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Apresentação
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tual" com esse processo e do regionalismo, entre outras, mas isso adquire
contornos e conforma padrões próprios para cada situação, visto que as
condições desse processo podem ser muito específicas para cada caso. Apesar de
este texto estar circunscrito ao período das décadas de 1920 a 1960, é pressuposto
que muitos dos resultados dos processos em pauta estão presentes nas condições
de formação de "intelectuais" ou de especialistas da "cultura"2 do período poste
rior, quando o centro, para tanto, passou a ser as universidades.
Como é sabido, a relativa autonomia da produção cultmal, seja cien
tífica, seja literária e artística, além de processo histórico, serve também como
base de formulação conceitual, inclusive para a noção de "campo". Isso
pressupõe a existência de uma esfera com lógica e princípios de concorrência e
hierarquização próprios, o que implica relações entre os recursos sociais dos
agentes e as tomadas de posição (Bourdieu, 1996; 2001: 180-1). Visto que, em
condições periféricas, nao haveria processo histórico nessa situaçao de relativa
autonomização dos diferentes "campos", as relações entre a constituição dos
agentes, ou suas respectivas estruturas de capital e disposições, e as tomadas de
posição implicariam, em graus mais elevados, outras lógicas sociais.
Alguns estudos sobre as relações entre "intelectuais" e a política, como o
de Pécaut (1990: 20-1), opondo-se à ênfase nas relações entre posição social de
origem, destino social e tomadas de posição política, destacam a importância da
interseção de lógicas de atuação, além de uma "cultura política" própria que
abarcaria o conjunto do universo estudado. Porém, trabalhos como o de Sigal
(1996: 42), ao abordar os "intelectuais" na Argentina, propõem a utilização da
noção de "campo", apesar das limitações que decorrem da inexistência de algum
grau de autonomia da produção cultural. Essas limitações, ou a maior heterono
mia da produção e consagração culturais, teriam dois condicionantes básicos,
decorrentes das condições "periféricas": uma maior importância das instâncias
e dos critérios externos de consagração e uma maior associação e dependência
e, assim, vulnerabilidade - relativamente à esfera política.
Porém, um dos problemas que restam em aberto é o da abrangência dos
"sistemas de referência" aos quais se vinculam as "problemáticas legítimas"
(Bourdieu, 1979: 465). Isso porque, mesmo com a forte heteronomia da
produção cultural, está em pauta um processo de centralização da esfera das
decisões políticas ou burocráticas, que incide de modo distinto nas esferas
sociais e instituições em que ocorre essa produção cultural. Dito de outro modo,
mesmo ocorrendo uma progressiva centralização das decisões políticas, as
pautas das "problemáticas legítimas" se inscrevem em níveis menos gerais e
abstratos, envolvendo diretamente processos que abrangem esferas e
instituições específicas, tais como igrejas, sistema escolar, forças armadas, entre
outras.
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te, vai muito além da esfera educacional, num projeto explícito de "civilização"
das "elites" culturais e políticas regionais. Seu principal contraponto ideológico
no período consiste naquilo que é designado como "anticlericalismo" ou, especi
ficamente, o "positivismo", que constitui um determinado tipo de militarismo,
associado a certas posições de origem social e a um tipo específico de escolariza
ção e de ethos militar (Pécaut, 1990: 60-6).
Em terceiro lugar, apesar da presença de instituições como a Igreja e o
Exército com seus investimentos educacionais, bem como dos jornais como
agiutinadores das atividades "intelectuais", há diferentes formas de associação
entre esses conflitos políticos e as instituições vinculadas à "cultura". Isso fica
muito nítido no final da década de 1920, que interessa de modo especial, visto
que é quando surge a publicação que passa a ser o principal meio de aglutinação
dos "intelectuais" em âmbito estadual, a Revista do Globo. Porém, para uma
melhor compreensao da emergência dessa publicação, deve-se considerar,
antes de tudo, sua estreita e complexa associação com um programa de mobili
zação política, numa situaçao prévia de forte bipolarização e conflitos
político-partidários em âmbito regional. Além disso, é necessário considerar
que esse projeto de mobilização, apesar de estreitamente associado e
dependente das atividades "intelectuais", como um meio de legitimação, e do
regionalismo, como um dos principais princípios de recorte de unidade de
referência, não inclui o pólo de produção cultural mais diretamente vinculado
às igrejas, o qual, dada a sua "formação cultural européia", estava mais
vinculado ao "debate político internacional" do que à discussão política
regional (Trindade, 1982: 4 1).
