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[align=right][dohtml]<hr>[/dohtml][/align][align=center][font=Century Gothic]

[color=MediumSeaGreen][b][SIZE=10]O PASSADO…[/SIZE][/b][/color][/align]
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[align=center][color=slategray]“A maior capacidade que nossa mente possui é, talvez, a


capacidade de lidar com a dor. O pensamento clássico nos ensina sobre as quatro portas da
mente, e cada um cruza de acordo com a sua necessidade.

Primeiro, existe a porta do sono. O sono nos oferece uma retirada do mundo e de todo o
sofrimento que há nele. Marca a passagem do tempo, dando-nos um distanciamento das
coisas que nos magoaram. Quando uma pessoa é ferida, é comum ficar inconsciente. Do
mesmo modo, quem ouve uma notícia dramática comumente tem uma vertigem ou desfalece.
É a maneira de a mente se proteger da dor, cruzando a primeira porta.

Segundo, existe a porta do esquecimento. Algumas feridas são profundas demais para
cicatrizar, ou profundas demais para cicatrizar depressa. Além disso, muitas lembranças são
simplesmente dolorosas e não há cura alguma a realizar. O provérbio “O tempo cura todas as
feridas” é falso. O tempo cura a maioria das feridas. As demais ficam escondidas atrás dessa
porta.

Terceiro, existe a porta da loucura. Há momentos em que a mente recebe um golpe tão
violento que se esconde atrás da insanidade. Ainda que isso não pareça benéfico, é. Há
ocasiões em que a realidade não é nada além do penar, e, para fugir desse penar, a mente
precisa deixá-la para trás.

Por último, existe a porta da morte. O último recurso. Nada pode ferir-nos depois de
morrermos, ou assim nos disseram.”

[/color][color=MediumSeaGreen][b]•[/b] O Nome do Vento [/color][color=slategray]– capítulo


18, Estradas para locais seguros.[/color][/align]

[dohtml]<hr>[/dohtml]

[align=center][color=slategray]Bosco, Primavera passada. O continente continuava a se


consolidar gradativamente, com a dissolução de laços que os uniam a Fiore ou Seven. Ainda
assim, se recuperava lentamente de inúmeros repúdios e manifestações populares contidas
com violência contra boatos e ameaças sobre possíveis invasões da Imperium.

A capital do continente, Arvalis, (outrora uma cidade-estado independente) aos poucos se


silenciava, na tentativa de esquecer os martírios do passado não tão longínquo e, talvez,
recomeçar. E assim, a vida parecia ser boa, confortável. Não para todos, e não para muitos, é
claro.

Às margens de Arvalis, pouco antes da sua confluência com o mar, encontrava-se um pequeno
conglomerado de construções antigas e mal planejadas, frutos da dominação passada e sua
arquitetura primitiva. Entre isso, em uma pequena casinha de estrutura rudimentar, precária e
desconfortável, vivia Kvöthe. O pequeno mal havia completado seu 13º ano de vivência, mas já
tinha muito a contar. Órfão desde que podia compreender, fora adotado (a contragosto de
ambos os lados) por um casal de aposentados, Pavel e Anna; os quais nos levam a uma –breve-
outra história.

No século passado, um vergonhoso acordo econômico de Bosco anexou parte do país à Seven,
mas os pais de Pavel decidiram continuar no país. Não acreditavam na barbárie, não deram
ouvidos a boatos. Nada parecia ser capaz de perturbar a civilização que reinava no país. No
ano seguinte tropas de Youkais entraram nas cidades. Bosco mergulhou no medo. Os cerca de
quarenta mil humanos, magos ou não, começavam a ser alvo de restrições humilhantes.
Decretos e mais decretos proibindo o acesso a correios, restaurantes, cinemas, parques, o uso
de táxis, telefones públicos, entre outros. O verão de seguinte trouxe mais restrições. Havia
rumores de guerra. Algumas famílias conseguiram despachar suas crianças em comboios que
partiam para Fiore. Os pais de Pavel hesitaram em se separar do único filho; quando se
decidiram, era tarde. No outono, teve início a coleta compulsória de todos os bens de
humanos: prataria, obras de arte, peles, joias... No ano seguinte, começaram as deportações
para Terezín, um campo de isolamento com feitio inóspito ao norte de Bosco. Os Youkais
usaram o termo “campo familiar” em uma grande campanha de propaganda para desmentir
perante o mundo os rumores de atrocidades. Filmaram cenas em cenários forjados,
espalharam a informação falsa de que o campo estaria sob proteção do Conselho. Os pais de
Pavel não acreditavam mais nos Youkais. Pressentindo a desgraça, resolveram salvar ao menos
o filho. Arrumaram documentos falsos para o menino, que foi acolhido por um casal de amigos
de seus pais. Já eles, foram para um vilarejo ao sul do país, onde ficariam até o fim da guerra.
Pavel nunca mais viu os pais. Tinha dez anos.

