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As relações de poder nas desigualdades de gênero

na educação e na sociedade
The relations of power in gender inequalities in
education and society
Jane Soares de Almeida
Universidade de Sorocaba-UNISO. Membro do Corpo
docente permanente do Programa de Pós-Graduação em
Educação da UNISO. Doutorado em História e Filosofia
da Educação pela USP. Livre-Docência pela UNESP. Pós-
doutorado por Harvard University, Estados Unidos. E-mail:
janesoaresdealmeida@uol.com.br.

Resumo
O artigo, na forma de ensaio teórico, analisa as relações de poder entre homens e mulheres que permeiam
as relações sociais e revelam sua face inclusive na educação escolar. Essas relações, denominadas relações
de gênero, de acordo com a crítica teórica feminista que emergiu nos anos 1980/90, são pautadas por um
estrito senso de territorialidade, que coloca ambos os sexos em patamares desiguais na hierarquia social,
o que leva ao exercício de poder do sexo masculino sobre o sexo feminino. Nas escolas se ensina aos
meninos e meninas as atribuições e comportamentos esperados para cada sexo, o que leva ao conceito
de identidade. Esses comportamentos se prolongam na esfera social e ocasionam o recrudescimento da
desigualdade entre os sexos.
Palavras-chave
Gênero. Poder. Educação.

Abstract
The article, in the form of theoretical essay, examines the power relations between men and women that
permeate social relations and even show his face in school education. These relationships, known as
gender relations, according to feminist critical theory that emerged in the years 1980/90, are guided by a
strict sense of territoriality, which places both sexes in unequal levels in the social hierarchy, which leads
to the exercise of male power over females. The schools teach boys and girls the roles and expected
behaviors for each sex, which leads to the concept of identity. These behaviors are prolonged in the social
sphere, causing the increase in inequality between the sexes.
Key-words
Gender. Power. Education.

Série-Estudos - Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB


Campo Grande-MS, n. 31, p. 165-181, jan./jun. 2011
Introdução significa no âmbito privado, democratizar
as relações familiares e não excluir as
O poder, nas suas várias interfaces mulheres do acesso aos bens econômi-
sempre foi e continua sendo essencialmen- cos e culturais, de forma a promover seu
te masculino. Do ponto de vista histórico, desenvolvimento como atores sociais com
a partir das décadas finais do século XX, inserção individual e coletiva. Isso poderia
as relações simbolicamente construídas possibilitar uma desconstrução do poder
entre os sexos foram abaladas nas suas desigual, alinhando homens e mulheres
estruturas pela emergência de um lado nos mesmos patamares socioculturais,
social feminino que rejeitou as noções so- políticos e econômicos.
lidificadas dos conceitos de superioridade No entanto, existem paradoxos
e inferioridade. Atualmente as mulheres e estruturais na esfera socioeconômica e
as expectativas de seu protagonismo so- nas relações simbólicas entre os sexos.
cial e político se introduzem nos sistemas Nestes paradoxos as diferenças físicas e
simbólicos masculinos num momento em psíquicas entre homens e mulheres são
que estes são destrutivos em relação à utilizadas como fator de desigualdade
vida humana, à paz entre as nações e à e discriminação, onde o sexo feminino
sociedade organizada. padece numa situação de inferioridade
As análises sobre a globalização, fe- e subordinação, apesar das conquistas
nômeno emblemático do século XX, assim ainda incipientes legadas pelo século XX.
como sobre o sistema capitalista que exclui Quando as mulheres deixam de ser vistas
significativas parcelas da Humanidade, como sujeitos históricos e produtivos, sig-
não costumam privilegiar as discussões nifica que a sociedade alija das esferas de
do ponto de vista do gênero, do pluralismo poder mais da metade de seus membros.
cultural e da diversidade, principalmente Alie-se a esses fatores a violência e a po-
sexual. Nas ainda insuficientes discussões breza, acrescidas dos problemas étnicos,
globais, comandadas por mulheres, inclui- e se tem um quadro geral propício para
se a possibilidade de se edificar uma nova a manutenção do subdesenvolvimento,
ordem que privilegie uma relação coopera- explicitado pela desigualdade como prin-
tiva e solidária entre os sexos, objetivando cipal fator gerador. Paradoxalmente, desde
mudanças nessas esferas que levam a o final do século XX, o campo educacional
questionar as estruturas de poder da forma começou a se tornar majoritariamente
como este se apresenta no mundo atual e feminino, em especial em alguns setores,
que não tem levado em conta as diferen- com maciça participação das mulheres
ças, fator crucial para a manutenção da nas universidades. A parcela feminina
ordem, da civilização e da paz entre os se- tanto procura pela escolaridade, como
res humanos. Na desconstrução da ordem permanece até o final dos cursos, embora
universal de poder, a voz das mulheres as mulheres continuem cuidando do es-
deve ser ouvida, o que em primeira análise paço doméstico, principalmente durante a

