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Priscilla Campos

Nenhum muro
à altura do peito
formas de narrar em Um falcão no
punho, de Maria Gabriela Llansol

camafeu 3
© Priscilla Campos, 2019

Este livro segue as normas do Novo Acordo


Ortográfico da Língua Portuguesa

coleção camafeu

Produção editorial
Fred Spada
Otávio Campos

Projeto gráfico
Otávio Campos

Revisão
Fred Spada

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

C198n Campos, Priscilla, ANO - .


Nenhum muro à altura do peito: formas de narrar em
Um falcão no punho, de Maria Gabriela Llansol /
Priscilla Campos – Juiz de Fora: Edições Macondo, 2019.

isbn 978-85-93715-17-4

1. Ensaio I. Título
cdd: B869.4

[2019]
edições macondo
Rua Dom Silvério, 302/302a
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nenhum muro à altura do peito
No conjunto de textos Crítica e clínica, Gilles
Deleuze (2011) explora a relação entre a escrita e uma
necessidade de ódio direcionado à língua materna. As-
sim como nos estudos de George Steiner, para o qual
a literatura ocidental estabelece uma espécie de gênero
extraterritorial e endossa a figura do exilado, o filósofo
afirma que escrever é a invenção da linguagem que se
diz, de algum modo, estrangeira. A literatura, enfim,
torna-se possível quando a língua se afasta dos “seus
sulcos costumeiros” e entra em fase de delírio, como
visto em Deleuze. Ao longo de sua obra, Maria Gabriela
Llansol (1931 – 2008) formou um sistema literário no
qual os devires deleuzianos são postos em diálogo com
questões da ficcionalidade e com territórios distantes
da formalização conhecida – o que vou chamar de áreas
llansolianas.
Os diários e fragmentos da autora portuguesa cons-
tituem rastros desse ódio direcionado à língua materna,
pistas de um alguém dedicado à observação do cotidia-
no menos por cronologia ou restituição da memória,
mais pela vontade de interpretar e figurar o mundo no
texto. Um falcão no punho (1985), primeiro volume dos
registros de Llansol, apresenta lacunas, grandes inter-
valos entre uma entrada e outra, recorte temporal de
quatro anos – período de exílio na Bélgica, desloca-
mentos que passam por Jodoigne, Lisboa, Herbais e ou-
tras áreas llansolianas, esses espaços imaginados, cons-
truídos na página e na palavra, jamais vistos nos mapas.
Dessa maneira, o teto todo seu, de que falou Virginia
Woolf, está também em movimento – tanto em termos
de espaço concreto quanto de espaços transformados
e imaginados. Os diários da autora portuguesa são um

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tipo de provocação à figura do escritor que encontra,
em seu quarto fechado, milimetrado e burguês, o co-
nhecimento que engrena a sua criatividade literária.
Assim, para Llansol, a filosofia, a literatura e a reescrita
de territórios são frutos não só de deslocamentos como
de conexões diretas com um tipo de ecossistema e de
comunidade, que vai além do esperado, dentro da ló-
gica do patriarcado, da relação entre a mulher e a na-
tureza. Assim, pode-se pensar nessa negação, em seus
diários, tanto do contexto patriarcal do conhecimento
perpetuado pela representação solitária do “homem
pensante”, quanto também da experiência capitalista de
individualização dos processos criativos.
Sandra M. Gilbert e Susan Gubar (1998), em La loca
del desván – La escritora e la imaginación literaria del
siglo XIX, iniciam o panorama histórico sobre a relação
entre as mulheres e a escrita dissertando sobre como
a pena pode ser considerada um pênis metafórico. De
acordo com as teóricas, no século XIX, nomes como
Gerard Manley Hopkins afirmavam que os artistas pos-
suíam uma execução magistral que provinha do dom
masculino. Assim, o lugar da mulher jamais seria o da
escrita porque a sua condição como gênero era um fa-
tor impeditivo. Pensar na execução de diários escritos
por uma mulher, em tal contexto, pode soar como um
tipo de subversão, apesar de esse tipo de escrita ser con-
siderada “menor” e, portanto, autorizada para as mu-
lheres. Essa tensão do texto como lugar fixo ou move-
diço, quando manejado por mulheres, é um dos pontos
estruturais de Um falcão no punho.
As declarações de Hopkins, como visto no texto de
Gilbert e Gubar, colocam em questão a autoridade do
escritor e sua relação tão próxima a Deus: o dom divino
que foi dado apenas aos homens. Dessa maneira, o diá-
rio de Llansol é também o resultado de uma mudança
nas peças do jogo: o divino em jogo com a filosofia,
com o território e com a nação, tudo reestruturado, na
palavra de mulher.
No livro Espèces d’espaces (2000), Georges Perec
apresenta um tipo de catálogo com cinquenta e duas
expressões utilizando o termo espaço. Tal sequência, a
seguir, pode funcionar como ilustração-guia do traba-
lho de Llansol: conquista do espaço/ espaço morto/ es-
paço de um instante/ espaço celeste/ espaço imaginário/
espaço frouxo/ espaço disponível/ espaço percorrido. In-
teressante observar: Perec é um dos escritores que re-
presentou o espaço patriarcal por excelência – a ver, a
sua obra O homem que dorme, por exemplo – e assim
perpetuou a relação entre homem e espaço na literatura
europeia. Porém, utilizo as suas classificações do espaço
com o intuito de colocá-las em outra perspectiva, como
premissa de uma possibilidade de enunciação – utilizar
os termos para pensar um novo modo de leitura – que
não foi desenvolvida, com detalhes, em seu livro.
No primeiro trecho de Um falcão no punho, datado
de 27 março de 1979, a autora está em Jodoigne – local
que também figura como espaço-fim do diário. Llansol
inicia o livro quase como enuncia um enigma, diz estar
“acompanhada pelos lagos”, alude ao tempo de maneira
remota e faz um jogo semântico com os vocábulos “pe-
ríodos” e “perigos”:

