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Jorge Boaventura

Globalização, esperança ou ameaça?

Professor universitário
Escritor, jornalista e ensaista
Conselheiro do Comando da ESG
Colaborador do Jornal O Estado de
São Paulo
Globalização, esperança ou ameaça?
Segundo registrou o grande papa reinante, João Paulo II, em sua incíclica
Laborem Exercens, do ponto de vista da ética social, o trabalho precede o capital. O
motivo da precedência assinalada, é claro, partindo a afirmação do extraordinário líder
religioso, se funda essencialmente no livro do Gênesis, em que figuram as expressões do
Criador dirigidas aos nossos primeiros pais, Adão e Eva, determinando-lhes que
crescessem, se multiplicassem e dominassem a terra, o que implica trabalho.

Como notará a inteligência do leitor, a multiplicação deveria vir depois do


crescimento, entendido não apenas como referente à estatura dos corpos, como à plena
maturidade espiritual, de vez que a tradição religiosa judaico-cristã descreve o homem
como ser criado por Deus, à Sua imagem e semelhança. Assim, além do corpo físico
perecível, temos todos um espírito imortal, que sobrevive àquele, razão pela qual, a
despeito da Queda - sempre dentro da tradição acima registrada -, conservamos, apesar da
fugacidade da existência material, noções que não se contêm nela, como, entre outras, as
de eternidade e de infinito.

A esta altura, supomos há muitos se estarão perguntando o que tem tudo isso que
ver com a precedência do trabalho sobre o capital, quando avaliados sob a ótica do bem
comum. Estaria sendo insinuada a inutilidade ou, ainda pior, o papel necessariamente
perverso do capital?

Em nossa maneira de ver - e nos perdoem os que são, ou julgam ser,


proprietários exclusivos do que cognominam “espírito prático”-, supomos não existir
nenhuma diferença essencial e irremovível entre dois componentes fundamentais do
processo produtivo. E atrevemo-nos até, nada obstante a nossa insignificância, a imaginar
que o capital representa algo que pode ser considerado como trabalho acumulado; e que a
admissão de diferença essencial e irredutível entre capital e trabalho é muito pouco
prática, para não usar expressões que poderiam ser consideradas desmerecedoras ou
ofensivas.

Ousamos supor, à luz do exposto, que a oposição e a luta entre os dois,


explicitada e exacerbada pela teoria da luta de classes como motor exclusivo da História,
além de equivocada, pouco prática e nitidamente perversa, só se tem mantido como algo
operativo como agente de mudanças positivas na sociedade, a custo desnecessariamente
elevado - tantas vezes representado por choques sangrentos - por causa, não da “visão
objetiva”, do “espírito prático” de capitalistas e trabalhadores, mas, exatamente, porque
tem faltado a uns e a outros a noção de que, não existindo diferença irredutível entre dois
fatores do processo produtivo, ser prático consiste em buscar, de um lado e de outro, a
cooperação. Buscá-la de coração aberto é, aí sim, comportamento lúcido
consoladoramente generoso.
Pensando desse modo, oferecemos aos que nos leiam o que contêm as linhas
acima, admitindo a hipótese de que, no íntimo de muitos, haverá uma voz a lhes dizer que
talvez tenhamos razão. Entretanto, permanece ainda sem resposta a indagação inferível do
título deste artigo: a globalização será principalmente uma esperança alvissareira ou uma
ameaça?

De nossa parte, diremos que, antes da resposta, em economia, a visualização do


mundo como um vasto mercado, influenciável como jamais fora possível sonhar, pela
comunicação social e pela prática da instantaneidade da transmissão de informações,
esperança ou ameaça dependerão do propósito, da finalidade da atividade econômica. Se
esse propósito levar em conta que as atividades humanas devem estar ordenadas a um fim;
e se este fim objetivar, sobretudo, a satisfação de aspirações e necessidades do corpo
material que, transitório e limitado como é, mesmo alcançadas aquelas aspirações e
necessidades, não resultarão a saciedade e a tranquilidade desejadas. E isso pelo fato de
terem sido desconsideradas com a ênfase adequada as aspirações e necessidades do
espírito, para nós, eterno, de onde nos vêm, ainda que impecisas e vagas, noções de
infinito, eternidade, amor, paz e beleza perfeitos, inexplicáveis caso toda a nossa realidade
fosse representada pelos nossos corpos perecíveis.

Como o mundo em que vivemos em nossos dias, segundo entendemos, não tem
dado a citada ênfase adequada às necessidades do espírito, atuam os seus líderes, por mais
que tentem disfarçá-lo, como que dominados pela sede insaciável dos apetites sempre
insastifeitos, de vez que a conquista de objetivos circunscritos ao finito não satisfará
jamais, como dito acima, o que deve ser buscado no ilimitado e eterno.

Estamos vivendo uma época em que, por tudo isso, hipocrisia à parte, predomina
o egoísmo. Globalização, pois, que busque a harmonia e a cooperação fundadas no amor
fraterno e na justiça entre os homens e as nações, necessidades que o espírito pressente, é
uma magnífica esperança. A que se está configurando, porém, se apresenta com indícios
veementes de predomíno, sob a a égide de uma economia cujo propósito supremo parece
ser o aperfeiçoamento da eficácia... da economia, na produção de bens materiais,
destinados à satisfação concupiscente do corpo, obediente apenas a misteriosas e
eticamente indefinidas “leis do mercado”.

Se Deus quiser, voltaremos ao assunto. -

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