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Gamble ou Croupier?

Como a manipulação estatística consiste numa poderosa ferramenta, que é geralmente


utilizada para fraudar informações, iludindo calouros do mercado de capitais e enriquecendo
charlatões da indústria de educação financeira.
Parece senso comum que, em se tratando de educação financeira, em termos comparativos
globais o Brasil ainda figura em estágio embrionário, como um dos mais atrasados entre as
diversas economias do mesmo porte ou grau de desenvolvimento.
Diferente de países como os EUA, cujo lastro da poupança privada segue forte alocada em
ativos como debentures e ações de empresas, o Brasil ainda possui um mercado de capitais
fraco, uma taxa de poupança quase inexistente e uma cultura de investimento conservadora,
cuja estratégia previdenciária principal do investidor da classe média se concentra,
lastimavelmente, em cadernetas de poupança ou aquisições de imóveis para alugar.
Até aí, nenhuma novidade, talvez isso seja memória atávica dos planos econômicos ou herança
do período inflacionário corrosivo. Era o tempo em que a classe média sacava o dinheiro suado
do trabalho e deslocava-se, quase que como uma lebre, para o primeiro banco da esquina, no
intento de aplicar no overnight para, assim, evitar a deterioração do seu poder aquisitivo, que
perecia diariamente em face da inflação galopante.
Já outros podem dizer que não, que não se trata efetivamente de um problema cultural ou de
memória inflacionária, aduzem que, talvez, a baixa taxa de investimento privado em ações seja
decorrente das crônicas condições macroeconômicas claudicantes, que alimentaram um
regime rentista com juros altos, carga tributária draconiana e insegurança jurídica, fatores
estes que desestimularam, ao longo dos anos, o investimento private equity ou em bolsas de
valores.
Pode ser! E é bem provável que seja um pouco de cada coisa, mas o que é, de fato, pacífico
entre todos os especialistas, é que a educação financeira brasileira ainda é muito precária,
uma fronteira repleta de misticismo, fantasias e delírios de riqueza infinita, mas por outro lado,
recheada de oportunidades, uma mata virgem pronta para ser explorada! Digo isto,
principalmente ao observar a sinalização e o posicionamento dos grandes bancos nesta
matéria, que têm investido pesado em brokerage e plataformas de investimento online, a
exemplo da XP Investimentos.
Muito embora o quadro ainda seja de um mercado embrionário e incipiente, não se pode
ignorar os avanços ocorridos nas últimas décadas e o recrudescimento de novos entrantes,
que, segundo reportagem da Infomoney 1, fez com que a bolsa de valores atingisse a marca de
mais de um milhão de investidores. Ainda é muito pouco, mas a curva de crescimento é
íngreme no sentido ascendente.
Neste sentido, assim como a descoberta do novo mundo 2, a exploração de “novas” fronteiras
traz no horizonte, a reboque, não tão somente os colonizadores em busca dos negócios
legítimos, como também uma malta de mercenários, escroques e oportunistas.
E não seria diferente no mercado de educação financeira no Brasil, não é verdade!
Desta sorte, e mais sorte do que matemática séria, vou aqui ensinar uma pequena estratégia
para se ficar milionário em menos de um ano com um investimento de algo em torno de 10 mil
reais! Isso mesmo. Simples assim!

1
https://www.infomoney.com.br/onde-investir/acoes/noticia/8260177/bolsa-se-aproxima-de-1-milhao-de-
investidores---mas-ainda-e-pouco
2
https://pt.wikipedia.org/wiki/Novo_Mundo