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gestação e na criação de filhos pequenos. o desafio que lançaram à sociedade, tais
Outro aspecto ainda pouco estudado se resultados demorariam muito mais para
refere ao fato de mulheres maduras, com serem implantados.
filhos criados e vida familiar estruturada, No início do século XX, a crítica
também procurarem cursar universidades, feminista que acompanhou a emergência
inclusive pós-graduação. do movimento nos Estados Unidos e na
Europa, mesmo defendendo a igualdade
O movimento feminista e a ruptura de direitos, considerava as diferenças en-
com o modelo androcêntrico tre homens e mulheres do ponto de vista
biológico, acatando a dicotomia existente
O movimento feminista pode ser entre o espaço público e o privado. Isso sig-
considerado a ruptura que possibilitou nificava também aceitar a domesticidade e
uma das transformações mais radicais a subordinação feminina ao modelo mas-
deste século que foi a modificação da po- culino, além de atrelar a essas diferenças
sição das mulheres na sociedade ocidental. naturais uma ideia de inferioridade das
Em poucas décadas o feminismo mudou mulheres em razão de maior fragilidade
relações de autoridade milenares, abalou física e intelectual, apesar de uma inegá-
a estrutura tradicional familiar e promoveu vel superioridade do ponto de vista moral.
um rompimento com uma forma de alie- Essa teoria se ancorava na definição de
nação considerada absolutamente natural um sujeito coletivo, portador de interesses
por séculos, definida pela submissão das e necessidades próprios, que surgia em
mulheres aos homens. face da maior presença das mulheres no
Em termos históricos, o feminismo cenário político e a posição que ocupavam
é um fenômeno recente e não influen- na sociedade patriarcal. Porém, mesmo
ciou indistintamente as diversas raças, na defesa dos direitos femininos não se
culturas, religiões e classes sociais, po- deixava de considerar o matrimônio como
dendo ser estudado como um movimento destino inato das mulheres e a maternida-
sócio-político que teve repercussões nos de como sua suprema aspiração.
diversos campos epistemológicos, com Nos finais dos anos 1960 e mais
influência na esfera pública e privada, acentuadamente nos anos 1970, o movi-
alterando representações e simbologias mento feminista que havia passado por
nos papéis sociais diferenciados reserva- um período de estagnação nos vários
dos a homens e mulheres. A historiografia países do mundo ocidental, ressurgiu com
muitas vezes mostra as mudanças como força. Emergiu nesse período uma consci-
resultado de uma política de concessões, ência feminista que, na luta por igualdade
sem considerar que estas são o resultado e maiores direitos, rejeitava as diferenças
do atendimento às reivindicações e, por- naturais entre os sexos, reivindicando
tanto, conquistas. Sem o movimento das para as mulheres um lugar no mundo
mulheres, sem a resistência de algumas e até então reservado apenas aos homens.

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Ao final de 1970, as feministas passaram continuaram a separar essas duas esferas
a desconsiderar com maior veemência sociais. Assim, todas as funções domésticas
as questões das desigualdades de fundo permaneciam sob a responsabilidade das
biológico e deslocaram o eixo das diferen- mulheres, não havendo no âmbito do casal
ciações para o aspecto cultural, propondo igual distribuição nas tarefas da casa e na
uma separação entre o espaço público e o criação dos filhos.
privado, afirmando que as mulheres pode- Nas décadas seguintes, com maior
riam desempenhar os mesmos ofícios que poder de organização e adesão de mulhe-
os homens e, portanto também possuíam res melhor preparadas intelectualmente,
as mesmas capacidades e direitos sociais o movimento ensejou o surgimento de
e políticos. Consideravam que o espaço uma crítica feminista que acompanhou
público e a realização profissional eram as mudanças refletidas nas relações so-
aspirações femininas e que as capacidades ciais e entre os dois sexos. O feminismo
das mulheres não se esgotavam no lar, começava a produzir um anteparo teórico
pois a vida transcorrida apenas no espa- voltado para as questões de identidade e
ço doméstico sufocava suas aspirações e diferença e a não separação entre vida
impedia sua plena realização. Havia nos privada e pública. Essas questões con-
postulados feministas uma reivindicação seguiram abrir espaços na imprensa, no
por liberdade e pelo direito de exercerem cinema, na literatura, nas artes e na ciência
a sexualidade sem as barreiras impostas levando, inclusive, ao reconhecimento dos
pelo preconceito. estudos feministas na área acadêmica.
Ao se desejarem iguais aos ho- Paulatinamente se instaurou um tipo de
mens em todos os sentidos, as mulheres comportamento sócio-político defensor
puderem perceber que, do ponto de vista de uma cultura não sexista que rejeitaria
do mundo do trabalho, continuava a ex- os antigos paradigmas de submissão e
ploração baseada no sexo, pois lhes eram opressão. Ao ocupar espaço na produção
reservados os serviços menos remunerados cientifica foi possível chegar ao reconheci-
e, muitas vezes, recebiam salários menores mento dos estudos de gênero em áreas das
do que os dos homens pelo desempenho Ciências Humanas como a Antropologia,
das mesmas funções, o que nos dias atu- a Sociologia, a Demografia, a História, a
ais, apesar de algumas conquistas, ainda é Literatura, a Saúde e Sexualidade, a Psi-
uma realidade em alguns setores, havendo canálise, a Ciência Política, a Economia e,
exceções, como no caso da carreira do ma- mais recentemente, a Educação, História
gistério. Além disso, ao novo perfil feminino da Educação e Religião, principalmente
que o movimento feminista esculpiu a nos países onde estes estudos estão mais
década de 1970, o homem não acompa- avançados. Esse reconhecimento trouxe
nhou as mudanças e as mulheres se viram contribuições para a construção de um
sobrecarregadas com a dupla jornada de campo epistemológico no qual se levou
trabalho já que os maridos e companheiros em conta que o mundo pertencia aos dois

