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Violência doméstica: um crime enraizado nas sociedades

atuais
O crime de violência doméstica é, nos dias de hoje, um fenómeno complexo e
extremamente preocupante, existindo em todo o mundo notícias diárias que não nos deixam
esquecer esta realidade cruel que tira a vida a tantas pessoas.
Apesar de ter a sua génese (ainda que com bastantes diferenças) no crime de “maus
tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges” previsto no
anterior Código Penal de 19821, concebido pelo Dr. Eduardo Correia em 1966, apenas foi
autonomizado em 2007 com a Lei n.º 59/2007 de 4 de setembro, encontrando-se previsto e
punido no nosso atual Código Penal, no artigo 152.º, inserido na parte especial, dentro do
Capítulo III respeitante aos crimes contra a integridade física.
Em geral, define-se violência doméstica como o crime originado por um
comportamento de violência ou um padrão de controlo coercivo exercido, de forma direta ou
indireta, sobre qualquer pessoa que habite no mesmo agregado familiar doméstico do
agressor (como o cônjuge, unido de facto, descendentes, ascendentes, etc.…), ou que, ainda
que não coabitem com o mesmo, sejam cônjuge, ex-cônjuge, familiar ou pessoa com quem
este mantenha ou tenha mantido uma relação amorosa ou análoga à dos cônjuges.
Este comportamento violento pode materializar-se de várias formas, tais como:
agressões físicas, englobando empurrões, pontapés ou estrangulamento; agressões
emocionais, geralmente com o intuito de incutir na vítima uma sensação de medo,
desproteção e inutilidade, sendo realizada, na maior parte das vezes, através de humilhações
públicas ou ameaças; agressões sociais, em que o agressor controla a vida social da vítima,
impedindo-a de se relacionar com terceiros ou através do controlo dos seus meios de contacto
(telemóvel, redes sociais, etc…); e até mesmo violência sexual, impondo a prática de atos
sexuais que a pessoa agredida não deseja. Para além das enunciadas anteriormente, existem
dois tipos de agressão que têm obtido grande expressão em termos de violência doméstica
nos últimos tempos, sendo elas a violência financeira, em que o agressor controla o dinheiro
e fontes de rendimento da vítima de forma a que esta se sinta dependente, e a perseguição,
também intitulada de “saltking”, que se traduz num comportamento que visa intimidar a
vítima e que, tal como o nome indica, engloba atos em que o agressor segue a vítima
constantemente ou controla sistematicamente os seus movimentos, quer esteja em casa ou
não.
Da análise do artigo 152.º CP podemos retirar que, ao contrário do que a
generalidade das pessoas pensa, não é necessário existir uma prática continuada destes atos
para que se esteja perante uma situação de violência doméstica (“(...) de modo reiterado ou
não(...)”).
Apesar de se encontrar previsto no capítulo respeitante aos crimes contra a integridade
física, não há ainda unanimidade quanto ao bem jurídico que se pretende tutelar com esta
incriminação. Neste sentido, existem autores, como Américo Taipa de Carvalho e Jorge dos
Reis Bravo, que defendem que o bem jurídico aqui em causa é a saúde numa perspetiva de
equilíbrio físico, psíquico e emocional, sendo esta a posição dominante.
Por outro lado, José Francisco Moreira das Neves considera que a incriminação visa
tutelar a integridade pessoal, enquanto que, na ótica de Paulo Pinto de Albuquerque, o bem
jurídico tutelado pelo crime de Violência Doméstica, traduz-se na integridade física e
psíquica, na liberdade pessoal, na liberdade e autodeterminação sexual e até na honra.
Por fim, o recente Acórdão do TRL de 21-10-2020, referente ao processo
689/19.7PCRGR.L1-3, entende que no crime de violência doméstica o “bem jurídico
tutelado é multifacetado, incorporando várias modalidades de proteção da vítima pois visa

