Você está na página 1de 13

Filosofia na História

da Atualidade da Teoria Crítica

Gustavo Chataignier 1
(PUC‑Rio de Janeiro)

“Aquele que não quer falar sobre o capitalismo


deve também se calar sobre o fascismo”
Max Horkheimer, “Para compreender o fascismo”

INTRODUÇÃO
O que resta do pensamento crítico? O descrédito vivido por formas
democráticas de governo e o sistema de crenças irradiado e perpetrado pela
onda de informações não verificadas nas redes sociais parecem ter demolido
toda e qualquer aspiração iluminista pela razão. A exposição e explicitação
de motivações e seus processos sociais não impediram que tenhamos
nos tornado aquilo mesmo que nos tornamos – fechados, solipsistas e
orgulhosos de tais feitos (ou efeitos, melhor dizendo). Malgrado o ar do
tempo não instar a saídas mágicas, cabe‑nos um gesto mínimo de justeza
intelectual, a saber, postular que à teoria não se autoriza o esgotamento
da realidade. Feita assim, a pergunta assume ares niilistas de banimento
do pensamento tanto das esferas públicas quanto da legitimação por pares
no espaço acadêmico. Talvez seja mais pertinente se indagar sobre qual o
papel do pensamento crítico nos nossos dias – posto que, mesmo restrito,
quer seja em ambiência acadêmica, quer seja nas mobilizações sociais
e suas condensações, a identificação do pensamento como denúncia e
concomitante busca de normatividade outra se faz valer. E quanto ao, por
  gustavo.chat.gad@gmail.com
1

Philosophica, 57, Lisboa, 2021, pp. 39‑51.


40 Gustavo Chataignier

assim dizer, «gesto máximo» da teoria? Gesto este que não se coaduna,
claro está, com a totalidade oposta – a compreensão total do mundo
fenomênico, disponível em representações claras e distintas, graças a uma
aposta na inelutável marcha do progresso.
Nosso objetivo mais imediato consiste em elencar características do
pensamento crítico, tendo como primeiro referencial a chamada “Escola de
Frankfurt” e seu texto fundador – “Teoria tradicional e teoria crítica”, de
Horkheimer2. A questão é tão mais instigante na medida em que parece ter
havido uma auto implosão da teoria crítica. Reformas, nuances e conjugações
com novos referenciais teóricos a redimensionaram, ou assim o intentam:
ação comunicativa de pretensão universalista ou «terapêutica» social por
via do reconhecimento intersubjetivo (respectivamente as filosofias de
Jürgen Habermas e Axel Honneth). Ou seja, a ideia de dotar o marxismo
de concretude por meio da formação de um saber transdisciplinar, apoiado
nas racionalidades das ciências sociais e da produção artístico‑simbólica
do presente, teria naufragado nas águas calmas das filosofias da história
ainda ligadas à ideia de progresso. Não sem razão, mestre e discípulo,
Habermas e Honneth, reservam um lugar à parte a Walter Benjamin3
e sua crítica ao progresso. Todavia, a desqualificação em bloco das
intuições e obras dos principais nomes frankfurtianos nos parece apontar
menos para uma correção do que para uma ruptura, fato que justifica
suas novas escolhas teóricas – enquanto base argumentativa se percebe
o recuo do Hegel da Fenomenologia do espírito em direção ao Hegel dos
escritos do sistema ético de Iena, um pouco mais novo4. Daí resulta que a
imaginação política e a ocorrência de acasos devam ser controlados por
um pressuposto antropológico calcado na ideia de presença e integração.

  Max Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria crítica”, in Os Pensadores, São Paulo:


2

Abril, 1975, pp. 125‑162.


  Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade, São Paulo: Martins Fontes,
3

2000, pp. 16‑24; Axel Honneth, «Teoria crítica», in Teoria social hoje, org. Giddens e
Turner, São Paulo: UNESP, 1996, pp. 5005, 525, 529‑33. Para Benjamin, cf. “Sobre o
conceito de história”, in Obras escolhidas 1, São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 222‑34.
  Neste sentido, consulta‑se com proveito o veio aberto por Habermas em “Trabalho e
4

interação”, in Técnica e ciência como ‘ideologia’, trad. Arthur Morão, Lisboa: Edições
70, 2009, pp. 11‑43. Antes da virada linguística, este texto de 1968 aponta para uma
intersubjetividade primeira, posta a prova pela conflitualidade social. Sobre a perspectiva
pragmatista, Pippin apreende a obra de Hegel em uma perspectiva para além de um
simples interesse pela história da filosofia. Trata‑se de partir de Kant e buscar as soluções
hegelianas para a intuição pura e a autonomia. O viés inferencialista prevale quando as
razões para se agir devem ser reconhecidas em um quadro institucional (Robert Pippin,
Hegel’s Idealism, Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 148).
Filosofia na História: Da Atualidade da Teoria Crítica 41

O reconhecimento se reduz a uma adequação ao existente; o conflito


surge como “distorção”5. Ora, reconhecer o outro implica levar em conta
igualmente sua indeterminação: “Linguagem e trabalho são exteriorizações
nas quais o indivíduo não se conserva mais e não se possui mais a si
mesmo; senão que nessas exteriorizações faz o interior sair totalmente de
si, e o abandona a Outro”6, a dimensão do desejo se referindo à repetição,
reflexiva e imaterial, da reação das consciências em nexo relacional (até o
ponto de se desejar o desejo do outro, e não apenas uma coisa). Se o amor
é um acontecimento, uma criação subjetiva, ele vem depois da experiência
da separação – muito concretamente, de entrada no mundo.
O contexto do trabalho de Horkheimer em 1937 é o de crítica ao
positivismo e se insere em uma problemática anterior e mais ampla, qual
seja, a da própria definição de crítica7. Assim sendo, há que se atentar à
definição de crítica e seus principais desdobramentos, notadamente na
esfera pós‑kantiana, com Hegel e Marx. Em seguida, será questão de um
contraponto oferecido por Axel Honneth, segundo o qual a teoria crítica
deveria optar por uma renovação de suas bases, de modo que mantenha sua
potência elucidativa. Como o anunciamos mais acima, o núcleo de nossa
argumentação reside na refutação de tal perspectiva, uma vez que nos
interessaremos em uma sistematização da contingência a partir de Hegel.

  Cf. Stathis Kouvélakis, La critique défaite, Paris: Éditions Amsterdan, 2019, pp. 450,
5

491‑501.
  G.W.F. Hegel, Fenomenologia do espírito, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 198.
6

  No mesmo ano de 1937, Edmund Husserl publica A crise da humanidade europeia e


7

a filosofia (Porto Alegre: EDUFRGS, 2002), fruto de conferência dada em Viena, em


1935. Todavia, a proximidade do diagnóstico de uma crise, perceptível na separação de
perspectivas subjetivista e objetivista, não é suficiente para tornar equivalentes as duas
propostas. Não teremos, no curto espaço de um artigo, a oportunidade de desenvolver tão
rico debate. A indagação guia seria como o desenvolvimento das ciências pôde colocar
em crise a humanidade europeia? A fenomenologia teria a prerrogativa de nos reconduzir
ao mundo da vida. Horkheimer passa batido pela problemática fenomenológica,
limitando‑se a elencar os nomes próprios de Descartes e Husserl enquanto momentos do
pensamento sistemático e avesso à contradição, vinda da reflexividade do estar no mundo
(Max Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria crítica”, In Os Pensadores, p. 125‑6). O
outro lado da moeda, já que, ao que tudo indica, um não teve a oportunidade de ler o
outro quando das respectivas publicações, consistiria em apontar para o empirismo da
empreitada frankfurtiana, conferindo‑lhe posição continuísta em relação ao positivismo
“factual” característico das chamadas ciências humanas. Em outras palavras, o juízo
post factum seria desprovido da dignidade filosófica e do caráter eterno da ideia. Ora, a
ideia de mudança seria portanto senão não pensável, não pensante. Para Adorno, haverá
sempre uma mediação do espírito (Theodor Adorno, Trois études sur Hegel. Paris: Payot,
1979, p. 134 e 137). Dito de outra maneira, não se volta a uma origem; esta pode, todavia,
retornar, atualizando‑se.
42 Gustavo Chataignier

Em guisa de conclusão, retomaremos elementos do debate anterior, de


modo a apontar para a necessária historicidade de todo sistema filosófico. Por
sistema compreendemos lógica discursiva, e não alguma sorte de combalida
metafísica. Nem insuficiência e tampouco teleologia, a condição histórica
do pensamento é a instância que pode nos mostrar sua validade, sempre
condicional – ou uma “condição de possibilidade movente” engendrando
um horizonte sempre trêmulo.