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Por hipótese, a ideia consistirá em montar uma consultoria em educação financeira com a
assinatura online de relatórios (reports), de modo que o core business da prestação do serviço
se constituíra em prover dicas para investidores em ações no mercado de capitais.
Em primeiro lugar, alugue uma salinha na torre do Rio Sul, se bem que com dez mil reais acho
que só dará para uns 15m2 na Lapa mesmo. Mas ok, relaxa, ninguém nunca visitará a sua
estrutura, seria mais para impressionar seus próprios colaboradores com o sonho de uma
oportunidade única na carreira!
Neste compasso, contrate dois estagiários alfabetizados, podem até ser menores de idade, ou
de alguma faculdade de quinta categoria. Isso não importa! O que importa, de fato, é que pelo
menos saibam escrever o próprio nome e tenham algum conhecimento em Word e digitação.
Ainda nessa vertente, perca algumas horas no dicionário procurando expressões fortes e
escatológicas, como: “o fim do país”, “revolucionário”, “você nunca viu”, “vai perder essa
oportunidade”, “ambervision”, “emagreça em cinco dias”... enfim, o importante é juntar um
extenso manual com expressões bombásticas e sensacionalistas para que os estagiários
possam utilizar em seus relatórios, de forma pomposa e espetaculosa para iludir os clientes.
O importante aqui é impressionar, encantar, seduzir! Razzle dazzle!
Todavia, toda essa perfumaria não dará certo se não houver um componente básico e
importantíssimo que estabeleça a sua reputação no mercado e convença de vez o público de
que “consumir” seus relatórios são um negócio da China, o que chamamos de traking record,
ou melhor dizendo, o histórico de retornos da sua carteira indicada.
E aqui é que vem o grande “pulo do gato”!
Se avaliarmos os histórico de retornos em 50 anos do fundo de um dos investidores mais ricos
e conhecidos mundialmente, o Berkshire-Hathaway 3 do Warren Buffett, chegaremos a um
retorno médio nesses cinquenta anos em torno de 21.6% anuais.
Ou seja, o retorno médio de um dos investidores mais competentes do mundo, com uma
equipe formada nas Ivy Leagues, equipe bem remunerada e modelo de gestão para a indústria
de investimento, poderia ser considerado um benchmark razoável para retornos no mercado
financeiro, não é mesmo?
Entretanto, alguns podem até argumentar que o Mr. Warren é um senhor idoso e que seus
investimentos são meramente institucionais, não considerando as oportunidades “únicas”
encontradas em países em desenvolvimento como o Brasil.
Sem problema, consideraremos, então, o ranking nacional de fundos em ações, onde, entre os
topos figura o Itau Ações Dividendos FI que, segundo a reportagem de Rafael Seabra 4, em 10
anos obteve um retorno acumulado de 962,28%. Pelos meus cálculos, esta porcentagem
acumulada equivale aproximadamente a um retorno anual de 26,7%, o que não se distancia
tanto daqueles auferidos pelo “pobre” senhorzinho inglês.
Ok! Um mercado de maior risco até justifica mesmo um retorno ligeiramente superior ao
obtido pelo hedge fund global do velho Buffet.
Deste modo, qualquer investimento em ações que prometa retornos anuais “consistentes a
longo prazo” que sejam superiores a 25% a.a. ou é digno da alcunha de “gênio das fianças” (e
me apresente este gênio pois estou procurando um a vida toda), ou se trata de um mero
crupier, um charlatão qualquer que lhe reservará uma cadeira junto a uma mesa de pôquer.

3
https://www.wyattresearch.com/article/income-investors-berkshire-hathaway/

4
https://queroficarrico.com/blog/10-melhores-fundos-de-investimento-da-ultima-decada/

