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síntese

,rio-grandense

i'
ui
Os pobres da cidade
Universidade
Federai
do Rio Grande
do Sul

Reitor
HélgioTrindade
Vice-Reitor
Sérgio Nicolaiewsky
Pró-Reitora de Extensão
Ana Maria de Mattos Guimarães

EDITORA DA UNIVERSIDADE

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(I

Editora da Universídad^FRGS • Av. JoãoPessoa, 415 • 900404)00 - Porto Alegre, RS


Fone (051) 224-8821 • Fax (051) 227-2295
Sandra Jatahy Pesavento

Os pobres
da cidade
vida e trabalho
1880-1920

J Editora da Universidade
Universidade Federaldo Rio Grande do Sul Síntese rio-grandense/18-19
© de Sandra Jatahy Pesavento
1"edição: 1994
Direitos reservados desta edição:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa: Paulo Antonio da Silveira


Editoração: Geraldo F. Huff
Revisão: Marli de Jesus Rodrigues dos Santos
Anajara Carbonell Closs
Mana da Graça Storti Féres
Composição: Fernando Piccinini Schmitt
Rubens Renato Abreu
Administração: Júlio César de Souza Dias

Sandra Jatahy Pesavento , _


Professora no Departamento de História da UFRGS. Mestra em
História pela PUCRS. Doutora em História pela USP. Publicações:
República Velha Gaúcha: charqueadas, frigoríficos e criadores —RS
1889-1930: História do Rio Grandedo Sul; RS: a economiae o poder
dos anos 30; RS: agropecuária colonial e industrializarão; A
Revolução Federalista; A Revolução Farroupilha; Historia da
indústria sul-rio-grandense; Pecuária e indústria. Formas de
realização do capitalismo na sociedade gaúcha no século XIX;
Burguesia gaúcha. Dominação de capital e disciplina de trabalho,
RS: 1889-1930; Emergência dos subalternos: trabalho livre e ordem
burgue.sa; Cemanos de República; Porto Alegre:espaços e vivência.^;
Borges de Medeiros; Memória da indústria gaúcha: RS 1889-1930;
De escravo a liberto: um difícil caminho; República verso e reverso;
O cotidiano da República: elitee povo na virada do século; O Brasil
contemporâneo; ós industriais da República; O espetáculo da rua;
500 anos de América: imaginário e utopia; História da A.s.semhléia
Legislativa do Rio Grande ao Sul: a trajetória do parlamento gaúcho;
Porto Alegre caricata: a imagem conta a história.

P472p Pesavento, Sandra Jatahy


,^ Ospobres daeidade: vida e trabalho - 1880-1920 /
' I Sandra Jatahy Pesavento. — Porto Alegre : Editora da
Universidade/UFRGS, 1994.
(Síntese Rio-Grandense; 18/19)

1. Soeiologia. 2. História - Rio Grande do Sul.


I. Título.

CDU301.17"1880/1920"
981.65"1880/1920"

Catalogação na publieação: Môniea Ballejo Canto. CRfi 10/1023

ISBN 85-7025-323-0
SUMARIO

Pobres, subalternos, populares, proletários:


os protagonistas da questão social urbana 7

O espaço da fábrica: entre o lucro e a disciplina 27

Eu, trabalhador: a construção da identidade operária . 65

O espaço da vida: onde moram os pobres 83

Os perigos da rua: na contramão da ordem 114

Referências bibliográficas 144


í í
POBRES, SUBALTERNOS, POPULARES,
PROLETÁRIOS: OS PROTAGONISTAS
DA QUESTÃO SOCIAL URBANA

Máquinas, inventos, ciência aplicada à tecnologia,


exposições universais, crescimento urbano e fabril, acele
ração dos transportes, surgimento de novos meios de co
municação. Já é lugar comum apontar o século 19 como
um momento surpreendentemente instigante para a análi
se contemporânea. Nele, o século 20 que finda se enxerga
e se entende, reconhecendo-se numa outra época. Posta
dos nos anos finais do milênio, ao olharmos para trás, quer
parecer que os dois finais de século finalmente descobri
ram aquele tal momento privilegiado de que falava Ben-
jamin (1989), da "dialética em paralisia", em que o passa
do e o presente se encontram em conjunção e em que é
possível ao presente enxergar-se no passado. Benjamin
dá a entender que as imagens construídas e os discursos
que se articulam numa época podem e se tomam legíveis
num outro tempo, quando se estabelece a sincronia e a
recognoscibilidade.
No século 19, as imagens do progresso e da civiliza
ção iluminam o universo cultural burguês, e a sociedade
fetichizada se oferece na sua melhor roupagem. As fan-
tasmagorias urbanas se impõem, fazendo da aparência e
da representação um mundo mais convincente que a pró
pria realidade. Nossa contemporaneidade tem, no século
passado, a rara oportunidade de contemplar, ex-post, o
processo de fetichização do miihdo em seu nascedouro.
Mas este é apenas um dos ângulos pelos quais é possí
vel voltar-se para o passado, buscando ver nele o presente.
Há outro enfoque que merece ser resgatado e que é
hoje questão up to date para a nossa civilização, urbana,
industrial, tecnologizada. Referimo-nos à questão social,
objeto de um discurso, espaço de uma prática e tema de
enunciação imagética.
A rigor, o século 19 "descobriu" o fato social, reco-
nhecendo-o como um problema, e fez dele um campo de
saber científico.
Entenda-se que, naturalmente, os fatos sociais ou os
problemas decorrentes das desigualdades sempre existi
ram, mas o que é inovador é a possibilidade "de ligar o
conhecimento teórico dos 'fatos sociais' a uma ação efi
caz sobre o mundo social" (Saiais, 1990, p.2).
Sem dúvida, o processo que dá margem a esta per
cepção é o próprio desenvolvimento do capitalismo e o
florescer da sociedade urbano-industrial, que tem um "ou
tro lado" a revelar: nas cidades, o contraponto da riqueza,
do luxo, da ostentação burguesa dá-se pela emergência
dos pobres, dos populares, dos subalternos, dos proletá
rios... Enfim, dos protagonistas da "questão social".
Eles lá se encontram, nas ruas, nas fábricas, visitando
as exposições industriais, contemplando eles também as
vitrines e lembrando, incomodamente, que as benesses da
sociedade modernanão eramequanimemente distribuídas.
Sem dúvida alguma, são cidadãos, mas de segunda
ordem, e se o discurso liberal afuma que todos os homens
são iguais, a dura realidade do mundo urbano demonstra
que "uns são mais iguais que os outros"'... Os ventos do
progresso;embalam a crença nas virtudes redentoras do
trabalho, mas a vida demonstra que há um abismo entre
alabuta/de um banqueiro e a de um operário riaforja.
A rigor, a sociedade capitalista gerou as condições
para que a questão social se coloque como problema e
indagação: o que fazer com os desafortunados e, princi
palmente, o que fazer para impedir que a questão social
degenere çin conflito e este em ameaça efetiva?
Enunciada enquanto problema, a questão social sus-

' Parodiando Lewis Carroll em Alice nopaís das maravilhas...

8
citará a elaboração de discursos científicos que a descre
vem, analisam e despertam estratégias de abordagempara
atingir resultados satisfatórios. É assim que se articula o
discurso médico e higienista, o discurso jurídico e crimi-
nológico, o discurso técnico e estético.
Pobres, sujos, malvados e feios? Os habitantes subalter
nos da urbe precisavam ser enquadrados dentro de uma or
dem supostamentemais ordenada, bela, higiênica,moral.
Tais discursos pressupõem intervenções de técnicos,
comoo médico, o higienista, o advogado, o engenheiro, o
urbanista, comumente atrelados ao Estado, ou ainda de
particulares, como o patronato, interessado ele também
na disciplinarização dos subalternos.
Práticas e discursos são, por sua vez, acompanhados
da elaboração de imagens sobre estes personagens: Zé
Povinho, o operário, o vagabundo, a prostituta, o trapeiro.
Há entre elas a presença dos conteúdos morais e das etnias
e raças envolvidas no processo de trabalho em formação,
assim, negros serão os criminosos, os ladrões, os vaga
bundos; mestiço ou mulato é o Zé Povinho, e de aparência
imigrante européia, o trabalhador.
As imagens, enquanto representação, enunciam um
ausente e reportam-se a valores subjacentes e práticas soci
ais não explícitas. A repontuação valorativa do trabalho e a
redefmiçãodos papéis para posições polares e antagônicas
é bem um exemplo: os negros são associados à vagabunda
gem e ao ócio e, conseqüentemente, propensos à contra
venção, e os descendentes de imigrantes têm a sua imagem
associada ao trabalho redentor, ao progresso e à honra.
Estereotipadas, tais imagens presentificam uma de
terminada faceta do real, tal como é vista e representada
pelos indivíduos. Há que ter em conta que a autenticidade
das imagens não se mede pela sua veracidade ou aproxi
mação com o "real concreto". As imagens precisam ter a
"aparência" da verdade, precisam Convencer que aquele é
o real. Desta forma, é na sua aceitação e capacidade
mobilizadora que se mede a eficácia das representações,
sejam elas imagens ou discursos.
Não é, pois, por acaso, que tais questões, enunciadas
enquanto problema, catalisam as atenções de um século
dominado pelo cientificismo. Enquanto a medicina se en
carrega de uma missão profilática - sanar os corpos, eli
minar miasmas, combater bactérias -, os ensinamentos de
Lombroso apontam para as "evidências científicas" dos
traços fisionômicos, que predestinam as pessoas a tal ou
qual comportamento desviante. Ou seja, os pobres pode
riam ser perigosos, não apenas em função de sua sujeira,
como focos potenciais de doenças (Faure, 1977), mas pe
las suas características genéticas, que os predispunham à
degeneração e a toda sorte de crimes (Dumont, 1984).
Embora possa se discutir a aceitação generalizada destas
falsas ciências - Lombroso, Lavater -, elas explicitam nor
mas de senso comum, sedimentam crenças antigas e as
mesclam com preceitos científico, encontrando a fórmula
mágica de sua difusão pela sociedade da época.
Chegamos assim à constatação de que tal questão - a
social - era uma ameaça à ordem, e seus protagonistas - os
pobres da urbe - eram, por si, perigosos. A colocação é
paradoxal, pois são justamente os desafortunados os que
necessariamente são obrigados a se converter em traba
lhadores para subsistirem, associação que se dá justamen
te na época da valorização do trabalho como crédito de
honra e dignidade. Mas os desvalidos só se converterão
em trabalhadores ordeiros se sobre eles exercer-se feroz
vigilância, disciplinando corpos e mentes, pois são gran
des os riscos de caírem na contravenção ou apresentarem
comportamentos desviantes. Como pobres e mais nume
rosos por definição, eles são potencialmente perigosos
(CHéyalier, 1984).
E preciso, pois, que o sistema aja, se antecipe, preve
ja para garantir o controle de tais elementos que contêm
em si o gérmen da rebelião.
A questão social é, pois, uma descoberta enquanto
problema e que demanda intervenções.
Mas tais personagens - os protagonistas da questão
social - são aparentemente múltiplos, ou pelo menos po-

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demser abordados sob diversos enfoques ou mesmo cate
gorias de análise.
Pobres,subalternos, populares, proletários têm todos
em comum o fato de serem habitantes da urbe, e a sua
inserção nestemeiose dar em termos de entrada por baixo
na escala social, em termos de subaltemidade.
Principiemos pelo resgate deste conceito - o de su
balternos - e por acompanhar a sua trajetória na cidade.
Economicamente, são pobres, e seu acesso ao consumo é
limitado. Mais do que isso, não têm meios de subsistên
cia, e, para eles, a moradia se configura como um dos
maiores problemas, logo abaixo da subsistência. Desem
penham as tarefas menos qualificadase podem engajar-se
ou não no mercado formal de trabalho. Ora são emprega
dos de alguém, tendo pois um patrão e dele recebendo o
seu sustento, pelo desempenho de uma tarefa regulamenta
da e controlada, ora são "avulsos", que vi
vem de "expedientes", biscates, pequenas tarefas. Politi
camente, são os tais cidadãos de segunda ordem, pouco
ouvidos pelas autoridades em suas reclamações e sendo
considerados suspeitos aos olhos da polícia.
O processo que lhes deu nascimento é o mesmo já
aludido anteriormente. A emergência do mundo urbano,
dimensão social onde melhor se configura a realização do
capitalismo, implica um duplo processo de integração e
confinamento dos subalternos. Por um lado, a concentra
ção de capitais e a reordenação das atividades produtivas
exigem o engajamento do trabalhador - o despossuído da
urbe, que tende a ser absorvido nas fábricas nascentes ou
nos setores de serviços necessários à vida urbana; por ou
tro lado, este contingente proletário é confinado a deter
minadas zonas do espaço urbano, as que circundam as fá
bricas, as mais distantes, mais baixas e insalubres.
Este processo, ao mesmo tempo econômico e social,
que define posições e enquadra indivíduos, impelindo-os
a uma convivência coletiva comum e próxima, é comple
mentada por uma série de medidas de natureza política,
administrativa e ideológica, que se destinam a impor uma