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sexos, apesar das relações de dominação O feminismo na perspectiva do gênero
e subordinação que entre ambos sempre
se estabeleceu no decorrer da História da O gênero procura dar significado
Humanidade, e que poderiam ser quebra- às relações de poder; se configura como
das por uma relação de parceria. um elemento estabelecido nas relações
As denúncias do sexo masculino sociais baseado sobre as diferenças entre
como opressor, a liberdade sexual obtida os sexos e se manifesta como um meio de
através de métodos contraceptivos mais decodificar o sentido e compreender as re-
eficazes, um maior acesso à escolarização lações complexas presentes no meio social.
e ao mercado do trabalho, revelaram para De acordo com a crítica teórica feminista,
as mulheres um mundo ainda voltado e representada pelos estudos de gênero, os
preparado essencialmente para o modelo dois sexos devem ser educados na família
social masculino, onde seus representan- e na escola por meio de uma reciprocidade
tes conseguiam os melhores postos e os de um sistema de relações que ultrapassa
melhores salários. Para as mulheres, a a oposição binária: masculino e feminino;
situação de inferioridade em que viviam em outras palavras: “coisas de meninos;
no espaço privado estendeu-se ao espaço coisas de meninas”. Nessa perspectiva,
público, tendo como agravante as dificul- o gênero é uma categoria teórica que
dades oriundas do meio familiar, repre- se refere a um conjunto de significados
sentadas pela dupla jornada de trabalho e símbolos construídos sobre a base da
e o cuidado com a família. Esculpia-se diferença sexual que são utilizadas na
assim uma ambiguidade em relação ao compreensão das relações entre homens
sexo feminino: se, por um lado, existia o e mulheres, a que se denomina alteridade,
desejo de serem esposas e mães, por outro a relação com o outro.
lado o anseio de fazer parte da população Desse modo, gênero não significa o
economicamente ativa significava deixar mesmo que sexo, isto é, o sexo refere-se
o primeiro espaço ao abandono. Em vista à identidade biológica de uma pessoa e
disso, a crítica feminista dedicou-se a es- o gênero diz respeito à sua construção
tudar a fundo as questões de identidade como sujeito masculino ou feminino.
e diferença e a não separação entre o Enquanto as diferenças sexuais biológi-
espaço público e o espaço privado, bus- cas são naturais e imutáveis, o gênero é
cando o fortalecimento de uma cultura não estabelecido por ajustes sociais, variando
sexista e rejeitando os antigos paradigmas segundo as épocas e os seus padrões
de submissão e opressão. Paralelamente, culturais e pode ser modificado. As rela-
optou-se também pela não separação do ções de poder entre homens e mulheres,
gênero e dos estudos sobre as mulheres, assim como classes sociais, etnias e op-
dos estudos sobre a infância, a sexualida- ções sexuais estão presentes em todas
de, o meio ambiente e a velhice. as construções sociais configurando-se
numa rede complexa.

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Do ponto de vista histórico, há era socialmente aceito. Desde os anos
que atentar que o conceito presente na iniciais do século XX, as lutas feministas
dupla moral sexual que concedia direitos não cessaram, tanto que em 1904 se criou
aos homens e deveres somente para as nos Estados Unidos e Inglaterra outra or-
mulheres já tinha sido questionado no ganização internacional: The International
século XVII pelas inglesas e no século XIX Woman Suffrage Alliance que se opunha
pelas feministas do International Council aos comitês contra o sufrágio feminino
of Women que se reuniu em Washington que se haviam formado nos dois países
em 1888. Nesse conceito, a religião parecia e tomava posições internacionais numa
não se fazer presente, pela maior tolerância época de extremo nacionalismo.
que havia a respeito de padrões compor- O Feminismo, nascido na França na
tamentais masculinos. O maior objetivo primeira metade do século XIX, primeira-
sempre foram as mulheres, notadamente mente surgiu como um movimento social
por conta da reprodução, permeado por for- e político de caráter reivindicatório e aos
mulações morais desiguais entre os sexos. poucos foi ganhando maior visibilidade
Na defesa dos direitos femininos e pelas no meio científico e permitiu a emergência
reivindicações sociais de maior liberdade de um novo olhar sobre as mulheres, o
e igualdade, não se deixou de considerar que possibilitou que a crítica feminista se
o matrimônio como destino inato das voltasse para as questões de identidade/
mulheres e o seu resultado biológico, a diferença e a não separação de vida priva-
maternidade, como suprema aspiração. Há da e pública. Estas questões conseguiram
que se lembrar ainda que feministas dos abrir espaços na imprensa, no cinema, na
anos iniciais do século XX reivindicavam literatura, nas artes e na ciência levando
educação e instrução iguais para meninos inclusive ao reconhecimento dos estudos
e meninas, desde que fossem respeitadas feministas como área de conhecimento
as diferenças entre os sexos do ponto de e ao estabelecimento de uma cultura
vista da natureza de cada um. não sexista, o que equivale dizer não
Na primeira metade do século XX, discriminatória. Certamente que a maior
o apelo para o trabalho feminino por ocupação das mulheres no espaço aca-
conta das guerras, propiciou uma maior dêmico contribuiu para esse crescimento
visibilidade às capacidades femininas do campo investigativo nessa temática,
fora do lar, mas os ganhos reais foram pois pouquíssimos homens se ocuparam
poucos e a tradição continuou ditando seu de pesquisas dessa natureza, o que ainda
comportamento e limitando seu espaço ocorre nos tempos atuais, embora com as
fora das fronteiras domésticas. Concedia- notáveis exceções de alguns centros de
se um pouco mais de liberdade, porém pesquisa.
se normatizava condutas, impedindo a Nos anos 1980/90, a introdução da
expansão da sexualidade e da conquista categoria gênero substituiu a noção de
de profissões em desacordo com o que identidade ao considerar um mundo em