1. TEORIA E HISTÓRIA
Em “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, Max Horkheimer estabelece
os fundamentos de uma opção independente de marxismo, sobretudo no que
diz respeito a um alinhamento automático com os Partidos Comunistas8.
Horkheimer indaga‑se o que é teoria. No quadro científico, “(...) equivale
a uma sinopse de proposições de um campo especializado, ligadas de tal
modo entre si que se poderiam deduzir de algumas dessas teorias todas
as demais”. Concordam entre si proposições deduzidas e fatos ocorridos.
Uma contradição qualquer entre experiência e teoria exigiria a revisão de
uma das duas esferas. Ou bem a percepção empírica ou bem os princípios
teóricos são falhos. O método apodera‑se do real, no sentido de exterioridade
objetiva, tornado abstrato. A teoria vê‑se assim reduzida a relações lógicas
independentes do sujeito que vive e conhece – complementarmente, o
sujeito tampouco se vê enquanto resultado imanente de feixe de forças. O
experimento que foge à previsibilidade está fora do sistema, o qual isola
o objeto de seu entorno social, reificando‑o. A exigência sistemática, de
Descartes a Husserl, é o princípio de não contradição. Ou seja, imanente
ao método surge a relação necessária entre causa e efeito.
Horkheimer caracteriza o pensamento especializado. Os progressos
técnicos da sociedade burguesa e as teorias apoiadas nas ciências naturais
são o próprio movimento da ciência e podem ser aplicados a fatos.
A base material da sociedade está, portanto, em constante revolução.
Nessa dinâmica positivista, o conceito de teoria se torna independente do
progresso técnico. A ciência se torna a aplicação direta de um método;
passa a ter uma fundamentação a‑histórica, e portanto ideológica – no
sentido de encobrimento de relações. O cientista só leva em consideração
a imanência de sua observação, sem dar‑se conta de que “(...) novas teses
se impõem e se enquadram nas conexões históricas concretas”. A crença
no valor social de utilidade e previsão faz da ciência um assunto privado
do cientista; cria‑se um mecanismo em que a oposição entre seu saber
  Leandro Konder, A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 78.
8
Filosofia na História: Da Atualidade da Teoria Crítica 43

“supra social” e sua vida social não atrapalha sua atividade prática9; ganha
o “sentimento humanitário” da “boa sociedade”10. Na transposição do
modelo das ciências duras para as ciências sociais, a observação deve ser
acompanhada pela avaliação11. Caso contrário, o sujeito não se vê parte da
objetividade por ele avaliada e incorre no risco de apenas confirmar a si
mesmo em suas investigações.
Para Horkheimer, a oposição entre indivíduo e sociedade imanente
à economia burguesa faz parte de uma “totalidade tradicional”. Mostra
uma concepção de mundo que é “(...) uma sinopse de facticidades;
esse mundo existe e deve ser aceito”. No entanto, há uma diferença
seminal entre indivíduo e mundo: “O mesmo mundo que, para o
indivíduo, é algo em si existente e que tem que captar e tomar em
consideração é, por outro lado, na figura que existe e se mantém,
produto da práxis social geral”. A percepção é duplamente formada:
objeto e órgão são históricos. Porém o que se vê é uma inversão dos
papéis da passividade e da atividade no dualismo entre sensibilidade
e entendimento. O homem se experimenta passivo, mas a sociedade,
formada por indivíduos, age como um “sujeito ativo”.
Há um “comportamento humano” que toma a sociedade por objeto,
vê as contradições ligadas aos processos de formação social. Trata‑se
do comportamento da “crítica dialética da Economia Política”. Mesmo
oriundo da estrutura social, tal comportamento não muda esta estrutura
por sua intenção ou sua importância objetiva, posto que sua prática não
é mecânica. Reconhecem os críticos a economia e o todo cultural nela
baseado como fruto do trabalho, de uma organização que a sociedade se
impôs. Em contrapartida, ao compararem a sociedade a processos naturais
extra‑humanos e ao perceber as formas culturais baseadas na repressão não
se reconhecem: “este não é o mundo deles, mas sim o do capital”12. Um
juízo categórico no fundo é hipotético, além de ser tipicamente pré‑burguês:
é um juízo que não permite a alteração do mundo. Os juízos hipotéticos
e disjuntivos são burgueses: tal coisa vai ocorrer sob tal condição. Os
juízos existenciais são meramente individuais. Por isso que “(...) a
Teoria Crítica em seu todo é o único juízo existencial desenvolvido”13,
posto que historiciza a relação entre sujeito e objeto. Em contrapartida