Tal como sou acompanhada pelos lagos – águas


adormecidas naturais e duráveis –, de igual modo
deve fazer parte da sombra,
que se desloca comigo,
inscrever os dias estendidos por longo período de
tempo.
No seu calendário deve impor-se imediatamente
a noção de noite – uma semana, um mês, um ano
de noites. Sem o calendário, o fluir do tempo deve

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parecer-lhe incomensurável, e torna-se um obstá-
culo à separação clara entre as figuras que voltam
em períodos (perigos) regulares, ao mesmo ponto
da abóbada. (LLANSOL, p. 7, 1998)

De acordo com Augusto Joaquim, crítico literário


português que assina o posfácio da segunda edição do
diário, Llansol principia seu relato de forma “não-co-
mum”, “não-convencional”, abordando um “real-não
-habitual”. Ao pensar nos estudos da crítica feminista,
o comentário de Augusto Joaquim está em acordo com
o espanto do sistema que se pergunta: como é possível
a escrita de uma mulher não tratar de algo corriqueiro
e comezinho? Como uma mulher pode tratar de assun-
tos filosóficos com autonomia e, ao mesmo tempo, te-
cer relações entre eles e os lugares “comuns” à ideia da
feminilidade? Em The madwoman in the attic, Gubar e
Gilbert (1979) afirmam que as escritoras, no contexto
do gótico, precisam transcender as imagens de “anjo”
e “monstro”, geradas pelos homens. Assim, Llansol rei-
vindica a imagem da mulher monstruosa da maneira
mais objetiva possível: escrevo e também sou mulher;
sou mulher e também escrevo.
Quando a escritora funde a sua sombra com águas
adormecidas e declara o deslocamento, cria-se o es-
paço pouco universal, que recebe essa figura estranha
aos olhos do discurso hegemônico, “acompanhada dos
lagos” e encaminhando-se, a princípio, para uma abó-
bada completamente desconhecida e banal, naquele
momento, para o leitor. A mulher como figura que se
assemelha às águas profundas, escuras e paradas, está
presente em diversos mitos e arquétipos.
Neste ponto, também observo o desvio da norma
que representa uma mulher exercer os seus devires,
questionar o tempo e suas movimentações. As áreas
llansolianas são, portanto, espaços “de fora”, exteriores