170 Jane S. de ALMEIDA. As relações de poder nas desigualdades de gênero na educação e ...
que os avanços tecnológicos estavam im- nas relações sociais. Isso representa um
primindo um novo ritmo no surgimento de modelo de conduta no qual as peculiari-
novas estruturas sociais, o que representou dades existentes entre homens e mulheres
o aprofundamento e a expansão da crítica são consideradas, levando a formulações
feminista. A categoria passou a ter lugar teóricas eficazes sobre as relações social e
de destaque no pensamento feminista, que culturalmente construídas entre os sexos,
construiu uma critica teórica na qual as denominadas relações de gênero, o que
diferenças são consideradas, porém não também implica em relações de poder.
justificam qualquer forma de opressão No meio acadêmico, o conceito de
do sexo masculino sobre o feminino. O gênero foi introduzido a partir da consta-
conceito nasceu do debate teórico acerca tação de que o feminismo e seu confronto
do conhecimento de que a realidade é com os mecanismos de dominação e
socialmente construída e de que cada ser subordinação levavam à emergência de
humano tem o potencial e o direito de novas categorias analíticas que não se
decidir o seu destino. encaixavam nos paradigmas clássicos e
Esse pensamento constatou que a que esses paradigmas não conseguiam
superação de um sistema de desigual- elaborar modelos explicativos mais flexí-
dades não se alcança somente pelo fato veis para analisar a situação específica
de que o considerado inferior obtenha os da mulher como sujeito social e históri-
direitos e ocupe as mesmas posições do co. Embora num sentido mais restrito, o
superior, pois numa ordem democrática conceito de gênero se refira aos estudos
não se eliminam os desequilíbrios e os que têm a mulher, a criança, a família, a
mecanismos de dominação de forma tão sexualidade, a maternidade, entre outros,
simplificada. As diferenças do ponto de como foco de pesquisas; num sentido
vista biológico são consideradas, dado amplo, o gênero é entendido como uma
que os dois sexos não são iguais entre construção social, histórica e cultural, ela-
si e essa desigualdade faz parte do jogo borada sobre as diferenças sexuais e às
erótico da associação entre homens e mu- relações construídas entre os dois sexos.
lheres. No entanto, essas diferenças não se Estas estão imbricadas com as relações
constituem em aval para a opressão, nem de poder que revelam os conflitos e as
em empecilhos para o acesso ao mundo contradições que marcam uma sociedade
profissional e o direito de salários compa- onde a tônica é dada pela desigualdade,
tíveis com a função desempenhada, sem seja ela de classe, gênero, raça ou etnia.
distinção entre os sexos. Assume-se assim Com isso se permitiu alguma visibilidade
a premissa ideológica da igualdade na di- a movimentos sociais emergentes cujo
ferença, o que representa um considerável objetivo era a denúncia contra a discrimi-
avanço do feminismo e das conquistas nação, impondo-se a necessidade de um
teóricas dos estudos de gênero, com pos- olhar diferenciado para as ambiguidades
sibilidades de repercussão e de influência da ordenação social. Dessa perspectiva se

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considera que as configurações de poder fraco pode ser dominado com ou sem seu
entre os gêneros, da mesma forma que os consentimento. Os modelos de resistência
significados, as normatizações valorativas, acontecem quando, ao cruzamento de
as práticas e os símbolos, variam de acordo mudanças sociais, se articula uma tomada
com as culturas, a religião, a economia, de consciência por parte daquele que é
as classes sociais, as raças, os momentos submetido, o que gera insatisfação e de-
históricos, etc. Formam-se assim redes de sejo de mudança. Esses modelos podem
significações que se edificam e se rela- acontecer como manifestação coletiva ou
cionam, atuando em todos os âmbitos da mesmo individual e embora o sexo seja
vida cotidiana. determinado antes do nascimento por pro-
cessos biológicos naturais, as diferenças
Os paradigmas de submissão e os de gênero são culturalmente adquiridas e
modelos de resistência transmitidas nas estruturas sociais.
No universo das relações humanas A prática de imputar para homens e
onde interagem homens e mulheres como mulheres determinismos sexuais biologica-
sujeitos históricos é possível interpretar mente herdados implica na existência de
essa estrutura indo além dos aportes das uma ditadura de gênero para os dois sexos
teorias clássicas que explicam a ordenação que, infalivelmente, leva à hierarquia do
da sociedade do ponto de vista das rela- masculino sobre o feminino, numa escala
ções de classe, mas silenciam quanto ao axiológica culturalmente edificada, onde as
gênero. A espécie humana, única quanto atividades masculinas são consideradas de
às funções naturais, é diversificada quanto primeira ordem e as femininas de segundo
às representações culturais e simbólicas, escalão. A dupla (des)valorização, conduz
que alocam aos dois sexos papéis sexuais a diferentes implicações no mundo do
desiguais, em função das diferenças de trabalho, no espaço público, nas esferas
base biológica. Quando as mulheres e o do privado e nas instâncias do poder.
papel que desempenham nas relações de A articulação das dimensões objeti-
gênero são enfocados, é possível observar vas e subjetivas embute um pensamento
paradigmas de submissão cristalizados ao ideológico que acaba por se traduzir em
longo de séculos, assim como modelos de ações concretas e leva aos mecanismos
resistência que ultrapassam os muros da de dominação e opressão. Existe uma
domesticidade e revelam ao espaço públi- dificuldade em se interpretar a realidade
co as insatisfações geradas numa estrutura das mulheres partindo da experiência dos
social solidificada em tradições. A banaliza- homens, pois os paradigmas construídos
ção do exercício do poder de um sexo sobre a partir da perspectiva masculina resultam
o outro assume esses paradigmas como em modelos teóricos inexatos e imprecisos,
parte da ordenação natural das relações senão falsos, dado que as relações de
entre os seres humanos, no qual o mais gênero se ancoram em diferentes poderes,

