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Etnobotânica: um instrumento para valorização e identificação de potenciais de

proteção do conhecimento tradicional


Ethnobotany: a instrument for valorisation and identification of potential for the
protection of traditional knowledge
Ethnobotanique: un outil pour la valorisation et l’identification du potentiel de
protection des savoirs traditionnels
Etnobotánica: una herramienta para la valoración e identificación del potencial para la
protección de los conocimientos tradicionales

Joyce Alves Rocha*


(joycearbio@gmail.com)
Odara Horta Boscolo**
(odaraboscolo@hotmail.com)
Lucia Regina Rangel de Moraes Valente Fernandes***
(luciareg@inpi.gov.br)

Recebido em 09/11/2013; revisado e aprovado em 24/07/2014; aceito em 23/08/2014


DOI: http://dx.doi.org/10.1590/151870122015105

Resumo: Objetivou-se apontar estudos etnobotânicos como instrumentos de valorização e identificação de potenciais
de proteção do conhecimento tradicional, ao se aproximarem das Indicações Geográficas (IGs), visando favorecer
o desenvolvimento local baseado em novas soluções socioambientais. Investigou-se uma comunidade rural do
Rio de Janeiro/Brasil, situada em UC de Mata Atlântica. Urge que tal aproximação seja promovida para que traga
benefícios econômicos locais e subsidie políticas públicas.
Palavras-chave: Etnobotânica. Indicação geográfica. Comunidades tradicionais.
Abstract: Aimed to point out ethnobotanical studies as instrument for valorisation and identification of potential
protection of traditional knowledge, the approach of Geographical Indications (GIs), aiming to promote local
development based on new social and environmental solutions. We investigated a rural community in Rio de
Janeiro / Brazil, located in UC Atlantic. Urge that such an approach is promoted to bring local economic benefits
and subsidize public policies.
Key words: Ethnobotany. Geographical indication. Traditional communities.
Résumé: Visant à souligner études ethnobotaniques comme un instrument pour la valorisation et l’identification du
potentiel de protection des savoirs traditionnels, l’approche des Indications Géographiques (IG), visant à promouvoir
le développement local basé sur de nouvelles solutions sociales et environnementales. Nous avons étudié une com-
munauté rurale de Rio de Janeiro/Brésil, située dans les UC de Mata Atlântica. Il est urgent qu’une telle approche
est promu à apporter des avantages économiques locaux et et stimulent le développement des politiques publiques.
Mots-clés: Ethnobotanique. Indications géographiques. Communautés traditionnelles.
Resumen: Dirigido a señalar los estudios etnobotánicos como herramientas para la valoración e identificación de
potencial para la protección de los conocimientos tradicionales, al acercarse de las indicaciones geográficas (IG),
con el objetivo de promover el desarrollo local basado en las nuevas soluciones sociales y ambientales. Se investigó
una comunidad rural de Rio de Janeiro/Brasil, ubicado en la UC de Mata Atlântica. Urge a que se promueva este
acercamiento para generar beneficios económicos locales y subsidiar políticas públicas.
Palabras clave: Etnobotánica. Indicaciones geográficas. Comunidades tradicionales.

Introdução e as Plantas e o modo como essas plantas


são usadas como recursos. Atualmente a
Etnobotânica etnobotânica tenta se comprometer com o
mundo em desenvolvimento, adotando uma
A etnobotânica pode ser definida como posição estratégica com seu foco integrativo
o estudo da relação existente entre o Homem (ALCORN, 1995).

* Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro/Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil.
** Instituto Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil.
*** Instituto Nacional da Propriedade Industrial, Rio de Janeiro, Brasil.

INTERAÇÕES, Campo Grande, v. 16, n. 1, p. 67-74, jan./jun. 2015.


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Lucia Regina Rangel de Moraes Valente Fernandes

