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Schechner, teatro e antropologia

JOHN COWART DAWSEY

Como o efeito retardado de um ponto lu- tre teatro e antropologia. Dois livros marcam o
minoso, ou pequena constelação de pontos, seu momento originário: From ritual to theatre:
num universo de pesquisa descentrado e em the human seriousness of play, de Victor Turner
expansão, chega o texto de Richard Schech- (1982); e Between theater and anthropology, de
ner numa tradução para o português de Ana Richard Schechner (1985). O ensaio “Pontos
Letícia de Fiori. Trata-se do ensaio intitulado de contato entre o pensamento antropológico e
“Pontos de contato entre o pensamento antro- teatral”, traduzido a seguir, é, como dito acima,
pológico e teatral”, o primeiro capítulo do livro o primeiro capítulo do livro de Schechner, e
Between theater and anthropology (1985), um aponta para uma série de questões que se des-
dos marcos dos estudos de performance. dobram ao longo do livro.
A “virada performativa” (performance turn) O ponto de partida de cada um desses au-
nas ciências sociais pode ser pensada a partir de tores é diferente. As reflexões embrionárias de
duas vertentes¹. A primeira, considerada “dra- Victor Turner (nascido em 1920) vêm de sua
matúrgica”, associa-se a pesquisadores como experiência em rituais e dramas sociais Ndem-
Victor Turner, Richard Schechner e Erving bu, nos anos de 1950. As reflexões mais agudas
Goffman. Kenneth Burke, que desenvolveu de Schechner (nascido em 1934), por sua vez,
uma abordagem “dramatista” para análise da vêm de sua experiência em teatro de vanguar-
vida social, é um de seus precursores. A segun- da. De 1967 a 1980, Schechner foi diretor ar-
da surgiu como um desdobramento de pes- tístico do The Performance Group (TPG) de
quisas realizadas no campo da linguística, com Nova York, um grupo de teatro experimental
destaque aos estudos de John Austin. Nesta que ele mesmo fundou. Em 1992, ele fundou
linhagem – através dos trabalhos de Dell Hy- uma nova companhia teatral, East Coast Ar-
mes, Richard Bauman, Charles Briggs e outros tists, no qual trabalhou como diretor artístico
pesquisadores – foram elaborados princípios e até 2009³. Algumas de suas primeiras propos-
procedimentos para a realização de etnografias tas surgem de experimentos de teatro de rua e
da fala, e estudos de performances narrativas. protestos contra a Guerra do Vietnã.
Em sua vertente “dramatúrgica”, é de par- De acordo com Turner (1985, p. xi), o seu
ticular interesse para o campo da antropologia primeiro encontro pessoal com Schechner
a parceria formada por Schechner e Turner². aconteceu poucas horas antes de uma palestra
Conforme uma história recorrente, nos anos de Clifford Geertz, em Nova York, em 1977.
de 1970, o diretor de teatro experimental Ri- No mesmo ano, Turner convidou Schechner a
chard Schechner faz a sua aprendizagem na participar de uma conferência sobre “Ritual,
antropologia com Victor Turner, ao mesmo Drama, e Espetáculo” (Schechner, 2002, p.
tempo em que Turner, em sua relação com 11). A seguir, eles juntaram forças para plane-
Schechner, torna-se aprendiz de teatro. Desse jar uma “Conferência Mundial sobre Ritual e
contato surge um novo campo de estudos, en- Performance”, que se desdobrou em três con-

