
empreendimentos portugueses no ultramar. A seqüência dos versos, no que
se refere à pietas, apresenta-se em conformidade com a religião vigente na
época renascentista, o Cristianismo. Desconstrói-se, então, a veracidade do
mito, e a partir daí, instaura-se a religião verdadeira, cuja expansão além-
mar, movida pelo ideal de Cruzada, poder-se-ia dizer, encontra respaldo na
pietas. No poema cabediano, articula-se, pois, a pietas na interação dos
planos mítico e real, resgatando vozes do passado que interagem com as
vozes do presente, que, uma vez assimiladas na construção do texto
poético, revelam, em pleno, a essência de um novo significado.

23
Referências bibliográficas:
DELUMEAU, Jean. A civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa,
1984. 2 v.
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História e Cultura Clássica. v. II.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
SILVA, Marilda E. dos Santos. A vertente épica em Miguel de Cabedo. Tese de
Doutorado em Letras. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 1980.
VIRGILE. Énéide. Texte ét. par René Durand et trad. par André Bellessort. Paris:
Les Belles Lettres, 1948. 2 v.

24
A CONTAMINATIO DE PLAUTO
Amós Coelho da Silva

Graecia capta ferum victorem cepit et artes / Intulit agresti Latio,


A Grécia subjugada superou o seu feroz vencedor e introduziu as artes no
agreste Lácio, (Horácio, Epístolas 2, 1, 156), exprime bem o que foi a Pax
Romana, a Paz Romana. Por artes, resume Horácio (65 - 8 a.C.) a filosofia,
religião, teatro, a gramática, etc. Na religião, os romanos receberam o fluxo
de influência helênica no seu panteão; assim, deuses gregos aos romanos
fixarão características: Zeus a Júpiter, Hera à deusa Juno, Afrodite à bela
Vênus, Atená à sábia Minerva, Apolo se impõe como Apolo mesmo etc.,
cujo sincretismo passará a ser a missão dos romanos. Na expressão de
Maria Helena da Rocha Pereira o que se entende por Cultura Romana não
pode ser desligado do próprio processo de Helenização de Roma,
assinalado por Horácio pela cruel espada frente ao esteta helênico, embora
tenha de se reconhecer que, mais do que imitação, se deve falar de
assimilação criadora... (PEREIRA, 1982: 37).
Os romanos ocuparam a cidade grega de Tarento e de lá trouxeram o
prisioneiro Lívio Andronico, que, mais tarde, traduziria a Odisséia que
ainda no tempo de Horácio era aprendida pelas crianças. (Idem, p.41) Por
orientação do Senado, traduziu uma peça do teatro grego, por ocasião do
final da Primeira Guerra Púnica, para ser representada nos Ludi de 240
a.C. Mas não se deve descartar a influência do Círculo dos Cipiões, que
não era uma instituição oficial, mas um grupo de pessoas com gostos e
interesses afins, que freqüentavam a casa de Cipião (Idem, p.51) e
defenderam a união da tradição romana à “paidéia grega”. (Idem, p.51)
O verbete pedagogo - ‘paidagogos, ou’, escravo encarregado de
conduzir as crianças à escola, pedagogo, pelo latim ‘paedagogus,i’ - no
dicionário de Antônio Houaiss tem datação de 1589 no vocabulário
português. Porém, devemos retroceder até a antiga Roma e começar pelo
marco inicial da Literatura Latina, como manifestação estilística hodierna,
com o citado escravo grego Lívio Andronico, tomando a data de sua prisão
na guerra: 272 a.C. Ele foi a própria presença do pedagogo grego, ou seja,
um escravo condutor da criança romana para a escola – palavra cunhada em

25
latim: schole,es, pelo latim schola, que se fixou e se expandiu no
Ocidente, como ocorreu com tudo que foi assimilado da Grécia por Roma.
Na comédia, quando os assuntos eram helênicos e isso implicava
nos atores com traje pallium, pálio – vestimenta grega correspondente a
toga romana-, as peças eram denominadas fabulae palliatae. Só mais tarde
surgiram as fabulae togatae, com temas nacionais. Plauto e Terêncio foram
autores de palliatae.
Titus Maccus (ou Maccius) Plautus nasceu na Úmbria por volta de
250 e faleceu em 184 a.C. Das 130 comédias apontadas como de sua
autoria, Varrão, erudito do século I. a.C., só reconheceu as 21 seguintes:
Amphitruo, Asinaria, Aulularia, Captiui, Curculio, Casina, Cistellaria,
Epidicus, Bacchides, Mostellaria, Menaechimi, Miles Gloriosus, Mercator,
Pseudolus, Poenulus, Persa, Rudens, Stichus, Trinummus, Truculentus,
Vidularia – as quais continuaram a ser lidas e transcritas, graças à definição
varroniana, cujo manuscrito da máxima autoridade é o Vaticanus Palatinus
1615, do século X.
Inspirava-se Plauto na Literatura Grega de IV e III a.C. A sua arte
consiste em E multis unam facere, de muitas fazer uma, isto é, através da
contaminatio, da contaminação de autores como Menandro, Filêmon e
Dífilo. Já havia em Plauto o que Julia Kristeva denominou, em 1969, de
intertextualidade. Intertextualidade refere-se à produtividade da escritura
literária, no sentido de textos anteriores ficarem disseminados ou
redistribuídos em novos textos; por isso, seria preciso pensar um texto
hodierno como um intertexto. A isso, acrescenta Roland Barthes: Todo
texto é um intertexto, outros textos estão presente nele, em níveis variáveis,
sob formas mais ou menos reconhecíveis (…). Em Plauto, e até em
Terêncio, essa intertextualidade estava explícita e, se o poeta imitasse ou
assimilasse o mesmo mais de uma vez, seria considerado plágio. No caso,
de intertextualidade, diz-nos Roland Barthes: O intertexto é um campo
geral de fórmulas anônimas, cuja origem raramente é recuperável, de
citações inconscientes ou automáticas, feitas sem aspas (CHARAUDEAU
& MAINGUENAEAU, 2004: intertextualidade).
Da Comédia Antiga de Aristófanes, temos em Plauto o prólogo,
mas sem assuntos políticos, estabelecendo a conexão entre autor e platéia.
Na maior parte de suas peças os prólogos introduzem de imediato o assunto
ou tema. Nesses prólogos, utilizou-se Plauto até mesmo da autoridade
divina, estabelecendo não só a função fática da linguagem com a sua platéia
mas também conquistando definitivamente a sua atenção. Era uma platéia

26
formada, em grande parte, da pobre plebe romana, por isso o prólogo, que
adiantava o tema da peça como se evitasse qualquer mistério no argumento
da peça, tornou-se um recurso de captatio beneuolentiae, captação da boa
vontade – a exemplo do prólogo de uma peça sua em estilo de fabula
rinthonica, ou seja, de assunto mitológico, como fazia o poeta que lhe deu
o nome: Rinto de Tarento.
Assim, em Anfitrião, Aululária e O Cabo (Rudens) está a
autoridade divina, respectivamente, de Mercúrio, o deus Lar, a estrela
Arcturo.
Em Anfitrião nota-se a ansiedade de conquistar a simpatia da
platéia pela autoridade da personagem Mercúrio, que, sendo deus dos
negócios, conforme a sua derivação do tema da terceira declinação merx,
mercis: mercadoria, comestíveis; negócio e seguinte família etimológica
portuguesa: mercearia, mercado, comércio, mercantil, supermercado etc.
Com efeito, Mercúrio explica à platéia a sua missão de mensageiro de
Júpiter, mas ainda muda de tragédia para tragicomédia, nos versos 50-1:
Nunc quam rem oratum huc veni primum proloquar, / post argumentum
huius eloquar tragoediae, ora, o pedido que me trouxe aqui declararei em
primeiro lugar, depois explicarei o argumento desta tragédia.
E nos versos seguintes: quid? contraxistis frontem, quia
tragoediam dixi futuram hanc?, por que contraístes a fronte, porque eu
disse que há de ser uma tragédia? Os espectadores não eram afeitos à
reflexão de assunto grave; desejavam mesmo era uma comédia: (verso 54-
5) faciam, ex tragoedia / comoedia ut sit omnibus isdem versibus, farei de
tragédia comédia com os mesmo versos – o que também demonstra que a
linha divisória entre um estilo e outro é muito tênue. Só depende de como
se engendram as palavras, e não apenas de palavras graves propriamente.

Vtrum sit an non voltis? sed ego stultior, / quasi nesciam vos
velle, qui divos siem. / teneo
quid animi vostri super hac re siet: / faciam ut commixta sit:
<sit> tragicomoedia, (56-9)
então, qual dos dois é o vosso desejo? / Como se eu não soubesse
o que vós quereis; eu que sou deus! Conheço bem a vossa
opinião e o que pensa sobre este assunto: farei de tal modo que se
misture e que seja uma tragicomédia.

27
Em troca, a platéia se comportaria e com justiça aplaudiria no final.
Com sua habilidade de comunicação fácil, lhes contrapõe que, como haveria
deuses na peça, não poderia ser comédia. Eis o Prólogo de Anfitrião (1-16):

Vt vos in vostris voltis mercimoniis


emundis vendundisque me laetum lucris
adficere atque adiuvare in rebus omnibus
et ut res rationesque vostrorum omnium
5 bene <me> expedire voltis peregrique et domi
bonoque atque amplo auctare perpetuo lucro
quasque incepistis res quasque inceptabitis,
et uti bonis vos vostrosque omnis nuntiis
me adficere voltis, ea adferam, ea uti nuntiem
10 quae maxime in rem vostram communem sient -
nam vos quidem id iam scitis concessum et datum
mi esse ab dis aliis, nuntiis praesim et lucro-:
haec ut me voltis adprobare adnitier,
[lucrum ut perenne vobis semper suppetat]
15 ita huic facietis fabulae silentium
itaque aequi et iusti hic eritis omnes arbitri.
Sempre que vós desejais em vossos comércios,
pelas compras e vendas, que eu disponha
gordo em lucros e (os) ajude em tudo
e sempre que (desejais) que eu desembarace bem
5 assuntos e cálculos de tudo fora e dentro
e aumente sempre e sempre com bom lucro,
as que começastes e empreendestes,
e, como boas notícias a vós e aos vossos,
quereis que eu disponha, as trarei. Estas,
10 que sejam as mais felizes para a república,
quando as dê, (pois vós sabeis que de fato
já me foi concedido e outorgado pelos deuses,
que eu presida as notícias e o lucro);
Para que aprove estas coisas e me esforce,
15 para que o lucro venha sempre para vós,
assim fareis silêncio para esta representação
e sereis juízes justos e iguais aqui.

Cada lugar seria fiscalizado e se for encontrado algum indício de


claque, o culpado será punido: Si quoi fautores delegatos viderint, Ut is in

28
cavea pignus capiantur togae, (67-8) de modo que serão despidas suas
togas na platéia, se pegarem esses cúmplices enviados.
Esse preceito de personagens divinas ou reais numa peça, como
indicativo de estilo trágico, nos lembra do conceito aristotélico: na comédia
ri-se do feio, sustentando-se na expressão: tal é, por exemplo, o caso da
máscara cômica: feia e disforme. Sua deformidade não é causa de
sofrimento. Esses princípios canônicos da arte dramática da época, os quais
eram tratados por Aristóteles, estão presentes na obra de Plauto. Como é o
caso em que o Estagirita afirma que as mais belas tragédias são as que
imitam assuntos sérios e graves, inspirados principalmente em reduzidíssimo
número de famílias, por exemplo, das famílias Alcméon, Édipo, Orestes...
(ARISTÓTELE, 1964: 286) e outras personagens idênticas, que tiveram de
suportar ou cumprir coisas terríveis, ou seja, príncipes, reis ou até deuses
como protagonistas, como observou Plauto em Anfitrião.
Depois de indicar a cidade de Tebas como local da ação cômica, dá
identidade de Anfitrião e Alcmena e o desejo de Júpiter de coabitar com
Alcmena. Justifica a seguir a sua vestimenta de escravo. Como Alcmena
pede a Anfitrião que vingue as desfeitas dos teléboas contra os seus
consangüíneos, o general e esposo atende ao seu pedido. E vai guerrear
contra Ptérela. Ora, já que Júpiter está com a aparência de Anfitrião,
Mercúrio, seu filho, e mensageiro, tomará a aparência de Sósia. No mito, os
deuses só não podem realizar junto aos mortais a epifania, como foi a de
Júpiter, que não pôde negar o pedido de Sêmele, que, instigada por Juno,
duvidara estar amando a Júpiter. Mas a hierofania, ou seja, a sua presença
sem a totalidade da luz, não afetaria os mortais.
Assim sendo, para que os espectadores saibam quem é Mercúrio ele
trará sempre duas asinhas no chapéu (nunc intergnosse ut nos possitis
facilius, ego has habebo usque in petaso pinnulas;(142-3) agora para que
possais mais facilmente nos reconhecer, eu - no meu caso – terei estas
asinhas no chapéu). O chapéu de meu pai terá uma franja de ouro.
Ninguém da família verá isso. Pronto, estar armado o qüiproquó, ou seja, o
trocadilho de situação, explorado por demais em Ernesto Feydeau (século
XIX), autor de comédias burlescas.
Desse modo, dois pares semelhantes: os deuses dissolutos e
desavergonhados, os mortais perturbados e cumprindo a sua sina de
mortais, ou seja, existindo apenas. No meio a virtuosa Alcmena. Logo que
o marido, iludido pela glória da guerra, retorna ao lar com o escravo,
encontra uma mulher sincera a duvidar das atitudes do marido. O escravo

29
na comédia plautina era o principal centro do discurso dramático, e é o
próprio escravo que se rebela contra Anfitrião, já nos versos 398-403:

SOS. Tuos sum;


Proinde ut commodumst et lubet, quidque facias;
400 Tamen, quin loquar haec uti facta sunt hic,
Numquam ullo modo me potes deterrere.
AMPH. Scelestissime, audes mihi praedicare id,
Domi te esse nunc, qui hic ades?
SOS. Vera dico.
SOS. Sou teu escravo; por isso faças o que convém e agrada;
porém, por que não falar estes fatos como são aqui, nunca, de
nenhum modo, podes me afastar deles.
AMPH. Grande velhaco, ousas sustentar que estás em casa
agora, que não estás presente aqui?
SOS. Digo a verdade.

São momentos de esquizofrenia. De equívoco em equívoco, a vida da


família se complica. A confusão só será desfeita quando Júpiter, e só ele
tem competência para tal – como deus ex machina – conforme prólogo
retardado, agora realizado por Júpiter, que se apresenta à platéia e explica
mais uma vez o enredo da peça. Transpomos aqui a partir do verso 718-21:

post igitur demum faciam res fiat palam,


Atque Alcumenae in tempore auxilium feram
Faciamque ut uno fetu et quod gravida est viro
Et me quod gravidast pariat sine doloribus.
Portanto, depois, em suma, farei esclarecer as coisas, e levarei ajuda
à Alcmena no tempo certo, farei, como de um único homem
engravidada, com que num só parto, dê à luz sem dor aos dois bebês.

Há, como se viu acima, em Anfitrião o expediente de prólogo


retardado, ou seja, nova tentativa de Plauto captar a boa vontade da platéia.
No início da Cena II, Mercúrio se dirige à platéia e explica que Alcmena
terá gêmeos um de seis meses e outro de nove, ou seja, Hércules – filho de
Júpiter. Para que demonstrasse justiça em Júpiter, fará Anfitrião saber de
tudo. E Alcmena? Ninguém censura Alcmena, nam deum / non par videtur
facere, delictum suum / suamque cupam expeter in mortalem, pois não

30
parece justo que um deus pratique o seu delito e transfira sua culpa para
um mortal (versos 334-6).
Ainda, querendo enfatizar o jocoso, mas também o deplorável, um
aparte (que é um expediente comum em Plauto, outra inspiração em
Aristófanes, aliás muito utilizada nos comediógrafos futuros – as outras
personagens não percebem o que está ocorrendo, somente a platéia),
Mercúrio no verso 367: Facitne ut dixi? timidam palpo percutit, acaso
acontece como eu disse?(mas) ele retira o seu susto com carinho.
Porém, em lugar de éleos e phóbos, compaixão e medo, seguidos de
catarse, purificação – categorias aristotélicas da tragédia, Plauto explorou
como expediente de Ridendo castigat mores, Rindo os costumes são
castigados, as velhacarias de escravos, solucionando as dificuldades que
um jovem apaixonado encontraria para conquistar o amor de sua amante. A
condição da menina amante era de escrava, mas, resgatando a cidadania,
como se uma mão justiceira não permitisse a dissolução do direito natural,
passaria a uma situação sublimada, até reconquistando o casamento.
Este passo, o casamento entre um pobre e um rico no desfecho,
denominado por Aristóteles de, ‘mesotés’, em Plauto, e também em
Terêncio, é de inspiração na Comédia Nova, principalmente em Menandro.
Aliás, é a própria trajetória da jovem Planésio na peça Caruncho. Com
efeito, Plauto, sem que se afastasse dos princípios canônicos em voga
então, captou a simpatia romana e superou a adversidade contida na
ignorância da plebe latina, que tão hostil fora contra o grande Terêncio.
Inspiraram-se em Plauto autores como W. Shakespeare, dele
assimilando em Comedy of Errors Os Menecmos; Molière assimilou de
Anfitrião e Aululária, respectivamente, Amphitryon e L‘Avare.
As duas últimas obras plautinas acima despertaram também desde
Camões a Guilherme de Figueiredo, poeta da nossa literatura. E a palliata de
Plauto foi estudada no mundo ocidental, apreciando os apartes bem
humorados, situações equivocadas e trocadilhos da sua personagem
Anfitrião. Assimilaram sua peça Anfitriões, comédia camoniana e Um Deus
Dormiu lá em Casa, que é uma das múltiplas obras de G. de Figueiredo
marcada pelo teor classicizante,mas centrada no tema cotidiano do momento:
a vida de playboys da década de 1950, como Jorge Guinle, que teve ligações
românticas com Rita Hayworth, Ava Gardner, Veronica Lake, Marilyn
Monroe etc. O elemento satírico peculiar à comédia está contido nesta
fugacidade do tempo: a moda do momento. Mas compete ao poeta superá-la.

31
Aululária ainda motivou outro autor consagrado na nossa
literatura brasileira atual: Ariano Suassuna, autor de O Santo e a Porca.
O filólogo F. Ritschl, mestre de E. Nietzche, inaugurou o grande
ciclo dos estudos filológicos modernos sobre o teatro plautino.
(PARATORE, 1983: 61)
Plauto, portanto, integra o elenco de poetas que não serão
ultrapassados, mesmo que tornem anônimas as suas observações sobre o ser
humano. Por exemplo, muitos compêndios afirmam que se trata de provérbio
a expressão homo homini lupus. No entanto, ela nasceu de um momento
plautino, na comédia Asinaria (v. 495), em o mercador se recusa a dar
dinheiro a um desconhecido, justamente porque desconhecido: Lupus est
homo homini non homo, o homem é lobo, e não homem, para outro homem.

Referências bibliográficas:
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho.
São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.
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32
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TORRINHA, Francisco. Dicionário Latino Português. Portugal: Porto Editora, s/d.

33
CONCEITOS E MÁXIMAS MORAIS NA ELEGIA DE OVIDIO
Ana Thereza Basilio Vieira

Nos tempos modernos, o conceito de elegia está ligado


sobremaneira à expressão da tristeza, ao lamento, à saudade e à recordação
de momentos significativos da vida. É a poesia em que sobressai a voz da
melancolia e da tristeza.
Voltando-se às origens do gênero, no entanto, encontramos uma
multiplicidade de composições acompanhadas de música – da flauta, em
especial –, que versavam sobre temas os mais variados, e que não nos
permite classificar apenas como lamentos as primeiras formas elegíacas.
Ligado à própria caracterização do gênero encontramos o dístico
elegíaco, estrofe composta de um hexâmetro e de um pentâmetro, que foi a
escolhida para tal elaboração poética, pelos mais antigos autores da Grécia.
É importante observar que a elegia, com seus versos peculiares, não
se especializou como poesia essencialmente melancólica, tratados que foram,
em metro elegíaco, os assuntos mais diversos: celebrações religiosas, feitos
militares, dedicatórias e epitáfios, enfim, a expressão da vida e da morte.
Essas composições propiciaram, porém, a manifestação dos sentimentos,
patrióticos, familiares, individuais e, por conseguinte, o uso muitas vezes da
primeira pessoa e a instauração do que se chama estilo lírico.
Na Grécia antiga, como bem observam René Martin e Jacques
Gaillard1 a elegia jamais existiu enquanto gênero literário: houve, sim,
poemas estruturados em dísticos elegíacos, mas poemas que não possuíam
nem unidade de tema nem de tom. Assim, explicam, poderiam
naturalmente ser considerados como sátiras, epigramas, poesia didática,
sem, no entanto, assumir foros de elegia verdadeira.
Pela análise e confronto dos principais autores que utilizaram o
metro elegíaco, podemos perceber um lugar comum: uma certa
aproximação da elegia com o amor.
No período alexandrino, a elegia se torna uma das formas mais
populares de poesia e foram os autores helenísticos – Calímaco dentre eles
– que prescreveram os princípios da nova técnica, aperfeiçoando o gênero.
E para o entendimento da constituição da elegia romana é fundamental
voltar os olhos para a poética Alexandrina, para a tensão ali existente entre
matéria e forma, entre inspiração verdadeira e artificialismo.

1
Cf. MARTIN, 1981, p. 2.

34
Em Roma, o precursor do gênero foi Catulo, no chamado Século
de Cícero, poeta que soube, mais que nenhum outro, harmonizar um
intenso subjetivismo aos ditames da nova escola e que conseguiu anunciar,
através dos três poemas realmente considerados elegíacos, 65, 66 e 68, a
marca da poesia amorosa e erótica que desenvolveriam os grandes
elegíacos da época de Augusto.
Públio Ovídio Nasão (43 a.C. – 17 d.C.) foi um brilhante e
talentoso poeta lírico da época de Augusto, refinado e por vezes irônico,
elegante e irreverente. Tendo nascido em Sulmona, o pai mandou que ele
fosse estudar retórica em Roma, para que pudesse, assim, ingressar mais
tarde numa brilhante carreira política. Mas, desde cedo se manifesta em
Ovídio a vocação poética, que se reforça durante as tradicionais viagens
feitas à Grécia, às províncias orientais helenizadas e à Sicília. Voltando a
Roma, freqüenta a alta sociedade e entra em contato com os maiores
escritores de seu tempo, dentre os quais podemos contar Horácio e
Propércio. Após dois matrimônios infelizes, desposa uma mulher culta, que
tem relações com a família imperial.
Retomando algumas tendências de Tibulo e Propércio, Ovídio
prefere às Musas habituais a deusa Vênus, que assume o papel de sua musa
inspiradora, visto que é o amor que domina a poesia deste elegíaco.
Entretanto, Ovídio não renuncia às figuras mitológicas em sua obra.
Partindo de Vênus, encarnada em Corina, que estimula seu talento, o autor
chega às deusas, que sustentam a sua existência.
A elegia amorosa celebra, por definição, a puella ou a amica
(designações da amante), mas raramente a esposa legítima. Nos Amores, em
que Corina é a figura central, não há senão uma menção à esposa (Am. III, 13).
Nos Amores poderemos detectar as verdadeiras confidências do
poeta. Ele não é herdeiro de nenhuma família nobre; nasceu numa terra
fértil em trigo, uvas e oliveiras. Entretanto, nesta obra a atmosfera não é
aquela campestre, mas a urbana. Foi em Roma que Ovídio conheceu Tibulo
e lá também chorou a sua morte. Foi na grande cidade que aconteceram os
grandes banquetes, as longas esperas pela amada, as trocas de bilhetes e de
olhares. Foi lá que o célebre elegíaco pôde melhor analisar e enumerar os
diferentes tipos de belezas femininas, como veremos em Am. II, 4. Foi em
Roma que os triunfos imperiais e amorosos se realizaram.
Os encontros amorosos que o poeta evoca se dá de portas
escancaradas, ao contrário do que costumavam cantar Tibulo e Propércio. O
poeta sulmonense propõe as receitas que o amante deveria seguir. Na verdade,

35
a preocupação recai sempre na constante preocupação do distanciamento
entre amante e amado: o conquistador deve consultar o tempo, como os
camponeses ou marinheiros; ficar lúcido, mesmo perdendo seu tempo
seguindo as mulheres; participar de uma bebedeira e ainda assim fazer
declarações em que toda mulher deveria acreditar; chorar copiosamente,
mesmo que as lágrimas sejam falsas, para emocionar a amada.
O outro, a pessoa amada, é algo indefinível com que o poeta sonha
em fazer dele um troféu de vitória, tão fugaz quanto Corina. Ovídio se
apresenta ora como espólio de Corina (Am. I, 3; I, 2), ora como seu
triunfador e Corina torna-se sua presa (II, 12). Se o erotismo é a redução do
outro ao espólio, nada melhor do que a comparação elegíaca do
amante/sedutor ao soldado (Am. I, 5).
Ovídio não é poeta de um amor, mas de vários amores. Ele ensina a
arte de amar, cultivar e dominar novas paixões. O que lhe convém é cantar
o amor, com suas alegrias, esperanças, decepções, tristezas, dúvidas,
sucessos, infidelidades, censuras, traições, dores, suspeitas e rupturas.
Corina, a sua musa, é comumente apontada como uma mulher fictícia, um
nome que o poeta escolheu para poder compor seus versos. Alguns a
apontam como uma poetisa que teria dado conselhos a Píndaro e que teria
composto a primeira coleção conhecida de metamorfoses. Outros lhe
negam tal honra e dizem que se trata de outra pessoa2. A verdade é que não
se sabe se é apenas uma homenagem à Corina grega ou é um pseudônimo
para alguém de carne-e-osso, talvez uma mulher casada, distante das reais
intenções do poeta. No entanto, o amor cantado por Ovídio é um amor mais
carnal, mais próximo da realidade, não aquele das escolas de poetas, tão ao
gosto dos demais elegíacos. Por isso, a sua obra causa espanto; ela vai de
encontro à boa moral, aos ideais de Augusto, que desejava reimplantar os
“bons costumes” esquecidos por um Império que havia passado por tantas
guerras e lutas internas e externas.
O livro dos Amores, inicialmente composto em cinco livrinhos, ao
que tudo indica compostos em épocas diferentes, e mais tarde reduzidos a
três, com prováveis pequenas alterações e correções em seu conteúdo,
apresenta elegias em que Ovídio irá justamente questionar a moral romana
ideal, que está bem distante da realidade.
Na elegia I, 8, por exemplo, Ovídio atacará a proibição à prática da
magia; ele contará a história de uma feiticeira que faz encantamentos para

2
Cf. RIPERT, 1921, p. 46.

36
uma jovem conseguir um amante rico, que lhe dê muitos presentes. Ora,
havia na Lei Cornélia uma proibição expressa à utilização dos chamados
venenos, destinados a curar ou matar. Antes do século I a.C., acreditava-se
que tais práticas fossem realizadas apenas às ocultas, e por poucas pessoas
iniciadas nessas práticas. Com relação à magia amorosa, seus encantamentos
e filtros tinham por fim tão somente dispor para a paixão uma pessoa que já
nos estaria predestinada e não fazer com que qualquer pessoa ficasse
perdidamente apaixonada pelo requerente da magia. As feiticeiras (nugae) se
gabavam de trazer o amor ou ao menos reanimar o ardor amoroso. A magia
seria, então, segundo Eliane Massonneau3 “um meio infame de fazer com
que o amor nasça: enquanto este deveria ser o prêmio das virtudes e da
beleza”. Recorriam à magia, nesse caso, pessoas que buscavam seus amantes,
de preferência ricos e bem apessoados. Mas, os amantes traídos também
recorrem à magia para punir os infiéis e, sobretudo, seus e suas rivais.
Recorre-se a Vênus, por exemplo, para não acordar os amantes e fazer com
que passem toda a noite dormindo, sem conseguir gozar de seus prazeres, ou
pede-se aos deuses infernais que estes lê vem logo para junto de si a pessoa
odiada, não sem antes desgraçá-la por completo.
Eis os conselhos que a velha bruxa dá à jovem um tanto
inexperiente:

Como? Porque é belo reivindicará uma noite de graça? Só porque


dá, pode te exigir antes de teu amante! Cobra um preço mais
baixo, enquanto estendes as redes, para que não fujam; uma vez
capturados, atormenta-os com tuas leis. Um amor dissimulado não
prejudica; deixa que acredite ser amado, mas toma cuidado para
que este amor não te saia de graça. (vv. 67-72)

Os imperadores e príncipes do Império Romano, apesar de leis


proibitivas, nunca deixaram de temer e dar certo crédito a algumas formas de
magia. Prova disso são os astrólogos, que sempre foram consultados para
fornecerem-lhes temas genetlíacos (que prediziam o futuro pela observação
dos astros na época do nascimento), o destino, bem como ajudarem-nos a se
tornarem grandes governantes. O horóscopo sempre foi de grande auxílio aos
romanos, tanto que se soubessem do horóscopo de seus inimigos, seria muito
mais fácil derrotá-los, bastando para isso aguardar seu período de má fase.
Assim, crimes de lesa-majestade eram comumente confundidos com os

3
MASSOUNNEAU, 1934, p. 87.

37
crimes de magia. E é essa falta de bom-senso nas leis romanas que Ovídio
critica. A lei não é igual para todos; o povo é punido, mas os comandantes e
imperadores podem e devem recorrer à magia.
Outras vezes, Ovídio vai atacar o tema do adultério. Vejamos a
elegia III, 4, dos Amores:

Dure uir, inposito tenerae custode puellae


Nil agis; ingenio est quaeque tuenda suo.
Siqua metu dempto casta est, ea denique casta est;
Quae, quia non licuit, non facit, illa facit.
Vt iam seruaris bene corpus, adultera mens est.
Nec custodiri, ni uelit, ulla potest,
Nec habeas seruare potes, licet omnia claudas;
Omnibus occlusis intus adulter erit.
Cui peccare licet, peccat minus; ipsa potestas
Semina nequitiae languidiora facit.
Desine, crede mihi, uitia inritare uetando;
Obsequio uinces aptius illa tuo.
Vidi ego nuper equum contra sua uincla tenacem
Ore reluctanti fulminis ire modo;
Constitit, ut primum concessas sensit habenas
Frenaque in effusa laxa iacere iuba.
Nitimur in uetitum semper cupimusque negata;
Sic interdictis inminet aeger aquis.
Centum fronte oculos, centum ceruice gerebat
Argus, et hos unus saepe fefellit Amor.
In thalamum Danae ferro saxoque perennem
Quae fuerat uirgo tradita, mater erat.
Penelope mansit, quamuis custode carebat,
Inter tot iuuenis intemerata procos.
Quidquid seruatur, cupimus magis, ipsaque furem
Cura uocat; pauci, quod sinit alter, amant.
Nec facie placet illa sua, sed amore mariti;
Nescio quid, quod te ceperit, esse putant.
Non proba sit, quam uir seuat, sed adultera cara;
Ipse timor pretium corpore maius habet.
Indignere licet, iuuat inconcessa uoluptas;
Sola placet “timeo” dicere siqua potest.
Nec tamen ingenuam ius est seruare puellam;
Hic metus externae corpora gentis agat!
Scilicet ut possit custos “ego” dicere “feci”,

38
In laudem serui casta sit illa rui?
Rusticus est nimium, quem laedit adultera coniunx,
Et notos mores non satis Vrbis habet,
In qua Martigenae non sunt sine crimine nati
Romulus Iliades Iliadesque Remus.
Quo tibi formonsam, si non nisi casta placebat?
Non possunt ullis ista coire modis!
Si sapis, indulge dominae uultusque seueros
Exue nec rigidi iura tuere uiri
Et cole, quos dederit (multos dabit) uxor, amicos.
Gratia sic minimo,magna labore uenit;
Sic poteris iuuenum conuiuia semper inire
Et, quae non dederis, multa uidere domi.

Amante cruel, nada obténs ao impores um guarda à delicada


jovem; cada uma deve ser protegida pela sua própria índole. Se
alguma, sem nada temer, é casta, essa é realmente casta; aquela
que não trai porque não pode, trai.
Terás vigiado o corpo, mas a alma é adúltera. Nenhuma
pode ser guardada, assim ela não quer e tu não podes guardar o
corpo, mesmo que tranques tudo; tu fechas tudo por fora, e o
adúltero está lá dentro.
Aquele a quem é permitido pecar, peca menos; o próprio
poder torna as sementes da corrupção mais fracas. Acredita em
mim, deixa de estimular os vícios, proibindo-os; tu os vencerás
mais facilmente com tua complacência.
Há pouco eu vi um cavalo rebelde, correndo como um raio,
com a boca resistente aos freios; parou, assim que sentiu as
rédeas cedendo e os freios jazerem frouxos na crina em
desalinho. Tendemos sempre ao que é proibido e desejamos as
coisas negadas; assim o doente persegue as águas interditadas.
Argos tinha cem olhos na fronte, e outros cem na nuca, e só
o Amor enganou a todos estes muitas vezes. Dânae, que fora
confiada virgem a um tálamo perene de ferro e de pedra, foi mãe.
Penélope, embora carecesse de um guardião, permaneceu
imaculada entre tantos jovens pretendentes.
Desejamos mais o que é guardado, e a própria cautela atrai o
ladrão; poucos amam o que o outro abandona. A mulher não
agrada pela beleza, mas pelo amor ao marido; julgam que ela tem
não sei que encanto que lhes conquista. Mesmo que não seja leal,
a que o homem vigia, é querida enquanto adúltera; o próprio
temor tem um preço maior que o seu corpo.

39
Podes te indignar, a volúpia proibida dá prazer; apenas
agrada a que pode dizer “tenho medo”. Contudo, não é justo
guardar uma jovem livre; que esse medo oprima os corpos das
mulheres estrangeiras! Sem dúvida, para que um guardião possa
dizer “é mérito meu”, acaso ela é casta pelo elogio de teu
escravo?
É muito rude quem ofende a esposa adúltera, e não conhece
bem os costumes da Urbe, em que não nasceu sem crime a prole
de Marte, Rômulo e Remo, filhos de Ília. Por que escolheste a
formosa, se só a casta te agradava? Essas não podem coexistir de
modo algum!
Se fores sensato, sê indulgente com a esposa, deixa de lado o
rosto severo, não te sirvas dos direitos de marido inflexível, e
cultiva os amigos que a esposa te der (e ela há de te dar muitos
deles). Assim grandes simpatias vêm com um mínimo de
trabalho; assim poderás sempre ir aos banquetes dos jovens e
verás em casa muitos presentes que tu não deste.

Nesta elegia é explorada a idéia do “fruto proibido”. Tudo quanto é


proibido é mais cobiçado. O marido é exemplificado como o dono de sua
mulher. Ele pode dispor dela a seu bel-prazer, e permanecer como se fosse
um cão-de-guarda, prestes a atacar quem dela ousa se aproximar e partilhar
de seus dons. O poeta resolve, então, dar conselhos ao esposo, num tom
completamente jocoso, para que este não guarde a sua esposa, pois não há
nenhum modo completamente seguro para alguém se precaver de um
adultério. Ao contrário, quanto mais se guarda alguém, mais a vontade de
burlar a custódia se instaura em sua mente. Não há defesa segura contra os
amantes clandestinos, a não ser o desejo da própria esposa de se manter fiel a
seu marido, como podemos notar nos versos 23-24 “Penélope, embora
carecesse de um guardião, permaneceu imaculada entre tantos jovens
pretendentes” e no verso 27 “A mulher não agrada pela beleza, mas pelo
amor ao marido”.
Ora, a idéia do livre adultério era contra o espírito de uma lei
promulgada por Augusto em 18 a.C., a Lex Iulia de pudicitia et de
coercendis adulteriis (Lei Júlia da castidade e repressão do adultério), em
que se fazia cumprir a castidade matrimonial. A lei continha o seguinte teor:

“Pela primeira vez na história romana o casamento era posto


sob a proteção do Estado, em vez de ficar sob patria potestas. O
pai retinha o direito de matar a filha adúltera e seu cúmplice; o

40
marido podia matar o amante da esposa só se o apanhasse em
flagrante dentro de sua própria casa. Até 60 dias da descoberta
do adultério da esposa, o marido podia levá-la perante o
tribunal; se o não fizesse, o pai da adúltera tinha de o fazer; e se
também não o fizesse qualquer cidadão podia acusá-la. A
adúltera era banida, perdia um terço de sua fortuna e metade do
dote, e ainda ficava impedida de casar-se novamente. Penas
iguais incidiam no marido conivente no adultério da esposa. Mas
uma mulher não podia acusar de adúltero ao marido, cujas
relações com prostitutas eram coisa legal. E a lei aplicava-se
unicamente aos cidadãos romanos4”.

Ovídio vai argumentar que guardar as jovens é justamente um ato


não romano nos versos 37-40 “É muito rude quem ofende a esposa
adúltera, e não conhece bem os costumes da Urbe, em que não nasceu sem
crime a prole de Marte, Rômulo e Remo, filhos de Ília”, já que os próprios
fundadores de Roma nasceram de um ato sacrílego, e, por isso, censurar o
adultério é algo antiquado, rude, fora do contexto de uma grande cidade em
pleno desenvolvimento. Desde sua origem, a Urbe já transgredia as antigas
leis, propostas por seus antepassados, tomadas de empréstimo aos gregos.
Além disso, beleza e castidade não se misturam, são coisas
incompatíveis. Então, o marido romano deve ser complacente com sua
esposa, pois ele conseguirá muitos benefícios se tiver uma mente aberta e
receber os “amigos” de sua esposa, no verso 45 “cultiva os amigos que a
esposa te der (e ela há de te dar muitos deles)”.
Vimos, pois, que Ovídio não está só preocupado em cantar o amor e
as formas de burlar as leis. O que o poeta faz é criticar, de uma forma
bastante contundente a sociedade com seus falsos costumes e sua falsa moral.

Referências bibliográficas:
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Janeiro : Record, 1971.
LYNE, R.O.A.M. The latin love poets : from Catullus to Horace. Oxford :
Clarendon Press, 1996 .

4
DURANT, 1971, p. 176.

41
MARTIN, René & GAILLARD, Jacques. Les genres littéraires à Rome. Paris :
Scodel, 1971.
MASSONNEAU, Eliane. La magie dans l’antiquité romaine. Paris : Librairie du
Récueil Sirey, 1934.
OVIDE. Les Amours. Texte établi et traduit par Henri Bornecque. Paris : Les
Belles Lettres, 1952.
RIPERT, Émile. Ovide, poète de l’amour, des dieux et de l’exil. Paris : Librairie
Armand Colin, 1921.

42
OS EPIGRAMAS DE MARCIAL – RISO E CRÍTICA SOCIAL
Arlete José Mota

Marcus Valerius Martialis (39/40-103/104 d.C.) é o mestre do


epigrama. Alguns elementos biográficos chamam a atenção do leitor. Em
64 chegou a Roma protegido por seus compatriotas Sêneca e Lucano. Com
a morte de seus protetores, passou a depender da generosidade de patronos
ricos. Escreveu para viver.
Os pósteros seguirão as características que tão bem imprimiu em seus
textos: em notas por vezes obscenas, de forma mordaz, realista, aponta as
fraquezas humanas. Soube, com dedicação fraterna, falar de seus amigos, mas
com igual talento, faz alusão venenosa a caracteres desprezíveis. Em luta
obstinada para sobreviver foi cliens e não deixou de adular os poderosos.
Quanto ao gênero a que se dedicou o poeta, note-se que o
epigrama, considerado “poesia de circunstância”, representava a princípio
toda a sorte de inscrições (como por exemplo, aquelas que se viam em
lápides e oferendas aos deuses), caracterizada pela brevidade. Por volta do
V século a C., há um aumento significativo do número de epitáfios, ex-
votos, o que pode explicar o aprimoramento da forma, mais tarde
conceituada como gênero literário, de temática variada.
Em Roma foi amplamente cultuado desde Ênio. Os neotéricos ou
poetae noui compuseram epigramas ampliando a temática. Destaca-se
nessa geração Catulo (considerado por vezes introdutor do gênero na
literatura latina). Acentuou-se o vinco satírico, chegando-se ao obsceno.
Na evolução do gênero, é importante destacar que de inscrições
votivas e funerárias há a ampliação para retratos de personagens ligados ao
poder, descrições de paisagens, comentários sobre relações amorosas.
Ressalte-se também a influência dos alexandrinos nos epigramistas latinos,
uma vez que a estes agradava associar a concisão da forma das antigas
inscrições votivas a um gosto por temas leves. Os romanos tinham uma
preferência especial pela tradição dos carmina erotica.
Quanto aos elementos caracterizadores do gênero, merece especial
referência a presença de personagens, que apresentando movimento,
lembram a composição dos personagens-tipo da Nea. Se não são reais,
podem representar (e muito bem) os contemporâneos do poeta. Em
Marcial, desfilam tipos que são descritos em cenas bem pitorescas.

43
Reconhece-se como traço de originalidade em Marcial o fato de
dedicar-se apenas ao epigrama, abordando, em poemas breves, o compor-
tamento do homem em sociedade, seus vícios e vicissitudes. Como ele mesmo
afirma: Hominem pagina nostra sapit (“o nosso texto conhece o homem”).
Marcial falou das fraquezas do homem com grande habilidade
técnica. Seus críticos são unânimes em ressaltar o caráter encomiástico de
alguns de seus poemas, em especial dos dedicados a Domiciano. Sua obra,
entretanto, reflete uma diversidade de temas que reúne desde os carmina
famosa aos epigramas fúnebres; dos epigramas laudatórios àqueles em que
o olhar do poeta se distancia e estão presentes reflexões sobre a brevidade
da vida e o papel do homem na sociedade.
Talvez Marcial não tivesse propósitos edificantes – como Juvenal, que
se apresenta como moralista. Talvez tenha sido apenas o “colunista social”. O
mestre da ironia vai servir de modelo, mesmo quando se atenua a nota
priapesca e se destaca o dito mordaz e venenoso. Poder-se-ia resumir o seu
estilo nos seguintes termos: riso, crítica social contundente, precisão na forma.
Os epigramas de Marcial (aproximadamente 1500) estão reunidos
em 15 livros e resumidamente assim se encontram divididos:
1) Liber spectaculorum, em que exaltam os jogos organizados por
Tito para a inauguração do Anfiteatro Flávio (o Coliseu), em 80.
2) Os xenia e os apophoreta, reunidos, nos manuscritos, nos livros
XIII e XIV dos Epigrammata – publicados em 84. Note-se que o
vocábulo xenia designa os versos que acompanhavam os presentes
e apophoreta os versos que eram tirados à sorte em festejos.
Quanto a estes, cabe lembrar as palavras da professora Leni
Ribeiro, quando afirma:

Outro tipo de epigrama que se torna mais comum nesta época são
certas variações do epigrama votivo. Ao invés de uma dedicatória
presa a uma oferenda a um deus, o que se vê é a dedicatória de
um presente a um amigo, numa banalização do que antes era
sagrado; ou mais ainda o poema se transforma no espaço da
adulação aos poderosos (...)1.

1
LEITE, Leni Ribeiro. O patronato em Marcial. Rio de janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2003.
Dissertação de Mestrado, p. 36.

44
3) Os 12 primeiros livros dos Epigrammata (publicados em 86).
Dentre estes há quatro livros com prefácio em prosa, a saber: os de
número 1, 2, 8 e 12. O 8º livro é dedicado ao imperador Domiciano.
Seus epigramas eram famosos e Marcial o reconhece:

Hic est quem legis ille, quem requiris,


toto notus in orbe martialis
argutis epigrammaton libellis:
cui, lector studiose, quod dedisti
uiuenti decus atque sentienti,
rari post cineres habent poetae.
(I, 1)
(Eis aqui quem tu lês, quem procuras: Marcial, conhecido em
todo o orbe por seus epigramas escritos em livrinhos picantes.
Leitor dedicado, a honra que deste àquele que vive e sente, raros
poetas possuem após a morte.)

A fama lhe trouxe dissabores. O poeta se queixa inúmeras vezes de


plágio. Há ainda os falsos amigos que, escrevendo mal, atribuem a Marcial
a autoria de alguns epigramas.
A lascívia de seus poemas legou ao poeta a fama de obsceno. No
prólogo do primeiro livro se refere à “obscena verdade das palavras” (lasciuam
uerborum ueritatem). Mas essa é a linguagem dos epigramas, afinal: Non intret
Cato theatrum meum, aut si intrauerit, spectet (“Não entre em meu teatro,
Catão; se entrar, assista ao espetáculo”) como cita no mesmo texto.
Referindo-se a personagens reais ou não (verossímeis talvez) há
alguém que observa o mundo que o rodeia e sorri. Dos temas citados, foram
selecionados, como exemplo, os seguintes epigramas, reunidos aqui por
eixos temáticos:

1. As relações estabelecidas por interesse financeiros:


I, 10
Petit Gemellus nuptias Maronillae
et cupit et instat et precatur et donat.
Adeone pulchra est? Immo foedius nil est.
Quid ergo in illa petitur et placet? Tussit.

45
( O Gêmeo q uer se casar co m Maro nila: ele deseja,
insiste, p ede, d á p resentes. Se ela é bela? Que nad a!
O q ue o agrad a então? Ela to sse.)
IX, 80
Duxerat esuriens locupletem pauper anumque:
uxorem pascit Gellius et futuit.
(Gélio, rico e miserável ao mesmo tempo, desposa uma velha
rica. Ela o alimenta, ele a faz gozar.)
X, 8
Nubere Paula cupit nobis, ego ducere Paulam
nolo: anus est. Vellem, si magis esset anus.
(Paula deseja casar-se comigo. Eu não quero casar-me com Paula
porque ela é velha. Eu gostaria sim, se ela fosse mais velha!)
X, 43
Septima iam, Phileros, tibi conditur uxor in agro:
plus nulli, Phileros, quam tibi reddit ager.
(Filero, já enterraste no campo a tua sétima esposa. O campo
recompensa a ti mais do que a qualquer outro.)
XI, 62
Lesbia se iurat gratis numquam esse tututam.
Verum est. Cum futui uult, numerare solet.
(Lésbia jura que jamais trepa com alguém de graça. É verdade: é
ela quem paga sempre.)

2. Uma outra intenção:


II, 49
Vxorem nolo Telesinam ducere: quare?
Moecha est. Sed pueris dat Telesina: uolo.
(Eu não quero me casar com Telésina. Por quê? É uma adúltera.
Mas ela cede a jovens escravos. Então está bem, eu a quero.)

3. Um Amor cego?
III, 8
“Thaida Quintus amat.” “Quam Thaida?” “Thaida luscam.”
Vnum oculum Thais non habet, ille duos.

46
(Quinto ama Taís. Quê Taís? A Taís cega. Taís não tem um
olho. Quinto não tem os dois.)

4. Visões do comportamento feminino:


VI, 67
Cur tantum eunuchos habeat tua Gellia quaeris,
Pannyche? uolt futui Gellia nec parere.
(Queres saber porque a tua Gélia tem apenas eunucos? Pânico,
ela quer se satisfazer não parir.)
IV, 71
Quaero diu totam, Safroni Rufe, per urbem,
i qua puella neget: nulla negat.
Tamquam faz non sit, tamquam sit turpe negare,
tamquam non liceat, nulla puella negat.
Casta igitur nulla est? Sunt castae mille. Quid ergo
casta facit? Non dat, non tamen illa negat.
(Há muito tempo procuro por toda cidade, Safrônio Rufo, uma
menina que negue. Nenhuma nega. Como se não fosse lícito
como se fosse torpe, como se não fosse conveniente negar.
Nenhuma menina nega. Não há nenhuma casta? Há mil castas.
Mas o que faz a menina casta? Não dá, mas também não nega.)

5. Maridos enganados:
II, 83
Foedasti miserum, marite, moechum,
et se, qui fuerant prius, requirunt
trunci naribuss auribusque uoltus.
Credis te satis esse uindicatum?
Erras: iste potest et irrumare.
(Tu mutilaste, marido, um amante, cortando-lhe o nariz e as
orelhas. Foi em vão. Tu crês que foste suficientemente vingado?
Tu estas errado: ele ainda pode meter.)

Marcial repete o mesmo tema, por exemplo, no epigrama III, 85:


Quis tibi persuasit naris abscidere moecho?
non hac peccatum est parte, marite, tibi.
Stulte quid egisti? nihil hic tibi perdidit uxor,
cum sit salua turi mentula Deiphobi.

47
(Quem te persuadiu a cortar o nariz do adúltero? Não foi este
órgão, marido, que te ofendeu. Tolo, que fizeste? Tua mulher
nada perdeu, pois está salvo o pinto de Deífobo.

6. Um exemplo de homem?
I, 84
Vxorem habendam non putat Quirinalis,
cum uelit habere filios, et inuenit
quo possit istud more: furtuit ancillas
domumque et agrs implet equitibus uernis.
pater familiae uerus est Quirinalis.
(Quirino crê que não deve se casar, embora queira ter filhos. Ele
assim resolve a questão: se deita com as servas e assim enche a
casa de cavaleiros-escravos. Ele é um verdadeiro paterfamilias.)

7. A riqueza de detalhes:
VI, 23
Stare iubes semper nostrum tibi, Lesbia, penem:
crede mihi, non est mentula quod digitus.
Tu licet et manibus blandis et uocibus instes,
te contra facies imperiosa tua est.
(Tu ordenas, Lésbia, que meu pênis esteja sempre pronto para ti.
Crê em mim: meu pinto não é como um dedo; convém que tu
trabalhes sem descanso com tuas mãos carinhosas e com tuas
palavras. Tua face severa está contra ti.)

8. Outras preferências:
VI, 91
Sancta ducis summi prohibet censura uetatque
moechari. Gaude, Zoile, non futuis.
(O édito sagrado do imperador condena o adultério. Regozija-te!
Tu não sentes prazer mesmo).

48
9. Finalmente, mais uma face das preferências sexuais do poeta:
I, 57
Qualem, Flacce, uelim quaeris nolimue puellam?
nolo nimis facilem difficilemque nimis.
Illud quod medium est atque inter utrumque probamus:
nec uolo quod cruciat nec uolo quod satiat.
(Qual é, Flaco, meu tipo de mulher? Nem muito fácil nem muito
difícil. Me agrada o meio termo. Quero a que me satisfaça, não a
que me torture.)

10. Personagens conhecidos?


I, 29
Fama refert nostros te, Fidentine, libellos
non aliter populo quam recitare quam recitare tuos.
Si mea uis dici, gratis tibi carmina mittam:
si dici tua uis, hoc eme, ne mea sint.
(Espalha a Fama que tu, Fidentino, recitas em público meus
versos como se fossem teus. Se queres que sejam lidos como
meus, enviar-te-ei os poemas de graça. Se queres que sejam lidos
como teus, então compra-os para que não sejam meus.)
I, 38
Quem recitas meus est, o Fidentine, libellus:
sed male cum recitas, incipit esse tuus.
(O verso que tu recitas, Fidentino, é meu: mas como recitas mal,
ele começa a ser teu.)
III, 9
Versiculos in me naratur scribere Cinna:
Non scribit, cuius carmina nemo legit.
(Dizem que Cina escreveu uns versos contra mim. Não escreve
o poeta cujos versos ninguém lê!)
I, 23
Inuitas nullum nisi cum quo, Cotta, lauaris
et dant conuiuam balnea sola tibi.
Mirabar quare numquam me, Cotta, uocasses:
iam scio me nudum displicuisse tibi.

49
(Tu não convidas ninguém, Cota, a não ser aquele com quem tu
te banhas - somente os banhos dão convivas. Admiro-me porque
nunca me convidas. Mas agora sei que desagrada-te ver-me nu.)
I, 28
Hesterno fetere mero qui credit Acerram,
fallitur: in lucem semper Acerra bibit.
(Engana-se quem crê que Acerra delicia-se com vinho de
véspera: Acerra bebe durante o dia.)
VIII, 74
Oplomachus nunc es, fueras opthalmicus ante.
Fecisti medicus quod facis oplomachus.
(Agora és gladiador. Eras oftalmologista. Tu fizeste como
médico o que fazes como gladiador.)
X, 43
Septima iam, Phileros, tibi conditur uxor in agro:
plus nulli, Phileros, quam tibi reddit ager.
(Filero, já enterraste no campo a tua sétima esposa. O campo
recompensa a ti mais do que a qualquer outro.)
XI, 59
Senos Charinus omnibus digitis gerit
nec nocte ponit anulo
nec cum lauatur. Causa quae sit quaeritis?
Dactyliothecam non habet.
(Carino anda com seis anéis em cada dedo e não os tira nem de
noite nem quando se lava. Perguntas por quê? Ele não tem uma
“dactiloteca”.)
III, 28
Auriculam Mario grauiter miraris olere.
Tu facis hoc: garris, Nestor, in auriculam
(Tu te admiras, Nestor, que a orelha de Mário cheire tão mal. É
tu que provocas isso, tagarelando em seu ouvido.)
III, 43
Mentiris iuuenem tinctis, Laetine, capillis,
tam subito coruus, qui modo cycnus eras.
Non omnes fallis; scit te Proserpina canum:
personam capiti detrahet illa tuo.

50
(Simulas juventude, Letino, com os cabelos pintados. Eras um
cisne e tão rapidamente te transformas-te em um corvo! Não
enganas a todos. Prosérpina sabe que tu tens cabelos brancos: ela
arrancará a máscara da tua cabeça.)
I, 37
Ventris onus misero, nec te pudet, excipis auro,
Basse, bibis uitro: carius ergo cacas.
(Lamento, Basso, que tu lances o peso de teu ventre numa latrina
de ouro e não te envergonhes disso. E bebes em copos de vidro!
Então teus excrementos são mais caros.)
IX, 33
Audieris in quo, Flacce, balneo plausum,
Maronis illic esse mentulam scito.
(Se, nas termas, Flaco, ouvires um aplauso, saibas que lá está o
pinto de Marão.)
III, 8
Sunt gemini fratres, diuersae sed inguina lingunt:
dicite, dissimiles sunt magis na similes?
(São gêmeos, mas sugam genitálias diversas. Dizei: são
diferentes ou se parecem ainda mais?)

Para concluir, pode-se observar que, apesar de a seleção de epigramas


do presente trabalho se caracterizar pela brevidade, nota-se a incrível
capacidade do poeta de falar de hábitos e costumes humanos, citando
personagens, transfigurados por vezes em personagens-tipo. Parecem tão
próximos e tão reais que, além do riso solto e alegre que provocam, apontam
para comportamentos indesejados. Riso, denúncia, mudança talvez.