172 Jane S. de ALMEIDA. As relações de poder nas desigualdades de gênero na educação e ...
normas comportamentais, morais e reli- Educação feminina como projeto
giosas e até em emoções e sentimentos, social: igualdade ou manutenção da
estruturando a percepção de mundo e a inferioridade?
forma como a sociedade se organiza do
ponto de vista simbólico. Assume-se assim No Brasil, na educação tradicional,
a princípio da igualdade na diferença, o a instrução para as mulheres que fosse
que representa uma considerável transfor- além das prendas domésticas, era con-
mação nas representações culturais e no siderada supérflua. A herança luso-cristã
terreno das ideias, com possibilidades de afirmava que excesso de instrução poderia
repercussão e de influência nas relações prejudicar sua constituição frágil e nervosa
sociais num modelo de conduta no qual as e atingiria a saúde da futura prole. Poste-
peculiaridades existentes entre homens e riormente, a educação feminina passou a
mulheres são consideradas, o que também ser desejável, pelo imaginário da época
implica em estabelecimento de espaços acreditar que a mulher educada criaria
de poder. filhos saudáveis. Essa educação não po-
Ainda outra questão a ser consi- deria fazer com que ela se sentisse capaz
derada refere-se à vitimização feminina, de competir com os homens, o que ocasio-
aporte bastante usado quando os traba- naria desordem social. Assim, a educação
lhos ainda se encontravam no estágio da feminina, durante longo tempo, tanto na
denúncia. No discurso até então adotado, escola como na família, foi normatizada e
ao enquadrar as mulheres nos conceitos controlada pelos homens e de acordo com
definidos socialmente: “colocá-las sempre o que estes consideravam necessário: para
como oprimidas”, se deixava de lado os os homens, o espaço público, a política, a
contrapontos que se ancoram no mundo gerência dos negócios; para as mulheres,
subjetivo, local de trânsito das mulheres, o cuidado com a casa e os filhos, a econo-
onde a resistência é o contraponto para a mia doméstica. Historicamente, isso trouxe
opressão, o que leva a outro conceito, o impactos nas relações entre os sexos, que
da resiliência, do ponto de vista de recu- se traduzem pela subordinação feminina
peração perante as adversidades. Desse ainda nos tempos que correm e possivel-
ponto de vista, o revisionismo histórico mente, embora com menor impacto, ainda
oferece justificativas, dado que implica em nos tempos em devir.
(re)interpretar a História do ponto de vista A imagética social, ao alocar pa-
feminino e assim contribuir para alavancar péis sexuais diferenciados para homens
os estudos de gênero e reescrever fatos e mulheres, induz à estereotipia sexual,
históricos que não sejam os oriundos do onde se espera de cada sexo comporta-
poder masculino somente. mentos pré-determinados e isso se reflete
principalmente quando a criança chega à
escola. No ambiente escolar, se ensina a
ser menino ou menina, não há escapatória

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possível: o Estado impõe regras, a Família outro, é não reconhecer seus direitos nem
exige, a Sociedade assim o deseja. As seu direito a ter direitos. A discriminação
professoras esperam das meninas compor- sexual submete a outra metade da hu-
tamentos de ordem, asseio e obediência, o manidade ao jugo do poder baseado em
que não esperam dos meninos, aos quais diferenças biológicas: ser homem é o mo-
atribuem características de maior agressi- delo a ser seguido como símbolo de força e
vidade, impulsividade e desobediência. Os êxito; ser mulher representa a submissão, a
livros didáticos, muitas vezes, trazem essa fragilidade e a incapacidade. Obviamente,
estereotipia mostrando o pai saindo para o isso traz consequências nas relações entre
trabalho e a mãe cozinhando ou limpan- os sexos, traduzidas pela subordinação
do, em casa, com os filhos. Nas diversas feminina. A imagética social, ao alocar
atividades escolares há separação entre papéis sexuais diferenciados para homens
os sexos como meninos contra meninas e mulheres, induz à estereotipia sexual
em atividades lúdicas. Essas diferenciações onde se espera de cada sexo comporta-
ainda são constantes no ambiente escolar, mentos pré-determinados e isso se reflete
pois as professoras, que são maioria no principalmente quando a criança chega à
ensino fundamental, são mulheres e, por- escola e tem seus primeiros contatos com
tanto, veiculam uma prática pedagógica de a hierarquia educacional.
acordo com a educação que receberam. Portanto, na esfera educacional, o
A partir dos anos 1990, o campo gênero é constituinte da identidade dos
educacional tem apresentado um aumento atores sociais, possuidores de qualificações
progressivo da inclusão do gênero em plurais que não são estáveis ou dura-
suas análises, o que não acontecia nas douras, mas se modificam e podem ser
décadas passadas em que esses estudos contraditórias. Nessa perspectiva, homens
eram raros. Os paradigmas explicativos, e mulheres são identificados pelo gênero,
(ao adotarem o sujeito universal, único, classe social, raça ou etnia e pela idade
padronizado e assexuado, isento das par- e nacionalidade, assumindo identidades
ticularidades de sexo, raça, idade, cultura), plurais, múltiplas que produzem diferentes
nas pesquisas educacionais, possibilitam posições de sujeito, quando as redes de
lacunas explicativas na área, dado que poder (das instituições, símbolos, códigos,
a concepção masculina da educação, vi- discursos, etc.) precisariam ser examinadas.
venciada na prática por atores femininos, As identidades são múltiplas e plurais e
ocasiona contradições e distorções no é a identidade cultural que possibilita à
processo de análise. criança reconhecer-se como pertencente
A educação, por sua vez, é o lócus ao gênero masculino ou feminino, a esta
privilegiado para abordar problemas como ou aquela etnia e até mesmo situar-se
a discriminação social, que é o pano de nos patamares da desigualdade econô-
fundo para o exercício do poder levado às mica com base nas relações sociais e
últimas instâncias. Discriminar é negar o culturais que se estabelecem a partir do