11
moral e uma ética adequadas ao trabalho. O maior bem a
preservar passa a ser a propriedade e o maior crime a com
bater é o delito contra a propriedade.
Neste contexto, há que destacar a tal vivência coleti
va, comum e próxima, que nos permite identificá-los como
um grupo social distinto e perceptível pela sua situação
econômica, posição social e reconhecimento político: eles
são os pobres, subalternos, perigosos.
Mas talvez este conceito - na verdade, elástico e não
definitivo - pudesse ser colocado lado a lado com outros
que também poderiam designar estes mesmos agentes so
ciais. Por que não populares? Ou ainda povo, designação
genérica pela qual são arroladas as massas, contingente
social formado por uma variedade informe de tipos soci
ais, "sem rosto", sem "organização" maior e sem também
maiores laços de identidade?
Rudé, em sua obra sobre as "multidões", compara
este conceito com o de "povo" ou "massa", pretendendo
tirar dele a sua representação abstrata e às vezes ideali
zada, que ora descamba para uma postura romântica de
identificar o povo como o único agente revolucionário
(Michelet), ora cai no estereótipo de menosprezar a ação
da turbamulta ou população, desvirtuando-o de qualquer
sentido (Burke).
Da mesma forma, há uma visualização idealizada de
que o povo é "o vivo, o generoso, o primitivo, o inocente,
o irracional, uma natureza-cultura, espontânea e coletiva"
(Crouzet, 1975, p.3).
Há, pois, uma representação atribuída ao povo que
não coincide com o seu suporte. Se endossarmos seu
espoün^taneísmo e ação algo infantil e imatura, o que fazer
com o povo em revolta que monta barricadas nas ruas, o
povo-trabalhador que opera nas máquinas e faz greve e
sabotagem, o povo-canalha, que vagueia pelas vielas es
curas à noite? Também representação estereotipada, este
é um ppyo de quem os cidadãos desconfiam e/ou temem.
Conceito amplo, "quase classe", mas se configuran
do algomais do queela,o queafinal seráo povo?Conclui

12
Crouzet sobre as representações que dele se fazem no sé
culo 19:

[...] o povo nào estará jamais no povo, mas num "outro"


social, designado, senào foijado pelo intelectual como um
mundo de outrora, um duplo obscuro, um objeto teórico ou
desejado, que sempre permanecerá entre a promoção demo
crática e a manutenção em estado bruto de antes. Conceito
de resto englobante por definição, de natureza essencialmen
te organicista e se apresentando como a unidade prometida
ou perdida: jamais segundo a infinita diferenciação, ou o
explodir dos indivíduos e dos grupos sociais. Assim o povo
não é jamais "meu semelhante", "meu irmão"; ele é outro
incompreensível e irredutível (Crouzet, 1975, p.3-4).
Ou seja, a categorização do povoé, semdúvida, mais
ampla que a da classe, e se aproximade certa forma da de
subalternos. A subaltemidade leva a pensar em relações
de subordinação e dominação, em exclusão política, em
inserção por baixonaestrutura social, emausência ou pre
sença pouco significativa de direitos frente o grande
acúmulo de deveres.
Já a conceituação de povo, que sem dúvida alguma
tem um perfil socioecônomico similar, incide por umaou
tra abordagem. Não estabelece claramente um recorte
classista: os operários fabris, porexemplo, fariam parte do
povo, mas com ele não se confundiriam. Por outro ládo, o
povo não apresenta um grau de identidade, tal como pode
vir a ocorrer com o proletariado urbano-industrial. Aliás,
frente a operários que, num processo de conscientização
classista, se autodefinem como o proletariado, o povo será
o outro, o mais além. Designação genérica, é difícil captar
sua voz, mas não a sua prática. Não é dotado de uma orga
nização interna maior, mas isto não quer dizer que suas
manifestações sejam absolutamente espontâneas e sem sen
tido. Os trabalhos de Rudé (1981) e de Christopher Hill
(1987) têm, por sua vez, insistido na identificação das in
tenções e na lógica interna da articulação de tais grupos. Os
movimentos populares seriam, em última análise, ensaio
ou momentos de construção e conscientização da classe.

13
Um outro elemento se acrescenta neste ensaio de
abordagem das várias categorias de protagonistas da ques
tão social. O designativo de popular não se trata de um
mero derivado de povo, mas, a nosso ver, acrescenta um
novo viés de abordagem; a questão da cultura. Entende
mos a cultura como um sistema simbólico de significados
socialmente estabelecidos, que possui uma coerência mí
nima (Geertz, 1989). Ora, em princípio, pode ser dito que
cada grupo social pode construir a sua rede de significa
dos simbólicos, mas isto não deve levar a acreditar que os
mesmos sejam incomunicáveis e não se interinfluenciem.
Não há uma cultura popular pura, assim como não há
uma cultura de elite infensa às manifestações culturais do
povo. Preferimos endossar a postura de Cario Ginzburg
(1987), quando nos fala da circularidade das culturas,
interpenetrando-se.
Utilizando o termo "classes subalternas" como
equivalente a "classes populares", Ginzburg concorda com
Bakhtin (1970)quantoà circularidade e o influxo recípro
co entre a cultura subalterna e a cultura hegemônica.
Há que repararque o conceito de classes subalternas
Ginzburg vai recolherem Gramsci, que o define como as
classesexcluídas do sistema hegemônico, que mantém com
as classes dominantes relações de dominação/subordina
ção, de nítida conotação coercitiva (Portelli, 1979, p.89).
A rigidez do esquema é atenuada pela possibilidade das
práticas advindas das relações de forças que se travam,
permitindo que tanto os subalternos sejam absorvidos na
Sociedade política quanto sejam capazes de forçar a ação
dos grupos dirigentespara além de suas expectativas (caso
^^clássico dos jacobinos na França de 1789). Assegura
Gramsci, contudo, que:
As classes subalternas, por definição, não se unificaram e
não podem unifícar-se enquanto não possam converter-se
em Estado; sua história, portanto, está entrelaçada com a da
sociedade civil, é uma função desagregada e descontínua
da história da sociedade civil e, através dela, da história dos
estados ou grupos de Estado (Portelli, 1979, p.90).

14
Algumas considerações impõem: a de que as clas
ses subalternas, apesar de deiK)minadas "classes", consti
tuem uma espécie de estágio pré-consciência de classe e
apresentam pouca coesão e.identidade como tal; a de que
a relação política de forças lhe confere um papel de grupo
de pressão significativo, que pode se infiltrar no sistema'
ou mesmo levá-lo a uma alteração de rota. Finalmente,
juntando as preocupações de Ginzburg e Bakthin, deve-se
ter em vista que, no plano das representações simbólicas
pertinentes ao domínio da cultura,os subalternos/popula
res tanto incorporam valores, crenças, ritos e hábitos da
classe hegemônica (por efeitos de coerção e/ ou da aqui
escência) quanto exportam elementos culturais "popula
res"para a culturadominante, que os absorve e metaboiiza.
Ficam, pois, descartadas tanto a possibilidade de
encontrarmos uma cultura pura deste ou daquele estilo
quanto a de resgatarmos uma ação autônoma ou uma voz
dos "subalternos - oprimidos - dominados - populares"
que fale por si, sem injunções ou pressões. Depoimentos
em jornais ditos populares ou em processoscriminaisnão
se furtam aos constrangimentos impostos pelo meio e cir
cunstâncias, nem pelo aspecto depurativo que pode estar
presente em toda publicação.
O processo, emsi, vemresgatar as múltiplas clivagens
e entrecruzamentos que se dão entre práticas e representa
ções dos agentes da aludida questão social.
Talvez todas essas considerações possam dar a idéia
de que estejamos andando em círculo e aflorando ques
tões que não se resolvem. São, todavia, os diversos olha
res através dos quais podemosabordar o real e que, em si,
não se configuram como excludentes. Como num jogo de
espelhos, eles respondem uns aos outros, e não há a preo
cupação de que um enfoque seja mais "verdadeiro" do
que os demais.
Mas há talvez unia categoria cujo contorno é
aparentemente mais preciso, tem sido exaustivamente es
tudada e se enquadraria, de certa forma, aos agentes urba
nos da questão social, ou pelo menos à parte deles.

15
Referimo-nos ao proletariado urbano industrial ou, mais
especificamente, à classe operária.
Sem dúvida alguma, o proletariado tem sido um tema
de predileção por parte dos historiadores marxistas, anti
gos e recentes. A explicação para isto chega a ser dispen
sável; afinal, a situação da classe trabalhadora no sistema
capitalista esteve na origem tanto das reflexões teóricas
quanto na prática dos militantes de esquerda.
Não é por acaso, pois, que as primeiras especulações
sobre o processode constituiçãoda classe operária remon
tem aos chamados "clássicos", Marx e Engels.
Cabe a Marx (1978) ter enfocado a formação do pro
letariado em termos de um processo histórico, marcado
pela violênciae pela expropriação,a que chamou de "acu
mulação primitiva".
Como o próprio nome indica, tratava-se de uma acu
mulação prévia à instalação do modo capitalista de pro
dução, funcionando como um ponto de partida a acumu
lação capitalista propriamente dita. Em outras palavras, a
análise de Marx indica que a separação entre o capital e o
trabalho, ou o processo de constituição do capital e do
trabalho, são condições prévias à construção do novo modo
de produção. Neste sentido, o processo de acumulação/
expropriação é, ao mesmo tempo, um processo constitutivo
das personas distintas de realização do capitalismo. Uma
vez em desenvolvimento, o capitalismo se converte num
processo de reprodução de relações sociais, ou de
reatualização daquelas condições básicas de seu funcio
namento.
contribuição de Marx, contudo, não se cinge aos
mecanismos propriamente econômicos que propiciam, de
um lado, a concentração dos meios de produção e de sub
sistência e, de outro, a compulsão à venda da força-traba-
Iho. Marx alerta para o uso da força do Estado como .
interveniente neste processo, bem como na introspecção
moral de uma nova ética, que condena a vagabundagem e
estabelece formas de coerção extra-econômica dos indi
víduos ao trabalho.

16
Trata-se de uma análise histórica, elaborada a partir
das condições concretas objetivas da Inglaterra, e que de
finiu o padrão clássico da formação do capitalismo e da
classe trabalhadora. Às análises de Marx vieram se acres
centar as contribuições de Engels.
Como refere Hobsbawn na introdução à obra de
Engels(1975), este constitui-seno primeirolivroque abor
da a classe operária no seu conjunto e das conseqüências
sociais e econômicas do processo de industrialização. Mais
uma vez trata-se de um estudo histórico a partir das condi
ções objetivas da Inglaterra. Estabelecendo uma crítica da
sociedade burguesa, Engels busca desmontar a lógica do
capitalismo, desvelando os mecanismos de dominação/
subordinação que se impõem desde a fábrica e dela extra
polam para o conjunto da sociedade. Emerge da obra um
dramático quadro das condições de vida e trabalho do pro
letariado inglês, no qual o autor lida com a dialética da
coisificação do homem e da sua humanidade.
Revelando posições finalistas de análise, mescladas a
um etapismo evolucionista típico do século 19, tem-se,
com Marx e Engels, os contornos básicos de uma análise
histórica da formação da classe trabalhadora, tendo na sua
origemum processode expropriação/acumulação e no seu
desenvolvimento a manutenção de um processo de domi
nação/subordinação.
Suas análises, tomadas também elas "clássicas" den
tro do marxismo, teriam prosseguimento em termos qua
litativos, com as contribuições dos historiadores marxis
tas ingleses. Entendendo o quadro teórico marxista tam
bém ele como um suporte científico em contínua constm-
ção, posicionaram-se tanto contra o mecanicismo e o
reducionismo economicista da tradição leninista-stalinista,
quanto ao idealismo conceituai sem correspondente lastro
empírico das análises althusserianas.
Postulando a historicidáde da produção do conheci
mento científico, o resultado das suas investigações im
plicou um avanço tanto em termos de conceitualização
quanto no do próprio conhecimento das alianças, rupturas