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ferências realizadas durante os anos de 1981 e durante os anos de 1960 e 1970 (cf. Turner,
1982. 1982, p. 15). Um dos desdobramentos deste
Influências mútuas se evidenciam, inclu- aprendizado foi o livro From ritual to theatre,
sive antes de 1977. Desdobramentos das dis- com destaque ao primeiro capítulo, onde Tur-
cussões de Turner sobre rituais, dramas sociais, ner discute um processo de substituição, após
liminaridade e communitas se manifestam a revolução industrial, de gêneros liminares de
em Essays on performance theory (1977), com ação simbólica por formas liminoides.
destaque aos ensaios “From ritual to theater Turner (1986, p. 42) descreve esse processo
and back: the efficacy-entertainment braid” como um desmembramento, ou sparagmos, das
(publicado originalmente em 1974), e “Se- formas de ação simbólica”. A noção do liminoide
lective inattention” (publicado originalmente é retomada por Schechner, mas sem uma meta-
em 1976). Neste ensaio, Schechner elabora o narrativa da tragédia. Em Schechner a experiên-
seu conhecido modelo de um oito deitado, ou cia liminoide – que não deixa de ser descrita, às
símbolo do infinito (infinity-loop model), para vezes, com uma ponta de ironia – revela-se em
discutir as relações interativas entre dramas so- suas dimensões lúdicas e subversivas.
ciais e dramas estéticos: dramas sociais afetam Dirigindo peças e escrevendo livros, num
dramas estéticos, e dramas estéticos afetam campo que se configura entre o teatro e a an-
dramas sociais. tropologia, Richard Schechner – um “judeu
As influências de Schechner sobre Turner hindu budista ateu morando em New York
também são marcantes. O próprio infinity-loop City”, como ele mesmo se apresenta (Schech-
model, que Schechner elaborou a partir de suas ner, 2002, p. 1) – tornou-se uma das principais
leituras de Turner, volta a Turner (fazendo um referências para estudos de performance. Além
loop) revitalizando suas discussões. O modelo de ter sido, como visto, o fundador do The Per-
sai enriquecido. Particularmente, a noção de formance Group (TPG) e do East Coast Ar-
“comportamento restaurado” de Schechner foi tists, ele também fundou a revista TDR: The
fundamental para as formulações de Turner. Journal of Performance Studies, e suas versões
“Aprendi com ele (Schechner)”, diz Turner anteriores (The Tulane Drama Review, e TDR:
(1985, p. xi), “que toda performance é ‘com- The Drama Review). Em 1980, ele foi um dos
portamento restaurado’, que o fogo do signi- fundadores do departamento de Performance
ficado irrompe da fricção entre as madeiras Studies da Tisch School of the Arts, New York
duras e suaves do passado [...] e presente da ex- University.
periência social e individual”. Esta ideia está no O ensaio traduzido nesta coletânea certa-
cerne da antropologia da experiência elaborada mente ilumina alguns dos pontos de contato
por Turner. A antropologia da performance faz principais entre o pensamento antropológi-
parte de uma antropologia da experiência. De co e teatral. Porém, aqui proponho um breve
acordo com Turner (1982, p. 14), uma expe- exercício inverso: como esses pontos de conta-
riência se completa ou realiza através de uma to abrem perspectivas para discutir o próprio
performance, ou forma de expressão. ensaio de Schechner? Nada nos impede, diz
Durante os cinco anos em que se conhe- Schechner (2002, p. 24, 32, 110) de considerar
ceram (de 1977 até a morte de Turner, em qualquer ação humana, ou produto dessa ação,
1982), o antropólogo realizou com Schechner a partir do enquadramento, ou frame, da per-
um intenso aprendizado a respeito do teatro formance. A seguir, no modo subjuntivo, con-
experimental que floresceu nos Estados Unidos siderando o ensaio de Schechner como uma

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espécie de performance, algumas notas sobre Schechner – do teatro à antropologia? Até que
cada um dos pontos de contato. ponto eles se constituem como audiências? Ou
performers? Que espécie de teatro busca Sche-
chner? Um teatro em que o público seja sub-
Transformação do ser e da consciência vertido, tornando-se performer também. Daí o
interesse de Schechner por rituais. Um detalhe:
Os momentos mais eletrizantes de uma esse interesse também tem a ver com uma es-
performance, em qualquer tradição, podem pécie de envolvimento distraído, ou “inatenção
ser justamente aqueles em que o corpo lampe- seletiva”. Em tal estado as atenções das pesso-
ja por detrás (ou por baixo, acima, et cetera) as tornam-se errantes e receptivas a eventos e
da máscara. Trata-se, da experiência de quem imagens que poderiam, de outra forma, passar
se descobre como “não-eu” e “não não-eu” ao despercebidos.
mesmo tempo. Nesse registro, o próprio ensaio
de Schechner, enquanto experimento liminar
entre teatro e antropologia, se ilumina. Em Sequência total da performance
cena: um corpo de diretor de teatro, uma más-
cara de antropólogo. (Ou seria o inverso?). Schechner propõe uma sequência total
da performance, em sete momentos: a) trei-
namento, b) oficinas, c) ensaios, d) aqueci-
Intensidade da performance mentos, e) performance, f ) esfriamento, e g)
desdobramentos. Como situar o texto de Sche-
Coisas boas para fazer pensar. O que se- chner, num frame da performance? Seria ele
riam os pontos de contato senão um campo de um “desdobramento”, como o autor sugere?
energia? Com estímulos e inervações corporais Ou, um ensaio? Esta possibilidade me parece
é produzido um campo de investigações. Dife- ser especialmente interessante na medida em
rentes estéticas, modos variados de produzir in- que a tradução do inglês (rehearsal) para o por-
tensidade – até mesmo num texto escrito. Seis tuguês (ensaio) permite a junção de um gênero
pontos de contato. Cada ponto pode ser lido literário (essay) com outro teatral (rehearsal).
de forma independente, e de acordo com di- Nos ensaios, particularmente, experimenta-se
ferentes sequências. Tal estética pode propiciar ou brinca-se com as múltiplas possibilidades da
arranjos variados e criativos. Há seis pontos, performance (Schechner, 1985, p. 101, 103,
seis interrupções. O inacabamento do texto 110, 113).
nos convida a pensar em possíveis variantes, e
pontos alternativos.
Transmissão de conhecimento
performático
Interações entre performers e
audiências Considerando a importância das tradi-
ções orais para a transmissão do conhecimen-
Eis uma questão: a especificidade de au- to performático, como ler o próprio texto de
diências e performers, e as relações entre eles. Schechner? Será o caso de ouví-lo, como faria
A audiência é constitutiva do evento perfor- uma audiência? Considerando, ainda, o modo
mático. Quem são os diferentes leitores de como diferentes sentidos do corpo se mobili-