174 Jane S. de ALMEIDA. As relações de poder nas desigualdades de gênero na educação e ...
seu nascimento. Essa ideia ultrapassa a do que consideram adequados ou não a
concepção do aprendizado de papéis, que cada sexo.
pode tornar-se muito simples, uma vez que Os estereótipos, por sua vez, situam-
caberia a cada indivíduo conhecer o que se numa escala axiológica e sempre estão
lhe convém ou não, adequando-se a essas sendo manifestados ao longo da existên-
expectativas. cia humana. Este processo ocorre desde
Desse modo, examinar apenas a a mais tenra idade pela educação, não
aprendizagem de papéis masculinos e apenas a formal, mas também a familiar
femininos implica em desconsiderar que e social, onde um modelo e um conjunto
a masculinidade e feminilidade podem de características estereotipadas significam
exercer variadas formas e que complexas um dos mais eficazes mecanismos de
redes de poder estão envolvidas nos dis- perpetuação das desigualdades, reforçan-
cursos e nas práticas representativas das do a relação de dominação e submissão.
instituições e dos espaços sociais, sendo Portanto, a educação escolar é um campo
produzidas a partir das relações de gênero. promissor para o desenvolvimento dos
Além disso, a maneira como a família e estudos de gênero, uma vez que reúne
a escola agem em relação às meninas e alunos de ambos os sexos nos sistemas
aos meninos é fundamental no processo de classes mistas.
de constituição da identidade de gênero.
As identidades não são estabeleci- Algumas considerações
das e fixadas num determinado momento,
mas estão constantemente sendo constru- Na segunda metade deste século,
ídas e transformadas. Por isso, os sujeitos a constatação da capacidade feminina
vão se edificando como masculinos ou fe- para o trabalho fora do espaço domés-
mininos e toda uma estrutura como família, tico que as guerras tinham revelado; o
religião, meios de comunicação, escola, etc., consequente ganho de autonomia, mais
estão envolvidas nessa dinâmica. Nesse as necessidades de sobrevivência ditadas
contexto, as relações pedagógicas que são pelas circunstâncias econômicas, iniciaram
organizadas na escola estão carregadas uma reviravolta nas expectativas sociais,
de simbolizações e as crianças aprendem familiares e pessoais acerca do sexo que
normas, conteúdos, valores, significados, até então estivera confinado no resguar-
que lhes permitem interagir e conduzir-se do da domesticidade e no cumprimento
de acordo com o gênero com a qual se das funções reprodutivas. Essas ideias
identificam, assumindo especificidades de atravessaram as fronteiras por intermédio
acordo com essa identificação. Na escola, da imprensa, rádio, cinema e televisão,
as crianças e os professores são socializa- influenciaram as mentalidades nos demais
dos a partir de uma reelaboração ativa de países, entre eles o Brasil, e ocasionaram
significados e as informações que recebem mudanças nas relações entre os sexos.
lhes permitem construir uma representação Sem o movimento das mulheres, sem a

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resistência de algumas e o desafio que casada, enfim do reconhecimento das
lançaram à sociedade, tais resultados de- mulheres como atores sociais autônomos
morariam muito mais para serem implan- passíveis de realizarem vidas em separado,
tados. No entanto, ainda resta muito por sem a proteção masculina. A possibilidade
fazer dado que as mulheres ainda recebem de exercer a sexualidade sem o ônus da
menores salários no mundo do trabalho gravidez indesejada que a pílula anticon-
e a violência, principalmente no âmbito cepcional assegurou foi uma das grandes
familiar, continua uma realidade nem conquistas. O maior acesso ao mundo do
sempre denunciada e possui estatísticas trabalho e o divórcio rompendo com o
alarmantes. Em alguns países do mundo até que a morte os separe, mostraram às
não ocidental a situação de subordinação mulheres que o mundo pertence aos dois
e inferioridade feminina assume contornos sexos e que elas tinham direito de des-
de uma verdadeira escravidão e um aten- frutar de uma vida plena sem as amarras
tado aos direitos humanos. impostas por papéis sexuais diferenciados.
No século XIX e nas décadas iniciais Atualmente, não só a maioria dos
do século XX havia um modelo feminino lares de baixa renda como também na
defendido por todos os setores sociais que classe média são chefiados e mantidos
consideravam a mulher apenas pela sua por mulheres. Como as mulheres dão
capacidade reprodutiva. Era a mulher-mãe, conta dessa tarefa? Como sempre o fize-
assexuada e fértil que deveria dar à Nação ram suas antepassadas, usando recursos
os futuros cidadãos que esta precisava de muita engenhosidade e ao alcance
para crescer e alicerçar-se entre as grandes daquilo que podiam realizar relacionados
nações. Ao mesmo tempo, o arquétipo da ao mundo doméstico: desempenhando
Virgem da religião católica era o modelo profissões como faxineiras, bordadeiras,
a ser seguido e exigia das mulheres com- cabeleireiras, manicuras, costureiras, qui-
portamentos tipificados de moralidade, tuteiras, cozinheiras, lavadeiras e muitas
doçura, pureza, meiguice, bondade, des- outras. Muitas chegam a desenvolver
prendimento, espírito de sacrifício, enfim verdadeiras indústrias domésticas onde,
as qualidades necessárias para a futura através das infinitas artes do mundo da
esposa e mãe, a companheira do homem. casa conseguem sustentar-se e aos fi-
Se nos anos iniciais do século XX as lhos. Outras vão para as fábricas, para o
reivindicações femininas se ancoravam no comércio, para os hospitais, onde recebem
acesso à educação igual à dos homens e salários inferiores resultantes de uma visão
no direito ao voto, os anos 1960/70 ques- equivocada que os vencimentos de uma
tionaram principalmente a submissão e mulher são para “os alfinetes” e, portanto,
a dependência e na esteira das reivindi- podem ser menores, o que não é verdade.
cações estavam o direito de escolha: do Muitas conseguiram estudar para ter um
parceiro, da profissão, de ter ou não filhos, diploma e são professoras, enfermeiras,
de casar-se ou não, de ter filhos sem ser telefonistas, bibliotecárias. Enfim, o fato de