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mesmo quando interiores (quartos, salas); locais intei-
ramente da autora, onde a polarização da objetividade
do espaço e da subjetividade do espaço formam o pen-
samento do fora ou pensamento do exterior – definições
defendidas por Michel Foucault e Maurice Blanchot.
A partir das expressões as quais tomei emprestadas de
Espèces d’espaces, observo o desejo de Llansol em rees-
crever a sua pátria, organizar leituras, referências e no-
tas de futuros livros. A literatura como possibilidade de
adestramento da realidade, resultando em estranhos
enxertos do mundo em nós.
O objetivo deste ensaio, contudo, não é precisar
qualquer conceito dentro da obra da autora portuguesa
ou fixar Um falcão no punho como testemunho de abso-
luta singularidade dentro de sua produção – a ver, por
exemplo, Finita (1987), Inquérito às quatro confidências
(1996), diários que também exerceriam peso igualitário
dentro de uma análise como esta. Pretendo, com o con-
torno escolhido, esboçar um início (tanto cronológico,
quanto a título de definições teóricas) de observações
voltadas às formas de narrar propostas por Llansol, o
que chamei de Nenhum muro à altura do peito – proces-
so no qual a escrita entra em constante paralelo com o
sujeito, o espaço, a história, como na condição de uma
modernidade em crise. Assim, a escritora tenciona os
seus deslocamentos com o intuito de estabelecer algu-
mas contradições entre corpo, pensamento e escrita,
destruindo os muros que se colocam como possíveis
sufocos entre as mulheres e o fazer literário.

a casa, o jardim

A expressão conquista do espaço desempenha aplica-


bilidade crescente durante a leitura de Um falcão no pu-
nho. Duas áreas llansolianas constantes no diário são as

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casas e os jardins. Jodoigne e Herbais são conquistadas
pelo eu narrativo por meio das descrições dos cômodos,
das plantas, dos afazeres na terra; jantares, encontros
em bancos de pedra, observações de árvores, etc. “Hoje
sonhei que, nas janelas da lembrada casa de Jodoigne,
tinham colocado folhas com notícias de uma revolta
que ressuscitaria a cidade”, escreve Llansol, em Herbais,
no dia 2 de outubro de 1981.
Na sentença curta estão diversos elementos narra-
tivos importantes para a compreensão do devir-espaço
nos diários: a janela da casa foi o local escolhido para
anunciar a revolta de ressureição de uma cidade sem
nome; as folhas são os objetos naturais que carregam
essa notícia de alarme. Dessa maneira, Llansol designa
poder à casa e à natureza e as coloca como centro de
autoridade e decisão. Assim, as áreas llansolianas são
também a sustentação de um corpo que não se contenta
apenas em ocupar o espaço como matéria, mas também
de pensá-lo e defini-lo de outras maneiras.
Em “O fim da inocência: das medusas de ontem e
de hoje”, Rita Teresinha Schmidt (2006) afirma que as
mulheres estão “desorganizando o arquivo monumen-
tal da cultura”, além de a presença de textos e nomes de
mulheres na nossa cultura promover uma desestabili-
zação do cânone, das certezas quanto a sua configura-
ção/significação. A relação criada por Llansol com os
ambientes particulares é um modo de desordenar as ex-
pectativas pré-estabelecidas, pois a casa torna-se espaço
de revolução. O diário, nesse aspecto, oferece a ideia de
que absolutamente tudo pode ser dito – essa liberdade,
intrínseca ao gênero, é tensionada por Llansol a todo
instante.

Quando, neste mês de Novembro de um único


matiz, consigo escrever apenas em Diário, creio
que é porque se infiltra agora a procura do homem

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concreto que subentende a figura; ao voltar a ler o
que tinha anotado nos passados dias em Jodoigne,
dei-me conta de que, hoje, havia uma grande dife-
rença ao nível da cena em que vivíamos. O que se
passa, passa-se num jardim, ou numa casa, numa
sala, ou numa rua, ou junto de uma árvore, en-
fim, no interior ou no exterior. Eu estou a meio
caminho entre o interior e o exterior e o que devo
contar, para ser compreensível, é como se torna
efectiva uma das hipóteses da passagem. (LLAN-
SOL, p. 66, 1998)