Permite um melhor entendimento das envolvem a chancela da Indicação Geográfica,


formas pelas quais as pessoas pensam, clas- pois, ao gerar condições favoráveis para a co-
sificam, controlam, manipulam e utilizam operação, a ajuda mútua, o caráter protetivo
espécies de plantas e comunidades. Pesqui- e ações conjuntas criam fatores estruturantes
sas de cunho etnobotânico podem ajudar para o início de processo de organização e
planejadores, agências de desenvolvimento, planejamento de novas perspectivas em torno
organizações, governos e comunidades a con- de objetivos comuns.
ceber e implementar práticas de conservação e
desenvolvimento (TUXILL; NABHAN, 2001). Conhecimento tradicional, comunidades
Essa ciência facilita o diálogo e a troca entre tradicionais e território
especialistas e outros atores sociais, a fim de
gerar novas formas de conhecimento e de Conforme o PNUMA (2001), conheci-
novas demandas filosóficas, éticas, epistemo- mento tradicional é “um corpo de conheci-
lógicas e institucionais (ALEXIADES, 2003; mento construído por um grupo de pessoas
ALBUQUERQUE; LUCENA, 2005; ALCORN, através de sua vivência em contato próximo
1995; BEGOSSI, 1999; OLIVEIRA et al., 2009). com a natureza por várias gerações. Ele inclui
O fortalecimento das áreas envolvidas um sistema de classificação, um conjunto de
em um estudo etnobotânico não traz somen- observações empíricas sobre o ambiente local
te implicações em termos da produção de e um sistema de auto-manejo que governa o
conhecimento em cada campo específico do uso dos recursos”.
saber. Ao contrário, destaca-se como uma Nessa vertente, ao se trabalhar com co-
abordagem de pesquisa científica que estuda munidades tradicionais, é de fundamental im-
pensamentos, crenças, sentimentos e compor- portância que se discuta o tema território sob
tamentos, que poderão mediar as interações o ponto de vista da materialidade, enquanto
entre as populações humanas e os demais espaço de subsistência, e do simbolismo, ao
elementos dos ecossistemas, assim como, os se considerar o vínculo afetivo-ancestral, e de
impactos advindos dessa relação (MARQUES, poder, enquanto demarcador de possibilida-
2002). Mostra-se capaz de contribuir para des jurídicas e de garantia de direitos.
aproximar o conhecimento científico do saber “Território”, segundo Rezende-Silva et
tradicional, com vistas a mitigar danos, criar al. (2011), trata-se de um termo híbrido entre
alternativas produtivas, direcionar soluções ser humano (sociedade) e natureza, entre
para o bem coletivo. política, economia e cultura, e entre simbolis-
Assim, consideramos o desenvolvi- mo e subsistência material, numa complexa
mento local como mais uma perspectiva interação espaço-temporal, e tem sido insti-
presumível dentro do hall de possibilidades tuído como elo essencial entre comunidades
apontadas pela etnobotânica. O desenvolvi- tradicionais e natureza. O território também
mento local é um processo dinamizador da tem relação com o tempo e as atividades hu-
sociedade para melhorar a qualidade de vida manas cuja expressão é dada por imbricações
das pessoas envolvidas no modo de vida da contextualizadas. Em consequência, a análise
comunidade, favorecendo a emergência de do território e suas transformações exigem um
novas formas de produzir, compartilhar e ter forte reconhecimento do local, exige também
seus direito protegidos. Portanto o desenvol- a interação deste âmbito com o global (RÍOS,
vimento local é um processo de transformação 2006).
social, cultural, econômico e político em que Em comunidades tradicionais, perpe-
os maiores beneficiários podem ser os mem- tua-se uma relativa simbiose entre ser hu-
bros da própria comunidade (CASTILHO et mano e natureza, tanto em sua práxis quanto
al., 2009). no campo simbólico, o saber imanente desses
Pautados ainda na visão de Castilho et grupos acumula, favorece e mantém o conhe-
al. (2009), buscou-se registrar as potenciali- cimento sobre este território onde é vital que
dades de desenvolvimento local enquanto se reconheça a importância da transmissão
alternativas mais viáveis para se proporcionar desse saber às novas gerações. Entretanto,
a ampliação de possibilidades na comuni- na maioria das vezes, os sujeitos dessas co-
dade em questão, através dos preceitos que munidades não se percebem como atores

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sociais, com direitos e responsabilidades, ou A Indicação Geográfica (IG)- ativo intangí-