176 Jane S. de ALMEIDA. As relações de poder nas desigualdades de gênero na educação e ...
serem mulheres e estarem sozinhas faz da crença que existem comportamentos
com que desenvolvam uma arte, a arte tipificados para homens e mulheres, não
da sobrevivência sem um homem, num têm razão de ser. As mulheres são compe-
mundo eminentemente masculino. E a titivas da mesma forma que os homens, e
maioria consegue. trabalham em equipe sempre que houver
As disputas por vagas hoje no necessidade, com a mesma competência.
mercado de trabalho estão ancoradas O que realmente existe são inúmeras ima-
na capacidade cognitiva de cada profis- géticas que colocam homens e mulheres
sional e na sua maneira de dominar os como opositores e não como parceiros,
requisitos básicos para desenvolver uma esquecendo que as relações entre os
determinada profissão. Estamos falando sexos devem ser mensuradas em termos
de mulheres que conseguiram estudar de alteridade, a relação com o outro e não
e obter certificados. Excetuando alguns contra o outro.
guetos masculinos, as mulheres podem Atualmente, a nova geração feminis-
desempenhar qualquer profissão e reali- ta aceita as diferenças entre os sexos e as
zar qualquer tipo de trabalho. Para isso é considera uma construção social, adotando
necessário uma mudança de mentalidade o termo gênero como comum aos dois
por parte dos empregadores e uma política sexos e que esse conceito se refere aos
trabalhista não discriminatória. espaços não mensuráveis entre ambos.
As inovações tecnológicas afetam Nessa perspectiva ressalta-se o paradigma
as relações de gênero em termos de de igualdade na diferença, uma construção
educação e trabalho no sentido que o teórica que significa um modelo de condu-
mundo de hoje se assenta no conheci- ta pelo qual as peculiaridades existentes
mento e em habilidades comuns aos dois entre os sexos são consideradas, mas não
sexos. A máquina, ao substituir a força se constituem em aval para a opressão.
física e os avanços da tecnologia pode Portanto, não se aceitam mais as diferen-
muito bem colocar homens e mulheres ças assentadas simplesmente no aspecto
em patamares igualitários. A partir daí o biológico.
que conta é a competência e qualificação O pensamento feminista dos anos
profissional de cada um. No entanto, um 1990 constatou que a superação de um
fenômeno frequentemente observado, pelo sistema de desigualdades não se alcança
menos nas Ciências Humanas, é o grande somente pelo fato de que o considerado
número de mulheres que procuram pela inferior obtenha os direitos e ocupe as mes-
universidade para obter mais qualificação. mas posições do superior. Numa ordem
Um número muito acima da quantidade democrática não se eliminam os desequi-
de homens. Esse é um fato para se pensar, líbrios e os mecanismos de dominação de
considerando que essas mulheres traba- forma tão simplificada, dado que direitos
lham fora e em casa; são esposas e mães. e privilégios para uns significam os não
As estereotipias para os sexos resultantes direitos de outros, conforme demonstra o