17
e equilíbrios que presidem o "acontecer histórico". A aná
lise de tais autores, em seu conjunto, é eminentemente
classista ou social, na medida em queo seuobjeto de aná
liseé o homem,agindo em relaçãoa seus semelhantes, na
dinâmicadas relaçõessociais que se fazem e desfazemno
tecer da história.
A definição de Thompson é extremamente rica:
A classe acontece quando alguns homens, como resultado de
experiências comuns, sentem e articulam a identidade de seus
interesses entre si e contra outros homens cujos interesses
difereme geralmentese opõem aos seus (1987, v.l, p.lO).
Ou seja, o autor afirma que "a classe é definida pelos
homens ao viver a sua história, o que é, afinal, a sua única
definição" (p.34). Logo, a classe existe como prática his
tórica e se constitui no próprio acontecer da história dos
homens, enquanto processo. Sabe-se que existe uma clas
se quando as pessoas se comportam de maneira classista,
o que implicaria a capacidade de dar respostas semelhan
tes em situações similares, ou ainda em criar instituições e
Culturas de conotação classista.
Este tipo de análise representou um avanço sobre uma
definição mais estática, de inspiração leninista, que
delimitaria a existência da classe a partir da posição ocu
pada frente aos meios de produção, na estrutura econômi
ca. A conceitualização de Thompson é mais dinâmica e
instigante para a investigação, pois pressupõe entender a
classe enquanto realização de uma prática classista, com
um conteúdo histórico real e empiricamente resgatável.
Em termos da formação da classe trabalhadora, os
estudoáfÜe Thompson avançam no sentido de reconstituir
estaexperiência classista (e, portanto, de formação da pró
pria classe), utilizando novos espaços e novas preocupa
ções. Entendendo que a dinâmica das relações na socieda
de capitalista se apóia no tripé dominação/subordinação/
resistência, Thompson vai tentar surpreender estas práti
cas no cotidiano do proletariado, resgatando empirica
mente suas condições de vida e de trabalho, intramuros da

18
fábrica e fora dela. Trata-se de um cotidiano sistêmico, no
qual as práticas adquiriam sua significância em relação ao
contexto mais amplo no qual se inserem. Desta forma,
Thompson resgata o dinamismo da formação da classe ope
rária rumo a sua identidade (consciência de classe), mas,
para ele, o importante é o processo, e não o clímax, que é
difícil de determinar. Logo, posiciona-se numa relação
eqüidistante de análises que categorizam a classe segundo
sua situação na produção ou que a visualizam enquanto
tipo ideal, considerando a sua existência só a partir da
efetivação de uma consciência plena dos seus interesses.
Da mesma forma, Hobsbawn (1987, p.l3) destaca a
importância dos estudos sobre a classe operária desloca-
rem-se das análises que privilegiam a organização sindi
cal e política, concentrando-se no dito "movimento ope
rário" e na sua "ideologia". Embora considere que esta
seja uma dimensão essencial da classe trabalhadora, o his
toriador chama a atenção para a importância da análise
incidir sobre outras instâncias. Assim, Hobsbawn celebra
o fato de que a históriaoperáriatenha ampliadoo seu cam
po de ação e o seu método, passando para constituir-se
numa história social mais ampla.
Adotando a concepção do "fazer-se" da classe operá
ria, tanto Thompson como Hobsbawn realizam uma aná
lise classista da história e valem-se desta categoria para o
estudo de períodos anteriores à constituição do capitalis
mo. No tocante à classe trabalhadora, para Thompson esta
pode ser chamada como tal (proletária) ou como "classe"
desde os momentos iniciais de sua formação quanto de
pois do seu desenvolvimento. Ou seja, se, como categoria
histórica, a formação de uma classe é um processo - um
contexto em contínua transformação -, vale a nomencla
tura tanto para o seu momento inicial quanto para o seu
clímax. Como refere Hobsbawn:

A formação de qualquer classe não é exatamente um pro


cesso com início, meio e fim. [...] As classes nunca estão
prontas ou acabadas ou adquirem a sua função definitiva.
Elas continuam a mudar (1987, p.270).

19
As divergências entre Thompson e Hobsbawn não se
dão em termos teóricos quanto ao fazer-se da classe, ou
frenteà necessidadeda categoriapossuir uma consciência
de classe para ser considerada "pronta". Concordam ain
da, como se viu, com a elasticidade do conceito para além
dos limites da sociedade industrial ou para a delimitação
histórica de sua emergência, como classe operária na so
ciedade britânica do início do século 19. A discordância
se revela quando Hobsbawn aponta que a análise de
Thompson, enquanto formação da classe trabalhadora, se
encerra em 1830, quando a mesma só se encontrava "fei
ta" na década de 80 do século passado, quando se teria
delineado uma cultura de um modus vivendi operário.
A divergência quanto ao clímax de um processo, con
tudo, não invalida a identidade de vistas no tocante a uma
série de contribuições fundamentais que unem os marxis
tas não-ortodoxos ingleses na sua análise de formação da
classe trabalhadora: a dilatação do campo de estudo da
prática classista para instâncias culturais, político-ideoló-
gicas e do cotidiano, a ênfase no suporte empírico a um
corpo conceituai, o entendimento de que a teoria é passí
vel de contínua renovação, a conseqüente maior elastici
dade dos conceitos, etc. Reafirmam que a história é
globalizante, a realidade é uma totalidade articulada de
instâncias e a classe operária, como categoria relacionai,
não pode ser estudada isoladamente das demais dimen
sões e atores da vida social.
Esta postura renovadora e crítica do próprio marxis
mo, que se soma às melhores contribuições gramscianas
sobre a história,^ estimulou a busca de contínuas reinter-

^Embora Antônio Gramsci não tenha se detido na análise da


classe trabalhadora, crê-se que as contribuições deste pensador
para a renovação do marxismo foram, de todo, fundamentais.
Filiando-se à corrente crítica do mecanicismo stalinista e do
dogmatismo de posições economistas e redutorasda complexi
dade da vida social, Gramsci contribuiu em muito para o
desvelamento das articulações dopoder dasociedade burguesa.

20
pretações do processo histórico, encaradas não só como
possíveis, mas sobretudo necessárias.
Como refere Christopher Hill, outro historiador do
grupo inglês:
A história precisa ser reescrita a cada geração, porque em
bora o passado não mude, o presente se modifica, cada ge
ração formula novas perguntas ao passado e encontra no
vas áreas de simpatia à medida que reviva distintos aspec
tos das experiências de suas precedessoras (1987, p.32).

Esta postulação por novas preocupações, distinguin


do num acontecimento ou num processomuitasvezes des
crito como um novo olhar ou um novo ator, e que teria
levado Hill a preocupar-se com uma outra leitura de his
tória. Trata-se de não mais resgatar os "oprimidos organi
zados", mas de salvar aquelaspropostasmenores, vencidas,
marginais e sufocadas mesmo no contexto dos subalter
nos. Trata-se até de trazer à luz aquilo que, segundo a óti
ca de seu tempo, foi considerado irrelevante ou lunático
para a época. Segundo o autor, "o lunatismo, assim como
a beleza pode estar nos olhos de quem vê" (p.33).
Não se trata, em absoluto, de cair numa história contra-
factual, do "não-sido", e, neste sentido, Hobsbawn (1987)
alerta para os riscos destas empreitadas, afirmando que "a
história é o que aconteceu,e não o que poderia ter aconte
cido".
Suavizemos a afirmação. O que postula a nova ten
dência é o resgate das idéias e acontecimentos secundá
rios que não chegaram a se concretizar, não só por serem
vencidos pelas propostas dominantes, mas por serem mes
mo derrotados entre os vencidos. Crê-se que se pode co
locar a pergunta: se as coisas poderiam ter-se passado de
outro modo, e se utopias não fazem parte da história? A
recuperação destes autores aparentemente sem voz - o pro
letariado não-sindicalizado e apartidário, ou aqueles não

alargando a dimensão do político, em especial, e da instância


supraestrutural, como um todo.

21
engajados formalmente no mercado de trabalho - é sem
dúvida instigante. Seriam outras dimensões de umaanáli
se classista.A rigor, esta preocupaçãocom um outro tem
po e com a reconstituição da história pelo avesso tem sua
inspiração em Benjamin (1986).
Walter Benjamin estabeleceu um conjunto deelemen
tos de crítica ao exercício da história para contrapor sua
nova visão: condena o uso teleológico do materialismo
histórico, marcado pelo etapismo e pelo finalismo deuma
evolução predeterminada e ataca o historicismo que, ao
justapor e somar fatos, estabeleceu um tempo homogêneo
e vazio, noqual o discurso dovencedor encadeia osacon
tecimentos. Aomesmo tempo, aponta que a idéia do pro
cesso se manifesta tanto na vertente marxista quanto na
historicista e, por vias diferentes, esta idéia nuclear fata-
lista impediria odesvelamento do passado. Àtais corren
tes Benjamin sepropõe a "escovaráhistóriaa contrapêlo",
trazendo à luz um outro tempo, um outro espaço, outros
agentes e outros temas. Nasuaconcepção, o queexiste no
presente se liga ao passado e nada pode ser perdido. Se
tudo é significante, Benjamin postula o resgate dos "ca
cos da história", reconstituindo o passado em função do
presente. Segundo o pensador da Escola de Frankfurt, só
o materialismo dialético daria esta chave para desvelar a
trama burguesa da história.
Verdadeiro pai da "história dos vencidos", Benjamin
afirma que "o sujeito do conhecimento histórico é a pró
pria ciasse combatente e oprimida" (1986, p.228).
Em suma, tem-se delineadas algumas vertentes da
inflexão presente no estudo da classe operária. Por um
lado, a releitura dos clássicos feita pelos historiadores
ingleses indicando um caminho diverso para a compre
ensão da classe proletária no seu "fazer-se" e centrali
zando a análise das dimensões do cotidiano (condições
de vida e trabalho) e da cultura. Por outro, embora não
tendo por objeto de estudo a análise propriamente dita
da classe trabalhadora, as reflexões de Benjamin sobre a
história e o resgate das visões vencidas representam uma

22
As lavadeiras do Riacho, na virada do século 19.
estimulante trilha de investigação das camadas subalter
nas, dos populares, dos pobres da urbe.
A essas contribuições somaram-se as pesquisas e aná
lises dos historiadores franceses, do porte de Michelle
Perrot, Yyes Lequin, Roland Trempé, Lion Murard, Patrick
Zylberman (Perrot, 1974).
Os franceses ingressaram na "revisão da história
operária" partindo de certos pressupostos fundamentais:
os estudos dos ingleses se achavam em fase de pesquisa e
reflexão mais avançada e a situação específica da França
era quantitativa e qualitativamente diferenciada da Ingla
terra. Logo, suas análises vão atentar para a diversidade e
a complexidade, os avanços e os recuos da formação do
proletariado francês, que, por sua vez, acompanha tam
bém a diferenciação do processo de industrialização ocor
rido na França (Lequin, 1978).
Tal como os ingleses, o enfoque da abordagem fran
cesa se voltou para além do movimento operário organi
zado e formal, em partidos e sindicatos. As preocupa
ções básicas foram a própria origem do proletariado se
gundo classe, estabelecendo as indagações sobre a re
gião de onde provinham, qual a sua inserção social e pro
fissional anterior, quando realizaram o ingresso na nova
condição, etc. Da mesma forma, suas pesquisas se orien
taram para as condições em que se realizava o trabalho
na fábrica, sob os mecanismos de dominação patronais,
e para o cotidiano operário extramuros da usina, atingin
do a vida privada e os espaços públicos por onde circu
lava o operariado. Por último, a historiografia francesa
'sobre o proletariado urbano industrial rediscutiu o pró
prio processo formativo da categoria - em termos de uma
progressiva consciência de sua condição, de sua forma
ção na sociedade, de sua individualização como grupo
distinto diante dos demais segmentos sociais (Trempé,
1976). Paraproceder a esta análise, os historiadores fran
ceses contaram com a sólida formação da École des
Annales, na sua preocupação e seu rigor no trato das fon
tes, bem como com os recursos técnicos de uma história

24
quantitativa.^ Em termos teóricos, os pesquisadores fran
ceses tanto se apoiaram na tradição marxista de um Pierre
Vilar quanto no próprio revisionismo dos historiadores
ingleses, e a essas contribuições se somaram os estudos
de Foucault sobre o poder disciplinar."*
Ao mesmo tempo individualizada e globalizante, a
historiografia francesa sobre a classe operária manteve-se
num meio termo entre as especificidades da França sobre
o processo inglês e o quadro teórico mais amplo para re
ferência de uma análise classista da sociedade.
Aos estudos monográficos e setoriais sobre o proleta
riado somaram-se obras de caráter mais geral e/ou de sín
tese.^
De um modo geral, pode-se verificar a prioridade dos
ingleses em termos de inovação teórico-metodológica ante
os franceses, no que toca a uma reorientação dos estudos
da classe operária. Esta constatação, contudo, não invali
da a solidez e seriedade da vasta publicação francesa no
domínio da história do proletariado.
Na busca de uma aproximação teórica para este es
tudo, resgatam-se, como fundamentais, os pressupostos
que permitem avaliar uma classe pelo seu fazer-se. Re-
monta-se uma vez mais a Thompson, quando ressalta a
importância da experiência de classe e da consciência de

^ Como admite Michelle Perrot na introdução de sua obra


Jeunesse de greve (p.l2), a influência da obra de Ernest
Labousse, com suas idéias econômicas, seu recurso à estatísti
ca e às "enquetes", permitindo correlações e fixando seme
lhanças, foi de todo inestimável para toda uma geração de his
toriadores.
^A referência é feita especialmente a obras de Foucault, em
que realiza incursões históricas para análise da questão da domi
nação, tais como Surveiller et punir. Naissance de La prison
(Paris, Gallimard, 1975).
^Como é o caso, por exemplo, do livro de Gérard Noiriel {Les
ouvriers dans Ia sodeté française, XIX® et XX® siècle. Paris:
Seuil, 1986 ), como obra de síntese, ou os muitos artigos de
Michelle Perrot em revistas especializadas sobre o trabalho
feminino.