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Mas voltemos à nossa vendinha de relatórios financeiros, ainda não lhe disse como gastar os
dez mil reais e ficar milionário, não é verdade?
Ao invés de usar tais recursos com o soldo dos seus soldados, lembre os estagiários que salário
e coisa do passado e que a palavra de ordem atualmente é empowerment. Nesta seara,
incentive-os a, de forma “independente”, investirem no mercado de opções o valor dos bônus
variáveis que você lhes oferecerá!
Considerando que no mercado de opções (fora do dinheiro), os ativos podem variar até
1000%, como num arriscado jogo de azar, deposite cinco mil reais na conta de cada estagiário
sob o título de adiantamento de bônus, para que os mesmos possam comprar tais opções.
No caso do primeiro jovem oriente-o a investir tudo em opções de compra de uma companhia,
já, no caso do segundo, proponha uma estratégica direcionalmente divergente, ou seja,
opções de venda na mesma companhia e na mesma proporção.
Independente do mercado subir ou cair, a sua “carteira global” será de soma zero, ao passo
que uma das pontas, a compradora ou a vendedora, amealhará lucros absurdos, cinquenta
vezes superiores às médias do bom velhinho inglês. Já, a outra ponta, terá prejuízos na mesma
proporção e justificará a demissão do pobre coitado (um colaborador a menos para alimentar)!
Ora, neste sentido, ao não se considerar a carteira de investimento global, omitindo, assim, os
riscos e as pontas perdedoras, fica muito fácil fazer uma campanha de marketing com um
jovem, apresentando suas notas de corretagem, e alegando que se tornou um trader de
sucesso ao manejar seus relatórios de estratégia em opções.
Isto, decididamente, lhe fará ganhar numa ponta e perder na outra, mas como os recursos será
do estagiário vencedor, você acabará perdendo os 10 mil reais nesta brincadeira. Entretanto,
isso também lhe fará rico vendendo relatórios assinados pelo estagiário promissor, vez que o
retorno desse jovem prodígio será infinitamente superior aos da equipe de Buffet!
O raciocínio é simples assim! Garantia de sucesso! (ai, ai, já estou eu aqui utilizando o manual
de expressões bombásticas)!
Uma roleta de cassino possui 36 casas, se contratarmos 36 pessoas que coloquem uma ficha
em cada casa, todo o dia termos um vencedor para estampar na campanha de marketing do
terreiro da mãe de santo Ialorixá.

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Todavia, insta salientar que este tipo de operação no passado era chamada de “zé com zé”, o
que consiste em manipulação de mercado e crime contra o sistema financeiro. E você não quer
ser preso precocemente, pelo menos não antes de ficar rico, não é?
Nesta cadência, há formas mais sutis de manipulação, onde os vigaristas contratam diversos
jovens, lhes oferecem bônus robustos e os orientam utilizar tais recursos investindo nas
carteiras recomendadas divulgadas pelos relatórios da empresa.
E o importante é possuir uma infinidade de relatórios com dicas diferentes, pois ninguém é
cartomante e não há como prever o futuro, de modo que a maior parte dos jovens não seguirá
uma estratégia vencedora, entretanto, estatisticamente, haverá pelo menos um vencedor para
que seja estampado na mídia!
Se trabalharmos com umas vinte carteiras diferentes de smallcaps, com um pouquinho de
sorte, tais carteiras podem ter alocações em ações que se valorizem significativamente, a
exemplo de Vulcabrás ou Magnesita, cujos retornos anuais nos últimos três anos foram
respectivamente5 de 83,84% e 63,65%.
Aliado a isso, há também a forma de corte temporal que é apresentada pelos magos das
finanças, que consiste em mais um componente de manipulação, digna de espetáculos de
ilusionismo, senão vejamos:
A variação de ativos na bolsa é cíclica e, em algum momento é possível que qualquer ação
tenha retornos bem acima dos retornos do Ibovespa.
Contudo, tais lucros serão compensados, ao longo do tempo, com prejuízos na mesma
dimensão, considerando-se, aqui, o desvio padrão do ativo manejado (volatilidade).
De fato, ninguém possui bola de cristal para acertar integralmente o time de entrada e saída
das ações, nesta baila, lucrará mais que o Ibovespa em tempos de “vacas gordas”, e perderá
mais que o índice nos tempos das “vacas magras”, óbvio, que nem sempre na mesma
proporção, pois o diferencial dos traders ou dos analistas reside exatamente na sua habilidade
de fazer boas ou más escolhas em ambos cenários.
Bons traders conseguem, de fato, retornos consistentes acima do Ibovespa, mas dentro de
uma razoabilidade, que está longe de significar duas ou três vezes o ativo referencial
(benchmark).
Nesse diapasão, fazer uso de um corte temporal que considere apenas os “tempos de vacas
gordas” consiste numa técnica largamente utilizada nas campanhas de marketing persuasivas,
onde impostores analisam os dados a posteriori, de modo que encontrem cortes com
perspectivas positivas, de forma a inflacionar a qualidade da sua carteira.
Por exemplo, se considerarmos a variação anual do Ibovespa 6 desde 2008, será possível notar
que, por alguns poucos anos, o seu retorno anual fora positivo,
ou até mesmo fora da curva, como em 2009, que chegou a
145% no ano!
Por seu turno, se considerarmos os 10 anos mencionados na
tabela, o prejuízo acumulado de quem investiu no Ibovespa
teria sido de -37,11% do investimento inicial!
Numa análise superficial, então, bolsa seria um péssimo
negócio? Acredito que não, pois caso contrário, a poupança
americana não seria baseada neste tipo de ativo.