O texto autobiográfico parece como uma alternativa


para efetivações do real, porém, também desperta aten-
ção aos limites do interior, exterior de sua narradora
e de suas escolhas espaciais. Llansol está sempre cami-
nhando em uma corda de fortes sensações relacionadas
ao devir-terra, mas a sua interpretação do espaço ao
redor só se torna palpável por meio da escrita. As com-
parações entre os momentos em Jodoigne e Herbais
são exemplos de observações voltadas para a questão:
como uma cidade e seus sítios podem inscrever-se no
sujeito? No fim do mês de novembro de 1981, Llansol
grafa, sobre Herbais, o seguinte trecho: “o tempo é ac-
tual, e a realidade não tem espessura, foi abandonada
por cenas fulgor que eram o seu volume”. O espaço está,
então, acima do tempo, domina as horas, os minutos e
os segundos, impera no presente, no estado das coisas,
das pessoas, dos pensamentos. O que a escritora procu-
ra é associar, como exilada, o espaço como organizador
do tempo e, ato contínuo, responsável pela negação da
língua. Em Um falcão no punho nega-se a língua porque
se faz necessário que o corpo se estique no espaço e o
domine sem linguagem prévia.
Luis Alberto Brandão (2013) defende que a expe-
riência estética no texto literário é, paradoxalmente, tão

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mais associada à realidade quanto mais exercita sua au-
tonomia em relação a ela. Ora, no decurso de Um falcão
no punho, a manifestação espacial segue tal paradoxo
– Llansol tenta sair, várias vezes, de modo metafórico,
do lugar em que está, afinal, o exílio afastou-a de um
relevo antes sempre seu, sempre seguro. A casa trans-
forma-se no espaço morto/ espaço de um instante, e para
lidar com essa dicotomia – vivo ali, mas também morro
ali – faz-se urgente métodos de ressignificação que são
alcançados através da linguagem. “É a minha própria
casa, mas creio que vim fazer uma vista a alguém”, única
frase escrita no dia 10 de maio de 1979, segundo frag-
mento do diário. A casa é estrangeira e, para que seja
tomada, é preciso entregar-lhe soberanias diversas, cré-
ditos integrais.

Fundada na luz que se eleva na cozinha, e que


desce, condensando-se, da bandeira multicolor da
porta da entrada, junto-me a Spinoza, para subju-
gar o meu chacal, com a sua geometria; mais uma
paixão, mais um momento de ódio, mais uma he-
sitação, mais saber que se transforma em fio subtil
de poder, mais um instante de medo, eis o dia. E
o sinal de que a madrugada está a passar, decom-
pondo-se nos seus elementos e vestígios. Por mais
sombrios que sejam os dias, a companhia de Spi-
noza não me deixa nunca ficar muito tempo sem a
terra, o ar, e o fogo. (LLANSOL, p. 46, 1998)

A filosofia de Spinoza é evocada em vários trechos


do diário. Ao aproximar os espaços domésticos, como a
cozinha, e as leituras do filósofo holandês racionalista,
Llansol atribui aos ambientes da casa uma representa-
ção erudita. A escritora não está citando qualquer co-
zinha: essa, de sua casa, remete a Spinoza, ao saber, ao
conhecimento. E um filósofo que definia o tempo como
modo de pensar, ou seja, não como medida exata de

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passagem, mas de duração em duração. No movimento
e no espaço, as durações são alteradas, como nos mos-
tra Llansol, e tornam-se limiares, portais de tempo que
são factíveis apenas naquele espaço assinalado. Dessa
maneira, não basta entregar ao espaço e seus utensílios
sinônimos de poder, é preciso também os legitimar
como portais da razão.
A sua constante ligação com a natureza – ademais,
uma alusão aos estudos sobre Spinoza – é ponto chave
das áreas llansolianas em toda a sua obra. O jardim se
configura como um espaço público e, ao mesmo tempo,
privado, local de batalhas menores, de sentir o vazio,
mas também de encontrar a Verdade. Ao nomear um
microcosmo com maiúscula, a autora, mais uma vez,
transforma espaço em centro de poder. Escreve em
abril de 1981:

O jardim de Herbais custa-me dores nas costas.


Depois de poucas horas de trabalho, mal posso
mover-me. Mas são-me igualmente necessárias
as plantas, e os espaços vazios. Os espaços vazios,
também são plantas. A parte do entendimento
que desconheço? (LLANSOL, p. 39, 1998)

No fragmento acima, Llansol expressa a sua vontade


extrema em estar perto do vazio e, por consequência,
das plantas. É nesse local carente e livre que a escritora
encontra seus personagens, conversa com o companhei-
ro, trabalha, caminha, analisa as árvores, empreende
andanças. Em outro trecho, ela fala da “palavra-jardim”
como um intermédio entre um dia de crise e o final.
O jardim consta no meio da agonia, porém, antes da
grande serenidade; é o espaço percorrido, o local onde
Llansol está em busca de sua paz, mas encontra outras
tantas opções de contemplação no caminho.