25
classe, processos estes definidos no "acontecer" da histó
ria. Recupera-se, com isto, a práxis social como o funda
mento da história e da contextualização de uma classe,
remetendo, com propriedade que recupera a tarefa do his
toriador, à interação entre o teórico e o empírico. A cons
tituição do operariado enquanto classe é um processo que
acontece no agir dos homens e que não tem a fábrica como
o seu locus exclusivo de análise. A elasticidade do con
ceito permite ver, junto aos operários, mas sem com eles
se identificar integralmente, o espectro mais amplo dos
subalternos e pobres da cidade.
Trata-se, portanto, de buscar os atores sociais em ins
tâncias não apenas operário-fabris, mas em todo o lugar
onde as classes subalternas ou populares, livres e proleta-
rizadas, possam encontrar espaço de atuação, numa so
ciedade na qual começam a se afirmar a ordem industrial
e o poderio burguês.
Em certa medida, este estudo é um desafio e um con
vite prazeroso de continuar através de um caminho já tri
lhado muitas vezes, mas tentar percorrê-lo agora sob um
outro olhar.

26
o ESPAÇO DA FÁBRICA:
ENTRE O LUCRO E A DISCIPLINA

As condições de trabalho na fábrica tiveram nas fontes


do chamado marxismo clássico (Marxe Engels) os funda
mentos de uma visão catastrófica da Revolução Industrial.
Afinal, o "laboratório secreto da produção" local onde se
gestava a mais-valia, só podia ser pintado com cores som
brias. Os relatos de Marx são, nesse sentido, bastante
elucidativos e, em dado momento de sua análise, o autor se
pergunta se estaria Fourrier errado quando chamava as fá
bricas de "penitenciárias abandonadas" (1971, p.489). Da
mesma forma, os relatos de Engels enfatizama desumani-
zação do processo de trabalho fabril,responsávelpela "des
truiçãolenta, massegurada natureza humana"(1975, p.264).
À visão das"satânicas fábricas escuras" seguiu-se uma
concepção anticatastrófica e desenvolvimentista do pro
cessodesencadeado pelachamada"revoluçãoindustrial".
Na posiçãode um Rostow (1961) ou de um Ashton(1977),
a ênfase é dada nas taxas de crescimento, na renovação
tecnológicae na conseqüente elevaçãodo padrão de vida.
Propondo-se a revisar esta questão, as análises dos mar
xistas ingleses não-ortodoxos (ThompsOn e Hobsbawn)
de uma certa forma retomam à linha dos clássicos, con
cluindo pela condição altamente desgastadora da força-
trabalho propiciada pelo mundo fabril.
Afirmando sua posição com ampla pesquisa empírica,
Thompson conclui que o sistema fabril, como empreendi
mento em larga escala, com suas máquinas e sua discipli
na, "contribuiu para a transparência do processo de ex
ploração e para a coesão social e cultural do explorado"
(1987, p.23). Logo, o trabalho na fábrica é elemento cen-

27
trai da determinação da condição operária, pondo a nu a
situação de exploração econômica e opressão política.
Encontramos, portanto, em Thompson, a solidez de um
estudo empírico que revela os mecanismos ora violentos e
coercitivos de subordinação dos trabalhadores ao sistema
fabril, ora consensuais e ideológicos, que veladamente bus
cam conformar um operariado dócil e submisso. Neste sen
tido, a disciplinado trabalhoencontrana obra de Thompson
um local privilegiado, assim como a moção de que a intro
dução das máquinas é um processo ao mesmo tempo eco
nômico, social, político e ideológico de dominação. Na
opinião de Thompson, a imagem da "fábrica tenebrosa e
satânica" domina a reconstrução visual da Revolução In
dustrial: construções similares às de prisões, trabalho in
fantil, exploração das mulheres, aglomerações de traba
lhadores em cortiços, regulamentos rigorosos, ambientes
infectos, jornadas exaustivas,dura fiscalização de corpos e
tentativa do controle das mentes operárias.
Outra contribuição do historiador inglês ao entendi
mento do sistema de fábrica dá-se pela análise da "noção
de tempo útil", introjetada na consciência dos trabalhado
res. Na opinião de Thompson, a fábrica introduz uma nova
moral do trabalho e uma nova medida do tempo. A figura
do relógio passa a regular o ritmo do trabalho industrial,
as horas de entrada e de saída da fábrica e os períodos de
descanso, a hora de acordar e a hora de dormir, funda
mentais para quem, pelo novo sistema, não podia "chegar
atrasado" ao serviço.
Como Thompson enfatiza que o processo de domina
ção/subordinação tem a sua contrapartida na resistência,
naturalmente não escapa da sua análise a dimensão da re
sistência dos trabalhadores à disciplina do tempo. Por ou
tro lado, acentua o historiador, o processo de dominação
atingiria a sua forma mais acabada quando se introjetasse
em cada trabalhador o seu próprio relógio moral interno.
Com uma preocupação próxima a dos historiadores
ingleses - a da análise dos mecanismos de dominação/su
bordinação/resistência presentesno sistema fabril - encon-

28
tra-se a contribuição de Yves Lequin (1982).
Lequin nos fala das inúmeras resistências ao enclausu-
ramento, à disciplina e à monotonia que o novo sistema
impunha. Para muitos patrões, a empresa se apresentava
como o microcosmo da sociedade e que por isso devia re
produzir as suas harmonias necessárias, físicas e morais.
Tal como uma grande família regida pela providência de
um pai-patrão, a fábrica almejava estreitos vínculos e obri
gações recíprocas. Forma edulcorada de preservação da
mão-de-obra e suavizadora dos conflitos sociais, o paterna
lismo fabril se dispunha não só a "assegurar o bem-estar
material dos trabalhadores, mas também protegê-losda ig
norância, do esbanjamento, da extravagância e da imobili-
dade"(1982, p.349). Neste sentido, formas simbólicas de
resistências podiamser captadas na práticado esbanjamen
to nas refeições festivas, no luxo ostentatório do vestir ope
rário nas festas populares. Naturalmente, tais práticas não
são a norma e pode prevalecer a aceitação à disciplina im
posta, a opção pela segurança do trabalho em troca de
maior liberdade anteriormente gozada.
Por seu lado, Michelle Perrot (1983) estabeleceu a
usina como um mundo fechado, um espaço patronal pri
vado, regido por normas próprias e subtraído pelos em
presários dos olhos dos observadores. No século 19, a
entrada de inspetores e outros agentes do poder público
não se dava de maneira aberta.
Mundo fechado, espaço de transformação material e
organização da produção, a usina é ainda o teatro das rela
ções sociais, onde os operários passaiíi um longo tempo'
da sua vida. Para Perrot (1978) a fábrica é formada tanto
pela concentração quanto pela mecanização, e dois fato
res modelam seu gerenciamento: a disciplina e a técnica.
Para a autora, no domínio da disciplina, do estabelecimento
da vigilância, a fábrica nada inventa: . ^
A originalidade da usina está na integração da técnica. A
máquina modifica sua estrutura e sua morfologia, ao mes
mo tempo que as formas de trabalho e sem duvida de
disciplina.(Perrot, 1978, p.4)

29
Areorganização do espaço obedece às exigências da
racionalização, oque se faz acompanhar da multiplicação
das proibições. Amáquina reina. Ela se propõe animizada
e como que dotada de vida própria, estabelecendo suas
necessidades. São elas principalmente que se exibem nas
exposições universais do século 19, motivo de orgulho,
atençãoe curiosidade. O modelo de fábrica inglesase di
funde como opadrão aseguir: espaço privilegiado para as
máquinas, redução de braços, silêncio escolar. A ordem
se impõe, e o sistema apresenta que são as exigências da
máquina que determinaram o novo arranjo. A fábrica vi
toriosa se coloca como a responsável pelo progresso, pe
las novidades, pela difusão do maior conforto da vida. Tudo
o mais é subsumido, e o operariado se converte na figura
estereotipada do soldado do trabalho, em alguém cujas
origens e cuja vida fora da fábrica não parece existir.
Enquanto núcleo básico de operacionalização da in
dústria moderna, a fábrica comportou-se como a sede pri
meira das operações burguesas de controle da força-traba-
Iho. Estudá-la é resgatar uma forma de ordenação do espa
ço para produção de um determinado tipo de trabalhadores.
Dessa forma, este estudo se orientará não exatamen
te para a dimensão da fábrica como "laboratório secreto"
da produção do lucro, ou a fábrica como concentradora
de tecnologia inovadora que possibilita o aumento da pro
dutividade do trabalho social. Não que tais instâncias se
jam desconsideradas. Elas são antes entendidas como
pressupostos dentro de um processo mais amplo de cons
tituição da classe trabalhadora, mas a dimensão que se
busca resgatar é a da fábrica como centro de um conjun
to de operações de disciplina e regulamentação da vida,
o que implica dizer, de adestramento de corpos e mentes.
O processo, assim concebido, será avaliado em termos
regionais, entendendo a regiãocomo o recorteespacial, ao
mesmo tempo econômico, social e político, em que se con
cretiza a realização do capitalismo enquanto sistema.
Temporalmente, a conjuntura de análise se enquadra
entre os anos de 1880 a 1920, década que assistiu a im-

30
portantes transformações no Rio Grande do Sul.
A pecuária gaúcha, tradicional elemento de sustenta
ção da província de São Pedro, encontrava-se diante de
um impasse: a crise da mão-de-obra, motivada pela pro
gressiva extinção da escravatura no País, afetava direta
mente a charqueada rio-grandense, consumidora de tra
balho negro.
A venda do charque nos mercados centrais do País,
por outro lado, encontrava uma situação altamente compe
titiva com a entrada do produto similar platino. Elevar as
tarifas alfandegárias contra o charque estrangeiro era uma
tarefa difícil para os donos dos saladeiros sulinos que não
tinhamacessoaos mecanismos decisórios do podercentral.
Os "donos do poder", fazendeiros do centro-sul, eram por
sua vez compradores de charque, com o que alimentavam
seu contingente de escravos. Tinham, pois, interesse em
adquirir o produto a baixo preço, pelo que manipulavam a
política econômico-financeira nacional no sentido de for
çar a redução do preço do charque, facilitando a entrada
dos concorrentes. Enquanto havia durado o longo período
de guerras de fronteira, os senhores da terra, de gado e de
charqueadas do sul haviam contado com um importante ele
mento de barganha a seu favor nas negociações com o po
der central, conseguindo obter, por mais de uma vez, a ele
vação das taxas alfandegárias. Com os lucros mercantis afe
tando desta forma o seu principal produto, os charqueadores
sulinos se revelavam assim sem maiores recursos para en
contrarem saídas para a crise da mão-de-obra, seja no que
dissesse respeito à importação da força-trabalho.imigrante
estrangeira, seja no que dissesse respeito a reorientar em
direção ao sul o tráfico interno de escravos, competindo
nos preços com a área cafeeira.
Todavia, ao lado da área da pecuária tradicional, um
novQcomplexo havia se formado em tomo da agropecuá
ria colonial, com uma diversificada base econômica. O
capital mercantil acumulado com a venda dos produtos
in natura ou com precário beneficiamento para os mer
cados regional e nacional havia proporcionado uma acu-