Referências bibliográficas:
FUNARI, Pedro Paulo (org.). Amor, desejo e poder na Antiguidade. São Paulo:
UNICAMP, 2003.
GIARDINA, Andrea (dir.). O homem romano. Lisboa: Presença, 1992.
MARTIAL. Épigrammes. Text. trad et et. par H. J. Izaac. Paris: Les Belles Lettres, 1930.
MARZIALE. Epigrammi. Milano: Arnaldo Mondadori, 1995.
VEYNE, Paul. A sociedade romana. Lisboa: Edições 70, /1990/.
.

51
A ARTE CÔMICA DE PLAUTO E ARIANO SUASSUNA
Cecília Lopes de Albuquerque Araújo

Titus Maccius Plautus foi o autor mais popular de Roma, o ponto


alto do teatro latino, devido ao senso de atualidade com que marcou suas
peças. É um dos escritores para quem a palavra vive realmente. Está fora de
dúvida sua magnífica capacidade criadora na língua e no estilo.
Entre os grandes autores romanos, é aquele que menos informações nos
relata, em suas obras, a respeito de sua vida. As prováveis datas de seu
nascimento e morte são 254 e 184 a.C.
Menos de cinqüenta anos após a introdução das representações dramáticas
em Roma, floresceu na cidade o mais importante dos cômicos latinos –
Titus Maccius Plautus. É ele que ocupa o lugar mais importante da comédia
e ele mesmo assim se considerava, tanto que deixa isso escrito em seu
epitáfio:
"Agora que Plauto morreu, a Comédia
está de luto, estão desertos os teatros;
e o Riso, a Alegria e os inúmeros
Ritmos estão chorando."

Plauto foi um verdadeiro homem de teatro, desempenhando


simultaneamente todas as funções relacionadas com a arte cênica.
Ao escrever suas peças baseou-se em modelos gregos, como ele mesmo
expressava em alguns de seus prólogos, dizendo o nome do autor e a peça na
qual se espelhara. Mas não se limitou a imitá-los, deu às peças uma
originalidade própria, garantindo-lhe popularidade e o sucesso que desfrutou.
Seu teatro é popular pela origem, freqüência e intentos. Usa
abundantemente a música e o canto, prendendo-se, portanto, à comédia
antiga na qual coro e atores declamavam acompanhados de música. Os
personagens que se dirigem ao público e os cantica numerosos são traços
pertencentes à comédia de Aristófanes, também usados pelo grande
comediógrafo latino.
A intriga de suas comédias é uniforme e muito simples. Sua
composição despreocupada e desproporcional. O desenrolar da peça é
interrompido ou atrasado pelas cenas de farsa burlesca, sem relação com o
assunto. O desfecho é brusco ou suprimido. Há alusões à presença dos

52
espectadores, apóstrofes diretas ao público, com cenas bem montadas em
situações cômicas ou através de palavras, ou através de expressão
fisionômica que depende da arte do ator. Os personagens são tipos comuns
do teatro grego: o leno, o velho, o par amoroso, escravo, parasitas e cortesãs,
acentuando-lhes características romanas e um colorido inteiramente novo. De
um modo geral chama atenção para a parte grotesca, ridícula, os defeitos,
dando-lhes várias facetas: os velhos, por exemplo, ora são severos e
teimosos, ora cheios de bom senso e compreensivos. Suas peças são
compostas com frases simples, curtas, mas ricas. Apresenta muitos jogos de
palavras. Explora mais as formas da comédia de intriga, embora na Aululária
explore também as da comédia de caracteres.
A religião, que na comédia nova quase não existia, aparece às
vezes em Plauto como o centro de toda a peça, mostrando a preocupação
religiosa do autor, refletindo, assim, o ambiente moral de sua época. Em
suas peças há grande número de divindades, resultantes da sua preocupação
de ir ao encontro das paixões e tendências do público. Os deuses são na
maioria gregos, embora apareçam também os tipicamente romanos.
Suas peças mostram a sociedade da época com realismo forte, prendendo-
se sua moral a dois princípios: praticar a virtude e evitar o vício. Inspira-se
na vida do povo, é comediógrafo das massas. Sua comédia é realista, tendo
a preocupação de fazer rir.
Atribui-se a ele a autoria de mais de cem peças, sendo que vinte e
uma resistiram até nossa época, conservando-se quase na íntegra. A
Aululária é uma peça notável, tendo vários seguidores e até hoje alguma
atualidade, principalmente pelo personagem do velho avarento, no qual o
Harpagão de Molière é nitidamente calcado, bem como o Euricão de O
santo e a porca de Ariano Suassuna.
Através de exemplos de O santo e a porca, procuraremos mostrar
as semelhanças existentes entre o texto de Suassuna e a Aululária, de
Plauto, não só quanto à temática, mas também em relação a outros
componentes da peça.
Podemos perceber a absorção do texto latino pelo autor brasileiro, a
partir dos nomes dos personagens. Na Aululária, como ocorria
normalmente nas comédias clássicas, esses nomes não eram arbitrários;
todos apresentavam radicais ou sufixos que levavam à etimologia. Assim, o
velho avarento chama-se Euclião, que pode significar boa fama ou então
aquele que esconde bem; a escrava, Estáfila, cacho de uva, mostrando o
gosto da escrava pelo vinho; o pretendente, Megadoro, aquele que tem

53
bens; Eunômia, justiça, pois apóia o casamento do irmão e depois o do
filho, Licônides, quando soube que ele desonrara Fedra, a filha de Euclião.
Há também Estróbilo, pião, personagem sempre em rodopio, que precede
Euclião em tudo, e os cozinheiros Antrax, brasa, e Congrião, peixe. Em O
santo e a porca há semelhança semântica e etimológica com a peça latina,
Suassuna tenta estabelecer uma identidade sonora ou significativa: o
avarento é Euricão, o pretendente Eudoro, a irmã Benona e o escravo
Pinhão. Com o nome dos pretendentes faz semelhança fônica (doro) e
paralelismo na composição mórfica (mega - eu / doro - doro). Em Estáfila,
escrava de Euclião, e Caroba, criada de Euricão, uma ligação significativa:
ambos são nomes de plantas. Em Euclião / Euricão – Eunômia / Benona,
aproximação sonora.
Suassuna estruturou a intriga de sua comédia nos mesmos
processos de seu modelo. Tudo gira em torno de um avarento e do roubo
de seu tesouro. Em ambas as peças o tema da avareza aparece como pólo
dinamizador da intriga, refletindo a idéia fixa de Euclião e Euricão. Partindo
de um elemento acidental, os autores procuram mostrar a influência exercida
por esse elemento na vida dos protagonistas: na Aululária, através de uma
panela cheia de ouro encontrada por Euclião na lareira de sua casa, em O
santo e a porca, após ser abandonado pela esposa, Euricão passa a viver em
função da porca que contém suas economias, a qual colocou sob a guarda de
Santo Antônio. A panela e a porca são mitificadas pelas duas personagens,
para elas, panela e porca, estará voltada toda a atenção dos donos das casas.
Na Aululária:
Euc: Nunc ibo uti uisam, estne ita aurum, ut condidi,
Quod me sollicitat plurimis miserum modis. (v.26 - 27)
"Euclião- ..................E agora vou ver se o ouro ainda está aonde
eu o escondi; pobre de mim! É o que mais me preocupa"

Euc: nunc domum properare propero; nam egomet animus domi


est. (v.138)
"Euclião: Agora saio de casa já com espírito bem descansado: vi
que lá dentro tudo está a salvo"

No Santo e a porca teremos:


Euricão: Ai minha porquinha adorada, ai minha porquinha do
coração! Querem roubá-la, querem levar meu sangue, minha

54
carne, meu pão de cada dia, a segurança de minha velhice, a
tranqüilidade de minhas noites, a depositária de meu amor."

A presença do elemento religioso é bem mais atuante na peça de


Suassuna do que na Aululária. A figura de Santo Antônio representa uma
espécie de antagonista da porca. Durante o desenrolar da peça percebemos
o dilema de Euricão entre venerar a porca ou voltar-se para o santo.
Na Aululária, Euclião passa a desconfiar de tudo e de todos.
Mostra constantemente preocupação com os olhos, com medo que lhe
roubem o tesouro, como vemos logo no início do primeiro ato, ao falar
com a criada, Estáfila:
Euc: Exi, inquam, age exi. Exeundem hercle tibi hinc est foras.
Circumspectatrix cum oculo emissiciis. (v.1 - 2)
"Já lá para fora, vamos! Lá para fora, já disse! Tens que ir mesmo
lá para fora, minha espia, sempre de olho esbugalhado!"

Em O santo e a porca, percebemos em Euricão a mesma


desconfiança. Achando que querem roubar sua porca, mostra, a todo o
momento, a preocupação com os olhos:
Eur: Ladrões, ladrões! Será que me roubaram? É preciso ver, é
preciso vigiar. Vivem de olho no meu dinheiro, Santo Antônio.

Outra semelhança na intriga das peças ocorre quando os pretendentes


anunciam o propósito de se casarem com as filhas dos avarentos. Nas duas
comédias ocorrem situações equivocadas, geradas por palavras.
No segundo ato da Aululária, Megadoro vai diretamente procurar Euclião,
suscitando no velho o espírito da dúvida quanto as suas verdadeiras
intenções. Será que não estaria interessado em seu ouro escondido?
Meg: Quid tu? recten'atque ut uis uales?
Euc.: Non temerarium'st ubi diues blande adpellat pauperem.
Iam illic homo aurum scit me habere, eo me salutat blandius.
(v. 141-142)
"Meg: E então? Saudezinha à vontade?
Euc: Deve haver um motivo qualquer para um homem rico se
dirigir assim a um pobre tão delicadamente. Com certeza que
este homem já sabe que eu tenho dinheiro; é por isso que me
saúda com tanta delicadeza.

55
Em Suassuna, na carta enviada a Euricão por Eudoro, anunciando-
lhe a intenção de roubar o seu tesouro mais precioso, a filha Margarida,
provoca reações absurdas do avarento. Para maior efeito cômico, o autor
faz com que a carta seja lida aos poucos, ocasionando uma série de mal
entendidos.
Euricão lendo a carta: "Meu caro Euricão: espero que esta vá
encontrá-lo como sempre com os seus, gozando paz e prosperidade.
O velho, quase desmaiando, chama pela filha para que ela continue a
leitura, porque imagina que Eudoro sabe de seu tesouro.
Marg: De minha chegada aí, mas quero logo avisá-lo: pretendo
privá-lo de seu mais precioso tesouro!
Eur: Está vendo? Esse ladrão! Esse criminoso. Meteu na cabeça
que eu tenho dinheiro escondido!

Plauto, com a presença de escravos cozinheiros, criados predomi-


nantemente para o riso, gera algumas situações de pânico para o avarento,
quando, em casa de Euclião, Congrião faz referência a uma panela.
Cong: Aulam maiorem, si potes, uicinia
Pete: haec est parua, capere non quit.
Euc: Hei! Mihi!
Perii, hercle! Aurum rapitur, aula quaeritur.
Nimirum obcidor, nisi ego intro huc propero currere.
(v. 346-349)
Cong: Olha, se fazes favor, vai pedir ao vizinho uma panela
maior. Esta é pequena, não leva nada.
Eucl: Ai de mim que estou perdido! Por Hércules! Estão-me a
roubar o dinheiro. Estão a pedir uma panela! Ai que dão cabo de
mim! Se não vou já a correr...

Embora estas personagens não apareçam na comédia brasileira,


Suassuna utiliza como semelhança o planejamento de um jantar, em que
Pinhão, criado de Eudoro, insufla uma dúvida no espírito de Euricão, ao se
referir à porca, prato escolhido para o jantar.3
Eur: Que é que você veio fazer em minha casa?
Pin: Vim trazer o jantar que o senhor encomendou. Quero saber
se é para trazer o jantar ou não.
Eur: Eu quero saber se minha casa se salvará!
Pin: E eu, o que quero é me salvar com minha porca.

56
Eur: Com a porca? Ai, ai, minha porca! Ai minha porca, pelo
amor de Deus! Santo Antônio, Santo Antônio!

As duas comédias apresentam episódio sobre o roubo do tesouro.


Na Aululária, Estróbilo, criado de Licônidas descobre que o avarento
oculta um tesouro e planeja roubá-lo; do mesmo modo, em O santo e a
porca, Pinhão resolve furtar o dinheiro de Euricão.
A cena de reconhecimento é também comum às duas peças. Em
Plauto, a fim de agradar a Euclião, Licônidas convence Estróbilo a devolver
a panela que escondera, prometendo-lhe a liberdade, em Suassuna Pinhão
também é induzido a restituir a porca roubada.
Além de semelhança na intriga há idêntica correspondência entre
os diálogos. Vejamos as cenas entre Euclião e Megadoro e entre Euricão e
Eudoro:

Meg: Dic, mihi, quali me arbitrare genere prognatum?


Euc: Bono.
Meg: Quid fide?
Euc: Bona.
Meg: Quid factis?
Euc: Neque malis neque improbis
Dize-me lá, que tal te parece minha família?
Boa
E o meu caráter?
Bom
E os meus atos?
Nem maus nem desonestos. (v.212-214)

Eud: Que tal lhe parece minha família?


Eur: Boa.
Eud: E meu caráter?
Eur: Bom
Eud: E meus atos?
Eur: Nem maus nem desonestos.

Ocorrem também cenas semelhantes entre Euricão/Pinhão;


Euclião/Congrião, quando os criados se referem à panela e à porca, nos
exemplos citados acima, bem como no momento em que os avarentos
observam que têm uma faca nas mãos. Na Aululária:

57
Euc: Quia ad treisuiros iam ego deferam nomen tuom.
Com: Quamobrem?
Eur: Quia cultrum habes.
Com: Cocum decet. (v.373-375)
Euc: Vou já levar teu nome aos triúnviros.
Com: Mas por quê?
Euc: Porque trazes uma faca.
Com: Mas é natural num cozinheiro.

Na comédia de Suassuna temos:


Eur: Vou denunciá-lo à polícia!
Pin: Por quê?
Eur: Porque você anda com uma faca.
Pin: Aqui todo mundo anda!

A cena da constatação do roubo pelos avarentos se apresenta


semelhante nas duas peças, sendo as mesmas palavras recitadas nos
monólogos das personagens:

Na Aululária: Euc: Perii, interii, occidi! Quo curram? Quo non


curram? Tene, tene! Quem? Quis?
Nescio, nihil uideo, caecus eo atque equidem quo eam, aut ubi
sim, aut Qui sim,
Euc: Estou perdido, estou liquidado. Deram cabo de mim Para
onde hei de correr? Agarra, agarra. Mas a quem?

No Santo e a porca, Euricão diz “Ai, ai! Estou perdido, estou


morto, fui assassinado! Para onde correr? Para onde não correr? Pega!
Pega! Mas pegar a quem?”
No reconhecimento dos jovens pretendentes, quando tentam
esclarecer a situação com as moças, encontramos idênticas semelhanças no
quiproquó, pois os velhos julgam que falam a respeito do roubo do tesouro,
bem como nos diálogos entre Dodó e Euricão, no O santo e a porca e entre
Licônidas e Euclião na Aululária.
Pelo exposto podemos concluir que Ariano Suassuna absorveu a
arte de Plauto, calcando sua comédia O santo e a porca no texto do autor
latino, quanto à temática, intriga, personagens e diálogos.

58
Referências bibliográficas:
MICHAUT, G. Histoire de la comédie romaine. Plaute. Tome I. Paris: E. de
Boccard Éditeur, 1920.
PLAUTE. Théâtre. Texte établi, traduit d’après Naudet; avec introduction, notices
et notes par Henri Clouard. Paris: Librairie Garnier Frères, 1936.
PLAUTO e Terêncio. A comédia latina. Prefácio, seleção, tradução e notas de
Agostinho da Silva. Rio de Janeiro: Ed. de Ouro, /s.d/.
SUASSUNA, Ariano. O santo e a porca. / O casamento suspeitoso. Estampas de
Zélia Suassuna. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

59
OS DIVERSOS CONCEITOS DE “AMOR” NA CULTURA GREGA ANTIGA
Dulcileide Virginio do Nascimento

Invoco o grande, o puro, o terno e grandioso Amor,


O deus alado, arqueiro, ágil, vivo e ardente
Que brinca com os deuses e com os mortais…
(Hino Órfico LVIII – A Eros)

Para nós, homens modernos, analisar a sociedade grega e seus


costumes, sem um olhar comprometido ou até mesmo preconceituoso, é
uma tarefa sempre muito difícil.
Normalmente, repensamos a mitologia clássica em busca de
respostas ou simplesmente em busca de um sentido para a existência
humana e, mesmo não vigorando mais a crença nos deuses do Olimpo, a
referência a estas divindades ainda persiste nas mais notáveis produções
ligadas à arte e à literatura.
Portando, propomo-nos, hoje, relembrando as antigas tradições orais, a
falar sobre uma divindade que desconhecida por Homero é mencionada pela
primeira vez por Hesíodo, na Teogonia, como uma força primordial:

Em verdade, no princípio houve o Caos, mais depois veio Gaia


(Terra)
De amplos seios, base segura para sempre oferecida a todos os
seres vivos,
[para todos os imortais, donos dos cimos do Olimpo nevado, e o
Tártaro (Abismo) brumoso, no fundo da Terra de grandes
sulcos] e Eros, o mais
Belo entre os deuses imortais, o persuasivo que, no coração de
todos os
Deuses e homens, transtorna o juízo e o prudente pensamento.
(116 -122)

60
Mas, que importância teve esta divindade para a sociedade grega
antiga? Por que Eros, o deus primitivo organizador do mundo e que
provoca a união dos corações e dos corpos não tinha um culto oficial11?
Será que os gregos realmente conheciam o amor?
Todos nós sabemos que, principalmente em Atenas, a mulher grega
tinha o mesmo direito que os escravos, ou seja, nenhum, que o amor entre
rapazes tinha um papel importante na sociedade, que o casamento
heterossexual, a maior parte deles, era realizado por conveniência religiosa
e social e não por gosto. Mas, como amar alguém que nunca se viu?
Ao refletirmos sobre esta divindade e sobre os efeitos que tem sobre a
humanidade contrapomos duas sensações, a primeira descrita por Safo:

Quando te vejo, ainda que por um breve instante,


Dizer uma só palavra não me é mais possível,
Pois minha língua entorpece; imediatamente
Um leve fogo se espalha sob a minha pele,
Meus olhos não mais vêem, meus ouvidos zumbem,
De mim o suor jorra, um tremor
Toma-me por inteiro, mais verde do que a erva
Sou, pareço morrer aos poucos... 12

A segunda descrita em I Coríntios 13: 4-7:

O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se


vangloria, não se orgulha, não maltrata, não procura seus
interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor.

O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade.


Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
Duas sensações ou definições diferentes, porque falam de amores
diversos. Isto porque em grego encontramos basicamente três verbos para
designar o que chamamos de amor:
Agapá-o, que é o amor doação, mas também o amor que acolhe e
recebe. É aquele que ultrapassa a atração e o desejo sexual, é a emoção
pura. Para os primeiros cristãos designava tanto o amor dos humanos por
Deus quanto o amor de Deus pelos homens. É o verbo utilizado no texto
citado de Coríntios.
11
BUFFIÈRE, Félix. 1982, p.325.
12
SAFO, Frag.2. Tradução da autora.

61
Filé-o, é o amor amizade, o prazer de estar junto e da troca mútua.
Erá-o, é o verbo utilizado para designar o sentimento apaixonado
que unia os corações. É aquele que designa tanto o que é atraído quanto
aquele que atrai (eromena e o erasta), é o encontro da atração sexual com a
atração sentimental. Era o verbo empregado primeiramente entre os gregos
dos séculos IV e V a.C para designar o desejo apaixonado e é o verbo
utilizado no texto de Safo.
Eros, portanto, é uma divindade que está presente tanto na origem
do universo, como no nascimento dos deuses e dos homens. É ele que une
as parcelas dos diversos elementos que constituem o universo, lutando
contra Neikos, a discórdia ou o ódio, que os vem separar.
O deus alado ficou conhecido a partir do século III a.C como o
jovem filho de Afrodite, a deusa da beleza e do amor; deusa conhecida por
sua natureza dupla - ou seja, a Afrodite Pandêmia, deusa do desejo brutal,
ou Afrodite Urânia, deusa dos amores etéreos - assim como sua mãe, duplo
são os sentimentos causados pelas flechas de Eros. Mas na antiguidade
diversas origens são atribuídas ao seu nascimento:

• Alceu de Mitilene afirma ser Eros filho de Zéfiro, o de cabeleira


dourada, e Isis, a de belas sandálias;
• Safo diz ser ele filho de Gaia e de Uranos;
• Acousilaos, atribui a sua origem ao encontro da Noite e do Éter;
Simonides a união de Ares com Afrodite. Eurípides sugere que
ele seja filho de Zeus;
• E Platão, no Banquete, atribui o seu nascimento a união de Poros
(Recurso) e de Pênia (Pobreza).

Entretanto, como já mencionamos, é com Afrodite que divide as


atribuições.
Segundo Flacelière, as suas funções estão assim divididas (baseado
nos Eróticos de Plutarco):

Eros preside a paixão de um homem por um jovem e Afrodite de


um homem por uma mulher; Eros é o sentimento e Afrodite a
sensação; Eros o espiritual e puro e Afrodite o carnal; Ele a
felicidade, ela o prazer; Ele presidiria o amor nobre que busca o
bem da alma e Afrodite a união dos sexos para a procriação.

62
O poder de Eros fica bem evidente nos versos 781-800 da Antígona
de Sófocles, assim como a atuação de Afrodite para o mesmo fim
:
“Eros, invencível Eros, tu que subjugas os mais poderosos; tu que
repousas nas faces mimosas das virgens; tu que reinas, tanto na
vastidão dos mares, como na humilde cabana do pastor; nem os
deuses imortais, nem os homens de vida transitória podem fugir a
teus golpes; e, quem for por ti ferido, perde o uso da razão!
Tu arrastas, muitas vezes, o justo à prática da injustiça, e o
virtuoso, ao crime; tu semeias a discórdia entre as famílias...Tudo
cede à sedução do olhar de uma mulher formosa, de uma noiva
ansiosamente desejada: tu, Eros, te equiparas, no poder, às leis
supremas do universo, porque Afrodite zomba de nós!”

Mesmo que, dentro deste contexto social, a relação amorosa entre


homem e mulher possa parecer insustentável, a mitologia nos mostra o
contrário. Diversos são os relatos que sustentam a temática do amor
heterossexual, como por exemplo o de Céfalo e Prócris13 e o de Píramo e
Tisbe14, amores entretanto prejudicados pelo infortúnio da separação causada

13
O mito pode assim ser resumido: Céfalo era um belo jovem amante dos exercícios. Aurora ao vê-lo
se apaixonou por ele e o raptou. Céfalo, porém, recém casado e apaixonado por sua jovem esposa,
recusa o amor da deusa, que o liberta, mas o amaldiçoa dizendo que ele se arrependeria do dia em que
conheceu sua esposa. Sua esposa se chamava Prócris. Ela cultuava a Ártemis e recebeu da deusa como
presentes um cão, mais veloz do que qualquer outro, e um dardo, que nunca erra o alvo. Ela deu os
presentes que recebeu ao seu marido, que os utilizava sempre na caça.
Após a caça diária, fatigado, Céfalo descansava numa sombra perto de um rio onde costumava passar
uma fresca brisa e, ao mesmo tempo, dizia em voz alta: “Vem Brisa, vem afagar-me e leva o calor que
me abrasa”.
Alguém, ouvindo-o falar assim, acreditou que ele estivesse falando com uma mulher e correu a contar
para Prócris. Sua esposa, inicialmente, não acreditou, mas com o coração ansioso, no dia seguinte,
seguiu o seu marido.
Mais uma vez, Céfalo, cansado, senta-se e invoca a Brisa. Ao ouvir um ruído semelhante a um soluço
vindo do bosque, supondo ser um animal selvagem, joga o seu dardo e ao ouvir o grito de sua mulher
correu, mas em vão foi a tentativa de salvá-la. Antes da sua morte, entretanto, Prócris entreabriu os
olhos e conseguiu murmurar estas palavras: Imploro-te, se algum dia me amaste... satisfaças a minha
última vontade: não te cases com essa odiosa Brisa!”. Céfalo, então, entendeu a atitude da sua esposa e
confirmou que a desconfiança prejudica ou acaba com o amor.
14
O mito nos lembra a história de Romeu e Julieta: Píramo e Tisbe eram dois belos jovens que
cresceram próximos e o convívio acabou transformando-se em amor. Os pais de ambos proibiram o
relacionamento, mas não conseguiram impedir que o amor crescesse no coração dos jovens. Eles
continuavam a se falar por sinais, olhares e por uma fenda entre suas casas. Só uma parede, no silêncio
da noite, conseguia separar os amantes que através da fenda marcaram um encontro para a noite
seguinte. O lugar de encontro seria um monumento fora dos limites da cidade, chamado o Túmulo de
Nino, e combinaram que quem chegasse primeiro esperaria o outro junto a uma amoreira branca.

63
pela morte. Só nos romances gregos teremos os finais felizes. Mas um dos
mitos mais representativos, ao meu ver, é o de Admeto e de Alcestis. O mito
pode ser resumido desta maneira: foi decidido pelas parcas que Admeto teria
uma vida curta. Sendo ele um bom rei e um bom marido e ao ter acolhido
Apolo bondosamente, o deus, conhecendo o seu destino, persuadiu as parcas a
aceitar a vida de outro no lugar da sua. Como seus pais, já velhos, não
aceitaram fazer a troca, sua esposa, Alcestes, concordou em fazê-lo e
conseqüentemente morreu. Heracles visitando o palácio e conhecendo o amor
dos dois e vendo o sofrimento do rei com a morte da esposa, foi em busca de
Thanatos, lutou com ele e vencendo-o trouxe Alcestes de volta à vida.
Este mito, para os estudiosos, demonstra que de modo algum o amor,
provocado por Eros, não pudesse nascer entre homem e mulher. Platão, no
Banquete-179, afirma que “morrer por outro, só o desejam os que o amam e
não só os homens como também as mulheres” e cita o exemplo de Alceste
“que os deuses amaram a ponto de lhe permitir que saísse do Hades e voltasse
a ver a luz do sol”; pensamento, também, reforçado por Plutarco, nos Eróticos,
quando afirma que as moças também são capazes de provocar o Eros.
Mas, como manter viva a chama de Eros? Como saciar a sensação
de dois seres que precisam se entregar um nas mãos do outro e, ao mesmo
tempo se reencontrarem um no outro?
O próprio Eros nos ensina o caminho quando experimenta as
sensações causadas por seu próprio toque. Para entender do que estamos
falando basta reler o mito de Eros e Psique. Nele podemos, mais uma vez,
perceber como o amor sofre com a desconfiança. Que a reconquista é uma
tarefa árdua, como foram os trabalhos realizados por Psique a mando de
Afrodite; e que o verdadeiro amor resiste a tudo, até ao sono da morte.

Tisbe chegou primeiro, mas enquanto estava aguardando avistou uma leoa que, com a boca
ensangüentada, aproximava-se de uma fonte próxima para matar a sua sede. Ao vê-la Tisbe fugiu e
refugiou-se numa gruta, deixando cair o véu. A leoa acabou despedaçando, com sua boca
ensangüentada, o véu.
Píramo, ao se aproximar viu as pegadas da leoa e o véu dilacerado e cheio de sangue. Acreditando ter
sido a causa da morte de Tisbe, resolveu seguí-la em seu destino e após cobrir de beijos e lágrimas o
que sobrou do véu mergulhou a sua espada no seu coração. O sangue tingiu de vermelho as amoras
brancas e penetrou nas raízes da árvore.
Tisbe, ao sair da gruta, e encontrar Píramo, viu o véu ensangüentado e a bainha vazia da espada e
percebeu ser a causa da sua morte. E diz: “seguir-te-ei na morte, pois dela fui a tua causa; e a morte, que
era a única que nos podia separar, não me impedirá de juntar-me a ti”. Assim dizendo, mergulhou a
espada no peito.
Eles foram enterrados num único túmulo e a amoreira conservou a marca deste amor, pois até hoje os
seus frutos, que inicialmente eram brancos, são vermelhos.

64
Do amor de Eros e Psique nasceu uma filha chamada Prazer...
Retomando nossas considerações iniciais, diríamos que os mitos
ainda atuam em nossas vidas. Que a presença de Eros ainda continua viva
tanto no individual quanto no coletivo e que na atualidade podemos ter
tantos exemplos de sua atuação quanto no passado mítico grego.
Mas o que era o amor para os gregos? Só existe uma resposta:
Eros... É na dicotomia existente entre o conflito das suas flechas, do mundo
terreno e do celeste, do desejo e do sofrimento, de ações e reações que ora
se conflitam, ora se harmonizam que encontramos a essência do amor
grego e do amor de qualquer época. E se todos os mitos não são eternos
como o de Psique, são intensos como Eros...
Finalizo citando um poeta que conseguiu com seus versos resgatar
a força do Eros grego, por acreditar que é a força do amor é o que nos incita
a viver hoje e sempre...

De tudo, ao meu amor serei atento


Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor(que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
(Soneto de Fidelidade – Vinícius de Moraes)

Sobre a cabeça de Psique se encontra uma borboleta. Psique em


grego significa tanto borboleta como alma. A alegoria da borboleta para a
imortalidade da alma e para a redenção da mulher aprisionada inicialmente
no corpo de uma lagarta e no casulo de uma sociedade é fantástica. O mito
de Psique consegue trazer à tona todas essas reflexões, mas é só através de
Eros, do amor, que ela consegue adquirir as suas asas, sua liberdade e a sua
imortalidade.

65
Referências bibliográficas:
BUFFIÈRE, Félix. Eros Adolescent – La Pédérastie dans la Gréce Antique. Paris:
Les Belles Lettres, 1982.
HESÍODO.Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1992.
LACARRIÈRE, Jaques. Grécia: um olhar amoroso. Rio de Janeiro: Ediouro,
2003.
PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Abril Cultura, 1972.
SAPHO. Texte établi et traduit par Théodore Reinach. Paris: Les Belles Lettres,
1989.
SÓFOCLES. Tragédias: Antígona. Madrid: Ed. Gredos, 1986.

66
IDIBUS EST ANNAE FESTUM GENIALE PERENNAE
Eliana da Cunha Lopes

As obras de Ovídio foram lidas e apreciadas em


todos os tempos. Na Idade Média, muito embora
fosse um autor pagão, tivesse escrito sobre mito e
deuses e pregado comportamento censurado pela
ética do Cristianismo, Ovídio figurou nas “listas” de
autores cuja leitura era “permitida”, a partir do
século XII.15

O presente artigo tem por objetivo mostrar as festas populares e os


rituais dedicados à deusa Ana Perena. Utilizaremos, particularmente, os versos
523–544, retirados do terceiro livro dos Fastos, poema escrito pelo sulmonense
Públio Ovídio Nasão (Publius Ovidius Naso), na maturidade. Os versos foram
elaborados em dísticos elegíacos (hexâmetro e pentâmetro) e neste ritmo
marcam a euforia e a alegria da plebe, por causa do vinho, nos idos de março,
quando festejam, não longe do rio Tibre, a festa em louvor à deusa.

Os Fastos
Os Fastos são um calendário nacional, onde são descritos os cultos
e as festas religiosas dos seis primeiros meses do ano. Esta obra,
pertencente à segunda fase da vida do poeta, foi escrita em dísticos
elegíacos. Divide-se em seis livros, cada um deles dedicado a um mês do
calendário romano, incluindo apenas os seis primeiros meses do ano, de
janeiro a junho.
Fasti, -orum m. pl., em latim, significa calendário. Inicialmente estes
fasti marcavam apenas os dias festivos dedicados aos deuses mitológicos. Na
obra de Ovídio, entretanto, o calendário assume uma característica mais
abrangente. Nele serão anexadas, também, datas nacionais, isto é, datas festivas
que o Senado incluiu no calendário, a fim de comemorar os aniversários de
vitórias de Júlio César e as vitórias de seu filho adotivo, o Imperador Augusto.

15
CORREIA, N. & FERREIRA, D. M. (1992: 11).

67
Deste modo, os Fastos vão abarcar tanto os registros das festas religiosas
quanto das festas cívicas, constituindo-se num calendário poético-religioso-
romano escrito em dísticos elegíacos. E, a partir desta data, iniciam-se os
relatos das festas dedicadas aos homens ilustres de Roma.
O primeiro livro da obra refere-se ao mês de janeiro, Ianuarius
mensis, em latim. É consagrado a Jano, o deus protetor de todos os
começos, representado com dois rostos: um voltado para o passado e outro
para o futuro. As grandes festas dedicadas a Jano, as Agonais (Agonalia),
eram comemoradas, com a oferenda de grandes sacrifícios, no dia 9 de
janeiro (Ov., F. 1, 317-9).

Quatuor adde dies ductis ex ordine Nonis;


Janus Agonali luce piandus erit.
Nominis esse potes,succinctus causa minister,
(Acrescenta quatro dias às Nonas contadas em ordem; no dia das
Agonais, Jano deverá ser homenageado com sacrifícios. Ó
ministro de roupa arregaçada, tu podes ser a causa do Nome).

Segundo Pierre Grimal (2000: 258), “Jano é um dos mais antigos


deuses do panteão romano. É representado com dois rostos que se opõem,
um olhando para frente, outro para trás. As lendas sobre Jano são
unicamente romanas e ligadas às das origens da cidade”. Significava,
assim, que Jano é um deus que conhecia tudo; aqueles fatos ocorridos no
passado e os que ainda haveriam de acontecer.
O poema é dedicado a Germânico, sobrinho do Imperador Tibério,
famoso por suas campanhas militares sobre os povos germânicos.
O segundo livro refere-se a fevereiro, em latim, Februarius
mensis, que é o mês reservado às cerimônias de purificação e expiação
denominadas Februa. Não é dedicado especialmente a um deus. Essas
cerimônias, em latim, chamavam-se februa, -orum n. pl. –, festividade
religiosa de purificação e expiação celebrada no dia 15 de fevereiro:
purificação; cerimônia expiatória; daí februarius mensis – o mês das
purificações. (Ov., F. 2, 19).

Februa Romani dixere piamina patres:


(Os antepassados romanos chamavam as cerimônias
purificadoras de februa).

68
Há, neste segundo livro, um prólogo dedicado a Augusto, o
restaurador dos templos santos e fundador de novos templos (v. 59-66).

Caetera ne simili caderent labefacta ruina,


Cauit sacrati prouida cura ducis:
Sub quo delubris sentitur nulla senectus,
Nec satis est homines, obligat illi deos.
Templorum positor, templorum sancte repostor,
Sit Superis, opto,mutua cura tui:
Dent tibi coelestes, quot tu coelestibus annos,
Proque tua maneant in statione domo.
(O cuidado providencial do chefe sagrado providenciou para que
os demais não caíssem destruídos por uma semelhante ruína. Sob
o qual nenhuma velhice é sentida pelos templos. Não é bastante
que favoreça os homens, ele também beneficia os deuses. Eu
desejo, ó restaurador dos templos, ó santo fundador dos templos,
que os deuses superiores te dispensem a mesma atenção. Que os
deuses celestes te dêem quantos anos tu deste aos deuses celestes
e que eles permaneçam em tua casa em vigilância).

O terceiro livro, corpus deste trabalho, abrange o mês de março:


martius mensis. Martius, -a,-um, adj. de Marte, da guerra: guerreiro; do
mês de Março. Era o primeiro mês do antigo calendário romano. Segundo a
tradição, Rômulo, o primeiro rei de Roma, organizou um calendário, o
primeiro calendário romano, de natureza lunar (isto é, composto por dez
meses) e resolveu homenagear seu pai mitológico – o deus Marte –, dando-
lhe as honras deste mês. Esta homenagem engloba os versos 73 ao 76, com
a fala de Rômulo em discurso direto.

Arbiter armorum, de cuius sanguine natus


Credor – et, ut credar, pignora certa dabo -
A te principium romano ducimus anno:
Primus de patrio nomine mensis eat.
(Ó Senhor das armas, de cujo sangue eu creio que nasci – e, para
que seja assim considerado, darei para ti uma garantia certa –
atribuímos a ti o princípio do ano romano: que o primeiro mês
venha do nome de meu pai).

69
O ano primitivo dos romanos começava em março porque nesta
época ocorria, no hemisfério norte, onde se situa a cidade de Roma, o
desabrochar da primavera que vai eclodir no mês seguinte. Marte é o deus
romano identificado com o deus Ares helênico. Os meses de janeiro e
fevereiro, do atual calendário, foram criados por Numa Pompílio, que
percebeu que não havia coincidências entre os meses e as colheitas efetuadas.
Deve-se acrescentar às datas deste mês, o dia 15 de março, data do
assassinato de Júlio César no Senado. O calendário romano registra neste
dia a sua morte e apoteose: ou seja, a passagem da natureza humana para a
divina de Júlio César, pois o Senado acreditou que César havia-se tornado
um deus.
O quarto livro diz respeito a abril (aprilis, -is, s. m.) que, a
princípio, era o segundo mês do ano romano. Cultuava-se a deusa Vênus,
deusa da vegetação e da fertilidade.
Segundo Pierre Grimal (2000: 466):

Vênus (Venus), antiga divindade latina, possuía um santuário


próximo de Árdea, edificado em data anterior à fundação de Roma.
Considerada durante muito tempo como protetora da vegetação e
dos jardins, é agora encarada por certos autores como um gênio
mediador da oração. Mas tudo isto é muito incerto. É assimilada,
no século II a.C., à Afrodite grega. A Gens Iulia, que pretendia
descender de Enéias, tomava Vênus como ancestral.

Na sua obra, Ovídio apresenta duas etimologias para o nome do


mês, sem, no entanto, dizer qual será a abonada por ele. Numa primeira
explicação, o poeta das Metamorfoses refere-se à deusa grega Afrodite, cujo
nome se prende à espuma do mar, o que teria dado origem à forma aprilis
(versos 61-62).

Sed Vereris mensem Graio sermone notatum


Auguror; a spumis est dea dicta maris.

A segunda explicação etimológica utilizada pelo poeta é de que o


nome de abril provém do verbo da quarta conjugação latina aperio, -is, -
ire, perui, petum, que na sua primeira acepção significa “abrir”; os antigos
gramáticos criaram a forma aperilis< aperio, para explicar o nome do mês
Aprilis. Segundo Ovídio, neste mês a primavera abre a natureza, fazendo-a
desabrochar (versos 87-90):

70
Nam, quia ver aperit tunc omnia, densaque cedit
Frigoris asperitas, foetaque terra patet,
Aprilem memorant ab aperto tempore dictum;
Quem Venus injecta vindicat alma manu.

Etimologicamente, os romanos associavam a ação de abrir ao mês


em que a natureza se abre, floresce, desponta, mostra-se para oferecer ao
mundo suas propriedades mágicas. Logo, nesta segunda acepção, o mês de
abril origina-se do verbo aperire.
Há de se notar também que neste mês (abril) abriu-se para os
romanos mais uma vitória. Júlio César vence os pompeianos em 46 a.C. na
região denominada Tapso. Neste mês, também, abre-se aos romanos a
vitória de Augusto sobre Marco Antonio, e o título militar de Imperator é
recebido por Augusto. Neste mês, também, são homenageadas as deusas
Flora, Vesta e Ceres.
O quinto mês do ano era maio (maius mensis, em latim). No início
do poema, Ovídio apresenta uma discussão sobre o nome do mês, sugerindo-
nos três etimologias; primeiramente, o nome do mês está relacionado com a
deusa Maia, mãe de Mercúrio.
Segundo Pierre Grimal (2000: 289):

“existia, em Roma, em tempos muito antigos, uma deusa Maia


que, sem dúvida, não teve na origem qualquer relação com a
Maia grega. Aparece por vezes como paredro de Vulcano, deus
do fogo. O mês de maio era-lhe especialmente consagrado. Após
a introdução do helenismo, foi identificada com a sua homônima,
e tornou-se a mãe de Mercúrio”.

Outra etimologia descrita pelo poeta, mas sem tecer opinião de qual
seria a etimologia correta, refere-se ao fato de que o mês era também
dedicado aos antepassados: aos Maiores, ou seja, aos mais velhos. Havia,
neste mês, uma festa dedicada aos que já haviam partido: os Lêmures,
almas dos mortos que aguardavam o descanso eterno. Acreditava-se ser
esta a origem do nome do mês.
Os Fastos de Ovídio terminam com as referências às festas
religiosas realizadas em junho, Iunius mensis, dedicado à deusa Juno.

Juno é a deusa romana assimilada a Hera. Na origem, e na


tradição romana, ela personifica o ciclo lunar e figura na Tríade

71
inicialmente honrada no Quirinal, depois no Capitólio, e que
engloba Júpiter, Juno e Minerva. (Grimal, 2000: 260).

Como primeira etimologia, podemos atestar que se o mês anterior era


dedicado aos maiores / Maius (aos mais velhos), nada estranho que o mês de
junho se originasse de iuniores / Iunius (jovens). Segundo os romanos, o mês
de junho provém de iuvenis>jovem. Outra hipótese levantada sobre a
etimologia deste mês refere-se ao verbo iungo (jungo), -is, iungere, -xi, -ctum,
da terceira conjugação latina; juntar, unir, reunir, pois foi neste mês que, depois
de muitas guerras, os romanos se juntaram aos sabinos após o rapto da sabinas,
unindo-se numa só nação, num só corpo. Nesta acepção, junho viria do verbo
iungere. Cultuava-se e homenageava-se também neste mês a deusa romana
Vesta de caráter muito arcaico que presidia ao fogo sagrado. Mantinha-o aceso
e assim unia a alma da cidade e o ânimo dos romanos.
A respeito dos outros seis livros (julho a dezembro) que comporiam a
obra ovidiana, paira uma incógnita, como tantas que circundam a vida do vates
Ovídio; ou foram perdidos ou destruídos ou, talvez, nunca foram escritos. Não
há, na literatura latina, nenhuma menção a eles. O que se sabe de concreto é
que no ano 8 de nossa era, o poeta foi banido de Roma para o último reduto do
império romano, o Pontus Euxinus, lá falecendo no ano 18/17, sem ter obtido
o perdão imperial.

A festa de Ana Perena:


Segundo GRIMAL (2000: 24-25):

Ana Perena divindade romana muito antiga, honrada num bosque


sagrado, situado mesmo ao norte de Roma, na Via Flamínia.
Representam-na com traços de uma velha mulher. Quando se deu
a Secessão da plebe no Monte Sagrado, como as provisões fossem
insuficientes, Ana Perena terá feito uns bolos que todos os dias
vendia ao povo, evitando assim a fome. Por esta razão lhe terão
prestado honras divinas após a cessação dos motins políticos e a
reentrada da plebe em Roma.

Dos versos 523 a 544, o poeta Ovídio descreve, com imensa


plasticidade, a festa popular e os rituais dedicados à deusa Ana Perena. A
descrição inicia-se com a datação da festa, através de uma invocação ao
Tibre, rio que banha a cidade de Roma.

72
Idibus est Annae festum geniale Perennae
Haud procul a ripis, aduena Tibri, tuis. (v. 523-4)
Nos idos (15 de março) há a festa popular de Ana Perena, não
muito longe de tuas margens, ó (rio) Tibre estrangeiro.

No verso 524, o poeta adjetiva o rio Tiber, chamando-o aduena,


estrangeiro, alusão feita à foz do rio que nasce fora dos limites da Urbe, na
região da Etrúria, não muito longe de Roma.
Nesta festa popular dedicada à deusa Ana Perena, segundo o relato
do autor, nenhuma restrição era imposta à plebs. Dos versos 526 ao 530, há
a descrição de todo o ritual utilizado nos festejos pelos habitantes que
aderiram à festa.

“A plebe chega e espalhada por aqui e por ali, sobre as verdes


relvas, bebe e deita-se cada um com sua companheira. Uma parte
da multidão fica ao ar livre. Poucos armam tendas (tentoria, v.
527). Existem aqueles que constroem uma cabana (casa, v.528)
com ramos de folhagens. Parte da plebe fincou caniços em lugar
de rígidas colunas e colocou, por cima, as togas esticadas”.

Continuando sua descrição, o poeta nos relata as conseqüências da


festa ao ar livre e do excesso de vinho, nos versos 531-2.

Sole tamen vinoque calent: annosque precantur,


Quot sumant cythos ; ad numerumque bibunt.
(Todavia, por causa do vinho e do sol, eles se esquentam e
suplicam tantos anos de vida quanto o número das taças que
bebem e saúdam esse número.)

O poeta, como personagem onipresente à festa, dirige-se ao


possível leitor de sua obra e adverte-o, v.533-4:

Invenies illic, qui Nestoris ebibat annos,


Quae sit per calices facta Sibylla suos.
(Neste lugar, encontrarás (ó leitor) aquele que bebe à idade de
Nestor e, aquela que se torna Sibila pelos seus cálices).

Os versos analisados neste artigo são a descrição de uma festa


realizada, segundo o poeta, nos idos de março (v.523). Os enunciados relatam
73
ocorrências simultâneas e cronologicamente dispostas no texto através dos
verbos uenit (v.525); potat (v.526); accumbit (v.526); durat (v.527); e ponunt
(v.527). A descrição dos fatos feita pelo poeta revela-nos as características de
uma festa popular festum geniale (v.523), inscrita num certo momento estático
do tempo e que ocorre simultaneamente num lugar concreto e delimitado nos
idos (v.523), ou seja, no dia 15 de março não muito longe das margens do rio
Tibre – Haud procul a ripis, aduena Tibri, tuis (v. 534).
O cortejo formado pela plebs, que cambaleia, por causa do vinho, ao
retornar dos festejos em honra à deusa Ana Perena, desperta a multidão que
se encontra no caminho obvia turba (v.540); ou melhor, nas ruas da Roma
antiga a evocação do adjetivo fortunatos (v.540), ou seja, felizes, uma
alusão à felicidade demonstrada pelos participantes da festa.

Pars sibi pro rigidis calamos statuere columnis,


Desuper extentas imposuere togas.

O poeta, em se tratando de Ovídio, é mais apropriado que se diga


vates –- o poeta iluminado que nos versos 541-4 se torna sujeito desta
descrição, menciona que ele próprio presencia o estado etílico da plebs.
Interfere na descrição, relatando uma das últimas cenas do cortejo: senem
potum pota trahebat anus (v.542) “uma velha embriagada arrastava um
velho igualmente embriagado.”
Ovídio explica que não sabe, com precisão, a origem desta deusa
que errat (v.543) no meio de incertezas e que tudo que se fala é uma fabula
(v.544), uma história, uma narração fictícia, todavia defende a idéia de que
em seu discurso não deve silenciar sobre esta deusa à qual são dedicados
festejos populares anuais sempre na mesma data e local.
Os versos 535-8 sugerem-nos a coreografia e a musicalidade, que,
segundo o autor, foram apreendidas pela plebs nos teatros (v.535) e que,
segundo a mitologia, são as canções obscenas cantadas na festa de Ana
Perena:
“... também, nesse lugar, cantam aquilo que aprenderam no
teatro. Agitam suas mãos ágeis conforme os seus versos e
realizam danças rudes abandonando as taças, e a companheira
ornamentada dança com os cabelos soltos”.

74
Conclusão:
Nos Fastos, escritos em seis livros, Ovídio nos proporciona uma
visão privilegiada de fatos, lendas, tradições, rituais existentes em Roma,
dos seus primórdios ao governo de Augusto. São narrações de fatos até
mesmo esquecidos ou ignorados pelos romanos na época da publicação
desses livros.
O levantamento, feito pelo poeta, nos pergaminhos e/ou códices
existentes em bibliotecas romanas, trouxe à visão, não só dos leitores de
sua época, mas também aos da Idade Média, o conhecimento sócio-
cultural-religioso de uma fase da história romana. Apesar do banimento de
Ovídio, sua obra não sofreu, por parte do imperador Augusto, nenhum ato
de violência. Assim, ela chegou até os dias de hoje, permitindo que seus
textos sejam pesquisados pelos amantes da língua latina que reconhecem no
poeta Ovídio os traços indeléveis de um gênio criador que, vivendo na
Roma clássica, gravou seu nome entre os poetas da época, cônscio do valor
de seus versos.

Referências bibliográficas:
BAYET, Jean. Littérature latine. 10 éd. Paris: Armand Colin, 1962.
CARCOPINO, J. Roma no apogeu do Império. Trad. de H. Feist. São Paulo:
Companhia das Letras/ Círculo do Livro, 1990.
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76
OS CONFLITOS NA PÓLIS: UM DIÁLOGO ENTRE TEÓGNIS E SÓLON
Glória Braga Onelley

A sociedade aristocrática do período arcaico da Grécia confrontou-


se, a partir do século VII a.C., com profundas crises políticas, sociais e
econômicas.
Propomo-nos, no presente artigo, mostrar as ressonâncias deste
conturbado momento nas obras de dois poetas: Sólon, que viveu entre
meados do século VII e VI a.C., e Teógnis de Mégara, que parece ter
atingido sua maturidade literária (akmé) na 2ª metade do século VI a.C.,
segundo propõem alguns helenistas modernos1.
Quando falamos em Sólon, vem-nos logo à lembrança a figura do
legislador ateniense. No entanto, além de nomoqe/thj, destacou-se ele no mister
das Musas, sendo o primeiro poeta ateniense de que se tem conhecimento.
Cultor de poemas elegíacos e iâmbicos, seu fazer poético, embora encontre
motivação em temas vários – como a subordinação do homem a poderes
sobrenaturais, a instabilidade do destino humano, o amor, temas considerados
to&poi da poesia da Grécia Arcaica –, reflete sua atuação de homem público,
suas preocupações e inquietudes acerca da pólis ateniense.
Quanto ao controvertido poeta Teógnis de Mégara, cuja vida e
extensa produção literária2 têm sido objeto de questionamentos vários por
parte dos especialistas em estudos helênicos, também ele, ainda que
privilegie temas diversos, como a amizade, a efemeridade da vida e da

1
Escassos e às vezes contraditórios são os dados biográficos do poeta Teógnis de Mégara. No tocante à
época que teria vivido tampouco são precisas as indicações. Segundo o verbete da Suda, viveu Teógnis
na 59ª Olimpíada (... gegonw\j e0n nq' 'Olumpia/di), ocorrida por volta de 544 a.C.
Considerando que é difícil distinguir se esse Lexicon emprega o termo gegonw/j ou na acepção de
“nascido” ou na de “florescido”, alguns helenistas interpretam o ano da 59ª Olimpíada como referente à
época de nascimento do poeta, ao passo que outros, como à de sua maturidade literária.
2
A coletânea de elegias atribuída a Teógnis de Mégara, Theognidea, compõe-se de 1389 versos,
divididos desigualmente em um primeiro livro de 1230 versos, de conteúdo parenético, social e político,
seguidos de um conjunto menor de fragmentos de temática amorosa, sobretudo amoroso-pederástica,
conhecido como livro II.
A maioria dos críticos modernos, no entanto, nega a autenticidade de grande parte desse acervo de
composições poéticas, apresentando argumentos vários e, às vezes, controversos que, segundo eles, são
incompatíveis com a atribuição da coletânea a um único poeta.