9
  Ibid., p. 129‑31.
10
  Ibid., p. 145.
11
  Marcos Nobre, Teoria crítica. Rio: Zahar, 2004, p. 36.
12
  Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria crítica”, In Os Pensadores, p. 133‑8.
13
  Ibid., p. 152.
44 Gustavo Chataignier

imediata a economia deixa de ser um ente soberano, cuja crise imporia


inexoravelmente convulsão social.
Não se trata de rejeitar em bloco todo o conhecimento da sociedade
burguesa, mas, antes, de integrá‑lo segundo uma perspectiva crítica – a
saber, historicizada e eticamente orientada à emancipação. Hegelianamente,
o irracional ganha direito à racionalidade. Um pouco como Marx passou
da economia política à sua crítica14. Já se encontra aqui o projeto de um
materialismo interdisciplinar. A denúncia dos limites da ciência positiva e
de sua transposição para as chamadas humanidades não consiste em um
apelo para uma prática pura e incondicionada (ou, ainda, detentora da ética
pois ciente de sua justeza e, portanto, o que é ainda mais grave, controladora
dos próprios fins). Uma vez mais, cabe à teoria iluminar os percursos
práticos, explicitando as mediações teóricas nas quais nos inserimos.
Somos atravessados pela história, pela economia, pela linguagem e até
pela biologia. O Marx da “Contribuição à crítica da economia política” cita
as lições de Hegel sobre a história da filosofia: o concreto (de pensamento)
é síntese de múltiplas determinações15. Dito de outra maneira, o mundo
nos precede enquanto malha de sentidos – expostos a mudanças, ainda que
reiterados em regime de repetição. Pois bem, voltemos à Teoria Crítica em
seu momento de fundação. A não separação entre teoria e prática consiste
em pensar como a prática é condicionada. O conhecimento da realidade é
parte desta mesma realidade16. Os fins não justificam os meios (a injustiça
pode ser, quando muito, explicada, mas não legitimada); tampouco o meio
existe por si só (nosso estar no mundo traz consequências). Dialeticamente
ligados, meios e fins constituem objeto de crítica. Dito de outra maneira, é
preciso assumir o abismo entre os meios e os fins e, a partir daí, confrontar,
a cada vez, a realidade com a finalidade.

2 . RECONHECIMENTO
Na versão honnethiana da crítica, a sociedade é estruturada por
conflitos, e a racionalidade não é prévia. A pretensão universalista leva
em conta os indivíduos, o singular. Este, por seu turno, é sempre mediado
  Marcos Nobre, Teoria crítica, p. 42.
14

  Karl Marx, Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857‑1858. São Paulo: Boitempo,


15

2011, p. 54.
  Marcos Nobre, Teoria crítica, p. 38‑9. O muito jovem Marx, em sua tese de doutoramento
16

sobre a diferença entre as filosofias da natureza de Demócrito e Epicuro, 1841, apontava


para a práxis filosófica como teórica, guiada pela crítica (Karl Marx Différence de la
philosophie naturelle chez Démocrite et chez Épicure, In Œuvres III – Philosophie. Paris:
Pléiade, p. 85).
Filosofia na História: Da Atualidade da Teoria Crítica 45

por outros indivíduos; suas existências se erigem em uma contínua luta


(e processo) de reconhecimento intersubjetivo. A filosofia se veria então
munida de uma gramática moral cujo fim é sanar as patologias sociais
de negação do reconhecimento: amor, direito, solidariedade – ou seja,
estima de si (esfera emotiva), imputação social (esfera institucional) e
respeito (esfera prático‑relacional, estima social). Sua fenomenologia é
«empiricamente controlada»:

Com a distinção, ainda muito provisória, de violação, privação de direitos


e degradação [correspondentes às formas de reconhecimento amoroso,
jurídico e de estima social] foram dados a nós os meios conceituais que
nos permitem agora tornar um pouco mais plausível a tese que constitui
o verdadeiro desafio da ideia fundamental partilhada por Hegel e Mead:
que é uma luta por reconhecimento que, como força moral, promove
desenvolvimentos e progressos na realidade da vida social do ser humano17.