31
mulação de capital-dinheiro que foi, em parte, reaplícada
na industrial (Pesavento, 1985 e 1987).
Desta forma, nas duas décadas que antecederam o
advento do século 20 - afin de siècle -, assim como nos
anos que se seguiram até a eclosão da Primeira Guerra
Mundial - a decantada Belle Époque -, o Rio Grande do
Sul passou por transformações significativas.
No plano regional, a queda damonarquia abria espa
ço para a ascensão de um partido republicano dotado de
uma matriz inspiradora de conduta político-administrati-
va que se apoiava no positivismo; na seqüência das lide
ranças castilhista^orgista, o Partido Republicano Rio-
grandense (PRR) empenhara-se numa política de moder
nização do Estado, apoiado num plano de diversificação
global da economia no qual o desenvolvimento industri
al alteraria o perfil tradicional da região, nitidamente
pecuarista(Pesavento, 1988).
Neste contexto, a emergência de umaordem urbano-
industrialse processou lentamente, tendo por base as dis
ponibilidades do capital-dinheiro acumulado pelacomer
cialização dosgêneros da agropecuária colonial imigran
te. Foram empreendidos os primeiros esforços no sentido
defacilitar o escoamento daprodução, solucionando a cha
mada "questão dos transportes" através da encampação
dos serviços públicos. Estimulou-se a modernização do
campo e a racionalização da produção, pelo aperfeiçoa
mento dos métodos produtivos e a sua fiscalização sanitá
ria;empreendeu-se o ensino profissionalizante e construiu-
se o projetò de uma universidade técnica.
Enfim, no bojo deste processo, "faziam-se" novas
classes. ÁS distintas personas do capital tomavam corpo,
ao mesmo tempo que se constituía a classe operária. Cha
minés de fábricas, bairros operários e melhoramentos ur
banos redesenhavam uma nova cidade. Novidades tecno
lógicas se tomavam conhecidas, vindas da Europa e dos
Estados Unidos, para maravilhamento das populações ci-
tadinas. Com a participação do Brasil e, portanto, também
do RioGrande do Sul,nas exposições universais burgue-

32
sas, abria-se uma janela para o mundo..
Naturalmente, este é um processo que ocorreu no País
como um todo, evidenciando a forma pela qual se
intemalizava o capitalismo no seu processode expansão
ao nível mundial enquanto sistema.
Para efeitos deste estudo, interessa resgatar a sua fa
ceta regional.
Em 1875, por ocasião da exposição provincial pre
paratória da exposição nacional que, por sua vez, seleci
onaria os produtos brasileiros que seriam enviados para a
Exposição Universal da Filadélfia, em 1876, o Rio Gran
de do Sul apresentou um panorama de sua nova situação.
Ante um grande numero de unidades artesanais, erguiam-
se alguns estabelecimentos manufatureiros. Desde 1874
fora criada em Rio Grande a fábrica de tecidos de lã de
Rheingantz & Vater. Encontrava-se em fase de implan
tação e compra de maquinários na Europa, com o que
pretenderia, no ano seguinte, empregar cerca de 100 a
120 pessoas. Operando no momento com 20 teares, ocu
pava um edifício, "reconstruído para este fim, de pedra
artificial", numa "área de 1.500 m^", e ostentava uma
chaminé com "uma altura de 110 palmos" (Catálogo,
1875, p.l5).
A chaminé da fábrica, símbolo dos novos tempos
industriais, começava a marcar sua presença no Rio Gran
de de São Pedro.
Os demais estabelecimentos denominados "fabris" eram
os de F.C.Lang, de Pelotas, produtor de velas, sabão e sabo
nete, a fábrica a vapor de Kappel &.Irmão, de Porto Alegre,
fabricante de cadernos; o estabelecimento de Erdmann &
Catter, também a vapor, de São Leopoldo, produtor de aguar
dente e licor; o de Nicolau Schmitt, também de São
Leopoldo, com a sua produção de "caronas e lombilhos";
ou ainda o estabelecimento do Dr. Ubatuba, em Guaíba,
fabricante do extractum carnis (Catálogo, 1881, p.l28).
Todavia, o catálogo não oferece maiores informações
sobre as condições de trabalho nas empresas ou mesmo
sobre o número de operários empregados. Em 1879, o re-

33
latório do Presidente da Província registra o emprego de
mais de 100 operários na fabrica detecidos de Rheingantz
& Cia., de Rio Grande,"em sua maior parte (...) mulheres
e crianças de ambosos sexos"(Relatório, 1879, p.95).Tra
ta-se, contudo, de um dado que ressalta antes a pujança
empresarial do empreendimento, sem maiores informa
ções sobre o trabalho em si.
Por ocasião da Exposição Brasileiro-Alemã de 1881,
os dados revelam que havia aumentado o número das
empresas que operavam com máquinas e que contavam
com um número significativo de operários, denotando um
incipiente surto industrial.
O espaço da produção às vezes é mencionado, como
no caso do estabelecimento de fumos de Rui Dias & Irmão,
de Pelotas, onde as oficinas e depósitos ocupavam "três es
paçosos armazéns" (Catálogo, 1881, p.19). É,contudo, mais
freqüente a referência às novas máquinas utilizadas e à sua
produtividade do que propriamentedescriçõesreferentes à
alteração da planta industrial. Da mesma forma, não se ve
rificam narrativas sobre as condições de trabalho, dada a
própria natureza da fonte (um catálogo oficial).
Alguns indicativos, contudo, são passíveis de análi
se, a respeito do espaço de trabalho.
A mecanização das empresas se fazia acompanhar
pelo trabalho manual de operários especializados. Tome-
se o exemplo da empresa Rheingantz, que por ocasião da
exposição de 1881 já contava com 102 máquinas e apare
lhos variados, dando emprego a 160 pessoas no estabele
cimento, além de distribuir serviço fora dele a 12 costu
reiras. Parádelamentev a empresa empregava:
[...] os presos da cadeia no serviço de rever as peças e tirar
os restos de carrapicho e as órfãs do asilo da cidade de Rio
Grande na operação de torcer as franjas dos chalés (Catá
logo, 1881, p. 28).
Ao todo, a Rheingantz ocupava cerca de 200 pessoas,
fora os contramestres vindos do exterior. O estabelecimen
to contava com diferentes seções, como as de lavagem de

34
lã, cardagem, fiação, tecelagem e tintura.
Trata-se, pois, de um processo de divisão do fraba-
Iho no interior da empresa e que pode ser ligado à pró
pria construção do espaço de trabalho. Este, como se vê,
não se limitava ao reduto propriamente fabril, onde se
abrigavam as máquinas e se colocavam as diferentes se
ções. Havia a combinação entre o reduto da usina e o
domestic system das costureiras que, no seu lar, executa
vam tarefas para a empresa. Da mesma forma, a
parcelarização da produção atingia outros recintos, co
mo é o caso da cadeia ou do asilo de órfãos.
Está-se, pois, frente a uma invasão dos espaços de a-
cordo com o reordenamento social imposto pelo trabalho.
Ouseja, a produção reorienta as vivências e se apropria de
outros espaços segundo as necessidades da fábrica. Por outro
lado, é significativa a correlação da fábrica, da prisão e do
asiloenvolvidos na mesma redemultifacetada de umpoder
disciplinar burguês que buscaimplantar-se.
Combina-se trabalho manual com máquinas, espaço
fabril com outros locais de confmamento, operários tra
balhando commáquinas do patrão comtrabalhadores do
miciliares que usam os seus instrumentospróprios.
Os jornais da época são pródigos em anúncios de
empregos que revelam esta forma de combinar o trabalho
a domicílio com o trabalho da fábrica, ou o trabalho do
artesão, prático num ofício determinado, com o trabalha
dor comum, sem maior habilitação ou posse de qualquer
instrumento de trabalho. Ora eram as fábricas de calçados
que precisavam de "oficiais" e costureiros {Mercantil, 27
jan. 1895) ora eram as fábricas de roupas brancas e outras
peças do vestuário que demandavam os serviços de costu
ra a domicílio {Mercantil, 5 fev. 1895).
Particularmente, as costureiras eram as mais explora
das dentre-as categorias que trabalhavam a domicílio.
Viúvas, casadas pobres ou moças solteiras eram vítimas
de verdadeiros sindicatos de intermediários de "guias de
costura" que, na venda do produto pronto para as empre
sas ou instituições públicas, como o Arsenal de Guerra,

35
ciavam às viúvas um retomo de pagamento menor do que
o trabalho desempenhado (Gazeta da Tarde, 23,24, 25
maioe Pjun. 1895).
O indicativo de que é possível periodizar a histórias
da divisão social do trabalho, ligando-a às formas particu
lares e às exigências que presidiram a constituição dos
espaçosfabrise ao próprioprocesso de separaçãocapital-
trabalho (Lautier, 1981), parece realmente encontrar eco
no Rio Grande do fim do séculos.
A Democracia Social, jomal operário de Pelotas de
tendência socialista, relata o incidente ocorrido entre um
trabalhador e seus patrões, os donos da manufatura de
Calçados Pelotense, que haviam determinado a prisão do
operário por 24 horas porque o mesmo não queria mais
trabalhar na empresa:
Alegam mais, em última instância, os senhores Júlio Silva
e Co. que a ferramenta lhe pertence, que foi mandada [...]
em Paris por sua conta ao operário, para ser depois o seu
valor descontado aqui nos salários, mas o operário contesta
esta afirmação, dizendo que a ferramenta foi comprada há
quatro anos em Provence, quando ainda nem pensava em
ter negócios com a Manufatura de Calçados e quando esta
ainda não existia, invocándo em abono do que assevera o
testemunho de seus companheiros (10 dez. 1893).

Está-se diante de um fato concreto no qual um traba-


Ihador-artesão está prestes a perder seu instrumentode tra
balho para o dono de uma empresa. Trata-se, no caso, de
mão-de-obra qualificada e estrangeira, que as empresas
mandavam recrutar da Europa (no caso, a França), mas o
que é esséècial é quç se trata de uma faceta do processo
expropriação/apropriação que caracteriza a separação ca
pital/trabalho. Sendo dono da sua ferramenta, o operário
não precisavase restringirao trabalhonestaempresa.Esta,
contudo, atua de forma coercitiva, procurando impedi-lo
de abandonar a empresa através do confisco da ferramen
ta. E, sem dúvida, uma nova forma de organização do tra
balho quese impõe, reunindo nummesmo espaço indiví
duos sem propriedade dos meios de produção quedevem

36
executar parceladamente uma tarefa comum.
Como refere Lautier:

O espaço de trabalho é primeiro o lugar das máquinas: ele


exprimee é ordenado pela funcionalidade da produção, ele
organiza a reunião e o controle dos trabalhadores e a divisão
do trabalho, instauraa parcelarização, a intercambialidade, a
despossessão dos operários (1981, p.6).
A despossessão do trabalhador de suas ferramentas
acontecia também nos estabelecimentos mantidos pelo
governo, como é o caso da Casa de Correção, que instalou
em 1897uma oficina na qual trabalhariam os presos. Se
gundo denúncia da Gazetinha, jornal dedicado aos inte
resses das classes populares, o governo havia comprado
os materiais para o serviço, mas não as ferramentas, pelo
que requisitara os utensílios de trabalho dos presos:
Ora, isto não é razoável; o govemo não deve e nem precisa
apossar-se daquilo que é dos infelizes encarcerados e foi
comprado por estes com o fruto do seu mourejar contínuo
(7fev. 1897).

A atitude havia resultado em reclamações por parte


dospresose conseqüente puniçãodos queixosos por parte
do diretor. Concluía o periódico:
E desde que as mesmas oficinas não têm o que é indispen
sável para o trabalho, não é correto que o Estado usufrua
o resultado deste executado com os utensílio alheios dos
quais se acha de posse contra a vontade dos donos. Do
lucro resultante da venda dos artigos anunciados da Casa
de Correção ou da penitenciária, manda a justiça que seja
dada uma percentagem, aos menos para consolar, aos pro
prietários dos referidos utensílios que serviam para o fa
brico de tais artigos (7 fev. 1897).

A prática de fazer retomar uma pequena parcela do


lucropara o pecúliodos presos foi depois implantada, mas
resta de pé o conteúdo original da medida: apropriação pelo
Estado dos instmmentos de trabalho de quem não tinha voz
para reclamar e o emprego de uma mão-de-obra gratuita.