seja, como parte integrante de processos e de vel da propriedade intelectual
transformações locais. É possível identificar
que essas comunidades viveram, e de certa Para Locatelli (2008), dentre os diversos
forma ainda vivem, em um mundo invisibi- instrumentos que podem ser utilizados para
lizado (SANTOS, 2007). fomentar o processo de desenvolvimento eco-
Estudiosos e ambientalistas apontam nômico de um país, emerge uma alternativa
que, quando as comunidades tradicionais que vem sendo difundida por muitos países
apresentam sensibilidade ambiental, algum que é a proteção jurídica da propriedade
tipo de liderança e práticas comerciais locais intelectual. E, dentre os direitos relativos à
articuladas à organização social, essas co- propriedade intelectual capazes de fomentar a
munidades podem ser fortalecidas com base economia de um país, as Indicações Geográfi-
no uso racional de espécies vegetais e com cas (IGs) atuam como uma maneira distintiva
ações afirmativas de ecodesenvolvimento que diferencia os produtos ou serviços em
(SÁNCHEZ, 2010). Tal pressuposto demanda razão de sua origem (CASTELA, 2002).
reflexão a respeito das práticas antrópicas Segundo Baht (2009), a Indicação Geo-
dessas comunidades e sobre o que tem levado gráfica é um tipo de proteção que reflete o
à devastação da natureza e à desagregação esforço coletivo de defesa e gerenciamento
de seus sistemas de vida, pois, usualmente, de direitos de propriedade intelectual que
esses sistemas incluem elementos socioam- envolve um conceito explícito de coletividade.
bientais em função da manutenção de um A IG existe desde o século XII e foi
acervo de conhecimentos empíricos sobre os utilizada desde essa época por fabricantes,
vegetais e de um patrimônio genético de valor tecelões e principalmente por produtores de
inestimável para as gerações atuais e futuras vinhos na Europa. Elas agregam valor a pro-
(AMOROZO; GÉLY, 1988). dutos e serviços associados a determinados
No Brasil, imbricada em interesses efe- territórios, entendidos tanto em sua dimensão
tivamente econômicos, a luta por territórios natural como também em sua dimensão cul-
implica necessariamente em uma disputa tural, criam um fator diferenciador entre tais
de poder. Dessa forma, as comunidades produtos e os demais disponíveis no mercado.
tradicionais, ao se organizarem pelo direito O valor agregado é justamente em virtude de
aos territórios ancestrais, não estão apenas uma identidade única, própria e associada a
lutando por demarcação de terras, às quais determinado território. Santilli (2006) cita que
elas têm direito, mas, sobretudo elas estão são produtos diferenciados, associados a va-
fazendo valer seus direitos a um modo de lores simbólicos e a dinâmicas socioculturais
vida (REZENDE-SILVA, 2012). locais, que buscam as suas próprias formas
E, considerando que o reconhecimento de inserção em um mercado dominado cada
dos saberes tradicionais locais sobre os re- vez mais por produtos globalizados.
cursos naturais deve ser respeitado em ações A IG tem um caráter distintivo, que
de valorização do patrimônio cultural local é o direito de uso coletivo, estendendo-se a
(LIMA et al., 2013) e que a diversidade de et- todos os produtores e prestadores de serviço
novariedades mantida pelos membros dessas estabelecidos no território correspondente.
comunidades tradicionais deve ser avaliada, Pela Lei brasileira da Propriedade Industrial
não apenas pela ótica de uma atividade eco- (BRASIL, 1996) o registro de uma IG só pode
nômica que se destaca, mas como prática so- ser requerido por pessoa jurídica de represen-
ciocultural e ambiental, apontamos com esta tatividade coletiva, com legítimo interesse e
pesquisa que o etnoconhecimento imanente estabelecida no respectivo território.
a esses atores locais deve ser reconhecido e Os produtos e serviços protegidos por
valorizado por meio de novas formas de apoio IG possuem melhores condições de competir
à comunidades como a referida nesse estudo. e ganhar a preferência do consumidor, a con-
fiança, além de contribuir na manutenção de
uma tradição.
Considerando que as IGs aumentam
a visibilidade das áreas geográficas que as

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caracterizam, estas acabam sendo áreas pro- devastação ambiental, desagregação social e
missoras para novos empreendimentos que cultural (BOSCOLO, 2011).
utilizem, por exemplo, o turismo relacionado
às indicações geográficas e, por sua vez, di- Trabalho de Campo
versas outras atividades a ele relacionadas.
Também podem atrair o consumidor para Para o trabalho de campo, foi utilizada
conhecer e até mesmo experenciar a tradição a abordagem da Observação Direta na qual
e cultura local que identifica a referida região; o pesquisador tem um grande contato com a
nesse contexto, novas oportunidades de em- comunidade, mas sem um envolvimento to-
prego são geradas (LOCATELLI, 2008). tal. Consiste basicamente na observação e no
O objetivo deste trabalho é mostrar registro dos fenômenos observados em cam-
como estudos etnobotânicos podem ser um po. Os encontros com os informantes foram
instrumento de valorização e de identificação registrados através de um diário de campo,
de potenciais latentes de proteção do conhe- máquina fotográfica digital e gravador digital
cimento tradicional. mp3 (BOSCOLO, 2011).

