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Gustavo Chataignier 1
(PUC‑Rio de Janeiro)
INTRODUÇÃO
O que resta do pensamento crítico? O descrédito vivido por formas
democráticas de governo e o sistema de crenças irradiado e perpetrado pela
onda de informações não verificadas nas redes sociais parecem ter demolido
toda e qualquer aspiração iluminista pela razão. A exposição e explicitação
de motivações e seus processos sociais não impediram que tenhamos
nos tornado aquilo mesmo que nos tornamos – fechados, solipsistas e
orgulhosos de tais feitos (ou efeitos, melhor dizendo). Malgrado o ar do
tempo não instar a saídas mágicas, cabe‑nos um gesto mínimo de justeza
intelectual, a saber, postular que à teoria não se autoriza o esgotamento
da realidade. Feita assim, a pergunta assume ares niilistas de banimento
do pensamento tanto das esferas públicas quanto da legitimação por pares
no espaço acadêmico. Talvez seja mais pertinente se indagar sobre qual o
papel do pensamento crítico nos nossos dias – posto que, mesmo restrito,
quer seja em ambiência acadêmica, quer seja nas mobilizações sociais
e suas condensações, a identificação do pensamento como denúncia e
concomitante busca de normatividade outra se faz valer. E quanto ao, por
gustavo.chat.gad@gmail.com
1
assim dizer, «gesto máximo» da teoria? Gesto este que não se coaduna,
claro está, com a totalidade oposta – a compreensão total do mundo
fenomênico, disponível em representações claras e distintas, graças a uma
aposta na inelutável marcha do progresso.
Nosso objetivo mais imediato consiste em elencar características do
pensamento crítico, tendo como primeiro referencial a chamada “Escola de
Frankfurt” e seu texto fundador – “Teoria tradicional e teoria crítica”, de
Horkheimer2. A questão é tão mais instigante na medida em que parece ter
havido uma auto implosão da teoria crítica. Reformas, nuances e conjugações
com novos referenciais teóricos a redimensionaram, ou assim o intentam:
ação comunicativa de pretensão universalista ou «terapêutica» social por
via do reconhecimento intersubjetivo (respectivamente as filosofias de
Jürgen Habermas e Axel Honneth). Ou seja, a ideia de dotar o marxismo
de concretude por meio da formação de um saber transdisciplinar, apoiado
nas racionalidades das ciências sociais e da produção artístico‑simbólica
do presente, teria naufragado nas águas calmas das filosofias da história
ainda ligadas à ideia de progresso. Não sem razão, mestre e discípulo,
Habermas e Honneth, reservam um lugar à parte a Walter Benjamin3
e sua crítica ao progresso. Todavia, a desqualificação em bloco das
intuições e obras dos principais nomes frankfurtianos nos parece apontar
menos para uma correção do que para uma ruptura, fato que justifica
suas novas escolhas teóricas – enquanto base argumentativa se percebe
o recuo do Hegel da Fenomenologia do espírito em direção ao Hegel dos
escritos do sistema ético de Iena, um pouco mais novo4. Daí resulta que a
imaginação política e a ocorrência de acasos devam ser controlados por
um pressuposto antropológico calcado na ideia de presença e integração.
2000, pp. 16‑24; Axel Honneth, «Teoria crítica», in Teoria social hoje, org. Giddens e
Turner, São Paulo: UNESP, 1996, pp. 5005, 525, 529‑33. Para Benjamin, cf. “Sobre o
conceito de história”, in Obras escolhidas 1, São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 222‑34.
Neste sentido, consulta‑se com proveito o veio aberto por Habermas em “Trabalho e
4
interação”, in Técnica e ciência como ‘ideologia’, trad. Arthur Morão, Lisboa: Edições
70, 2009, pp. 11‑43. Antes da virada linguística, este texto de 1968 aponta para uma
intersubjetividade primeira, posta a prova pela conflitualidade social. Sobre a perspectiva
pragmatista, Pippin apreende a obra de Hegel em uma perspectiva para além de um
simples interesse pela história da filosofia. Trata‑se de partir de Kant e buscar as soluções
hegelianas para a intuição pura e a autonomia. O viés inferencialista prevale quando as
razões para se agir devem ser reconhecidas em um quadro institucional (Robert Pippin,
Hegel’s Idealism, Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 148).
Filosofia na História: Da Atualidade da Teoria Crítica 41
Cf. Stathis Kouvélakis, La critique défaite, Paris: Éditions Amsterdan, 2019, pp. 450,
5
491‑501.
G.W.F. Hegel, Fenomenologia do espírito, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 198.
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1. TEORIA E HISTÓRIA
Em “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, Max Horkheimer estabelece
os fundamentos de uma opção independente de marxismo, sobretudo no que
diz respeito a um alinhamento automático com os Partidos Comunistas8.
Horkheimer indaga‑se o que é teoria. No quadro científico, “(...) equivale
a uma sinopse de proposições de um campo especializado, ligadas de tal
modo entre si que se poderiam deduzir de algumas dessas teorias todas
as demais”. Concordam entre si proposições deduzidas e fatos ocorridos.
Uma contradição qualquer entre experiência e teoria exigiria a revisão de
uma das duas esferas. Ou bem a percepção empírica ou bem os princípios
teóricos são falhos. O método apodera‑se do real, no sentido de exterioridade
objetiva, tornado abstrato. A teoria vê‑se assim reduzida a relações lógicas
independentes do sujeito que vive e conhece – complementarmente, o
sujeito tampouco se vê enquanto resultado imanente de feixe de forças. O
experimento que foge à previsibilidade está fora do sistema, o qual isola
o objeto de seu entorno social, reificando‑o. A exigência sistemática, de
Descartes a Husserl, é o princípio de não contradição. Ou seja, imanente
ao método surge a relação necessária entre causa e efeito.