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Mas, isso que retrospectivamente pode até ser visto como uma aliança
bem-sucedida entre políticos e "intelectuais" ou, então, ao contrário, como uma
série de aparentes paradoxos, consiste na concretização da mencionada con
fluência contraditória de "empresas", que abrange as condições sociais específi
cas de um de seus principais protagonistas, a começar por M. Bernardi. De modo
completamen te distinto dos "intelectuais" associados à condição de origem de
"primos pobres", destacados por Miceli (1979), Bernardi nasceu na Itália e imi
grou quando criança com a família para uma "colônia italiana" no interior do es
tado, onde seu pai foi agricultor e ele próprio passou a ser professor primário.
Posteriormente, via autodidatismo, tornou-se poeta, foi contratado pelo governo
estadual e passou a atuar na Editora do Globo. Como "intelectual", além de sua
predileção e forte adesão a um determinado catolicismo e àqueles que conside
rava os "grandes escritores" da Itália, no início da revista já havia publicado uma
série de trabalhos e participado de polêmicas em defesa da idéia da "cultura" ou
da "história" como construção de "monumentos", inclusive, com propostas prá
ticas nesse sentido, como, por exemplo, a de transformar um dos principais par
ques de Porto Alegre numa imensa exposição de "heróis", que representariam
diferentes setores sociais. Em geral, os "monumentos" e respectivos "heróis" já
faziam parte da mitologia regional. Portanto, por um lado, a utilização da "cul
tura" a serviço da mitologia e, por extensão, do regionalismo, além da legitima
ção da campanha de mobilização política a serviço do que acabou sendo a Revo
lução de 30, tinha também como objetivo o fortalecimento da aliança entre duas
posições políticas historicamente rivais em âmbito regional, os chamados "ma
ragatos" e "chimangos" (Love, 1975). Trata- se da formação de uma nova "unida
de de referência" para a ação política, agora mais centrada no conjunto da região,
por oposição ao Brasil, então objeto da "gauchização". Por outro lado, o principal
"intelectual" envolvido na formulação desse "panteão" e do novo regionalismo,
além de um dos principais "árbitros" quanto aos critérios de avaliação das
"obras" dessa "cultura" e sua eventual publicação, simultaneamente a serviço da
"cultura" e da "política", era oriundo de condições sociais completamente estra
nhas, ou seja, a "colõnia italiana". Esse tipo de situação contraditória entre a
"cultura cosmopolita" e as definições regionalistas de "cultura" estão presentes,
inclusive, nas ambivalências da escolha do nome da revista (entre uma série de
propostas de cunho regionalista e a mais pretensamente cosmopolita), mas, prin
cipalmente, no posterior trajeto profissional e social tanto de M. Bernardi quan
to dos demais protagonistas. Após ter sido nomeado diretor da Casa da Moeda,
onde permaneceu até 1938, foi preso sob a acusação de fazer parte do movimento
integralista. Após mais um período como funcionário estadual, retornou à "colô
nia italiana", onde foi líder do Partido de Representação Popular, do qual acabou
desligando-se em protesto contras as alianças político-partidárias com os supos-
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Seja como for, após os primeiros anos que antecedem e que se seguem à
Revolução de 30, a Revista do Globo estava subordinada à mobilização política, e o
conjunto da "produção literária" publicada mantinha um caráter predo
minantemente regionalista. Com as mudanças posteriores na direção (subs
tituição por E. Verissimo e outros, alguns frontalmente divergentes do governo
Vargas, entre os quais se inclui o grupo proprietário da editora) e nos padrões de
consumo cultural, ou sua transformação numa " revista popular" (Verissimo,
1972), passa a haver uma crescente diferença entre a mobilizaçao "cultural", que
se definia como "revolucionária", e o apoio a um governo com um longo período
de controle político e muitas crises e conflitos ideológicos.