77
juventude, o amor, entre outros, encontra ele no mundo decadente da
aristocracia motivos de sua inspiração poética.
Com efeito, ainda que não sejam testemunhos da realidade
circundante, inúmeros passos dos Theognidea apresentam elementos bastante
expressivos quanto às convicções aristocráticas do megarense e parecem
aludir à conflitante situação política e social em Mégara, em cujo seio
agonizava a aristocracia.
Embora pertençam a regiões distintas, Sólon à Ática e Teógnis a
Mégara, foram eles espectadores de profundas mudanças políticas e sociais,
cujas origens podem ser buscadas nas lutas de classes ocorridas em diversas
cidades do mundo grego, entre as quais Atenas e Mégara.
Na verdade, o regime oligárquico em que vivia a maioria das cidades
gregas do período arcaico começa a enfraquecer-se, ainda no século VII a.C.,
em virtude da ascensão de uma nova classe enriquecida pelo comércio e
conseqüentemente pelo desenvolvimento da indústria. Essa classe de
enriquecidos, oriunda, em sua maioria, de estratos não aristocráticos,
reivindica participar do poder político, já que, detentora do poder econômico,
dispunha de meios para adquirir terras – condição sine qua non para ascender
ao poder político –, recursos para prover-se de equipamentos necessários ao
combate, privilégios anteriormente restritos à nobreza fundiária. Deste modo,
esses novos ricos, se podiam contribuir para a defesa da cidade, passavam a
exigir também voz na definição da política da po&lij.
Essa nova ordem econômica provocara o empobrecimento cada vez
maior das classes menos favorecidas que continuavam submetidas aos nobres
e, em última análise, sofriam as conseqüências da disputa econômica entre a
aristocracia e os plutocratas, designados no Corpus Theognideum, sobretudo
nas elegias de cunho político, de a)gaqoi&/e)sqloi& “aristocratas/nobres” e
kakoi&/deiloi& “não aristocratas/inferiores”, respectivamente. Assim, impossi-
bilitados de estabelecer-se diante do predomínio econômico, os pequenos
proprietários de terra e os trabalhadores livres endividavam-se, empenhando
seus parcos bens e até sua pessoa. Não dispondo de recursos para saldar as
dívidas contraídas com os grandes proprietários, os indivíduos dessas classes
inferiores, mormente os pequenos camponeses, eram obrigados a dar como
pagamento a própria terra cultivada e o trabalho. Entretanto, não tendo muitas
vezes como reembolsar o credor e estando a terra penhorada, nela
permaneciam como arrendatários ou como servos. Enfim, não tendo mais o
que dar como penhor, eram impelidos lentamente à escravidão, hipotecando,
simultaneamente, com a terra, seu corpo, mulher e filhos. Os testemunhos de

78
Sólon, sobretudo o fragmento de número 36 da edição de West, poema que
melhor ilustra a sua atuação de homem público – já que nele faz uma
verdadeira prestação de contas de suas atividades políticas, vangloriando-se de
com elas ter restabelecido a paz e a justiça em Atenas –, e o de Aristóteles, em
Constituição de Atenas II, 1-2, são com relação à cidade de Atenas elucidativos
a esse respeito, muito embora essa precária situação dos camponeses e
pequenos proprietários de terra seja apropriada a outras partes do mundo grego.
O descontentamento era geral e em muitas cidades, como já o
dissemos, instaura-se a luta de classes. Ratificam a existência de momentos
conflituosos na pólis os versos 39-52 do Corpus Theognideum, abaixo
traduzidos:

⊗ Ku&rne, ku&ei po&lij h#de, de&doika de_ mh_ te&khi a!ndra


eu)qunth~ra kakh~j u#brioj h(mete&rhj.
a)stoi_ me_n ga_r e1q 0 oi#de sao&fronej, h9gemo&nej de\
tetra&fatai pollh_n ei)j kako&thta pesei~n.
ou)demi&an pw Ku&rn 0 a)gaqoi_ po&lin w1lesan a1ndrej:
a)ll 0 o#tan u9bri&zein toi~si kakoi~sin a#dhi,
dh~mo&n te fqei&rwsi di&kaj t 0 a)di&koisi didw~sin
oi)kei&wn kerde&wn ei#neka kai_ kra&teoj,
e3lpeo mh_ dhro_n kei/nhn po&lin a)tremi/esqai,
mhd 0 ei) nu~n kei~tai pollh~i e)n h(suxi&hi,
eu]t 0 a)n toi~si kakoi~si fi&l 0 a)ndra&si tau~ta ge&nhtai,
ke&rdea dhmosi&wi su_n kakw~i e)rxo&mena.
e)k tw~n ga_r sta&sie&j te kai_ e1mfuloi fo&noi a)ndrw~n
mou&narxoi/ te: po&lei mh&pote th~ide a#doi.⊗

⊗ Cirno, esta cidade está prenhe, e temo que ela dê à luz


um homem que castigue nossa sórdida insolência. Os
cidadãos são ainda sensatos, mas os chefes atiram-se a uma
grave depravação. x Nenhuma cidade ainda, Cirno, homens
de bem destruíram; mas quando agrada aos inferiores
abandonarem-se à violência, corrompem o povo e conce-
dem justiça aos injustos, visando a lucros particulares e
poder; não esperes que essa cidade permaneça tranqüila por
muito tempo, mesmo se está em calmaria agora, quando a
esses homens inferiores for isto o que agrada: lucros
alcançados com o mal público. Por causa disso, há lutas
civis, assassinatos entre compatriotas e também monarcas:
que jamais tal situação agrade a esta cidade.⊗

79
Com base nesses versos, observa-se que a cidade está dividida em
duas classes antagônicas: de um lado, os aristocratas; de outro, os não
aristocratas, possivelmente oriundos das classes dos camponeses,
comerciantes, artesãos e armadores. Na verdade, o emprego metafórico do
verbo ku&ei, presente refeito a partir de kue&*w, cujo sentido primeiro é
“inchar” e do qual se deriva a ação de ku&w “estar prenhe”, parece bem
definir o estado caótico da cidade de Mégara, em cujo seio estava prestes a
eclodir uma revolução social. Teme-se que na cidade, governada por
líderes populares, h(gemo&nej, que se entregam à violência, que corrompem
o povo e concedem sentenças favoráveis aos injustos, na busca de lucro e
poder (vv. 44-6), se instaure uma guerra civil, cujo termo seja a tirania.
Cabe lembrar que a preocupação do sujeito do enunciado pela tomada
eventual do poder por um a1ndra/eu)qunth~ra (vv. 39-40) “um homem que
castigue” reaparece no final da elegia pelo emprego do termo mou&narxoi
(v. 52), “monarcas”, cuja colocação no início do verso reitera o temor pela
implantação do governo de um ditador.
No que concerne ao termo h(gemo&nej de que fala Teógnis no verso 41,
deve-se ressaltar que o helenista Paul Demont (1990:50) julga serem esses
chefes alguns membros da classe aristocrática que, agindo com desregramento
e atirando-se “a uma grave depravação” (v. 42), subornam o povo, a fim de
obterem o poder à força e estabelecerem a tirania. Analogamente, Dominique
Arnould (1981:204) associa-os aos a)gaqoi& que, de conivência com os novos
ricos, corrompem o povo e governam com injustiça. Para este último, o poeta
megarense temia que os excessos de que uma parte da aristocracia se tornara
cúmplice gerassem uma revolta popular que culminasse com a tirania. Sendo
assim, o termo kakoi~sin, presente nos versos 44 e 49, designa, segundo
Dominique Arnould, não só os kakoi& de nascimento, os novos ricos, mas
também alguns a)gaqoi& que, pactuando com os primeiros, se comportam como
homens inferiores. Para Van Groningen (In: THÉOGNIS, 1966:26-31), por sua
vez, o termo kakoi~sin, contrapondo-se a a)gaqoi& do verso 43, refere-se aos
“maus” entre os aristocratas que ainda governam a po&lij megarense. Todavia,
acredita-se que esses h(gemo&nej sejam os líderes das classes inferiores, os
kakoi&, pois os a)gaqoi&, por serem a)stoi/... sao&fronej, “cidadãos... sensatos”,
nunca destruíram uma cidade (v. 43), ao passo que os chefes se atiram a
pollh/n... kako&thta (v. 42), “grave… depravação”, que nada mais é do que a
conseqüência da própria desmedida. São, pois, os h(gemo&nej da classe dos
kakoi& que Teógnis acusa, em alto e bom tom, de terem corrompido o povo e
de obterem, com o mal público, poder (kra&teoj, v. 46) e lucros particulares

80
(oi)kei&wn kerde&wn, v. 46). É, ainda, devido à atuação desmedida e ambiciosa
dos novos governantes que se manifesta o temor pelo surgimento de um tirano,
que venha a assumir o papel de corretor dos excessos sociais e econômicos.
Assim, na ótica do megarense, um a1ndra... eu)qunth~ra (vv. 39-40) jamais
poderia ser um a)gaqo&j, mas certamente algum kako&j que, impelido pela
u3brij e pela kako&thta, buscava poder e riqueza. Os kakoi&, portanto,
acabarão por destruir a cidade, embora ela pareça repousar numa calmaria
profunda (v. 48). Note-se, então, que a tranqüilidade da cidade – enfaticamente
assinalada pela associação de termos pertencentes à mesma esfera semântica,
a)tremi&esqai, “ficar tranqüila” (v. 47), e h(suxi&h, “tranqüilidade” (v. 48) – é
ilusória, pois ela oculta em seu seio sta&sie&j te kai_ e1mfulloi fo&noi a)ndrw~n
mou&narxoi/ te “lutas civis, assassinatos entre compatriotas e também
monarcas” (vv. 51-52).
A preocupação pelo destino da cidade, expressa nos versos 39-52
dos Theognidea, traz à lembrança os versos do fragmento 4 West de Sólon,
no qual também transparece uma inquietante preocupação com o destino da
oligárquica Atenas, que vivenciava, nos inícios do século VI a.C., um
momento de grave crise social e política. Nos versos 1-20 do fragmento
4W, Sólon aponta as calamidades que ameaçavam conduzir a cidade à
perdição, cujas origens se encontravam na ambição desmedida por riquezas
e na injustiça dos cidadãos, em especial dos dirigentes do povo. Assim,
pressentindo as funestas conseqüências que adviriam da inobservância da
Justiça – escravidão (v. 18), lutas civis e guerra (v. 19) –, Sólon adverte os
atenienses da gravidade da situação, nestes termos:

h(mete&rh de_ po&lij kata_ me_n Dio_j ou1pot ) o)lei~tai


ai]san kai_ maka&rwn qew~n fre&naj a)qana&twn:
toi/h ga_r mega&qumoj e)pi/skopoj o)brimopa&trh
Palla_j 0Aqhnai/h xei~raj u#perqen e1xei:
au)toi_ de_ fqei&rein mega&lhn po&lin a)fradi&hisin
a)stoi_ bou&lontai xrh&masi peiqo&menoi,
dh&mou q ) h(gemo&nwn a1dikoj no&oj, oi[sin e(toi~mon
u#brioj e)k mega&lhj a1lgea polla_ paqei~n:
ou) ga_r e)pi&stantai kate&xein ko&ron ou)de_ parou&saj
eu)frosu&naj kosmei~n daito_j e)n h)suxi&hi
........................................................................
ploutou~sin d 0 a)di&koij e1rgmasi peiqo&menoi
.........................................................................

81
ou1q ) i(erw~n ktea&nwn ou1te& ti dhmosi&wn
feido&menoi kle&ptousin e)f ) a(rpagh~i a1lloqen a1lloj,
ou)de_ fula&ssontai semna_ Di&khj qe&meqla,
h$ sigw~sa su&noide ta_ gigno&mena pro& t ) e)on& ta,
tw~i de_ xro&nwi pa&ntwj h]lq ) a)poteisome&nh.
tou~t ) h1dh pa&shi po&lei e1rxetai e1lkoj a1fukton,
e)j de_ kakh_n taxe&wj h1luqe doulosu&nhn,
h$ sta&sin e1mfulon po&lemo&n q ) eu#dont ) e)pegei&rei,
o$j pollw~n e)rath_n w1lesen h(liki/hn:
Nossa cidade jamais perecerá por vontade de Zeus, nem
pelo querer dos bem-aventurados deuses imortais, pois a
tão magnânima guardiã, filha de um pai ilustre, Palas
Atena, tem as mãos sobre ela.
Mas os próprios cidadãos, com seus desvarios, querem
destruir a cidade, cedendo às riquezas, e o espírito injusto
dos chefes do povo, a quem está destinado sofrer muitas
dores, por causa da desmedida excessiva. Pois eles não
sabem refrear os seus excessos, nem controlar, na paz do
banquete, as alegrias de hoje...............................................
Enriquecem, seduzidos por ações injustas...................... não
poupando os bens sagrados nem, de forma alguma, os
públicos, roubam-nos, com rapacidade, cada um por sua
vez; não guardam os fundamentos veneráveis da Justiça,
que, silenciosa, conhece o presente e o passado e, com o
tempo, vem punir inteiramente. Essa chaga inevitável
atinge já toda a cidade e conduz logo à funesta escravidão,
que desperta a rebelião civil e a guerra adormecida, que
destrói a encantadora juventude de muitos;

A despeito de Sólon e de Teógnis, ambos filhos da nobreza,


mostrarem-se apreensivos e insatisfeitos com a desordem, a violência e a
injustiça que grassavam em suas respectivas po&leij, faz-se necessário
ressaltar uma diferença no que concerne à atribuição da responsabilidade
pelo mal social: enquanto Sólon reconhecia as falhas dos membros de sua
classe, Teógnis, sem nunca esquecer sua condição de aristocrata, acusava o
partido adversário pelos males que se abatiam sobre Mégara. Com efeito,
a)stoi& e h(gemo&nej dh&mou – “cidadãos” e “chefes do povo” –, grupos
oponentes aos olhos de Teógnis (vv. 41-2), são para Sólon os verdadeiros
responsáveis pela destruição da cidade de Atenas, tendo em vista que a
ambos o poeta ateniense atribui as mesmas conotações negativas, a saber:

82
avidez pela riqueza, injustiça, insolência e desrespeito aos bens sagrados e
públicos (vv. 5-14). Assim, para o poeta ateniense, a única salvação para a
sua cidade seria a substituição da desordem reinante – Dusnomi&h (v.31) –
por uma nova legislação – Eu)nomi&h (v. 32) –, baluarte sagrado da vida
social e política, porquanto é baseada na observância da Di&kh, como bem
demonstram os versos 30-39 do citado fragmento 4W:

tau~ta dida&cai qumo_j 0Aqhnai/ouj me keleu&ei,


w(j kaka_ plei~sta po&lei Dusnomi&h pare&xei:
Eu)nomi/h d 0 eu1kosma kai_ a1rtia pa&nt ) a)pofai&nei,
kai_ qama_ toi~j a)di/koij a)mfiti/qhsi pe&daj:
traxe&a leiai&nei, pau&ei ko&ron, u#brin a)mauroi~,
au)ai&nei d 0 a1thj a1nqea fuo&mena,
eu)qu&nei de_ di&kaj skolia&j, u(perh&fana& t ) e1rga
prau&nei: pau&ei d 0 e1rga dixostasi/hj,
pau&ei d 0 a)rgale&hj e1ridoj xo&lon, e1sti d 0 u(p 0 au)th~j
pa&nta kat ) a)nqrw&pouj a1rtia kai_ pinuta&.
Meu coração me ordena ensinar aos atenienses essas
coisas: que a Disnomia traz males numerosos à cidade, e a
Eunomia dispõe tudo bem ordenado e ajustado, e muitas
vezes acorrenta os injustos; ela aplaca a violência, faz
cessar a saciedade, enfraquece a insolência, faz murchar as
flores nascentes da desgraça, corrige as sentenças tortuosas
e apazigua as ações insolentes; faz cessar as ações da
discórdia, faz cessar o ódio da luta penosa e, graças a ela,
tudo entre os homens é ajustado e sábio.

É, pois, na Eunomia, alicerce de equilíbrio da po&lij, que se


encontram as soluções para coibir o turbilhão de males que ameaçam levar
Atenas à destruição, revelam os seis versos finais da supracitada elegia, os
quais contrastam com os malefícios da Disnomia. Em contrapartida, para o
poeta megarense, empenhado em defender o sistema de valores aristo-
cráticos das funestas e desastrosas investidas dos kakoi/, a única forma de
pôr sua cidade a salvo seria o regresso ao governo dos a)gaqoi/, os genuínos
depositários de ações nobres, e os únicos, segundo ele, capazes de
administrar a cidade.
Inscrevendo-se, ainda, na linha de pensamento de Sólon, segundo o
qual a cidade de Atenas não seria destruída pelos desígnios dos deuses, mas
pela insolência e pelo desejo insaciável de os cidadãos obterem riquezas,
sobretudo dos dirigentes e dos ricos que desrespeitavam os “fundamentos
83
veneráveis da Justiça” (fragm. 4W, vv. 1-14), Teógnis, nos versos 833-
836, isentando também os deuses de qualquer responsabilidade pelas
infelicidades advindas aos homens, deixa patente a idéia de serem estes os
causadores das próprias desventuras. Demonstram-no os dois mencionados
dísticos do Corpus Theognideum:

pa/nta ta/d 0 e0n kora/kessi kai_ e0n fqo/rwi: ou0de/ tij


h(mi~n
ai!tioj a0qana/twn Ku/rne qew~n maka/rwn,
a0ll 0 a0ndrw~n te bi/h kai_ ke/rdea deila_ kai_ u#brij
pollw~n e0c a0gaqw~n e0j kako/tht 0 e!balen.
Todas estas coisas estão abandonadas aos corvos e à ruína;
para nós, Cirno, nenhum dos deuses bem-aventurados
imortais é responsável: mas a violência, os ganhos vergo-
nhosos e a insolência dos homens precipitaram-nos da
opulência na miséria.

Cabe ressaltar que, embora nos versos do poeta megarense não se


atribua explicitamente aos novos dirigentes a responsabilidade pela decadência
da cidade, mas a homens (a)ndrw~n, v. 835), podem ser estes identificados com
os adversários políticos da nobreza, tendo em vista que a violência, a atração
fatal por ganhos vergonhosos e a insolência são suas marcas distintivas, como
se pode inferir dos versos 44, 46 e 50, já comentados anteriormente. Note-se,
então, que à proteção dos deuses que salvaguardam a po&lij de qualquer
desgraça – expressa sob a forma de uma inabalável certeza nos quatro versos
iniciais do fragmento 4W de Sólon e nos de Teógnis (vv. 833-834) – se opõe,
nos versos 5 sqq. e 835 dos respectivos poetas, a disposição dos homens que
caminham em direção oposta aos ditames divinos e agem de acordo com a
própria vontade.
É interessante observar que a noção enunciada por ambos os poetas
de que o homem participa, em grande medida, da responsabilidade de suas
desventuras já a esboçara Homero, no começo da Odisséia (I, vv. 29-36), na
célebre cena em que Zeus, após recordar o assassinato de Egisto como obra
de Orestes, declara não serem os deuses os responsáveis pelos infortúnios
dos homens, mas eles mesmos os causadores da própria perdição. Vale a
pena destacar que, embora a tônica nos Poemas Homéricos esteja assentada
no reconhecimento da submissão dos homens face aos poderes divinos, o
poeta épico não anula a responsabilidade dos mesmos diante das más ações,
nem os isenta do cumprimento de seus deveres. É, pois, a concepção da

84
u3brij, entendida como uma transgressão emanada dos indivíduos, que se
encontra em fase embrionária em Homero e se afirma, categoricamente, em
Sólon e em Teógnis, que revelam ser o fatal destino de suas respectivas
po&leij o reflexo da atuação desmedida, ambiciosa e injusta dos cidadãos e
dos líderes do povo.

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85
REPENSANDO SAFO DE LESBOS NO V E IV A.C.
José Roberto de Paiva Gomes

Repensar Safo de Lesbos no V e IV a.C. é estabelecer e identificar


o lugar de memória que a poetisa ocupa na sociedade grega. Encontraremos
Safo retratada por artesãos nas imagens de vasos atenienses e nas moedas
de Lesbos e da cidade milésia de Phokaia.
Neste trabalho buscamos analisar documentos alternativos que se
inserem na perspectiva da História Cultural que dialoga com outros saberes
para desenvolver uma História multifacetada, com o objetivo de busca de
novas interpretações de temas que até então somente eram abordados
através dos documentos textuais.
Seguiremos em nossa abordagem o conceito de imagem estabelecido
por Eduardo Paiva (2004: 13-14):

“... imagens são, geralmente e não necessariamente de maneira


explícita, plenas de representações do vivenciado e do visto e,
também, do sentido, do imaginado, do sonhado, do projetado.
São, portanto, representações que se produzem nas e sobre as
várias dimensões da vida no tempo e no espaço....”

Partimos do princípio de que os artefatos materiais configuram-se


como agentes materiais e definem um lugar de saber, de memória e de
poder dos grupos de aristocratas gregos do V e VI a.C. Consideramos os
documentos imagéticos e numismáticos com a efígie da poetisa Safo como
artefatos cujos símbolos trazem à memória ideais aristocráticos, que se
encontram ameaçados pelo advento da democracia no V ou pela realeza
macedônica de Felipe e Alexandre, o Grande.
Apreendemos a moeda e a cerâmica como um suporte de
informação que aponta para um determinado grupo social responsável pela
sua confecção e circulação. A identificação desse grupo social nos remete à
permanência de um pensamento social e político formulado e estruturado
de parte da elite de Metilene no V-IV séc. a.C., mas também nos leva a
supor que este grupo político seriam descendentes da hetareía de Safo e
Alceu no VII a.C.

86
Os artefatos nos revelam aspectos peculiares da cultura ao qual se
insere. Abordaremos três tipos de caso em que Safo está sendo retratada: 1)
nas imagens nas cerâmicas do V a.C.; 2) nas moedas de Lesbos cunhadas
na Guerra do Peloponeso, e 3) no período helenístico.

As imagens de Safo na cerâmica: representações do vivenciado e do visto


Acreditamos que através do tempo, Safo teve várias representações
que tornaram-na o símbolo que é hoje. Mas este símbolo é constituído de
quatro representações: Safo como professora de jovens, de um coro,
simposiasta e sacerdotisa de um thíasos, que foram formulados em
períodos distintos e posteriormente reunidos. Nos vasos atenienses do V
a.C., encontramos uma seriação de imagens nas quais essas identidades
‘profissionais’ de Safo emergem, com destaque para os papéis de
simposiasta (entre 500-480) e professora do coro (por volta de 440-420).
Diante disso, selecionamos uma questão para apresentarmos: O que levou
os ceramistas atenienses a representar Safo como uma simposiasta na
Atenas do V a.C.
Pela confecção destes vasos, nos parece que a ‘representação’ de
Safo se tornou parte da realidade dos atenienses. Mas porque se tornou
necessária, como ‘representação social’, a ponto de servir como forma de
comportamento e de comunicação entre os indivíduos na Atenas Clássica.
Por isso, supomos se faz necessário fazer uma releitura das fontes textuais
sobre Safo – os testimonia – no período clássico, onde podemos verificar os
signos que a tornaram um símbolo e que transformaram Safo em uma
representação coletiva.
De uma maneira geral, as explicações sobre o porque da produção
figurada de Safo estar centrada no período clássico e não no Arcaico, pode
ser explicado pelo fato de que a arte de recitar necessita da oralidade e não do
ver, conforme destaca Jane Snyder1. Não eram necessário imagens, pois os
poemas tornam o poeta que canta presente. Mas como ressalta Ciro
Flammarion Cardoso2, o que se ainda privilegia no V séc. é o ato de se
recitar. Safo será relembrada por Platão e pelos outros poetas, como uma
poetisa lendária e divina, a glória de uma tradição. Um renome que é
caracterizado por Dioscourides como o ‘Enigma de Safo3’, um jogo popular

1
SNYDER, J. ‘Public Occasion and Private Passion in the Lyrics of Sappho of Lesbos’ In: POMEROY,
S. Women’s History and Ancient History, 1991.
2
CARDOSO, C. F. “Tinham os gregos uma literatura”, In: Phoînix 5, 1999, 109-10.
3
WILLIAMSON, M. Daughters of Sappho, 1995, 14-16.

87
de adivinhação do qual tinha que se ter o domínio da leitura e da escrita.
Platão em Fedro (275ss) também atribui à poetisa a arte da adivinhação.
No entanto, nos questionamos: Que tradição será esta que Safo legou?
Para quem e com que finalidade será reutilizada? Por que privilegiar as
representações de Safo como musicista e professora do coro, por que o público,
que as observa, precisa compreendê-las. Qual a razão? Qual a necessidade de
Safo fazer parte construção da realidade social da Atenas do V séc.?
De 500 a 480, Atenas está passando pelo processo de consolidação da
Democracia4, as imagens relacionadas à sexualidade (hetero e homo), aos
banquetes (práticas dionisíacas e orgásticas) e as imagens relacionadas ao
mundo rural irão diminuir; é o fenômeno da censura por parte da ‘Democracia
Radical’ de Péricles. Os democratas irão ‘apoiar’ as imagens relacionadas ao
centro urbano (com as práticas artesanais – oficinas, artesãos) e no caso
dionisíaco, as cenas em que Dionisos e Ariadne aparecem em repouso5.
A pólis dos atenienses se lançará no comércio comandado pela
aristocracia mercantil detentora de terras. Essa mesma aristocracia definiu
um padrão de contato permeado de valores aristocráticos com o intuito de
estabelecer relações de amizade (phília) entre os helenos e não-helenos a
partir das relações de xenia (laços de amizade e de hospitalidade6). Por esse
intenso comércio não só mercadorias circulavam, o pensamento antigo se
difundia e circulava por todo o mar Egeu.
Pelos laços de amizade e hospitalidade, os valores aristocráticos
circularam e, portanto, o modo de vida de Safo e de Alceu - chamado de
habrosýne – de origem aristocrática onde se cultuava a elegância e o
esplendor, chegaram aos atenienses pelas mãos dos artesãos. É o modo de
vida ateniense era observado pelos outros helenos por meio destes mesmos
artífices que revendiam seus produtos por outros lugares da Hélade.

Representações monetárias de Safo: do sentido ao projetado


Identificamos as moedas gregas com a efígie da poetisa Safo como
um lugar de expressão da memória dos aristocratas durante os séculos V -
VI séc. a.C. As moedas com a efígie de Safo foram batidas em momentos
de crise e de sublevação aristocrática dos habitantes de Metilene contra o
‘imperialismo’ ateniense das Ligas de Delos e Corinto.

4
BOWRA, C. M. La Atenas de Péricles, 1994.
5
LIMA A. C. C. Cultura popular em Atenas no V séc. a.C., 2000, 47-48; CHEVITARESE, A. L. O
Espaço Rural da pólis Grega, 2001.
6
TÉNÉKIDES, G. C. Les Relations Internarttionales dans la Gréce Antique, 1993, 288.

88
No caso, da pólis de Metilene, a cunhagem de moedas com a
efígie de Safo, no V a.C., datam do período de 480 a 323 a.C., período que
consideramos como a emergência ou a retomada de prestígio social do
grupo de aristhoí cuja anterioridade data do VII a.C. Temos por suposição
que as moedas de ouro e de prata eram utilizadas para ratificar as relações
de phília/amizade dos remanescentes da hetaireía de Safo e Alceu com os
demais aristhoi residentes em Lesbos ou de Phokaia, que cunhou moedas
em honra a Safo entre 350-340. Safo cita a cidade milésia que, na pessoa de
Mnasis enviou lenços de cor púrpura na forma de presentes (dôra) para a
deusa Afrodite (fr. 101 LP7). A confecção das moedas pela pólis milésia,
ressalta a manutenção de uma aliança política e econômica delineada por
Safo no período arcaico e, posteriormente, mantida como supomos pelos
aristocratas até o período helenístico.
Os presentes integram o universo do dom e contra-dom significam
um tipo de interação de amizade (phília) e, ao mesmo tempo, o
estabelecimento de relação de reciprocidade, ou seja, xénia entre parte dos
helenos e outras comunidades da Ásia Menor. Um conjunto de relações que
coloca os helenos muitas vezes mais próximos dos reinos orientais do que
os próprios gregos do continente, da Hélade.
Temos por hipotése que a resistência da aristocracia frente os ideais
da democracia ocorreu devido ao fato dessa forma política colocar em risco
o seu lugar de poder estabelecido por intermédio do prestígio social
alcançado com as relações de solidariedade e reciprocidade com as
comunidades da Ásia Menor. A identidade da elite da ilha de Lesbos está
ligada ao comércio marítimo de vinho no mar Egeu.
A atividade ligada ao comércio de vinho tornará Lesbos um ponto
estratégico, mesmo após a conquista de Alexandre, como fornecedora de
bebida e alimento para o exército Seguindo os dados arqueológicos
estudados por Labarre8 em um trabalho sobre a ocupação da ilha de Lesbos,
o autor considerada que a localidade era um destacado importador de grão,
mas um produtor e exportador de azeite e de vinho até os tempos da
dominação dos romanos.
Essa rotatividade do poder que caracteriza Lesbos como uma
sociedade que vive em constantes momentos de crise social que pode ser

7
FONTES, J. B. Variações sobre a lírica de Safo. São Paulo: Estação Liberdade, 1992. Em Fontes
verso 36 (poemas e fragmentos) e na edição francesa 90 RP.
8
GUY LABARRE. Les cités de Lesbos aux époques hellénistique et impériale. Coleção de l'Institut
d'Archéologie et d'Histoire de l'Antiquité, Université Lumière Lyon 2, Vol. 1. Limonest: Boccard, 1996.

89
percebida desde a revolta dos metilenos de 431 a.C., quando Lesbos foi
subjugada pela Liga de Atenas até o domínio de Alexandre. Essa crise pode ser
enquadra como a luta social pelo entre dois grupos distintos, a saber: os
aristocratas e os pró-democratas, que através do embate político se revezavam
no jogo político mantendo: a autonomia socioeconômica de Lesbos.
Os gregos da Ásia Menor, desde o período arcaico, demonstraram
ser filolídios, principalmente o grupo aristocrático, do círculo de Lesbos
sob a liderança de Safo e Alceu. A aristocracia de Metilene desenvolveu
um modo de vida particular, denominado de habrosyne9. Safo ao formular
o grupo de jovens, a hetaireía, em Metilene, tinham as jovens da Lídia
participando das atividades rituais que incluía desde jovens locais a jovens
provindas de outras áreas do Mar Egeu. O convívio entre gregos e lídios se
amplia para além do convívio feminino, se estendendo também ao
conhecimento e ao debate das questões políticas. Como exemplo, deste
convívio se indica também Alceu, contemporâneo de Safo, que foi
reintroduzido a sociedade de Lesbos, após um longo exílio, com a ajuda
dos lídios (Alc. fr. 69V10).
Partindo desse princípio, temos por suposição que parte dos
aristocratas de Lesbos não era contrária à forma política dos ‘persas’, mas
sim alguns governantes locais11. A hostilidade também pode ser confirmada
9
Habrosyne representa um estilo ‘de vida’ requintado ou luxuoso, mais especificamente, é um estilo de
vida aristocrático, abraçado por um grupo para os distinguir de outro. No caso de Lesbos, o grupo dos
kálos kagathós se distinguindo do Tirannoi. Um estilo que se definiu pelo contato entre gregos e lídios
(cf. Santo Mazzarino e a Mario Lombardo). Um culto de valorização de um estilo que, ao invés da
riqueza, os distinguisse dos demais grupos sociais emergentes, como a basiléia. Como a adoção de
roupas, sandálias, ornamentos em ouro, enfeites de cabelo, tipo de penteados, determinados tipos de
arranjos florais, instrumentos musicais e o vinho, todos eles cercados da sensualidade, conforme
descrevem Safo, Semonides e Anacreonte. Para Leslie Kurke (1992, 99), o uso do termo habrós, não é
específico do feminino, mas é politicamente programado quando endossa o caminho particular que o
grupo de Safo irá privilegiar dentro do estilo luxuoso da aristocracia, que valoriza quem desfruta de
tempo livre para o amor e a elaboração das composições amorosas. Como salienta o fragmento 58.25
LP ao dizer: “I love habrosunè”. (KURKE, Leslie. “The politics of abrosunh in Archaic Greece”. In:
Classical Antiquity, v. 11, nº 01, April, 1992).
10
Voight, E. M. Sappho et Alcaeus. Fragmenta. Amsterdan, 1971.
11
A Liga de Corinto sob o domínio de Felipe não eliminou por completo o poder das aristocracias nas
ilhas do Egeu. As pólis, enquanto membros da Liga, mantiveram salvaguardadas suas unidades e os
interesses, o que de certa maneira protegeu os gregos de um avanço persa sob o continente. Este acordo
custou a Eressos penalizações quando foi reconquistada pelos persas em 333 a.C. por privilegiar as
sanções impostas pela realeza macedônica. Temos por idéia que a penalização tenha sido imposta ao
grupo aristocrático pró-democrático. Os persas facilitaram o domínio de um segundo grupo
aristocrático, que irão se estabelecer no poder irregularmente entre 335 a 333 a.C. O governo dos reis
macedônicos contra os persas. Por isso, a perseguição e a restrição aos movimentos aristocráticos era a
vitória da ‘isonomia’ contra a tirania. Alexandre pune as aristocracias pró-persas, no caso de Eressos
decide pelo exílio perpetuo delas.

90
através das atitudes de Pítaco, tirano de Metiline, que rejeitava as ofertas
de presentes feitas por Crésus, rei dos lídios, em troca de acordos políticos.
Definimos esse tipo de interação como uma relação de amizade
(phília) e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de relações de reciprocidade, ou
seja, xénia entre gregos e outros povos da Ásia Menor. Um conjunto de
relações que coloca esses gregos muitas vezes mais próximos dos reinos
orientais do que os próprios gregos do continente, da Hélade.
Procuramos identificar o lugar de memória das moedas gregas com a
efígie da poetisa Safo na região de Metilene no IV séc. a.C. Partimos do
princípio de que os artefatos configuram-se como agentes materiais e definem
um lugar de saber, de memória e de poder. Consideramos as moedas como
artefatos cujos símbolos trazem à memória dos habitantes de Metilene a
tradição, o passado em momentos de crise ou embates políticos. No caso, aqui
analisado por nós, a comunidade dos aristocratas de Metilene em confronto
com Alexandre em 333 a.C. em meio à ocupação grega da Ásia Menor.
Compreendemos as moedas e seus símbolos como lugar de
memória pelo fato de relembrar a tradição do passado em momentos de
crise ou embates políticos vivenciados pela sociedade de Lesbos no IV a.C.
Partimos do princípio de que os artefatos configuram-se como agentes
materiais e definem um lugar de saber, de memória e de poder.
As moedas foram forjadas em meio a este clima de crise social que
se estende da Liga de Delos até o domínio mundializado de Alexandre. As
moedas cunhadas com a efígie de Safo demonstram a união dos metilenos
aristocráticos, que assumem a promoção e a preservação dos vínculos
culturais locais e da construção de identidade que integra a coletividade. A
situação específica do metilênio aristocrático colabora para a formação de
figurações e configurações múltiplas de identidade causadas pela busca do
sentido de pertencimento e pela tentativa de recuperar o que Marc Augé12
denomina “lugar antropológico”.
Metilene começa a produzir as moedas que configuram essa nova
identidade. As moedas representam significados, mensagens, do emissor

12
AUGÉ, Marc. Não-lugares. Trad. Lúcia Muznic. Portugal: Bertrand, 1994. Segundo Marc Augé
(1994, 31), a investigação antropológica tem por objeto interpretar o modo pelo qual os indivíduos
interpretam a categoria do outro, conferindo-lhe um lugar, uma raça ou uma etnia. O sentido de
“pertencimento” vai além de um limite puramente físico, portanto, o “lugar antropológico” é a
construção concreta e simbólica do espaço que o indivíduo reivindica como seu; que sintetiza todo o seu
percurso cultural; que é ao mesmo tempo identitário, relacional e histórico.

91
para seus receptores13. Lesbos sempre dependeu para a sua sobrevivência
mais das alianças formuladas com os governos orientais do que da Grécia
continental para manter suas relações econômicas e, portanto, estabeleceu
relações de amizade e de reciprocidade com os reinos da Ásia Menor e com
Egito. Safo, Alceu e Charaux são representantes dessa relação sócio-
política filopersa.

Conclusão: rediscutindo o imaginado


Ao utilizarmos a cerâmica e as moedas, como documentação,
descobrimos outras formas de dar sentido a Safo muito diferente daquela
homophobica, bastante divulgada. Safo na moeda e na cerâmica se
transfigura de sentido, se torna poder e resistência aristocrática, imaginado
como um modelo ideal de representação social. Sua imagem recuperada no
V-IV séc. a.C ratifica as relações de phília/amizade dos remanescentes da
hetaireía de Safo e Alceu com os demais aristhoi e que favoreceu ao nosso
ver a criação de um lugar antropológico dos aristocratas e a permanência de
um pensamento social e político constantemente atacado pela democracia
ateniense e pela monarquia macedônica.

13
CARLAN, Cláudio UMPIERRE. Moeda, simbologia e propraganda son Constâncio II. Dissertação
de Mestrado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2000.

92
EMOÇÃO E RAZÃO – A RELAÇÃO ENTRE EUCLIÃO E ESTÁFILA
NO ATO I DA AULULÁRIA
Katia Teônia Costa de Azevedo

Introdução
Este trabalho tem por objetivo analisar a relação entre Euclião
(Euclio) e Estáfila (Staphyla) na perspectiva amo-escrava, que perpassa
pelos campos da razão e da emoção. Para isso, foi escolhido o ato I da peça
Aulularia de Plauto, pois é nele que percebemos mais claramente as
características desta relação e por se tratar também de um dos diálogos mais
importantes da peça, pois apresenta em sua estrutura um caráter
eminentemente dialético, uma vez que o cômico incorpora o trágico e se
define por seu intermédio. Assim, paradoxalmente, o que é risível para o
leitor é doloroso para as personagens envolvidas no diálogo.
Além disso, abordaremos também alguns recursos da linguagem
plautina presentes neste mesmo ato.

Escravidão
Um dos temas abordados na Aulularia foi a escravidão e quando
Plauto trata desse assunto ele toca num ponto fundamental para a vida
humana: a liberdade. Tal tema não recebeu destaque em suas obras, porém
podemos perceber, através das falas das personagens servis, comentários
jocosos, que tinham por objetivo, não só instaurar o cômico, mas também
mostrar as condições sociais desses indivíduos.
Ainda que nos tempos hodiernos, a escravidão cause desconforto aos
leitores, devemos levar em consideração que se tratava duma instituição
normal, tanto para os gregos quanto para os romanos. Assim como hoje nos
acostumamos a ver nos jornais trabalhadores mal remunerados, impossibi-
litados de dar à família uma condição de vida compatível com a condição
humana, assalariados que vivem num contexto em que a mais-valia impera e
devora, etc. Os escravos, inclusive, eram tratados por seus senhores, na
maioria das vezes, como seres humanos e não como objetos, desde que se
comportassem satisfatoriamente.
A visão plautina da escravidão é motivo de muitas controvérsias,
pois as insolências praticadas impunemente pelos escravos na peça, nos

93
parecem um tanto quanto impróprias, visto que em situações normais,
escravos trapaceiros, mentirosos ou ladrões teriam sido aprisionados,
chicoteados, ou até mesmo condenados.

• Euclião e Estáfila
Euclião, superficialmente, é o típico mau patrão e esse julgamento
provém da imagem que a ele é atribuída. Ele é o protagonista da peça, a
personagem cômica, aquela que se aproxima da caricatura, um ser esquemático,
criado a partir da sua avareza (característica principal da personagem).
Uma conseqüência dessa simplificação da personagem a traços
marcados justifica a motivação da escolha de seu nome: Euclião – o que tem
glória ou boa fama e também aquele que esconde. O traço mais evidente do
protagonista (a avareza) é revelado de maneira mais convincente nos
monólogos ou falas isoladas. Assim nada é mais contundente do que o
trecho a seguir, em que Euclião diz sozinho: “Estou inquietíssimo por me
ter de afastar de casa1” (Aul., I, 2, v. 105).
Estáfila é a escrava de Euclião e diferentemente da maioria dos
serui ela não é tagarela, insolente e indiscreta.
A fim de alcançar os seus objetivos, os serui não hesitam em
mentir, enganar, trapacear e, quando necessário, roubar. Nesta linha, situa-
se o escravo Estróbilo (Strobilus).
Estáfila é dedicada e sensata. Sabe reconhecer bem os que merecem
a sua dedicação e zelo. É uma personagem incidental, de certa importância e
com uma finalidade definida. Sua função é a de proteger aquela que está
preste a parir, não passando de personagem embrionária. Assim como já
fora dito a respeito da não arbitrariedade dos nomes das personagens, tem-
se no nome Estáfila o significado de vinha, cacho de uva madura –
provavelmente alusão ao gosto da escrava pelo vinho.
Há nesta relação, por parte de Estáfila, algo muito maior do que
uma relação de patrão e escrava. Estáfila mantinha para com Fedra e
Euclião um elo afetivo, pois há muito tempo ela era “responsável” por
aquela casa. Ela, inclusive, manifesta a sua preocupação e aflição, quando
Fedra se aproxima da hora do parto, pois Estáfila teme por sua reputação,
teme que o pai faça algo contra ela. O excerto seguinte poderá nos mostrar
essa preocupação:

1
Tradução de Agostinho Silva. In: Plauto e Terêncio – A Comédia Latina. Rio de Janeiro: Ediouro,
/s.d./.

94
“Est. Não sei já de que maneira se lhe há de esconder o que
aconteceu à filha, por que já se aproxima a hora do parto. Não
percebo nada disto! E acho que o melhor para mim será atar uma
corda ao pescoço e transforma-me numa letra comprida”. (Aul., I,
1, v. 74-78)

É Estáfila quem apóia Fedra (Phaedria) neste difícil momento, ao


passo que Euclião, o futuro avô, só se preocupa com a panela de ouro;
tamanha é a sua ganância. Na verdade, ele sequer sabe da gravidez da filha.
Este parece estar menos interessado na felicidade da filha do que em manter
oculto o seu tesouro.
Toda a dedicação de Estáfila é retribuída por Fedra, que a trata
como um membro da família e provavelmente, vê em Estáfila a figura
materna, já que ela tem uma idade avançada e provavelmente cuida de
Fedra desde pequena. É interessante observar também que a escrava se
sente, de fato, parte da família. Há um trecho em que ela diz ironicamente:
“De guarda a quê? É para que ninguém leve a casa? Porque realmente nós já
não temos mais nada que sirva para ladrões”. (Aul., I, 2, v.81-83)
O uso do apud nos nesse trecho (em latim “nam hic apud nos nihil
est aliud quaesti furibus” I, 1, v.82), apresenta uma característica mais
afetiva, do que simplesmente um recurso estilístico, tal como o plural de
modéstia, principalmente em se tratando dum momento de discussão, em
que normalmente desvinculam-se os laços, em razão da briga. Estáfila
poderia ter usado apud te, mas por se sentir já inserida no contexto familiar,
deixou aflorar a sua sensibilidade e fez uso do pronome nos.
Já Euclião, se tratando de um amo avarento, que trata injustamente a
sua escrava, impõe torturas físicas como castigo, xingamentos, injúrias e
ameaças. A cólera do Avarento volta-se principalmente contra a escrava, que é
ameaçada de todas as formas, desde ser chicoteada até à morte pela
crucificação, penalidades que podiam ser impostas aos escravos na vida real.
No verso seguinte, observaremos uma das ameaças de Euclião feita
à sua escrava: “Eucl. Então, por Hércules, mando-te logo para a cruz, para
te ensinar.”(Aul., I, 1, v.59)
Toda essa situação provoca em Estáfila uma grande revolta, a qual
podemos observar no trecho: “Est. Era bem melhor que os deuses me
enforcassem do que fazer-me servir-te a troco disto.” (Aul., I, 1, v. 50-51)
É bem verdade que todo esse comportamento, causa na escrava um
certo espanto, o que nos leva a crer que Euclião não deveria ser de todo mau

95
e que provavelmente o acontecimento da panela, teria alterado o seu
comportamento. O que nos parece é que Euclião é fundamentalmente um
velho decente, enlouquecido pela aquisição repentina da riqueza, como
poderemos observar no desabafo de Estáfila:

“Por Castor, não sei que desgraça é que aconteceu a meu senhor!
Não posso perceber que loucura lhe terá dado! Tem-me feito a
vida negra! Num só dia, já me pôs dez vezes fora de casa! Por
Pólux ! Não sei que fúrias se apoderam dele!” (Aul., I, 1 v. 67-71)

Em alguns casos, essa atitude ríspida e fria dos patrões, provoca nos
escravos uma reação negativa, os quais se vingam da escravidão e dos maus
tratos através de furtos, dando-lhes a má fama.
Há também a situação inversa. O escravo de Licônidas (Lyconides),
por exemplo, pelo tratamento que lhe é dispensado, dedica ao seu amo o
maior apreço e afeição.
Ao comentar os atos do avarento Euclião, em suas atitudes brutais para
com a velha escrava, podemos observar um aspecto regular do pater familias,
que tinha o direito de vida e morte sobre os que estavam sob a sua tutela.
Cabe ressaltar que a atitude violenta e injusta de Euclião para com a
sua escrava não tinha o cunho pessoal. Euclião passou a ter devaneios
através da sua obsessão pela panela de ouro. Qualquer indivíduo que se
aproximasse (mesmo sem saber) do tesouro seria recebido com a mesma
hostilidade. A sua sovinice o cegou e o transformou num homem invasivo,
agressivo e enérgico.

Recursos
Neste item observaremos os processos mais elementares que
contribuem para o cômico: exagero, neologismo, aliteração, metáfora, etc.
Alguns desses recursos além de serem artifícios cômicos, caracterizam
também a linguagem popular, a qual procura constantemente enfatizar as
idéias. Para isso, faremos uma análise dos versos do ato I da Aulularia e
observaremos alguns desses recursos.

• Exagero

96
EVCL. Exi, inquam. age exi. exeundum hercle tibi hinc est
foras, circumspectatrix cum oculis emissiciis. (Aul. I,I v. 40-41)

O emprego dos imperativos, seguido do gerúndio e depois do


neologismo salientam a entrada repentina e furiosa de Euclião em cena. O
exagero neste caso exprime a cólera do avarento, desconfiado da escrava,
com relação à sua panela de ouro. Além da repetição do mesmo verbo exeo
no imperativo, e no gerúndio com a idéia de obrigatoriedade a ira de
Euclião é ainda reforçada com o emprego do advérbio foras.

• Neologismo
EVCL. Exi, inquam. age exi. exeundum hercle tibi hinc est foras,
circumspectatrix cum oculis emissiciis.

Ainda neste trecho, no verso 41, podemos observar outra peculiaridade


de Plauto quando ele utiliza o neologismo circumspectatrix. Neste exemplo, o
valor do prefixo e a extensão da palavra (derivada do verbo circumspecto) são
altamente sugestivos. Todo o verso reflete, ainda, um processo de
intensificação, já que a expressão cum oculis emissiciis situa-se no mesmo
campo semântico do substantivo criado.

Interrogação retórica
EVCL. Tibi ego rationem reddam, stimulorum seges? (...) (Aul.,
I,1, v. 45)

Este verso inicia-se com uma interrogação retórica – “Tibi ego


rationem reddam, stimulorum seges?” Quando Euclião lança este questio-
namento ele não tem a intenção de receber alguma resposta, pois já a tem.

• Anáfora
EVCL. (...) illuc regredere ab ostio. illuc sis vide, ut incedit. at
scin quo modo tibi res se habet? (...) (Aul., I,1, v. 46-47)

Em “illuc regredere ab ostio. illuc sis vide,ut incedit. at scin quo modo
tibi res se habet?”, temos um efeito anafórico fornecido pela morfologia latina,
através do illuc, advérbio de lugar, e do illuc, pronome neutro, com função de
objeto direto da forma verbal vide.

97
• Aliteração
EVCL. Tibi ego rationem reddam, stimulorum seges? (...)
testudineum istum tibi ego grandibo gradum. (Aul., I,1, v. 45 e 49)

O texto latino se apóia em quatro aliterações: uma em r – rationem


reddam –, outra em s – stimulorum seges –, uma terceira em dental –
testudineum istum tibi – e uma quarta em velar sonora combinada com a
líquida r – grandibo gradum –, que traduzem a cólera de Euclião.

Metáforas
EVCL. Tibi ego rationem reddam, stimulorum seges?
(...)
testudineum istum tibi ego grandibo gradum. (Aul., I,1, v. 45-49)

Há também duas metáforas: a primeira é stimulorum seges (saco de


pancadas), nesta referência é muito sugestiva a transferência de sentido. A
segunda testudineum (passo de tartaruga). As metáforas são amplamente
exploradas em Plauto para gerar situações divertidas, como as que foram
citadas. Merecem destaque as que Euclião emprega ao referir-se à sua
escrava, pois são repletas de hilaridade.

• Oralidade
EVCL. At ut scelesta sola secum murmurat. oculos hercle ego
istos, improba, ecfodiam tibi, ne me observare possis quid rerum
geram. abscede etiam nunc -- etiam nunc -- etiam -- ohe, istic
astato. (Aul. I, 1, v.52-56)

Há neste trecho um dos momentos mais coloquiais e mais expressivos


da cena: depois do imperativo abscede, a dupla construção etiam nunc, seguida
da forma reduzida etiam; e a multiplicação das interjeições (nunc... nunc...
ohe), que se encerra por mais um imperativo – astato.

• Sintaxe expressiva

98
STAPH. Noenum mecastor quid ego ero dicam meo malae rei
euenisse quamue insaniam, queo comminisci; ita me miseram ad
hunc modum decies die uno saepe extrudit aedibus. nescio pol quae
illunc hominem intemperiae tenent: peruigilat noctes totas, tum
autem interdius quasi claudus sutor domi sedet totos dies. neque
iam quo pacto celem erilis filiae probrum, propinqua partitudo cui
appetit, queo comminisci; neque quicquam meliust mihi, ut opinor,
quam ex me ut unam faciam litteram longam, <meum> laqueo
collum quando obstrinxero. (Aul., I,1, v. 67-78)

É importante observamos a ordem das palavras que é afetada pela


desestabilização de Estáfila. Sobre a sintaxe expressiva, o professor da
UNICAMP Paulo Sérgio de Vasconcellos faz uma citação sobre a ordem
das palavras excerto em sua comunicação, Sintaxe expressiva e uso poético
na poesia latina, que fora apresentada em 2005 no VI Congresso da
Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC):

Ordem das palavras, questão sintática: “não pode assinalar-se á


ordem das palavras um lugar fora da sintaxe e, por outro lado não
há problema mais propriamente sintático que a ordenação dos
elementos que integram a unidade da frase”. (Rubio, 1984, p.191)2

Por duas vezes, a desarticulação (67-70 e 74-76) dos elementos


sintáticos traduz a profunda aflição em que Estáfila se debate, pois se sente
torturada ao mesmo tempo pelas desconfianças do patrão e pela
aproximação do parto de Fedra, que Euclião, transtornado, nem sequer
pressentiu. Neste passo, a escrava, perturbada pela série de insultos que
recebe, pensa em enforcar-se e compara sugestivamente a situação de uma
pessoa que morre na forca com um “I” maiúsculo - litteram longam. Tal
imagem propicia mais um momento cômico na cena.

• Interrogações cômicas
STAPH. Quippini? ego intus seruem? an ne quis aedes auferat?
nam hic apud nos nihil est aliud quaesti furibus, ita inaniis sunt
oppletae atque araneis. (Aul. I,1, v.81-84)

Estáfila responde a Euclião com uma grande quantidade de


interrogações e uma justificativa em tom de escárnio.
2
RUBIO, Lisardo. Introducción a la sintaxis estructural del latín. Barcelona: Ariel, 1984.

99
• Assíndeto
EVCL. ... pauper sum; fateor, patior; quod di dant fero... (Aul. I,
1. v. 88)

A supressão de elementos de ligação entre as frases é apoiada por


homeoteleutos e aliterações, o que destaca a clareza e a decisão da
afirmação.
Plauto centraliza os interesses do protagonista na retratação dos
medos e suspeitas de Euclião quanto à sua criadagem e vizinhança; em
conseqüência o avarento insiste em enfatizar a todo o momento que é
pobre, – é o discurso filosófico do ser e parecer.

• Jogo de palavras
EVCL. quod quispiam ignem quaerat, extingui volo, ne causae
quid sit quod te quisquam quaeritet. nam si ignis uiuet, tu
extinguere extempulo. (Aul., I, 1, v.91-93)

Há o jogo de palavras em extingui e extinguere. O jogo se


estabelece com a mesma forma verbal expressando ambigüidade, já que
Plauto a utiliza com duplo sentido. No primeiro caso “apagar o fogo”, no
segundo “fazer morrer”. Registra-se ainda a expressividade com uiuet.

• Seqüências cômicas
EVCL. Tace atque abi intro. STAPH. Taceo atque abeo. (Aul.,
I,1, v.103)

A seqüência vocabular nos versos é a única revanche ao alcance da


torturada, o que proporciona uma situação deveras cômica.

Conclusão
Ao longo do trabalho, procurou-se mostrar a relação de Estáfila e
Euclião, tanto pelo prisma da escrava, quanto pelo do patrão, isso para que
fosse possível chegar à conclusão de como é, de fato, a relação que ambos
mantinham entre si. Vimos também alguns dos muitos recursos utilizados
por Plauto no ato I da Aulularia, que em alguns momentos, exprimiam
aspectos sentimentais das personagens.

100
Percebemos então que esta relação transitava constantemente por
momentos de razão e emoção que se justificam a partir de suas aflições.
Estáfila levava uma vida satisfeita quanto às necessidades básicas,
tais como, teto, alimentação e vestuário, todavia isso não era o suficiente
para suportar os maus tratos que recebia. O que a mantinha firme era a
certeza de que algo tinha acontecido para que Euclião se tornasse tão
violento. No fundo ela sabia que já fazia parte daquela família, mas que não
podia se assemelhar a um membro familiar, pois lhe faltava algo
fundamental para realização humana – a liberdade. E é a liberdade o prêmio
que os escravos almejam, quer pelos benefícios prestados ao patrão, quer
obtida mediante alguma esperteza. E é esse desejo de liberdade que
aproxima a escrava do seu patrão. Ambos têm algo em comum e as suas
vidas giram em torno desses desejos.
O maior desejo de Euclião é viver, que não está apenas no amor à
vida, mas também na cobiça e na avidez, o que justifica o desejo pela posse
material – a panela de ouro.
Euclião também vive numa prisão, talvez até pior do que a de
Estáfila, haja visto que sua prisão ideológica, a sua idéia fixa o leva à
loucura.
Estáfila, por ser escrava, deseja a liberdade, Euclião a panela;
juntos, patrão e escrava caminham lado a lado cada qual com o seu anseio.
E dessa forma com a contribuição de recursos cômicos, nos apresentam um
dos momentos mais divertidos e burlescos da peça plautina.

Referências Bibliográficas
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BAYET, Jean. Littérature Latine. Paris : A. Colin,1980.
CARDOSO, Zélia de Almeida. A Literatura Latina. SP: Martins Fontes, 2003.
CART, A. et alii. Gramática Latina. Trad. e adap. de Mª Evangelista V. N. Soeiro.
SP: EDUSP, 1986.
CIRIBELLI, Marilda Corrêa. O Teatro Romano e as Comédias de Plauto. RJ:
Sette Letras, 1996.
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FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 4ª ed. RJ, MEC, 1967.

101
_____________ Fonética Histórica do Latim. 2a ed. RJ: Livraria Acadêmica, 1970.
____________ Gramática Superior da Língua Latina. RJ: Livraria Acadêmica, /s.d./.
GRIMAL. Pierre Dictionnaire de la Mythologie Grecque et Romaine. Paris : PUF,
1979. (tradução portuguesa coordenada por V. Jabouille, Lisboa, Difel, 1992).
_____________ O Teatro Antigo. Lisboa : Edições 70, 1986.
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Comédia Nordestina. Tese de doutoramento. RJ: UFRJ / FL, 1980.
KOOGAN / HOUAISS. Enciclopédia e dicionário ilustrado. 4ª ed. RJ: Edições
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PAIVA, Edna Ribeiro de Paiva. Anfitrião – Mito e Paróia, Versão Plautina de
Guilherme Figueiredo. Tese de doutoramento. RJ: UFRJ / FL, 1988.
PARATORE, Ettore. História da Literatura Latina. Trad. Manuel Losa. 13.ª ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
PLAUTE. Comédies I. Texte établi et traduit par A. Ernout. Paris: Les Belles
Lettres, 1932
PLAUTO. A Comédia da Marmita. Trad. Walter de Medeiros. Coimbra: Instituto
Nacional de Investigação Científica, 1985.
PLAUTO e TERÊNCIO. A Comédia Latina. Trad. Agostinho da Silva. RJ:
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PLAUTUS. Aulularia. In: Perseus Digital Library. (www.perseus.tufts.edu).
SOUZA, Mariza Mencalha. Perfil do Euclião na Aululária de Plauto. Dissertação
de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2002.
TORRINHA, Francisco. Dicionário Latino-Português. 7ª ed. Porto: Gráficos
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VASCONCELLOS, Paulo Sérgio. Sintaxe Expressiva e Uso Poético do Espaço na
Poesia Latina. Comunicação apresentada no VI Congresso na SBEC. RJ: 2005.