Assim, o horizonte crítico se faz presente. A dominação vigente


(a normatividade que regula esperas) instrumentaliza as expectativas
(ideologia). A experiência da privação de reconhecimento tem uma
dimensão cognitiva e efetiva (prática). Permite um retorno reflexivo capaz
de desenhar as expectativas de reconhecimento implícitas na situação e faz
surgir o sentimento de injustiça.
A questão ganha outros contornos quando nos dois extremos da
argumentação enxergam‑se tanto identidades estanques quanto uma única
forma de política. O discurso parece se nutrir de experiências recentes de
busca por direitos. Todavia, o horizonte de sentido parece se contentar com
as instituições existentes, nas quais a economia se tecniciza e à política
resta a conquista de liberdades civis. Ao se reconhecer o outro, não
desemboco apenas em uma identidade diferente. A diferença, ainda que
evocada e posta em diálogo, não se apaga. Chega‑se, assim, à diferença no
seio da identidade, em união dos contrários tipicamente especulativa. Ou
seja, a identidade é não idêntica a si mesma. Isso graças à exteriorização
na qual pude me ver outro graças ao outro. Se o outro me vê como objeto,
tal consideração detém um momento de verdade para mim, que, ao fim e
ao cabo, não me conheço completamente e não me domino. A experiência
do sujeito é mais a de um desamparo essencial do que a soberania sobre
si, realçada pela comunidade. O desafio para o jovem Hegel era pensar a
separação dos homens, já presente na esfera conceitual por meio do que

  Axel Honneth, Luta pelo reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 227‑8.
17
46 Gustavo Chataignier

compreendia as distinções do entendimento. Temos a impressão, portanto,


que o potencial crítico de uma teoria do reconhecimento se vê bloqueado,
quer seja por escolhas teóricas quer seja por seus vínculos práticos
atestados a posteriori. Apontamos portanto para um déficit metafísico no
pensamento de Honneth: é preciso vazio para a circulação das coisas,
para que possam efetivamente ser18. O mundo positivo não se desvela
por si só, sem mediações impessoais e inconscientes. A generalização
permitida pelo conceito remonta a processos formacionais, ao invés de
descrições empíricas.
Em denso, ao mesmo tempo que amargo, texto de 1987, Axel Honneth
empreende uma análise crítica da herança frankfurtiana, mediado por meio
século de produção intelectual19. Em reivindicação de reconstrução, se
atém mais ao espirito (de interdisciplinaridade de base empírica) do que
à letra, em tese desmentida pelos fatos. Para tanto elege uma «corrente
subterrânea», parafraseando o último Althusser, em Frankfurt. Apenas
com as ideias de Neumann, Kirchheimer e Fromm (e Benjamin) tal projeto
poderia ter vingado. Eis o «círculo externo» em oposição ao núcleo duro
ou «círculo interno»20.
Honneth elenca três pontos do projeto da nascente teoria crítica. O
marxismo é visto como um “funcionalismo” a integrar três disciplinas,
o que, ao fim e ao cabo, teria levado o projeto ao fracasso: análise da
economia pós‑liberal; psicologia da compreensão das formas de integração
dos indivíduos na massa; e a análise cultural da massificação dos bens
simbólicos. Epistemologicamente, uma crítica sistemática do positivismo;
metodologicamente, uma pesquisa interdisciplinar. O pano de fundo era a
dissolução da filosofia da história hegeliana e a separação da filosofia com
as demais ciências21.
Para Honneth, “premissas funcionalistas de forma que, tomadas em
conjunto, produziam a imagem de uma integração fechada da sociedade»22.
Ele lamenta que o terceiro elemento, a saber, a cultura, não tenha aberto
a relação entre modos de produção, divisão social do trabalho e novas
posições familiares subjetivas. A aposta, acredita o crítico, residiria numa