O tempo passou. Pavel procurou o rastro de alguns parentes, tios maternos, primos, mas todas
as pistas levavam a “campos familiares”. Estava sozinho no mundo. E o casal o adotou
oficialmente. Era um jovem soturno, introspectivo. A guerra continuava dentro dele; sempre
continuou. Queria ser escritor, tentava ordenar em palavras a confusão sombria que reinava
em sua cabeça, mas pouco conseguia. Tornou-se jornalista. O verdadeiro Pavel nunca pôde
aparecer. Ninguém pôde realmente conhecê-lo. Nem mesmo Anna. Artista plástica
tresloucada, sua arte sempre a absorveu mais do que o próprio casamento, até mesmo mais
do que o próprio filho adotivo, Kvöthe. Diagnosticada com Endometriose, Anna soube desde
cedo que era infértil e, tão logo, jamais poderia ter um filho seu. Acabou agindo por impulso,
na necessidade da perspectiva de uma família consolidada e feliz, que talvez viesse a trazer a
sua essência um pouco de paz e felicidade. Assim, adotou e se casou; mas nada disso pareceu
funcionar. Sentia seu talento estrangulado, percebia a falta de motivos em seus quadros, e
tampouco o estilo que desejava ter. Sentia-se sufocada pelo marido, e pela obrigação de criar
um filho que sequer havia vindo do seu ventre, ansiava pela liberdade tanto quanto eles, com
a diferença de que eles viviam conformados, enquanto ela sonhava com a mudança. Um dia,
conseguiu autorização para participar de uma amostra de arte em um país vizinho, mas pouco
conhecido. Viajou com meia dúzia de telas para não voltar mais. Sem despedidas, sem
explicações.

Kvöthe também havia acabado de completar dez anos.

A partir daí, a convivência entre Kvöthe e Pavel apenas piorou, em um fluxo gradativo. O pai
era um jornalista burocrata, que aprendeu a escrever pequenos textos anódinos, relatos de
acontecimentos favoráveis, artigos monótonos, esse tipo de coisas. Tentou em vão escrever
contos, novelas, romances épicos. O resultado era medíocre, ele rasgava tudo. Uma ou outra
coisa que escapou à sua autocensura não passou pela censura oficial. Algo que jamais
publicariam.

O peso das suas falhas na carreira e no casamento apenas o tornou um homem mais odioso,
que enxergava como última alternativa aliviar suas angústias na única coisa viva que realmente
lhe restou. E assim voltamos para a verdadeira história.

Para Kvöthe, a vida sempre se mostrou monocromática. A ausência de cores, embora apenas
uma metáfora, demonstrava o ritmo monótono dos dias que pareciam passar cada vez mais
lentos. Seu espírito vívido, e também sua afinidade mágica crescente, impediam que o mesmo
continuasse a desperdiçar sua vida assim. Unido ao sentimento de desapego que sempre
nutriu pelos pais, e que continuava a crescer, Kvöthe optou pela escolha mais óbvia, e talvez a
mais certa a se fazer: Fugir.

