Trabalhava na fábrica de cera de assoalho, vela e sabão. Iniciei ali em 1964.
Estudava o 4° ano do Ginásio noturno, no Colégio Joaquim Murtinho. Era o mais letrado dos trabalhadores. E daí eu criar inúmeras dificuldades para o patrão que era corrupto, corruptor e sonegador. Algumas vezes, eu o denunciei ao Ministério do Trabalho, mas os fiscais da época sofriam dos males dos atuais - sempre eram comprados. Em particular, os fiscais que lá estiveram por umas três vezes. O meu futuro era o presente com uma quantia de um salário chamado “de menor” que era a metade dos adultos, mas como eu tinha altura e corpo, fazia o trabalho de adulto. A perspectiva de vida em Campo Grande não era a mais desejada. Os melhores empregos eram o de vendedor em lojas de roupas (Casas Pernambucanas) ou o de funcionário público de qualquer natureza (Correios ou Noroeste do Brasil – NOB). Também dava status o ser bancário (Banco do Brasil). Nenhuma dessas coisas me atraia. Também não sabia o que queria. A ignorância de casa toldava qualquer visão de futuro. A falta de informação era completa. Começavam, em Mato Grosso (uno), a chegar os rádios portáteis à pilha. Esse foi o grande meio de comunicação da minha adolescência. Ser engenheiro, médico, ou advogado era possível, pois já estava terminando o segundo grau ou o curso científico, como era chamado. Mas, para a condição familiar isso soava tão longe como ser bispo ou presidente da república. Tal coisa foi motivo de enormes reflexões solitárias: será que poderei ser um desses doutores? Uma hora achava que sim, pois todos os meus colegas já falavam nisso e eu era tão bom aluno quanto eles, no desempenho escolar. Outra hora achava que não, não tinha capacidade para tal. E também como pagar o curso... Mas a vida, feita do dia a dia, só permite esperança para o futuro. Não há como ter esperança para o presente. Nunca, para o passado. E o dia a dia era o trabalho entre sabão, soda cáustica, velas e sabonetes. Um dia, já cursando o segundo científico, nos visitou em casa um parente que acenou com uma possibilidade. Ele morava em Jundiaí e trabalhava numa indústria qualquer. Era bioquímico ou coisa parecida. Fez a seguinte proposta, a meus pais: – “o menino termina o terceiro científico, ano que vem, e vai morar comigo em Jundiaí. Lá tem condições de trabalhar, fazer um cursinho e se preparar para um vestibular. Depois de entrar na faculdade, aí, veremos o que fazer”. A proposta era irrecusável. Esqueci, e também os de casa esqueceram, foi sobre a idade. No ano do “terceiro ano do científico” era também o do serviço militar obrigatório. E na época era obrigatório, mesmo. O parente era casado com uma prima minha. O pai dele fora patrão de meu pai, em Terenos. Lá, meu pai operava uma máquina de beneficiar arroz. Um dia o dono da máquina escureceu e não amanheceu. Até hoje ninguém sabe para onde foi. Era um desses que, vindo do nada, amealhou algum patrimônio e, achando que estava rico, criou mal os filhos. Ninguém queria nada com a vida. Incluído aí o meu primo. Era socialista: protetor dos pobres e dos desvalidos. Havia uma enorme dificuldade para conciliar o estudo do ano seguinte e o serviço militar. Era do calendário de instrução que todas as unidades, consideradas operacionais, deveriam incorporar seus recrutas em janeiro e licenciá-los em dezembro; as unidades consideradas logísticas, ou não operacionais, incorporavam em maio e licenciavam em fevereiro, ou março, do ano seguinte. As unidades operacionais faziam adestramento avançado em novembro, de um mês, o que para um estudante querendo terminar logo o “terceiro científico” era um risco muito grande de repetência, como acontecia a miúdo. Para mim, a incorporação em janeiro seria melhor, pois licenciado em dezembro, estaria em janeiro, do ano seguinte, na casa do parente. Havia o risco de reprovar, se fosse para as manobras de adestramento. A de maio, eu não iria para as manobras, mas só estaria livre em março, do ano seguinte, já tarde para começar um cursinho em Jundiaí. Mas, nessas situações sempre aparecem os amigos. E amigos de pelada de futebol. Tinha um goleiro que era cabo. Contei a ele aquilo que para mim era insolúvel, era o meu drama. E a vida começou a conspirar a favor. Disse o amigo: – “tá mais fácil do que você pensa. Eu estou na Comissão de Seleção. Vou fazer tudo para que incorpore na minha unidade: a Cia DAM (9ª Companhia Depósito de Armamento). Lá incorpora em janeiro e não faz manobra, por ser depósito”. Era longe de tudo. Todos a chamavam de “Fazendinha” por ser longe e não ter linha de ônibus. Da minha casa, ficava a uns três quilômetros. A mim ficou muito, muito perto. E tinha pelo menos três companheiros de pelada ali servindo. Quando cheguei na comissão de seleção, já havia informação a meu respeito como jogador de futebol. Como iria fazer o terceiro ano do “Científico”, pela legislação, poderia fazer o curso do NPOR (Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva) no então 9º G Can 75 AR. Foi com algum trabalho que consegui ficar na Cia DAM. Havia pressão de unidades maiores para ficar com meu “passe de jogador” e também o meu grau de escolaridade. Tive que, na entrevista, pedir para falar com o presidente da comissão. A ele, expliquei a minha necessidade de terminar meu serviço militar em dezembro e seguir meu destino como estudante. Assim, consegui vencer a primeira batalha. E foram muitas. Embora, hoje, não seja religioso e, até certo ponto, cético com o que o vulgo considera sagrado, reconheço que, em minha vida, “alguma coisa” funcionou só para me atender. E, “alguma coisa”, me conduzia, direcionava e até me atropelava. Houve situações onde até parecia haver intencionalidade de alguém a colocar palavras em minha boca, pensamentos em minha mente, direção na minha estrada ou portas no meu destino. No mínimo, uma janela para eu ver novas paisagens e desejá-las, e ao desejá-las, criar força e coragem para saltar essas janelas e fazer das novas paisagens uma nova vida. Isso requereu um elevado grau de confiança, atitude, audácia, uma ambição leal, comedida, responsável, honesta e, até, riscos. Se existe anjo de guarda que não só protege, mas que também auxilia este é meu anjo e com competência. Entretanto, também, ou por vacilo do anjo, ou por ação dele para me domesticar, fazer-me humano, lembrar-me de praticar a modéstia, eu paguei caro os meus arroubos, as minhas bravatas e as minhas soberbas. Nos momentos certos eles aparecerão. Assim, naquele instante de vida tinha um emprego, duro é verdade, estava bem no colégio que era noturno já tinha um futuro “quartel para servir” como se diz aqui na terra. (escrito em Campo Grande).