Horkheimer caracteriza o pensamento especializado. Os progressos
técnicos da sociedade burguesa e as teorias apoiadas nas ciências naturais
são o próprio movimento da ciência e podem ser aplicados a fatos.
A base material da sociedade está, portanto, em constante revolução.
Nessa dinâmica positivista, o conceito de teoria se torna independente do
progresso técnico. A ciência se torna a aplicação direta de um método;
passa a ter uma fundamentação a‑histórica, e portanto ideológica – no
sentido de encobrimento de relações. O cientista só leva em consideração
a imanência de sua observação, sem dar‑se conta de que “(...) novas teses
se impõem e se enquadram nas conexões históricas concretas”. A crença
no valor social de utilidade e previsão faz da ciência um assunto privado
do cientista; cria‑se um mecanismo em que a oposição entre seu saber
Leandro Konder, A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 78.
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Filosofia na História: Da Atualidade da Teoria Crítica 43
“supra social” e sua vida social não atrapalha sua atividade prática9; ganha
o “sentimento humanitário” da “boa sociedade”10. Na transposição do
modelo das ciências duras para as ciências sociais, a observação deve ser
acompanhada pela avaliação11. Caso contrário, o sujeito não se vê parte da
objetividade por ele avaliada e incorre no risco de apenas confirmar a si
mesmo em suas investigações.
Para Horkheimer, a oposição entre indivíduo e sociedade imanente
à economia burguesa faz parte de uma “totalidade tradicional”. Mostra
uma concepção de mundo que é “(...) uma sinopse de facticidades;
esse mundo existe e deve ser aceito”. No entanto, há uma diferença
seminal entre indivíduo e mundo: “O mesmo mundo que, para o
indivíduo, é algo em si existente e que tem que captar e tomar em
consideração é, por outro lado, na figura que existe e se mantém,
produto da práxis social geral”. A percepção é duplamente formada:
objeto e órgão são históricos. Porém o que se vê é uma inversão dos
papéis da passividade e da atividade no dualismo entre sensibilidade
e entendimento. O homem se experimenta passivo, mas a sociedade,
formada por indivíduos, age como um “sujeito ativo”.
Há um “comportamento humano” que toma a sociedade por objeto,
vê as contradições ligadas aos processos de formação social. Trata‑se
do comportamento da “crítica dialética da Economia Política”. Mesmo
oriundo da estrutura social, tal comportamento não muda esta estrutura
por sua intenção ou sua importância objetiva, posto que sua prática não
é mecânica. Reconhecem os críticos a economia e o todo cultural nela
baseado como fruto do trabalho, de uma organização que a sociedade se
impôs. Em contrapartida, ao compararem a sociedade a processos naturais
extra‑humanos e ao perceber as formas culturais baseadas na repressão não
se reconhecem: “este não é o mundo deles, mas sim o do capital”12. Um
juízo categórico no fundo é hipotético, além de ser tipicamente pré‑burguês:
é um juízo que não permite a alteração do mundo. Os juízos hipotéticos
e disjuntivos são burgueses: tal coisa vai ocorrer sob tal condição. Os
juízos existenciais são meramente individuais. Por isso que “(...) a
Teoria Crítica em seu todo é o único juízo existencial desenvolvido”13,
posto que historiciza a relação entre sujeito e objeto. Em contrapartida
9
Ibid., p. 129‑31.
10
Ibid., p. 145.
11
Marcos Nobre, Teoria crítica. Rio: Zahar, 2004, p. 36.
12
Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria crítica”, In Os Pensadores, p. 133‑8.
13
Ibid., p. 152.
44 Gustavo Chataignier
2 . RECONHECIMENTO
Na versão honnethiana da crítica, a sociedade é estruturada por
conflitos, e a racionalidade não é prévia. A pretensão universalista leva
em conta os indivíduos, o singular. Este, por seu turno, é sempre mediado
Marcos Nobre, Teoria crítica, p. 42.
14
2011, p. 54.
Marcos Nobre, Teoria crítica, p. 38‑9. O muito jovem Marx, em sua tese de doutoramento
16
Axel Honneth, Luta pelo reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 227‑8.
17
46 Gustavo Chataignier
Ibid., p. 505.
20
Ibid., p. 508.
21
CONCLUSÃO
O projeto da teoria crítica, malgrado as diferenças de seus “partícipes”
(pensamos não só nos integrantes do Instituto de Pesquisa Social, mas
também no rol de contribuições na “Revista para a pesquisa social”), e
o feixe de disciplinas hegemonizadas pelo marxismo teria um traço
conceitual comum, pode ser visto como uma historicização dos saberes,
postos em situação. Ao limite kantiano, se somam a processualidade
hegeliana e a concretude marxiana. A história é a instância que leva o
processo de reconhecimento a algo inusitado. Se a exteriorização produz
Ibid., p. 514‑5. Cf. Edward P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio:
23
Ibid., p. 517.
25
p. 142 e 183.
Axel Honneth, «Teoria crítica», in Teoria social hoje, p. 518.
27
48 Gustavo Chataignier
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Filosofia na História: Da Atualidade da Teoria Crítica 51
RESUMO
RÉSUMÉ