Mas não era tão fácil assim. Por maiores que fossem seus desentendimentos com Pavel,
Kvöthe não sentiria prazer em vê-lo sofrer ainda mais, e ironicamente pelo mesmo motivo que
o tornara um homem tão amargo e soturno, a fuga de Anna. Não queria deixá-lo sozinho, na
certeza de um envelhecer solitário e uma morte melancólica. E esse talvez tenha sido o
principal motivo que o tenha feito ficar, além da insegurança de encarar a imensidão do
horizonte. Sofreu durante anos os martírios de escolhas jamais feitas por ele. Mas o
sofrimento podia ser encarado como uma espécie de evolução física e psicológica, afinal.
No entanto, a sensibilidade mágica de Kvöthe sempre foi marcada por uma linha tênue entre o
controle e a brutalidade. O garoto sabia manifestá-la de forma segura, mas apenas
momentaneamente. Talvez por puro aspecto de imaturidade, ou por simples falta de
paciência, as coisas sempre fugiam do controle. Os treinamentos (escondidos) diários
tornavam Kvöthe cada vez mais habilidoso, tanto de forma física quanto mágica, porém
mortalmente desastroso. Sua brutalidade, somada a impulsividade de um moleque de pouca
idade, não direcionada o tornava nada mais do que uma criança com poderes e capacidades
que ainda não conseguia dominar completamente. E isso, é claro, gerava danos. Tanto para
com o seu próprio utilizador, quanto para os que ficassem perto do mesmo. Com o tempo,
Kvöthe passou a procurar refúgios cada vez mais isolados, para que assim não prejudicasse
ninguém próximo aos seus “treinos inofensivos”. Mas os rastros de destruições em casebres
abandonados, pequenas florestas nos arredores, cavernas, terrenos fechados, e entre outros
apenas consolidavam boatos e repúdios populares, insistentes em acreditar na presença de
criaturas mágicas, demônios ou até mesmo invasões esporádicas da Imperium. O clima
tornava-se gradativamente mais intenso, enquanto em proporções inversas as opções de
Kvöthe diminuíam. Por isso, por mais que odiasse admitir, sabia que, cedo ou tarde, precisaria
partir.

Optou então, sem saber ao certo o porquê, por não ser silencioso em sua partida. Pouco antes
do alvorecer preparou o maior, e único, café da manhã que jamais havia visto; e se arrependeu
por não ter ficado para comê-lo. Em frente à mesa, uma única carta sincera, escrita a mão:

[/color][color=mediumseagreen][b][i]”[/b][/color][color=slategray] Pai, espero que não se


incomode por chamá-lo assim. Espero que não se incomode por ter, incontáveis vezes, lido
textos seus no meio da noite, ao lado de uma vela e do meu bom amigo Silêncio, enquanto o
senhor dormia sozinho. Fique orgulhoso, pois lhe devo o conhecimento precoce de como
ordenar palavras e, com elas, criar algo substancial; embora ainda imaturo. Mais ainda,
orgulhe-se em saber que considero tudo o que li... Perfeitas obras-primas. E nada além disso.
Embora eu saiba que a opinião de um garoto de 13 anos não diz muito; mas que signifique algo
para você.
Sei que esperava uma carta breve, vazia e melancólica. Uma lista de reclamações e talvez mais
uma de xingamentos, mas não. Quando alguém faz algo prejudicial e errado, repetir ao
mesmo e repreendê-lo agressivamente não causará mudanças. Ao menos não positivas. E nós
sabemos bem disso, não é? Não guardo mágoas, apenas lembranças.

Acredito que cada ser humano vem ao mundo como um ser bom. Cada um de nós deseja
segurança, amor, paz, felicidade. Mas às vezes, nessa busca, cometemos erros. Eu enxergo
esses erros como um grito de socorro. Então, saiba que o principal intuito desta carta não é me
despedir de você. Sei que nos veremos novamente, nessa ou em outra vida. Essa carta foi feita
para reerguê-lo, para reconectá-lo com a sua verdadeira natureza, para lembrá-lo de quem
você realmente é, até que se lembre totalmente da verdade da qual tinha se desconectado
temporariamente: Você é um homem bom; e extremamente talentoso. Jamais deixe que lhe
digam o contrário, ninguém.
Sei que você encontrará seu caminho, assim como eu, pois nunca é tarde demais. A partir de
agora traçaremos trilhas diferentes, que talvez um dia cruzem entre si.

Eu te respeito, eu te valorizo. Você é importante pra mim. Então, eu existo pra você, e você pra
mim. Eu te amo. E não exijo nada em troca.

Até breve,[/color]
[color=mediumseagreen]Assinado:[/color][color=slategray] Eu, Kvöthe.[/color]

[color=mediumseagreen]Observação:[/color][color=slategray] Peça desculpas por mim ao


restante da cidade, pelas inúmeras destruições e boatos de revolta que tenho causado ao
longo desses últimos anos. Imagino ser difícil de acreditar, mas causei tudo sozinho, treinando.
Precisava de locais isolados, mas por algum motivo, o qual realmente não sei explicar, as coisas
(eu) sempre fugiam do controle. Estou procurando melhorar isso. Juro. [/color]
[color=mediumseagreen][b]“[/b][/i][/color]

[color=slategray]E no final das contas, acabamos nos equivocando outrora. Agora sim
começamos...[/color]

[color=mediumseagreen][b][font=Century Gothic]A nossa verdadeira história (...)[/font][/b]


[/color][/align]

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