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INTRODUÇÃO
Tal cenário contemporâneo parte do que Jenkins (2008) nomeia como cultura
participativa, oriunda do ciberespaço e orientada pela presença ostensiva da produção dos
consumidores, organizados numa coletividade de debates e criação que é abrigada e celebrada
nesse contexto. A relação entre público e produto é reconfigurada pelo teor afetivo do
consumo e pelas práticas produtivas interativas: consumidores-produtores passam a ter voz
nesse espaço, portanto, se reúnem para consolidar um papel criativo e incentivador nas
decisões das grandes indústrias. E também encenam modelos de vida e gostos que refletem as
transformações de nosso tempo e merecem uma reflexão mais aprofundada.
1
Mestrando em Estudos da Midia (PPGEM/UFRN). Graduado em Comunicação Social, com
habilitação em Jornalismo, pela UERN. E-mail: heliofilho2@hotmail.com.
2
Doutora em Comunicação (PPGCOM/UFPE). Docente no curso de Comunicação Social da UERN.
E-mail: daianydantas@gmail.com.
3
Graduado em Comunicação Social, com habilitação em Publicidade e propaganda, pela UERN.
E-mail: samirmagoya@gmail.com.
No presente artigo, analisamos como a cultura participativa, em seu desdobramento da
convergência midiática, serve-se do humor, da intertextualidade com referências culturais da
mídia mainstream e do aparato criativo que as plataformas digitais colaborativas
proporcionam para reconfigurar paisagens estéticas do digital.
O termo fanfiction foi originado da junção das palavras da língua inglesa fan e fiction,
referindo-se à produção ficcional feita por admiradores de determinada obra em seus
agrupamentos. Esse tipo de conteúdo começa a ser mais difundido em meados do século XX,
e se populariza com a disseminação da internet por volta da década de 90. Jenkins traz o
termo fandom como sendo o “agrupamento de fãs em torno de determinado produto”
(JENKINS, GREEN e FORD, 2014, p. 210).
Chin (2019) também vai entender um pouco dessa vontade dos fãs de algum modo
construírem suas relações ficcionais com os elementos midiáticos. Para a autora, além da
significação simbólica do controle desses indivíduos midiáticos há também uma sensação de
escuta e de percepção de seus atos pelos sujeitos protagonistas na mídia: “é importante para o
campo reconhecer que essas práticas dos fãs são igualmente produtivas e importantes" (Chin,
2019, p. 309)4.
Esses fãs são muitas vezes a audiência cativa desses produtos, são os que mantém o
engajamento sobre as narrativas produzidas e que tendem a criar vínculos afetivos com o
produto em questão. Os fãs são imprescindíveis no espalhamento da cultura participativa que
surge no ciberespaço, no entanto, assim como existem os fãs que amam determinado produto
da indústria cultural, existem os haters e os anti-fãs, é importante frisar a diferença entre o fã,
anti-fã e o hater.
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Tradução nossa de: “t is important for the field to acknowledge that these fan practices are equally
productive and important”.
viraliza produtos, produz memes, ficções e narrativas transmidiáticas diversas, o mesmo
universo que mobiliza a produção de conteúdo movido por admiração também o faz com a
aversão.
Essa perseguição por algo que desejam “odiar” ou tensionar de forma contracultural é
um dos comportamentos na hipermídia, Gray (2019) característica como uma prática de
hatewatching. Ou seja, é possível ter uma coletividade motivada a acompanhar de forma
sistêmica, não pelo apreço ao conteúdo que aquele indivíduos midiáticos podem
proporcionar, mas pela vontade de interagir de forma diferenciada, performática e referencial,
fugindo do comportamento clássico dos fãs.
A visão dessa atividade do anti-fã não pode ser percebida como contraproducente para
as dinâmicas comunicacionais, mas como parte de um ecossistema complexo que ajuda na
manutenção dos elementos na mídia.
O autor traz três perspectivas a respeito da cultura digital trash para a compreensão
das práticas originadas a partir desse fenômeno. A primeira é de que, a partir das novas
interações possibilitadas pelas novas tecnologias, o consumidor passa a ter papel ativo e cria
novos contextos numa cultura hierárquica e historicamente dominada por conglomerados
empresariais. O segundo ponto é de que o trash digital oferece tensões que geram
questionamentos a respeito dos clichês dos modelos de produção da cultura para o consumo
massivo. O terceiro ponto elucidado pelo autor é de que a cultura digital trash não surge
necessariamente para excluir os produtos da cultura midiática, mas é capaz de se apropriar
desses conteúdos.
Ao retratar a cultura de casal presente na prática do shipping, uma ação dos fandoms
que consiste em potencializar duas personalidades midiáticas e seus respectivos seguidores
num fandom à parte, por meio do uso de uma única tag, palavra identificadora e indexadora
que pode ser repetida e rastreada na internet, o anti-fã, aquele movido pelo desejo de
contrapor e contestar a ambivalência dessa cultura, reúne personagens e situações
potencialmente absurdas nas fanfictions de casal. Essa convivência inusitada para além dos
fins do riso e do consumo das marcas, acaba gerando um comentário a respeito da própria
cultura da qual emerge.