102
SATURNALIA – TEMPO DE PRESENTES
Leni Ribeiro Leite

No começo de dezembro, escreve Columella, o fazendeiro deveria ter


terminado sua plantação de outono. Então, no momento do solstício de inverno
– 25 de dezembro no calendário Juliano – Saturno, o deus do plantio e da
colheita, era homenageado com um festival. As Saturnalia eram oficialmente
celebradas no dia 17 de dezembro (a.d. XVI Kal. Ian.) e, na época de Cícero,
duravam sete dias, de 17 a 23 de dezembro. Augusto tentou limitar o feriado
para três dias, de forma que as atividades civis não tivessem que se interromper
por mais tempo do que o necessário, e Calígula estendeu-o para cinco dias.
Ainda assim, parece que as celebrações continuavam acontecendo durante uma
semana inteira, de acordo com Macróbio, com a troca das sigillaria, pequenas
figuras de terracota ou prata dadas como presente.
Macróbio, em seu livro denominado exatamente Saturnalia, cria
uma simpósio imaginário entre intelectuais pagãos, que ocorre durante o
período das Saturnalia. Em certo ponto, ele oferece uma explicação para a
duração variada do feriado. Segundo consta, o feriado era originalmente
celebrado em um só dia, 19 de dezembro (a.d. XIV Kal. Ian.). Com a
reforma do calendário Juliano, entretanto, dois dias foram adicionados a
dezembro, e as Saturnalia passaram ao dia dezesseis antes das Kalendas de
janeiro, ou seja, dezessete de dezembro

“resultando que, já que o dia exato não era conhecido de forma


comum – alguns observando a adição que César fizera ao
calendário e outros seguinte o antigo costume – o festival passou
a ser considerado como durando mais do que um só dia.”

O dia original havia sido escolhido em função da Opalia, em honra


à deusa Ops, que personificava a abundância e os frutos da terra, e era a
consorte de Saturno. Como as duas divindades representavam o produto
dos campos e pomares, eles também representavam o céu e a terra. Era por
esta razão, segundo Macróbio, que os festivais eram celebrados ao mesmo
tempo, com os cultores de Ops sempre sentados em oração, de forma a
tocar a terra, mãe de todos.

103
No calendário romano, as Saturnalia eram consideradas dias
sagrados, ou feriados, em que ritos religiosos aconteciam. Saturno recebia
sacrifícios; no Templo de Saturno, um dos mais antigos segundo os
registros dos pontífices, construído para as Saturnalia, os pés da imagem
do deus eram livrados dos fios de lã que o cingiam, para simbolizar a
libertação do deus.
Mas as Saturnalia eram também dias de festas. Após o sacrifício no
templo, havia um banquete público, costume que, segundo Tito Lívio,
havia sido iniciado em 217 a.C. Pode ter havido também um lectisternium,
ou seja, um banquete para o deus em que sua imagem era colocada junto à
mesa, como um conviva. De acordo com Macróbio, a saudação durante o
período era “Io, Saturnalia”, que os participantes do banquete gritavam
durante a festa no templo.
As Saturnalia eram sem dúvida a festividade mais popular do
calendário romano. Catulo as descreve como “o melhor dos dias”, no
poema 14:

Nei te plus oculis meis amorem,


Iocundissime Calue, munere isto
Odissem te odio uatiniano;
Nam quid feci ego quidue sum locutus,
Cure me tot male perdere poetis?
Isti dei mala multa dent clienti,
Qui tantum tibi misit impiorum.
Quod si, ut suspicor, hoc nouum ac repertum
Munus dat tibi Sulla literator,
Non est mi male, sed bene ac beate,
Quod non dispereunt tui labores.
Dei magni, horribile est sacrum libellum!
Quem tu scilicet ad tuum Catullum
Misti, continuo ut die periret
Saturnalibus, optimum dierum!
Se não te amasse mais do que a meus próprios olhos,
Felicíssimo Calvo, por tal presente
Eu te odiaria com o ódio de Vatínio;
Pois o que eu fiz, o que eu falei,
Para que me perdesses com tão maus poetas?
Que os deuses mandem muitos males ao teu cliente
Que enviou a ti tantas coisas ímpias.
Se, conforme suspeito, este presente novo e inacreditável

104
Te dá Sila, o gramático, não me parece mal,
Mas sim bom e belo por não desperdiçares teus esforços.
Grandes deuses, que livro horrível e infame!
Este que sem dúvida tu deste a teu Catulo para que ele morra
subitamente
Neste dia de dons, das Saturnais, melhor dos dias!

Neste poema de Catulo, encontramos o costume mais bem


documentado dos dias das Saturnais: o de trocar presentes. As Saturnais eram
uma ocasião para celebrações em que os amigos deveriam ser visitados e
presenteados, inicialmente com as já mencionadas sigillaria e pequenas velas
de cera (cerei), talvez para representar a volta do sol com sua luz. Também
atesta o costume Petrônio, no Satyricon 56.7-10. No entanto, ao que tudo
indica, logo os tipos de presentes foram significativamente ampliados,
conforme documenta Marcial. Este autor nos legou dois livros inteiros de
epigramas, intitulados Xenia e Apophoreta, exclusivamente compostos de
dísticos que são dedicatórias criadas para acompanhar vários tipos de
presentes. Cada pequeno poema tem um título, que nada mais é do que o
presente que o epigrama deveria acompanhar. Considera-se que os livros
teriam sido publicados em dezembro do ano 85 d.C. O primeiro contém
poemas para acompanhar presentes de comida e bebida; o segundo, presentes
de variados tipos, a serem dados aos visitantes. Estes livros são
tradicionalmente numerados XIII e XIV, respectivamente, nas edições das
obras completas do autor.
Cumpre observar, no entanto, que muitos dos poemas são bem mais
do que simples dedicatórias. Muitos deles mostram as habilidades do poeta:
concisão, perícia na síntese - dado o número restrito de versos -, ironia e fina
comicidade, adulação ao imperador, tudo isso encontra lugar nos pequenos
epigramas dedicatória. Como exemplo, observemos os poemas abaixo:

XIII. 34 – Bulbi
Cum sit anus coniunx et sint tibi mortua membra
Nil aliud bulbis quam satur esse potes.
Cebolas
Já que sua esposa é idosa, e teu membro está morto
Nada mais você pode fazer do que encher-se de cebolas.
XIII. 122 – Acetum
Amphora Niliaci non sit tibi uilis aceti:
Esset cum uini, uilior illa fuit.

105
Vinagre
Não seja desprezível para você uma garrafa de vinagre do Nilo.
Quando era de vinho, era mais barata.
XIII.126 – Unguentum
Unguentum heredi numquam nec uina relinquas
Ille habeat nummos, haec tibi tota dato.
Ungüento
Nunca deixe ungüento ou vinho para seu herdeiro.
Que ele tenha o dinheiro, mas dê estes todos a você mesmo.
XIV. 34 – Falx
Pax me certa ducis placidos curuauit in usus.
Agricolae nunc sum, militis ante fuit.
Foice
A paz duradoura de nosso Governante me curvou para usos
pacíficos.
Agora sou do agricultor, mas antes fui do soldado.
XIV. 40 – Lucerna cubicularis
Dulcis conscia lectuli lucerna,
Quidquis uis facit licet, tacebo.
Sou uma lamparina, confidente de teu doce leito
É permitido que faças o que desejas, eu me calarei.
XIV. 196 – Calui De aquae frigidae usu
Haec tibi quae fontes et aquarum nomina dicit,
Ipsa suas melius charta natabat aquas.
“Sobre o uso de água fria”, de Calvo
Estas páginas que te falam sobre fontes e nomes de rios
Estariam melhor se nadassem em suas próprias águas.

No entanto, nem todos parecem ter apreciado a festa, nem a


apreciado da mesma forma. Sêneca, nas Epistulae Morales ad Lucilium,
reclama que “toda a plebe se deixa levar pelos prazeres”. Plínio-o-Jovem
diz que se retirava para seu quarto enquanto o resto da casa celebrava.
Cícero ia para o campo. Aulo Gélio, nas Noctes Atticae XVIII. 2 conta que
ele e seus compatriotas romanos se reuniam nos banhos em Atenas, onde
estudavam, e faziam um jogo de perguntas e respostas e, caso ninguém

106
soubesse responder à pergunta feita, deveriam dedicar uma coroa de
louros a Saturno.
Uma característica da celebração que ganhou em importância com o
passar do tempo era que, durante o feriado, muitas restrições eram deixadas de
lado, e a ordem social era invertida. Jogos de azar eram permitidos em público.
Os escravos não precisavam trabalhar e podiam jogar com os dados; ao invés
da toga, roupas menos formais eram permitidas (synthesis). Dentro da família,
um “chefe do desregramento” era escolhido. Os escravos eram tratados como
iguais, inclusive usando roupas de seus senhores e sendo servidos nas
refeições. Essa igualdade era temporária, é claro, e Petrônio fala de um escravo
imprudente que agiu em outra época do ano “como se fosse dezembro”.
No fim do primeiro século d.C., Estácio ainda podia proclamar:

“Por quantos anos este festival vai permanecer! Nunca a terra


deverá destruir dia tão sagrado! Enquanto as colinas do Lácio
permanecerem de pé, e o pai Tibre, enquanto romano e o
Capitólio estiverem firmes sobre o mundo, ele deve continuar.”

E a Saturnália de fato continuou sendo celebrada, como Brumália


(de bruma, solstício de inverno) até a era cristã, quando, em meados do
século IV d.C., seus rituais acabaram absorvidos pela celebração do Natal.
Há quem diga que os cristãos do século IV apontaram o dia 25 de
dezembro como o do nascimento de Cristo porque os pagãos já tinham esse
dia como sagrado. Essa escolha evitaria o problema de eliminar um feriado
muito popular e auxiliaria no processo de cristianização da população.
No entanto, houve problemas, registrados em sermões e outros
documentos eclesiásticos, em função das diferenças entre as celebrações,
uma vez que já no primeiro século d.C. são registradas profundas alterações
nos costumes das Saturnalia. O feriado em honra a Saturno parece ter-se
degenerado para os excessos, marcados pela alteração de papéis sociais, e a
liberdade de ação então proclamada teria sido a razão pela qual, já na era
cristã, o termo saturnalia, em minúscula, seria sinônimo de orgia. Sêneca,
dirigindo-se novamente a Lucílio, escreveu a respeito das Saturnalia
romanas nos seguintes termos:

“É agora o mês de dezembro, em que a maior parte da cidade está


em festa. Rédeas soltas são dadas para a dispersão pública, em
qualquer lugar que se vá são ouvidos os sons de grandes
preparações, como se houvesse realmente uma grande diferença

107
entre os dias devotados a Saturno e os dias comerciais. Se você
estivesse aqui, eu gostaria de debater com você se deveríamos ter
uma noite como as outras ou se, para evitar a diferença,
deveríamos ambos ter um jantar melhor e deixar de lado a toga.”

A moral estóica, e depois a cristã, condenaram as Saturnalia,


especialmente em sua faceta de inversão dos valores e costumes, tal como
aconteceu com outras festas pagãs, vide o Carnaval, ainda hoje evitado
pelos segmentos mais religiosos. No entanto, o costume da troca de
presentes moderna pode ser traçado até as pequenas sigillaria, e não faltam
a nós os banquetes com os amigos e família, regados a vinho e alimentos
festivos, como agradecimento pela fartura, e como promessa de um novo
ano de colheitas abundantes.

Referências bibliográficas:
BORNECQUE, H. & MORNET, D. Roma e os romanos. SP: EPU-EDUSP, 1976.
CATULO. O livro de Catulo. Trad. João Ângelo Oliva Neto. SP: EDUSP, 1996.
GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e romana. 4. ed. RJ: Bertrand
Brasil, 2000.
MARTIAL. Epigrams. Cambrige, Massachussets: Harvard, 1993.
SULLIVAN, J. P. Martial – The Unexpected Classic. Cambridge: Cambridge
University, 1991.

108
ODE I, 1 DE HORÁCIO: DEDICATÓRIA DO POETA A MECENAS
Mára Rodrigues Vieira

Horácio, poeta latino que viveu de 65 a 8 a. C., compôs epodos,


sátiras, odes, epístolas e o Canto Secular.
Dos quatro livros de odes que escreveu, publicou juntos, no final
do ano 23 a.C., os três primeiros, cuja introdução, a Ode número 1 do
primeiro livro, dedicada a Mecenas, é objeto de nosso estudo.
Nesta Ode de trinta e seis versos cuidadosamente elaborados e
distribuídos, constatamos que os dois primeiros e os dois últimos delimitam o
espaço pelo poeta reservado ao desenvolvimento do tema – o gosto de cada
um como fator determinante da direção a seguir no percurso de sua vida.
A leitura dos trinta e dois versos, em que o poeta trata de algumas
das inclinações do ser humano, mostra-nos que, no elenco dos vários tipos
apresentados, apenas o último vem referido a um ser determinado, em
contraposição aos demais. É destes que nos ocuparemos a seguir, com
vistas à identificação dos recursos lingüísticos por Horácio utilizados na
expressão da indeterminação de cada ser.
Observada a ordem dos versos, faremos o estudo por grupos
em seqüência, cuja indicação precederá os comentários.
Primeiro grupo: do verso 3 ao verso 10
sunt quos curriculo puluerem Olympicum
collegisse iuuat metaque feruidis
euitata rotis palmaque nobilis
terrarum dominos euehit ad deos; (v.3-v.6)
(existem aqueles aos quais agrada, na corrida de carros, ter
amontoado a poeira olímpica e a meta evitada com as rodas ardentes
e a palma nobre eleva-os até os deuses, senhores das terras)
Em período composto, iuuat é verbo da oração adjetiva, cujo
elemento introdutor quos, pronome relativo indefinido, é seu objeto direto.
De quos depreendemos os termos integrantes das duas outras orações: ii,
em nominativo, masculino, plural, sujeito de sunt (na subordinante da

109
adjetiva); eos, em acusativo, masculino, plural, sujeito de collegisse (na
substantiva reduzida de infinitivo, sujeito de iuuat).
hunc, si mobilium turba Quiritium
certat tergeminis tollere honoribus;
illum, si proprio condidit horreo
quicquid de Libycis uerritur areis. (v.7-v.10)
(a este (agrada), se a turba dos Quirites inconstantes luta por
elevá-lo às honras tríplices; àquele (agrada), se guardou no
próprio celeiro tudo aquilo que se varre das eiras líbicas.)
Os pronomes hunc e illum, em acusativo, como quos, servem
também de objeto ao verbo iuuat, oculto.
Segundo grupo: do verso 11 ao verso 18
Gaudentem patrios findere sarculo
agros Attalicis condicionibus
numquam demoueas, ut trabe Cypria
Myrtoum pauidus nauta secet mare.
Luctantem Icariis fluctibus Africum
mercator metuens otium et oppidi
laudat rura sui; mox reficit rates
quassas, indocilis pauperiem pati.
(Aquele que se alegra em abrir com a enxada a terra de seus pais
não se o demove com riquezas atálicas, a que, como tímido nauta,
singre o mar de Myrtos. O mercador que teme o Áfrico, que luta
com as ondas icárias, louva o ócio e os campos de sua cidade; logo
repara as naus avariadas, incapaz de suportar a pobreza.)
Gaudentem, em acusativo, é complemento de demoueas, forma
verbal de segunda pessoa do singular, no subjuntivo presente, que, neste
texto, serve de expressão à indeterminação do sujeito. Para o estudo de
gaudentem, adjetivo substantivado, convém examinar dois outros empregos
do particípio presente – luctantem e metuens, ambos adjetivos, em
concordância com os substantivos Africum, em acusativo, e mercator, em
nominativo, respectivamente. O acusativo gaudentem é a expressão reduzida
de eum qui gaudet, em que o pronome qui, com o antecedente eum, não
tem valor determinado. Vale ainda observar a referência feita a mercator –
aquele que comercia –, termo empregado com valor genérico: nome de
agente em –tor.

110
Terceiro grupo: do verso 19 ao verso 22
Est qui nec ueteris pocula Massici
nec partem solido demere de die
spernit, nunc uiridi membra sub arbuto
stratus, nunc ad aquae lene caput sacrae.
(Existe aquele que nem desdenha copos do velho Mássico, nem
(desdenha) subtrair uma parte do dia, reclinado, ora com os
membros sob um arbusto verde, ora junto a uma serena fonte de
água sagrada.)
Qui, sujeito de spernit, na oração adjetiva, é pronome relativo
indefinido do qual se infere o sujeito de est -is -, na oração principal.
Quarto grupo: do verso 23 ao verso 28
Multos castra iuuant et lituo tubae
permixtus sonitus bellaque matribus
detestata. Manet sub Ioue frigido
uenator tenerae coniugis inmemor,
seu uisa est catulis cerua fidelibus,
seu rupit teretis Marsus aper plagas.
(A muitos agradam os acampamentos e o som da tuba misturado
ao da trombeta e as guerras detestadas pelas mães. Permanece,
sob o céu frio, o caçador, esquecido da terna esposa, ou se uma
corça foi vista por seus cãezinhos fiéis, ou se um javali marso
rompeu as redes resistentes).
Multos, pronome indefinido, é o termo introdutor do período
simples e serve de objeto a iuuant, em cujo sujeito, composto,
identificamos os núcleos: castra, sonitus, bella.
Ressaltamos também a menção a uenator – aquele que caça –,
termo que não denota exclusividade: nome de agente em –tor.
Quinto grupo: do verso 29 ao verso 34
Me doctarum hederae praemia frontium
dis miscent superis, me gelidum nemus
Nympharumque leues cum Satyris chori
secernunt populo, si neque tibias
Euterpe cohibet nec Polyhymnia
Lesboum refugit tendere barbiton.

111
(A mim as heras, prêmios das doutas frontes, misturam-me com
os deuses do céu, a mim um bosque fresco e os coros ligeiros das
Ninfas com os Sátiros afastam-me do povo, se Euterpe não coíbe
as flautas, se Polyhymnia não recusa afinar a lira.)
Esta seqüência de seis versos, em oposição àqueles até aqui
estudados, diz respeito a um único indivíduo, a um ser determinado que
reconhecemos pelo emprego do pronome de primeira pessoa do singular –
me –, como introdutor de longo período.
É de si próprio que se ocupa o poeta neste excerto em que todos os
elementos citados estão a seu favor – de um lado, as heras, prêmios das
doutas frontes, colocam-no entre os deuses do céu; de outro lado, as Ninfas
e os Sátiros, habitantes da floresta, afastam-no do povo –, desde que
Euterpe, Musa da poesia lírica, não coíba as flautas e Polyhymnia, Musa
das canções dedicadas aos deuses, não se recuse a afinar a lira.
À exemplificação caracterizada por formas de expressão que
traduzem a indeterminação dos seres referidos fortemente se opõe o último
grupo, com particular relevo para o próprio poeta.
Nos dois últimos versos da ode (v.35 e v.36)
Quod si me lyricis uatibus inseres,
sublimi feriam sidera uertice.
(Então, se me colocares entre os vates líricos, tocarei os astros
com minha cabeça altiva.)
O poeta habilmente faz uso de duas formas verbais em orações
correlatas: feriam, em primeira pessoa do singular, condicionada a inseres,
em segunda pessoa do singular, enfatiza o reconhecimento de Horácio a seu
protetor, Mecenas, já anunciado nos dois primeiros versos da ode, como
termo introdutor, a quem o poeta se dirige com gratidão e exalta com o uso
reiterado do vocativo:
Maecenas atauis edite regibus
o et praesidium et dulce decus meum, (v.1 e v.2)
(Mecenas, descendente de antigos reis, ó meu protetor e minha
doce glória!)

112
Referências bibliográficas:
BASSOLS DE CLIMENT, Mariano. Sintaxis latina. Madrid: Artigrafia, 1973.
ERNOUT, Alfred & THOMAS, François. Syntaxe latine. Paris: C. Klincksieck,
1959.
GAFFIOT, Félix. Dictionnaire illustré latin-français. Paris: Hachette, 1934.
HORACE. Odes et epodes. Texte établi et traduit par F. Villeneuve. Paris: Les
Belles Lettres, 1991.
MAROUZEAU, Jean. Traité de stylistique latine. Paris: Les Belles Lettres, 1942.

113
DIDO EM VIRGÍLIO E EM OVÍDIO
Márcia Regina de Faria da Silva

Vírgílio e Ovídio são dois autores do chamado Século de Augusto,


período mais produtivo da Literatura Latina. Virgílio escreve uma majestosa
epopéia dos feitos romanos, enquanto Ovídio cultiva o verso elegíaco em
cartas de heroínas e heróis lendários ou históricos para seus amados ou
amadas. Porém elas se coadunam, quando observamos o IV canto da Eneida
de Virgílio e a VII carta das Heróides de Ovídio, pois cantam os amores de
Dido e Enéias.
A Eneida de Virgílio narra as aventuras de Enéias, herói troiano,
que após a queda de Tróia parte, impelido pelos deuses, com seu pai
Anquises, seu filho Ascânio e outros troianos para as costas da Itália.
Durante a viagem é impelido por uma tempestade para a cidade de Cartago,
onde é bem recebido pela rainha Dido. Narra a ela suas desventuras e lá
permanece por algum tempo, vivendo uma ardente paixão. Júpiter manda
Mercúrio lembrá-lo de seu destino e ordenar que o herói parta. Dido,
desesperada com o abandono, se suicida. Após a saída de Cartago, Enéias
chega à Sicília onde realiza jogos fúnebres em honra de seu pai, já, então,
falecido há um ano. Em seguida, o herói troiano vai aos Infernos, onde
encontra seu pai que lhe mostra sua descendência e como esta será
poderosa. Finalmente, Enéias chega ao Lácio, manda embaixadores ao rei
Latino, que o acolhe amigavelmente, mas Amata, esposa de Latino,
juntamente com Turno, pretendente à mão de Lavínia, filha de Latino e
Amata, excitam o rei à guerra contra os troianos. Enéias consegue ajuda do
rei Evandro e busca auxílio junto aos toscanos. Se inicia uma luta acirrada
até que Enéias consegue matar Turno.
Ovídio reelabora os temas lendários sob um novo enfoque, já que
através do eu-lírico expressa a dor provocada pela perda amorosa.
Verifica-se, através da lenda, que a trajetória de Dido apresenta
aspectos trágicos marcantes, pois ela vai ao encontro da morte, como os
heróis ou heroínas de tragédias. Procurar-se-á, a partir de agora, abordar a
tragicidade que ocorre nessa trajetória.

114
Poder-se-ia pensar em como serão abordados aspectos trágicos em
obras que, anteriormente, foram designadas como epopéia e elegia, sem
ligação com a tragédia. Contudo, nada de absurdo há nisso. Muitos já
estudaram a respeito da mistura de gêneros nas obras, mas dois autores, em
especial, interessam ao nosso estudo: Emil Staiger, em Conceitos
fundamentais da poética, e Northop Frye, em Anatomia da crítica. Staiger
aborda a questão das classificações fechadas e substantivas de gêneros que
pretendem sempre classificar as obras dentro da lírica, da épica ou do
drama. Ele propõe que existe uma noção adjetiva e, dessa forma, as obras
seriam classificadas através da predominância de traços estilísticos líricos,
épicos ou dramáticos.
Tendo feito este preâmbulo, pretende-se agora iniciar a análise dos
poemas a partir do ponto de vista de suas características trágicas.
O trágico se revela, segundo a definição dada por Staiger:
Quando se destrói a razão de uma existência humana, quando
uma causa final e única cessa de existir, nasce o trágico. Dito de
outro modo, há no trágico a explosão do mundo de um homem,
de um povo, ou de uma classe. (STAIGER, E., 1974, p. 147)
É exatamente isso que acontece com Dido: ela construía um novo
reino, que representava, perante seu irmão e os povos vizinhos, sua “volta
por cima” em relação à morte de seu marido e à fuga de Tiro.
Nunc media Aenean secum per moenia ducit
Sidoniasque ostentat opes urbemque paratam (...) (En., IV, 74-75)
Agora conduz Enéias consigo pelo meio das muralhas
e mostra as riquezas sidônias e a cidade preparada (...)
Nec noua Carthago, nec te crescentia tangunt
Moenia nec sceptro tradita summa tuo?
................................................................................................
Quando erit ut condas instar Carthaginis urbem
Et uideas populos altus ab arce tuos? (Her., VII, 13-14; 21-22)
Nem a nova Cartago, nem as muralhas que crescem
nem o lugar mais elevado dado a teu cetro te impressionam?
................................................................................................
Quando será que fundas uma cidade à semelhança de Cartago
e altivo vejas da fortaleza teus povos?

115
Os dois poemas apresentam Cartago como uma cidade em pleno
desenvolvimento (urbem paratam; noua Carthago). E não é uma
cidadezinha qualquer, mas uma grande cidade. Pode-se notar isso através
da palavra moenia que é encontrada em ambos os poemas. Ora, as muralhas
representam uma cidade que deverá vir a ser uma fortaleza e isso é
percebido claramente nas Heróides, pois Dido duvida que Enéias possa um
dia fundar uma cidade tão importante quanto Cartago. E, ainda, confirma a
idéia da grandeza do reino de Dido a palavra arce, usada para indicar que,
se Enéias permanecesse junto da rainha, ele teria um lugar de onde pudesse
ver essa fortaleza que seria, obviamente, também sua.
Mas Dido apaixona-se e, aí, começa a explosão de seu mundo.
Nota-se isso na passagem da Eneida em que a cidade está parada, como se
esperasse o resultado do amor sentido pela rainha.
Non coeptae adsurgunt turres, non arma iuuentus
exercet portusue aut propugnacula bello
tuta parant; pendent opera interrupta minaeque
murorum ingentes aequataque machina caelo. (En., IV, 86-89)
As torres começadas não se erguem, a juventude não segue a
carreira militar, nem os portos nem as seguras fortificações
esforçam-se para a guerra; os trabalhos, interrompidos, estão
suspensos não só as enormes ameias das muralhas mas também a
máquina que atinge o céu.
Ao lado da grandiosidade hiperbólica da construção (murorum
ingentes aequataque machina caelo), encontram-se os verbos no presente do
indicativo ligados aos advérbios de negação indicando que tudo está à espera
de uma resolução (non adsurgunt, non exercet, -ue parant, pendent),
culminando com o verbo no particípio passado, mostrando a total inércia de
todos os trabalhos (interrupta ligado a opera).
Howard Jacobson (JACOBSON, H., 1974, p. 78-79) comparando
os fragmentos vistos nas duas obras, diz que se pode suspeitar do fato de a
cidade estar crescentia em Ovídio, devendo ser apenas um eco da Eneida,
pois no verso seguinte é utilizada a palavra facta que dá idéia de que a
cidade já está pronta (Facta fugis, facienda petis...) (Her., VII, 15 – Evitas
as obras feitas, desejas as que devem ser feitas...). Segundo o citado autor,
isso é explicado como um argumento retórico, usado na tentativa de
mostrar a Enéias as vantagens de ficar ao lado da rainha. Utilizando esta
idéia, notamos que realmente parece que a retórica é que fundamenta essas
interrogações iniciais (v. 9-24) de Dido, especialmente as aqui analisadas,
116
já que ela está completamente apaixonada e preparando-se para o seu
trágico fim, como se vê no início da carta:
[Accipe, Dardanide, moriturae carmen Elissae;
Quae legis, a nobis ultima uerba legis.] (Her., VII, 1-2)
Ouve, Enéias, o canto de Elissa que vai morrer;
o que lês são minhas últimas palavras.]
Tendo em vista este estado de espírito, ela não deveria estar
preocupada com as obras para o crescimento da cidade, a menos que a
menção a esses fatos fosse apenas para tentar convencer Enéias a ficar.
A inatividade dos trabalhos, observada na Eneida, tem um
momento de trégua após Dido e Enéias unirem-se na gruta.
Vt primum alatis tetigit magalia plantis,
Aenean fundantem arces ac tecta nouantem conspici.(...) (En.,
IV, 259-261).
Logo que toca com os pés alados os casebres, olha Enéias que
ergue as fortalezas e que refaz telhados (...).
Mas, agora, as atividades são feitas pelo próprio Enéias, não mais
pelos súditos da rainha, mostrando que ela está completamente dominada
pela situação amorosa em que se encontra. Situação esta que culminará na
explosão de seu mundo pessoal, através de sua morte, e, conseqüentemente,
na derrocada da cidade em que reinava.
Nas Heróides, percebe-se essa sujeição através da disposição de
Dido para estar de qualquer jeito ao lado de Enéias.
Si pudet uxoris, non nupta, sed hospita dicar;
Dum tua sit, Dido quodlibet esse feret. (Her., VII,167-168)
Se te envergonhas da esposa, não casada, mas que eu seja chamada
forasteira;
conquanto que seja tua, Dido suportará ser qualquer coisa.
Em relação a esta passagem, deve-se concordar com Howard
Jacobson quando diz que a Dido de Ovídio dá um passo além da Dido de
Virgílio em sua prontidão para fazer concessões. Enquanto a segunda é
infeliz com um simples relacionamento hospes-hospita (v. 323-324), a
primeira está pronta a aceitar qualquer coisa para ficar ao lado de seu
amado. Vê-se, com isso, que a Dido de Ovídio é apresentada como uma
simples mulher, frágil e humana ao extremo, que vive o seu amor não como

117
uma heroína, mas sim como um ser humano que sofre e se rebaixa no
intuito de conseguir realizar seus desejos amorosos.
Essa sujeição já marca a derrocada da rainha, que fora prenunciada,
nas Heróides, no momento em que ela menciona o acontecimento na gruta.
Illa dies nocuit, qua nos decliue sub antrum
Caeruleus subitis cumpulit imber aquis.
Audieram uocem; nymphas ululasse putaui;
Eumenides fatis signa dedere meis. (Her., VII, 93-96)
Funesto foi aquele dia, no qual uma tempestade cerúlea com as
águas repentinas nos impeliu para a caverna inclinada.
Eu tinha ouvido uma voz; pensei que as ninfas tivessem chamado;
as Eumênides deram presságios aos meus destinos.
Esta passagem é muito significativa como prenúncio do desfecho
trágico da rainha, já que utiliza a antítese entre nymphas e Eumenides
unidas ao verbo putaui, mostrando nitidamente o juízo errôneo que Dido
tinha feito naquele dia (illa dies) em que estava cega de amor (nocuit).
As ninfas, segundo Pierre Grimal, “são ‘jovens mulheres’ que povoam
o campo, os bosques e as águas. São os espíritos dos campos e da natureza em
geral, de que personificam a fecundidade e a graça. (...) Habitam grutas onde
passam a vida a fiar e a cantar” (GRIMAL, P., 1997, p. 331). Percebe-se,
nitidamente, que elas são designadas como a personificação da fecundidade. O
fato de suas vozes serem ouvidas em uma união designava um bom presságio.
Mas Dido apenas tinha julgado (putaui) que as ouvira, talvez iludida pelo lugar
onde estava, que se constitui a habitação de ninfas (antrum). A realidade
mostrou a antítese. Não houve nem fecundidade, nem graça em sua união com
Enéias, por isso Dido percebe o engano: na verdade eram as Eumênides que se
faziam presentes naquele momento. As Eumênides (as Benevolentes) que
originalmente eram designadas como Erínias, receberam esse nome, segundo
Pierre Grimal (GRIMAL, P., 1997, p. 146-147), para que se sentissem
lisonjeadas e, com isso, fosse aplacada a sua terrível cólera. Junito Brandão
relata que esse nome foi dado às Erínias por Palas Atena, quando os deuses
absolvem Orestes do crime de matricídio, indo contra a vontade dessas deusas
infernais. Que, devido a isso, ameaçavam a cidade de Atenas com a
infertilidade da terra. Expõe Junito Brandão:
Eis aí o motivo por que a sábia deusa Atená procura a todo custo
apaziguar as Erínias, entregando-lhes, até mesmo, como honraria
suprema, a proteção de sua cidade, Atenas. Irremediavelmente

118
derrotadas, mas ávidas de homenagens e de glórias, como se
expressam elas próprias, as Erínias, agora Eumênides, as
Benevolentes, tornar-se-ão a bênção e a dádiva suprema da
cidade de Palas Atena ( BRANDÃO, J. de S., 1999, p. 35).
É muito interessante Dido chamá-las de Eumênides, não de Erínias,
pois também ela demonstra ter a esperança de apaziguar a cólera das deusas
e receber delas a proteção.
Em Virgílio, há a menção de que as ninfas estavam presentes na união
dos dois amantes, mas não aparece aí nenhuma alusão às deusas infernais.
Speluncam Dido dux et Troianus eandem deueniunt. Prima et Tellus
et pronuba Iuno dant signum; fulsere ignes et conscius aether
conubiis, summoque ulularunt uertice Nymphae. (En., IV, 165-168)
Dido e o chefe troiano dirigem-se para a mesma gruta. Não só a
Terra primordial mas também Juno, deusa do casamento, dão o
sinal; brilharam os raios e o éter consciente das uniões, e as
Ninfas gritaram do alto monte.
Há, inicialmente, uma aparência de legalidade na união, pois estão
presentes divindades como Tellus e Juno. Tellus é a deusa romana Terra,
que se encontra em Pierre Grimal (GRIMAL, 1997, p.435) no verbete
Telure. Este autor ensina que essa divindade é a Terra nutrícia e que se
identifica ora com a deusa grega Géia, ora com Ceres-Deméter. A primeira
divindade grega é a Terra primordial, aquela da qual são geradas todas as
outras coisas, e a segunda é a terra cultivada, aquela que é fértil e que
produz. Sua presença no casamento significaria uma união que deveria
frutificar. Há também a presença de Juno que, consoante Pierre Grimal,
... é a deusa romana assimilada a Hera. Na origem, e na
tradição romana, ela personifica o ciclo lunar e figura na Tríade
inicialmente honrada no Quirinal, depois no Capitólio, e que
englobava Júpiter, Juno e Minerva. Mas, para além disso, a
deusa tinha outros santuários;... (GRIMAL, 1997, p.260)
Essa deusa possuía vários epítetos como Iuno Lucina que era usado
por parturientes para invocá-la, a fim de que tivessem um bom parto. Outro
epíteto que possuía, e que é lembrado por Junito Brandão, (BRANDÃO, J.
de S., 1993, p. 188) é usado por Virgílio na passagem acima: Iuno
Pronuba, ou seja, Juno que preside aos casamentos, às uniões. Uniões que
seriam, obviamente legais.

119
Mas a legalidade é apenas aparente, pois no verso seguinte desfaz-
se o equívoco, apontando a união com Enéias como causa principal da
destruição da vida da rainha.
Ille dies primus leti primusque malorum causa fuit (...) (En., IV,
169-170)
Aquele dia foi a causa, o primeiro (dia) da morte e das desgraças
(...).
O narrador da Eneida não deixa dúvidas quanto ao destino de Dido
(leti, malorum), impulsionado por ille dies. Não há qualquer eufemismo, pois é
papel dele narrar os fatos, não amenizá-los. Diferentemente do que acontece
nas Heróides, nas quais é a própria Dido quem fala de suas desventuras.
Virgílio, posteriormente, apresenta Dido invocando contra Enéias as Fúrias:
(...) et Dirae ultrices et di morientis Elissae,
accipite haec, meritumque malis aduertite numen
et nostras audite preces (...) (En., IV, 610-612)
(...) não só Fúrias vingadoras mas também deuses de Elissa que
morre,
ouvi estas coisas, e voltai seu justo poder para os maus
e escutai as nossas preces (...).
As Fúrias eram divindades romanas que foram identificadas com as
Erínias, vistas anteriormente como Eumênides. Consoante Pierre Grimal, elas
eram filhas de Urano, tendo nascido das gotas de sangue deste ao caírem na
Terra quando foi mutilado por seu filho Crono. São divindades que não
obedecem aos deuses da geração mais jovem, guiando-se apenas pelas suas
próprias leis. Inicialmente, eram em número indeterminado, posteriormente,
contudo, seu número se fixa em três: Alecto, Tisífone e Megera. Moram nos
infernos, no Érebo, e são representadas com asas e com o cabelo cheio de
serpentes. Carregam em suas mãos tochas ou chicotes. Torturam suas vítimas
de muitas maneiras, fazendo-as enlouquecer.
Elas têm como função castigar os crimes, especialmente, os
cometidos contra parentes. Nos dizeres de Grimal:
Protectoras da ordem social, castigam todos os crimes suscetíveis
de as perturbar, punindo também o excesso, a hybris, que tende a
levar o homem a esquecer-se da sua condição de mortal. (...) Uma
das funções essenciais das Erínias é naturalmente castigar o
assassino, não apenas o que age voluntariamente, mas o homicida

120
em geral, pois o crime é uma mácula religiosa que põe em perigo
a estabilidade do grupo social no qual é cometido (GRIMAL, P.,
1997, p. 147).
Foi visto que Dido invoca as Fúrias contra Enéias, chamando-as de
Dirae, outro nome usado para elas em Roma., pedindo-lhes que vinguem
(ultrices) o crime que Enéias ainda não cometeu, mas que irá cometer se for
embora (Elissae morientis). Contudo, ela não percebe, nesse momento, que
é ela própria que está enlouquecendo com os preparativos da partida.
Momentos antes ela afirma:
(heu furiis incensa feror!) (En, IV, 376)
(Oh! Sou impelida inflamada pela loucura!)
Nota-se que o substantivo comum furiae, -arum está intimamente
ligado, tanto no sentido como na grafia, ao nome próprio Furiae, -arum,
visto anteriormente, e que agora se encontra relacionado à própria Dido.
Configura-se, assim, tanto na Eneida como nas Heróides, o trágico como
foi definido por Staiger, no início deste trabalho.
Se continuarmos as análises dos aspectos trágicos de Dido nas
obras, encontraríamos o trágico completamente em sua essência, de acordo
com a visão de Albin Lesky (LESKY, A., 1990), pois haverá a queda de
Dido; poder-se-á estabelecer com os acontecimentos, pelos quais ela passa,
uma relação com a realidade empírica, fazendo com que os espectadores
(leitores) sejam tocados pela sua sorte (terror e compaixão); ela sofrerá
conscientemente; sua culpa não será moral; e, finalmente, haverá a
contradição trágica, constituindo-se um conflito trágico cerrado, pois o
conflito que ela vive é insolúvel, constituindo, segundo Staiger (STAIGER,
E., 1974), um fato que destrói a razão da existência humana, já que para ela
não poderia existir vida sem o amor de Enéias.

Referências bibliográficas:
BAYET, Jean. Literatura latina. Barcelona: Editorial Ariel S.A., 1985.
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia e da
religião romana. Petrópolis: Vozes, 1993.
__________________. Teatro grego: tragédia e comédia. 7ª ed.. Petrópolis:
Vozes, 1999.

121
FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. SP: Cultrix, 1957.
GRIMAL, Pierre. Dicionário de mitologia grega e romana. Trad. Vitor Jabouille.
3ª ed. R J: Bertrand Brasil S.A., 1997.
______. O teatro antigo. Trad. António M. Gomes da Silva. Lisboa: Edições 70,
1986.
JACOBSON, Howard. Ovid’s Heroides. New Jersey: Princeton University, 1974.
LESKY, Albin. A tragédia grega. SP: Perspectiva, 1990.
OVIDE. Héroïdes. Texte établi par Henri Bornecque et Traduit par Marcel Prévost.
Paris: Les Belles Lettres, 1928.
SARAIVA, F. R. dos Santos. Novíssimo dicionário latino-português. RJ: Livraria
Garnier, 1993.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. RJ: Tempo Brasileiro, 1974.
VIRGILE. Énéide. Texte établi par Henri Goelzer et traduit par André Bellessort.
Paris: Les Belles Lettres, 1938.

122
O DISCURSO MÁGICO QUE CIRCULAVA EM ATENAS DO IV SÉC. A.C.
Maria Regina Candido

Esta pesquisa tem por objeto de análise as lâminas de chumbo cujos


textos inscritos em sua superfície integram a composição do que denominamos
de discurso mágico que circulava em Atenas identificado como defixiones1. O
fenômeno da magia dos defixiones permanece ainda pouco explorado entre os
profissionais de Ciências Humanas pelo fato do tema ter por base a formação
de crenças e certezas em ações que seguem lógicas alternativas de pensar e agir
produzindo um outro sentido de realidade. Nos questionamos sobre as
possíveis motivações que levaram parte dos integrantes da comunidade dos
atenienses no IV século a estabelecer contato com seres sobrenaturais visando
prejudicar alguém, usando da palavra que compõe o discurso mágico das
lâminas de chumbo: que poderes mágicos acreditavam possuir? que
procedimentos ritualísticos executavam junto aos corpos dos mortos visando
impor a realização de sua vontade?
Consideramos que a expansão do saber mágico dos defixiones
ocorreu a partir da maneira de usar as lâminas de chumbo executadas entre
os atenienses. Isto porque uma coisa é elaborar solicitações em lâminas de
chumbo e colocá-las nas fendas dos santuários dos deuses ctônicos e outra
é produzir os defixiones e enterrá-los em sepulturas de pessoas mortas,
impondo a eles a realização de sua vontade. A maneira de fazer o discurso
mágico parece ter-se difundido, a partir dos atenienses, para as demais
áreas próximas ao Mediterrâneo, especificamente, em espaços urbanos que
mantinham contato próximo com o porto do Pireu em Atenas.
A construção do objeto de pesquisa nos leva a analisar os
elementos constitutivos da situação que envolve o discurso mágico presente
nas lâminas de chumbo. Entendemos por discurso a produção de
pensamento que leva alguém a agir e os defixiones nos indicam a existência
de uma ação que envolve um conjunto heterogêneo de agentes sociais e
materiais, a saber: a lâmina de chumbo, a presença do solicitante e usuário

1
Defixios é o termo latino dado ao artefato composto por fina lâmina de chumbo usada para inscrever o
nome do inimigo em sua superfície e fixá-lo na profundeza da terra. Os termos de/defixios ou
kata/katadesmos sugerem o movimento de ligar a alma de alguém no mundo subterrâneo.

123
da magia, um especialista nas práticas mágicas, o nome da vítima e o local
de interdito para o desenvolvimento da ação. As lâminas de chumbo nos
fornecem indícios das crenças que os usuários da magia tinham no poder de
determinar o prejuízo ao oponente, considerado inimigo, através da
manipulação das potências sobrenaturais.
Antes de continuarmos com a nossa análise, devemos ressaltar que
para proceder a uma abordagem científica, teríamos dificuldade em
fundamentar a ação concreta da magia nos seres que integram o mundo do
sobrenatural devido ao potencial de imaterialidade que permeiam as suas
ações. Visando prestar conta do nosso argumento, deteremos a nossa
atenção na presença concreta das duas partes ativas envolvidas no discurso
mágico, a saber: o solicitante e o magus – especialista na prática da magia.
A atuação desses dois agentes do discurso mágico nos possibilita
estabelecer uma aproximação e análise através da materialidade do texto
inscrito na superfície das lâminas de chumbo.
O texto que compõe o discurso mágico forma um código a ser
decifrado o que nos possibilita reconstituir o passado da maneira de fazer dos
usuários da magia dos defixiones. O solicitante recorre às práticas mágicas
por estar envolvido em situação subjetiva: de um lado sente-se lesado,
prejudicado pelo seu oponente que parece usar da lei do mais forte para
tornar inoperante a sua atividade; nesse caso, de forma preventiva, o
solicitante faz uso da magia para assegurar a sua vitória sobre o oponente; do
outro lado, o usuário da magia pode ser acometido pelo sentimento de inveja
e despeito diante da sua incapacidade de sucesso e decide de forma ofensiva
impor a ruína aos adversários através das práticas mágicas. As duas situações
fomentam a desordem pessoal no solicitante que movido por um acentuado
sentimento de raiva, ódio e rancor determina a realização de sua vontade.
Não podemos esquecer que o usuário da magia dos defixiones é
alguém que se sente ameaçado em algo de valor que teme perder. Como
solução, busca forças alternativas no poder mágico para fazer valer o que
considera seu de direito, independente de preceitos éticos e da lei que regem a
comunidade à qual pertence. Além de ser uma situação subjetiva, esta ação
torna-se também uma ação dialógica, isto porque o magus aparece como
aquele indivíduo detentor de um poder e habilitado para interceder a favor do
solicitante visando solucionar o conflito em direção aos seus interesses.
Como podemos observar o discurso mágico evidencia um lugar de
enfrentamento cujas inscrições lingüísticas materializam os antagonismos e
interesses distintos. Destaca-se também por seguir o modelo de uma

124
situação comunicativa imperativa composta de situações específicas
emitidas pelo solicitante, cuja ação imperativa torna-se fundamental para a
realização do desejo do solicitante. O magus com o seu saber deve estar
atento ao desejo específico do solicitante para definir as palavras
adequadas, o formato da lâmina de chumbo e o local de assentamento
eficaz visando à obtenção do sucesso imaginado.
As potências sobrenaturais usadas pelos praticantes da magia
aparecem como dispositivos da atividade ritualizada, instrumento
mediador de uma relação de força que parte do solicitante e do magus. O
solicitante desencadeia o processo mágico por estar envolvido em uma
situação sintomática ao exigir a realização do desejado. O magus apreende
o acentuado sentimento de animosidade do solicitante e o catalisa em
direção aos seres sobrenaturais. Como especialista no assunto, o magus
conhece e domina as características de funcionamento dos procedimentos
mágicos. A elaboração do discurso mágico depende da concordância e do
mútuo entendimento dos partícipes na formulação da magia. Esse
entendimento ocorre no exercício da ação dialógica em realização de
atividade ritualizada do discurso mágico.
Todo discurso é uma mensagem considerada como ação lingüística
que se desenvolve em lugar específico dirigida para um determinado receptor
da mensagem. No caso do discurso mágico, o solicitante da magia dos
defixiones recorre à intervenção do magus e ambos atuam como emissores
que formulam uma situação comunicativa imperativa através do uso de
palavras mágicas dirigidas às potências do mundo subterrâneo como
divindades ctônicas. Os seres sobrenaturais compostos por vítimas de
assassinato, crianças mortas e suicidas são potências sobrenaturais que
carregam uma acentuada animosidade contra os seres vivos pelo fato de
integrarem o universo de seres que morreram antes do tempo. As potências
sobrenaturais como dispositivos de atividades ritualizadas nos leva a afirmar
que a mediação é divina, a finalidade é humana e o resultado é social.
Os indícios sociais podem ser apreendidos através das vítimas do
discurso mágico que integram as categorias de comerciantes, artesãos, juizes,
logógrafos, políticos, prostitutas, atores, córegos, atletas e estrategos. Cada
uma dessas categorias sociais está presente nas diversas lâminas de chumbo
encontradas no Pireu e no Kerameikos. As palavras que compõem o discurso
mágico deixam transparecer que o solicitante está envolvido em uma situação
adversa que pode acarretar danos morais e materiais. As práticas mágicas dos
defixiones tornam-se o único meio considerado seguro e eficaz para remover

125
obstáculos. Através da imprecação contra o inimigo o solicitante determina
aos seres sobrenaturais a imobilização ou mesmo a sua extinção.
A natureza específica do desejo de realização do solicitante tem
seus indícios na diversidade de modelos de fórmulas mágicas inscritas nas
superfícies dos defixiones, o que nos levou a elaborar um corpus
documental com 110 lâminas de chumbo catalogadas, encontradas no
território ático2 que datam do V a.C. ao III d.C3, resultado de escavações
realizadas pelo The German Archaeological Institute in Athenas,
responsável pelo The Athenian Kerameikos – cemitério onde foram
localizadas a maioria dos defixiones e pela The American School of
Classical Studies encarregada pelos artefatos de chumbo escavados na área
do porto do Pireu4; os materiais estão disponíveis em catálogos arquivados
na EFA: Escola Francesa de Atenas/Grécia.
Dentre os artefatos de chumbo, identificamos 25 lâminas que
apresentam uma lista de nomes de prováveis inimigos do solicitante -
imprecação contra os processos; existem 17 lâminas que além do nome
do adversário indicam quais partes do corpo devem ser prejudicadas; 27
lâminas imprecam as atividades profissionais do oponente assim como a
sua família - imprecação contra os ofícios; a singularidade do período está
na presença dos primeiros vestígios das imprecações amorosas, ausentes
no V a.C., uma quantidade de 5 lâminas foi desenterrada de sepulturas e
estavam acompanhadas de figuras de homens ou mulheres feitas de
chumbo, outras 22 estavam perfuradas por pregos/pássalos e, 14 lâminas
cujas inscrições da maldição iniciam-se com palavras incompreensíveis
semelhante a um canto mágico a Hecate.
Os artefatos duráveis que compõem o corpus de defixiones nos permitem
empreender uma abordagem técnica específica para esta documentação e
através dela decodificar e compreender o significado do discurso mágico. O
corpus de lâminas tem em sua superfície textos inscritos de natureza
fragmentada, ou seja, com ausência de algumas palavras que podem ser

2
Devemos esclarecer que temos a posse dos últimos catálogos de lâminas de chumbo nos quais foram
publicados os defíxiones descobertos e identificados na região de Atenas nos período de 1985 a 2000.
Recentemente, maio de 2005, nós recebemos do pesquisador John G. Gager, da Universidade de
Oxford, um corpus de 10 lâminas que foram disponibilizadas para pesquisa e que necessitam de
tradução e análise.
3
Devemos informar que utilizaremos as lâminas de chumbo encontradas em Atenas - do V ao III a.C.
4
Os resultados das escavações estão disponíveis aos pesquisadores na EFA: Escola Francesa de
Arqueologia em Atenas/ Grécia, local onde fizemos estágios em 1995 e 2000, visando à coleta de
material proveniente do cemitério do Kerameikos e do porto do Pireu em Atenas. Logo, estamos de
posse de todo o material necessário para o desenvolvimento da pesquisa.

126
recompostas cotejando fórmulas mágicas de períodos tardios. Após
transpor esses obstáculos e tornar operacional a abordagem das lâminas,
podemos aplicar a análise do discurso mágico (em anexo), técnica
metodológica específica que nos permite dar conta da especificidade da
natureza da documentação.
Compreendermos a grafia dos defixiones como produto cultural em
forma de texto discursivo pessoal que usa uma linguagem verbal comum
que circulava no território ático do IV século. De posse dessa linguagem
verbal, os usuários da magia, formalizam o discurso mágico dos
katádesmoi. Entendemos por discurso mágico a enunciação pessoal na qual
o solicitante interagindo de forma ativa com o magus materializa em
artefatos de chumbo o objetivo de prejudicar o adversário ou oponente
considerado inimigo.
A cada defíxios empreendemos um esquema de identificação que
consiste na descrição dos dados que identifica a lâmina e dessa forma
inventariamos o corpus que compõe o conjunto selecionado. O texto
pertinente presente na superfície da lâmina deve ser submetido à
segmentação visando qualificar os elementos que compõem o discurso, a
saber: o solicitante, o magus, o objeto da magia e o topos.
Devemos ressaltar que temos dificuldades em identificar os
elementos do discurso qualificado de magus e solicitante. Entretanto, a
ação empreendida por ambos determina o objeto da magia que aponta, em
algumas lâminas, o que e/ou quem está sendo alvo da maldição, o topos - o
lugar de depósito em que foi encontrada a lâmina de chumbo.
Na ação de determinar o prejuízo a alguém, o texto pertinente
expressa uma situação comunicativa imperativa composta por categorias
visíveis no texto como termos que indicam o uso de sonoridade semelhante
a um canto; o emprego de palavras indecifráveis e a indicação de parte do
corpo da vítima a ser paralisada. A categoria ação imperativa é
identificada pelo uso de verbos em duas situações, a saber: verbos de
enunciação pessoal quando empregados na primeira pessoa do singular,
deixando transparecer a ação ativa do solicitante e os verbos de enunciação
imperativa ao qual indica que à vontade do solicitante interage com os
procedimentos ritualizados do magus. O conjunto de palavras que
compõem o texto do discurso mágico indica a situação em que foi
produzido, ao qual denominamos de situação sintomática identificada por
termos que expressam o sentimento o ódio, raiva, rancor, medo ou mesmo
inveja do solicitante.

127
O resultado da ação interativa entre o solicitante e o magus é
reforçado pela presença do destinatário do discurso mágico que pode ser
visível ao ser explicitado ou ficar subentendido por indícios de perfurações na
lâmina por estiletes atravessados, o uso de lâminas no formato de sarcófago e a
presença de figuras humanas feitas de chumbo envolvidas em fragmentos de
tecido ou fios de cabelos da vítima colocadas no interior de sarcófago.

Referências bibliográficas:
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129
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PEEK, Werner. Inschriften Ostraka Fluchtafeln. Berlin: Walter de Gruyter, 1941.

130
NAVEGAR É PRECISO? AS PALAVRAS PROFÉTICAS DE NAUTES E
DO VELHO DO RESTELO
Michele Eduarda Brasil de Sá

Tomemos de início o discurso de Nautes na Eneida. O contexto em


que este discurso se apresenta é um momento de total perplexidade na
história do herói Enéas. Dividido entre o amor da rainha Dido e a missão
divina que o impelia a buscar o lugar onde construiria uma “nova Tróia”,
Enéas vive um dramático momento ao deparar-se com os navios em
chamas. Enéas sabe o que tem que fazer, mas não sabe ainda o que quer
fazer. Os sinais não são claros: se os fados o afastam de Cartago, por que o
incêndio dos navios? Virgílio, neste momento, insere as palavras do velho
marinheiro, numa perfeita representação do que era a imagem do mos
maiorum dos romanos, a voz da serenidade e da experiência:
“Filho da deusa, sigamos para onde o destino nos impele e torna
a impelir; seja o que for que acontecer, pode-se sempre, com
perseverança, triunfar das dificuldades. Tens junto a ti o
dardânio Acestes de estirpe divina; entra em entendimento com
ele e alia-te a ele, que se mostrará propenso; fiquem com ele os
que superam o número dos navios e os que se desgostam de tua
grande aventura. Separa os velhos abatidos pela idade e as
matronas cansadas da viagem por mar, e todos os que, junto de
ti, são inválidos ou receiam o perigo, e deixa-os, pois estão
fatigados, construir muralhas nesta terra; com permissão
chamarão a cidade de Acesta..1”
Na essência velada em seu próprio nome (cf. nauta, “marinheiro”),
lançar-se ao mar é imperioso. Deixar de navegar é negar a si mesmo.
Nautes não é um homem da terra e sabe que, sem enfrentar novos perigos
nos mares, Enéas não gravará seu nome na eternidade, não será celebrado
pelos seus descendentes, não cumprirá o seu destino – do qual, aliás, ele
não pode fugir. Desta forma, o velho marinheiro ensina Enéas a perseverar
(ato típico do valor estóico da constância) e o incentiva a “triunfar das
dificuldades”.