37
No caso, não é o Estado que orienta ou traça as nor
mas para a estratégia capitalista da acumulação, mas sim
acompanhaa prática geral que se difunde através da ini
ciativa privada e que estabeleceu a "moral da fábrica".
Naturalmente, a fábrica, segundo a ótica burguesa,
eravisualizada como sinônimo de progresso, de riqueza,
de civilização. Para o partido que em 1889 empolgava o
poderno RioGrande doSul- o PRR-, a disseminação das
indústrias no Estado era uma meta a ser atingida. Para o
operariado, ela se apresentava com outras cores. Traçan
do um panorama da cidade de Rio Grande, o jornal
pelotensey4 Democracia Social oferecia em 1893 uma ater
radora visão da fábrica;

Por todos os lados que se virar os olhos depara-se um enor


me cano de fábrica como que recortando os rolos de nu
vens que passam pelo ar. Nos nossos tempos, não há nada
mais medonho do que seja uma fábrica ou um hospital. O
hospital sabemos o que é, quanto à sua função, um mata
douro de gente, onde o homem morre sob uma indiferença
mais fria do que aquela que o magarefe tem para com o
gado e quanto à sua existência, é a vaidade em ponto gran
de, a vaidade em pedra [...]. A fábrica é uma coisa parecida
a isto, um pouco mais horrível ainda (10 dez. 1893).

Não muito distante desta visão estaria a descrição do


jornal Echo Operário^ da cidade de Rio Grande, em 1898:
Nas fábricas e nas,oficinas, é como nas fazendas dos tem
pos [...] da escravidão; nas quais os gerentes são iguais a
fazendeiros, os chefes de seção se parecem com os feitores
' e os azorragues são os regulamentes vexatórios aos quais
são submetidos os infelizes produtores (1° de maio 1898).
Lembrando Foucault, é sintomática a associação feita
entre a fábrica e o hospital, local de reclusão e
confinamento, ou com a fazenda escravista, espaço onde
se realizava a exploração do trabalhador em sua forma
limite. O elo condutor que se apresenta é o da dominação
que se exerce sobre estes espaços, onde se reduz ao míni
mo as possibilidades de ação independente dos indiví-

38
duos. Trata-se de instâncias de exercício de poder que,
com o seu conteúdo de vigilância e disciplina, em espa
ços produtivos ou não, aniquilam o indivíduo. O resul
tado é uma visão sombria da fábrica, associada a outros
espaços do cotidiano (fábrica-açougue) ou a um passado
próximo (a escravidão), nos quais se identifica a opres
são {Echo Operário^ 19 set. 1897).
A máquina se impõe para subjugar o homem, reprodu
zindo a visão catastróficade que falam os textos clássicos:
Máquinas as mais aperfeiçoadas introduzem-se cada dia na
indústria e vêm substituir o esforço do homem. [...] As
máquinas devem ser o auxílio do operário. Colocadas nas
oficinas por interesse dos patrões, não podem transformar-
se em inimigos do trabalho e arrancar-lhe o pão da boca
como realmente sucede. Os proprietários julgam hoje [...]
as máquinas como o alívio do operário e assim tratam de
reduzir o salário na razão de menos trabalho para menor
remuneração e, depois, não satisfeitos com isso, estabele
cem outro, o de menor esforço para mais trabalho. Daí o
operário, por motivo das máquinas,trabalhar mais e ser pior
remunerado; daí ter o operário nas máquinas o seu maior
inimigo; daí o excesso de produção e a crise que nos amea
ça {O Proletário, 2 ago. 1896).

No imaginário operário, a máquina se apresenta como


a síntese da exploração capitalista e o agente primeiro da
dominação. Posição inversa ela ocupa no universo bur
guês, onde se apresenta como o símbolo do progresso e
da sociedade do bem- estar.
Mesmo guardando por longo tempo características
artesanais, ou pelo menos combinando-se com o uso pro
gressivo de máquinas, a introdução de tecnologia na em
presa não se restringiu apenas à reorganização do traba
lho, acentuando o caráter exploratório da produção e in
troduzindo a mais-valia relativa.
A aquisição de máquifiãs pelos empresários obrigou-
os a aumentos sucessivos da área ocupada pelos estabe
lecimentos, o que inclusive envolvia uma nova disposi
ção espacial.

39
Em 1913, por exemplo, a Companhia Fiação e Teci
dos Porto-Alegrense era assim descritaquanto às suas ins
talações:
Aárea ocupada pelas fábricas esuas dependências ede9.300
metros quadrados, possuindo a Companhia, para futuras
construções, uma área de mais de 20.000 metros quadra
dos. Seus edifíciossão de sólidae eleganteconstrução, e na
instalação dos maquinismos foram guardados os espaços
para os operários trabalharem desembaraçadamente (Im
pressões do Brasil^ 1913, p.814).
Oespaço fabril, reordenado, tomava-se assim o marco
organizatório da produção, dotado da flmcionalidade ne
cessária para que nele se operasse a divisão manufatureira
do trabalho. Constmirfábricas modernas, que se substituís
sem aos velhos galpões ou barracões que abrigavam sem
maior preocupação homens, máquinas e ferramentas, tor
nou-se um novo campo para a atuação de firmas de enge
nharia. Neste sentido, destacou-se em Porto Alegre a em
presade RudolfAhrons, responsável por uma sériede pro
jetos para a constmção das novas fábricas.
Embora as fontes oficiais e empresáriosdescrevam a
exemplaridade dos novos ambientes como locais "amplos
e arejados, que proporcionavam ao operário a aspiração
de um ar semprerenovado"(Impressões de viagem, 1918),
como é o caso referente à fábrica de charutos Poock, de
Rio Grande, a visão do operário sobre seu espaço de traba
lho relatava outra realidade, acentuando a insalubridade
das condições fabris:
J Os oper^ios, emsuamaior parte, vivem como quese
qüestrados do mundo, dos movimentos livres, adstritos a
movimentos ritmicos reiterados; em algumas indústrias,
principalmente, as condições sedentárias da vida reunidas
às circunstâncias deletériasdo meio ambiente e a privação
doexercício necessário ao gozode umasaúdeperfeita, cons
tituem um atentado à vida dos infelizes trabalhadores. Os
alfaiates, sapateiros, costureiras e tecelões são os que estão
mais sujeitos a esses esgotamentos de vida pelas circuns
tâncias acima citadas, cujas conseqüências são o aumento

40
das estatísticas dos anêmicos, tísicos e escruflilosos, por
que está plenamente provado que a monotonia de muitos
gêneros de trabalho origina o aborrecimento e, conseqüen
temente, como o tédio provoca a anemia as mais claras
manifestações dela [...]. A todos os males acima menciona
dos, reúna-se as más condições higiênicas das oficinas com
atmosfera geralmente impregnada de vapores deletérios, de
poeira nociva, de gérmens mefíticos. [...] e teremos o qua
dro negro do que sofre o operário e que Karl Marx assim
descreveu [...] (A Voz do Operário, 1° abr. 1899).
Por vezes, fontes nitidamente conservadoras, como o
jornal AFederação, reforçavama identificação do espaço
fabril como um local a demandar melhores condições de
higiene. Relatando uma visita sanitária do inspetor de hi
giene de uma fábrica de gravatas, luvas e espartilhos de
Porto Alegre - a Companhia Manufatura -, assim se expri
mia o jornal oficial do republicanismo gaúcho:
Encontrou ordem, boa distribuição, asseio no prédio, po
rém fez notar ao gerente a necessidade de serem estabe
lecidas as oficinas em casa mais espaçosa e que não seja
cercada por outros prédios, como a em que funcionam atu
almente, o que se poderá encontrar em localidades mais
afastadas do centro da cidade. O Dr. Castilhos fez ainda ver
a necessidade da remoção das latrinas para lugar mais apro
priado.E da modificação do serviçode asseioda ditafábrica
{A Federação, 2 fev. 1892).

Ora, apesar da ordem (que poderá ser traduzida em


disciplina), a boa distribuição e asseio aludidos parecem
ser negados pela observação posterior a respeito da exi-
güidade do espaço e das condições de higiene do local. Ou
seja, a fábrica se apresenta como um local exíguo
(atravancado com homens e máquinas? Mal iluminado com
a proximidade de outros prédios?) e prejudicial à saúde,
devido a incômoda presença de latrinas ao lado do recinto
de trabalho. Por outro lado, no início da nova década se
encontravam em formação os bairros operário-fabris, o que
implicaria a progressiva retirada das indústrias do Centro
da cidade - como e o caso citado - para os arrabaldes. O

41
quadrose tomaria aindamaisclaro quando se tiver em con
ta que, na constituição de novos bairros, o loteamento dos
mesmos e a extensão dosserviços públicos até taiszonasse
colocavam como uma das oportunidades de investimento
imobiliário paraos capitais urbanos que ascenderam coma
República Õ^esavento, 1990).
Nesta medidaé que assumem relevância os serviços
de inspetoria de higienenum governo em que as distintas
pérsonas do capital se encontravam ainda mais imbricadas
e participando ao mesmo tempo dos cargos administrati
vos e das companhias para a prestação de serviços públi
cos que se estavam formando.
Caberia ainda considerar que uma notícia-denúncia
de tal natureza por um órgão da imprensa conservadora
da capital encontra seu significado no empenho do PRR
em realizar no estado um progresso econômico baseado
na racionalização da produção, no qual se incluía a remo
delação das fábricas segundo preceitos de higiene e a ob
tenção de artigos de boa qualidade.
O panorama descrito na fin de siècle não seria pinta
do com cores mais suaves na Belle Èpoque. O jornal A
Luta, de Porto Alegre, assim descrevia em 1906 o ambi
ente de trabalhoda Companhia Fabril, da capital,que pro
duzia meias:

Quanto às condições higiênicas da fábrica, são pouco se


melhantes mais ou menos com as de todas desta capitai,
onde os proprietários e gerentes de estabelecimentos in
dustriais pouco ou nenhuma atenção lembram para estas
coisas. A diretoria de higiene intimou os gerentes das fá-
' bricas a colocarem filtros nas mesmas. Na fábrica de mei
as foi posto, em virtude de tal intimaçao, um filtro para
fomecer água para cerca de 180 operários que ali traba
lham, quando não pode fomecer senão a 10 pessoas. Ape
nas a seção de fiação desta fábrica está regularmente or
ganizada com asseio, boa água, etc., e isso devido aos
cuidados do respectivo encarregado Sr. Schlosstein (13
set. 1506).

Retoma-se, portanto, na palavra do proletariado rio-

42
grandense, a visão catastrófica do espaço fabril referido
pelas fontes clássicas. Naturalmente, trata-se de uma vi
são parcial - a do trabalhador direto -, mas o seu resgate
se faz necessário não exatamente para tomá-lo o critério
absoluto de expressão da realidade, mas para desvelar
um outro "sentir" das condições fabris que se contrapu
nham à visão risonhadas empresas apresentada pela bur
guesia.
Outros depoimentos enriqueceriam este quadro,
como aquele trazido pela A Democracia Social, de
Pelotas, sobre a saída dosoperários da fábrica Rheingantz,
de Rio Grande, no ano de 1893, então denominada União
Fabril e Pastoril:

Não há quadro da nossa sociedade que se possa comparar.