O grotesco por sua vez, vem se caracterizar como categoria estética e deve ser
compreendido a partir de uma lógica de apreciação daquilo que se desvirtua do padrão, do
comum e do belo. Segundo Sodré e Paiva (2002), até o grotesco ser reconhecido como parte
do campo da estética, o percurso foi longo, somente no século XIX esse elemento passa a ser
identificado como objeto de estudo de tal, uma vez que a estética se confundia por vezes com
o estudo das até então chamadas “belas artes”.
Uma categoria que trata dos gárgulas, dos bufões, das velhas grávidas e dos bobos da
corte que exibem próteses de membros exagerados, o grotesco, para além de abordar os
corpos que desvirtuam dos ideais platônicos de beleza e o humor escatológico, também fala
da inversão de papéis sociais, da valorização da materialidade dos corpos, por vezes
considerada abjeta e execrada pela sociedade, como elementos de questionamento das normas
sociais estabelecidas. Sobretudo quando ocorrem inversões de papéis sociais, e o que era
considerado baixo e abjeto ocupa funções de poder, como no grotesco carnavalesco, surgido
das análises bakhtinianas a partir das práticas do carnaval na idade média.
Hall, a partir das contribuições de Stallybrass e White (1986), destaca que há
elementos estéticos na expressão de culturas contemporâneas que buscam questionar ou
evidenciar as estruturas dominantes, muitas vezes pela coexistência ou quebra de hierarquias
entre gêneros desiguais perante o cânone. Eles podem ser expressos, por exemplo, em
“metáforas de transgressão”, aquelas “que nos permitem imaginar o que aconteceria se os
valores culturais predominantes fossem questionados e transformados, se as velhas
hierarquias sociais fossem derrubadas (HALL, 2009, p. 219).
No caso do objeto aqui tratado, além do trabalho dos fãs (ou antifãs, como aqui
observamos os que atuam no cenário das paródias e das inversões das fanfictions de casais
improváveis), também percebemos a ambiguidade revelada por uma das mais constantes
mitologias midiáticas, desde a estabilização do star system, a cultura de casal.
Segundo o filósofo e estudioso da mídia Edgar Morin (1997) , o casal, assim como o
final feliz, típicos das matrizes narrativas hollywoodianas, surgem como mitos aspirados pelo
consumo massivo de produtos culturais que despontam no século XX. O autor ressalta que
muito dessa cultura salta de um do star system, um sistema de estrelato forjado pelos grandes
estúdios cinematográficos corporativos, que utilizavam as figuras públicas dos atores e atrizes
em panfletos e programas, publicidades em geral, consolidando personas que encenavam nas
capas de revistas o ideário olimpiano de uma vida de glamour e luxo, repleta de êxitos
materiais, mas também afetivos.
Atualmente, a cultura de fã resgata esse star system e o pilar da cultura de casal como
estrutura dos novos olimpianos. Entretanto, como o próprio Morin (1989) já postulava,
décadas antes, vivemos uma cultura pós star system. A decadência da vida pública de muitas
grandes estrelas, a perda de referente do casal heteronormativo e seus finais felizes conjugais,
a chegada de uma cultura volátil em celebridades duram algumas estações e um campo de
subcelebridades que disputam e tentam multiplicar os seus instantes de fama reformularam o
contexto.
O shipping surge numa contemporaneidade em que nem o final feliz, nem as estrelas,
nem o casal são aspirações tangíveis. No que o filósofo Byung Chul-han (2017) chama de
“sociedade de desempenho”, o amor é positivado como algo a ser experimentado de forma
plena como parte de um projeto metódico e exitoso de vida estável, o sentido de paixão é
rebaixado a uma vulnerabilidade que destitui os sujeitos de suas reais possibilidades de
ascensão e poder.
Os fãs partem de uma certa nostalgia residual dos finais felizes, tanto que muitos
shippings são apenas desejos de um idílio amoroso que nem sempre é corroborado pelas
celebridades, seja em suas vidas pessoais seja em seus personagens ficcionais. Já os anti-fãs,
na nossa proposta de leitura, são aqueles que buscam as oposições, as contradições que o
próprio contexto engendra, para encenar um imaginário afetivo que é também um comentário
sobre a presença desses corpos nessa atual cultura de celebridades.
#FELENA E #JANÊS
O site possui 13 categorias de fanfiction, as obras mais populares contam com mais de
200 mil acessos e milhares de seguidores que acompanham as histórias. Além de uma
plataforma de publicações, constitui uma comunidade online com avaliações, interações,
pedidos de continuidade das histórias e sugestões entre autores e seguidores. Desta
comunidade profícua já emergiram algumas das fanfictions de casal mais populares do
consumo nacional.
Curiosamente, algumas das mais aclamadas estão situadas justamente no espectro dos
antifãs. Fanfictions de casais improváveis, que unem estrelas globais internacionais e
personagens da mídia televisiva nacional, ou até mesmo figuras que emergem do ciclo
comumente chamado de subcelebridades, pessoas que se tornam objeto de culto por se
tornarem virais em plataformas online, justamente no espectro do trash digital.