1
VIRGÍLIO, 1993: 86.

131
É bem diferente o teor do discurso do Velho do Restelo. Para
começar, ele não tem um nome. Ele é simplesmente o Velho do Restelo. O
restelo (ancinho de madeira), seu instrumento de trabalho, é que lhe dá
identidade. A imagem deste ancião está presa à imagem da agricultura,
outrora mais venerada que o comércio amplamente desenvolvido de
Portugal, seja por meio da atividade comercial individual, seja através das
fortes companhias mercantis do período conhecido como o das Grandes
Navegações. O Velho surge justamente quando os portugueses estão se
despedindo de suas famílias, aprontando-se para uma nova partida.
Também na sua figura está presente o peso da experiência. O tom de
censura é claro desde o início. Vejamos o que nos diz o texto:
“Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
– Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
– "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
– "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas

132
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?”2
Quando a obra Os Lusíadas foi publicada, em 1572, vivia-se não
apenas a época das grandes navegações, mas ainda – e em decorrência
disso – um momento intenso de expansão comercial e do cristianismo, além
da consciência da afirmação de Portugal como reino, frente à Espanha.
Neste sentido, uniam-se política, economia e religião nos empreendimentos
lusos, tornando-os um misto de desejo de fama, busca de riquezas, dever
cívico e religioso, enfim, um caminho do qual não se podia fugir, fossem as
motivações divinas ou humanas.
“No entanto essa exploração foi, desde o princípio, mascarada
com o zelo religioso (...). A cobiça pelas riquezas e a paixão por
Deus nunca estiveram em conflito, nem foram inconscientes:
para alguns homens, como foi o caso do Infante D. Henrique, a
religião era mais importante que o comércio, embora não
deixasse de querer ouro, traficar em escravos e não desdenhasse
da riqueza, que considerava uma bênção de Deus.”3
Vale a pena lembrar que em 1572 era rei D. Sebastião, “o
Desejado”, que tinha perfil conquistador, gostava de esportes, caça, de
lançar-se aos perigos. Diz-se dele que duas eram as suas paixões: a guerra e
a religião. Se compararmos este ícone português ao governante romano da
época de Virgílio, o Imperador Otávio Augusto, observaremos que em seu
período, havia semelhantemente um desejo de expansão territorial, política
e econômica, além de uma preocupação com a valorização da identidade
romana, com a busca às tradições, com a glorificação de Roma através do
passado histórico – o que torna a Eneida de Virgílio uma obra
reconhecidamente engajada. Tanto Roma quanto Portugal eram, em suas
épocas, grandes impérios, guardadas as devidas proporções.
“Navegar é preciso, viver não é preciso”, diria outro grande nome da
literatura portuguesa, Fernando Pessoa. Navegar é, na Eneida e em Os
Lusíadas, uma questão de sobrevivência, em última análise. Não se pode
fugir do mar. Para Enéias, o destino é já conhecido, determinado pelos

2
CAMÕES, 1979: 223-4.
3
PLUMB, 1993: 13.

133
deuses. Para os portugueses, navegar é manter sua posição na Europa,
principalmente diante da Espanha. Ainda que a censura do Velho do Restelo
ecoe na epopéia e através dos tempos, Portugal precisa navegar para ser
Portugal, assim como Enéas precisa navegar para se tornar, de fato, Enéas.

Referências bibliográficas:
CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. São Paulo: Editor Victor Civita, 1979.
KENNEY, E.J. (ed.) The Cambridge History of Classical Literature. Cambridge:
Cambridge University Press, 1979.
PLUMB, J. H. “Introdução”, In: BOXER, C. R. O Império marítimo português
(1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1993.
VIRGÍLIO. Eneida. Trad. e notas de David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Edições
de Ouro, 1994.

134
NOTAS SOBRE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CIVIL E MILITAR ROMANA
Paulo Roberto Souza da Silva

Descrever a estrutura política romana de uma perspectiva puramente


sincrônica é tarefa complexa e, sob certo aspecto, impossível. Desde o fim da
monarquia, a República Romana se desenvolveu de uma forma orgânica e
dinâmica. No desenrolar de sua história o poder jamais esteve cristalizado em
um grupo ou numa técnica. Se, como veremos, o Senado centralizou o poder
durante a República, não o fez sem constates embates e concessões aos
diversos núcleos alternativos que surgiram com o tempo, até o ponto em que
o poder militar foi suficiente para tomar definitivamente o poder senatorial.
Essa dinâmica se mostra na política administrativa; a criação, a extinção e a
modificação de cargos e atribuições foram constantes para se adaptar às
mudanças de poder. Escolhemos focalizar a última fase da República, por ser
o período mais relevante para o estudo da literatura. Politicamente esse
período vai do fim da ditadura de Sila ao principado de Augusto, isto é, de 79
a.C a 27 a.C, período dos mais conturbados, mas que gerou as mais
importantes obras da prosa latina clássica.

Poder em Roma
Roma tinha o que o historiador grego Políbio chamou de
“Constituição mista”, o poder estava dividido entre um elemento
monárquico: as magistraturas, um elemento aristocrático: o senado, e um
elemento democrático: os comícios do povo.

Surgimento e desenvolvimento dos comícios


O populus era coletivo dos cidadãos romanos, também chamados
quirites, isto é descendentes de Quirino, outro nome de Rômulo. Era o
povo que detinha o imperium, o poder real herdado de Rômulo, e cedia-o
aos magistrados ao elegê-los nos comícios. Abarcava tanto patrícios quanto
plebeus, que se distinguiam pelo nascimento. Os patrícios eram os
membros das gentes, os descendentes dos fundadores da cidade. As gentes
agrupavam-se em cúrias, dez cúrias formavam cada uma das três tribos
primitivas de Roma: os Ramnes, que seriam latinos, os Tities, sabinos, e os

135
Luceres, etruscos. Os plebeus seriam todo o restante, elementos oriundos
de várias origens depois da fundação; estavam privados de direitos políticos
durante a monarquia.
Apenas os patrícios tinham direito a voto nas assembléias, chamadas
comitia curiata. A estes comícios compete quase que exclusivamente
conferir o imperium aos magistrados eleitos pelas comitia centuriata; por
causa desta atribuição puramente simbólica as cúrias passaram a ser
representadas por trinta litores.
Na república, a divisão entre patrícios e plebeus se dissolveu
gradualmente. Logo, muitos plebeus enriqueceram e começam a reivindicar
direitos. A partir destes embates os patrícios começam a ceder poder e os
plebeus se igualam nas prerrogativas. Já no século V a.C, é feita nova
classificação do populus romanus que agrupa patrícios e plebeus com base
no patrimônio; surge assim uma distinção econômico-social e não mais
gentílica. Os cidadãos são divididos em cinco classes e aqueles
extraordinariamente ricos são agrupados em uma classe especial chamada
equites. É essa distinção que persistirá ate o fim da República. Essa
classificação tem origem militar, como cada cidadão tinha que arcar com o
próprio armamento nas guerras, as divisões do exército refletiam as divisões
sociais. Nesta divisão cada classe podia formar um número específico de
centúrias – unidades de cem soldados. Ver:

DIVISÃO DAS CENTÚRIAS


até 220 a.C. depois de 220 a.C.
bens (em asses) Centúrias bens (em asses) centúrias
EQUITES — 18 1000000 18
1ª 100000 80 300000 70
2ª 75000 20 100000 70
3ª 50000 20 50000 70
4ª 25000 20 4000 70
5ª 10000 30 — 70
fora de classe — — 5

Apenas essas centúrias tinham direito a voto nas assembléias criadas,


os comitia centuriata. Eram nesses comícios que se elegiam os magistrados.
Como se pode ver, a princípio, os equites mais a primeira classe compunham
mais da metade das centúrias e, como a ordem de votação era descendente,
os mais ricos decidiam a votação sem que as outras classes tivessem que
votar. As atribuições desses comícios eram:

136
– eleitorais. Eleger os magistrados com imperium e os censores.
– legislativas. Fazer leis. Exceto no que concerne às declarações de
guerra, na prática esse direito foi mais utilizado pelos comitia tributa.
– judiciários. Fazem o papel de corte de apelação em caso de penas
capitais, posteriormente desenvolveram-se as quaestiones, tribunais
permanentes para tipos específicos de causas, que passaram a
desempenhar esta função.
Por elegerem os magistrados maiores, que posteriormente tornar-
se-iam senadores, esses comícios permitiram aos ricos, e não mais aos
patrícios, controlar a república. A partir desta rotina surge uma nova classe:
a nobilitas. Os nobres eram exatamente aqueles que ocupavam ou já tinham
ocupado magistraturas e seus descendentes. Assim, os mais ricos
controlavam, por meio desses comícios, as magistraturas e o senado; ou,
observando por outro aspecto, os nobres criaram estes comícios para
consolidar seu domínio sobre a república. O nome plebs passou a designar
aqueles que estavam excluídos do poder.
Também no século V a.C., surgiram as comitia tributa, estes
comícios eram o veículo de expressão da plebe em oposição aos comitia
curiata dos patrícios. Com o surgimento da nobreza e o compromisso
aristocrático dos comitia centuriata, eles passam então a expressar os
movimentos populares contra a aristocracia. Suas atribuições eram:
– eleitorais. Eleger os magistrados não-curuis: tribunos da plebe,
edis plebeus e questores.
– legislativas. Votar plebiscita; até 286 a.C. os plebiscita precisavam
de ratificação por parte do senado, mas a partir desta data, com a lei
Hortênsia, tinham automaticamente o valor de lei.
Esses comícios eram o grande meio de oposição ao senado durante
toda a república e nas ações dos tribunos da plebe, especialmente a partir
do século III a.C., está a origem do partido popular, que mais tarde causou
a revolução romana.

Senado
O Senado era órgão consultivo, conjunto daqueles que detêm a
dignitas et auctoritas. Estes conceitos estavam intimamente vinculados à
riqueza do cidadão e à sua capacidade de intervir numa guerra. Durante a

137
monarquia seu papel era muito restrito, com a república, o conselho do
senado, senatusconsultum, passa a ter o valor de lei e compete com as
atribuições dos comitia. Uma longa disputa se desenrola entre o senado e os
magistrados, em especial o tribuno da plebe, que culmina com a guerra
civil e o fim da república.
De início, os senadores são escolhidos pelos pretores, depois os
cônsules e, a partir de 318 a.C., pelos censores. O censor tira do album
senatorum (a lista do Senado) os nomes dos membros mortos e os dos que
a lei ou eles próprios julgam indignos e completam o número normal dos
senadores escolhendo primeiro todos os ex-magistrados pela ordem: ex-
ditadores, ex-censores, ex-cônsules, ex-pretores, ex-edis curuis os ex-
tribunos, os ex-edis plebeus e ex-questores, com preferência aos patrícios
em relação aos plebeus, excetuando-se os excluídos por indignidade. O
princeps senatus (primeiro senador) era o ex-ditador ou ex-censor mais
antigo. O número normal de senadores foi inicialmente 300; Sila, já no século
I a.C., eleva o número para 600 e César para 900.
Os senadores tinham por insígnias a túnica laticlava (laticlaua, de
tarja larga, a faixa púrpura que enfeitava as togas), o anel de ouro e celceus
senatorius (um calçado especial), de couro vermelho, se foram magistrados
curuis, de couro negro, se não curuis.

Atribuições
– eleitorais: a data das eleições dos magistrados e serve de mediador
em caso de conflito.
– legislativas: até 287 a.C., as leis votadas pelos comícios precisam
ser referendadas por um senatusconsultum, mesmo depois dessa data
esta decisão ainda tem um grande peso junto aos magistrados; o
Senado pode também convidar os cônsules e tribunos a proporem
um projeto de lei.
– executivas: quanto às finanças, vota todas as despesas, fixa as
receitas a tirar das províncias, cuida do patrimônio do Estado.
Dirige os assuntos estrangeiros, recebe os embaixadores, assina os
tratados. Regulamenta a situação dos países conquistados,
administra os territórios submetidos, cuida dos aliados e
regulamenta as dificuldades que podem surgir entre eles, recebe as
delegações provinciais com suas reclamações e pedidos. Em tempo

138
de guerra, designa as tropas destinadas à frente de batalha, indica as
regiões onde se deve operar, reparte os comandos militares.
– religiosas: cuida da manutenção do culto tradicional, provê às despesas
religiosas, as supplicationes ou os lectisternia .

Procedimento
Qualquer magistrado, com exceção dos questores e edis, pode convocar
o Senado. A sessão é presidida pelo magistrado que a convocou.
Depois de um sacrifício e da consulta aos auspícios, o presidente abre
a sessão com algumas preces. A seguir ele anuncia sua proposta, a qual pode
ser votada imediatamente ou colocada em discussão. Neste último caso, o
presidente pede o parecer de cada senador pela ordem de inscrição no
álbum. O voto final é dado por discessio, isto é, os senadores se agrupam
de um lado da sala, conforme são a favor ou contra a proposta; daí a
expressão pedibus ire in sententiam alicuius, "aderir ao parecer de
alguém"; a seguir termina a reunião.
Uma decisão, não atingida por intercessio (ver abaixo), chama-se
senatusconsultum, do contrário é apenas um senatusauctoritas, que não tem
valor legal algum.

Os magistrados
Nomeação dos magistrados
Os candidatos devem ser cidadãos romanos no gozo de seu
plenos direitos civis e políticos, ser isentos de enfermidades físicas
(vistas como de mau agouro), seguir uma ordem determinada (cursus
honorum):
Questura, a edilidade ou o tribunato (este apenas para plebeus),
pretura, consulado; a censura e a ditadura, vinham depois do depois do
consulado;
Após 180 a. C, preencher certas condições de idade:

até 87 a.C. A partir de 87 a.C.


QUESTOR 28 30
AEDILIS 31 31
PRAETOR 34 40
CONSUL 37 43

139
O ditador é nomeado por um dos cônsules e este, designado pelo
Senado; – o magister equitum, pelo ditador; – os pretores e censores são eleitos
pelos comícios centuriatos; – os outros magistrados, pelos comícios tributos.

Atribuições
Os magistrados possuíam a potestas, prerrogativa executiva,
legislativa e judiciária que concede os seguintes direitos:
– publicar editos; infligir multas; convocar o Senado (exceto os
questores e os edis); convocar e dissolver os comícios — com a
justificativa de que os auspícios são desfavoráveis, ou de que se quer
observá-los.
– opor-se (veto ou prohibitio) a que um ato seja levado a cabo por
um magistrado inferior (pela ordem: ditador, tribuno, cônsul, censor,
pretor, magister equitum).
– anular o ato de um colega ou um magistrado superior (intercessio).
– impedir que um magistrado superior realize comícios (obnuntiatio
ou spectio).
Os magistrados eleitos formam um colégio de vários membros,
todos possuindo a mesma potestas; aliás, eles repartem geralmente entre si
as funções do seu cargo. Todas as magistraturas são anuais, exceto a
censura que tem a duração teórica de cinco anos e a real de dezoito meses.
Todas as magistraturas são gratuitas.

Classificação das magistraturas


Quanto ao imperium:
– com imperium: cônsul, pretor, ditador, comandante da cavalaria
– sem imperium (as demais)
O imperium compreende os seguintes direitos: recrutar e comandar
exércitos, nomear oficiais; jurisdição civil, administrativa e criminal;
repressão em toda a sua extensão, pelo menos teoricamente (prender, mandar
executar); convocar o povo para comícios centuriatos fora de Roma. O
imperium junto da potestas efetiva os poderes legislativos, executivos e
judiciários dos magistrados. Seu símbolo era os litores, em número diferente,

140
conforme o magistrado; vão à frente dele para afastar os transeuntes; levam
ao ombro esquerdo os fasces, feixes de varas de bétula ou de olmo, entre as
quais se achava o cabo de um machado, cujo ferro se projetava fora do feixe.
Quanto às insígnias:
Quanto às insígnias, em não curuis (tribunos e edis da plebe) e
curuis (as demais). Os magistrados curuis tinham direito à cadeira curul;
usam a toga pretexta (orlada com uma faixa de púrpura) e, nos dias de festa, a
toga de púrpura. Os magistrados plebeus tinham assento num subsellium e
não tinham insígnia.
Quanto ao ius auspiciorum:
Do ponto de vista religioso, em maiores, que possuem o ius
auspiciorum maiorum (cônsul, pretor, censor, ditador, comandante da
cavalaria) e menores, que tinham apenas o ius auspiciorum minorum (questor,
edil curul, edil da plebe). Os auspícios maiores podem ser tirados pelos
magistrados onde quer que se encontrem, ao passo que os menores, somente
em Roma. Além disso, as magistraturas são chamadas auspicato, se seus
titulares são nomeados depois de tirados os auspícios, e inauspicato, no caso
contrário; só os magistrados plebeus (alínea seguinte) são criados inauspicato.

Magistraturas ordinárias
Cursus honorum:
QUAESTORES (questores) a princípio são dois, César aumenta
para quarenta. São os guardiões do tesouro público que era conservado no
templo de Saturno, recolhiam as receitas, repassavam dinheiro para os
magistrados e verificavam todas as contas, inclusive a de seus
predecessores. Nas províncias, além da administração financeira, eram
encarregados da suplência do governador.
AEDILES (edis curuis) eram dois e tinham como função:
a) A supervisão dos mercados;
b) A manutenção da polícia da cidade;
c) O aprovisionamento de Roma (cura annonae):
d) O cuidado dos jogos;
e) A guarda dos arquivos conservados no tabularium.

141
PRAETORES (literalmente, o que comanda, prae itor), a princípio
eram dois, César passa para dezesseis. Tinham atribuições eminentemente
judiciárias, faz a primeira avaliação dos processos e escolhe os juízes.
Depois da criação das questiones perpetuae, é ele quem escolhe os
componentes. Um tem jurisdição sobre os cidadãos (praetor urbanus); o
outro sobre os estrangeiros (praetor peregrinus); os demais presidiam as
quaestiones perpetuae.
CONSULES (cônsules) eram dois, tinham atribuições:
Políticas: convocar e presidir o Senado, os comitia curiata e
centuriata, fazer executar as decisões do Senado e do povo;
Militares: recrutar e comandar os exércitos e nomear oficiais até à
época de Sila.
Além disso, como os censores, eleitos por cinco anos, só exerciam
de fato sua magistratura durante dezoito meses, eram os cônsules que, no
intervalo, cumpriam suas funções de arrendamento da arrecadação dos
impostos. Nas épocas de crise, os poderes dos cônsules são aumentados pelo
senatusconsultum ultimum.

Magistraturas plebéias
TRIBUNI PLEBIS (tribunos da plebe), eram dez, não tiram os
auspícios, nem possuem o imperium, não eram propriamente magistrados
romanos, pelo menos em suas origens; mas antes representantes da plebe
junto ao Senado; eram de fato os supervisores de todos os magistrados e
dispunham dos meios para tornar a sua supervisão eficaz. – Só tinham
poder em Roma e uma milha ao redor; e não podiam deixar a cidade por
um dia inteiro. Tinham tais prerrogativas:
Eram invioláveis (sacrosancti, consagrados por um sacrifício).
Aquele que os mata ou ergue a mão contra eles é declarado homo sacer,
entregue aos deuses infernais, condenado à morte.
Tinham direito de veto sobre todos os magistrados, exceto o
ditador, e censores; em certos casos, esse direito pode ser suspenso pelos
comitia centuriata.
Podiam abrigar um acusado, impedindo sua prisão.
Presidiam os comitia tributa.
Tinham o direito de aplicar multas e de efetuar prisões; podem
mandar encarcerar qualquer magistrado, exceto o ditador.

142
AEDILES PLEBEI (edis plebeus): tinham as mesmas atribuições
dos edis curuis.
Os tribunos e edis da plebe deviam ser plebeus; só eles tinham o
direito de convocar a plebe.

CENSORES (censores):
Eleitos a cada cinco anos para uma gestão de dezoito meses,
sempre dois por vez. Tinham como principais funções:
a) o recenseamento (census), que permitia preparar a lista dos
eleitores e contribuintes; repartiam os cidadãos em classes e tribos;
b) O recrutamento do Senado; a partir de Sila, que abriu essa
assembléia a todos os antigos magistrados, limitavam-se a cancelar
o nome dos membros indignos;
c) A vigilância sobre os costumes públicos e privados (regimen
morum). A repreensão (nota censoria), infligida por covardia, ou
negligência no cumprimento do dever, etc., cobre de desonra
(ignoiminia), aquele que é por ela atingido e pode acarretar a
exclusão do Senado, da ordem eqüestre ou da tribo;
d) Arrendavam por adjudicação e durante cinco anos a arrecadação
dos impostos, os fornecimentos e, enfim, os trabalhos de construção
e de reparação (opera publica); redigem todos os contratos relativos
a essas questões e dirimem todas as contestações sobre o assunto;
e) Encerram o mandato com uma cerimônia que tem caráter de
expiação (lustrum).

Magistraturas extraordinárias
DICTATOR (ditador): era nomeado no caso de crise externa ou
interna; sua nomeação suspende o das outras magistraturas e não há
apelação das suas decisões. Nunca suas funções duram mais de seis meses.
Era auxiliado por um comandante da cavalaria (magister equitum).
MAGISTER EQUITUM (comandante da cavalaria): designado
pelo ditador, uma espécie de chefe de estado maior.

143
Referências bibliográficas:
BORNECQUE, Henri e MORNET, Daniel. Roma e os Romanos. Edição revista e
atualizada por A. Cordier, tradução de Alceu Dias Lima. SP: EPU/ EDUSP, 1990.
FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar Latino Português. 2ª Edição. RJ: MEC, 1956.
HACQUARD, Georges. Guide Romain Antique. Édition revue et augmentée. Paris:
Hachette, 1952.
MENDES, Norma M. Roma Republicana. SP: Ática, 1988.

144
A APREENSÃO DO CORO NO PÁRODOS DE OS PERSAS DE ÉSQUILO
Ricardo de Souza Nogueira

Dois dados muito significativos caracterizam a tragédia Os Persas


de Ésquilo. Além de ser a tragédia mais antiga que sobreviveu ao tempo, é
também a única, dentre as que nos chegaram, a basear o seu enredo num
fato histórico: a derrota dos persas diante dos atenienses na Batalha de
Salamina. Assim, para uma boa compreensão dessa obra, é preciso, antes
de tudo, situá-la no mundo grego do V século a.C.
O gênero trágico na Grécia desenvolveu-se e minou-se nesse século,
traçando um caminho que está intimamente ligado aos eventos políticos e
históricos que caracterizaram a po/liv (cidade) ateniense. Pode-se dizer que a
tragédia ganha sua máxima força em Atenas num tempo de esplendor e
glória, que fora conquistado após duas grandes batalhas em que os gregos
derrotaram de modo heróico os invasores persas, povo possuidor de um
império portentoso que há muito tempo incomodava as cidades helênicas. A
primeira vitória, em 490 a.C., época em que o grande rei persa era Dario,
aconteceu em terra, na Planície de Maratona, daí o célebre nome Batalha de
Maratona para esse confronto. Nessa batalha, as falanges hoplíticas foram
fundamentais para o sucesso helênico. Já a segunda vitória, em 480 a.C., deu-
se numa batalha naval, em que o exército persa foi dizimado nos arredores da
Ilha de Salamina pela frota ateniense, motivo pelo qual tal confronto ganhou
o nome de Batalha de Salamina. Nesse tempo, quem comandava os persas já
era Xerxes, filho de Dario, que ganhara o trono, após a morte do pai. Em
ambas as batalhas, os gregos, com número menor de soldados e marinheiros,
atribuíram seu êxito à habilidade técnica, coragem e, sobretudo, ao auxílio
proveniente do mundo sobrenatural, com seus deuses e heróis. No capítulo
em que se dedica a Ésquilo, Albin Lesky (1996, p. 97) se refere nos seguintes
termos acerca da percepção do homem ateniense diante dos eventos que se
apresentavam favoráveis a ele:
Neste solo cresceu aquele profundo saber do entrelaçamento de
todo acontecer humano no divino, saber que constitui, como
nenhum outro, o elemento fundamental da tragédia de Ésquilo.
As vitórias em Maratona e Salamina pareceram aos olhos dos gregos
por demais extraordinárias para que tivessem sido realizadas apenas por

145
mãos humanas. Ésquilo participou das duas batalhas, de modo que, como
todo ateniense do V século, compreendeu perfeitamente esse caráter divino
agindo por trás de cada momento de superação. Mas é o emprego desse traço
como algo fundamental para que se entenda a perdição em que se enveredam
os seus heróis é que faz de Ésquilo um tragediógrafo. De fato, em sua obra,
ele se apossa por completo da idéia de que uma justiça divina age por trás
dos acontecimentos mostrados em cena, o que faz de sua tragédia a expressão
de um lugar misterioso onde os personagens são, a todo tempo, rodeados por
forças sobrenaturais. Essa relação que se estabelece entre uma justiça divina
e o mundo dos homens se mostra muito forte na tragédia Os Persas, tendo
em vista o caráter verídico que norteia a peça.
A tragédia Os Persas foi apresentada pela primeira vez por volta de
472 a.C., portanto, pouco tempo depois da Batalha de Salamina. Dado que,
por si só, já enfatiza a importância dessa peça no contexto de uma
comemoração cívica. Apesar de terem existido tragédias anteriores a Os
Persas tal obra representa, para nós, um marco tanto para o gênero
dramático, quanto para esse momento glorioso por qual Atenas se encontrava
(na verdade, Os Persas nem se afiguram como a primeira peça de fundo
histórico, pois Frínico já havia composto uma tragédia, As Fenícias, baseada
no mesmo tema). Ao se utilizar de um fato histórico, no intuito de expressar
pela arte dramática um momento tão importante na história de Atenas,
Ésquilo se desvia dos temas mitológicos que comumente figuram nas
tragédias gregas; mas o que poderia parecer um empecilho ou uma
contradição para a presença de agentes sobrenaturais se torna exatamente o
lugar ideal para o desenvolvimento desses mesmos agentes, uma vez que a
veracidade do acontecimento não o impede de recriar o evento, utilizando-se
para isso dos elementos extraordinários e fantasiosos que tanto caracterizam
o seu estilo. Um verdadeiro mundo paralelo, sobrenatural, está por trás das
ações humanas nos dramas de Ésquilo para infligir ao homem sua perdição e
tal caráter não se mostra diferente em Os Persas.
A peça possui quatro personagens, a rainha persa Atossa, um
mensageiro persa, o espectro de Dario e o rei Xerxes, além do Coro de
Anciãos Persas, que funciona como mais um personagem. Um dado
interessante, portanto, é o fato de todos esses personagens serem persas, ou
seja, são os bárbaros, inimigos dos gregos, que irão expor para o público do
teatro seu sofrimento diante da derrota. Logicamente, não poderia haver
tragédia se o drama focalizasse a alegria dos atenienses com a vitória.

146
Assim, é Xerxes, o grande rei persa, que possui nessa obra a típica
função do herói trágico, que, por seus excessos, cai em desgraça em sua
oposição com o divino. Entrementes, é bom frisar que não é apenas sob o
ponto de vista da queda do herói que se percebe o trágico em Ésquilo e nos
outros tragediógrafos gregos.
Nossa concepção de trágico começou a se delinear graças a Poética
de Aristóteles, que, ao fazer de Édipo Rei sua peça-paradigma, apresenta
claramente a queda do herói da fortuna a desgraça como um dos requisitos
básicos para a expressão do trágico, o que, de modo algum, significa dizer
que este seja o único requisito. Também os finais extremamente mórbidos
das tragédias shakespearianas, em que morrem um bom número de
personagens reforçam o fato de que, para o homem moderno, uma tragédia
se afigura como uma história de final terrível, de modo que, muitas vezes,
utilizamos o termo tragédia para fazer referência a um desenlace em que
um grande número de pessoas morre, seja numa catástrofe natural
(furacões, terremotos) ou em mortes causadas pelo próprio homem (uma
chacina, um atentado). Mas essa idéia de tragédia que culmina na desgraça
de um herói não pode ser percebida nem mesmo na totalidade do escasso
número de peças que nos chegaram completas. O próprio adjetivo trágico
não se sabe ao certo em que momento teria sido usado no sentido moderno,
pois a palavra tragédia (tragw|di/a) etimologicamente possui o significado
de canto do bode (tra/gov = bode / w0|dh/ = canto), indicando simplesmente
uma origem religiosa, por estar esse bode, de alguma maneira, ligado ao
rito sagrado que deu origem à tragédia grega. Em Aristóteles, já aparece o
adjetivo trágico no sentido que se tornou comum posteriormente, na
passagem em que o filósofo faz menção a Eurípides como o mais trágicos
(tragikw/tatov) de todos os poetas (Poética, 1453a 30). Contudo, é bom
frisar que tal filósofo pertence ao IV século a.C., de modo que não se pode
afirmar que essa conotação já estivesse em voga no século V.
Qual seria, então, o critério para se classificar uma peça ática de
tragédia no sentido em que os gregos lhe atribuíam? Seguramente, como foi
visto, não é o seu final trágico no sentido moderno do termo, nem os temas
mitológicos, já que nem sempre estavam presentes. Certamente, a tragédia
era um gênero que se opunha à comédia, de caráter bem leve e divertido, e,
assim, pode-se dizer que uma tragédia se faz pelas diversas forças
conflitantes que nela se apresentam em estórias sérias e de caráter elevado.
O efeito trágico que, segundo Aristóteles (1449b 27), deve causar terror e
piedade (e1leov kai\ fo/bov) se dá assim por várias oposições ou conflitos

147
que estão presentes em diversas passagens da ação. O helenista Albin
Lesky (1996, p. 39) se manifesta da seguinte maneira sobre a trilogia
Oréstia de Ésquilo, cuja última peça possui um final não trágico:
O conflito em que está envolvido Orestes é inimaginavelmente
horrível, mas como conflito não é cerradamente trágico, pois admite
a reconciliação das potências combatentes e, nessa reconciliação, a
libertação da dor e do sofrimento. Assim, a participação que seu
destino tem no trágico se nos apresenta como situação trágica
através de cujas tormentas o caminho conduz à paz.
Para se chegar a essa conclusão, Lesky primeiramente distingue
conceitos que se dirigem para uma definição de trágico. A visão
cerradamente trágica do mundo (p. 38), não admite nenhuma salvação e o
resultado é um aniquilamento completo das forças envolvidas. Tal visão
provavelmente se mostra insuficiente para vislumbrar por completo a
complexidade e o valor de transcendência inerente à tragédia grega. Já no
conflito trágico cerrado (p. 38), apesar do aniquilamento também estar
presente, essa destruição traz em si um germe de caráter transcendental que
pode levar a ação a se resolver num plano superior. É o que ocorre nas peças
Agamêmnon e Coéforas em que a morte do personagem homônimo na
primeira peça e de Clitemnestra na segunda preparam, de certo modo, a
redenção de Orestes que se dá na última peça da trilogia com a participação
fundamental da deusa Atena, ou seja, aqui o aniquilamento dos personagens
nas primeiras peças impulsiona uma reconciliação das forças envolvidas que
se resolvem num plano superior. Por fim, Lesky apresenta o conceito de
situação trágica (p. 38), conceito este que justifica até a ocorrência de
tragédias com final feliz, e que pode ser exemplificado exatamente pela
reconciliação a que chega Orestes na citada tragédia Eumênides. As forças
em oposição se dissipam, o que é bem representado na transformação das
Coéforas, deusas que se opõem aos indivíduos que perpetraram um
assassínio em família, em Eumênides, deusas benévolas.
Pode-se perceber, então, que, em todas essas definições de trágico,
as oposições estão presente, e esse conflito é o que caracteriza, de fato,
uma tragédia grega, não excluindo assim a possibilidade de existirem
conflitos que se resolvam por uma reconciliação dessas forças combatentes.
Não há essa reconciliação em Os Persas de Ésquilo, mas tampouco
ocorre o aniquilamento do personagem que se opõe a determinadas forças, no
caso em questão, o personagem Xerxes. Na verdade, quando a ação de Os
persas tem início, a derrota persa já havia se concretizado, e, quando um

148
Xerxes acabado, entra em cena no Êxodo da peça, o Fantasma de Dario, no
Terceiro Episódio, com sua autoridade do além, já havia dito os motivos que
levaram o exército bárbaro à destruição. A intenção última desse trabalho não
é se deter no desenvolvimento da peça, mas sim mostrar que as oposições
trágicas em jogo já são visíveis no Párodo dessa obra (vv. 1 – 154).
O párodo é a parte da tragédia em que o coro adentra, cantando e
dançando, na orquestra (o0rxh/stra), plataforma circular que fica em frente
ao lugar onde os atores atuavam (proskh/nion). O Párodo vem depois do
Prólogo, a parte que abre a tragédia, com um monólogo de um personagem
ou com diálogos de vários personagens. As tragédias mais antigas, como
Os Persas, não possuíam Prólogo. Por isso, Os Persas começam com a um
Párodo, a entrada do coro, composto por sábios anciãos, fiéis ao rei Xerxes.
A primeira palavra que aparece na tragédia é um pronome
demonstrativo catafórico ta/de (v. 1), em que o Coro de Anciãos se remete
a sua própria aparição em cena, se apresentando aos espectadores: Estes
aqui presentes. A utilização desse pronome logo de início remete a uma
função tipicamente teatral, pois, enfatizando a sua presença, o coro mostra
que numa peça são os atores em carne e osso que, por meio de suas falas,
vão expressar e sentir os horrores em cena, ou seja, por meio deles se
desenvolve a ação trágica. Como esse coro de anciãos, com seu caráter
coletivo de indivíduos velhos e sábios que zelam pela cidade na ausência
do rei, funciona como mais um personagem, então, são esses anciãos que
irão começar por apresentar, no momento presente, a situação que se
encontra na cidade de Susa, capital persa, e também são eles que, com
lembranças, vão se referir ao passado para começar a apresentar as
oposições trágicas que se apresentam no enredo de Os Persas.
O momento é de apreensão, pois Ésquilo, num toque teatral de gênio,
coloca o coro como ainda desconhecedor da derrota sofrida. O desejo de
conhecer os fatos se afigura como um impulso que leva os anciãos a
rememorar as ações feitas por Xerxes e seu exército. Nesse desconhe-
cimento, surge uma apreensão que se inclina para o pior (vv. 8–11):
a0mfi\ de\ no/stw| tw~| basilei/w|
kai\ poluxru/sou stratia~v h1dh
kako/mantiv a1gan o0rsolopei~tai
qumo\v e1swqen.
Sobre o retorno do rei
e do exército repleto de ouro, desde já,
um profeta de males atormenta fortemente

149
meu coração por dentro.
Na seqüência, quase em desespero, o coro clama (v. 14) por um
mensageiro (a1ggelov) ou cavaleiro (i9ppeu/)v , que contudo não aparece. A
dúvida e a angústia se misturam nesse Párodo para formar o efeito trágico
desejado, e é de posse desses sentimentos conflitantes que o coro irá expor
os elementos também conflitantes que formam o enredo da peça.
No plano não divino, há a lógica oposição entre gregos e bárbaros.
Ésquilo por várias vezes enfatiza o apego à riqueza dos persas, numa clara
alusão de que, para o povo grego, existem valores muito mais elevados do
que esse mero desejo. No Párodo, precisamente, o adjetivo poluxru/sov
(repleto de ouro) é repetido num curto espaço de versos; primeiramente,
referindo-se às moradas dos persas (v. 4) e, depois, ao exército de Xerxes
(v. 9). Sob outra perspectiva, esse ouro persa se opõem à prata dos
atenienses, descoberta numa nova mina em Láurion, que possibilitou a
construção de uma poderosa frota, indispensável para a vitória em
Salamina. Nos dois pontos de vista, a oposição entre gregos e persas se
mostra presente, assim como também esse mesmo conflito se reflete
metaforicamente no uso de palavras ligadas ao campo semântico de lança
(do/ru) e arco e flecha (to/con) como na seguinte passagem (vv. 84 – 86):
Su/rio/n q 0 a3rma diw/kwn
e0pa/gei douriklu/toiv a0n-
dra/si toco/damnon 1Arh.
Conduzindo o seu carro sírio
(Xerxes) leva, contra os homens célebres pela lança,
Ares, que doma com arco e flecha.
Nessa passagem, os gregos são referidos como douriklutoi/
(célebres pela lança) e os persas, por trás da citação do deus da guerra
Ares, são qualificados como toco/damnoi (que domam com arco e flecha)
numa clara alusão à maior coragem dos gregos em relação aos persas; se os
bárbaros são hábeis na luta à distancia, desferindo suas flechas contra os
inimigos, os gregos preferem a luta corpo a corpo, um enfrentamento direto
que possibilita o uso da lança como arma.
Ainda nessa oposição gregos e persas, digno de nota é o excessivo
número de palavras citadas no Párodo, que buscam enfatizar o excessivo
número de combatentes bárbaros numa suposta oposição a um pequeno
número de guerreiros gregos. Pode-se encontrar os substantivos sti~fov
(massa – v. 20), plh~qov (turba – v. 40), o1xlov (multidão – v. 42, 54),

150
r9eu~ma (fluxo – v. 88), lew/v (multidão – 127), smh=nov (enxame – v. 128) e
os adjetivos pa/v, pa/sa, pa/n (todo (a) – v. 12), a0na/riqmov (inumerável -
v. 40) polu/androv (repleto(a) de homens - v. 73), polu/v, pollh/, polu/
(muito(a), grande – v. 25, 46, 74), polunau/thv (repleto de marinheiros – v.
83), me/gav, mega/llh, me/ga (grande – v. 88). Algumas dessas palavras
estão numa espécie de lista (vv. 21–57), em que o coro faz menção a todos
os chefes persas e a seus respectivos exércitos, numa clara influência de
Ésquilo pelo denominado Catálogo das Naus que está no Canto II da Ilíada
de Homero (vv. 494–877), onde o poeta épico se refere aos guerreiros
gregos e aos aliados troianos que foram combater em Tróia. Tal
procedimento, em Ésquilo, é um modo de enfatizar, por números, a feição
de um exército poderoso que, contudo, não logrou êxito no seu intento.
Como, nesse Párodo, o coro ainda desconhece a derrota, um contraste
tipicamente trágico se dá, já no Primeiro Episódio, quando o Mensageiro
anuncia que todos os guerreiros bárbaros foram mortos (v. 255): strato\v
ga\r pa~v o1lwle barba/rwn - Todo exército dos bárbaros pereceu.
Mas provavelmente a oposição trágica mais relevante de Os Persas
seja a que se estabelece entre Xerxes e os poderes divinos. Apesar desse
personagem só entrar em cena bem mais tarde, o Párodo já antecipa de
modo enfático tal oposição. Primeiramente, o coro faz menção ao momento
em que os persas atravessam o Helesponto por uma ponte construída para
esse propósito, atitude que se afigura como se, ao mar, fosse lançado um
jugo (vv. 65–72):
pepe/raken me\n o9 perse/ptoliv h1dh
basi/leiov strato\v ei0v a0n-
ti/poron gei/tona xw/ran,
linode/smw| sxedi/a| porq-
mo\n a0mei/yav
0Aqamanti/dov 3Ellav,
polu/gomfon o3disma
zugo\n a0mfibalw\n au0xe/ni po/ntou.
O exército real destruidor de vilas já
penetra no país
vizinho, situado na costa oposta,
após ter suplantado, com uma ponte atada
por cordas, a passagem
da filha de Áthamas, Hélle,
lançando o jugo da construção
sólida sobre o estreito do mar.

151
Nessa passagem, Xerxes nem é citado diretamente, mas, depois da
entrada do Fantasma de Dario, no 3º Episódio, esse personagem do além
deixará claro (vv. 743–751) que a perdição de Xerxes se deu por causa de
seu excesso para com os deuses e, em especial, para com o deus do mar
Poseidon; trata-se de uma loucura da mente (no/sov frenw~n) que se
apossou do jovem rei, causando a sua perdição.
Numa outra implícita alusão a Xerxes, o coro canta a desgraça do
mortal que se deixa levar pela 1Ath, termo grego que significa calamidade,
crime, ruína, e que aqui aparece personificado como a deusa que arruína o
juízo dos homens, levando-os à destruição (vv. 93–100):
dolo/mhtin d 0 a0pa/tan qeou~
ti/v a0nh/r qnato\v a0lu/zei;
ti/v o9 kraipnw~| podi\ ph/dh-
ma to/d 0 eu0petw~v a0na/|sswn;
filo/frwn ga\r parasai/nei
broto\n ei0v a1rkuav 1Ata,
to/qen ou0k e1stin u3perqe/n
nin a1naton e0calu/cai.
Do astuto artifício de um deus,
que homem mortal poderá escapar?
Quem se lançará a este salto,
com o pé ligeiro?
Certamente, a astuta Áte
desnorteia o mortal para suas redes;
depois, não há como escapar
impune dos deuses.
Xerxes, como o rei dos persas e como o responsável por todas as
ações contra gregos e deuses, é o personagem que mais se encontra
envolvido em oposições trágicas. É através de suas ações que Ésquilo irá
desenvolver no decorrer da tragédia, com uma atuação mais direta dos
personagens, os conflitos que justificam o seu fracasso, um destino
fortemente trágico, visível na humilhação que sofreu pela perda de seu
exército. Mas, como foi possível perceber, o coro, desde o início da tragédia,
prepara e já mostra, em sua apreensão, esses elementos de choque.

152
Referências bibliográficas:
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Greek text with translation by Herbert Weir Smyth. Massachusetts: Loeb Classical
Library, 2001.
AESCHYLUS. Persians. Greek text with introduction, translation and commentary
by Edith Hall. Warminster: Aris & Phillips LTD, 1996.
ARISTÓTELES. Poética. Trad. do grego por Eudoro de Souza. SP: Ars Poética, 1993.
BAILLY, A. Dictionnaire grec francais. Ed. rev. et aum. par L. Sechan et P.
Chantraine. Paris: Hachette, 1983.
ÉSQUILO. Persas. Trad. do grego por Manuel de Oliveira Pulquério. Coimbra:
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1992.
LESKY, Albin. A Tragédia Grega. Trad. do alemão por J. Guinsburg, Geraldo
Gerson de Souza e Alberto Guzik. SP: Perspectiva, 1996.
MOREAU, A. Eschyle, la Violence et le Chãos. Paris: Les Belles Lettres, 1985.
MOSSÉ, Claude. Atenas – A História de uma democracia. Trad. do francês por
João Batista da Costa. Brasília: UnB, 1997.
_________. Dicionário da Civilização Grega. Trad. do francês por Carlos
Ramalhete. RJ: Jorge Zahar, 2004.
ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega. Trad. do francês por Ivo
Martinazzo. Brasília: Unb, 1998.
ROSENMEYER, Thomas G. The Art of Aeschylus. Los Angeles: University of
California Press, 1982.

153
ROMA: DIÁLOGO SOBRE A DEFINIÇÃO DE PODER
Ronald Wilson M. Rosa

O nosso tema de abordagem pauta-se em analisar o imperialismo


romano, no que concerne às relações de poder entre Roma e os seus
estados-clientes1, em especial o Egito, durante o séc. I a.C. Uma das
questões observadas foi o fato de que a análise sobre o Império Romano,
nos ensinos básico e médio, trata a expansão romana como conquista, e que
cada província anexada parece ter tido pouco contato tanto cultural, quanto
econômico com Roma antes da chamada conquista. Observamos também
que a historiografia é um pouco escassa sobre este assunto, no qual
podemos citar Norbert Rouland2, que trabalha com as relações de poder
entre Roma e suas províncias depois da chamada conquista, e Noberto L.
Guarinelo3, que aborda o caráter econômico do processo de expansão
imperialista romana.
Roma, no final da República, apresentava uma diversidade de
interação e relação de poder estabelecida com as regiões com as quais teve
contato. Consideramos pertinente analisar e qualificar que tipo de relação
de poder foi estabelecido antes do processo de anexação. O diálogo com
outros textos que também definem e debatem as relações entre culturas
distintas tornam-se prioritários junto à nossa pesquisa.
Analisando os textos produzidos no séc. XVIII, “período das
luzes”, percebemos o quanto os iluministas usaram da intertextualidade ao
dialogarem entre si sobre a definição do poder na Res Publica, sobre a
participação do cidadão e do voto na eleição dos magistrados, e fica
evidente a presença da polifonia, ou seja, as vozes do passado que
circulavam junto aos textos. Identificamos uma dessas vozes como sendo
Marcus Túlio Cícero e suas considerações sobre o modelo ideal de

1
Estados clientes eram as sociedades que ficavam a sobre a órbita de influência do Império Romano,
eram utilizados como estados tampões entre Roma e reinos inimigos. Ver mais em: MENDES, Norma
M. Sistema Político do Império Romano do Ocidente: Um modelo de colapso. Niterói: UFF, 1996, p.
85.
2
Ver: ROULAND. Norbert. Roma, democracia impossível? Os agentes do poder na Urbe Romana.
Brasília: UNB, 1997.
3
GUARINELLO, Norberto L. Imperialismo Greco-Romano. São Paulo: Ática, 1994, PASSIM.

154
sociedade civil. Viver em sociedade tem-se tornado uma prática difícil na
atual conjuntura. A diversidade de conflitos idéias negociações nos permite
estabelecer comparações.
Há muitas semelhanças entre o período atual e a mudança sobre a
ordem e o poder estabelecidos, no que concerne ao séc. XVIII, a Revolução
Francesa, o fim do antigo regime. Consideramos que na sociedade atual,
com o fim da guerra fria, a eleição do presidente americano George Bush,
provocou o estabelecimento de uma nova ordem mundial, que pôs fim ao
mundo bi-polarizado. Durante a guerra fria existiram dois discursos sobre
projetos políticos: o discurso capitalista e o socialista. Cada um tinha uma
visão diferente sobre a história, mas com uma característica em comum: as
mesmas projeções sobre o curso da história da humanidade. A vitória do
projeto político significava estabilidade social que trará o fim de todos os
conflitos, guerras e embates4.
Na atualidade, os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, em
que as torres gêmeas foram derrubadas por um ataque terrorista, atingem o
conceito de estabilidade social preconizada por teóricos liberais, e revelam
o aumento das desigualdades sociais, não só nos paises subdesenvolvidos,
mas também nos paises de maior economia mundial5.
Tais questões e mudanças estão presentes em textos de historiadores,
juristas e jornalistas da atualidade. Percebemos a construção de discursos
cujo olhar volta-se para o passado em busca de respostas, seja para
compreender este presente, seja para referendar ideologias ou ações políticas
aplicadas na atualidade. O que ratifica esta tendência, esta na observação da
proliferação de filmes com temáticas voltadas, em especial, para a
Antiguidade como: Tróia, Gladiador e Alexandre, o grande, entre outros,
acrescentamos os filmes como Star Wars que, mesmo não sendo voltados
para a Antiguidade, se apropriam de instituições e características existentes
em sociedades antigas.
O retorno ao passado nos leva a supor que a nossa sociedade está
buscando respostas para as drásticas mudanças vivenciadas por nós.
Busca-se um ponto de interseção entre o passado e o presente no qual nos
permite identificar crenças, valores e tradições. Nossa pesquisa se insere

4
Com o fim da guerra fria, o que aconteceu foi a supremacia do modelo capitalista na sociedade
ocidental, que trouxe profundas mudanças em nossa sociedade, e a principal delas é a mudança sobre o
conhecimento histórico, provavelmente ocasionado por causa do incentivo ao consumismo. Com isso, a
sociedade perdeu o sentido de perspectiva para o futuro, tornando-se mais imediatista, onde cada
momento é histórico.
5
Ver Perry Anderson. O fim da história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

155
nessa perspectiva de refletir, se repensar as relações de poder entre
Roma e o Egito a partir da intertextualidade, ou seja, o diálogo com
historiadores contemporâneos e a polifonia, vozes do passado em Cícero e
Iluministas, mas antes torna-se primordial apresentar o que entendemos
por relação de poder.
Consideramos que o termo Imperialismo não abrange suficientemente
as características peculiares do contato entre Roma e o Egito. Na historiografia
alguns pesquisadores têm inovado com novos conceitos, como a pesquisadora
Norma Mendes, que utiliza o termo romanização e o Prof. Noberto L.
Guarinelo6, que aborda o caráter econômico do processo de expansão
imperialista romana. Em nossa pesquisa, optamos por manter o foco no viés
político baseado nas relações de poder, para efetivar temos por suposição que
Roma interagia com as regiões de interesse através das seguintes relações de
poder, a saber:
1. O que o Prof. Guarinelo indica como ato de destruição do
adversário7 nós identificamos como relação de poder coercitivo,
em que, por vezes observamos o uso e a aplicação de violência;
2. A identificação do Prof. Guarinelo de zonas de influência8, nós
definimos como relação de poder mercantil, não necessariamente
com interesse político;
3. E, o que foi chamado de alianças igualitárias9 nós denominamos
de relação de poder negociável, que conta com a presença de
interesse político.
Pretendemos aplicar esta nova abordagem nas relações entre Roma
e o Egito, principalmente as relações de poder mercantil e relações de poder
negociável, para isso indicamos o contato mercantil como elemento
principal destas relações, pois temos por suposição, que as sociedades do
mundo antigo, não eram sociedades estanques, que só interagiam através da
guerra e após as conquistas de um reino ou império mais forte sobre outro.
Mas como é uma relação de poder? Para Rousseau, o poder era
exercido pela força, mas o forte só conseguiria a dominação se
transformasse a força em direito10. Entretanto, para Max Weber, a violência
6
GUARINELLO, Norberto L. Imperialismo Greco-Romano. São Paulo: Ática, 1994, PASSIM.
7
Idem, p. 12.
8
Idem, ibidem.
9
Idem, nota 16.
10
Rousseau. Contrato Social I: III.

156
é um instrumento legal do estado no exercício do poder11 e, para Hannah
Arendt, o poder está relacionado ao vigor, à força, à autoridade, à
violência12. Todas estas definições e conceitos sobre o poder nos remetem à
dominação e à centralização institucional do poder. Michel Foucault
considera que o poder não é um fenômeno de dominação maciço e
homogêneo de um indivíduo sobre os outros e sim deve ser analisado como
algo que circula, que só funciona em cadeia e se exerce em rede13. A partir
das considerações acima compreendemos que as relações de poder entre
Roma e o Egito, durante o séc. I a.C., não deve ser apenas analisada pela
ótica da dominação exercida pela força, e sim como uma rede de contatos e
relacionamentos, que tem como fator condutor o contato mercantil.
No período do século das luzes, buscava-se expandir os mercados a
partir da ideologia de levar a “civilização” para as áreas consideradas
primitivas, esta trajetória era composta pelos administradores, os
missionários e os mercadores. Na Antiguidade, os entrepostos comerciais
fixados nas áreas litorâneas nos remetem à nossa suposição de ser o contato
mercantil as primeiras formas de relacionamento entre Roma e o Egito.

Referências bibliográficas:
ALFOLDY, Geza. História Social de Roma. Lisboa: Presença, 1989.
ANDERSON, Perry. O fim da história: de Hegel a Fukuyama. RJ: Jorge Zahar,
1992.
ARENDDT, Hannah. Sobre a Violência. RJ: Relume, 2000.
BRAUDEL, Fernand. Memórias do Mediterrâneo, Pré-História e Antiguidade.
Lisboa: TerraMar, 2001.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. SP: Graal, 2004.
GRIMAL, Pierre. O Império Romano. Lisboa: Edições 70, 2003.
_____________. Os Erros da Liberdade. Lisboa: Edições 70, 1992.

11
Weber, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1999.
12
Arendt, Hannah. Sobre a Violência. Relume Dumará, 2000, p. 36.
13
Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Graal, 2000, p. 183.

157
GUARINELLO, Norberto L. Imperialismo Greco-Romano. SP: Ática, 1994.
HADRILL, Andrew W. Patronage in Ancient Society. Londres: Routledge, 1990.
HARVEY, David. O Novo Imperialismo. SP: Edições Loyola, 2004.
KOSSELECK, Reinhart. Crítica e Crise. RJ: EDUERJ, 1999.
MENDES, Norma M. Sistema Político do Império Romano do Ocidente: um
modelo de colapso. Niterói: UFF, 1996.
ROULAND, Norbert. Roma, democracia impossível? Os agentes do poder na
Urbe Romana. Trad. Ivo Martinazzo. Brasília: UNB, 1997.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os Pensadores: Rousseau. SP: Nova Cultural, 1991.
RUSEN, Jorn. Razão Histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência
histórica. Brasília: Editora da UNB, 2001.

