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Como a mente se engana?

Postado por Marilda Limberger - outubro 20th, 2010

Eis uma pergunta que em algum momento qualquer praticante budista se faz: afinal de
contas, se temos uma natureza livre, desobstruída, como é que nos enganamos? Como
surge a ignorância?

Nem precisa ser praticante budista para pensar numa questão dessas: quem nunca teve
alguma atitude lamentável e depois de um tempo não pensou “como é que eu fui capaz
de fazer aquilo?” Por que só percebemos a bobagem um tempo depois e não antes de
cometê-la?

Na palestra de lançamento do livro A Roda da Vida como caminho para a lucidez, em


São Paulo, Lama Padma Samten esclarece com sua maestria e bom humor que, na
verdade, a mente nunca se engana! Ela só opera dentro de uma determinada paisagem,
com referenciais próprios. Essa paisagem seria como um ambiente mental, com
referenciais e conceitos específicos. A mente sempre vai agir segundo esse ambiente em
que está imersa, sempre respeitando os pressupostos da paisagem. Logo, a mente nunca
erra!

A ignorância e o engano surgem quando reduzimos o mundo todo à paisagem em


que estamos e passamos a agir segundo tal paisagem, não entendendo que ela é uma
coisa bem particular e não corresponde a uma realidade absoluta.

Nosso mundo não é senão nossa experiência do mundo

Temos a sensação que a paisagem em que estamos é, de fato, o mundo todo. É daí que
brota o engano: dessa certeza, dessa sensação de vermos tudo. Nem pensamos sobre o
fato de que, quando vemos uma coisa, não vemos outra, quando estamos numa
paisagem, não estamos em outra, logo, há uma limitação. É como a figura das pernas ali
em cima: quando vemos as pernas masculinas, não vemos as femininas e vice-e-versa.
O mesmo acontece no exemplo do cubo que o Lama Samten costuma usar.

É por isso que fazemos as bobagens: no momento da ação não vemos outras alternativas
e por isso temos a certeza de que aquilo que estamos fazendo é o que tem que ser feito, 
seja gritar com alguém, ou o que for. Isso não vale só para as “bobagens” da vida.
Qualquer coisa que vemos e fazemos depende da paisagem em que estamos. É um
processo muito sutil, basta olharmos para o nosso mundo interno que vamos começar a
paulatinamente perceber que as paisagens determinam nossa visão de mundo.

Nessa mesma palestra, Lama Samten lembra que a humanidade passou séculos
acreditando que o Sol girava ao redor da Terra.  O homem passou um longo tempo sem
conseguir ultrapassar os limites dessa paisagem, tomando-a como fixa. Até que alguns
homens corajosos furaram a bolha dessa paisagem e provaram para nossos olhos físicos
que a visão de mundo tinha de ser expandida! Mas nós sabemos o quanto foi custoso
para homens como Copérnico, Galileu e Giordano Bruno introduzir novas visões de
mundo. As pessoas estavam fixadas à visão de mundo anterior a eles, assim como nós
estamos fixados a muitas de nossas paisagens.

Mas afinal, como criamos as diferentes visões de mundo e como ficamos presos a elas?
Lama Samten explica que nossa natureza livre e desobstruída cria as diferentes
paisagens e até mesmo a própria fixação a elas. Essa compreensão é de crucial
importância, pois percebemos que as paisagens em que as pessoas se encontram não são
fixas, são construídas, portanto, podem ser substituídas por paisagens mais elevadas!

Para mim, a parca compreensão do conceito de paisagem foi muito libertadora!


Perceber que os seres agem a partir das paisagens em que estão imersos me fez
finalmente entender porque não há como julgarmos nada de certo e de errado, pois esses
conceitos só fazem sentido quando analisamos uma ação com referenciais diferentes
daqueles da paisagem em que a ação foi cometida. Por exemplo: eu direi que a atitude
do meu namorado de gritar comigo está errada, pois EU não estou na paisagem onde o
grito possa surgir, assim eu estou analisando a atitude dele a partir da paisagem em que
EU estou e não a partir da que ELE está, logo, direi que ele está errado e que ele é um
ser horrível por gritar comigo. Mal percebo eu que, basta ele pisar na bola que eu entro
facilmente na paisagem que ele estava e passo a gritar com ele mais alto ainda.

Portanto, se estivermos numa paisagem muito negativa, do reino dos infernos, por
exemplo, é completamente possível que venhamos a agredir ou até a matar alguém.
Dentro da paisagem desse reino, matar pode parecer o correto a se fazer. Porém,
sabemos que essas ações nos trarão muitos problemas. Além disso, como nossas
paisagens flutuam o tempo todo, logo saímos da paisagem negativa,  percebemos o
equívoco e vamos nos sentir muito mal. Por isso, precisamos olhar com cuidado para
o nosso mundo interno e perceber com que paisagens estamos andando por aí e
começar a transformá-las em paisagens mais positivas, para que enfim nossas ações
também o sejam. Caso contrário, estaremos fazendo um monte de bobagens e nem
vamos desconfiar disso, afinal, dentro das paisagens específicas as coisas fazem sentido.

Visão, meditação, ação

Lama Padma Samten nos lembra a todo o momento da nossa natureza livre, que nos dá
a extraordinária possibilidade de construir as melhores paisagens, as mandalas positivas,
que no Budismo chamamos de Terras Puras, onde os seres estão empenhados em
construir ambientes mais lúcidos para benefício de todos.  Só iremos perceber que
temos essa extraordinária natureza praticando a percepção dela.

Ainda que entendamos bem o funcionamento das paisagens, não estamos livres das
paisagens negativas se instalarem sem percebermos. Não estamos livres delas, porque
muitas vezes esse entendimento é só no nível de visão; é teórico, mas importante. 
Mesmo entendendo bem das paisagens, eu mesma recentemente gritei
enlouquecidamente com um amigo, virei um monstro na frente dele por questões bem
pequenas.

Reconhecendo que o buraco é bem mais em baixo, precisamos investir na etapa da


meditação, na qual tornaremos vivo o entendimento gerado na etapa de visão e assim
reconheceremos a inutilidade do surto antes que ele tome conta de nós. Para então
podermos efetivar a etapa de ação no mundo e realmente poder trazer benefícios
verdadeiros aos seres!

Dedico esse texto a todos os seres sencientes, mas principalmente ao querido amigo
com quem gritei recentemente. Minhas sinceras desculpas!

Fonte:  http://bodisatva.com.br/como-que-a-mente-se-engana/

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