  A este respeito, consultar o artigo de Vladimir Safatle, “Abaixo de zero: psicanálise,


18

política e o ‘déficit de negatividade’ em Axel Honneth”, In Revista Discurso. São Paulo:


USP, 1(43), 2013, p. 191‑228.
  «Teoria crítica», In Teoria social hoje.
19

  Ibid., p. 505.
20

  Ibid., p. 508.
21

22  Ibid., p. 514.


Filosofia na História: Da Atualidade da Teoria Crítica 47

análise quase antropológica de estilos de vida ou, ainda, alimentada por


uma história do cotidiano, nos moldes do inglês Thompson23, célebre
também por suas críticas ao chamado cientificismo althusseriano,
reprodutor da divisão social do trabalho e, segundo tal leitura, apartado da
prática. Donde decorre que o individuo é visto como passivo e separado da
alta cultura; a análise, por fim, se restringe às instituições. O conceito de
ideologia enquanto encobrimento de processos históricos de subjetivação
impediria a afirmação, pois teria como efeito a integração total em uma
sociedade de indivíduos sem convicções morais24. Cabe uma pergunta : até
que ponto o relato da empiria é teórico? Não partem os historiadores, senão
de epistemes, de arcabouços teóricos que dirigem suas pesquisas?
Honneth critica tanto o background de uma filosofia da história quanto
o modelo calcado em uma filosofia da consciência, que reduz a razão à
relação entre sujeito e objeto25. Qual Heidegger26, anula a determinação
recíproca entre sujeito e objeto, ou seja, a história enquanto horizonte de
pensamento, e reduz Hegel a um cartesianismo redivivo. Acompanhemos
esta reprovação:

Somente considerando essa esfera comunicativa da prática diária social é


que Horkheimer poderia ter descoberto que a reprodução societária nunca
ocorre na forma de um cumprimento cego de imperativos funcionais,
mas por meio da integração das normas de ação especificas dos grupos27.

CONCLUSÃO
O projeto da teoria crítica, malgrado as diferenças de seus “partícipes”
(pensamos não só nos integrantes do Instituto de Pesquisa Social, mas
também no rol de contribuições na “Revista para a pesquisa social”), e
o feixe de disciplinas hegemonizadas pelo marxismo teria um traço
conceitual comum, pode ser visto como uma historicização dos saberes,
postos em situação. Ao limite kantiano, se somam a processualidade
hegeliana e a concretude marxiana. A história é a instância que leva o
processo de reconhecimento a algo inusitado. Se a exteriorização produz

  Ibid., p. 514‑5. Cf. Edward P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio:
23

Paz e Terra, 1987 (3 tomos).


  Ibid., p. 516‑7.
24

  Ibid., p. 517.
25

  Martin Heidegger, La ‘Phénoménologie de l’esprit’ de Hegel. Paris: Gallimard, 1984,


26

p. 142 e 183.
  Axel Honneth, «Teoria crítica», in Teoria social hoje, p. 518.
27
48 Gustavo Chataignier