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zam na significação do mundo, será o caso de Schechner – é a sua abertura. Enfim, uma con-
se fazer uma leitura corporal do texto envol- clusão que se abre.
vendo pontos de vista, pontos de escuta, pon-
tos de cheiro, pontos de sabor, e – de volta ao
título – “pontos de contato”?! Ou seriam pon- Notas
tos de contágio? Ou, ainda, pontos de contágio e
semelhança? A discussão de Schechner sobre as 1. A “virada performativa”, que ocorre em um conjunto
escrituras em cavernas paleolíticas são interes- amplo e variado de disciplinas, envolve uma mudan-
ça paradigmática. Questionando o texto-centrismo e
santes nesse sentido. Em brincadeiras de crian-
a primazia das análises de estruturas sociais e simbó-
ça revela-se o “dom de tornar-se semelhante” licas em diversos campos, pesquisadores voltam suas
(cf. Benjamin, 1985). Voltamos ao primeiro atenções também para a ação humana e para o modo
ponto: a experiência liminar de quem se des- como os sentidos do corpo são mobilizados na signi-
cobre como “não-eu” e “não não-eu” ao mesmo ficação do mundo.
tempo. 2. A produção bibliográfica de Richard Schechner e
Victor Turner é expressiva. A seguir, os livros de
Schechner: Public domain (1968); Environmental
theater (1973); Theaters, spaces, and environments
Como performances são geradas e (1975, com Jerry Rojo e Brooks McNamara); Es-
avaliadas? says on performance theory (1976); The end of
humanism (1981); From the Ramlila to the avan-
Chama atenção o ponto de interrogação. tgarde (1983); Between theater and anthropology
(1985); The Engleburt stories (1987, com Samuel
Acumulam-se questões. A ideia de Schechner
McIntosh Schechner); The future of ritual (1993);
de articular a crítica da performance ao pro- Performance theory (edição revista de Esssays on
cesso de ensaio é particularmente interessan- performance theory, 1988; nova revisão em 2004);
te. Como fazer uma avaliação no registro do Performance studies – an introduction (2002, se-
ensaio, ou da subjuntividade? Como despertar gunda edição revista em 2006); Over, under, and
na performance possibilidades que ainda não around (2004). Schechner também organizou
várias coletâneas: Dionysus in 69 (1970); Ritual,
vieram a ser? E, como avaliar o próprio texto
play, and performance (1976, com Mady Schu-
de Schechner? A questão, quem sabe, pode nos man); By means of performance (1990, com Willa
conduzir a alguns de seus lugares preferidos, o Appel); e The Grotowski sourcebook (1997, com
espaço de um ensaio, ou chão de uma oficina. Lisa Wolford).
A obra de Turner inclui os seguintes livros: Schism
and continuity in an African society: a study of
Ndembu village life (1957); The forest of symbols:
Conclusão aspects of Ndembu ritual (1967); The drums of
affliction (1968); The ritual process: structure and
Que espécie de conclusão é essa? Abrem- anti-structure (1969); Dramas, fields and metaphors:
-se novas questões. Em alguns de seus escritos, symbolic action in human society (1974); Revelation
Victor Turner (cf. 1982, p. 13-14) discute a and divination in Ndembu ritual (1975); From ritual
noção de performance tendo em mente a sua to theatre: the human seriousness of play (1982); On
the edge of the bush (1985, obra póstuma); e The
derivação do francês antigo parfournir, “com-
anthropology of performance (1987, obra póstuma).
pletar” ou “realizar inteiramente”. A perfor- Victor Turner também aparece como o organizador
mance completa uma experiência. Porém, o de várias coletâneas: Image and pilgrimage in Chris-
que se entende por completar? Essencial à tian culture (1978, com Edith Turner) Celebration:
performance – e, aqui, recorremos a Turner e studies in festivity and ritual (1982); e The anthro-

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