158
UM OLHAR COMPARATIVO SOBRE AS FÁBULAS – LITERATURA
ATEMPORAL
Sandra Verônica Vasque Carvalho de Oliveira

A arte, acima de tudo, é uma interpretação da realidade. Como tal,


deixa impressa nos indivíduos a sensação de reflexo de suas próprias
imagens e vivências. A literatura, como arte que é, não é diferente, reflete,
representa e reinterpreta a realidade sob a ótica do artista.
Essa apreensão do mundo real mesclado com o poder criativo,
imaginário e reflexivo do homem, acaba por proporcionar a eternização de
obras de arte; pois o homem é sempre o homem e suas experiências, apesar
de modificadas pela lógica da modernização e pela renovação do
pensamento e das idéias, permanecem semelhantes nas bases.
Quando um artista reescreve outros que viveram em épocas
distintas à sua, ele percebe nas obras que modifica, resquícios e imagens da
própria época. Isso faz com que verifiquemos um grande número de obras
reinventadas e “recontadas” nos mais diversos meios de propagação da arte.
Nesse sentido, este trabalho pretende demonstrar, de forma sucinta,
a intertextualidade de trabalhos produzidos em épocas separadas no tempo
e no espaço. Como se trata de tema amplo e diversificado, fez-se um
recorte, tomando como objeto de estudo um tipo de literatura: o texto
fabulístico.
As fábulas tratam-se de pequenas narrativas, apresentando quase
sempre, como personagens, animais ou seres imaginários. Esses, via de
regra, representam alegoricamente características de caráter dos seres
humanos. Além de servirem de entretenimento, têm como objetivo
explícito transmitir um aconselhamento, com fundo moral. Pode-se dizer
que, por outro lado, está implícita uma tentativa de explicar as causas de
fatos existentes em nosso cotidiano, retirando disso alguma lição.
O teor desse tipo de literatura é ilustrar vícios ou virtudes dos
indivíduos. Assim, acaba por denunciar as vicissitudes dos meios sociais.
São comuns temas como a astúcia, abuso de poder (relação entre fortes e
fracos), a ganância, o ser bondoso etc. Quando utiliza animais como
personagens, escolhe aqueles que possuem características semelhantes – no

159
senso comum – à qualidade ou defeito temas da fábula, por exemplo, a
raposa como representação da esperteza, o leão da força e assim por diante.
A palavra “fábula” deriva do verbo latino fabulare (conversar,
falar), o que indica, fortemente, o teor oral desse tipo de literatura. Sabe-se
que as narrativas fabulísticas foram transmitidas, inicialmente, oralmente,
pelos antigos.
Essa forma de contar histórias é muito antiga, presente nas mais
diversas culturas humanas. Está estritamente ligada à sabedoria popular, e
vem sendo recontada ao longo da história do homem.
Os textos das fábulas provocam sempre uma reflexão sobres os
valores, conceitos e comportamentos dos indivíduos. Apresentando conflitos
e diferenças, proporcionam ao leitor ou ouvinte o conhecimento sobre o
outro, com as particularidades das relações humanas. Conseguindo, assim,
compreender melhor o mundo e refletindo a respeito do que é certo e errado.
Tendo uma característica forte de oralidade, a fábula é uma
literatura de caráter universal, pois aborda fatos comuns a homens de todos
os gêneros. Ela traz implícita uma analogia com a vida do homem. Por esse
motivo, é indicada para o trabalho educativo com crianças, pois pode
propiciar a essas o entendimento do seu próprio mundo, percebendo as
artimanhas das relações sociais e, ao mesmo tempo, se preparando para elas
e se entendendo como parte integrante desse processo.
As fábulas proporcionam à criança, assim como ao adulto, o acesso ao
significado mais profundo existente nas entrelinhas de suas narrativas. Fato que
se torna uma oposição à lição de moral, que aparece explícita no texto.
Percebe-se que há um confrontamento do indivíduo que lê ou ouve
fábulas, com características inerentes ao ser humano, com os conflitos
próprios deste. Possibilita, desse modo, uma reflexão, que desencadeará
entendimento de algumas questões não pensadas anteriormente e, também,
a segurança para o enfrentamento do mundo.
Em relação à forma, trata-se de narrativa curta, direta e simples, em
que o título, também simples, não sugere o tema. O desfecho, geralmente,
combina com a “moral da história”, a qual pode vir antes da narrativa em
si, ou ao final.
Com origem remota no Oriente, muitas fábulas se eternizaram para
nós, através de autores do Ocidente. Na Grécia Antiga, pode-se destacar
Esopo, que teria vivido por volta do século V a.C.
Costuma-se falar que Esopo era um escravo e foi vendido e
comprado muitas vezes. Contudo, diz-se que era muito inteligente e esperto

160
conquistando, assim, a liberdade e contando suas fábulas pelos vários
lugares para os quais viajou.
Existe uma versão sobre Esopo, segundo a qual ele apresentava uma
aparência estranha, sendo corcunda e tendo a cabeça deformada. De acordo
com lendas a respeito desse autor, ele também possuía um defeito na fala,
que devia incomodá-lo; pois era o contador das histórias que inventava.
A obra atribuída a ele demonstra um profundo conhecimento da
natureza humana, abordando as mais variadas fraquezas do homem e fazendo
reflexões sobre o comportamento e costumes deste. Contudo, costuma-se
afirmar que a existência dele talvez não seja real. A tradição lhe confere
diversos textos fabulísticos, que foram transmitidos oralmente e mais tarde
registrados por outros autores através escrita. O que se conhece, atualmente,
como fábulas esopianas, são adaptações feitas por diversos escritores ao
longo dos tempos. Não se pode dizer com certeza o que de fato é de sua
autoria ou não. Existe, até mesmo, a possibilidade de Esopo tratar-se de um
pseudômino utilizado por diversos escritores. O próprio Esopo – se existiu
realmente – teria adaptado, aos moldes gregos, antigas fábulas do Oriente.
O romano Fedro, que viveu por volta de 10 a.C. e 69 d.C.
(GONÇALVES, 1981), era grande admirador de Esopo e reescreveu
diversas fábulas desse autor – o que se constata em alguns textos de sua
autoria, como no exposto abaixo – prólogo do Liber Primus:
Aesopus auctor quam materiam repperit,
Hanc ego poliui uersibus senariis.
Duplex libelli dos est, quod risum mouet
Et quod prudenti uitam consilio monet.
Caluumniari si quis autem uoluerit
Quod arbores loquantur, non tantum ferae,
Fictis iocari nos meminerit fabulis.
Tradução:
Escrevi, em versos senários, o assunto destas fábulas que Esopo
imaginou. Duas grandes vantagens, a meu ver, possui este
livrinho: recreia-nos pelo jocoso do estilo e orienta-nos a vida
com sábios conselhos.
No entanto, se alguém nos censurar, por havermos personificado
não somente as árvores, mas ainda os animais, recorde-se que
gracejamos em fábulas, onde tudo é ficção.
Fedro escreveu, também, muitas fábulas de sua própria autoria.
Assim verifica Gonçalves:

161
A sua obra literária é assombrosa. Não lhe coube somente a
glória de haver introduzido na literatura latina as fábulas de
Esopo, como muitos críticos propalam, mas a de ter escrito...,
inúmeras fábulas novas adaptadas à sociedade do seu tempo...
(GONÇALVES, 1981, p. l 21)
Todavia, o responsável por difundir e popularizar as fábulas em
nosso tempo foi o francês Jean de La Fountaine, que viveu no século XVII.
Ele usava esse tipo de literatura para transmitir as injustiças e misérias do
momento histórico que presenciou.
No Brasil, muitos escritores se dedicaram a recontar fábulas
antigas, assim como a compor outras novas. Entre eles, podemos citar
Monteiro Lobato (início do século XX), que reescreveu, a seu modo,
fábulas de Esopo, Fedro e, também de La Fountaine e criou as suas
próprias. Os personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo são responsáveis
por transmitir muitas dessas fábulas, além de realizarem comentários a
respeito delas, demonstrando, através disso, a opinião do autor. Assim
como La Fountaine, Lobato utilizou as fábulas para criticar o momento
histórico em que viveu, denunciando injustiças e misérias.
Do mesmo modo, na atualidade, temos o escritor Millôr Fernandes,
por exemplo, que critica a realidade sócio-políitca-econômica de nossa época.
Utilizando humor e ironia, para refletir sobre o comportamento e os valores
atuais, faz uma sátira de nossa sociedade nos livros “Fábulas fabulosas” e
“Novas fábulas fabulosas”.
A seguir, coloca-se para a demonstração de intertextualidade, a
fábula “A raposa e os cachos de uvas” de Esopo e algumas das várias
versões que ganhou, ao longo dos séculos:

A RAPOSA E O CACHO DE UVAS


Uma raposa faminta, ao ver cachos de uva suspensos em uma
parreira, quis pegá-los, mas não conseguiu. Então, afastou-se dela,
dizendo: “Estão verdes”.
Assim também, alguns homens, não conseguindo realizar seus
negócios por incapacidade, acusam as circunstâncias. (Esopo)

SOBRE A RAPOSA E A UVA


Coagida pela fome, a raposa apetecia uma uva numa parreira
alta, saltando com suas maiores forças. Como não pôde tocar aquela
(a uva) disse, afastando-se: “Ainda não está madura; não quero
apanha (-la) verde”.

162
Aqueles que desdenham com palavras as coisas que não podem fazer,
deverão aplicar a si este exemplo. (Fedro)

A RAPOSA E AS UVAS
Certa raposa esfaimada encontrou uma parreira carregadinha de
lindos cachos maduros, coisa de fazer vir água à boca. Mas tão altos
que nem pulando. O matreiro bicho torceu o focinho.
– Estão verdes – murmurou – Uvas verdes, só para cachorro. E foi-se.
Nisto deu o vento e uma folha caiu. A raposa ouvindo o barulhinho
voltou depressa e pôs-se a farejar...
Quem desdenha quer comprar. (Machado de Assis)

A RAPOSA E AS UVAS
De repente a raposa, esfomeada e gulosa, fome de quatro dias e
gula de todos os tempos, saiu do areal do deserto e caiu na sombra
deliciosa do parreiral que descia por um precipício a perder de vista.
Olhou e viu, além de tudo, à altura de um salto, cachos de uvas
maravilhosos, uvas grandes, tentadoras. Armou o salto, retesou o
corpo, saltou, o focinho passou a um palmo das uvas. Caiu, tentou de
novo, não conseguiu. Descansou, encolheu mais o corpo, deu tudo o
que tinha, não conseguiu nem roçar as uvas gordas e redondas.
Desistiu, dizendo entre dentes, com raiva: “Ah, também, não tem
importância. Estão muito verdes”. E foi descendo, com cuidado,
quando viu à sua frente uma pedra enorme. Com esforço empurrou a
pedra até o local em que estavam os cachos de uva, trepou na pedra,
perigosamente, pois o terreno era irregular e havia risco de despencar,
esticou a pata e... Conseguiu! Com avidez colocou na boca quase o
cacho inteiro. E cuspiu. Realmente as uvas estavam muito verdes!
A frustração é uma forma de julgamento tão boa como qualquer
outra. (Millôr Fernandes)

Comentários sobre as versões apresentadas:


 A de Esopo é concisa e objetiva. A narrativa se inicia com o tema
principal, chegando rapidamente ao desfecho e terminando com a moral –
uma crítica à falta de humildade daqueles que não aceitam o fracasso e o
transmite para as condições existentes.
 Fedro reescreve a fábula esopiana não alterando muito a condução
empregada por Esopo, para narrar e chegar à moral da história.

163
 Monteiro Lobato imprime um caráter mais lúdico à narrativa e finaliza
com o provérbio conhecido até os dias de hoje. Outra característica, é que
no seu livro “Fábulas”, por exemplo, depois da narrativa fabulística, o
autor insere um comentário dos personagens do Sítio do Pica-Pau
Amarelo a respeito delas.
 Millôr Fernandes reescreve a narrativa, modificando-a, inclusive no
final e na moral e inserindo o toque humorístico e sarcástico, próprio de
seu estilo. Há a utilização do lúdico para chegar ao humor e não a
intenção explícita de ensinamento, transformando, desse modo, a moral.

Como se vê, as fábulas oferecem possibilidades de análise e


explicação para comportamentos sociais e características humanas, sendo
assim, amplamente utilizadas, reescritas e recontadas desde a Antigüidade
até os dias atuais. Pode-se acrescentar, que tamanha tem sido a sua difusão,
que as morais transmitidas pelas fábulas acabaram se transformando em
provérbios populares muitos conhecidos por nós, como “quem ama o feio
bonito lhe parece” e “quem desdenha quer comprar”, oriundos desse tipo de
literatura. Portanto, há que se admitir a atemporalidade e a perpertuação dos
textos fabulísticos.

Referências bibliográficas:
FARIA, E. Dicionário superior latino – português. RJ: FENAME, 1982.
GONÇALVES, M. A. Fábulas de Fedro. RJ: Livraria H. Antunes, 1981.
LODEIRO, J. Traduções de textos latinos. RJ, SP, PA: Globo, 1948.
SARAIVA, F. R. S. Novíssimo dicionário latino – português. BH: Livraria
Garnier, 2000.

164
HOMERO, HESÍODO E PÍNDARO: UMA REFLEXÃO ACERCA DA
FELICIDADE E DO MÉRITO
Shirley Fátima Gomes de Almeida Peçanha

Como assinala a maioria dos helenistas, a poesia pindárica, a par da


concepção prevalecente, desde Homero, de dirigirem-se as almas dos
mortos ao Hades, oferece informações valiosas acerca do destino post-
mortem, em virtude de o poeta deixar transparecer em seus versos a
influência de seitas religiosas que, prometendo a imortalidade da alma e um
lugar privilegiado no além, evoluíram na Grécia e na Itália meridional nos
VI e V séculos a.C.1
Todavia, é importante assinalar a dificuldade de os helenistas
encontrarem nos versos pindáricos características de uma única doutrina
escatológica, tendo em vista que alguns preceitos eram compartilhados
pelas diferentes seitas, tais como o conceito de punição e recompensa após
a morte, a metempsicose, a crença de que o corpo era a prisão da alma, a
prerrogativa de os iniciados ocuparem um lugar especial no além, a
recompensa pela eusébeia dentre outros. O ecletismo presente na poesia
pindárica, assevera Duchemin (1955: 329), talvez se explique pelo fato de a
religião oficial da Grécia do V século a.C. não ter dogmas, possibilitando,
assim, a presença de um mesmo indivíduo, iniciado nos Mistérios de
Elêusis, em círculos outros, como o pitagórico e o órfico, deles recebendo
ensinamentos místicos.
A despeito das diversas correntes místicas propagadas na época de
Píndaro, em Olímpica 2, poema dedicado a Terão, tirano de Agrigento no
período de 488 a 472 a.C, versos 57-60 , ao mencionar o julgamento dos
mortos no Hades, não se refere o poeta a nenhuma doutrina religiosa, mas à

1
Dentre as correntes mais importantes, destacam-se o Orfismo, o Pitagorismo e a doutrina de Empédocles.
Entretanto, a vertente mística mais antiga de que se tem conhecimento acerca de crenças no além e da qual se
encontram, ao que parece, reminiscências nos versos pindáricos é a dos Mistérios de Elêusis, que, segundo
dados arqueológicos, data da época micênica. O documento literário mais antigo acerca dessa vertente
religiosa é o Hino a Deméter, datado do VII século a.C. Nos versos 480-2 do referido hino, o poeta denomina
ólbios “feliz”, o homem que, tendo participado dos sagrados ritos de Elêusis, usufrui uma sorte privilegiada no
além. Logo, nesses versos encontra-se, ao que tudo indica, o ponto de partida da promessa de uma vida feliz no
além-túmulo, possível a qualquer indivíduo, desde que fosse um mystés “iniciado nos mistérios”.

165
concepção existente desde as épocas mais longínquas até a Antigüidade
tardia, de ser o Hades a última estância dos mortais:
... que dentre os que morreram aqui
imediatamente os espíritos perversos
lhes expiam as faltas e os delitos, neste reino de Zeus,
alguém os julga sob a terra, proferindo uma sentença,
com hostil necessidade... 60
Nesses versos, o poeta aborda a questão da responsabilidade dos
homens, tendo em vista que a alma do morto será julgada no além, katà
gâs, v. 59, “sob a terra”, segundo as ações praticadas por ele em vida. Se
condenado, suas faltas serão expiadas por sua própria alma. Com isso, o
poeta introduz, pela primeira vez na literatura grega, o tema da
transmigração da alma, tratado por quase todos os círculos místicos
anteriormente referidos.
Acerca desse assunto, Burkert (1993, p. 570-1) assinala que, a
despeito de no V século a.C. a doutrina da metempsicose ainda se encontrar
em fase de desenvolvimento, um dos aspectos mais expressivos, resultantes
das especulações místicas, foi justamente a modificação do conceito de
alma. Diferentemente da concepção homérica, encontrada, e.g., em
Odisséia, XI, vv. 29-49, de serem os mortos retratados como amenenà
kárena “cabeças impotentes”, “sem força”, a doutrina da transmigração
postula a existência de uma força individual, psyché, no interior dos
homens e dos animais, capaz de preservar sua identidade, mesmo quando o
corpo que a contém pereça. Considerada desse modo imortal, a alma é, de
acordo com as correntes místicas, passível de reencarnação, deliberada seja
pelo acaso, seja pelo tribunal dos mortos.
Com efeito, os versos 57-60 de Olímpica 2 discorrem sobre o
julgamento das almas, muito embora o poeta não tenha feito menção nem
ao tipo de faltas julgadas nem ao nome do juiz, uma vez que o designa de
modo indefinido, através do pronome tis. Contrariamente, em Ilíada XIX,
vv. 258-65, o poeta evidencia que a única falta passível de provocar
punição no além é o perjúrio. Segundo Burkert (1993: 478), era idéia aceita
na Grécia antiga constituir o juramento um verdadeiro princípio ao qual
estavam subordinadas a religião, a moralidade e a organização da
sociedade. Os versos homéricos supracitados são reveladores de ser o
juramento um ato irrevogável, em virtude de terem sido os deuses
invocados como testemunhas da palavra proferida. Destarte, o indivíduo
que incorresse em perjúrio deveria ser punido.

166
A despeito de não haver referência explícita a um julgamento no
além, como há nos versos pindáricos, a seriedade atribuída ao juramento
também ultrapassa, na concepção homérica, o termo da vida, razão por que
as Erínias, divindades que na concepção helênica representam a ordem
social, atuam no mundo subterrâneo como potências vingadoras contra os
perjúrios. Assim sendo, a observância à palavra empenhada estava
subordinada ao temor aos deuses e, em Homero também às Erínias, pois,
sem medo da justiça divina, os mortais poderiam transpor todas as barreiras
morais e instaurar a desordem no mundo.
O destino das almas dos nobres, definidos por Píndaro, na
supracitada Olímpica, como hoítines échairon euorkíais (v. 66), “os que se
alegravam com a fidelidade ao juramento”, é descrito pelo poeta nos versos
61-7: possuíam uma existência despreocupada, caracterizada pelo
comparativo aponésteron (v. 63), ‘‘com muito menos sofrimento’’, em
contraposição à existência dos outros homens, para os quais foi reservado
um aprosóraton pónon (v. 67), “um sofrimento terrível”. Com efeito, essa
passagem evidencia a inviolabilidade do juramento e, por conseguinte, a
responsabilidade do homem como fundamentos para a vida isenta de
sofrimentos, pois, muito embora não se encontre explícito o motivo das
provações experimentadas por alguns homens, a referência à observância
ao juramento faz supor tratar-se de perjúrio. No tocante à intensidade do
sofrimento imposto ao perjuro, vale assinalar a semelhança temática entre a
expressão pindárica aprosóraton pónon (Olímpica 2, v. 67), “sofrimento
terrível”, e expressão homérica álgea pollà mála (Ilíada, XIX, vv. 264-5),
“sofrimentos extremos”.
Os nobres receberam, ainda, como prêmio, por sua conduta, uma
vida livre de preocupações e da necessidade do trabalho agrícola e
marítimo para sua subsistência. A descrição de Píndaro acerca desse lugar
ideal para a existência post-mortem harmoniza-se com o mito da raça de
ouro, narrado por Hesíodo em Os trabalhos e os dias, em cujos versos 109-
26 o referido poeta deixa transparecer sua concepção a respeito das diversas
gerações existentes até sua época, classificando-as segundo os valores dos
metais, que parecem caracterizar a índole de cada uma delas. À primeira,
denominada raça de ouro, pertencem os homens cultores da justiça, e, por
isso, merecedores, aos olhos do poeta, de uma existência consentânea com
as qualidades representadas pelo ouro, como atestam os versos 112-24:

167
E eles existiam no tempo de Cronos, quando ele reinava no céu;
como deuses viviam, com o coração isento de preocupações, longe
dos sofrimentos e do infortúnio; não os atingia a velhice miserável,
mas, sempre iguais em relação aos pés e às mãos, alegravam-se
nos banquetes, 115
longe de todos os males; morriam como se fossem dominados pelo
sono; todos os bens existiam para eles: a terra fecunda produzia,
espontânea, frutos abundantes e generosos; eles, contentes e
tranqüilos, viviam de seus campos, junto com numerosos bens
{possuidores de frutos em abundância, amados pelos deuses Bem-
aventurados}. Mas, quando a terra encobri 120
essa raça, eles são, por desígnios do grande Zeus, gênios bons,
ctônicos, guardiães dos mortais, {então, eles vigiarão as decisões
e ações cruéis, vestidos de bruma, vagam por toda a terra},
doadores de riquezas; eis a dádiva real que eles receberam.
Ressalte-se que Píndaro, ao discorrer a respeito do lugar reservado
aos nobres, em Olímpica 2, não faz nenhuma referência precisa à sua
localização, deixando transparecer que o fator mais importante para a
ascendência desses homens no além-túmulo é a capacidade de suportarem
sofrimentos, como assinalam os versos 66-7 de Olímpica 2. Hesíodo,
diferentemente de Píndaro, não faz qualquer distinção de classe. Além disso,
nos versos 90-2, fazendo uma breve menção aos homens da raça de ouro,
assinala que eles viviam epì chthónos, “sobre a terra”. Isso significa que os
homens dessa raça eram presenteados pelos deuses com uma vida
despreocupada e próspera, comparável à dos deuses, como se observa no
verso 112, durante seu ciclo de vida terrena e não após a morte. É
interessante ainda notar o destino post-mortem dos homens dessa raça, pois,
ao atribuir-lhes as funções de phýlakes thnetôn anthrópon, v. 123, “guardiães
dos mortais”, e ploutodótai v. 126, “doadores de riquezas”, Hesíodo, como
poeta-agricultor, destaca o que em sua opinião seria o fundamento para uma
existência feliz: a justiça e a prosperidade.
Vale notar que os nobres c itados por Píndaro, assim como os
homens da raça de ouro usufruem todas as benesses da natureza, sem
empreender nenhum esforço. Contudo, a expressão pindárica keinàn parà
díaitan (Olímpica 2, v. 65), “ao longo de uma vida vazia”, sugere que as
almas que experimentassem esse estado de inalterabilidade podiam
ascender, se desejassem, a um lugar ainda superior, provavelmente à Ilha
dos Bem-aventurados, descrita nos versos 70-83 da supracitada Olímpica
como um lugar aprazível, não só pelo clima oceânico e pela beleza das

168
flores de ouro, com as quais os Bem-aventurados entrelaçavam guirlandas
e coroas, mas também pela justiça distribuída pelo legislador Radamanto,
célebre por seu bom senso, e pelos heróis que a habitavam, como Peleu,
Cadmo e Aquiles. Todavia, enfatiza o poeta nos versos 69-70, esse lugar
era reservado apenas aos homens justos:
Mas quantos ousaram, permanecendo de um e de outro lado, por
três vezes, afastar completamente sua alma das injustiças,
percorreram o caminho de Zeus até a 70 fortaleza de Cronos;...
Referência anterior à de Píndaro, acerca da morada dos Bem-
aventurados, encontra-se nos versos 156-73 de Os trabalhos e os dias,
passo em que Hesíodo, ao discorrer sobre a raça de bronze, a geração
denominada dikaióteron kaì áreion, v. 158, “mais justa e mais valente”,
descreve as Ilhas como um lugar especial reservado aos heróis semidivinos
da quarta geração que não morreram em Tebas e em Tróia, mas que, eleitos
por Zeus, foram conduzidos para esse lugar, onde passaram a desfrutar uma
vida afortunada, retratada do seguinte modo pelo poeta de Ascra:
Certamente, ali, o termo da morte os envolveu e, longe dos
homens, tendo-lhes dado recursos e moradias, Zeus pai, filho de
Cronos, estabeleceu-os na extremidade da terra. E eles, com o
coração isento de preocupações, habitam nas Ilhas dos Bem-
aventurados 2², junto ao Oceano de turbilhões profundos; ditosos
heróis, para quem a terra fecunda produz frutos doces como mel,
que florescem três vezes ao ano. (vv.166-73)
Convém lembrar que Hesíodo descreve, nesse poema, o quotidiano
do homem simples e as dificuldades por este encontradas, mostrando sua
luta pelo estabelecimento do trabalho, sobretudo o agrícola, como princípio
basilar da justiça. Essa temática reflete-se nos versos supracitados na
expressão akédea thymón, v. 170, “um coração isento de preocupações”,
sugestiva de uma existência regida pela eqüidade, e na referência à
fertilidade do solo, contida nos versos 172-3, que sintetizam o ideal de
felicidade para um agricultor.

2
O texto pindárico apresenta o substantivo ilha no singular na expressão makáron nâson (Olímpica 2,
vv. 70-1), “Ilha dos Bem-aventurados”, enquanto em Hesíodo esse vocábulo ocorre no plural: en
makáron nésoisi (Os trabalhos e os dias, v. 171), “nas Ilhas dos Bem-aventurados”. A respeito dessa
questão PEREIRA (In: HUMANITAS, 1952: 9) afirma que os autores sectários dessa concepção
escatológica preferem a forma do plural, com exceção de Eurípides, em Helena (v. 1677). De acordo
com a referida helenista, a expressão no plural é mais indeterminada, e, portanto, mais apropriada à
idéia do além, sobre a qual nunca houve uma teoria unânime entre os antigos.

169
Estância similar à Ilha dos Bem-aventurados é apresentada pelo
poeta da Odisséia, que, no canto IV, vv. 563-8, menciona os Campos
Elísios como local destinado aos eleitos dos deuses, como Menelau, genro
de Zeus, que recebera o privilégio de ser arrebatado da vida terrena, sem
experimentar o transe da morte:
Mas os imortais te enviarão para os Campos Elísios, nas
extremidades da terra, lá onde está o louro Radamanto. Ali,
certamente, se encontra uma existência mais fácil para os
homens: não há neve, nem mesmo inverno longo, jamais chove;
mas o Oceano não cessa de soprar, de modo sempre intenso, as
brisas do Zéfiro, para refrescar os homens. (vv.563-8)
Estabelecendo-se um cotejo entre os versos desses três poetas, a
fim de se examinar o conceito de felicidade, verifica-se que a generosidade
da natureza, revelada pela amenidade do clima - seja por sua regularidade,
tendo noites e dias iguais, seja pela agradável frescura das brisas oceânicas,
seja pela fertilidade do solo -, é um ponto convergente entre eles. A
natureza é, pois, o elemento que oferece, na ótica homérica, a rhéïste bioté,
v . 565), “uma existência feliz”, na hesiódica, um akédea thymón (v.170),
“um coração isento de preocupações”, e, na concepção pindárica, é o
elemento que proporciona um estado anímico permanentemente tranqüilo.
A questão do mérito para atingir a bem-aventurança no além é
um pecto distintivo e digno de realce nos três poetas: em Homero e em
Hesíodo, a ascensão aos Campos Elísios e às Ilhas dos Bem-aventurados
é, respectivamente, uma prerrogativa divina concedida somente a heróis,
como Menelau, e aos homens da quarta geração - a raça dos heróis
semidivinos; em Píndaro, por sua vez, apenas os verdadeiramente
corajosos e justos, isto é, os nobres, podiam lograr a morada dos Bem-
aventurados. Logo, aos olhos do poeta tebano, a felicidade no além é um
prêmio concedido pela virtude e não um mero privilégio divino, destinado
a heróis semidivinos ou aos que, como Menelau, tinham certo parentesco
com um deus.

Referências bibliográficas:
BURKERT, Walter. Religião grega na época clássica e arcaica. /Griechische
religion in der archaischen und Klassischen epochen/. Tradução de M. J. Simões
Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

170
DODDS, E. R. Os gregos e o irracional. /The greeks and the irrational/. Tradução
de Leonor Santos B. Carvalho e revisão de José Trindade dos Santos. Lisboa:
Gradiva, 1988.
DUCHEMIN, Jacqueline. Pindare poete et prophète. Paris: Les Belles Lettres,
1955.
HESIOD. Works and Days. Edited with prolegomena and commentary by M. L.
West. 3th. edition. Oxford: at the Clarendon Press, 1982.
HOMÈRE. L’Odyssée. Texte établi et traduit par Victor Bérard. Paris: Les Belles
Lettres, 1956. 3 v.
________. Iliade. Texte établi et traduit par Paul Mazon. 4 éd. Paris: Les Belles
Lettres, 1957. 4 v.
________. Hymnes. Texte établi et traduit par Jean Humbert. Paris: Les Belles
Lettres, 1941.
PEREIRA. Maria Helena da Rocha. Notas a um passo de Píndaro. In: Humanitas,
v. IV (Nova Série, vol. 1), Coimbra: 1952. p. 7-12.
PINDARI CARMINA CVM FRAGMENTIS PARS I EPINICIA. Edidit Hervicus
Maehler. Bruno Snell. B. S. B. G. Teubner Verlagsgesellschaft, 1971.

171
A POLIFONIA NAS BACANTES
Tatiana Bernacci Sanchez

A partir da tragédia de Eurípides, As Bacantes – apresentada em


404 a.C., no teatro de Atenas –, temos notícia de uma das religiões não-
oficiais da Grécia Antiga, o dionisismo, de que trataremos adiante. É
necessário afirmar que foi feito um recorte, justificando assim a omissão de
tantos outros aspectos, não menos relevantes ou interessantes, acerca do
mesmo tema. E ainda, a quantidade de estudos que envolve tal divindade, e
a própria complexidade de seu mito, abarcam um vasto universo de
informações, por vezes totalmente contrárias; de maneira que não se
pretende esgotar aqui nenhum tópico.
Dioniso retorna a Tebas, sua “cidade natal”, travestido de humano,
fazendo-se passar por seu sacerdote e, como sempre, é um estrangeiro, um
xénos, que chega de forma epidêmica, pois ele toma os lugares como uma
epidemia, trazendo desordem. Marcel Detienne1 nos traz a idéia de
“Estrangeiro do Interior” – por que “do interior”? Temos por hipótese dois
aspectos:
1. Do interior em termos de Hélade, ou seja, ele não seria um deus
estrangeiro, como sempre se fala, e sim proveniente de Creta. Para tal
teoria, recorremos a Eudoro de Souza2. Além de ter sido esta a primeira
morada de Zeus, lá também Zagreu, o primeiro Dioniso, teria sofrido o
sacrifício. Bem representado pelo rei Penteu, um dos personagens da peça
em questão, está o pensamento de que Dioniso seria uma divindade inferior
e bárbara. Por trás de tal discurso, encontra-se o juízo de valor que nega
serem as características dionisíacas inerentes à natureza humana (ser
natural, instintivo e irracional). Esta é uma hipótese segundo a qual o mito
dionisíaco teria origem minóica. Já adiantamos uma característica que será
retomada mais adiante: na sociedade minóica, a divindade feminina
predominava sobre a masculina.
2. Do interior em termos fisiológicos, ou seja, Dioniso está contido,
todo ele, em seu coração – único órgão que sobreviveu quando o pequeno

1
P. 111
2
P. 17

172
Dioniso-Zagreu foi destroçado pelos titãs. O coração pulsa – movimento
semelhante ao de uma mênade, que não cessa de palpitar quando entra em
estado de êxtase. Aristóteles afirma, citado por Detienne3, que o coração tem
autonomia, “privilégio que partilha em plena fraternidade dionisíaca com o
órgão masculino, o phallós”4. Esse palpitar, cardíaco e/ou fálico, marca
também o movimento corpóreo das bacantes, pois o transe dionisíaco
começa nos pés, e, assim, a mulher salta, pula, jorra de si mesma. O mesmo
movimento perpetua-se e ratifica o valor desse gesto quando Dioniso instrui
Penteu sobre como empunhar o tirso5 corretamente, com a mão direita, ao
mesmo tempo em que se levanta o pé direito (vv. 943-944).
Vemos, assim, que Dioniso está ligado às forças da natureza – indica
o viver na selvageria. Dessa maneira, forma um par de oposição com Penteu,
que representa o viver na cultura. Propomos que tal antagonismo possa ser
visto também em termos geográficos: de um lado, temos Dioniso, que está
ligado a Creta, às divindades femininas, ao múltiplo, às forças descontroladas
da natureza, não-domesticadas, naturais e inatas ao homem, que deve estar
em comunhão com a natureza; de outro, Penteu, que representa a Atenas
racional, apolínea, singular, regrada e de total supremacia masculina. Tendo
citado Apolo, há mais uma interessante informação que a peça de Eurípides
nos oferece. Já trabalhada por muitos autores, como Nietzsche, a saber: a
oposição entre Apolo e Dioniso é um símbolo utilizado para diferentes áreas
de conhecimento, até mesmo para classificar escolas literárias. Mas Tirésias,
repreendendo Penteu por este negar-se a prestar culto a Dioniso, afirma a
respeito do deus (vv. 298-300 e 306-308):
Profeta é também este deus, porquanto o transe báquico e o
delírio têm grandes poderes divinatórios. É que, quando o deus
penetra com força no corpo, faz com que as pessoas em delírio
possam predizer o futuro.
(…)
Ainda hás de vê-lo nas rochas de Delfos, a saltar com archotes
de abeto nas planuras de dois cumes, brandindo e agitando o
báquico ramo: como ele será grande através da Hélade!
Em seguida, o coro (formado por mulheres bárbaras que
acompanham Dioniso de cidade em cidade) responde, nos versos 328-329:

3
P. 105.
4
P. 105.
5
O tirso é um bastão enfeitado com hera e ramos novos de videira.

173
Ó ancião, tu não ultrajas Febo com as tuas palavras; e, ao
prestar honras a Brômio6, o grande deus, és sensato.
Segundo Mario Vegetti7, tentou-se integrar, na Antiguidade,
Dioniso e Apolo, dois diferentes aspectos do sagrado. E para tal, chegou-se
a instalar Dioniso junto a Apolo no templo de Delfos, para ser adorado
como seu irmão. Fora da religião oficial, no Orfismo, eram eles grandes e
importantes divindades, lado a lado.
Lembramos o discurso de Tirésias nos versos 266-318, segundo o
qual, Deméter e Dioniso são os deuses mais consideráveis, pois abastecem
os homens com o sólido e o líquido – Deméter, os cereais; e Dioniso, o
vinho – ambos estão, portanto, ligados a terra e a sua fertilidade. Ao final
de seu discurso, ele ressalta importante característica dos rituais: quem for
realmente sensato não se corromperá, nem no meio das bacanais. Ou seja,
as orgias – palavra que significa “mistérios de Baco” ou “qualquer
cerimônia religiosa” – fundamentavam-se na comunhão com a natureza, no
encontro com o verdadeiro “eu”; bem diferente, portanto, do que o rei
Penteu esperava (e desejava) encontrar. A partir daí, estreitam-se ainda
mais os laços existentes entre Deméter e Dioniso. Esses deuses, que são a
personificação da fertilidade, caminham juntos desde Creta, onde havia o
complexo “Deusa Mãe/Touro Divino”, e lugar em que foram encontrados
relevos decorativos que mostram a Deusa Mãe dando à luz o touro sagrado.
Acreditamos que esse passado de Dioniso tenha sido uma influência para
que ele não se encaixe nos padrões misóginos do V século a.C.,
evidenciando mais uma diferença sua em relação ao rei de Tebas, que
afirma a Dioniso (vv. 510-514):
E essas mulheres que trouxeste contigo para serem comparsas
das tuas malfeitorias, ou as vendo, ou ponho termo ao ruído das
suas mãos a bater nos tamboris, e apodero-me delas como
escravas, para as pôr ao tear.
Nesse embate, Dioniso versus Penteu, vê-se como o deus representa
uma tradição primitiva, anterior, até mesmo matriarcal, mas ao mesmo tempo
ele é o novo, pois quer resgatar e trazer à tona esses valores da natureza
humana, ofuscados pela racionalidade (que é opressora do inconsciente).
Exatamente aí reside a perseguição promovida por Hera (além de Dioniso ser
um filho bastardo de seu marido Zeus): ela luta para impedir que o mundo

6
Brômio é outro nome de Dioniso, é o ruidoso e palpitante.
7
P. 240.

174
volte “a cair na ferocidade desregrada do estado natural”8. Erroneamente, o
trono é passado, por Cadmo, para Penteu, seu neto, um tirano assoberbado
que baixa leis visando a impedir o culto a Dioniso9.
Por que Penteu nega tão furiosamente o culto? A partir desse
questionamento, vamos observar alguns aspectos do ritual. A cada três
anos, em pleno inverno, um grupo de mulheres (o chamado tíaso),
embrenhava-se na vegetação de montanhas, como o Parnasso, vestidas com
leves túnicas, descalças, os cabelos enfeitados por ramagens de hera e
videira, e tirso em punho. Elas próprias tocavam flautas e tamboris, e
dançavam freneticamente diante do ritmo acelerado promovido pelos
instrumentos musicais – cabe ressaltar que os instrumentos de percussão
eram próprios dos rituais em honra ao deus do vinho. Essas atividades
preparavam as participantes para o grande momento do êxtase. Tomadas de
poder sobre-humano, eram capazes de atos como fazer jorrar leite de uma
simples pedra. Além disso, possuíam tal força divina que as permitia caçar,
estraçalhar (sparagmós) e matar um animal com as próprias mãos; em
seguida, praticavam o ritual da omofagia, alimentação de carne crua, daí
um dos nomes de Dioniso ser Omádio, o que se alimenta de carne crua. As
mênades, como também eram chamadas as seguidoras de Dioniso, tinham
durante o ritual seu momento de total afastamento da vida doméstica e das
atividades cotidianas. Na floresta, espaço do desconhecido, prestando
honras ao deus, encontravam a natureza, e com ela entravam em comunhão,
expressando os atributos da ausência de controle da figura masculina.
Acontece que Dioniso provoca esses laços imediatos entre homem, animais
e natureza, proporcionando experiências10 para além da cidadania apolínea
(o mesmo ocorre com as demais religiões de mistérios). E não eram apenas
as mulheres que se sentiam atraídas para o dionisismo, mas também
estrangeiros, escravos e todos aqueles concentrados à margem da
comunidade políade. Especificamente no que diz respeito aos estrangeiros,
há referências ao longo da peça, e o deus chega mesmo a afirmar que entre
os bárbaros é possível encontrar maior sensatez do que entre os helenos (v.
484), que passaram um longo tempo envolvidos na Guerra do Peloponeso.
E seu ritual tem dois princípios fundamentais: êxtase e entusiasmo, por

8
VEGETTI, M. p. 239.
9
Lembremos que Cadmo tinha um filho homem: Polidoro, que, sendo homossexual, não herda o trono.
Trata-se de um dado importante para que se tenha noção de que a sexualidade na Grécia antiga era
regrada.
10
Op. cit. p. 245.

175
meio dos quais o homem experimenta a superação de suas limitações,
ultrapassando a barreira que o divide do imortal. Assim como o Orfismo, os
mistérios dionisíacos buscam uma paz e uma harmonia que não eram
condizentes com a realidade bélica daquela sociedade e nem com a religião
olímpica. Para citar outro exemplo da proposta de igualdade social desse
deus, recorremos às palavras proferidas pelo sábio Tirésias (vv. 204-209),
personagem do drama, que prestará culto a Dioniso:
Haverá quem diga que não tenho respeito pela minha velhice, ao
preparar-me para dançar, de cabeça coroada de hera?
É que o deus não distingue se é o jovem ou o mais idoso o que
deve dançar, mas da parte de todos quer receber honrarias por
igual; quer ser engrandecido sem discriminar ninguém.
Marcante diferença de tratamento observa-se entre Dioniso e seus
seguidores, e entre Penteu e seus serviçais. Naquele caso, há compreensão,
respeito e devoção, não sendo demonstrados traços de temor por parte do
coro de mulheres, que adoram e defendem seu deus. Elas certamente têm
seus olhos voltados para o céu e orgulham-se de seu caminho, o qual
trilham sem sentirem-se obrigadas ou oprimidas. Já neste, a situação não é
a mesma, e no lugar daquela compreensão, está a submissão, e lá onde se
tem respeito, aqui se manifesta medo, e, por fim, a devoção para com esse
deus das massas é a subserviência dos trabalhadores da corte de Penteu.
Voltamos a questionar: por que Penteu nega tão furiosamente o culto?
Somando-se ao caráter libertário de Dioniso, acima apresentado, o fato de ter
Penteu recebido o trono de forma não correta, temos por hipótese que o tirano
temia perder o controle de Tebas para Dioniso, que, afinal, era seu primo, filho
de sua tia materna Sêmele. O que o rei não entendia era que Dioniso não
buscava esse tipo de poder, ele apenas queria ser honrado e considerado tal
qual um deus, oferecendo em troca seu arrebatamento. Ao mesmo tempo,
Dioniso tinha o apoio de segmentos que eram excluídos da participação ativa
na pólis: escravos, estrangeiros e mulheres, seres à margem da cidadania.
Trata-se, portanto, de um outro poder – diferença essa notável em vários
momentos da peça, mas sobremaneira nos versos 655-656, que tanto dizem, a
respeito da oposta noção de sabedoria que cada um possui:
Penteu
És muito sábio, menos naquilo em que devias sê-lo.
Dioniso
Aquilo em que mais se deve ser sábio, disso sou eu sabedor.

176
Penteu julga que “o estrangeiro” não é sábio no que deveria ser –
presumimos que se refira a atitudes como respeitar ao comando real e
obedecer à lógica precisa, afinal, trata-se de um típico tirano e sempre faz
menção ao saber comandado pela razão. Por outro lado, “o estrangeiro”
considera-se, sim, sabedor do que se deve saber: conhece aquela experiência
mais profunda, citada anteriormente, que está para além da cidadania, pois o
dionisismo pressupõe liberdade para o homem. Confundindo-se com a
própria videira, os participantes necessariamente cometem deicídio (e
teofagia), e assim o deus é “iniciado” em seus próprios mistérios cada vez
que se corta uma videira, pois é o próprio deus que se partilha.
Acreditamos que não se trata de separar o que é lógico e o que não o
é, e sim, antes, trata-se de definir qual o parâmetro para lógica, o que torna
mais complexo o tema, pois parte-se para o ponto de vista; assim, Dioniso
está apenas relacionado a uma lógica outra. As leis jurídicas podem
modificar-se, as leis de Penteu podem ser revogadas; em contrapartida, as
pulsões inconscientes e naturais, embora possam ser proibidas ou permitidas,
não podem ser alteradas por meio de comandos de permissão e proibição –
elas apenas existem, e dentro de cada ser humano. Citando Dodds11, “a moral
das Bacantes é que ignoramos à nossa custa a exigência, por parte do espírito
humano, da experiência dionisíaca”. Para Penteu e sua mãe, a experiência
dionisíaca foi bastante dolorosa, pois o contato com o deus realizou-se por
meio de sua face cruel – pois Dioniso tem essa ambigüidade marcante,
oferece a comédia e a tragédia, a alegria arrebatadora, eudaimonía, e a
desgraça horrenda. Como diz o coro (vv. 417-426):
O deus, filho de Zeus,
Compraz-se em festins,
Ama a Paz, que concede o bem-estar,
A deusa criadora dos jovens.
Em igual medida, a ricos
E modestos outorga do vinho
O deleite sem pena.
Mas aborrece aqueles que não cuidam,
De dia ou durante a noite amiga,

11
P. xlv.

177
De viver o bem-estar
Com ódio por aqueles que caluniam sua mãe e não realizam as
libações, insufla-lhes a sua manía, fazendo-os descer a uma condição
animalesca, e a tomarem parte nas bacanais. Nesse ponto, há consideráveis
divergências interpretativas, no que se refere ao estado atingido por Penteu. O
deus da alteridade provoca mudanças nos homens que partilham a experiência
dionisíaca, Penteu parece finalmente perder a máscara (elemento tão
fundamental nesse mito) e deixar vir à tona, ainda que forçosamente, o que está
em seu inconsciente, algo tão freudiano (e tão anterior ao próprio Freud), o seu
desejo em ver a mãe em meio às bacantes, e todas “como aves que acasalam,
presas na doçura do amor” (v. 958); chega até mesmo a visualizar a epifania
tauromórfica do deus, vendo-o como um touro dotado de chifres (v. 920).
Retomando a dualidade do deus, a jornada do rei aos seus delírios íntimos não
é prazerosa, pois Dioniso zangou-se – não quer mais partilhar com ele as
maravilhas sobre-humanas da experiência dionisíaca, quer, sim, que ele passe
pelo ritual do sparagmós, sendo destroçado pelas bacantes, que nele vêem um
animal. Penteu incorpora-se ao estado da natureza, da selvageria que ele tanto
luta para não integrar e/ou pertencer.

Referências bibliográficas:
BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. RJ:
Bertrand Brasil, 1999.
DETIENNE, M. Dioniso a céu aberto. Trad.: Carmem Cavalcanti. Erudição e
Prazer. RJ: Jorge Zahar Editor, 1988.
DODDS, E. R. (introduction and commentary). Euripides Bacchae. 2nd Ed. New
York: Clarendon paperbacks, 1986.
EURÍPIDES, As Bacantes. Trad.: Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Edições
70, 1998.
ISIDRO PEREIRA, S. J. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. 6ª ed.
Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1984.
NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. Trad.: Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães, 1978.
SOUZA, E. de. Dioniso em Creta. [In: Dioniso em Creta e outros ensaios: estudos
de mitologia e filosofia da Grécia antiga. SP: Duas cidades, 1973.]
VEGETTI, M. O homem e os deuses. [In: VERNANT, Jean-Pierre (dir.). O homem
grego. Trad.: Maria Jorge Vilar de Figueiredo. [Lisboa: Editorial Presença, 1994.]

178
HERÓDOTO E O ESTRANHO MUNDO DOS CITAS
Tatiana Oliveira Ribeiro

Quem não conhece a obra de Heródoto, conhece, ao menos seu


nome. Filho mais velho de Clio, patrono e instaurador do conhecimento
histórico, autor de um dos projetos intelectuais mais audaciosos da
humanidade, Heródoto inscreve-se entre os desbravadores que, secularizando
a memória, tornaram-na mais e mais humana.
O legado de Heródoto, conhecido pelo nome de Histórias, recebeu
tal denominação devido ao emprego desse vocábulo no preâmbulo de sua
vasta obra.
Ainda que, em sentido remoto, o termo historíe estivesse circunscrito
ao campo do testemunho ocular, e, por extensão, ao universo da pesquisa e da
investigação, ainda assim, o texto herodotiano é reconhecidamente uma obra
de história, tal qual se entende ainda hoje esse conceito, e tal qual já se o
entende há muito. Se, por um lado, a obra de Heródoto guarda semelhanças
com a épica homérica, no que tange à função de construção e preservação da
memória cultural –assemelhando-se assim o papel do hístor ao do aedo –; por
outro, instaura uma nova prática, ao buscar não somente preservar os feitos do
passado, mas também apresentá-los como instrumentos de entendimento do
próprio presente. É justamente por essa nova forma de pensar a relação entre
passado e presente que bem coube a Heródoto o título antonomásico, atribuído
por Cícero, de "Pai da História".
Com suas interfaces com o que viria a chamar-se de etnologia e
geografia, a obra do historiador de Halicarnaso se afirma como obra que
trata, sobretudo, da História, da história de uma guerra. Contudo, não estão
ausentes daquele vasto escrito, que bem mais tarde viria a ser dividido em
nove partes – uma para cada Musa –, as especulações religiosas inseridas
nas reflexões antropológicas de várias ordens. O relato das guerras entre
gregos e bárbaros é assim entremeado de informações de naturezas diversas
que o historiador-viajante colheu, ao ver e ouvir, nos tempos em que partiu
em busca da causa de tais conflitos.
Ainda que seu modelo historiográfico utilizado remeta a uma
antiga tradição de logógrafos, mormente à de Hecateu de Mileto, Heródoto

179
inova ao estabelecer uma comparação entre os relatos e ao formular juízos
acerca da probabilidade intrínseca a cada uma das histórias recolhidas.
Conforme pontua Arnaldo Momigliano em La Historiografia Griega
(1984: 12), o historiador jônico parece ter sido o primeiro a operar uma
descrição analítica de guerra – da Guerra Pérsica; primeiro a utilizar dados
etnográficos na tentativa de explicação da guerra e suas conseqüências.
Na forja de sua verdade histórica, Heródoto muitas vezes privilegia
a verossimilhança em detrimento da percepção empírica das fontes. Em
seus variados lógoi, seus relatos, o Historiador não só apresenta os
caracteres, os éthe, de alguns soberanos asiáticos, como também, em
muitos casos, opera a descrição geográfica e etnográfica de povos,
sublinhando seus costumes, seus nómoi, e ressaltando as diferenças e
semelhanças que estes guardam com os gregos. Gregos esses que ali são
sempre o parâmetro para a observação de qualquer cultura outra.
Conforme ressaltou François Hartog em O espelho de Heródoto (1999
[1980]: 45), os citas aparecem, nas Histórias, como um outro privilegiado. São
eles, depois dos egípcios, o povo sobre o qual o Historiador apresenta a mais
longa exposição, ocupando, o lógos cita, quase que inteiramente o livro IV de
sua obra (caps.1-144; o livro IV estende-se até 205).
Ainda que esses dois povos mereçam uma descrição minuciosa por
parte do Historiador, egípcios e citas representam na obra de Heródoto, em
seu projeto de construção identitária grega, um duplo aspecto da imagem
do outro. Se por um lado os egípcios surgem como o extremo da alteridade,
como homens que “vivem num clima outro, à margem de um Nilo de
natureza diversa da dos demais rios, e que adotaram, em quase todas as
coisas, costumes e leis inversos aos de todos os outros homens” (II, 35);
por outro, são eles portadores de uma cultura fundadora. Na terra do Nilo,
Heródoto mergulha em um passado bem distante, anterior mesmo à noção
de unidade helênica, e discursa sobre as origens que geram um discurso
sobre a Grécia e sua cultura. É precisamente essa antigüidade, quiçá
ancestralidade, que permite que o Egito seja visto, no imaginário grego,
como uma Escola da Grécia, o modelo inspirador de sua organização
religiosa – de seu panteão, dos nomes dos deuses.
Já os citas, também extremo de alteridade, são representados de
modo a evocar a imagem de um mundo que traduz um primitivismo, que
tange a fronteira da esfera do selvagem, e que pode mesmo trazer à
lembrança a imagem da terra dos Ciclopes, descrita por Homero em sua
Odisséia (IX, v.106 ss). À semelhança do território dos Ciclopes, a Cítia é

180
apresentada como espaço não cultivado, desprovido de sociabilidade,
isolado e sem limites determinados. Os citas de Heródoto não cultivam a
terra, não possuem cidades nem muralhas, nem moradia outra senão suas
próprias carroças. Seus limites são demarcados pelos rios, que lhes servem
de defesas naturais (IV, 46).
Ao contrário do Egito, o território cita “nada possui que possa
despertar o maravilhamento, exceto os rios que o banham” (IV, 82).
Acerca de seu papel na obra de Heródoto, como lembra ainda
Hartog (1999 [1980]: 245-51), poder-se-ia dizer que o thôma – que é o que
se sente diante do absolutamente diferente, do maravilhoso, do curioso;
algo como o espanto – é um produtor geral da narrativa, à medida que é ele
o determinante da composição, do que deve ser dito ou escrito. É
exatamente isso o que afirma Heródoto, no livro II. 35, ao narrar sua
trajetória no Egito: “passo então ao Egito, prolongando meu discurso, pois
encerra mais maravilhas do que qualquer outra região e oferece o maior
número de obras que ultrapassam o que se pode dizer delas”.
Já nas palavras iniciais de Heródoto, no famoso proêmio de suas
Histórias, fica claro o relevo do conceito de thôma: “Esta é exposição da
investigação de Heródoto de Halicarnasso, para que nem os feitos dos
homens sejam esquecidos com o tempo, nem as grandes e maravilhosas
ações (érga thomastá) realizadas tanto pelos gregos, quanto pelos bárbaros
fiquem sem glória”.
Nômades e não possuidores de thomasía alguma, a representação
dos citas vai-se construindo na narrativa herodotiana por meio de uma série
de negações: no que concerne ao modo de vida, os citas não comem pão,
não lavram a terra, não semeiam, não habitam casas, não possuem cidades e
muralhas. Privados do estatuto de ‘comedores de pão’ (sitóphagos), não se
pode perceber na terra dos citas o que se identificar-se-ia como o ‘trabalho
dos homens’ (cf. Hartog, 2004 [1996]: 34). Ocupantes do território cita, os
arimaspos (IV, 13 e 27) , assim como os ciclopes de Homero, são seres de
um só olho, sem leis, desconhecedores da agricultura.
Quanto aos costumes religiosos, os citas não possuem templos,
estátuas, nem altares; quando sacrificam, não acendem fogo, não
consagram primícias, não aspergem libações. Todo esse conjunto de
negações, como bem observou Hartog (1999 [1980]: 223), faz dos citas, em
certa medida, a imagem do não civilizado, traduz a imagem do nômade
como ápolis. E para os gregos, mais precisamente para os gregos da Atenas
do V século que constituíam a audiência de Heródoto, é justamente a pólis,

181
com suas instituições, que consolidava sua identidade. Ser ápolis era,
portanto, para aquela audiência um quase não ser ninguém. Uma condição
potencialmente trágica, na qual se encontraram temporariamente o Édipo
sofocliano, o Hipólito euripidiano e o Polinices esquiliano.
Território de confins, a Cítia representa no imaginário grego o
espaço do deserto, o território inóspito. Nos versos iniciais (1-2) do
Prometeu Acorrentado, é para a Cítia que o herói da tragédia esquiliana é
conduzido, a fim de ser encadeado por ordem de Zeus; conduzido para uma
'terra longínqua', o território dos Citas, 'deserto sem humanos'. O
distanciamento da terra cita é mencionado ainda no verso 416 do Prometeu
Acorrentado, onde se lê que as hordas citas ocupam 'os confins do mundo',
um espaço para além da cultura.
O tratado hipocrático Ares, águas e lugares, apresenta também uma
descrição da terra cita, onde se tem que “o chamado deserto dos citas é um
platô, coberto de pradarias (...) Precisamente nesse lugar os citas passam a
vida, e são chamados de nômades porque não possuem casas, mas moram
em carroças” (XVIII. 2).
É a partir desse imaginário da Cítia construído pelos gregos como
espaço do deserto e território dos confins que Heródoto opera sua
representação dos citas. Não obstante, o Historiador não se limita a
reafirmar essa imagem da terra Cita, o que, em certa medida, significaria
reduzir sua classificação. Heródoto nos apresenta uma Cítia que é formada
por vários desertos e por várias margens; seus citas, longe de constituírem
um povo único, apresentam-se como uma pluralidade de povos que habitam
um território ocupado também por homens de outras raças. Homens que
possuem um nómos distinto e, por vezes, graus diferenciados daquilo que
os gregos entendiam por selvageria. Os andrófagos, por exemplo, são os
que conservam hábitos mais selvagens, não considerando a justiça, não se
valendo de nenhum nómos (IV. 106).
É a partir desse inventário das diferenças que Heródoto constrói
sua imagem dos Citas. Ocupantes de espaços diversos, detentores de
caracteres diversos e nómos distinto, os citas têm por traço fundamental o
nomadismo. Passam da Ásia à Europa, caracterizando-se sobretudo pela
mobilidade. Não europeus, os citas de Heródoto são asiáticos que transitam
entre mundos, sem reconhecer a separação fundamental entre Europa e
Ásia. (Woortmann, 2000: 27). Sem cidades, sem muralhas, sem semeadura,
os citas têm por 'código de sua alteridade' o nomadismo, como bem
ressaltou Hartog. Assim, no imaginário dos gregos, que tanto prezavam a

182
vida na cidade; e sobretudo dos Atenienses, que tanto reivindicavam sua
autoctonia, os citas são aqueles que não têm lugar, que não delimitam
fronteiras e que talvez pudessem mesmo ter por nome de 'ninguém'.