Nem um naufrágio nem um exército batido. Os operários
têm meia hora para almoçar. Quando eles saem da fábrica,
para esta primeira refeição do dia, saem correndo, mas só
costumamos chamar correr a um passo estugado, a um cami
nhar apressado; note-se, porém, que não é assim que eles
saem. Eles saem correndo, na expressão mais larga da pala
vra, e voltam correndo da mesma forma. Tem meia hora
para almoçar e a cidade dista dois quilômetros da fábrica;
têm de sair correndo, comer correndo e voltar correndo. Ge
ralmente os homens gastam e precisam mesmo gastar meia
hora ou mais em cada refeição. E se tratássemos de outra
gente, se tratássemos de gente, que gasta ciência e para quem
foi feita a higiene, estou certo de que os médicos encarrega
dos da saúde pública clamariam um dia contra isso, demons
trando impossibilidade de um corpo se alimentar assim, mas
não se trata disso, trata-se de uma classe servil, de uma raça
escrava, para quem não há ciência, e quando há é um barato,
de esmola e portanto de carregação (10 dez. 1893).
O quadro assume cores patéticas, implicando uma
dilatação da jornada através do encurtamento máximo dos
períodos de descanso, como no caso o ,horário previsto
para as refeições. Que poderia ainda dilatar-se ao ponto
de atingir até o domingo, incluindo-o como dia de traba
lho, como é o caso referido dos operários do curtume de
Fernando Negreira, em Pelotas, que demandavam em 1893

43
que o padrão lhes concedesse um dia inteiro de folga e
não meio dia, como era costume na empresa... (A Demo
cracia Social, 13 ago. 1893).
Entretanto, o direito ao repouso era defendido pelos
trabalhadores como elemento reparador de suas forças,
sendo tão necessário à vida quanto o próprio ato de tra
balhar. O Echo Operário, órgão do partido socialista, pos
tulava este princípio, argumentando que:
A sociedade não cessará de sofrer, conservar-se-á sempre
num estado de equilíbrio fictício, enquando os homens vo
tados em tão grande número ao sacrifício da miséria, não
tenham todos, depois da fadiga cotidiana, um período de
repouso para reaverem o vigor e manterem-se assim na sua
dignidade de livres e pensadores (1° maio 1901).
Quanto à jornada de trabalho propriamente dita, esta
poderia variar conforme a empresa, oscilando segundo as
determinações do proprietário. O mesmo Jornal Echo Ope
rário indicava, em 7 de novembro de 1897, um dia de tra
balho entre 12 e 14 horas como prática corrente, ao mesmo
tempo que aplaudia a iniciativa do proprietário de uma li
vraria, que estipulara para os operários de suas oficinas
9h30min detrabalho, comentradaàs 7 horas,intervalo para
comer de 12h30às 13h30min e saída às 18 horas (14 nov.
1897). Já A Luta apontava para uma jornada de 18 horas
paraos condutores de bondes (Rodrigues, 1898, p.260).
No mesmo ano tem-se referências de que a fábrica
de papel de Brockmann & Cia., de Pedras Brancas
(Guaíba), trabalhava noite e dia, parando apenas 36 ho-
r^ por sernana {A Luta, 13 set. 1906). No início do sécu
lo, os operários do setor moageiro (Relatório da Secreta
ria, 1908, v.l, p.91) tinham uma jornada que se aproxi
mava à dos trabalhadores do setor têxtil: 10 a 12 horas de
trabalho por dia. Por ocasião da greve de 1906, pelas 8
horasde trabalho, ocorrida em PortoAlegre, era execrada
a atitude dos pedreiros, que se sujeitavam sem reclamar
a trabalhar 10 e mais horas por dia, mediante o recurso
dos patrões de empregarem luz elétrica nas oficinas {A
Luta, 13 set. 1906).

44
Um pouco mais adiante, já em 1911, o jornal Echo do
Povo discorria sobre a situação dos tipógrafos em Porto
Alegre:
O tipógrafo trabalha, em algumas oficinas, quase se pode
dizer, dia e noite, e no fim de semanas, apresentando uma
féria de 40$ a 50$000, isto mesmo os que são dotados de
agilidade, causa admiração aos proprietário das oficinas
que, por sua vez, então, procuram meios e modos de dimi
nuir o vencimento daqueles. Não consideravam que os seus
empregados levam 16 a 18 horas metidos nas oficinas, es
gotando as suas forças, e que amanhã ou depois terão,
vencidos pelo excesso de trabalho, de recolher-se a um
canto da Santa Casa (5 out. 1911).

Estar-se-ia, pois, diante de uma situação limite, sendo


ajornadados tipógrafos comparada à dostrabalhadores de
charqueada na época da safra', que era de 18 a 20 horas.
Ao longo da República Velha, a reivindicação pelas
8 horasvoltariaa aparecernas grevesoperárias, evidenci
ando um processo de avanço e recuo das relações entre o
capital e o trabalho.
Nas reclamações dos operários, a longa jornada de
trabalho era freqüentemente associada à baixa remunera
ção. No tocante a este ponto, apesar da emergência da fá
bricater como pressuposto a separação entre o capitale o
trabalho e estar ligada ao assalariamento, na prática vi
goravam formas de remuneração não-monetárias.
Um anúncio de emprego para costureiras, de 1895,
propunha uma jornada de 12 horas de trabalho, salário e
comida (Gaietinha, 20 out. 1895). Ou seja, a presença do
item"comida" na ofertade empregopressupunha que a parte
propriamente monetária do salário era mais baixa... Em
outras empresas, como é o caso da Fundição Becker, de
PortoAlegre,o proprietáriorecrutavatrabalhadoresna zona
colonial alemã e os abrigava em sua residência, dando-lhes
casa e comida (Delhaes-Günther, 1973, p. 166-167), enquan
to a Eberle descontava dos salários as aquisições no arma
zém feitas pelos operários (Metalúrgica Abramo Eberle).
Se, por um lado, tais relatos indicam que formas não-

45
monetárias coexistiam com o pagamento de salários, por
outro, não é possível deixar de considerar que o
assalariamento se impunha no Estado, com o avanço da
economia de mercado.
A questão salarial relacionava-se com a alardeada alta
do custo de vida. Esta denúncia persiste tanto no período
coberto pela política encilhamentista, de 1891 a 1894,
momento marcadamente inflacionário, quanto no período
de recessão econômica que se seguiu, notadamente a par
tir de 1898,com a ascensão de Campos Sales e o início da
política de saneamento financeiro.
Em 1893, por exemplo, era apontado que um operá
rio ganhava cerca de 35000 réis por dia, o que perfazia
um salário de 915000 por mês, trabalhando 26 dias. Se
guia-se o cálculo médio de suas despesas durante um mês,
para uma família com três indivíduos adultos:
Na impossibilidade de morar num cortiço cujo aluguel é de
6 a 8500 mensais e na impossibilidade ainda maior de en
contrar prédios cujo custo seja equivalente à sua renda, como
geralmente se encontra nas cidades industriais, estes ho
mens têm de alugar uma destas habitações que até agora
tem se conservado entre 20 e 305000 mensais.
Demos-lhe, porém, para casa e água 205000
Gastando 2 K de carne por dia, 1 K a cada refeições,
e custa-lhe mensalmente 215600
Consumindo 2 K de banha, isto é, pouco mais de
60 gramas a cada refeição, custa-lhe 35200
Dois K de toicinho 25200
Açúcar, 1 K, oUj seja 1/2 K por dia, a 700 réis,
cujo custo é de açúcar ordinário 105500
Pão,^320 por dia, o que é bastante restrito para
três pessoas 95600
Café, 4 K a 25, preço este peloqual se compra
mais milho que café 85000
Arroz, 8 K a 320 25560
Verdura e temperos a 100 réis por dia 35000
Lenha 45000
2 a 1/2 dúzias de velas de sebo, isto é,
uma vela por dia 25000

46
Dois pacotes de fósforos (um fumante gasta
uma caixa por dia) ISOOO
Fumo para o dono da casa 1$500
Aluguel de um cubo p/matériais fecais 1$000
Soma 90$ 160
Temos aqui um saldo mensal de 840 reis!
[...]
Nunca, no Brasil o povo se viu em tào pobres circunstân
cias {A Democracia Social, 9 jul. 1893)..

Antes de estabelecer qualquer comparação com da


dos de salário e custo de vida subseqüentes,algumas con
siderações se impõem. Primeiro, o altoconsumo de carne
dafamília operária, comparativamente à situação de hoje,
o que leva a concluir pelo posterior depauperamento de
sua dieta e, conseqüentemente, da sua resistência física.
Em segundo lugar, o salário mensal empatavacom o con
sumo, expresso em habitação e alimento quase que exclu
sivamente, sem qualquer reserva para reposição de ves
tuário e calçado, por exemplo.
Ao identificar as razões de tal estado precário de vida,
o jornal operário dava a sua versão da política econômi-
co-financeira da época, condenando o encilhamento:
A quem, porém, lançar a culpa disso? A ninguém e a to
dos. O governo, decretando leis protecionistas, protegede
fato, mas protegemeiadúzia,desprotegendo milhares, pro
tege os que não precisam de proteção, deixando os que a
precisam entregues ao acaso.

Dizem; o protecionismo trouxe muito trabalho, muita ex


tração à indústria nacional, muito incentivo à exploração
de novas indústrias, etc., etc...

Trouxe; mas trouxe conjuntamente os enormes impostos


indiretos pagos pelos que podem e pelos que não podem;
trouxe a pequena inconveniência de um homemtrazer du-
• zentos mil réis a cobrir o corpo quando antes disso trazia
cinqüenta; trouxe a inconveniência também pequena de
as indústrias fabris relaxarem as suas manufaturas, o em
prego dos materiais, tendo em mira unicamente a avidez
do lucro, livres de concorrência estrangeira, decrescendo

47
em qualidade quanto crescem em quantidade, de maneira a
caírem porterraao primeiro trompaço inevitável queo pro
tecionismo receber. E aí está o consumidor roubado na in
dústria nacional porque lhe vendem gato por lebre e rouba
do na indústria estrangeira porque para vestir um casaco
tem de dar outro ao Estado. Quem ganha com isto? A gran
de indústria e o grosso comércio. O povo é o eterno burro
desta luta política (A Democracia Social, 9 jul. 1893).
A crítica ao encilhamentismo é, pois, radical, desnu
dando a sua feição burguesa: o protecionismo e emissão
haviam favorecido ao grande capital, com prejuízo para
a qualidade da produção, dado o estímulo concedido à
proliferação das pequenas empresas que operavam com
baixa tecnologia. Todavia, ao menor obstáculo, estas su
cumbiam. A elevação dos preços, garantida pela política
protecionista, incidia sobre a elevação do custo de vida
das populações urbanas, que tinham visto assim agrava
das as suas condições de existência.
Logo, o resultado do processo instalado era vantajo
so para a burguesia e prejudicial ao proletariado.
A mesma visão da crise do poder aquisitivo da classe
trabalhadora era apresentada na mesma época pelo jornal
Gazetinha:

A população de Porto Alegre está atravessando uma crise


bem funesta, o que pode ainda ter conseqüências graves.
Nunca em tempos idos, presenciou a capital do Rio Grande
do Sul esta corrente de especulação comercial que hoje se
desenvolvetão criminosamente sem que os agentesdo go-
^' vemo tomem providências sobre o assunto. O povo está
cansado de suportar esta carestia de gêneros, esta excessi-
'í vaelevação depreços, e nenhuma medida razoável apare
ce paralivrar os habitantes de Porto Alegre de semelhante
monopólio. [...] Onde estão estas promessas de bem-es
tar, deabundância e deliberdade que a cada passo sefazia
com palavrões cheios de uma retórica que hoje considera
mos ridícula, por parte deste governo que dirige atual
mente os destinos do Estado? [...] Que sofra opovo, que o
proletário que tem enorme família e que vence 2$ ou 3$
diários passe ou não necessidades; que o comerciante

48
especulador multiplique os seus capitais à custa do povo,
isto e muito razoável muito lógico! (3 abr. 1892).
Reitera-se o mesmo baixo salário e a identificação
dos culpados da situação: os capitalistas e o governo que
não cumpria as promessas feitas de se colocar ao lado do
povo e implantar a sociedade do bem-estar.
O fim da política encilhamentista e a posta em prática
pelo governo de medidas saneadoras da economia não te
riam, por si, minorado a situação dos operários. Com a
retração do crédito, o recuo do protecionismo e o fim das
emissões,muitos estabelecimentos fecharam (4 mar. 1897),
deixando de pagar a seus operários as quantias devidas
(24 nov. e 17 dez. 1898), ou procederam à redução dos
salários, como medida de contenção de despesas (2 dez.
1^96), gerando desemprego e agravamento das condições
de vida das classes subalternas.
Em 1897, a Gazetinha denunciava que operários de
uma fábrica de tecidos na Rua Voluntários da Pátria esta
vam sofrendo diminuição dos seus vencimentos. Há pou
co conseguiam fazer 5$000 diários e agora só obtinham
cerca de 35000 (6 jun. 1897). O patrão diminuíra a mão-
de-obra na empresa e reduzira salários, sob a alegação de
que trocara a linha de produção, deixando de fabricar pon-
chos e passando à produção de fianelas e panos. O jornal
alertava que ainda deste salário eram deduzidos os dias
em que as máquinas não operavam:
[...] devido a vários inconvenientes que ocorrem no meca
nismo, quebras ou qualquer outro desarranjo, em média 2
dias por quinzena, e adiciona-se-lhe mais os òias santos e
feriados, e, feitas as contas, reconhecer-se-ia claramente que
o exíguo salário do obreiro fica reduzido a 25000 r. diários,
pouco mais ou menos (6 jun. 1897).
Embora não se precise a data em que o operário
receberia 55000 réis por dia (o momento imediamente
posterior ao fim do encilhamentismo?), registra-se a ma
nutenção dõ baixo salário acrescido de um dado novo: os
descontos que incidiam sobre os dias em que as máquinas
não operavam.