Materiais e métodos Resultados e discussão

Área de estudo A interseção das Unidades de Con-


servação (UCs) na área de estudo está in-
Este trabalho foi realizado em uma fluenciando bastante na atual configuração
comunidade tradicional rural do Estado do econômica, social, cultural e política da área.
Rio de Janeiro (22° 16’ 55” S 42° 31’ 51” W), Os limites das UCs não estão bem delimita-
Município de Friburgo, Brasil. Essa comuni- dos, nem para os próprios moradores locais.
dade possui origem suíça e possui relativo A transformação de uma região em área de
isolamento dos grandes centros urbanos proteção ambiental implica uma alteração das
devido à dificuldade de acesso às suas estra- formas de apropriação simbólica da nature-
das. Sua área está situada em duas Unidades za e a introdução de novos usos sociais do
de Conservação (UCs), no Parque Estadual espaço (CHAMBOREDON, 1985), definidos
dos Três Picos e na zona de amortecimento pela interação de múltiplos agentes. É uma
da Área de Proteção Ambiental de Macaé de regulamentação que impõe a visão do Estado
Cima (IEF, 2013). (mais moldada pelas populações urbanas) de
Este local constitui um dos mais expres- natureza e de ambiente. Essa visão estabelece
sivos corpos florestais do estado do Rio de normas de uso, diante da função ambiental
Janeiro, caracterizado por densa cobertura do atribuída a certas áreas, em nome de um patri-
bioma Mata Atlântica, com grande variedade mônio coletivo, por sua suposta importância
de ambientes e paisagens, e é recortado por natural, definida por critérios científicos. E
rios e córregos que vão formar bacias hidro- o resultado é o conflito com as necessidades
gráficas importantes para o Rio de Janeiro (PL locais, desqualificação das formas tradicionais
MATA ATLÂNTICA, 2010). Esse fragmento de relação com a natureza e buscando substi-
florestal está inserido no Corredor de Biodi- tuí-las por outras, sem considerar o papel das
versidade da Serra do Mar e foi reconhecido, populações rurais na formação dessa natureza
em 2000, pelo Ministério do Meio Ambiente, (MATHIEU; JOLLIVET, 1989).
como área de extrema importância biológica, Considerando a dinâmica que perdura
e prioritária para a conservação (MMA, 2013). nesse processo de implantação e manutenção
A maior parte da comunidade depende das UCs e seu entorno, tem-se observado
de bens e produtos adquiridos fora de seus a existência de uma incoerência das ações
territórios tradicionais, e já tem relações com governamentais de apoio a essas áreas. Isso
o mercado e com a sociedade envolvente. se explica pela observação de que, dentro da
Em muitos casos, tais relações se dão em mesma política que rege a criação dessas áre-
bases extremamente desvantajosas (como a as, estão contempladas uma nova e uma velha
extração predatória de espécies vegetais e lógica conceitual de desenvolvimento. A nova
minérios, entre outras), e produzem intensa lógica é percebida nos princípios da política