1 Não obstante as ofensas corporais voluntárias já serem consagradas como crime desde o CP
de 1852.

1
Susana Alexandra Marques Alves, 3.º Ano Solicitadoria (Pós-Laboral), aluna n.º 17349
proteger a integridade e saúde, quer física, quer psíquica da vítima, a par de proteger a sua
dignidade e integridade moral como ser humano”, posição com a qual eu concordo uma vez
que considero ser a mais abrangente em comparação com as restantes, nomeadamente em
confronto com a posição em que se defende como bem jurídico tutelado apenas a saúde na
plenitude das suas vertentes que, na minha ótica, deixa um pouco de lado a questão da
humilhação que por vezes estas vítimas sofrem durante anos, esmagando quase por completo
a sua dignidade enquanto ser humano digno de direitos e proteção.
Quanto ao tipo de crime, trata-se aqui de um crime público e, como tal, não se
encontra dependente de queixa ou acusação particular, bastando apenas a sua notícia pelas
autoridades judiciárias ou policiais, bem como uma possível denúncia por parte de qualquer
pessoa.
A moldura penal para este crime varia entre um a cinco anos de prisão. Contudo,
existem certas circunstâncias que, se verificadas, provocam um agravamento das penas
referidas em função das características ou resultados da conduta em causa, podendo mesmo
vir a ser aplicada uma pena de três a dez anos de prisão.
Deste modo, é necessário destacar que o artigo 152 n.º 2 alínea a) do CP prevê a
agravação sempre que o facto seja praticado “contra menor, na presença de menor, no
domicílio comum ou no domicílio da vítima”. Tentou-se, com este agravamento de pena,
salvaguardar a posição dos menores e daqueles que coabitam no mesmo espaço que o
agressor ou que são atacados no seu domicílio porque, e talvez decorrente da chamada
política criminal, se considera que existe um aproveitamento da relação de confiança pré-
existente entre o agressor e a vítima e que, assim sendo, qualquer tipo de violência nestas
situações é ainda mais recriminável e indesejado. Também se entende o porquê de a presença
de menores no momento da prática das agressões constituir motivo de agravação: são
situações traumáticas para o menor e que podem, essencialmente, provocar danos irreparáveis
e influenciar o mesmo em termos da formação da sua personalidade.
Atualmente, a violência doméstica é um crime transversal e que, apesar do incremento
na consciencialização da população, ainda se encontra enraizada na sociedade e a ele ainda
permanece um grande preconceito.
Usualmente os media referem-se a este crime como violência de género, mas será
correta a utilização desta terminologia? Atente-se a que, segundo os dados constantes do
Relatório Anual de Monitorização de Violência Doméstica elaborado pela Secretaria-Geral
do Ministério da Administração Interna relativos ao ano de 2019, 82% das vítimas deste
crime pertenciam ao sexo feminino, permitindo determinar que a violência doméstica contra
os homens apenas representou, nos termos do relatório, 18% da totalidade dos casos. Ora, na
minha humilde opinião, é impossível negar-se que a maior parte das vítimas deste flagelo
pertencem ao sexo feminino, mas não considero que a expressão “violência de género” seja a
mais bem empregue.
Efetivamente, é necessário ter-se em conta vários condicionantes que podem ajudar a
justificar a tendência nestes números. Assim, há uma propensão para se incentivar as
mulheres que são vítimas de violência doméstica a denunciar o crime às autoridades.
Contudo, quando se trata de um homem a ocupar o lugar de agredido a situação muda: muitas
vezes os homens são pressionados a não denunciarem, devido ao machismo ainda enraizado e
ao estigma social que se encontra associado a estas situações. Não obstante, com a evolução
da sociedade, a mentalidade tende a evoluir de igual modo e tal já se começa a notar em
relação a este tem: as últimas estatísticas publicadas pela APAV demonstram que, no período
compreendido entre 2013 e 2018 foram contabilizados um total de 2745 homens adultos
vítimas de Violência Doméstica, sendo que de 2013 para 2018 se verificou um aumento de
33,4% no número de vítimas do sexo masculino.
Para terminar, deixo uma frase do grande filósofo Jean-Paul Sartre que muito se
adequa a este crime e com a qual concordo plenamente: “A violência, seja qual for a
maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota”.

2
Susana Alexandra Marques Alves, 3.º Ano Solicitadoria (Pós-Laboral), aluna n.º 17349

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