5
https://www.infomoney.com.br/onde-investir/acoes/noticia/7201750/acoes-com-maior-valorizacao-dos-ultimos-
anos

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Por sua vez, no caso específico do Brasil a bolsa realmente não foi um investimento promissor
nos últimos dez anos, principalmente, devido ao risco Brasil e às políticas econômicas
equivocadas dos governos de esquerda.
Noutro corte, se consideramos os três anos que precederam 2018, podemos afirmar que a
bolsa teve um retorno fantástico de 104% acumulado, ou seja, quem investiu dobrou o seu
capital em apenas 3 anos, justificando uma larga campanha de marketing para vender
relatórios de ações.
Assim, querer explicar o mercado brasileiro de ações somente pela ótica do corte cíclico de 3
anos de retornos positivos do índice é, não só um erro grosseiro, como uma manipulação
espúria e enganosa.
De fato, já vi propagandas onde moças bonitas alegam que alcançaram seu primeiro milhão
em 3 anos começando com um investimento em torno de R$ 1.500,00, devido exatamente a
este corte temporal dos tempos de “vacas gordas” da bolsa, e omitindo, propositalmente, a
taxa de retorno média, bem como os aportes posteriores que foram realizados para que se
chegasse a este valor.
Com uma média de retorno anual em torno de 26,7%, equivalente aos números do Itau Acões
Dividendos FI, que como já dito foi um dos fundos de ações nacional com o maior retorno
acumulado nos últimos dez anos, para se alcançar a marca de um milhão de reais nesse 3 anos
atípicos de bolsa em alta bem acima da média, seria necessário, no mínimo, um aporte inicial
em torno de R$ 500.000,00.
Ademais, seria necessário também um instinto de vidente do cenário econômico, para entrar e
sair do fundo no time certo, pois a equipe do banco não conseguiu retornos médios que
permitiriam dobrar o capital em três anos de forma consistente e pontual em outras épocas,
ou em outros cortes temporais. Isto, muito em face do já mencionado fator cíclico bursátil, que
levou o fundo, por vários anos intercalados, a obter retornos negativos ou bem abaixo dos 3
anos que precederam 2018.
Nesta ribalta, siga meu conselho e não seja um gamble! O mercado não foi feito para
jogadores e não existe fórmula mágica para se enriquecer da noite para o dia “na” bolsa.
Por sua vez, também não seja um croupier da educação financeira, aquele que, como
dirigente de uma mesa de pôquer, amealha retornos “com” bolsa indiretamente, seguindo a
cartilha do vigarista profissional e iludindo investidores incautos com produtos de qualidade
temerária.
Estude, acredite na educação financeira, você e o brasil precisam de mais instrução nesta área
tão fascinante, mas por favor, não caia na ladainha de maus profissionais que lhe prometem
vender um terreno em Marte!
Arthur Valle
Mestre em Administração Pública pela EBAPE/FGV,
MBA do IBMEC,
Autor das obras:
“Fortuna Imperatrix Mundi – Um alerta para a crise global, Muiraquitã, 1999.”
“A revolução do gás não convencional nos EUA: uma nova corrida do ouro?,  TereArt Editora,
2015."

6
http://bvmf.bmfbovespa.com.br/indices/ResumoVariacaoAnual.aspx?Indice=IBOV&idioma=pt-br

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