um campo problemático, ela desfaz unilateralidades iniciais, como atestam


os desenvolvimentos hegelianos sobre Antígona e o fim da polis grega.
Talvez um modelo compreensivo na teoria dos modos renovada possa
vir em nosso socorro. A irreversibilidade do tempo histórico se faz pensável
com a categoria da “necessidade”. Todavia, para além de fatalismos,
a necessidade é um devir. O tempo, reunindo diversas velocidades,
procedências e destinações, é atravessado por contratempos, rupturas que
estabelecem um ritmo ou inteligibilidade. O surgimento de “possíveis”,
até então impossíveis, pode redirecionar o curso tendencial da história. A
teoria crítica se interessa não no “assim é”, mas, antes, naquilo que pode
ser – e que se encontra a contrapelo de nosso presente.
A naturalidade do aparecer historiciza aquilo mesmo que está em vias
de aparecer: não se trata de um retorno às origens, mas da imersão do ato
em uma massa de contingência determinada, que engendra novas relações.
A origem retorna quando o fluxo do continuum é interrompido; uma vez
as distâncias sendo reduzidas, o tempo presente desempata as disputas
e redistribui o tempo. Ancorado no presente, o pensamento o excede,
bebendo em promessas passadas e se projetando no futuro. Nem empírica
nem abstrata, a atualização tem lugar tão logo uma emergência põe em
xeque a normalidade das presenças: passado, presente e futuro se encontram
num “agora”. O que faz com que o passado permaneça inacabado e o
presente imprevisível é o fio de futuro que percorre o tempo, responsável
pela transformação. É no presente o lugar onde pensamos o passado e
fazemos o futuro. A necessidade como categoria do passado chega como
uma construção que não pode ser demolida; a possibilidade, categoria do
futuro, é ainda uma potência do possível; fechando o “ciclo”, a “realidade,
categoria do presente, (...) associa indissoluvelmente necessidade e
possibilidade”28. Em termos estritamente hegelianos acreditamos que
a adoção do termo “efetividade”, ao invés de realidade, se presta a uma
melhor compreensão, na medida em que guarda a ideia de vir a ser, de
algo que se torna. Passível de continuação e aberto às apostas no interior
de conjunturas, o “possível” é um acontecimento historicizado. Não se
trata da postulação relativista segundo a qual a verdade é histórica, mas
de pensar, filosoficamente, a história enquanto verdade, de meditar como o
presente se reinventa reelaborando seu passado – no dizer de Hegel, pondo
os pressupostos, sempre plásticos.
Uma reorganização coletiva que se contrapõe à sistematicidade do
capital exige não a “dominação” do tempo, mas uma conjugação de

  Daniel Bensaïd, Marx o intempestivo. Rio: Civilização Brasileira, 1999, p. 395‑8.


28
Filosofia na História: Da Atualidade da Teoria Crítica 49

temporalidades disparatas. Que se pense em um regime de sobredetermi‑


nação de reivindicações particulares por meio da exploração do trabalho,
assim hegemonizando a cadeia de significantes – os direcionando, modifi‑
cando sem abstrair de suas singularidades.
Criticar é estabelecer limites e, por via de consequência, buscar
uma valoração. “Qual o valor dos valores?”, indaga‑se um Nietzsche
genealogista, para complexificar ainda mais nossa teia de referências29.
Toda valoração se dá por meio de julgamento segundo uma norma. Cabe,
no entanto, à filosofia distinguir as normas válidas daquelas não válidas,
donde a confusão entre filosofia e crítica. A busca do verdadeiro, do justo e
do belo, atividade tradicionalmente destinada à filosofia, se é avessa à ou,
melhor dizendo, distinta da aplicação, deve rever criticamente seus limites
e pensar em sua determinação histórica, espaço em que verdadeiro e falso
caminham lado a lado e trocam de posição. Por um lado, há condições
de recepção e expectativas subjetivas, que fazem com que a avaliação
presente não parta do zero. Por outro, não obstante, o aparecer nu e
imediato do fenômeno é aquilo que coloca em xeque a expectativa anterior.
Encontramo‑nos no desconforto de nos ater, em um só tempo, à mediação
histórica e à coisa, em estrabismo intelectual. Uma mudança no espaço de
experiência implica em um deslocamento do horizonte de expectativas.
Diante desta suspensão de sentido buscamos nomear aquilo mesmo que
nos interpela, numa dialética entre o “não mais” e o “ainda não”.
O criticismo é a superação do relativismo subjetivo e da objetividade
positiva, carregados pela história e portanto em identidade especulativa
(ou seja, conceitual e não imediata). Não parece haver outra saída razoável
senão o esforço de se pensar caso a caso.

Referências Bibliográficas
Theodor Adorno, Trois études sur Hegel, Paris: Payot, 1979.
Perry Anderson, Considerations on Western Marxism, Londres: Verso, 1989.
Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, in Magia e técnica, arte e política
– Obras escolhidas 1, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 222‑34
Daniel Bensaïd, Marx o intempestivo – grandezas e misérias de uma aventura
crítica, Rio: Civilização Brasileira, 1999.
Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade, São Paulo: Martins
Fontes 29, 2000.

  Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.