Nos anos seguintes, cada vez mais se fortalecem outras definições do
regionalismo, menos preocupadas com a mobilização política e com a mitologia
"heróica", e mais centradas na necessidade de incorporar o conjunto de catego
rias ou grupos étnicos regionais na suposta especificidade das elites políticas e
culturais locais, em oposição a outras situações brasileiras ou temas, como os
percalços do governo Vargas ou as razões da impossibilidade da "democracia". A
própria "revolução" passa a ser tratada basicamente como comemoração, e os
critérios de inclusão no "panteão" tendem a se deslocar das figuras políticas de
destaque para as "eminências" em voga em diferentes esferas sociais.
Como é sabido, nessas alturas, na década de 1960, as divisões e oposições
ideológicas são outras. A Revolução de 30, com suas clivagens regionais, foi
substituída pelas "reformas" e o nacionalismo. Mas a Revista do Globo nem chega
a se posicionar nessas novas divisões, desaparecendo por motivos comerciais
logo adiante, em 1963. Ocorre que as condições de usos sociais, tanto do
regionalismo quanto de "panteões", se modificaram, e os interessados e com
condições para tanto o fazem nas perspectivas mais diferenciadas, seja através da
"história", da literatura, do ensaísmo, ou de outras modalidades de expressão
"cultural".
Com o relativo distanciamento dos "intelectuais" vinculados à Editora
do Globo no que se refere à "política", no sentido de lutas governamentais e,
especificamente, do governo Vargas, passou a haver um esforço para redefinir o
regionalismo. Não se trataria mais do regionalismo diretamente associado à
mobilização política, inclusive porque esse aggiornamento decorre das diver
gências quanto aos rumos da Revolução de 30, e também das novas condições de
relacionamento dos "intelectuais" locais com o restante do Brasil.
Esse empreendimento foi concretizado particularmente na Revista
Pravíncia de São Pedro, pelo menos em seu curto período de existência, de pouco
mais de dois anos. Porém, diversamente da anterior, que surgiu a serviço da
mobilização política, nesse caso, desde o início, houve um esforço para explicitar
que se tratava de um empreendimento "cultural" com um programa regiona-
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lista, como consta inclusive em seu primeiro editorial. Mas fica explícito
também que consiste numa reaçao dessa "elite cultural" às novas condições nas
relações centro/periferia - em oposição ao "centralismo" ou "padronização
cultural" - e, por outro lado, ao antigo regionalismo "tradicionalista" ou "sau
dosista", ou aos "exclusivismos loca listas" em nome dos "autênticos valores do
passado". Nessa nova definição de "cultura", já não se trata de "gauchizar o
Brasil", visto que não está em questão uma relação direta entre esses "intelec
tuais" e um projeto "político". A linguagem e o público visado também são ou
tros, constituindo-se nos próprios "intelectuais" e na população escolarizada e
politicamente interessada.
Esse "cultural") no entanto, nao exclui a "política" num sentido mais
amplo, pois trata-se de uma definição da "cultura" como um fenômeno regional,
em que a unidade "cultural" é também uma unidade geopolítica, em suas
relações com uma unidade maior, constituída pela "nação". Desse modo, o que é
publicado está vinculado a esta concepção centrada na "conquista" do espaço
geográfico e na elaboração dos respectivos panteões de personagens.
Essa revista durou pouco, e tudo leva a crer que, além da maior diver
sidade editorial para a literatura no período posterior, e das vicissitudes do regio
nalismo intelectual, boa parte de seus objetivos e conteúdo foram incorporados
pelo sistema universitário, então em processo de institucionalização, inclusive,
com parte desses "intelectuais". Isso se aplica, principalmente, aos "ensaios" e
textos "históricos" ou "sociológicos", o que requer novas e mais sofisticadas re
definições do regionalismo, da "cultura" e da "política".
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As missões da "cultura " c da lipolítica "
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