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que se baseiam na participação social como atores sociais envolvidos (gestores e membros
premissa fundamental para a ação estatal. das comunidades envolvidas), para efetivação
Entretanto esses princípios são embarreira- da participação democrática em prol de um
dos, em sua aplicação cotidiana, pelo estilo de desenvolvimento local sustentável, dirimindo
gestão tecnocrático e centralizador, oriundo conflitos e permitindo novas oportunidades.
das concepções de desenvolvimento do século A questão é: como desenvolver modelos
passado (CONTI; ANTUNES, 2012). em que a inserção dos povos locais no cha-
A proximidade da comunidade com as mado mercado possa se dar em bases mais
duas UCs tem criado um ambiente de conflito equitativas e sustentáveis? Gerar alternativas
de interesses entre a comunidade formada em econômicas sustentáveis para essas comuni-
sua maioria por agricultores familiares, e os dades, de modo que supra as suas necessida-
ambientalistas. A sobreposição das áreas de des de acesso a bens e produtos externos, é
proteção e as diferentes categorias constituem um desafio posto às próprias comunidades, às
um desafio à gestão, a qual pode ser enrique- organizações da sociedade civil, às empresas
cida por diversos tipos de estudos, incluindo com responsabilidades socioambientais e ao
os de Etnobotânica (BOSCOLO, 2011). Poder Público (SANTILLI, 2006).
É necessário lembrar que as UCs foram As IGs poderiam ser instrumentos úteis
impostas às populações rurais com uma série à diferenciação dos produtos gerados por
de efeitos negativos para estas e também às comunidades locais no mercado, agregando-
áreas protegidas. Como exemplos desses efei- lhes valor cultural e ambiental, oferecendo
tos sobre as populações locais, residentes no ao consumidor uma marca distintiva de sua
interior dessas áreas ou no entorno, têm-se a tipicidade, e beneficiando-se de nichos espe-
restrição da utilização tradicional de recursos, cíficos de mercado. Os instrumentos devem
o aumento da destruição de culturas e da estar inseridos, entretanto, dentro de uma
predação de animais domésticos pela fauna política de desenvolvimento territorial, social
selvagem, a desorganização da economia e o e humano que considere a nossa diversidade
turismo como fator de destruição da cultura cultural e valorize os produtos e serviços
local (MORSELLO, 2001). Não se pode ignorar especializados que tal diversidade gera e
que a criação de áreas protegidas envolve im- produz.
pactos político-territoriais e fundiários, pois Considerou-se como atores sociais des-
ocupa, muitas vezes, terras agriculturáveis, já sa localidade, com sua diversidade e poten-
escassas em muitos países (DIEGUES, 2001). cialidades econômicas, sociais e ambientais,
Sendo a maior parte das áreas protegidas os moradores dessa região, que, com seus
brasileiras situada na zona rural, há também conhecimentos, apontam para as diferentes
a necessidade de que estas sejam consideradas alternativas de atuação para a transformação
pelas políticas públicas ambientais e agrárias e o desenvolvimento do local.
nos processos decisórios (FONTANA, 2004). A comunidade analisada nesse ensaio
A inserção da realidade moderna nesse depende, na sua maioria, do cultivo de inha-
mundo rural gera diversos problemas. As la- me. Essa cultura, dentre as outras, é a mais
vouras geram renda insuficiente, os homens expressiva e tradicional. Porém essa atividade
do campo vendem suas terras e constroem não é mais lucrativa para a população. Os
casas para alugar ou servir de pousada, o êxo- mais novos estão preferindo não trabalhar
do rural aumenta contrastando com o afluxo na terra, devido à falta de perspectivas lo-
de turistas e pessoas que decidem morar na cais, o que se agrava ainda pelo fato de a
região (BOSCOLO, 2011). comunidade só possuir escolas até o ensino
Para o favorecimento dessa nova lógica fundamental, então são obrigados a dar con-
de desenvolvimento efetivamente mais parti- tinuidade a seus estudos em outras localida-
cipativa na gestão de unidades de conserva- des. A pressão das UCs, que restringe cada
ção e seu entorno, é preciso avançar na institu- vez mais as áreas de roçado, contribui para
cionalização da política. E também considerar o desestímulo de práticas agrícolas locais.
a persistência das dificuldades de integração Com menos espaço e menos mão de obra, as
entre sociedade e natureza, e a implementa- comunidades acabam apelando por soluções
ção, através da mobilização e capacitação dos menos sustentáveis como o uso de defensivos

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agrícolas, que acabam por poluir a terra e os Considerações


