Notas Espinosanas (a partir de Marilena Chauí, Política
em Espinosa. São Paulo, Cia. Das Letras, 2003):
Pela definição 2 do livro II da Ética, “sabemos que não há essências
universais, que toda essência é singular ou em ato, que toda essência é inseparável de sua existência singular e que, embora ela seja condição necessária dessa existência e de sua inteligibilidade, não é condição suficiente dela, uma vez que sua singularidade depende também de sua própria existência e esta depende da ordem e conexão das demais coisas singulares que a engendram, conservam ou destroem.” A definição 7 “apresenta o singular como indivíduo, isto é, como essência singular cuja existência é determinada e concreta. Essa definição reveste-se ainda de outra importância porque nela a singularidade surge como composição de indivíduos que concorrem para a mesma ação, de sorte que a determinação da existência é dupla: por um lado, depende da ordem e conexão das causas singulares que operam sobre uma essência singular e, de outro, depende da comunidade de ação dos componentes que, ao agir juntos e simultaneamente, passam a constituí-la. Em outras palavras, agir em comum ou agir como causa única para a realização de uma mesma ação torna os componentes partes constituintes do indivíduo, de maneira que individualidade significa unidade causal. Há indivíduos singulares quando os constituintes operam ou agem como causa única de ações. Aquilo que seria meramente extrínseco (uma reunião de componentes) torna-se intrínseco (uma união de constituintes) quando percebido do ponto de vista da ação conjunta para a produção de um único efeito. Anuncia-se, portanto, a diferença entre mera composição e constituição pela presença do conceito de causa, isto é da potentia agendi.” (P.132)
É dessa perspectiva que Espinosa entenderá o indivíduo: como unio
corporum e conexio idearum, união de corpos e conexão de idéias. Isso vale tanto para o indivíduo corporal, quanto para esse indivíduo complexo novo, constituído pela ação unificada de vários indivíduos corporais, que é a multitudo.
O indivíduo conserva-se, desde que cada constituinte
conserve o movimento e o comunique aos demais... “O indivíduo se conservará mesmo que lhe sejam retirados componentes, desde que substituídos por outros na mesma proporção de movimento e de repouso (o que permite compreender a fisiologia dos seres vivos) e ainda conservará sua forma quando alguns componentes desviam a direção do movimento, mas continuam a comunicá-lo aos outros segundo a mesma proporção (o que permite compreender a conservação do corpo humano sob as mudanças de afecções que são as paixões). Enfim, conserva-se ainda que se mova nesta ou naquela direção, desde que cada constituinte conserve o movimento e o comunique aos demais. A conservação do indivíduo pela conservação da proporção de movimento e repouso dos constituintes é a primeira aproximação da definição de conatus, isto é, o indivíduo corporal se define pelo esforço de conservação em seu estado, que é o esforço de seus componentes – os corpúsculos simplíssimos duros, moles e fluidos que o compõem – sob a determinação exclusiva do princípio de inércia, isto é, da continuação ininterrupta do movimento. Esse esforço de autopreservação em seu estado é descrito por Espinosa como sistema de afecções recíprocas entre os constituintes de um corpo e os corpos ambientes, pois o corpo humano é afetado ou movido por eles porque necessita de muitos outros que o regeneram e conservam na existência, podendo, por seu turno, mover ou afetar os demais corpos de inúmeras maneiras. Assim, a individualidade corpórea ou unio corporum define o corpo como singularidade complexa e como singularidade em relação contínua com outras. A unidade decorre da comunidade de operação dos constituintes, seja como operação intracorporal – a complexidade das partes de um só e mesmo corpo agindo umas sobre as outras –, seja como operação intercorporal – os constituintes do corpo operando sobre os corpos exteriores e deles recebendo operações. A conservação da forma do indivíduo corporal decorre dessas duas modalidades de operações quando nelas é conservada a proporção de movimento e de repouso do corpo.” (pp.133-4)
“A física das proporções de movimento e de repouso e da
individualidade como operação/ação comum dos constituintes determina o indivíduo corporal como um sistema de forças centrífugas e centrípetas cuja proporção de movimento e repouso é conservada (equilíbrio das forças), aumentada (se a força centrípeta for a maior) ou diminuída (se a força centrífuga for a maior). Desse sistema de forças, que acrescenta à cinemática das proporções de movimento e repouso a dinâmica da intensidade de forças, encarrega-se a Parte III da Ética ao deduzir a gênese do indivíduo como conatus. Entramos, agora, na região concreta na qual os indivíduos não se esforçam apenas para manter seu estado, mas para manter seu ser.” (p.135)
Ainda na Parte II, expõe a teoria das noções comuns da razão: a