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Neste ponto, tomo a liberdade de acrescentar mais
uma expressão à lista de Perec: espaço-pensamento, de-
finida, a seguir, por Luis Alberto Brandão:

Em termos filosóficos gerais, há duas maneiras


básicas de explorar a espacialidade do pensa-
mento: a metafísica e a hermenêutica. Segundo o
prisma metafísico, o pensamento almeja o plano
das Ideias, lugar da Utopia: paradoxalmente, lugar
que não é lugar, negação da natureza acidental dos
lugares concretos. [...] Segundo tal perspectiva, a
pergunta que se endereça à Cidade – e ao Espaço
– corresponde àquela dirigida à Verdade e ao Ser.
[...] O prisma hermenêutico, na direção contrária,
concebe o espaço, relacionalmente, enfatizando
não o Ser, mas o Estar, atribuindo aos espaços, de
maneira inexorável, a potencialidade dos desloca-
mentos. (p. 62-63, 2013)

As áreas llansolianas, espaços que estão no elo da


casa – sala, cozinha, quarto, mesa de jantar, jardim, e
la nave va – oscilam entre os dois espaços-pensamentos.
Em certas passagens, Llansol está à procura do Ser no
espaço, de encontrar-se no meio das raízes que a ro-
deiam ou dos objetos que a servem; no outro instante,
o Estar lhe é mais caro, perceber o movimento entre as
cidades belgas, as voltas à Portugal, as pequenas ruas de
Herbais e Jodoigne dão o tom do relacionamento entre
o espaço e o seu sistema literário.
Desta feita, as correspondências espaciais em Um
falcão no punho são formas de narrar que aplicam aos
lugares significações filosóficas, pouco memorialistas e,
sobretudo, elucidativas de uma escritora que ainda es-
tava no início de sua obra – de alguém que não receava
cinismos, nem encolhia os ombros. Quando atribui tais
características inquietantes e, ao mesmo tempo, virtuo-
sas aos espaços, Llansol prestigia a ideia de localização

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como modeladora do tempo, do desejo, da ausência e
do sujeito atento às investigações detalhadas da reali-
dade.

a nação, a escrita

Segundo Rita Teresinha Schmidt (2000), em “Mu-


lheres reescrevendo a nação”, a relação familiar entre
literatura e identidade nacional se impôs no século
XIX para uma elite dirigente empenhada na elabora-
ção de uma narrativa que pudesse traduzir símbolos
e ideologias da independência política. Schmidt grafa
“Construir a nação significava construir uma literatura
própria, começando pela demarcação de sua história,
conforme princípios de seleção e continuidade que pu-
dessem sustentar um acervo de caráter eminentemente
nacional” (p. 85). No livro A escrita da história, Michel
de Certeau (1982) discute a relação entre o real e o dis-
curso; a presença do corpo historiado, do presente e do
passado nas fases da reconstituição de todo relato es-
crito.
As conexões entre Llansol e sua pátria são um ponto
de tensão ao longo de vários de seus títulos, como Geo-
grafia dos rebeldes e Lisboaleipzig I. O encontro inespera-
do do diverso. Em 27 de junho de 1982, ela expressa suas
apreensões durante uma visita à capital lusitana:

Eu vim a uma cidade onde corro um grande ris-


co: Lisboa. Em nenhum lugar me aflige mais
transgredir qualquer preceito ou regra. Mesmo se
não falam de mim, e não fui ainda convertida em
qualquer linguagem; no entanto, cheguei à cidade
e decidi ficar porque um conhecimento me tinha
procurado longe, em Herbais, dizendo que volta-
ria a vir ver-me com um trabalho inesperado se
eu esperasse por ele num jardim do meu bairro.
(LLANSOL, p. 77, 1998)