O GRITO DA PANTERA
Em 2015, ano da publicação da fanfic aqui analisada, Inês lançou o seu álbum Make
love, cujo single homônimo tinha como refrão “Make, make, make love, é muito melhor,
demorou!''. E versos como “vem linguando, vem chupando” e “tou vibrando, tou vibrando,
ai, tou molhada, tou gozando”. O fandom da dançarina garantiu dois milhões de visualizações
para o videoclipe no youtube.
Morin (1989) afirmava que, além de exemplos de estilo de vida, as estrelas afiguram
também como bens de consumo, podem ser utilizadas pelos novos meios de produzir
conteúdo. Por exemplo, é possível perceber as relações tensionadas na escolha dos
protagonistas – Selena e Faustão - tendo em vista os contrastes entre eles, como: idade,
homem mais velho com uma mulher mais jovem; estética; fama, ela é uma celebridade que
permeia o cenário midiático mundial de reconhecimento, ele tem seu status apenas no Brasil
e com a camada que consome a TV aberta dominical, ainda está para algumas pessoas em um
patamar de “gosto duvidoso”. Dentro dessa relação há uma inversão dos papéis. Nesse
contexto a fanfic funciona não apenas como paródia (JENKINS et al, 2014), mas como uma
metáfora de transgressão (HALL, 2009). A alta cultura do pop é subvertida pelo apelo
popular do programa de auditório, a musa jovem é deslocada ao papel de apreciadora do
homem vulgar. E o shipping se torna uma demonstração dessa quebra de padrões de uma
demografia e política afetiva de celebridades, mostrando que os fãs conhecem e dominam os
padrões e normas que constroem o estrelato, ao ponto de subvertê-los, invertendo
polaridades.
#Felena tornou-se um símbolo tanto da cultura dos memes como também da própria
noção shipping nas narrativas hipermidiáticas brasileiras. É tanto que, no intuito de infiltrar
espaços massivos, como a televisão aberta, os usuários de plataformas digitais fizeram o
próprio Faustão citar a Selena Gomez nos seus recados. O momento aconteceu no programa
Domingão do Faustão, em novembro de 2018, quando Fausto Silva agradece à “galera do
twitter” e à Selena Gomez, atendendo a um pedido desse público (UOL, 2021).
As redes sociais oficiais da Rede Globo também já desejaram um feliz aniversário
para Selena Gomez, postando uma foto de Faustão, além de “fãs” com o apresentador em que
pedem, em encontros com o apresentador, para ele, de algum modo, se referir ao
anti-shipping. Até o próprio filho deste, João Guilherme, comentou em 2019 sobre o meme
envolvendo seu pai.
Com a saída de Fausto Silva da Rede Globo no início de 2021, o shipping voltou ao
centro das narrativas da internet. Em forma de meme, várias postagens fizeram alusão a
#Felena com o fim do programa do apresentador na TV.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O anti-fã surge como forma política de resistência a cultura hegemônica midiática, por
meio da cultura participativa. E o anti-shipping reconfigura uma cultura de culto à
celebridade e do status na contemporaneidade. Através da repulsa a casais que são
idealizados pela mídia, o anti shipping, une casais nas fanfics a partir de figuras
marginalizadas como a de Inês Brasil, com o hollywoodiano Jared Leto. Ou casais
fisicamente opostos e distantes do ponto de vista das políticas de consumo, como o
apresentador Faustão e a atriz e cantora Selena Gomez. A partir dessas questões, torna-se
possível enxergar as políticas mobilizadas pelo fã e pelo anti-fã, no campo da estética, e o seu
papel participativo na cultura de celebridades midiáticas.
Referências
CHIN, Bertha. When Hated Characters Talk Back: Twitter, Hate, and Fan/Celebrity
Interactions. . In: CLICK, Melissa A. (Ed.). Anti- Fandom: Dislike and Hate in the Digital
Age. Nova York: New York University Press, 2019
HALL, Stuart. Para Allon White: metáforas de transformação. HALL, Stuart. Da Diáspora.
Identidades e Mediações Culturais. Beljo Horizonte: Ed UFMG/Humanitas, 2009.
JENKINS, Henry; GREEN, Joshua & FORD, Sam. Cultura da conexão: criando valor e
significado por meio da mídia propagável.São Paulo, Editora Aleph,2014
MONTEIRO, Camila Franco. Fãs, só que ao contrário: Um estudo sobre a relação entre
fãs antifãs a partir do fandom da banda restart. 2013. 207 f. Dissertação (Mestrado em
Ciências da Comunicação) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
MORIN, Edgar. As estrelas: mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1997.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: MAUD, 2002.
UOL. Globo usa meme para anunciar saída de Faustão. Disponível em:
https://natelinha.uol.com.br/televisao/2021/01/25/globo-usa-meme-para-anunciar-saida-de-fa
ustao-157566.php. Acesso: 12 set, 2021.