teoria das relações necessárias entre os singularia... “A noção comum – aquilo que existe igualmente na parte e no todo e que é concebido adequadamente (segundo sua necessidade interna) pela mente – não constitui nenhuma essência singular e, portanto, não é um indivíduo. A noção comum, objeto próprio da razão ou do conhecimento do segundo gênero, é a maneira como a mente humana é capaz de compreender o sistema de relações necessárias de concordância interna entre as partes que constituem um todo. É o que faz com que haja relações intrínsecas de concordância ou conveniência entre aqueles indivíduos que, por possuírem determinações comuns, fazem parte do mesmo todo. Assim, a teoria da individualidade recebe nova determinação, graças a uma teoria das relações necessárias entre os singularia, relações que podem ser de composição-constituição, conforme à proporção de movimento e repouso e conforme à causalidade comum, ou relações de afecção entre os indivíduos, desde que tenham algo em comum, pois o que nada tem em comum com outro, diz a Parte IV, não pode auxiliá-lo nem prejudicá-lo, isto é, não pode com ele se relacionar. É desse ponto que parte a dinâmica do conatus, vindo determinar o sistema complexo das proporções de movimento e repouso (e suas idéias na mente) com a concreticidade da dinâmica das forças e sobretudo com a intensidade dessas forças. A partir de agora, o indivíduo singular passa a ser designado como causa: causa adequada (causa adaequata), se os efeitos que produzir puderem ser explicados apenas por sua própria natureza; causa inadequada (causa inadaequata), se os efeitos que produzir não puderem ser explicados apenas por sua natureza, mas pela interferência de causas externas ou de potências alheias à sua.” (p.136)
Um indivíduo é um sistema de integração e diferenciação
interna de seus constituintes... Os constituintes do corpo e da mente “podem ser desiguais quanto à força de existir e de agir, isto é, um corpo poderá ter partes mais fortes e mais fracas, seja quando comparadas entre si, seja quando comparada às forças das causa externas e, da mesma maneira, a mente poderá ter idéias mais fortes ou mais fracas, na media em que envolvem fraquezas e forças corporais. Isso significa que corpo e mente se relacionam de maneiras diversas com as causas externas, conforme as afecções corporais e suas idéias dependam de constituintes mais fracos ou mais fortes. Em outras palavras, um indivíduo é um sistema de integração e diferenciação interna de seus constituintes não apenas segundo a estrutura de cada uma das partes constituintes, mas também segundo a força (ou fraqueza) de cada uma delas, ou segundo a variação de intensidades dessas forças. Graças à idéia do indivíduo como integração e diferenciação interna dos constituintes (ou das partes constituintes dos indivíduos, que podem ser fortes ou fracas) e do princípio de aumento e diminuição da potência ou intensidade da força pelas relações com as potências externas – os constituintes fracos submetendo-se às pressões externas; os constituintes fortes não só resistindo a elas, mas sobretudo vencendo-as –, Espinosa pode conceber o conflito como interno ao indivíduo, tanto quanto externo a ele. Em outras palavras, o conflito não se dá entre a essência singular e ela mesma, pois isso, como logo veremos, contraria a natureza do conatus, mas entre suas partes fortes e fracas, exatamente como ocorre no conflito com as potências externas. Em suma, trata-se um conflito de forças contrárias e de intensidade variável que, como veremos, dependem dos objetos desejados e da intensidade desse desejo” (p.137)
O conatus é a essência atual da coisa.
“Como essência atual, é intrinsecamente indestrutível – coisa alguma na Natureza, se autodestrói, a destruição sendo sempre efeito da ação de uma causa externa, o que significa que a passividade (quando somos apenas causa parcial de efeitos internos e externos causados por forças externas) indica o campo de destruição de uma essência que em si mesma é indestrutível.” (p.138)
A liberdade deduzida do conatus.
Espinosa define a liberdade “primordialmente como causa eficiente interna adequada e, portanto, como força interna de autodeterminação ou como autonomia.” (p.140)
Ser parte da Natureza = ser uma essência singular em ato
(potência de agir e de existir) + ter algo em comum com outros seres que são parte do mesmo todo “Ser parte da Natureza significa, de um lado, ser uma essência atual ou singular que é uma potência de existir e de agir; e, de outro, possuir qualidades, propriedades ou aspectos comuns com outras que participam do mesmo todo. Do ponto de vista político, a teoria do conatus como individualidade complexa nos permite compreender a gênese da multitudo, ou melhor, da potência da massa (multitudinis potentia) como sujeito político e soberano, e a teoria das noções comuns nos permite compreender por que a multitudo se forma. Se a idéia do indivíduo como integração interna operada pela potência como causa comum ou única para obter um efeito único leva à idéia do indivíduo complexo como multitudo, dotada de seu próprio conatus, por outro lado, a idéia do indivíduo como diferenciação interna dos constituintes pela diferente intensidade da força dos componentes permite compreender que a potência da multitudo é constituída por diferentes intensidades internas de forças, bem como pela concordância e pelo conflito entre elas.” (p.140)
A vida afetiva é a existência com os outros.
“A vida afetiva, seja ela passional ou racional, é a existência com os outros: a vida corporal é intracorpórea (pois nossos corpos são constituídos por corpos em relação) e intercorpórea (pois nosso corpo é um sistema de afecções e estas são as maneiras pelas quais nosso corpo afeta e é afetado por todos os que o rodeiam); a vida psíquica transcorre como consciência quer imaginativa quer racional das afecções corporais e, portanto, como relação com os outros que nos afetam e que afetamos. Assim como a intercorporeidade é originária, também o é a intersubjetividade, entendida como consciência de si formada junto com a consciência que cada um tem dos outros.” (p142)