rios (BOSCOLO, 2011).
A partir da constatação dessas potencia- As pesquisas etnobotânicas, de cunho
lidades, sugerem-se as Indicações Geográfi- essencialmente interdisciplinar, vêm se mos-
cas para o inhame e seus modos e produção trando promissoras para geração de subsídios
associados, como uma forma de proteção a diversos tipos de aplicações no desenvol-
e desenvolvimento econômico local. Além vimento local de comunidades tradicionais.
desses benefícios, a geração de empregos, a Neste ensaio, foi apontada a identificação de
possibilidade de compartilhar os benefícios potenciais de proteção de ativos intangíveis
econômicos com toda cadeia produtiva, bem da propriedade intelectual como as IGs.
como o fomento a outras atividades lucrativas Consideramos o potencial da etnobotâ-
indiretas evidenciam-se relevantes também nica em propiciar maior entrosamento entre
para fixar a população na zona rural. Tal fato os atores das comunidades locais, elevação da
denota-se importante porque o êxodo rural é autoestima dos participantes, favorecimento
um dos graves problemas socioeconômicos da erradicação de êxodo rural, aumento da
enfrentados por muitos países, dentre os quais visibilidade de entes da comunidade local,
o Brasil. Outrossim, quem não participar dire- melhoria de processos de produção ou de
tamente da cadeia produtiva do inhame pode prestação de serviços. Acredita-se que a mi-
se beneficiar por meio das atividades lucrati- tigação de ameaças locais é possível quando
vas indiretas, como o turismo, ou até mesmo a população é informada e chamada a partici-
pela valorização econômica das propriedades par das decisões que lhes dizem respeito, para
inseridas na respectiva região. Segundo Lo- que seja incluída nesse processo de maneira
catelli (2008), existem potencialidades reais eficaz. Se o desafio é incluir o ser humano no
das IGs instrumentalizarem o processo de processo de conservação da natureza, fica
desenvolvimento econômico. configurada a necessidade do desenvolvi-
Além do objetivo de desenvolvimento, mento de instrumentos que possibilitem essa
a IG pode contribuir para minimizar as desi- inclusão.
gualdades regionais, e as pesquisas poderiam Neste trabalho, evidenciou-se a ne-
ser voltadas para buscar as potencialidades cessidade de uma maior aproximação e o
das diferentes regiões brasileiras, fomentando estabelecimento de um diálogo entre UCs e
a economia de regiões menos prósperas, como a população local. Essa lacuna parece ser a
fez a França (GATINOIS, 1999). É necessária causa da desinformação generalizada sobre
a proteção efetiva das IGs além do território a área protegida, de algumas insatisfações da
nacional no qual estão situadas. Tal proteção população e, consequentemente, de conflitos
garantirá aos titulares destas que não sejam potenciais entre a gestão da área protegida e
indevidamente utilizadas em outros produ- os moradores do entorno o que poderia vir a
tos no mercado internacional, os quais não ser trabalhado na identificação de potenciais
tenham origem no local da indicação conce- de proteção via Indicações Geográficas na
dida. Além disso, assegurará ao consumidor região de conflito.
que, quando um produto, nacional ou estran- A partir da constatação dessas poten-
geiro, apresenta uma IG reconhecida, esta cialidades, foi levantada a possibilidade da
corresponda à real origem deste. Assim, as proteção como IG para o produto inhame
indicações nacionais e estrangeiras gozarão de como ferramentas de manutenção e geração
uma proteção uniforme (LOCATELLI, 2008). de trabalho/renda. Entram nesse processo
Resta, então, que os demais países comecem seus modos de produção associados, o com-
a utilizar esses instrumentos e a usufruir partilhamento de benefícios econômicos com
dos benefícios econômicos por estes gerados toda cadeia produtiva, bem como o fomento
(GATINOIS, 1999). de outras atividades lucrativas indiretas
como o ecoturismo local, pois, mesmo quem
não participa diretamente desse sistema
de produção, se beneficia pela valorização
econômica das propriedades inseridas na
respectiva região.

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proteção do conhecimento tradicional

Esses fatos podem ser apontados como desafios para o desenvolvimento local no assentamen-
relevantes indicativos de aumento na fixação to Aroeira, Chapadão do Sul, MS. Interações, Campo
Grande, MS, v. 10, n. 2, p. 159-169, jul./dez. 2009.
ou retorno de outras localidades da população
CHAMBOREDON, Jan C. La naturalisation. de la
dessa zona rural, em especial os mais jovens.
campagne: une autre maniére de cultiver lês simples.
Tal fato denota-se importante porque o êxodo In: CADORET, A. Protection de la nature: histoire et
rural é um dos graves problemas socioeconô- idéologie. Paris: L. Harmmatan, 1985.
micos enfrentados por muitos países, dentre CONTI, Bruna R.; ANTUNES, Diogo C. Conflitos na
os quais o Brasil. gestão do Parque Nacional da Serra da Bocaina: entraves
Urge que países como o Brasil pro- ao desenvolvimento local na vila de Trindade (Paraty,
movam a utilização de ferramentas como a RJ). Interações, Campo Grande, MS, v. 13, n. 2, p. 213-
223, jul./dez. 2012.
etnobotânica, a fim de que direitos relativos à
DIEGUES, Antônio, C. S. O mito moderno da natureza
propriedade intelectual, como a IG, favoreçam
intocada. São Paulo: Hucitec, 2001.
os benefícios econômicos gerados e fomentem
FONTANA, Alessandra. Ao redor da natureza: investigan-
o desenvolvimento de políticas públicas fede-
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