Referências bibliográficas:
CAIRUS, H. F e RIBEIRO Jr, W.A. Textos hipocráticos: o doente, o médico e a
doença. RJ: Editora FIOCRUZ, 2005.
ESCHYLE. Les suppliantes. Les perses. Les sept contre Thèbes. Prométhée
enchaîné. Texte établi et traduit par Paul MAZON. Paris: Les Belles Lettres, 1995.
HARTOG, F. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. BH:
Editora UFMG, 1999 [1980]
__________. Memória de Ulisses. Narrativas sobre a fronteira na Grécia antiga.
BH: Editora UFMG, 2004 [1996].
HERODOTE. Histoires. Texte établi et traduit par Ph.-LEGRAND. Paris: Les
Belles Lettres, 1946. 11 vols.
HOMERI. Odyssea. Recognovit P. Von Der Mmvehll. Stuttgart: Teubner, 1993.
MOMIGLIANO, A. La historiografia griega. Barcelona: Grijalbo, 1984.
WOORTMANN, K. O selvagem e a História. Heródoto e a questão do Outro. In:
Revista de Antropologia, v.43, n.1. p.13-59.

183
TEXTOS BAILARINOS
Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa

Introdução
Apresento-lhes algumas reflexões sobre a inserção de ‘citações’ de
narrativas míticas em textos de Plutarco e de Luciano com o intuito de
mostrar movimentos que se dão de um texto para outro, bem como os
efeitos de expansão do pensamento provocados nesses movimentos, que
chamo de ‘dança textual’ e ‘dança cognitiva’.
Subjaz a essas metáforas, um tanto simplórias, é verdade, o
entendimento do texto como uma produtividade1 nos moldes de Kristeva,
ou seja, o texto será tratado como uma infinidade dinâmica e
translingüística.
Gostaria ainda de evidenciar, sustentada por Genette, que observo
o texto como o resultado de um processo que procura “fazer o novo com o
velho”. Contudo, no que diz respeito a Genette e aos textos específicos que
vou discutir, não se trata de fazer o novo com o velho ‘palimpsestamente’,
porque não há nesses textos que ora observo a intenção de produzir objetos
mais complexos e mais atraentes do que os que antes foram ‘fabricados’.
Poderíamos talvez afirmar que o texto de Luciano, aqui observado, parece
propor uma função nova que se superponha à antiga para sofisticá-la2, mas
ao contrário do que afirma Genette, essa prática atua no sentido de
simplificar o modelo original.
Sem dúvida, além de conceitos forjados por Kristeva e Genette,
sustento-me em conceitos advindos dos estudos teóricos de Bakhtin, o
conceito de dialogia e polifonia. Mas, no caso dessa exposição, não se trata
de usá-los em sentido estrito, pois nos textos de Plutarco e de Luciano que
vou abordar as vozes que surgem têm independência relativa e não total
como a que propõe Bakhtin em sua obra Problemas da poética de
Dostoiéviski. Acrescente-se que tais vozes não se colocam em contraponto,
1
Segundo Kristeva, o texto é produtividade e isso significa que “1- sua relação com a língua da qual faz
parte é redistributiva (destrutivo-construtiva) sendo por conseguinte abordável através de categorias
lógicas mais do que puramente lingüísticas; 2- e uma permutação de textos, uma intertextualidade: no
espaço de um texto, vários enunciados, vindos de outros textos, cruzam-se e neutralizam-se.”
(KRISTEVA, 1980, p. 143).
2
Essa intenção manifesta-se em outros textos de Luciano que não o que aqui tratamos.

184
mas em graciosa parceria. Elas formam, antes, um par que dança num
espaço delimitado. Não as vejo como se cada membro, isoladamente,
produzisse diferentes movimentos de dança. Elas, a partir de um centro de
gravidade, fabricam movimentos de expansão conjunta ao som de muitas
outras vozes.
Tenho, portanto, motivos para não me servir dos termos
tradicionalmente estabelecidos. Esclareço, então, que tomo a metáfora da
dança porque minhas pretensões são mais pontuais e limitadas. Pretendo
apenas observar uma concordância graciosa que produz, em um só espaço e
em uma só cadência, um movimento em grau elevado de harmonia,
mobilidade e leveza e, em seguida, mostrar que esse movimento que se faz
ao som agradável de uma polifonia mítica, ou seja, passado e presente se
tornam um tempo fora do tempo. Assim, o que faço, é localizar diálogos –
em ‘pas de deux’ - e neles realçar movimentos de expansão que se fazem
ao som de uma combinação agradável de vozes atemporais. Pensamos em
um bailado lingüístico e simbólico.

Plutarco e Homero
Sacerdote de Delfos, Plutarco3, foi autor de inúmeras obras, dentre
elas um conjunto muito conhecido de textos que a tradição reuniu sob o título
de Vidas. Dentro do corpus de obras que lhe são atribuídas, há uma diatribe
(exercício de conversação), intitulada Po/teron ta\ th~j yuxh~~j h22 ta\ tou~
sw/matoj pa/qh xei/rona - Se os sofrimentos da alma são piores que os do
corpo, encontrada no Catálogo de Lâmprias4, sob o nº 208, que nos parece
interessante para abrir o nosso assunto. Embora sua autenticidade seja
questionada, o trecho segue grosso modo o estilo de Plutarco. Willamowitz
acreditava que essa diatribe poderia integrar um tratado maior juntamente
com outro intitulado Se o vício pode causar infelicidade. A nossa escolha,
porém, deveu-se a dois motivos: ao fato de que Plutarco soube, como
ninguém, escutar vozes passadas e colocá-las em harmonia em suas obras e à

3
Nasceu em Queronéia, Beócia, por volta do ano 45 de nossa era e veio a falecer em 120. De família
nobre, seu pai era Autóbulo, seu avô Lâmprias. Aprendeu filosofia e matemática com Ammonio, um
filósofo neo-platônico. Assumiu muitos cargos públicos. Foi sacerdote de Delfos, onde revitalizou o
culto a Apolo. O Catálogo de Lâmprias atribui a Plutarco 227 obras, das quais se conservam 78 títulos.
Esquecido na Alta Idade Média, Plutarco veio a ser divulgado pelo trabalho do bizantino Maximus
Planudes. Sua obra foi vertida para várias línguas no período do renascimento.
4
Na época medieval esse material menor foi reunido sob o título de Moralia, juntamente com textos
referentes a retórica, temas religiosos, filosóficos e literários.

185
riqueza e amplitude que uma só de suas citações – que vou examinar aqui –
pôde angariar para o texto que a acolheu.
Em Se os sofrimentos da alma são piores que os do corpo, Plutarco
discorre sobre a origem dos males na vida humana e sobre os efeitos que as
doenças e vícios têm sobre o corpo. Nessa proposta, como lhe é habitual,
Plutarco fundamenta suas hipóteses e sugestões em autores diversos, de
épocas diversas. Na diatribe que estamos investigando, o sacerdote de Delfos
abre sua fala a partir de Homero, que é citado nominalmente nesses termos:

#Omhroj me\n e0pible/yaj ta\ Homero, depois de observar toda a raça


qnhta\ tw~~n zw/?/|wn ge/nh kai\ mortal dos seres e de comparar uns com
pro\j a1llhla sugkri/naj kata\ os outros, segundo suas vidas e seus
tou\j bi/ouv kai\ ta\j diaith/seij, hábitos, apregoou que nada é:
e0cefw/nhsen w9j ou0de/n e0stin “mais miserável que o homem,
“o0izurw/teron a0ndro/j, de tudo quanto sobre a terra respira e
pa/ntwn o3ssa te gai~~an e1pi também se arrasta;”
pnei/ei te kai\ e3rpei:” Então, já que Homero deu ao homem o
prwtei~~on ou\k eu0tuxe\j ei0j primeiro lugar em relação a uma
kakw~~n u9peroxh\n a0podidou\j tw|~ desditosa supremacia de males; nós, da
a0nqrw/pw|: h9mei~~j d 0 w3sper h1dh mesma maneira, a partir de agora, o
nikw~~nta kakodaimoni/a|to\n triunfante em desventura, o homem, que
a1nqrwpon kai\ tw~~n a1llwn de todos os outros animais é alardeado
a0qliw/taton zw|w / n padecentíssimo, ele com ele mesmo
a0nhgoreume/non au0to\n au(tw|~ vamos comparar, por um jogo entre seus
sugkri/nwmen, ei0j i0di/wn kakw~~n próprios males e, para tanto, vamos
a0gw~~na sw~ma kai\ yuxh\n dividir corpo e alma, o que não será
diairou~~ntej, ou0k a0xrh/stwj inútil, mas também absolutamente
a0lla\ kai\ pa/nu deo~~ntwj, i3na necessário, a fim de que possamos
ma/qwmen pó/teron dia\ th\n aprender se é através da sorte ou se por
tu/xhn h2 di0 e9autou\j a0qliw/teron nós mesmos que mais penosamente
zw~~men. vivemos.

O trecho inicial dessa diatribe de Plutarco dá a cadência que


marcará todo o texto. Estamos em guerra, fazemos dupla com Homero que
nos leva para o canto 17 da Ilíada. E se o nosso condutor é Plutarco, não
nos esqueçamos de que o ‘partner’ é Homero. Acrescente-se que, em se
tratando do texto analisado – Se os sofrimentos da alma são piores que os
do corpo - quer em relação ao corpo, quer em relação à alma, citar Homero
e, sobretudo, a Ilíada, recuperar sua totalidade ausente como poema épico é

186
afirmar que tanto no corpo quanto na alma vivemos em meio a uma guerra
e guerra que não é de pouca monta!
Mas o que significa estar em guerra na Antigüidade?
Desnecessário é afirmar que ela faz parte do dia-a-dia dessas sociedades
antigas. Recordemos da guerra dos poemas, a guerra de Tróia, ou das
magníficas guerras Médicas, ou da fratricida guerra do Peloponeso...
Porém, dentre as muitas guerras do mundo antigo, Plutarco escolheu a
remotíssima mítica e épica guerra entre os gregos e os troianos. Essa
articulação consciente e intencional do autor intenta, e realiza de fato,
assimilar o discurso homérico no nível simbólico, semântico e lingüístico.
Quando digo que Plutarco intenta assimilar o discurso homérico no
nível simbólico refiro-me a um movimento provocado pelo autor que leva
seu ouvinte para um tempo que não é histórico, um tempo que não é tempo
mas literatura mítica, que por ser fora do tempo está na literatura e em
todos os tempos, abarcando-os e envolvendo-os. Quando digo que Plutarco
assimila o discurso homérico no nível semântico, digo que ele nos leva
para o campo semântico, ou melhor, para o espaço de um campo de
batalha. Por fim, ao afirmar que Plutarco assimila o discurso homérico no
nível lingüístico, refiro-me ao processo de produção de um texto, o Se os
sofrimentos da alma são piores que os do corpo, que incorpora em si dois
versos preciosíssimos do canto 17 da Ilíada.
Assim é que Plutarco está dançando no escuro mítico, mas com
Homero, não com Lars Von Trier. Harmonia simbólica, dialogia e
polifonia bakhtiniana que sai do espaço do texto e invade o mito; cadência
guerreira de hexâmetros, passos de uma dança que se realiza no campo de
combate e no espaço da arenga de quem fala. Agora, Homero e Plutarco
fazem par na dança viva e cruenta de Ares e nós, os ouvintes e leitores de
Plutarco, aprenderemos que nosso corpo e nossa alma enfrentam inimigos
terríveis, inimigos interiores. Nas palavras do próprio Plutarco:
sauto\n e2ndoqen a0noi/ch||j, a ti mesmo, por dentro, se abrires, coisa
poiki/lon ti kai\ polupaqe\j variada e susceptível a muitas afecções,
kakw~~n tamiei~~on eu9rh/seij kai\ encontrarás; um celeiro de males, um
qhsau/risma w#j fhsi tesouro - como disse Demócrito - que
Dhmo/kritoj, ou0k e1cwqen não vem de correntes externas, mas
e0pirreo/ntwn, a0ll’ w3sper como coisas que têm fontes profundas e
e0ggei/ouj kai\ au0to/xqonaj autóctonas, através das quais brota a
phga\j, e)xo/ntwn, a4j a0ni/hsin h9 maldade que é transbordante e
kaki/a polu/xutoj kai\ dayilh\j abundante por causa das paixões.
ou]satoi~~j pa/qesin.

187
Regendo os passos da dança, Plutarco, ao citar Homero, define sua
individualidade, estabelece uma assinatura, marca sua leitura e toma o
poeta antigo para fazer dele seu ‘partner’, para tomar dele, como se toma
de um parceiro de dança, concordância de movimentos no compasso de
guerra. Nessa perspectiva, marcados pelo ritmo do combate, vamos analisar
qual guerra será mais temerária: se a que trava o corpo com as doenças ou
se aquela que amarga a alma com seus vícios.
Entretanto, vale detalhar um pouco mais. Lembremos com que ardor
os guerreiros descem de seus carros e em que duelos bem orquestrados e
‘coreografados’ eles combatem até que um deles morda com os dentes a terra.
Recordemos as panóplias. Cada guerreiro com a sua. O escudo, as couraças
metálicas decoradas com emblemas apotropaicos, o capacete, as perneiras
(cnêmides), as braçadeiras, a lança de madeira com ponta aguda de ferro ou
bronze e a espada curta para o combate corpo a corpo.
– Mas, afinal, em que ponto de Homero estamos? Onde estão os
versos citados por Plutarco? - No canto das façanhas de Menelau.
Pátroclo, que tinha entrado em combate revestido pelas armas de
Aquiles, foi abatido pelos troianos. Menelau se pôs a girar à volta de seu
cadáver. Vigiava, com lança e escudo, o corpo inerte de Pátroclo. Contra
Menelau avançava Euforbo. Homero compara Euforbo a uma pantera, a um
leão e mais, a um javali feroz que deseja os espólios sangrentos da vítima.
Menelau, aos gritos, rechaça o inimigo que avança.
Bastava recuperarmos a visão dessa cena e imediatamente
perceberíamos o tom de toda a diatribe de Plutarco. Há um corpo inerte
sobre o qual avançam os inimigos. Há um defensor forte e bem equipado.
Mas vamos além, mesmo porque estamos somente nos versos que vão de 9
a 30 e a citação de Plutarco está, exatamente, nos versos 446 e 447.
Diante dos gritos de Menelau, Euforbo não esmorece e ataca. Ele
quer não só o espólio de Pátroclo, mas a cabeça do Atrida que defende seu
corpo. Deseja levá-la e entregá-la ao pai Panto como desagravo pelo irmão
morto em combate pelo mesmo Menelau.
Reagindo, o Atrida atinge o adversário na garganta e atravessa-
lhe o pescoço. Euforbo tomba por terra. Agora é Menelau quem será
comparado a um leão e, através de comparações, o mundo animal convive
com o humano. Estamos no verso 61.
Contudo, logo e poderosamente, sobre Menelau, por ordem de
Apolo, investe Heitor. Menelau desanima e reflete consigo: ‘Que fazer,

188
desistir do espólio precioso de Euforbo e abandonar o corpo de Pátroclo
ou enfrentar Heitor e seus companheiros?’ Entre dois corpos inertes, o de
Euforbo, que lhe confere um bem material, o espólio e o de Pátroclo que
significa um valor moral, Menelau se divide e, com pesar, como um leão
acuado, abandona o corpo de Pátroclo. Todavia, avistando Ájax, grita por
auxílio e atravessam, ambos, com furor, as primeiras fileiras. Alcançam
Heitor, que já arrasta o corpo de Pátroclo, porque pretendia cortar-lhe a
cabeça e jogar o restante para os cães. Mas Ajax, contra Heitor,
circundando o corpo inerte de Pátroclo se põe como um leão ao redor dos
filhotes. Recua o filho de Príamo carregando consigo as armas sobre-
humanas de Aquiles que revestiam o corpo do filho de Menetes.
Plutarco é atento para as vozes do canto 17. Ouve os brados de
Menelau, vê o movimento de assistência de Ájax e aprende que na defesa do
corpo inerte daquele que está acometido de afecções também os gestos devem
ser os mesmaos. Plutarco aprendeu a coreografia do combate e diz que

“ei]q’ oi9 me\n kalou~~si tou\j “... Então, porque percebem do que
i0atrou/j, ai0sqa/nontai ga\r w[n precisam contra o que os fazem doentes
de/ontai pro\j a4 nosou~~sin: oi9 de\ uns chamam os médicos; outros fogem
feu/gousi tou\j filoso/fouj...” dos filósofos...” assim pensando
[...] le/gomen o3ti koufo/tero/n “dizemos que é mais leve a cegueira que
e0stin o0fqalmi/a mani/aj kai\ uma loucura e a gota que um delírio, já
poda/gra freni/tidoj, o9 me\n que o que as percebe chama o médico
ga\r ai0sqa/netai kai\ kalei~~ to\n aos gritos.”
i0atro0n kekragw/j.”

Mas estamos apenas no verso 120 e precisamos chegar ao verso 446.


Ájax vai ao socorro do Atrida. Heitor retrocede. Glauco o
repreende. Heitor convida-o para o combate juntamente com os demais
troianos. Enquanto estes avançam, Heitor reveste seu corpo com as armas
do Pelida que protegiam outrora o corpo de Pátroclo. Neste ponto, Zeus que
assiste a cena do alto do Olimpo vê e lamenta a imprudência do guerreiro
troiano que, revestido de armas poderosas e possuído por Ares, avança aos
gritos. Com Heitor vão Mestles, Glauco, Medonte, Tersíloco, Asteropeu,
Disenor, Hipoto, Énomo, Foro e Crômio.
Ciente do perigo que agora impende sobre três corpos – o de
Pátroclo, o do Atrida Menelau e o dele próprio – Ájax ordena a Menelau que
chame outros companheiros. Menelau convoca o filho de Oileu, convoca
também Idomeneu e Meríones. Solidários, muitos acorrem em seu auxílio.

189
Mais numerosos, os Aqueus começam a vencer a batalha. Em
debandada os troianos fogem, entretanto Hipoto, furtivo, já arrastava o
corpo de Pátroclo pelo pé quando foi ferido por Ájax. A disputa recrudesce.
Entra em cena novamente Heitor e com ele Forco. Ájax rechaça-os todos.
Apolo incita Enéias, que se junta a Heitor. Na refrega morrem Leócrito,
Apisaon e Esquédio. Os melhores, inimigos entre si, cercavam o corpo
inerte de Pátroclo no combate que perdurou todo o dia até que os cavalos
de Aquiles, imóveis, com a cabeça inclinada para o chão, saudosos de
Pátroclo, começam a chorar. Comovido, Zeus lamenta a sorte deles e
exclama, no verso 446, que não há nada ‘mais miserável que o homem de
tudo quanto sobre a terra respira e também se arrasta.’ Ei-nos no verso que
buscávamos. Vejam a amplitude que ganha o texto de Plutarco
acompanhado pelas muitas vozes míticas que falam em Homero. Zeus é
seu verdadeiro emissor. Na voz de Zeus retumba a triste sentença.
Tomemos o ‘leitmotiv’ do canto: a disputa pelo corpo de Pátroclo e
pelas armas de Aquiles. Posse e proteção fazem par nesta dança de guerra.
Atemporais, posse e proteção fazem par na diatribe de Plutarco. Homero e
Plutarco dançam em ritmo de guerra uma dança pela vida. A apropriação de
Homero – é certamente muitíssimo oportuna e familiar para o ouvinte de
Plutarco. O pranto dos cavalos falantes diante da degradação dos corpos
combatentes por causa da desmedida e da ambição revela o absurdo a que o
ser humano pode chegar. A adequação e propriedade dessa citação se fazem
na disputa por um corpo; no ataque de inimigos; na desmedida e furor dos
atacantes; na passividade do corpo e, por fim, no pedido de auxílio.

Luciano e Faetonte
Contudo o que nos leva a aceitar com facilidade uma verdade
construída pela associação de vozes remotas de um tempo em que cavalos
podem falar, um tempo em que deuses combatem junto a homens? O que
nos leva a aceitar o mito e entender a situação de um corpo que no nosso
tempo se expõe a inimigos de todo o tipo e que combate com eles em lutas
homéricas?
Sabemos que mitologia é recorrente na literatura antiga. Sabemos,
também, que os autores antigos nada têm de ingênuos. São autores que
sabem que fazem literatura e que discutem entre si a melhor forma de fazê-
la. Ora, destas coisas sabendo, vamos para a segunda parte de nossa fala na
intenção de mostrar que esses movimentos simbólicos, semânticos e

190
textuais de que falei se dão também no pensamento e adentrando o
pensamento, podemos falar de mitos.
A idéia não é nova, é antiga.
Em um prolaliá5 de Luciano de Samósata, autor do séc. II de nossa
era, há uma crítica mordaz quanto à utilização da mitologia para a
explicação de fatos e realidades ordinárias. Segundo Luciano, existia no
seu tempo uma história que dizia que os álamos às margens do rio Erídano
eram as irmãs de Faetonte, que derramavam suas lágrimas de âmbar pelo
irmão querido que se afogou nas águas daquele rio ao cair do carro do sol.
Pouco sabemos de Faetonte, o filho de Hélios que foi precipitado
céu abaixo. Nosso conhecimento advém apenas de citações e alusões
curtas. Da tragédia Faetonte (frag. Nauck, 779) de Eurípides existem
somente fragmentos.
Qualquer estudioso de cultura clássica vive acostumado e se
satisfaz plenamente com fragmentos e ruínas. Não há lástima nisso, porque,
nessa arqueologia, descobrem-se tesouros, palavras preciosas que
reconstroem mundos e pensamentos. Isto é o que veremos nos versos que
cito agora, pois é por meio deles que aprenderemos qual foi a razão da
queda do Helíada. Trata-se, portanto, de um trecho tirado da fala do
pedagogo que na peça faz as vezes de narrador6, descrevendo o ocorrido
antes da catastrófica queda, quando Hélios dá instruções ao filho para bem
dirigir o carro solar. Hélios diz:

“e1la de\ mh/te Libuko\n ai0qe/r’ “Avança, mas sem jogar [o carro] para o
ei0sbalw/n: lado do éter líbio,
kra~sin ga\r u(gra\n ou0k e1xwn, pois [no éter líbio], que não tem clima
a9yi~da sh\n úmido, tua roda
ka/tw dih/sei ... para baixo vai derrapar7...
i3ei d’ e0f’ e9pta\ pleia/dwn Vai fazendo corrida acima das sete
e1xwn dro/mon... Plêiades...”
tosau~t’ a0kou/sav pai~v Ouvindo tais o menino agarrou as rédeas
e1maryen h9ni/av: E açoitando o flanco das condutoras
krou/sav de\ pleura\ aladas,
pterofo/rwn o0xhma/twn Deixou [as] ir; elas, então, voam pelos
meqh~ken, a4i d’ e1ptant’ e0p’ recôncavos do éter.

5
Prolaliá é o que se chamava de ‘exercício de retórica’.
6
Adoto, de Lesky, a identificação de ‘pedagogo’ para a personagem que fala no trecho. Apud. Diggle in
Phaethon, p.41.
7
Adoto para a tradução a correção do termo grego diései por dioísei. Diggle, Phaethon. Cambridge:
Cambridge University Press, 1970. p. 136.

191
aiqe/rov ptuxa/v. O pai, atrás, montado no dorso de Sírio
path\r d’ o1pisqe nw~ta Cavalgava advertindo o menino: por
seirai/ou bebw\v aqui, vai
i3ppeue pai~da nouqetw~n: Aqui! Vira o carro, aqui.”
e0kei~s’ e1la,
th|de stre/f’ a3rma, th|de....”

– Que ensinamento podemos tirar daí? – É fácil. Se Faetonte deve


evitar o ar líbio porque ele tem um ar seco (xerós) e sem mistura8, então a
ausência de mistura é perigosa.
As palavras ar (aer) e mistura (krasin) têm longa história na
filosofia grega, todavia não vamos percorrer esse caminho.
Voltemos a Faetonte. O mito narrado por Luciano explica, de
forma concreta, a origem do âmbar, um 'mineralóide' transparente e
cristalino de grande valor comercial que, em palavras míticas, é cada uma
das lágrimas solidificadas das irmãs de Faetonte. O nome da obra de
Luciano a que me refiro é Acerca do âmbar ou os cisnes. Nela Luciano
confessa que sonhava um dia poder visitar o rio Erídano e lá colher em sua
túnica todo o âmbar - caído dos álamos em forma de lágrimas - que
pudesse. Seu projeto foi um fracasso. Luciano revela que visitou o Erídano
e às suas margens tornou-se motivo de riso para os nativos da terra que
argumentaram, com razão, que seria inconcebível pensar que, numa região
onde álamos chorassem âmbar, trabalhadores fossem submetidos – pela
necessidade de sobrevivência - a fazerem inúmeras viagens rio abaixo e rio
acima com visitantes como Luciano para ganharem apenas dois óbolos por
cada uma delas e, ainda, ficarem por toda a vida a remar e arrastar barcos
contra a corrente em lugar de simplesmente colher âmbar das árvores.
Sem dúvida, credulidade infantil é pensar em cavalos e árvores que
choram e em deuses que combatem com homens e dirigem carros no céu.
Por outro lado, o que chamamos de ingenuidade despropositada talvez possa
ser visto como um movimento gracioso do pensamento, ou, em termos mais
simplórios, ‘dança cognitiva’. Nessa dança pode-se ver ‘pirouettes’
delirantes, feita a dois, pode-se ver, ainda, voltas completas, saltos e
mergulhos espetaculares no ar. Em expansão vertiginosa o pensamento dança
sem perder seu centro de equilíbrio. Vertigens de teórico?

8
A palavra grega que significa, estritamente, mistura de elementos – frio com quente, úmido com seco e
que aqui traduzimos por clima é ‘krasin’.

192
Suponhamos que existam apenas duas formas de raciocinar. Parto
de uma divisão arbitrária, mas que julgo funcional. Prefiro refletir sobre o
limitado para, a partir dele, entender o ilimitado. Suponhamos que essas
duas formas sejam as seguintes:
– uma que se utiliza da sensação e que aufere das coisas tangíveis e
sensíveis o conhecimento. Essa forma de raciocínio os gregos chamavam
de ‘aísthesis’.
– e outra que se utiliza do raciocínio que vai para além dos dados
fisicamente percebidos para alcançar o conhecimento pelas coisas
abstratas, menos tangíveis pelos sentidos. A essa forma de raciocínio os
gregos chamavam ‘nóesis’.
Entre os filósofos antigos essas duas linhas de apreensão da
realidade às vezes geram conflitos. Entretanto, na literatura a sensação é
matéria de elaboração de pensamento textual e, nesse sentido, tanto o
pensamento abstrato, a ‘nóesis’, quanto o pensamento concreto, a ‘aísthesis’,
são meios eficazes para a produção de textos. Então, suponhamos que essas
formas de pensamento, esses meios de chegar ao conhecimento possam
interagir uns com os outros, fazendo pares, dançando uma dança cognitiva.
Suponhamos que nesses movimentos o pensamento lógico se insira no
pensamento concreto e que com muita facilidade esse mesmo pensamento
concreto faça o mesmo com o pensamento lógico. Parece-me que a literatura
se constrói por uma reciprocidade dessas formas de pensar, uma certa
‘cortesia’ que mantêm os ‘partners’ durante a dança. Estamos agora num
terreno mais amplo que o do texto, um terreno que meios diferentes de
pensamento que interagem na produção do que talvez se possa chamar de
‘transmidialidade cognitiva’ e que consiste no movimento poético de apagar
a motivação intelectual em favor de associações sensíveis e físicas e, vice-
versa, no movimento poético de apagar as sensações e buscar as abstrações.
A interação e cumplicidade de uma forma de pensamento com a
outra permite a criação de imagens compósitas que devem atingir o que
nunca será visto concretamente, a saber, nas nossas narrativas, os cavalos
homéricos que lamentam a degradação humana, os deuses guerreiros, os
álamos com suas lágrimas de âmbar e o carro de sol9. O acolhimento

9
Muito provavelmente os gregos conheceram os álamos e o âmbar. Aqueles que nunca viram o âmbar
podem imaginá-lo a partir das seguintes características: ele tem a cor amarela, alaranjada, vermelha,
marrom ou dourada. Há também o âmbar azul e verde. É amorfo, fluorescente e tem eletricidade
estática. Quanto ao rio Erídano, alguns dizem ser um rio lendário - e se for assim - também os gregos
desconheciam-no.

193
integral dessas imagens pode ser encarado como uma credulidade ridícula,
um delírio poético, uma narrativa absurda. Porém, afirmo que o
estabelecimento desta ‘dança cognitiva’ para o raciocínio científico e
abstrato é enriquecedor.
Se seguirmos a linha de Luciano no ‘prolaliá’ examinado, as
narrativas fabulosas de um tempo mítico devem ser destruídas porque são
meras charlatanices aprendidas inadvertidamente. Luciano propõe
substituí-las por narrativas produzidas de forma simples, sem mistura, com
desenvolvimento linear e sem qualquer mitologia (haploikòn kaì ámython -
simples e sem mito). Para ele pensar miticamente é mergulhar o objeto
pensado num meio diverso que o comum, a saber, o ar. O resultado dessa
forma de pensamento é um deslocamento e uma ampliação enganadores.
Luciano é arguto, ele define a mitologia pelo processo que hoje chamamos
de refração.
Diante dessa argumentação, não há quem queira tolerar os mitos
como processo razoável para aquisição de conhecimento. Os mitos são uma
interpretação desviante e dilatadora. Sim, Luciano ter-nos-ia (con)vencido
da periculosidade do mito10, da periculosidade que há em se misturar meios
de conhecimento, se não tivéssemos conhecido Plutarco; dele tomaremos
dois outros tratados para resolver o impasse: De Liberis e De audientis
poetis. No primeiro desses, já na sua introdução, Plutarco coloca um
problema que até os dias de hoje inquieta pais e educadores – como educar
os filhos para se tornarem cidadãos livres, homens de bem e felizes? Ele
próprio responde afirmando que se deve evitar a improvisação e os
exageros além de cuidar para não cair na pobreza de estilo que torna o
ensino árido e ineficaz.
Ao tratar do cuidado com o estilo, no tratado De Liberis, Plutarco
demonstra claramente a intenção de desenvolver na criança,
simultaneamente, o gosto e a prática pela filosofia e pelas artes. O autor
justifica-se afirmando que as artes são fontes de prazer e que a filosofia é
remédio para os sofrimentos e para as debilidades da alma. Há que se
ressaltar, contudo, que a filosofia privilegia a verdade enquanto as artes
buscam a ‘mímesis’.
E é nesse ponto que, parece-nos, há uma incoerência na
metodologia plutarquiana. Como sabemos, a prática e o gosto pelas artes

10
Não estou afirmando que Luciano exclui o mito de suas narrativas. Não é isso. Nossas reflexões estão
concentradas apenas no ‘prolaliá’ analisado e neste ‘prolaliá’ ele faz apologia do discurso simples, sem
mitologia.

194
não desenvolvem zelo pela verdade11 (desde a famosa comparação de
Aristóteles na Poética12). Essas questões fazem-nos recordar das
advertências de Luciano.
Felizmente, tal incoerência metodológica será resolvida no
segundo tratado mencionado, De audientis poetis. Esse tratado, que foi
destinado a mestres de poesia, intenta explicar textos poéticos acusados de
ter um caráter condenável, fantasioso, exagerado e mentiroso. Na análise
dos referidos textos, Plutarco repara que os jovens se deleitam com a
variedade. Eles sentem prazer na fantasia e julgam a monotonia cansativa e
custosa13 e só se entusiasmam quando lêem doutrinas filosóficas misturadas
à mitologia. O educador de Queronéia, então, nesse passo, conclui que, no
processo educativo, deve-se observar a mistura.
Lembramo-nos aqui de Faetonte! Lembramo-nos que o ar sem
mistura é perigoso e associando concreto e abstrato, concluímos que a
mistura de formas de pensamento talvez possa ser muito interessante.
Plutarco pensa do mesmo modo. Ele propõe a mistura como um bom meio
para fortalecer o discernimento. Afirma ele que ao mestre cabe a direção de
leitura voltada para a verdade. Por esse raciocínio, a narrativa fantasiosa
inserida na poesia é acolhida e a mitologia passa a ser chamada de ‘merenda
escolar’ por oposição à refeição completa, a filosofia; a mitologia é também
uma ametista enquanto que a filosofia é pedra preciosa de valor eterno14.
Utilizando-se uma vez mais da metáfora alimentar, Plutarco diz que assim
como na cabeça de um polvo há algo bom e algo mau - e é por isso que ela é
saborosa, mas causa pesadelos - assim é a mitologia. Em outro passo, o
moralista de Queronéia conclui que a mescla de vinho com água suprime o
mau sem destruir o útil15. Assim, a poesia, carregada de mitologia, embora
perturbadora e vacilante, é agradável, é útil e alimenta a alma16.

11
Plutarco, em De audientis poetis 17d, afirma que não é fácil compreender a verdade e que a arte
poética – em absoluto – não se preocupa com ela mas com a ‘mímesis’. Para ele, captar a verdade no
meio das coisas é uma ciência difícil, mesmo para os filósofos (17 D). O prazer do reconhecimento, no
mito que narra um fato com imagens diferentes do real, existe independentemente de sua retratação
perfeita do real. cf. Aristóteles, Poética, 1448 b.
12
Poética, 1451 b.
13
De Liberis, 7c. Com a mesma intenção em De audientis poetis, 15c-f, Plutarco cita Homero –
Odisséia IV, 230 – que afirma que as drogas misturadas podem ser ao mesmo tempo veneno ou
remédio.
14
De audientis poetis, 14e.
15
De audientis poetis, 15e.
16
De audientis poetis, 16 b.

195
Cumpre, portanto ao mestre, ensinar ao discípulo as regras do
jogo e o que podemos aprender a partir desse jogo. Cumpre-lhe fazer o
jovem ser capaz de discernir entre o que fosse inventado para veicular uma
verdade difícil de exprimir e o que fosse inventado para o assombro dos
homens17. Cumpre-lhe ensinar onde, quando e porque um poeta passa de
uma forma de pensamento e de uma forma narrativa para outra, de um
tempo real para um tempo literário e de um tempo literário para um tempo
mítico.
Ora, acusar o mito de ser uma narrativa construída a partir de
imagens grotescas (entendemos por grotesco a prática da transferência de
tudo o que é elevado, espiritual, ideal e abstrato para o plano material) tal
como o fez Luciano já não nos parece correto. O grotesco mítico, se lido à
luz das ponderações de Bakhtin (BAKHTIN, 1999, p.17) pode ser
assimilado como uma degradação positiva e regeneradora de um abstrato
distante. Bakhtin afirma que a vida dupla, intensa e contraditória do
grotesco constitui uma força. O mesmo caminho destrutivo-construtivista
percebido no texto é proposto por Kristeva no conceito de produtividade. E
na mesma esteira seguem os comentários de Genette acerca do par formado
pelas palavras ‘jour’ e ‘nuit’ na língua francesa.
Suponhamos, por fim, que os mitos sejam imagens grotescas, mas
narrantes. Uma forma de pensar concretamente que dialoga com uma forma
abstrata de pensar por conceitos. De repente, percebemos que as narrativas
míticas são uma produção textual de pensamentos que transitam em meios
diferentes, o abstrato e o concreto. Assim o mito sendo narrativa que se
movimenta em processos de raciocínio diversos pela ‘dança cognitiva’ é
‘intermidialidade’ que pode forjar aquilo que nunca vimos nem veremos.
Voltarei à teoria da refração. Se a refração amplia e desloca a
imagem do objeto, ela e só ela nos permite perceber a visão do espectro
solar e das cores fascinantes que contém um raio de luz.

Conclusão
Não há monologia. Tudo é dialógico. Todo texto –
conscientemente ou não - é resultado de vozes que atuaram sobre um autor
que dialoga com símbolos, significados e linguagens diversas. Nada é
absolutamente uno no texto. Todas as manifestações da vida humana

17
De audientis poetis, 20 f.

196
consciente e racional são relações dialógicas com um outro seja ele
identificável ou não.
O mito, quando inserido num texto, confere a ele uma dimensão de
interação entre formas de pensamento distintas. A narrativa mítica desloca
e expande o pensamento como se ele fosse um objeto dançante que se
movimentasse em turbilhão. A intertextualidade, o dialogismo, a polifonia
nada mais são do que sinais concretos de uma criação permanente que
mantém – através da interação – vivo o mundo. A vida é um sistema
constante de metamorfose. Um texto e um pensamento que se transformam
por causa da interação com um outro é o que chamo de criação, experiência
decisiva na vida de cada um de nós.
Ambas as formas de movimentos aqui observadas – os movimentos
que se dão nos textos - os quais podemos chamar de dialogismos, polifonias
e intertextualidades os movimentos que se dão de um modo de pensar para
outro – os quais chamei de ‘intermidialidade’ – estabelecem uma forma
complexa de transformações que amplia a possibilidade do texto e do
pensamento e fazem deles ‘textos em constante movimento’. Parodiando
Kleist ao falar das marionetes, eu afirmo que a força da literatura está naquilo
que nos suspende no ar para realizar um movimento e não naquilo que nos
prende a terra.

Referências bibliográficas:
ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Casa da moeda, 1992.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto
de François Rabelais. São Paulo-Brasília: HUCITEC-Edunb, 1999.
_________. Problemas da Poética de Dostoiéviski. RJ: Ed. Forense-Universitária,
1981.
BARROS, D. L. P. de. & FIORIN, J. L. Dialogismo, polifonia, intertextualidade.
SP: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
BRANDÃO, J. L. A poética do Hipocentauro. BH: Editora UFMG, 2001.
BURKERT, W. Mito e mitologia. Lisboa: Edições 70, 1991.
CALLOIS, R. O mito e o homem. Lisboa: Edições 70, s/d.
EURIPIDES. Phaethon. DIGGLE, J. (ed.). Cambridge: Cambridge University
Press, 1970.

197
GARLON, Yvon. La guerre dans l’antiquité. Paris: Editions Fernand Nathan, 1972.
GENETTE, G. O dia: a noite. In: KRISTEVA, J. et. Alii. Lingüistica e Literatura.
SP: Martins Fontes, 1980, pp. 43-61.
HOMERO. Ilíada. trad. de C. A. Nunes. RJ: Edições de Ouro, s/d.
_________. Iliadis. Tomo II. Oxford: Oxford University Press, 1989.
KIRK, G. S., RAVEN, J. E. & SCHOIELD, M. Os filósofos pré-socráticos.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.
KLEIST, H. von. Sobre o teatro de Marionetes. RJ: Sette Letras, 1997.
KRISTEVA, J. O texto fechado. In: et. Alii. Lingüistica e Literatura. SP: Martins
Fontes, 1980. pp. 143-170.
LUCIANO. Oeuvres. Tomo I. A propos de l’ambre ou des cygnes. Paris: Les
Belles Lettres, 1993.
MOILLAUD, Maurice. O jornal: da forma ao sentido. Brasília: Paralelo 15, 1997.
NAUCK, A. Tragicorum Graecorum Fragmenta. Supplementum adjecit Bruno
Snell. Belim: Georg Olms Hisdesheim, 1964.
PLUTARCO. Moralia. vol I e vol VII. Madrid: Editorial Gredos, 1992.
________. Oeuvres morales. Tome I. Paris: Les Belles Lettres, 1987.
________. Oeuvres morales. Traités 27-36. Tome VII. Paris: Les Belles Lettres, 1975.
________. Moralia. Vol. VI. London: Havard University Press, 1993.
SERRES, M. Os cinco sentidos – Filosofia dos corpos misturados 1. RJ: Bertrand
Brasil, 2001.
VIEGAS, S. Mito: pensar por imagens. In: Cadernos de Textos nº2 - Mito. BH:
Núcleo de Filosofia Sônia Viegas, 1994, pp. 93-111.
_________. O tempo na filosofia. In: Cadernos de Textos nº2 - Mito. BH: Núcleo
de Filosofia Sônia Viegas, 1994, pp. 69-82.

198
CONSIDERAÇÕES SOBRE A ODE II, 5 DE HORÁCIO
Vanda Santos Falseth

Horácio, poeta romano do século I a.C, demonstrou seu ideal de


vida em odes e epodos, sátiras e epístolas, em que pregou a moderação nas
ambições, nas paixões, a perseverança nas adversidades, a efemeridade da
vida, a perenidade da obra literária, dentre outras.
Pretende-se observar os recursos de que se valeu o poeta ao
escrever a ode bem como seus reflexos na obra de autores que cultivaram o
mesmo gênero literário.
A ode II, 5 é considerada erótica. Ela se destina a um anônimo –
talvez a ele mesmo – tomado de amor por Lálage, ainda muito jovem. A
idade da jovem representa um obstáculo à realização amorosa, por isso, o
poeta aconselha deixar amadurecer a uva verde.
Pode-se dividir a ode em três movimentos, cujo primeiro vai do
verso 1 ao 8.
Nondum subacta ferre iugum ualet
ceruice, nondum munia comparis
aequare nec tauri ruentis
in uenerem tolerare pondus.
Circa uirentis est animus tuae
campos iuuencae, nunc fluuiis grauem
solantis aestum, nunc in udo
ludere eum uitulis salicto praegestientis.
Ainda não é capaz de suportar o jugo, mesmo dominada, ainda
não é capaz de igualar as suas obrigações às do amante, nem de
suportar o peso do touro que se lança ao amor.
O coração da tua novi1ha está voltado para os campos verdejantes,
agora abrandando, nos cursos d’água, o incômodo calor, agora
desejando, ardentemente, brincar com os bezerros no úmido
salgueiro1.

1
A tradução apresentada é de nossa responsabilidade.

199
Horácio inicia a ode fazendo a comparação entre Lálage e uma
jovem novilha, lembrando a usada em Lidéia, caracterizada como uma
potranca de três anos (equa trina) que evita qualquer aproximação do sexo
oposto (cf. Ode III, 11, 9-12), ou aquela relativa a Cloé, semelhante a uma
corça (inuleo) (cf. Ode I, 23, 1). Nos três casos o foco da comparação é a
idade da jovem. Entretanto, a ode analisada é a única que envolve o macho e
a fêmea. Tal recurso era caro à lírica grega arcaica, como se pode observar
no fragmento 75 de Anacreonte, que, sem dúvida, inspirou nosso poeta:
E se agora ainda livre, pastas,
correndo saltitante pelos prados,
é que um ginete, bem treinado,
ainda não te tomou por montaria2.
A escolha do animal varia de acordo com o tom que queira dar.
Aqui, por exemplo, a figura masculina é representada pelo touro – tauri (v.
3), ligado à expressão subacta ferre ceruice iugum (v. 1 e 2) – capaz de
suportar o jugo – com a idéia do amor-prazer presente – nec tauri in
uenerem tolerare pondus (v. 3 e 4). É interessante observar que tal
comparação confere ao poema um ar de erotismo, o que fez o mesmo ser
retirado dos livros didáticos e de algumas edições críticas.
Prossegue, na segunda estrofe, dirigindo-se ao anônimo, falando na
novilha – iuuencae tuae (v. 5), que, por ora, só deseja brincar com os
bezerros – uitulis (v. 8), com a intenção de ressaltar a inocência da jovem.
Na poesia lírica há a integração do "eu" com a natureza -
animal, como acabamos de ver, e vegetal, uma característica bem
marcante da lírica grega arcaica. Digno de nota o que afirma Francisco
Adrados (ADRADOS, 1981, p. 127): “O amor humano e o amor vegetal
são os mesmos. A comparação da mulher ou do homem levam-nos ao
ambiente dos antigos cultos agrários em que a vida humana e a vegetal
andam juntas”.
Encontramos campos uirentis (v. 5 e 6 ), fluuiis (v. 6), salicto (v.
8). Há, também, duas estações do ano presentes: o incômodo calor -
aestum (v. 7), representando a paixão, a inquietação – provocadas na época
do calor, ou seja, durante a juventude, quando todos os desejos se acendem
e o autumnus (v. 11) – simbolizando a idade madura. A passagem parece
pretender reforçar a sensualidade que caracteriza os versos iniciais.

2
Tradução de Guida N. P. Horta.

200
To11e cupidinem
immitis uuae: iam tibi liuidos
distinguet autumnus racemos
purpureo uarius colore; (v. 9-12)
Afasta o desejo da uva verde:
já o outono variado matizará para ti
os cachos acinzentados com a cor púrpura;

O segundo movimento do poema é marcado pela forma verbal no


imperativo – tolle (v. 9) – afasta o desejo, pois a jovem não está preparada
para o amor – dá a impressão de querer refrear os impulsos iniciais, ao
mesmo tempo que deixa entrever a posição do poeta em relação à idade
ideal da amante. Em tom de aconselhamento, com a frase “Tolle
cupidinem immitis uuae”, o poeta se investe de um preceito tão comum
em suas obras, que é a aurea mediocritas, ou seja, a moderação, o
equilíbrio, o saber esperar o momento certo.
O tempo assinalado pelo calor - aestum (v. 7) e pe1a chegada do
outono – autumnus (v. 11), quando a uva mudará de cor, tornar-se-á
madura, do mesmo modo que a jovem estará pronta para seu amante - é
reforçado pelos elementos sensoriais - em consonância com as cores
immitis (v. 10), liuidos (v. 10) e purpureo (v. 11).
A poesia amorosa de Horácio também é um meio de expressão de
suas idéias filosóficas, como se pode atestar em: currit enim ferox aetas
(v. 13 e 14) - o tempo indomável corre. A fugacidade do tempo, que é uma
constante na poesia do venusino, ligada à temática epicurista do carpe
diem, perpassa a literatura de todos os tempos, chegando até a
modernidade. O referido tema já desenvolvido na literatura grega teve ecos,
por exemplo, em Petrarca, Camões, Garcilaso de la Vega, Sá de Miranda,
Tomás Antonio Gonzaga, Cecília Meireles e Fernando Pessoa, para não
falar de outros.
Assim, podemos destacar alguns versos de um soneto de Sá de
Miranda, representante do Renascimento português, em que há um
contraste entre o tempo cíclico da Natureza e o tempo linear da vida
humana. Diz ele:
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia atrás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

201
O tema ecoa em Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga na
Lira 38, v. 13-15, em que o poeta demonstra fragilidade pelo passar do
tempo que desgasta o amor:
Assim também serei, minha Marília
daqui a poucos anos,
que o ímpio tempo para todos corre.
E também, no século XX, em Fernando Pessoa, na ode de seu
heterônimo Ricardo Reis:
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
Interessante observar que foram muitas as mulheres que perpassaram
as Odes de Horácio, como Glicera, Lide, Barina, Galatéia, Lice, Cloé,
Neobule, para não falar de outras. Algumas são caracterizadas por aspectos
negativos, como Clóris (v. 18), a mulher velha que quer rivalizar com a filha,
Fóloe (v. 17), esta, por sua vez, vista como inconstante e devassa (cf. Ode III,
15). Já por Lálage (que em grego significa tagarela), apontada pelo doce
sorriso e pela voz agradável (Ode I, 22), o poeta demonstra ter admiração.
iam te sequetur; currit enim ferox
aetas et illi quos tibi dempserit
adponet annos; iam proterua
fronte petet Lalage maritum,
dilecta, quantum non Pholoe fugax,
non Chloris albo sic umero nitens
ut pura nocturno renidet
luna mari Cnidiusue Gyges,
quem si puellarum insereres choro,
mire sagacis falleret hospites
discrimen obscurum solutis
crinibus ambiguoque uoltu. (II, 5, v. 13-24)
Logo ela te seguirá, pois o tempo indomável corre e ele lhe
acrescentará os que tiver tirado de ti; logo com a fronte ousada,
Lálage, que brilha com seu alvo ombro, como a lua clara brilha no
mar durante a noite, provocará seu marido, querida como não foi a
fugidia Fóloe, nem Clóris, ou como Giges da Cnido, o qual se
misturasses ao coro das jovens, enganaria maravilhosamente os

202
hóspedes sagazes, diferença obscura sob seus cabelos espalhados
e seu rosto ambíguo.
No terceiro movimento, o poeta nos apresenta Lálage - ousada –
proterua (v. 15) que logo procurará um marido, num futuro próximo,
como podemos observar com a dupla colocação do advérbio iam em
anáfora (v. 10, 13 e 15).
Na quinta estrofe, o poeta afirma que Lálage será mais amada do que
Fóloe, Clóris e Giges, lançando mão de um recurso comum ao 1írico que é o
da comparação. Para tais símiles Horácio emprega palavras de origem grega:
Pholoe, Chloris e Gyges, presentes em outras odes. Embora procure
freqüentemente as fontes mais antigas da lírica grega, recorre também às
práticas alexandrinas, como quando faz localizações geográficas: Cnidus (v.
20), cidade da Cária, onde havia um templo consagrado a Vênus, ou ainda
alusões mitológicas, como Gyges (v. 20), empregado na Ode como nome de
um jovem. Há aqui uma referência à lenda de Aquiles escondido com roupas
femininas entre as filhas de Lycomedes e reconhecido por Ulisses. Com o
episódio pitoresco, o clima erótico do início da ode, já enfraquecido com o
imperativo tolle (v. 9) e o particípio dilecta (v. 17), deixa de existir.
Emil Staiger (STAIGER, 1972, p. 35) ao discorrer sobre as formas
de expressão do lírico, mostra que:
a linguagem lírica parece desprezar as conquistas de um progresso
lento em direção à clareza, – da construção paratática à hipotática,
de advérbios a conjunções, de conjunções temporais a causais. As
canções não são igualmente sensíveis a todas as conjunções... Um
"se" ou "mas" de quando em vez quase não perturbam o clima
lírico, mas o que melhor se adapta no caso é a parataxe simples.
Examinando a ode II, 5, constatar-se-á que tal afirmação se adapta a
ela, com a ocorrência de apenas duas orações subordinadas sic... ut (v. 17 e 18)
e si (v. 21). O tempo gramatical do lírico é o presente, realçado nesta ode pelo
advérbio nunc: ualet (v. 1), est (v. 5), currit (v. 13), renidet (v. 15). O futuro
é um tempo que aparece com alguma freqüência também: distinguet (v. 11);
sequetur (v. 13); dempserit (v. l4); adponet (v. 15); petet (v. 16), ao lado de
advérbios que marcam a proximidade da ação verbal.
Quanto à escolha das palavras (delectus uerborum), sabe-se que
Horácio aprovava a inovação lexical, privilegiando o enriquecimento
semântico das palavras antigas, uma vez que o mesmo correspondia ao
desejo de exprimir exatamente os aspectos e os matizes do pensamento.

203
Isto posto, teceremos breves observações com relação à seleção
vocabular da ode estudada. O vocábulo comparis (v. 2) - que aparece aqui
substantivado tinha o sentido de companheiro, camarada e posteriormente,
de amante, com registro também em Catulo, como atestam os dicionários,
sendo, pois, de uso poético.
Corroborado pelas mesmas fontes de consulta está o uso poético de
nitens (v. 17) - particípio presente do verbo nitere, que significa brilhar,
reluzir (falando-se do céu, da lua). Compare-se com o seu emprego na ode
I, 5, 12 a Pyrrha, em que aparece com o sentido de ser brilhante, ser bela
(nites). Uma outra ocorrência eminentemente poética é o uso adverbial do
adjetivo noturnus – noturno (v. 18)
O substantivo iuuencae (v. 6), que reitera a integração
homem/natureza (animal e vegetal), tratada anteriormente, tem como primeira
acepção "novilha" e por renovação semântica "jovem" – de uso poético. Esta
inteiração é tal que ao lado da expressão ceruice ferrum iugo (v. 1), o poeta
emprega comparis – termo usado comumente para a esfera humana.
O venusino utiliza, referindo-se a Lálage, o particípio passado -
dilecta (v. 17) do verbo diligere, que quer dizer estimar, amar (com uma
afeição fundamentada na escolha e na reflexão), talvez para enfatizar que a
jovem é merecedora não do amor-desejo, mas de um sentimento
verdadeiro, baseado na estima e aceitação dos mesmos valores morais
propostos pelo estoicismo a seus seguidores romanos.
Conclui-se, assim, que as odes ligeiras, nas quais se inserem as de
cunho amoroso, servem de veículo aos pensamentos de Horácio, tais como a
moderação, a efemeridade da vida e conseqüentemente, o carpe diem. O vate
latino, que, através da imitação direta ou de temas, ou ainda de idéias morais e
filosóficas, inspirou outros poetas, perpassou todas as épocas, muitas correntes
literárias ou simplesmente determinados autores, chegando à modernidade.

Referências bibliográficas:
ADRADOS, F. Rodrígues. El mundo de la lirica griega antigua. Madrid: Alianza
Ed., 1981.
COMMAGER, Steele. The odes of Horace. London: Indiana University Press, 1967.
HORACE. Odes et Épodes. Texte ét. et trad. par F. Villeneuve. Paris: Les Belles
Lettres, 1959.
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Trad. de Celeste A. Galeão.
RJ: Tempo Brasileiro, 1972.

204
A ETIMOLOGIA, UM ESTUDO QUE ENCANTA
Miguel Barbosa do Rosário (Prof. Dr. – UFRJ)

Quando nos deparamos com uma palavra desconhecida, quer na


escrita, quer na fala, ocorre-nos, de imediato, o desejo de saber o seu
significado. É natural querermos saber o sentido daquela palavra que nos
pareceu estranha. Freqüentemente, o contexto em que a mesma foi usada
costuma esclarecer o seu sentido. De fato, como afirma Mauricio Gnerre,
em seu notável livro, Linguagem, escrita e poder16: “as palavras não têm
realidade fora da produção lingüística; as palavras existem nas situações
nas quais são usadas”.
Elas, as palavras, estão armazenadas, guardadas em nossa mente. É
o que Carlos Mioto et alii, em seu Manual de Sintaxe17, chamam de léxico
mental. Mioto et alii, em seu Manual, abordam a língua sob a perspectiva
da gramática gerativa. Como se sabe, a hipótese gerativista é a de que o ser
humano vem dotado geneticamente para o aprendizado de qualquer língua.
Para o domínio desta ou daquela língua, basta que a criança ative a dotação
genética que recebeu ao nascer. Ninguém precisa ensinar-lhe a falar; ela, de
forma natural, com o passar dos anos, em convívio, primeiramente com
seus familiares, posteriormente com seus amigos, desenvolverá sua
capacidade de expressão oral. Aos quatro, cinco anos, ela terá internalizado

16
GNERRE, Mauricio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. 19.
17
MIOTO, Carlos et alii. Manual de Sintaxe. Florianópolis: Ed. Insular, 2000, p.
84.