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A cidade-mãe torna-se, então, sinônimo de ameaça,
um local onde a escritora não pode exercer transgres-
sões ou desobediências civis. Ainda assim, Llansol sen-
te-se atraída para sua terra natal, diz que um “conheci-
mento” a procurou, justifica a ida até Lisboa mediante
sensações, fundamentos abstratos. A Lisboa llansoliana
não é a mesma de Fernando Pessoa, ou das grandes na-
vegações ou do rico período colonial – é uma metró-
pole fraturada, sob censuras, nação na qual a premissa
citada por Schmidt – identidade nacionalista, ligada à
simbologia de independência – torna-se esquecida e
frágil. “Não aprecio Portugal como país absoluto dos
portugueses”, escreve em uma entrada anterior, de se-
tembro de 1981. Identidade e nação são desprendidas
uma da outra, pois o país encurralou os sujeitos – faz-se
necessário traçar rotas insólitas.
De acordo com Schmidt, no processo de constitui-
ção da identidade nacional, o domínio da cultura literá-
ria e o da cultura nacional foram construídos de modo
a convergir em um todo coerente e estável. Em Um fal-
cão no punho, Llansol quebra esse comando e desesta-
biliza o processo. A teórica continua a sua explanação
dos confluentes culturais falando sobre o sentido psico-
lógico que é conferido à nação:

Esta convergência só ocorre quando à nação é


conferido um sentido mais psicológico do que po-
lítico, sendo que o sentido psicológico neutraliza
as diferenças internas para reforçar o princípio da
diferenciação em relação ao que está fora dela — o
território do outro. Nessa perspectiva, a explica-
ção histórica da nação se consolida nas bases de
uma ordem social simbólica pautada na imagem
da integridade de um sujeito nacional universal,
cuja identidade se impõe de forma abstrata, dis-

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sociada de materialidades resistentes como raça,
classe e gênero, as quais representam a ameaça
da diferença não só às premissas daquele sujeito,
presumidamente uniforme e homogêneo, mas ao
próprio movimento de sua construção na produ-
ção da nação como narração. (SCHMIDT, p. 87,
2000)

Portugal para Llansol é a representação desse sujeito


nacional universal, alguém que passou do tempo, estan-
cou-se na história e impõe-se, como diz Schmidt, “de
forma abstrata, dissociada de materialidades resistentes
como raça, classe e gênero”. No tópico “O lugar do mor-
to e o lugar do leitor” Michael de Certeau desenvolve
a ideia de que a escrita, na história, tem o papel de um
rito de sepultamento, e coloca em cena uma população
de personagens mortos. Lisboa está definhando, povoa-
da de homens-zumbi. Grafa De Certeau: “A escrita não
fala do passado senão para enterrá-lo. Ela é um túmu-
lo no duplo sentido de que, através do mesmo texto,
ela honra e elimina” (p. 107, 1982). No seu exercício de
escrita, Llansol não ignora ou anula, por completo, a
pátria. Ela a acusa, a conquista para si, ou seja, honra e
elimina. Seu texto é um espelho às avessas da narrativa
histórica, engenhoso, voraz, acolhendo os mortos para,
enfim, substituí-los.
No artigo de Schmidt (2000), a obra de duas escrito-
ras brasileiras – Ana César e Julia Lopes – surge como
“contra narrativas” do discurso hegemônico brasileiro,
de acordo com a pesquisadora. Também a literatura
de Llansol pode ser acompanhada como contra fluxo
do universo literário português. Obras assinadas por
mulheres são narrativas às quais, muitas vezes, não ti-
vemos acesso. A história que ficou silenciada, a escrita

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que não teve a chance de ser apreendida. Ao posicionar
Lisboa no signo do obscuro e da dor, Llansol traz à tona
outras memórias, outros possíveis personagens e ações.
De volta a Deleuze e ao rechaço à linguagem da pá-
tria, destaco o seguinte trecho, datado de 13 de agosto
de 1981, em Herbais: “O meu país não é a minha lín-
gua, mas levá-la-ei para aquele que encontrar” (p. 46,
1998). Llansol separa, desta feita, o país que a assom-
bra da língua que a permite escrever, expressar-se. Mais
adiante, em outubro de 1981, ela escreve: “Não há lite-
ratura. Quando se escreve só importa saber em que real
se entra, e se há técnica para abrir caminhos a outros”.
(p. 55, 1998). Ou seja, escrever é descobrir labirintos do
real e contorná-los. Para tal atividade, é necessário mo-
dificar a própria língua, interrogá-la e apropriar-se de
suas saídas, algo que Llansol faz a todo instante, mesmo
quando demonstra qualquer tipo de insegurança:

Não sei se esta é uma página adequada à função


do livro ou, ao contrário, adequada à função do
Diário. Dois seres recusam assumir qualquer es-
pécie de finitude – o Diário e o livro; mas vistos
com distanciamento, não sei se constituem o que
esperavam de mim; durante o tempo em que me-
ditei sobre Münster não deixei de pensar em como
os factos se passaram – tal como eu os vi, ou tal
como eu os hei-de ver. A impulsão do ser é uma
alegria que determina a vontade. (LLANSOL, p.
76, 1998)

Apesar da sua negação sobre a existência da litera-


tura, a escritora admite que o livro e o Diário não têm
fim. Por conseguinte, a escrita também não. Mais uma
vez, o teor universal, canônico, prestigioso é interpe-
lado por Llansol. Aqui, a literatura é menor; a escrita

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é que se faz magnífica. A escritora também demonstra
um certo receio de sua obra ser lida, analisada, discuti-
da. Durante todo o diário, o seu relacionamento com o
ato de escrever é um embate – ficamos a par de suas re-
ferências literárias, como Robert Musil, por exemplo, os
personagens de seus próximos livros são apresentados,
mas também se percebem as suas angústias, dúvidas,
atropelos.
Em “La ficcionalización: dimensión antropológica
de las ficciones literarias”, Wolfang Iser (1997) declara
que a ficcionalidade literária surge como uma espécie
de matriz geradora de significado. As várias combina-
ções desses conteúdos – que o alemão chama de sig-
nificado latente e significado manifesto – resultam em
novos significados, novos mundos, todos viáveis a nós
por meio da ficção literária, do discurso representado.
Tanto o conceito de identidade nacional, quanto o de
nação e as suas ligações com a escrita são expostos por
Llansol por meio dessa “matriz geradora de significa-
do”. Um novo mundo é viável porque está na palavra
e encontra-se fundado na negação da linguagem e na
presença de uma nova combinação.
Ainda de acordo com Iser, a ficcionalização é a re-
presentação formal da criatividade humana. Por meio
dela, nós estamos implicados à vida e, ao mesmo tem-
po, apartados dela, ocupamos um lugar no meio das
coisas, um lugar questionador. Esse é o lugar de Um
falcão no punho: a metade dos caminhos; uma voz que
não desconhece a perspectiva de sua nação, mas que
a manuseia, distancia-se e volta, pois os territórios de
nascimento são como fantasmas obstinados prontos
para alcançar qualquer exilado, não importa a veloci-
dade das disparadas – ou seja, são, em último grau, o
próprio falcão no punho.

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Apesar de inicial, o primeiro volume dos diários é
um ponto de máxima na obra de Maria Gabriela Llan-
sol (1931 – 2008), senão pela sua capacidade em redefi-
nir conceitos, como vimos neste ensaio, por consolidar
a voz autobiográfica da autora nos estudos literários e
numa perspectiva da crítica feminista. Ao transmutar
os conceitos de espaço, nação e escrita, Llansol recria o
universo do exílio – tem-se o ponto de vista de ambien-
tes privados, em contraste com o externo dos jardins,
por exemplo, pouco prováveis em sua força significante
– e oferece ângulos distintos para o debate que margeia
noções de ficção e do real.
Por meio de seu diário, é possível atestar que, se
há limites na linguagem, há que se inventar formas de
os estender. Acompanhar o voo do Falcão, ao lado de
Llansol, é como apreciar a maquinaria da língua, alçar
vestígios do passado aliados às imagens do presente.
Em linhas gerais, este ensaio buscou demarcar alguns
conceitos na obra llansoliana e, a partir deles, perceber
os reflexos de alterações que partem do sujeito e atin-
gem as configurações do mundo, distendem-no e o co-
locam em alicerces mais fortes, menos óbvios.
Dessa forma, Llansol reorganiza a ideia do diário
como literatura resultante de uma figura patriarcal e
individualista, e preocupa-se em questionar algumas
questões a partir do seu universo – corpo de mulher
em exílio, apátrida e ferida pelos ouriços do poder. Ao
defender seus territórios, defende também o seu gêne-
ro, a sua deriva, o seu corpo e confronta a estapafúrdia
relação entre escrita e dom divino masculino: ligação,
enfim, destruída pelas garras de seu falcão.

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bibliografia

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Foram impressos 50 exemplares
de Nenhum muro à altura do peito
para as Edições Macondo em Fe-
vereiro de 2019. Uma cópia des-
ta publicação está disponível em
www.edicoesmacondo.com.br

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