29
50 Gustavo Chataignier

——————
“Trabalho e interação”, in Técnica e ciência como ‘ideologia’, Lisboa:
Edições 70, 2009, pp. 11‑43.
G.W.F. Hegel, Phénoménologie de l’esprit, tomos I e II, Paris: Aubier‑Montaigne,
1975, 1983.
——————
Science de la logique, livro I, Doctrine de l’être, livro II, tomo I,
Doctrine de l’essence; livro II, tomo II, Doctrine du concept, Paris:
Aubier‑Montagne, 1972, 1976, 1981.
Martin Heidegger, La ‘Phénoménologie de l’esprit’ de Hegel, Paris: Gallimard,
1984
Axel Honneth, «Teoria crítica», in Teoria social hoje, São Paulo: UNESP, 1996,
pp. 503‑552
——————
Luta pelo reconhecimento – a gramática moral dos conflitos sociais,
São Paulo: Editora 34, 2003.
Max Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria crítica”, in Os Pensadores, São
Paulo: Abril, 1975, pp. 125‑162.
——————
“Pourquoi le fascisme?”, in Esprit. Paris, 1978, pp. 62‑78.
——————
(1996), “Préface à la réédition”, in Théorie traditionnelle et théorie
critique, Paris: Gallimard, 1996, p. 7‑13.
Edmund Husserl, A crise da humanidade europeia e a filosofia, Porto Alegre:
EDUFRGS, 2002.
Leandro Konder, A questão da ideologia, São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Stathis Kouvelakis, La critique défaite – émergence et domestication de la Théorie
critique Paris: Éditions Amsterdam, 2019.
Karl Löwith, De Hegel à Nietzsche, Paris: Gallimard, 2003.
George Lukács, Histoire et conscience de classe, Paris: Minuit, 1960.
Karl Marx, Différence de la philosophie naturelle chez Démocrite et chez Épicure,
Paris: Pléiade, 1982.
——————
Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857‑1858, Esboços da crítica
da economia política, São Paulo: Boitempo, 2011.
Friedrich Nietzsche (1998), Genealogia da moral, São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
Marcos Nobre (2004), Teoria crítica, Rio: Zahar, 2004.
Robert Pippin (1989), Hegel’s Idealism: The Satisfactions of Self Consciousness,
Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
Emmanuel Renault (1995), Marx et le concept de critique, Paris: PUF, 1995.
Vladimir Safatle, “Abaixo de zero: psicanálise, política e o ‘déficit de negatividade’
em Axel Honneth”, Revista Discurso 1/43 (2013), pp. 191‑228.
Edward P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, Rio: Paz e Terra,
1987.
Filosofia na História: Da Atualidade da Teoria Crítica 51

RESUMO

O presente trabalho se debruça sobre a noção de crítica em filosofia, tendo


por base alguns dos modelos chave erigidos pela chamada “Escola de Frankfurt”, a
saber, o texto fundador de Max Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria crítica”, e
uma perspectiva contemporânea de sua terceira geração, com a concepção de Axel
Honneth sobre o reconhecimento hegeliano, bem como seu comentário acerca de tal
tradição. Além das descrições das referidas concepções, aposta-se na ideia de crítica
como uma historicidade aberta, engendrada por uma dialética entre continuidade e
ruptura, cuja norma exige o exame imanente caso a caso. Para tanto, mobilizam-se
os conceitos modais de Hegel – necessidade, possibilidade, efetividade – guiados
pela contingência, ao lado de uma noção de determinação presente.

Palavras‑chave: teoria crítica – crítica – historicidade – Escola de Frankfurt –


dialética

RÉSUMÉ

Le présent travail se penche sur la notion de critique en philosophie.


On commence par l’analyse de quelques modèles fondamentaux de l’École de
Francfort: notamment, d’abord, du texte fondateur de Max Horkheimer, «Théorie
traditionnelle et théorie critique»; et, ensuite, de la perspective contemporaine, de
troisième génération, d’Axel Honneth – dans ce cas, on se concentre sur sa lecture
de la reconnaissance hégélienne, aussi bien que sur ses commentaires portant sur
ces deux traditions. Après avoir présenté ces différentes conceptions, on défend la
thèse selon laquelle la critique en philosophie serait une sorte d’historicité ouverte,
engendrée par une dialectique entre continuité et rupture, dont la norme exige
l’examen immanent et cas à cas des enjeux. Pour ce faire, on mobilise les concepts
modaux de Hegel – nécessité, possibilité et effectivité – compris à la lumière da la
contingence et d’une détermination du temps présent

Mots‑clés: théorie critique – critique – historicité – École de Franfort – dialectique

Você também pode gostar