205
as regras gramaticais de sua língua, as quais são processadas de forma
inconsciente; essas regras ficam armazenadas em seu cérebro. Condições
sociais e econômicas, relações familiares, escolas de boa ou má qualidade
permitirão a essa criança a potencialização de seu desempenho lingüístico.
Nesse sentido, pois, a criança já vem marcada socialmente, desde o seu
nascimento, quanto a esse seu desempenho lingüístico. Alguns conseguem
romper esse ferrolho, esse bloqueio. É que a “linguagem”, no entender de
Mauricio Gnerre18, “constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear
o acesso ao poder”.
Independentemente de ser ou não fluente em sua própria língua
nativa, independentemente de ter ou não domínio da modalidade culta da
mesma, o falante não tem consciência explícita de sua língua. É o que nos
diz Waldemar Ferreira Netto19, em Introdução à fonologia da língua
portuguesa: “Ora, os falantes não pensam rotineiramente sobre sua própria
língua, eles apenas a usam”. É oportuno lembrar, continua o autor, que
Bakhtin chamou a atenção para o fato de que o falante não tem consciência
da materialidade do sistema. A língua materna é formada só de idéias, só de
emoções, pois, segundo ele, “não são palavras que pronunciamos ou
escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou
triviais, agradáveis ou desagradáveis”.

18
GNERRE, Mauricio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. 22.
19
FERREIRA NETTO,Waldemar. Introdução à fonologia da língua portuguesa.
São Paulo: Ed. Hedra, 2001, p. 26.

206
Esse mesmo raciocínio desenvolve Mário A. Perini em Gramática
Descritiva do Português20:
“Deve-se entender a gramática como um conjunto de instruções que o
falante da língua domina implicitamente – ele sabe muito bem pô-las em
ação, ao julgar a boa ou má formação de uma frase ou de uma palavra.
Mas isso não quer dizer que ele tenha consciência dessas instruções, não
mais do que tem consciência dos processos de sua digestão ou
circulação. É um mecanismo que ele põe em funcionamento de maneira
automática”.

De fato, passa despercebido do falante o uso que o mesmo faz da língua.


Somente quando se debruça sobre as formas usadas é que o estudioso se
depara com a riqueza incomensurável que é o falar humano, quer no nível
sonoro, lexical, sintático, semântico.
Notaram que empreguei o termo incomensurável? No processo de
elaboração de minhas reflexões sobre a temática proposta, surgiu o termo
incomensurável. Sabemos o que significa, mas, muitas vezes, não nos
contentamos apenas com o significado, queremos ir além, queremos buscar
aquilo que, conforme veremos, ao longo deste trabalho, Guimarães Rosa
chamou de caroço, o sentido intrínseco da palavra, o verivérbio.
Examinemos, pois, incomensurável.
Para quem tem o domínio da modalidade culta da língua, não é
difícil perceber os elementos constitutivos da mesma, a saber, o radical
mensur, que aparece, no verbo mensurar, a vogal temática a, o sufixo
formador de adjetivos –vel, e os prefixos in- e co-. Em termos do
português atual, paramos por aqui. Não é possível continuar a separação
dos elementos, a não ser que se queira voltar no tempo. Se se fizer essa

20
PERINI, Mário A. Gramática Descritiva do Português. São Paulo: Ed. Ática,
2001, p. 52/53.

207
volta no tempo, verificar-se-á que mensurar provém do verbo latino
mensurāre, que significa medir, que mensurāre, por sua vez, se prende a
mensūra, medida, que mensūra é originário de metiri “medir”, cujo
particípio passado é mensus. Além de mensurar, mensura, há, ainda, em
português, a forma mesura, originária também de mensūra.
Ao fazermos essas aproximações, estamos investigando a origem
da palavra, sua etimologia. Etimologia, palavra de formação grega significa
estudo do verdadeiro, de etimo- “verdadeiro” e –logia “estudo”. Em latim,
esse termo foi vertido por Cícero para ueriloquium “maneira de falar
verdadeiro”. Em português, o sempre notável escritor Guimarães Rosa, no
conto Famigerado, cunhou o termo verivérbio, que traduz exatamente o
que se entende por etimologia. Etimologia, pois, é a disciplina que busca
estabelecer a origem formal e semântica de uma unidade lexical. É
importante frisar que não basta apenas o aspecto semântico, muitas vezes
enganador, é necessário também que haja o vínculo formal.
Examine-se, por exemplo, a palavra charme, cuja origem remota é
o latim carmen, que tem o sentido de poema, verso, encantamento. O c (k)
inicial latino antes das vogais a, o, u, conforme nos explica E. Williams, em
Do latim ao português, trad. de Antonio Houaiss21, evolui para c (k) em
português, como em cantare > cantar, colore(m) > cor, cura(m) > cura.
Ao se examinar o sentido de carmen, em latim, verifica-se que um
dos sentidos da palavra se manteve na derivada charme. A questão
semântica está, então, satisfatoriamente resolvida. No plano formal é que se
encontra a dificuldade, já que, como se viu, o fonema c (k) inicial latino

21
WILLIAMS, E. Do latim ao português. Trad. de Antonio Houaiss. Rio de
Janeiro: TB, 1975, p. 71.

208
evolui para c (k) em português. Esse fato torna evidente que a palavra
charme não proveio diretamente do latim. De fato, ela entrou no português
através de outra língua, no caso, através do francês charme. Em francês,
essa evolução do k para ch, nesse contexto, é regular. É o que se observa,
por exemplo, em chefe, proveniente de caput, cher, de caru(m). É
necessário, pois, conhecer os mecanismos de evolução histórica da língua
para se poderem traçar com segurança as modificações ocorridas ao longo
dos tempos.
Veja-se o caso curioso das palavras feitiço e fetiche. Ambas,
segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa,
de Antônio Geraldo da Cunha22, são provenientes do latim facticiu(m), que
significa artificial, não natural. A forma portuguesa feitiço tem sua
evolução natural, a partir da vocalização do c, da assimilação do a ao i, a
mudança da seqüência –ciu em –ço. Já fetiche, informa-nos A. G. Cunha, é
palavra francesa proveniente do português feitiço. Depois de ter
contribuído, portanto, para a criação da palavra francesa fetiche, o
português recorre ao francês para tomar-lhe emprestado o termo fetiche,
que tem traços semânticos que a aproximam de feitiço, mas desta se
diferencia por necessidade de especialização semântica.
Além do aspecto semântico e formal, há que se verificar ainda, se
possível, em que século ou ano a palavra ingressou na língua. Para feitiço,
por exemplo, A. G. Cunha nos informa que sua datação é do séc. XV. Já
fetiche aparece registrada pela primeira vez apenas em 1873.

22
CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, /s.d./.

209
Verifica-se, assim, que, freqüentemente, é possível não só traçar a
evolução de uma palavra, determinar-lhe a etimologia, mas também saber-
lhe o trajeto cronológico. E com a história da palavra caminha também a
história do homem, da sociedade.
Há aquelas que ingressam na língua, mas desaparecem, somem,
como aconteceu, por exemplo, com a preposição per, que no português
atual só aparece em combinação com o artigo definido o, a, os, as: pelo,
pela, pelos, pelas. Parece mesmo que alguns falantes estão perdendo a
consciência dessa combinação do artigo com a preposição. Vejamos a
seguinte frase: “É esta a nossa fé que nos faz rezar pelos os que o Senhor
levou”. Chamou-me a atenção o pelos os, já que o mesmo vem impresso
num lembrete de uma Paróquia sobre missa que seria rezada em intenção
da alma de uma pessoa. Para o autor da frase, o artigo não está presente em
pelos. De qualquer forma, o desaparecimento de per oferece dificuldade em
termos de descrição do português atual.
A palavra homem, no português antigo, além de ter o sentido que
hoje tem, era um pronome indefinido. Com esse valor, aparece, ainda, na
Carta de Pero Vaz de Caminha23. Vejam-se as seguintes passagens:

Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um


pouco se amansassem, logo duma mão para a outra se
esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes
ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se
passa como eles querem, para os bem amansar.

23
PEREIRA, Paulo Roberto. Os Três Únicos Testemunhos do Descobrimento do
Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 1999, p. 47 e 54.

210
(Id., p.47)

Parece-me gente de tal inocência que se homem os


entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles,
segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma
crença.
(Id. ib. p. 54)

Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se


logo prestes para isso, em tal maneira que, se a gente
todos quisera convidar, todos vieram.
(Id. ib. p. 54)

Curioso é observar que, para traduzir a idéia de homem, o latim se


serve da palavra uir e homō. Homō tem um campo semântico mais
abrangente do que uir. Homō pode incluir a femina “mulher”. É uma
palavra que tem a mesma origem de humus terra. Ao pé da letra, portanto,
homō é o terrestre, o que habita a terra. Na evolução para o português,
deixou-se de aproveitar o termo uir. Lembremo-nos de que uir é o termo
empregado pelo poeta Vergílio no início de sua obra épica A Eneida,
quando abre seu texto, dizendo “Arma uirumque cano” canto as armas e o
varão, isto é, o homem, o herói. Ali, especificamente, o poeta está-se
referindo a um homem específico, Enéias. Embora a forma uir tenha
desaparecido, ela, no entanto, aparece no derivado viril, em latim uirīle(m).
Ao se estudar, então, a etimologia do termo viril, em termos puramente
formais e semânticos, bastaria dizer que viril é proveniente do latim

211
uirīle(m). As mudanças sonoras são bem regulares: a consonantização da
semivogal u para v, e a queda do fonema e, em posição final de palavra,
pois precedido de –l. Mas está-se verificando que não basta um exame
apenas formal e semântico para o levantamento etimológico. Para tornar
mais rica e fecunda a investigação, é da mais alta conveniência buscar na
língua original os mecanismos de relação existentes nas palavras. Passa-se,
então, a ter uma visibilidade mais profunda da língua que se examina. E
esse é o encanto que se apossa de quem lida com esse campo fantástico da
linguagem humana.
Veja-se o termo oral. Oral provém do latim ōrāle(m), que significa
relativo à boca. Boca, por sua vez, significa ōs, ōris, forma que
desapareceu, na sua evolução para o português e para as outras línguas
românicas. Temos, portanto, em latim, o adjetivo ōrāle(m), que pode ser
separado em ōr- o radical e –āle(m) o sufixo formador de adjetivos, como o
– īle(m) o é de uirīle(m). Em uirīle(m), portanto, registra-se o radical uir- e
o sufixo –īle(m), que também é um sufixo formador de adjetivos. Há, pois,
todo um jogo nas relações complexas que existem nas línguas, que precisa
ser descoberto pelo investigador.
Outra forma extremamente curiosa é a origem do infinitivo do
verbo ser em português. Ele surge do verbo sedēre, que tem, em latim, o
sentido de “estar sentado”. De estar sentado para ser, portanto, houve uma
mudança de sentido muito profunda. O aspecto sonoro é normal: sedēre>
seer > ser, ou seja, apócope do –e, síncope do d, porque intervocálico, crase
das vogais. Mas se o infinitivo esse foi abandonado, outras formas do
mesmo não o foram, como o presente do indicativo, o imperfeito do

212
indicativo, por exemplo, que são provenientes das formas do verbo esse
latino.
Certas formas do português atual se tornam bem nítidas, quando se
examina seu percurso histórico, como é o caso, por exemplo, dos verbos
fazer e dizer, que, provenientes de facere e de dicere, possuem as variantes
far e dir no futuro do presente e no futuro do pretérito. De fato, ao examinar
as formas far-te-ei e dir-te-ei, não resta ao investigador outra possibilidade
de interpretação que não a de analisá-las como variantes do infinitivo fazer
e dizer, respectivamente.
No plano histórico, Edwin Williams24 nos diz: “os infinitivos curtos
encontrados em farei e direi originaram-se, provavelmente, em latim
vulgar”.
Quero deixar bem claro que não estou advogando aqui a mistura da
sincronia com a diacronia. Esse método de investigação proposto por
Saussure deve ser preservado.
O exame histórico da língua, no entanto, permite perceber aspectos
muito curiosos como a do verbo comedĕre, comentado por Mattoso
Câmara25. Em comedĕre, o com- é um prefixo, já que existe a forma
simples edĕre, que também significa comer. A forma simples edĕre deixou
de ser aproveitada, tendo sido inteiramente absorvida pelo verbo comedĕre,
cuja evolução em termos sonoros se processa normalmente: a apócope do e,
a síncope do d e a crase do e: comedĕre> *comedēre> *comeer > comer. O

24
WILLIAMS, E. Do latim ao português. Trad. de Antonio Houaiss. Rio de
Janeiro: TB, 1975, p. 212.
25
CÂMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de Filologia e Gramática. Rio de Janeiro:
J. Ozon Editor, 1968.

213
elemento com-, prefixo em latim, tornou-se radical em português, uma
mudança notável.
O latim constitui a base do léxico das línguas românicas. É uma
língua bem conhecida e pesquisada. Sob esse aspecto, pois, essas línguas
ocupam na etimologia um lugar privilegiado. Muitas vezes, é difícil
explicar a seleção vocabular que uma língua faz em relação a determinadas
palavras.
Em situação bem diversa se encontram o latim e suas línguas
irmãs, cuja língua-mãe, o indo-europeu, não deixou vestígios. O indo-
europeu, língua hipotética que é, é uma reconstituição a partir do grego,
latim, sânscrito, germânico, hitita.
Basta, portanto, dispor de bons dicionários de latim e do
conhecimento dos mecanismos de mudanças históricas, para se ter meio
caminho andado nesse maravilhoso mundo das palavras. É uma satisfação
enorme penetrar no âmago de determinada palavra e, se possível, desvendar
todo o mistério que a envolve.
A propósito, de onde vem o termo palavra? Em latim palavra é
uerbum. Observem-se as expressões: uerbum Domini “palavra do Senhor”,
uerba uolant “as palavras voam”, in principio erat Verbum “no princípio
era o Verbo, a Palavra”. Palavra provém de parabola, que, em latim,
significa “narração de um acontecimento, envolvendo, alegoricamente, uma
instrução”. As mudanças sonoras são regulares: a síncope do o, mudança do
grupo bl para br e dissimilação: parábola > paravra > palavra.
Um bom dicionário etimológico nos fornece não só a origem da
palavra, mas também a data da primeira entrada na língua. Examine-se, por
exemplo, a origem do verbo cuidar, proveniente do verbo latino cogitāre,

214
cujo significado básico era pensar, meditar. As mudanças sonoras são
regulares: a queda do e final, a apócope, precedida de r, já que com o
mesmo pode formar sílaba, a mudança da consoante surda para sonora, pois
está em posição intervocálica, a queda da consoante sonora em posição
intervocálica. Sua entrada na língua, conforme informação de A. G. Cunha,
se deu no séc. XIII. Proveniente também do verbo latino cogitāre,
encontramos a forma verbal cogitar. Ao observarmos atentamente cogitar,
verificamos sua enorme semelhança com o latim. Essas formas com
formato quase latino são as chamadas formas eruditas. Sua entrada na
língua surge, sobretudo, a partir do século XVI, com o movimento da
Renascença, quando os eruditos e os escritores retornam ao latim e ao
grego para buscarem termos que traduzissem suas necessidades
intelectuais. A forma em questão cogitar só entrará na língua no séc. XVII.
Está-se verificando, portanto, que um outro dado importante se
apresenta ao estudioso da história das palavras: identificar-lhes seu formato
para saber se se trata de uma forma de evolução popular ou não.
O conhecimento dos fenômenos presentes na evolução das
palavras, repito, se torna imprescindível para entender-se o
desenvolvimento do léxico de uma língua.
Examinem-se outros pares em que paralelamente à forma de
evolução popular, aparece a forma erudita: dedo / digital [latim digitu(m)],
selo / sigilo [latim sigillu(m)], cabelo / capilar [latim capillu(m)], região /
regional [latim regione(m)], mão / manual [latim manu(m)], pé / pedal
[latim pede(m)], cheio / pleno [latim plenu(m)]. Pode notar-se que todas as
formas que se aproximam do latim constituem as formas eruditas.

215
Além do conhecimento dos mecanismos históricos, há que se
levar em conta também outros aspectos que, ao longo dos tempos, foram-se
introduzindo na língua. Veja-se, por exemplo, a palavra famigerado
utilizada por Guimarães Rosa no conto com esse título, em Primeiras
Estórias26.
Para efeitos de etimologia, basta dizer que famigerado é
proveniente do latim famigerātu(m), cujo sentido é famoso, afamado,
falado, célebre. A palavra não tem conotação negativa em latim.

Examinei o verbete em cinco dicionários e eis os resultados:

a) Dicionário da Língua Portuguesa, do Moraes, ed. 1813,


famigerado, adj. Afamado, famoso;
b) Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas
Aulete, ed. Delta S/A, 1958: célebre, famoso, afamado;
c) Novo Dicionário da Língua Portuguesa, o Aurélio, ed. Nova
Fronteira, 1989: adj. que tem fama; muito notável; célebre,
famoso; 2. Pop. Faminto, esfomeado;
d) Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, Cia. Melhoramentos,
1998, Michaelis: que tem fama; célebre, notável (Mais usado
com sentido pejorativo);
e) Dicionário Houaiss da Língua Portugues, ed. Objetiva, 2001: 1.
que tem muita fama; célebre; notável. 2. pej. Tristemente
afamado (f. assaltante).

26
ROSA, J. Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988,
p. 13 a 17.

216
No português atual, seu significado passou a ter um sentido
negativo. Na seção de Economia de O Globo do dia 09 de agosto de 2002,
diz Joelmir Beting: “As eleições presidenciais acabam de perder peso
emocional em nossa famigerada crise cambial”. Ainda em O Globo do dia
10 de agosto do mesmo ano, na seção Tema em discussão, de Reinaldo
Gonçalves, também economista: “O enfrentamento dos problemas
financeiros custou dezenas de bilhões de reais ao povo brasileiro em 1995,
via o famigerado Proer”. Na crônica O presidente que ri, de Affonso
Romano de Sant’Anna, publicada no Estado de Minas Gerais de 25 de
agosto, também de 2002: “O presidente teve todo o tempo para fazer as
famigeradas reformas, e não as fez.”

Para adquirir esse significado, é provável que, ao longo do tempo, os


falantes tenham associado o fami de famigerado com o fami de faminto.
Note-se que a palavra latina que significa fome é fame(m). A mim me
parece uma explicação convincente essa, a de que houve uma associação
com faminto para que a palavra passasse a ter um sentido negativo. Essa é a
explicação que o Prof. Evanildo Bechara dá em sua Moderna Gramática
Portuguesa27: “Às vezes a palavra recebe novo matiz semântico sem que
altere sua forma. Famigerado, por exemplo, que significa “célebre”,
“notável”, influenciado pela idéia e semelhança morfológica de faminto,
passa, na linguagem popular a este último significado”. E acrescenta, na
mesma página, a nota 2: “A palavra famigerado pode aplicar-se à pessoa

27
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2000, p. 400.

217
notável pelos seus dotes positivos ou negativos; todavia, no uso mais
geral, a palavra se aplica às qualidades negativas”.
Em seu sentido original, ela só tem sentido positivo. Examinemos
mais detidamente no próprio latim o termo famigerātu(m). Famigerātus,
informam-nos os dicionários latinos, é o particípio passado do verbo
famigerāre, que significa espalhar, fazer correr boatos. Famigerāre é
formado de fama “notícia, boato” e de gerĕre “levar”. Note-se que em
latim, quando uma vogal breve passa a ocupar uma posição no interior de
um vocábulo, essa vogal no contexto de uma sílaba aberta, isto é, sílaba
terminada por vogal, muda para i, como acontece, por exemplo em amicus,
inimicus, em que o a de amicus, mudou para i, já que o contexto fonológico
passou a ser o descrito há pouco. É o que se chama apofonia.
O fami de famigerāre, portanto, é uma mudança de fama, cujo
significado já foi apontado. Se se quiser aprofundar mais ainda no exame
da palavra, verificar-se-á que fama é palavra derivada de fari, verbo
depoente que significa falar, dizer, forma que aparece também em fabula.
Que é fabula? Fabula é uma narrativa. Nossa palavra fala é proveniente de
fabula: fabula > fabla > falla > fala. Fabulare dá origem a falar. Fala, falar,
confabular, fábula, fama são todas formas em que aparece uma raiz
comum, que é fari, já comentado acima.
Ora, Guimarães Rosa se serve do termo famigerado com duplo
sentido no famoso conto. O conto é pequeno e vale a pena reproduzi-lo:

Famigerado
João Guimarães Rosa

218
Foi de incerta feita – o evento. Quem pode
esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa,
o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o
tropel. Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um
cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e,
embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num
relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro
esse – o oh-homem-oh – com cara de nenhum amigo. Sei o
que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele
homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto
pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado,
ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam
olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente
receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos –
coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o
ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de
pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a
frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e
dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um
encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o
homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos
vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar
que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham
de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da

219
topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus
sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia
ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe.
Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de
temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também,
não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O
medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O
medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a
entrar.
Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de
chapéu. Via-se que passara a descansar na sela – decerto
relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de
pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente,
nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava,
querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez
são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada
alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso
brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um
és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me
organizar. Ele falou:
- “Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua
explicada...”.
Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a
catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que
sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por
se cumprir do maior valor de melhores modos; por

220
esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão
era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais
os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se:
estava em armas – e de armas alimpadas. Dava para se
sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para
ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se
persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo
a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de
se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de
gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções.
Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore.
Sua máxima violência podia ser para cada momento.
Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim,
porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez
de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem
certeza.
- “Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras...
Estou vindo da Serra...”
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias
de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem
perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para
uns anos ele se serenara – evitava o de evitar. Fie-se,
porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de
mim a palmo! Continuava:
- “Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente,
se compareceu um moço do Governo, rapaz meio

221
estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu
não quero questão com o Governo, não estou em saúde
nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto
esmiolado...”
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter
começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o
fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado.
Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu:
aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só
se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso.
Redigiu seu monologar.
O que frouxo falava: de outras, di versas pessoas e
coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos,
inseqüentes, como dif icultação. A conversa era
para teias de aranha. Eu tinha de entender -l he as
mí ni mas entonações , seguir seus propósitos e
silêncios. Assi m no fechar -se com o j ogo, sonso,
no me iludir, ele eni gmava. E, pá:
- “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me
ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-
gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase.
Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu ,
imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença
dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse
de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me:

222
alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me
a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que
aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosta a rosto, o
fatal, a vexatória satisfação?
- “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que
vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor
de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...”
Se sério, se era. Transiu-se-me.
- “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum
ninguém ciente, nem têm o legítimo – o livro que aprende
as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem
de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz,
mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A
bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, do pau da
peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe
perguntei?”
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
- Famigerado?
- “Sim senhor...” – e, alto, repetiu, vezes, o termo,
enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já
me olhava, interpelador, intimativo – apertava-me. Tinha
eu que descobrir a cara. – Famigerado? Habitei
preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em
indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus
cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

223
- “Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São
da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho...”.
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito
o caroço: o verivérbio.
- Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”,
“notável”...
- “Vos mecê mal não vej a em minha grossari a no não
entender. Mais me diga: é desaforado? É
caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de
ofensa?”
- Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões
neutras, de outros usos...
- “Pois... e o que é que é, em fala de pobre,
linguagem de em dia-de-semana?”
- Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece
louvor e respeito...
- “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na
Escritura?”
Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o
diabo, então eu sincero disse:
- Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria
uma hora destas era ser famigerado – bem famigerado, o mais que
pudesse!...
- “Ah, bem!...” – soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si,
desagravava-se num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez

224
aqueles três: - “Vocês podem ir, compadres. Vocês
escutaram bem a boa descrição...” – e eles prestes se
partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava
um copo d’água. Disse: - “Não há como que as grandezas
machas duma pessoa instruída!” Seja que de novo, por um
mero, se tornava? Disse: - “Sei lá, às vezes o melhor
mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei
não...” Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação.
Disse: - “A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas
desconfianças... Só pra azedar a mandioca...” Agradeceu,
quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em
minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não
pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o
famoso assunto.”

O jagunço, ao ser chamado de famigerado pelo homem do


Governo, capta-lhe o significado, ele tem a intuição de que não foi algo
bom que ele ouviu. Não é, pois, à toa que viaja seis léguas para perguntar
ao narrador, o próprio contista, o significado da palavra famigerado. Ele, o
narrador, consciente da gravidade da situação, se serve do sentido
etimológico da palavra e assim consegue acalmar Damázio, que, mesmo
assim, fica um pouco desconfiado, mas acaba desistindo.

Vejamos o final:

225
Disse: - “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra
esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não...” Mas
mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: - “A gente
tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só
pra azedar a mandioca...”.

Observem que o conhecimento etimológico da palavra dá uma


amplitude para a compreensão do conto.
O mundo das palavras é assim meio enigmático. A etimologia,
aquilo que o narrador do conto chama de verivérbio, ajuda a desvendar-lhe
o mistério. Não é o momento de enumerar as palavras criadas pelo autor no
conto, mas verivérbio é uma delas. Para essa criação há duas hipóteses: ou
o autor criou o termo a partir de outros, como prevérbio, advérbio,
provérbio ou foi diretamente à palavra latina ueriuerbium, que significa
“veracidade”, formada do adjetivo uerus “verdadeiro” e uerbum “palavra”,
ou seja palavra verdadeira. Qualquer que tenha sido a opção, ela lhe
pertence e ainda não está dicionarizada.

In principio erat Verbum. E a palavra se faz e a palavra se fez.

226
METAPLASMOS

Miguel Barbosa do Rosário (Prof. Dr – UFRJ)

[metaplasmo | 1844 < lat. metaplasmus, -i < gr. metaplasmós, de


metaplásso ‘eu modelo de outra maneira’: “qualquer alteração fonética
ocorrida num vocábulo”.]

Sonorização [Passagem das consoantes surdas a sonoras]

Síncope [Perda de um fonema medial de um vocábulo]

Apócope [Desaparecimento de um fonema em fim de vocábulo]

Crase [Reunião, numa sílaba de vogal una, de duas vogais iguais em hiato]

Crase ⇒ “É uma das mudanças fonéticas que caracterizam a passagem do

português arcaico para a fase moderna, pois naquele permaneciam as

vogais geminadas pela síncope de uma consoante sonora intervocálica”. In:

CÂMARA Jr., J. Mattoso — Dicionário de Filologia e Gramática. J.

Ozon + Editor. 1968.

salute- > saúde | XIII (lat. salūs, - ūtis ‘salvação’; ‘saudação’; ‘saúde’)

gutta- > gota | XIII (lat. gŭtta, -ae ‘gota’)

rota- > roda | XIV (lat. rŏta, -ae ‘roda’)

cogitare > cuidar | XIII (lat. cōgǐtāre < contr. de coagitare ‘pensar’,
‘meditar’; ext. ‘tratar de’)

uita- > vida | XIII (lat. uīta, -ae ‘vida’)

227
fidele- > fiel | XIII (lat. fidelis, -e ‘em quem se pode ter confiança’;
‘fiel’)

*fidāre > fiar1 | XIII (lat. fīdĕre ‘confiar’)

filare > fiar2 | XVI (lat. fīlāre ‘fiar’, ‘fazer em fio’)

filu- > fio | XIII (lat. fīlum, -i ‘fio’)

aquila- > águia | XIII (lat. aquila, -ae ‘águia’)

legale- > leal | XIII (lat. legālis, -e ‘relativo às leis’)

regale- > real1 | XIII (lat. regālis, -e ‘pertencente ou relativo ao


rei ou à realeza’)

reale- > real2 ‘que existe de fato, verdadeiro’ < baixo-latim


reālis, -e < res, rei ‘coisa’
[Baixo-latim: língua em que escreviam as suas obras os doutos da Idade
Média]

legenda- > leenda | XIII > lenda (lat. legenda, pl. neutro do gerundivo
legendus, a, um ‘que deve ser lido’)

*legēre > ler | XIII (lat. lĕgĕre ‘reunir’; ‘escolher’; ‘ler’)

populu- > poboo | XIII > povo (lat. pŏpŭlus, -i ‘povo’)

sigillu- > sseello | XIII, seelo | XIII > selo (lat. sigillum, -i ‘marca
pequena’, ‘sinalzinho’)

colore- > coor | XIII, color | XIII > cor | XIII (lat. color, - ōris sm ‘cor’)

228
uolare > voar | XIII (lat. uŏlāre ‘voar’)

dolere > doer | XIII (lat. dŏlēre ‘sentir dor’)

dolore- > door | XIII [dolor | XIV] > dor | XVI (lat. dolor, -ōris ‘dor’)

dolorosu- > dooroso | XIII; doloroso | XVI (lat. dolōrōsus, a, um


‘doloroso’)

polire > puir | 1813, forma divergente de polir (lat. pŏlīre ‘nivelar’;
‘limar’)

salire > sair | XIII (lat. sǎlīre ‘saltar’; ‘sair’)


“A queda de -l- medial constitui um dos característicos fonéticos do
português. Na opinião de Cornu, deu-se no correr do século XII”. In
Coutinho, op. cit., p. 114.

uidere > * veder > veer > ver | XIII (lat. uǐdēre ‘ver’)

palatiu- > paaço | XIII > paço | XVI (lat. pǎlātium, -i ‘residência
imperial’, ‘palácio’)
[“A forma paço, já documentada no port. med., é de uso comum no port.
mod., embora com pequena restrição semântica, visto que só se emprega
para designar o ‘palácio real’”] In: CUNHA, A. G. Dicionário Etimológico
da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

uidi > vi ( uīdī: 1a. pess. sg. do pret. perf. ind. do v. uǐdēre)

crudu- > cruu | XIII, cru | XIII (lat. crūdus, a, um ‘cru’; ‘verde’; ‘duro’,
‘cruel’)

crudele- > cruel | XIII (lat. crūdēlis -e < lat. crūdus, a, um ‘duro’, ‘cruel’)

sudore- > suor | XIV (lat. sūdor, - ōris ‘transpiração’, ‘suor’)

macula- > mágoa | XV, forma divergente de mácula | XVI (lat. mǎcŭla, -
ae ‘mancha’, ‘nódoa’, ‘marca’)

229
ficu- > figo | XIII (lat. fícus, -i ‘figo’)

nebula- > névoa (lat. nĕbŭla, -ae ‘nevoeiro’)

radice- > raiz | XIII (lat. rādix, - īcis ‘raiz’; ‘tronco’)

nudu- > nuu | XIII, nua f. | XIII (lat. nūdus, a, um ‘nu’, ‘despido’)

pede- > pee | XIII, pé | XIII (lat. pés, pĕdis ‘pé’)

sedere > ser | XIII (lat. sĕdēre ‘estar sentado’, ‘assentar’. Da idéia original
de ‘estar sentado’, o latim passou à de ‘estar’ e, daí, à de ‘ser’)

sede- > séé | XIII ‘jurisdição episcopal’ > sé [sede | XV] (lat. sēdes, -is
‘orig. lugar onde alguém pode sentar-se’)

totu- > todo | XIII (lat. tōtus ,a, um ‘todo’, ‘inteiro’)

mutu- > mudo | XIII (lat. mūtus, a, um ‘mudo’)

rete- > rede | XIII (lat. rēte, -is (n) ‘rede’, ‘laço’)

hospite- > hóspede | XIII (lat. hospĕs, - ǐtis ‘hóspede’, ‘estrangeiro’)

uirtute- > virtude | XIII (lat. uirtūs, - ūtis ‘coragem’; ‘virtude’)

gutta- > gota | XIII (lat. gŭtta, -ae ‘gota’)

[-t- > -d-]- > “Esta sonorização, segundo Rydberg, citado por Grandgent,
verificou-se no século V e princípios do VI”. In: Coutinho, op. cit., p.
116.]

lupu- > lobo | XIII (lat. lŭpus, -i ‘lobo’)

sapore- > sabor | XIII (lat. sǎpor, -ōris ‘sabor’; ‘cheiro’)

*sapēre > saber | XIII (lat. sǎpĕre ‘ter sabor’; ‘ter o cheiro de’; ‘saber’,
‘conhecer’)

230
[-p- > -b-]- > “Esta permuta parece que se deu no século V e VI”. In:
Coutinho, op.cit., p.116]

peccatu- > pecado | XIII (lat. peccātum, -i ‘falta’)

peccare > pecar | XIII (lat. peccāre ‘cometer uma falta’)

uacca- > vaca | XIII (lat. uacca, -ae ‘vaca’)

secare > segar | XIII (lat. secāre ‘cortar’, ‘separar’)

siccare > secar | XIII (lat. siccāre ‘secar’)

formica- > formiga | XIII (lat. formica, -ae ‘formiga’)

amicu- > amigo | XIII (lat. amīcus, -i ‘amigo’)

siccu- > seco | XIII (lat. sǐccus ,a, um ‘seco’, ‘enxuto’)

bucca- > boca | XIII (lat. bŭcca -ae ‘boca’)


[“As consoantes geminadas latinas, no interior das palavras, reduzem-se a
consoantes simples, em português”. In Coutinho, op. cit., p. 120]

lacu- > lago | XIII (lǎcus, -us ‘lago’)

acutu- > agudo | XIII (lat. acūtus, a, um ‘pontudo’, ‘agudo’)

cito > cedo | XIII (lat. cǐto ‘depressa’)

secretu- > segredo | XIV (lat. secrētum, -i ‘lugar retirado’, ‘retiro’,


‘solidão’)

securu- > seguro | XIII (lat. secūrus, a, um ‘tranqüilo’)

231
securitate- > seguridade | XV (lat. secūrǐtas, - ātis
‘tranqüilidade’)

capillu- > cabelo | XIII (lat. capǐllus, -i ‘cabelo’)

stuppa- > estopa | XIV (lat. stŭppa, -ae ‘estopa’)

dece- > dez | XIII (lat. dĕcem ‘dez’)

pace- > paz | XIII (lat. pāx, pācis ‘paz’)

luce- > luz | XIII (lat. lūx, lūcis ‘luz’)

acetu- > azedo | XIII (lat. acētum, -i (n) ‘vinagre’)

uice- > vez | XIII (lat. (uǐx) uǐcis ‘vez’)

N.B. Modificações por que passou o fonema k : lat. cl. k > lat. vulg. ts > dz
> port. z.

● Síncope da nasal e sonorização


mensa- > mesa | XIII (lat. mensa, -ae ‘mesa’)

mense- > mês | XIII (lat. mensis, -is ‘mês’)

pensare > pesar | XIII (lat. pensāre ‘pesar’; ‘examinar’)

sponsa- > esposa | XIII (lat. sponsa, -ae ‘esposa’)

defensa- > defesa | XV (lat. defensa, -ae ‘defesa’)

tensu- > teso | XIV, forma divergente de tenso |1858 (lat. tensus, a, um
‘estendido’, ‘esticado’)

232
● Nasalação ou nasalização [Passagem de um fonema
oral a nasal]
mi > mim (lat. mī /mihi, dativo de ego ‘eu’)

mea- > mĩa | XIV > minha (lat. mĕus, mĕa, mĕum ‘meu’)

nidu- > nĩo > ninho | XIV : queda do –d, nasalação do i e posterior
palatalização (lat. nīdus -i ‘habitação das aves’)

uinu- > vĩo > vinho | XIII (lat. uīnum, -i ‘vinho’)

una- > ũa | XIII > uma | XVI (lat. ūnus, a, um ‘um, uma’)

ne (LV) > ne > nem (lat. nĕc ‘nem’)

multu- > muito > muito | XIII (lat. multus, a, um ‘numeroso’)


Se ambas as vogais eram semelhantes e a primeira tônica, a ressonância
nasal se mantinha e as vogais se contraíam:

bonu- > bõo | XIII > bom | XIV (lat. bŏnus, a, um ‘bom’)

lana- > lãa | XIII > lã | XVI (lat. lāna, -ae ‘lã’)

tenes > tẽes > tens (tĕnēs: 2a. pess. sg. do pres. ind. do verbo lat. tĕnēre
‘ter’)
“A nasalação produzida pelo n intervocálico é um dos principais
característicos fonéticos do português”. [In: COUTINHO, Ismael de Lima.
Pontos de Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978,
pág. 115]
“No curso do século X, o n intervocálico nasalizou a vogal precedente e
caiu”. [In: WILLIAMS, Edwin B. Do Latim ao Português. Fonologia e
Morfologia Históricas da Língua Portuguesa. Trad. de Antônio Houaiss.
Rio de Janeiro: TB, 1975]

● Desnasalação [Perda da qualidade nasal de um fonema, que assim se


torna puramente oral.]

233
persona- > pessõa | XIII > pessoa | XIV (lat. persōna, -ae ‘máscara’;
‘pessoa’)

bona- > bõa > boa | XIII (lat. bŏnus, a, um ‘bom’)

corona- > corõa > coroa | XIII (lat. corōna, -ae ‘coroa’)

luna- > lũa | XIII > lua | XIV (lat. lūna, -ae ‘lua’)

tenere > tẽer > teer | XIII > ter | XIII (lat. tenēre ‘segurar’; ‘ter’)

anellu- > ãelo > aelo > eelo > elo (lat. anĕllus, -i ‘anel’)

tenebras > tẽevras > teevras > tevras > trevas (lat. tenĕbrae, - ārum
‘trevas’)

● Metátese [Transposição de um fonema dentro de um


vocábulo]
pigritia- > pegriça > preguiça | XIV (lat. pigritia, -ae ‘preguiça’)

tenebras > tẽevras> teevras > tevras > trevas (lat. tenĕbrae, -ārum
‘trevas’)

fenestra- > feestra | XIII > fresta | XV (lat. fenestra, -ae ‘janela’, ‘fresta’)

semper > sempre | XIII (lat. semper ‘sempre’)

super > sobre | XIII (lat. sŭper ‘sobre’)

inter > entre | XIII (lat. inter ‘entre’)

capio > *cabio > caibo (lat. capio : 1ª pess. sg. do pres. ind. do v. capĕre
‘pegar’)

primariu- > *primairo > primeiro | XIII (lat. primārius, a, um ‘primeiro’)

234
● Vocalização [Mudança fonética que consiste na passagem de uma
consoante a vogal.]
doctu- > douto (lat. dŏctus, a, um ‘instruído’)

secta- > seita | XIII (lat. secta, -ae ‘partido’, ‘escola’)

lectore- > leitor (lat. lector, -oris ‘leitor’)

directu- > lat. vulg. derectu > direito (lat. directus, a, um ‘colocado em
linha reta’, ‘reto’)

actu- > auto | XIV (lat. āctum, -i ‘ação’)

lacte- > leite | XIII (lat. lac, lactis ‘leite’)

lectu- > leito | XIII (lat. lĕctus, -i ‘leito’, ‘cama’)

factu- > *faito > feito (lat. factus, a, um ‘feito’)

alteru- > autru > outro | XIII (lat. alter, a, um ‘outro’)

absentia- > ausência | XV (lat. absentia, -ae ‘ausência’)

● Consonantização [Transformação de um fonema vocálico num


consonantal; esse fenômeno ocorre com as semivogais i e u.]
ia[m] > já (lat. iam ‘já’)

ieiunu- > jejum | XVI (lat. ieiūnus, a, um ‘que está em jejum’)

Hieronymu- > Jerônimo (lat. Hieronymus, -i)

iustu- > justo | XIII (lat. iustus, a, um ‘justo’)

uagare > vagar | XV (lat. uagāre ‘vaguear’)

*uiuēre > viver | XIII (lat. uiuĕre ‘viver’)

235
● Assimilação [Aproximação ou perfeita identidade de dois fonemas,
resultante da influência que um exerce sobre o outro; regressiva – o fonema
assimilador está depois; progressiva – o fonema assimilador está antes;
total/parcial ]
palumba- > paomba | XIII > poomba XIII > pomba (lat. palumba -ae
‘pomba’)

calente- > caente | XIII > queente XIV > quente | XIV (lat. calens, -entis,
part. pres. de calēre ‘estar quente’)

factu- > * faito > feito (lat. factum, -i ‘feito’, ‘ação’)

auru- > ouro | XIII (lat. aurum, -i ‘ouro’)

paucu- > pouco | XIII (lat. paucus, a, um ‘pouco numeroso’)

raucu- > rouco (lat. raucus, a, um ‘rouco’)

tauru- > touro | XIII (lat. taurus, -i ‘touro’)

pausare > pousar | XIII (lat. pausāre ‘cessar’, ‘parar’)

persicu- > pêssego | XV (lat. persǐcum, -i (mālum) ‘pêssego’) [O pêssego


veio da Pérsia para Roma]

persona- > pessõa | XIII > pessoa | XIV (lat. persōna, –ae ‘máscara’;
‘personagem’; ‘pessoa’)

ipse > esse | XIII (lat. ǐpse ‘ele mesmo’)

verlo > vello > vê-lo

perlo > pello > pelo | XIII

236
● Dissimilação [Diversificação ou queda de um fonema por já existir um
fonema igual ou semelhante no mesmo vocábulo.]
rotundu- > rodondo > redondo (lat. rotŭndus, a, um ‘redondo’)

tonsoria- > tosoira > tesoira | XIV (lat. tōnsōrius, a, um ‘que serve para
cortar’)

locusta- > logosta > lagosta | XVI (lat. locŭsta, -ae ‘gafanhoto’; ‘lagosta’)

aratru- > arado | XVII (lat. arātrum, -i ‘instrumento agrícola para


lavrar a terra’)

rostru- > rosto | XIII (lat. rōstrum, -i ‘bico (de ave)’)

anima- > alma | XIII (lat. anǐma, -ae ‘sopro’; ‘respiração’; ‘alma’)

memorare > * memrar > membrar | XIII > nembrar | XIII > lembrar
| XV (lat. memorāre ‘memorar’, ‘recordar’)

parabola- > paravra > palavra | XIII (lat. parabola, -ae ‘parábola’)

● Apócope [ Se o e era o som final da palavra em latim vulgar e era


precedido por um l, n, r, s ou c ou pelo grupo t + i, então ele caía.]
male > mal | XIII (lat. male ‘mal’)

sole- > sol | XIII (lat. sōl, sōlis ‘sol’)

homine > ome | XIII (lat. homō, -ǐnis ‘homem’)

cane- > cam | XIII (lat. canis, -is ‘cão’)

uenit > vem (uĕnit: 3ª pess. sg. do pres. ind. do v. uĕnire ‘vir’)

commune- > comu | XIV , comum | XIV (lat. commūnis, -e ‘comum’)

237
quaerit > quer (quaerit: 3a. pess. sg. do pres. do ind. do v. quaerĕre
‘procurar’)

mense- > mês | XIII (lat. mensis, -is ‘mês’)

facit > faz (fǎcit: 3ª pess. sg. do pres. do ind. do v. fǎcĕre ‘fazer’)

fecit > fez (fēcit: 3ª pess. sg. do perf. do ind. do v. fǎcĕre ‘fazer’)

aut > ou | XIII (lat. aut ‘ou’)

et > e | XIII (lat. et ‘e’)

ad > a | XIII (lat. ad ‘para’, ‘a’)

*cosēre > coser | XIII (lat. consuĕre ‘coser’)

cocēre (LV) > cozer | XIII (lat. coquĕre ‘cozinhar’)

N.B.:

centu- > cento > cem (lat. centum ‘cem’)

dominu- > donno > dom | XIII (lat. domǐnus, -i ‘senhor’)

grande- > grande > grão | XIV (usado apenas em nomes compostos) (lat.
grandis, -e ‘grande’)

sanctu- > santo | XIII > são (lat. sanctus, a, um ‘santo’)

ille > ele > el (arcaico)

multu- > muito > mui | XIII (lat. multum ‘muito’)

238
Algumas formas apocopadas são encontradas apenas em expressões

estereotipadas, algumas apenas em topônimos:

bellu- > bel ‘a bel prazer’ (lat. bellus,a,um ‘belo’)

● Abrandamento [chamado também de degeneração]


-b- > -v-
caballu- > cavalo | XIII (lat. caballus, -i ‘cavalo ruim’)

habere > haver (lat. habēre ‘ter’, ‘possuir’)

debere > dever | XIII (lat. dēbēre ‘dever’)

● Metafonia [Mudança de timbre da vogal de uma raiz ou de um sufixo


lexical por assimilação à vogal do sufixo flexional. A metafonia ocorreu em
português pela influência do a e do o finais sobre o e e o o tônicos.]
iocu- > jogo | XIII (lat. iŏcus, -i ‘gracejo’; ‘divertimento’)

focu- > fogo | XIII (lat. fŏcus, -i ‘fogo’)

porcu- > porco | XIII (lat. pŏrcus, -i ‘porco’)

nouu- > novo | XIII ( lat. nŏuus, a, um ‘novo’)

formosa- > formosa (lat. formōsus, a, um ‘formoso’)

populu- > poboo | XIII > povo (lat. pŏpulus, -i ‘povo’)

metu- > medo | XIII (lat. mĕtus, -us ‘medo’)

ista- > esta | XIII (lat. ǐsta ‘essa’)

hora- > hora | XIV (lat. hōra, -ae ‘hora’)

239
posui > pousi > posi > pus (pŏsui ‘1a pess. sg. do pret. perf. do ind. do v.
pōnĕre ‘pôr’)

totu- > tudo | XIII (lat. tōtus, a, um ‘todo’)

feci > fezi > fizi > fiz (fēci ‘1a pess. sg. do pret. perf. do ind. do v. fǎcĕre
‘fazer’)

● Aférese [Perda de um fonema inicial]


enamorar | XIII < en + amor + ar > namorar | XIII

horologiu- > rologio > relógio (lat. horŏlŏgium, -i ‘relógio’)

insania- > sanha | XIII (lat. insânia, -ae ‘loucura’, ‘desatino’)

● Epêntese [Desenvolvimento de um fonema no interior do vocábulo]


credo > creo > creio (lat. crēdo ‘1a pess. sg. pres. ind. do v. crēdĕre ‘crer’)

frenu- > freo | XIII > freo XIII > freio | XIV

humeru- > *omro > ombro | XIII (lat. humĕrus, -i ‘ombro’)

memorare > *memrar > membrar | XIII nembrar | XIII > lembrar | XV
(lat. memŏrāre ‘lembrar’)

ingenerare > *engenrar > engendrar | XIV (lat. ingenerāre ‘fecundar’)

audit > ouve (audit 3a pess. sg. do pres. ind. do v. audīre ‘ouvir’)

laudat > louva (3a pess. sg. do pres. ind. do v. laudāre ‘louvar’)

N.B. A epêntese especial que consiste em desfazer um grupo de consoantes


pela intercalação de uma vogal chama-se anaptixe ou suarabácti: [anaptixe
< gr. ana ‘idéia de inversão’; ptix ‘dobra’, i.e. ‘desdobramento’ | suarabácti
< sânscrito suara ‘vogal’, raiz verbal para ‘dividir’, ‘-ti’, sufixo.]

240
*kruppa (germ.) > *grupa > garupa | XVII

blata- > *bratta > barata | XVI (lat. blatta, -ae ‘traça’)

“No português moderno há anaptixe nos grupos consonânticos em que o

segundo elemento é oclusiva ou constritiva ou nasal, criando-se vogal

reduzida que faz do primeiro elemento uma consoante crescente e, na

língua popular do Brasil, passa a vogal plena (cf. adevogado por advogado,

peneu por pneu etc.) ” . In: CÂMARA JR., J. Mattoso, op. cit.

● Paragoge ou Epítese [Acréscimo de um fonema no final


de um vocábulo]
ante > antes | XIII (lat. ante ‘antes’)

chic (fr.) > chique | 1873

beef (ing.) > bife | 1844

club (ing.) > clube

film (ing.) > filme | XX

kiosk (fr.) > quiosque

● Prótese/Próstese [Acréscimo de um fonema no início de um vocábulo]

241
stare > estar | XIII (lat. stāre ‘estar de pé’)

scutu- > escudo | XIII (lat. scūtum, -i ‘escudo’)

splendidu- > esplêndido | 1813 (lat. splendǐdus, a, um ‘brilhante’)

História da Língua Portuguesa

“O português primitivo:

Foi durante o domínio árabe que se acentuaram as características


distintivas dos romances peninsulares.
Na região que compreendia a Galiza e a faixa lusitana entre o Douro e
o Minho constituiu-se uma unidade lingüística particular que conservaria
relativa homogeneidade até meados do século XIV – o galego-português.
O galego-português, provavelmente, teria contornos definidos desde o
século VI, mas é só a partir do século IX que podemos atestar a sua
existência através de palavras que se colhem em textos de latim bárbaro
[Chama-se latim bárbaro a língua dos documentos forenses da Idade
Média, em que, no texto latino, se inserem vocábulos do romance regional].
Datam do século XIII os primeiros documentos que chegaram até nós

integralmente redigidos em galego-português. Inicia-se então a fase

propriamente histórica de nossa língua, que, como todo idioma dotado de

vitalidade, não se tem mantido uniforme nem no tempo, nem no espaço.

Baseando-nos em parte numa conhecida periodização proposta pelo

sábio lingüista José Leite de Vasconcelos, distinguiremos as seguintes

etapas na evolução do latim ao português atual:

242
a) latim lusitânico, língua falada na Lusitânia, desde a implantação do
latim até o século V;

b)romance lusitânico, língua falada na Lusitânia, do século VI ao


século IX, da qual, como da fase anterior, não temos nenhum
documento escrito;

c) português proto-histórico, língua falada na Lusitânia, do século IX


até fins do século XII, e da qual podemos vislumbrar algumas
características nas palavras intercaladas em textos do latim bárbaro;

d)português arcaico, que vai de princípios do século XIII (1211?) até a


primeira metade do século XVI, quando a língua começa a ser
codificada gramaticalmente [A primeira gramática de nossa língua –
A Grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernão de Oliveira – foi
publicada em 1536];

e) português moderno, que se estende da segunda metade do século


XVI até os dias que correm.

Os períodos arcaico e moderno da língua portuguesa comportam


subdivisões, como reconhecia o próprio Leite de Vasconcelos.

Parece-nos particularmente aconselhável distinguir duas épocas no

período compreendido entre o século XIII e a primeira metade do século

XVI; uma, a do português arcaico propriamente dito, que abarcaria a língua

dos séculos XIII e XIV; outra, a do português médio, que iria do século XV

a fins da primeira metade do século XVI e representaria a fase de transição

entre a antiga e a moderna do idioma”.

In: CUNHA, Celso Ferreira da. Gramática da Língua Portuguesa. Rio


de Janeiro: MEC, 1979.

243
Autores
ALAIR FIGUEIREDO DUARTE
Pesquisador do Núcleo de Estudos da Antigüidade - NEA / UERJ

ALICE DA SILVA CUNHA


Doutora em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Adjunta de Língua e Literatura Latina / UFRJ

AMÓS COÊLHO DA SILVA


Doutor em Letras Clássicas (UFRJ)
Professor Adjunto de Língua e Literatura Latina / UERJ

ANA THEREZA BASILIO VIEIRA


Doutora em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Adjunta de Língua e Literatura Latina / UFRJ

ARLETE JOSÉ MOTA


Doutora em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Adjunta de Língua e Literatura Latina / UFRJ

CECILIA LOPES DE ALBUQUERQUE ARAÚJO


Doutora em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Adjunta de Língua e Literatura Latina / UFRJ

DULCILEIDE VIRGINIO NASCIMENTO


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Assistente de Língua e Literatura Grega / UERJ

ELIANA DA CUNHA LOPES


Mestre em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Assistente de Língua e Literatura Latina / FGS

GLÓRIA BRAGA ONELLEY


Doutora em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Adjunta de Língua e Literatura Grega / UFF

JOSÉ ROBERTO PAIVA GOMES


Mestre em História Antiga (UERJ)
Membro do Núcleo de Estudos da Antigüidade – NEA / UERJ
Professor Assistente de História Antiga / UERJ

KATIA TEÔNIA COSTA DE AZEVEDO


Especialista em Letras Clássicas (UERJ)

LENI RIBEIRO LEITE


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas (UFRJ)

MÁRA RODRIGUES VIEIRA


Doutora em Letras Clássicas (UFRJ)

244
Professora Adjunta de Língua e Literatura Latina / UFRJ

MÁRCIA REGINA DE FARIA DA SILVA


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Assistente de Língua e Literatura Latina / UERJ

MARIA REGINA CÂNDIDO


Doutora em História Antiga (UERJ)
Coordenadora do Núcleo de Estudos da Antigüidade (NEA/UERJ)
Professora Adjunta de História Antiga / UERJ

MICHELE EDUARDA BRASIL DE SÁ


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Assistente de Língua e Literatura Latina / UFRJ

NELY MARIA PESSANHA


Doutora em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Titular de Língua e Literatura Grega / UFRJ

PAULO ROBERTO SOUZA DA SILVA


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas (UFRJ)
Professor de Língua e Literatura Latina / UFRJ

RICARDO DE SOUZA NOGUEIRA


Mestre em Letras Clássicas (UFRJ)
Professor Assistente de Língua e Literatura Grega / UFRJ

RONALD WILSON MARQUES ROSA


Pesquisador do Núcleo de Estudos da Antigüidade – NEA / UERJ

SANDRA VERÔNICA VASQUE CARVALHO OLIVEIRA


Professora de Língua e Literatura Latina / UFRJ

SHIRLEY FÁTIMA GOMES DE ALMEIDA PEÇANHA


Doutora em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Adjunta de Língua e Literatura Grega / UFRJ

TATIANA BERNACCI SANCHEZ


Professora de Língua e Literatura Grega / UERJ

TATIANA OLIVEIRA RIBEIRO


Mestre em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora de Língua e Literatura Grega / UFRJ

TEREZA VIRGÍNIA R. BARBOSA


Doutora em Letras Clássicas (UFMG)
Professora Adjunta de Língua e Literatura Grega / UFMG

VANDA SANTOS FALSETH


Doutora em Letras Clássicas (UFRJ)
Professora Adjunta de Língua e Literatura Latina / UFRJ

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