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modelo de sociedade erigido em bases ca- mecanismos de produção e reprodução
pitalistas. A perspectiva feminista permite, da discriminação. Esses mecanismos
por parte das mulheres, a apropriação de adquirem concretude em todas as ins-
uma consciência crítica e política que as tâncias da vida social pública e privada,
mobilize para levar à apreensão de que a na profissão, no trabalho, no casamento,
desigualdade só será superada se forem na descendência, no padrão de vida, na
abolidas as divisões sociais de gênero, sexualidade, nos meios de comunicação
classe e raça, numa sociedade assentada e nas ciências. Portanto, a utilização do
sobre bases igualitárias. termo gênero implica numa rejeição às
As desigualdades entre os gêneros diferenças assentadas simplesmente no
e as que envolvem idade, classes sociais, aspecto biológico e demonstra, por parte
raças e opções sexuais efetivam mecanis- da perspectiva teórica feminista, uma ab-
mos de produção e reprodução da discrimi- soluta rejeição aos enfoques naturalistas
nação. Esses mecanismos se ordenam em que envolvem a aceitação da categoria
todas as instâncias da vida social pública implícita de subordinação da mulher ao
e privada: na profissão, no trabalho, no homem baseada nas estruturas biológicas
casamento, na descendência, no padrão de cada indivíduo de uma mesma espécie.
de vida, na sexualidade, nos meios de Nessa perspectiva, discute-se a
comunicação e nas ciências. Portanto, a dificuldade de se interpretar a realidade
utilização do termo implica numa rejeição das mulheres partindo da experiência
às diferenças assentadas simplesmente no dos homens, por se considerar que os
aspecto biológico e demonstra, por parte paradigmas construídos do ponto de vista
da perspectiva teórica feminista, uma ab- masculino resultam em modelos teóricos
soluta rejeição aos enfoques naturalistas inexatos e imprecisos, senão falsos, pois
que envolvem a aceitação da categoria as relações de gênero se definem em
implícita de subordinação da mulher ao diferentes poderes, normas comportamen-
homem baseada nas estruturas biológicas tais, morais e religiosas, até mesmo nas
de cada indivíduo de uma mesma espécie. emoções e sentimentos, estruturando a
As configurações de poder entre os percepção de mundo e a forma como a
gêneros, da mesma forma que os signi- sociedade se organiza do ponto de vista
ficados, as normatizações valorativas, as simbólico, levando assim ao conceito de
práticas e os símbolos, variam de acordo alteridade, isto é, a relação com o outro.
com as culturas, o nível educacional, a Na perspectiva proposta pelo conceito de
religião, a economia, as classes sociais, alteridade, a crítica feminista voltou-se para
as raças, os momentos históricos, etc. uma reinterpretação da teoria proposta
Formam-se assim redes de significações por Marx, pois a opressão da mulher na
que se edificam e se relacionam, atuando sociedade capitalista e a sua liberação são
em todos os âmbitos da vida cotidiana. também resultantes, em última análise,
As desigualdades de gênero efetivam das lutas contra o capitalismo, concluindo

178 Jane S. de ALMEIDA. As relações de poder nas desigualdades de gênero na educação e ...
que os países socialistas se dão conta, a importância da educação como ação social
cada dia, que a igualdade perante a lei e que vem ocupando com cada vez maior
um acesso igual à educação e à profissio- intensidade a agenda política dos vários
nalização não liberam as mulheres das países, sendo alavanca essencial para o
responsabilidades familiares. Tal situação desenvolvimento.
restringe sua participação na vida pública Nessa rede de significações simbó-
e a possibilidade de fazer carreira. licas, a discriminação leva ao preconceito
Atualmente os (as) pesquisadores e cria-se a imagética da incapacidade:
(as) de gênero estabelecem diferentes aná- mulheres não servem para tais cargos,
lises que consideram as complexidades tais ofícios, tais projetos ou tais empreendi-
cada vez mais crescentes na ordenação mentos. Naturalmente esses cargos, ofícios,
social, nas quais as diferenças culturais projetos e empreendimentos são os melhor
e antropológicas em relação com a alte- valorizados socialmente e melhor remune-
ridade são destacadas, numa tendência rados no mundo do trabalho. Na imagética
do pensamento pós-moderno que incor- da incapacidade, todas as representantes
pora o pluralismo cultural e a diversidade. do sexo feminino, independentemente
Assume-se assim o princípio da igualdade de raça, classe social, idade ou nível de
na diferença, que significa uma conside- escolaridade, são incorporadas numa
rável transformação nas representações mesma categoria: o sexo. É no sexo, força
culturais e no imaginário social, com pos- motriz da raça humana, que se ancoram
sibilidades de repercussão e de influência e edificam as relações de desigualdade.
nas relações sociais, representando um Nesse campo, onde as relações de poder
modelo de conduta no qual as peculiari- demonstram seu maior impacto, reside o
dades existentes entre homens e mulheres paradoxo do subdesenvolvimento: alijadas
são consideradas, o que também implica das esferas produtivas por conta da anato-
na reordenação dos espaços de poder. mia, as mulheres deixam de contribuir nos
Na América Latina existem diferen- diversos campos da economia e da política
ças regionais, culturais e de classe que por motivos que vão desde impedimentos
alocam às mulheres papéis diferenciados. familiares ao preconceito, o que repercute
No âmbito da violência doméstica as mu- no desenvolvimento geral.
lheres e crianças são as maiores vítimas Se na esfera pública as mulheres
de cerceamento da liberdade, morte e sofrem impedimento de ascensão profis-
maus tratos, o que repercute também na sional por conta da imagética da inca-
edificação de uma sociedade saudável, pacidade, mais os obstáculos concretos
pois o medo e a opressão não podem co- que enfrentam no mundo do trabalho; na
existir com o desenvolvimento. No entanto, esfera privada, desde a infância, talentos
quanto maior o índice de escolaridade, femininos são desperdiçados e perdidos
menor aceitação da violência, embora não sob o ônus de uma cultura que ainda pri-
seu impedimento. Portanto, ressalta-se a vilegia a maternidade e reforça o mito da

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rainha do lar. Assim, a realização pessoal cinema, o teatro, a poesia, encarregam-se
é substituída pelo cuidado com os filhos disso, apesar das honrosas exceções.
e marido. O impedimento muitas vezes é Longe de a igualdade ser uma uto-
disfarçado sob o manto pesado do amor e pia, o mundo atual exige que repensemos
da responsabilidade doméstica: as mulhe- essa ordem universal de poder – esta não
res vivem a angústia existencial de serem é humana, nem natural. Nascemos biologi-
insubstituíveis: um sofisma referendado camente iguais, vivemos em desigualdade
por outra imagética, a da doação. Doar-se e ao morrer novamente nos tornamos
é se esquecer de si própria em busca da iguais. Talvez resida aí a chave para o en-
felicidade alheia, e a música, a literatura, o tendimento da nossa própria humanidade!

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Recebido em abril de 2011.


Aprovado para publicação em maio de 2011.

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