49
Concluía o artigo:
E lembrem-se que a maior parte dos referidos trabalhado
res tem famílias a sustentar, que os gêneros alimentícios,
de primeira necessidade, estão atualmente por preços
exorbitantes, que por qualquer cubículo paga-se um alu
guel caro, que a chita e o zuarte, a seda e a casimirapara o
pobreoperário, custam no presentemuito maisdo que cus
tavam há dois anos [...]
Note-se, no caso, a insistência do abaixamento do
salário (nominal e real), acompanhado da elevação dos
gêneros de consumo. Resta, contudo, a surpresa de ver a
seda entre as fazendas possíveis ou presumíveis de serem
adquiridas^pelos pobres na época, o que novamente repõe
para o historiador a inevitável comparação com a realida
de contemporânea.
O jornal Echo Operário oferece dados comparati
vos entre salário e custo de vida para o ano de 1898 que
possibilitam tecer considerações com aqueles anteriores,
referentes a 1893:

Ganhando salários insuficientíssimos lutando com uma crise


de trabalho que se prolonga interminavelmente, e que já
vem de longadata, o operariado vê-se assoberbado pelas
necessidades, as quais não pode debelar porque em tudo
são superiores àssuas forças. [...] Atualmente um bom ope
rário ganha na media 150$000 por mês e no geral os salá
rios são de 100$ até 1205000 [...].
Damos a seguir um quadro demonstrativo das despesas
que necessita fazef uma família durante o mês, pelo qual
mais facilmente se pode ajuizar das causas que nos levam
, a acusar os governos [...].
Ei-lo:
, Ganho do chefe 120$
Despesa:
Aluguel de casa e água 40$
Lenha 12$
Pão 18$
Açúcar 7$
Game, a 400 rs o K 24$
Verdura, a 200 rs por dia 6$
Arroz, toucinho, banha 12$

50
Gás, velas, sabão, etc 6$
Soma 125$
Déficit 5$
[...] E trate-se de uma família onde todos gozem saúde e a
mulher tenha leite para dar ao filho mais novo, que em ge
ral ainda mama, pois no caso contrário, lá vão 240 réis pelo
menos para o leite. E se algum cai doente? Lá temos a boti-
ca, o médico.

A constatação básica é de que tanto o salário quanto


o custo de vida haviam aumentado, na passagem do perío
do inflacionário para o período de deflação, mas se man
teve constante o equilíbrio entre salário e consumo, redu-
zindo-se este ao seu mínimo possível.O alto preço do pão
e a sua baixa qualidade, por exemplo, eram objeto de
reclamações constantes nos jornais operários (Gazetinha,
10 e 11 jun. 1898).
Alguns anos depois, em plena Belle Époque, assim
era descrita a situação de uma das categorias proletárias
da cidade, a dos alfaiates:
Parece incrível que haja oficiais alfaiates que se sujeitam a
ganhar 15$, 20$, 25$ ou 35$ mil réis por mês! [...] Vou dis
criminar aqui as despesas que, pela parte mínima, tem que
fazer uma família operária composta por 5 ou 6 pessoas:
Aluguel de uma pocilga ou casebre anti-higiênico, no míni
mo 35$000; a família, para alimentar-se regularmente (para
não dizer mal), não pode passar sem adquirir 1 1/2 quilos de
carne que custa 750 réis e ao mês 23$250 réis, 6 pães de 50
gramas por dia a 50 réis falem 300 réis e por mês 9$000
réis; por mais economias que faça esta família não pode
gastar no armazém menos de 50$000 réis mensais; o leite é
indispensável em casa onde há crianças, e nunca menos de 1
litro os satisfará; o seu preço regular é de 400 ou 500 réis,
faremos, no entanto, pelo mínimo, perfaz ao mês 12$000
réis; temos ainda 5$00 réis de água e 1$200 de remoção de
materiais fecais, portanto, somando, chegamos a 135$ réis,
isto, as despesas invariáveis; sem falar na vestimenta de
todos da família sem a qual não podemos passar, sem falar
ainda em despesas com medicamentos e farmácias, em gas
tos extraordinários a que seguidamente nos vemos arrasta-

51
dos por circunstâncias várias, e nem sequer por sonho nos
lembramos de falar em utensílios indispensáveis à morada,
tantas outras coisas que achamos desnecessário enumerar.
Pois bem, para começar comparação entre receita e despe
sa, afirmamos que nem um oficial alfaiate de Porto Alegre
ganha salário igual à soma da despesa invariável e mais
necessária à vida (135$000), sendo esta desigualdade para
menos na receita {OAlfaiate, 12 out. 1907).
A julgar pelos salários-mês apontados anteriormente
para 1893 (91$000) e 1898 (1205000), os vencimentos
do alfaiateque lhe conferiam o grau de setor mais explo
rado dò proletariado gaúcho. Em termos de despesas men
sais,para 1893 apontava-se 90$100paratrês pessoas adul
tas; em 1898, 1255000, sem especificação do número de
membros, mas era aludido o "leite das crianças"; enquan
to que, para 1907, as despesas de 5 ou 6 pessoas (entendi
do marido, mulher e crianças) atingiram 1355000. Toma-
se difícil comparar exatamente dados desiguais. Entende-
se ainda que deve-se sempre desconfiar da falsa seguran
ça dos números e que todo indicativo desta ordem repre
senta apenas uma parcela da realidade, que deve ser anali
sada no seu conjunto mais amplo com outros dados.
Repete-se, contudo, as queixas de que o salário não
é suficiente para um chefe de família sustentar-se, a si e
aos seus.

A esta reduzida remuneração um fato deve ser


acrescentado e que já'foi referido anteriormente: os des
contos que incidiam sobre o salário.
Análisando a caderneta de controle das multas sobre
os operários da metalúrgica Abramo Eberlepara o ano de
1911, [pode-se ter uma idéia dos motivos que determina
vam a inflação. O empregado era punidopor ter fumado na
latrina ou na funilaria, por ter assobiado na oficina, pelo
estrago causado nos instrumentos de trabalho, por ter dei
xado o bico da tomeira aberto, por ter saído para lavaras
mãos antes da hora, por deixar de limpar as ferramentas,
etc.Osmotivos sãoosmais corriqueiros, e a maiorparteda
incidência dasmultas incidia sobrea tal proibição de fumar

52
que, pela sua freqüência, demonstra o quanto a regra era
infringida. Por outro lado, a disciplina da fábrica visava ao
controle de corpos e mentes. Assobiar era motivo de puni
ção porque revelava uma evasão do espírito, um relaxa
mento na atenção, uma menor concentração no trabalho. O
trabalho obedecia a uma sistemática implacável, e o des
cuidocom a conservação das ferramentas ou o desleixono
seu asseio eram motivos de penalidade.
Sobre as mulheres, em especial, recaíam muitas mul
tas. Parte mais fraca, tinham o seu já reduzido salário ain
da mais diminuído.
Tome-se o exemplo deste relato operário sobre uma
empresa de Pelotas, em 1893:
Uma costureira da fábrica de calçados dos Srs. Júlio Silva
& C. recebeu, como ordenado correspondente ao seu traba
lho no mês de setembro, a quantia de 600 réis. A costureira
ganhou mais do que isso, mesmo segundo a lei da fábrica,
mas também segundo a lei da fábrica, ela incorreu em
diversas penas que são punidas com multas, o que lhe re
duziu o ordenado a 600 réis.
Na fabrica dos Srs. J.Silva & C. paga-se multa por vir tar
de, paga-se multa por conversar, paga-se multa por cuspir
no chão, paga-se multa por fumar, e nào nos consta que se
ganhe alguma coisa por nào se incorrer em qualquer destas
culpas. [...] Uma fábrica é um Estado dentro de outro Esta
do. Os Estados atuais estabelecem impostos que o povo
nào quis pagar e os Estados sào representantes dos povos.
As fábricas estabelecem multas e regulamentos sem
consultar àqueles para os quais sào estabelecidas tais leis.
É a mesma coisa{Democracia Social, 15 out. 1893).
Volta de novo a produção de imagens da fábrica pela
classe operária, anteriormente identificada com o hospital,
agora é a figura do Estado que vem a ela associada. O elo
de ligação deste imagináriosocial é dado pela identificação
de uma situação opressora. Trata-se das distintas facetas de
um processo de dominação que se impõe e que se estende
do âmbito público ao privado e que é percebido como tal -
enquanto poder disciplinador - pelas classes subalternas.

53
As multas eram cobradas por faltar ao serviço, mes
mo que o trabalhador mandasse alguém da família avisar
que não poderia comparecer (Democrac/aSoc/a/, 17 dez.
1893), ou por conversar ou dirigir a palavra a alguém du
rante a jornada.
A Democracia Social relata o fato de que uma moça
que trabalhava na aludida empresa de Júlio Silva & C.
sofrerá unia multade 1$000, por ter;
[...]em ocasiãoem quetrabalhavana fábrica, perguntadoa
uma sua companheira se naquele dia não ia visitar uma
amiga. Pormais que alegasse queofato dedirigir a palavra
à suacompanheira não a distraíra doserviço e queestenão
sofrerá com isso, nada conseguiu: a direção da fábrica foi
inflexível, e a pobre senhora foi obrigada a pagar com o
produto talvez de um ou dois dias de trabalho o grande
delito de não ficar muda durante as 10 ou 12 horas de reclu
são naquele estabelecimento (17dez. 1893).
Em outra ocasião, omesmo periódico denunciava que
uma operária, não podendo comparecer ao serviço por três
dias consecutivos, pagara umamulta de 9$600:
Vencendo 600 réis por mês, ou seja, vinte e três por dia,
ela teria de trabalhar quatrocentos e cinqüenta dias para
pagar aos Srs. Júlio Silva &Cia. [...] Poderá dizer quem
lê que o ordenado desta costureira foi uma anomalia, mas
estamos informados de que estas anomalias - que na rea
lidade o são - dão-se contudo muito freqüentemente na-
quela fábrica ( 17 dez. 1893).
' Os exemplos, sempre com referência aesta empresa,
sucedem-se no periódico operário:
Naquela fábrica, as costureiras pagam todo o material que
gastam, linha, grude, agulhas de máquinas, etc. Parao aca
bamento das referidas botinas havia a costureira gasto na
fábrica a importância de85000 dematerial. Quando apre
sentou as botinas, declararam queaquilo nãovalia mais de
85000. Tiveram a delicadeza de não lhe dizer queo traba
lhonãovalia coisa alguma: disseram que valia85000, que
eraa importância domaterial que elatinhade pagarà fábri
ca. A exploração é flagrante. É absolutamente impossível

54
um trabalho qualquer, depois de executado, valer somente
a importância do material gasto nele (17 dez. 1893).

Sem precisar insistir com relatos sobre a mesma em


presa, dados de outras fábricas reproduzem a mesma situa
ção de reduzir o salário mediante a multa cobrada sobre
"delitos" ou mediante o "uso" dos meios de trabalho.
Veja-se o caso da fábrica de meias (Companhia Fa
bril) de Porto Alegre:
Os salários que tiram os operários, por semana, são insigni
ficantes: há alguns trabalhadores ganhando, por semana,
cerca de 30$000, o que, à primeira vista, é um bom ordena
do, se soubermos porém que das férias de cada um é des
contado o preço das agulhas que emprega no trabalho e que
às vezes chegam a pagar lOSOOO de agulhas numa semana,
vemos aquele salário baixar a uma soma irrisória. [...] Des
se reduzidíssimo salário são ainda multas infligidas pelos
mandões da oficina. Para que se avalie do que vai por ali de
exploração, sob a capa de multas para manter a "boa or
dem" do trabalho, trazemos para estas colunas uma relação
de algumas das multas ali aplicadas aos operários. Entran
do 5 minutos depois da hora marcada [...]100 réis de multa;
faltando até a hora do almoço, 300; até o meio-dia, 500;
sendo encontrados operários conversando, de 500 alSOOO
de multa a cada um; quem levar para a fábrica algum livro,
folheto ou Jornal é multado em 500 réis; subir uma escada,
que existe na fábrica, calçado de tamancos o operário ou
operária e multado em ISOOO ( A Luta, 15 dez. 1906).
Enfim, a cobrança de multas e a imposição de um
regulamento para a fábrica devem ser enteqdidas como
estratégia de controle empresarial para obtenção da disci
plina no interior da empresa. Há que notar ainda que es
tas multas, via de regra, orçavam sempre num valor mais
alto que o ganho diário do operário.
A disciplina é uma estratégia de organização do es
paço, e a fábrica se apresenta como o espaço privilegiado
de realização do poder burguês. É bem verdade que este
poder não se circunscreve ao reduto fabril e se dissemina
por toda a estrutura social, mas é no âmbito da empresa que
tem o seu núcleo central de operação a dominação burgue-

55
sa. Da fabrica para a sociedade, passando pelo Estado,
consubstanciam-se práticas que procuram ajustar os corpos
eas mentes dos indivíduos alocais epadrões desejados. O
espaço de fábrica é, pois, um reduto privilegiado de exercí
cio deste poder. Alei da fábrica é a lei burguesa do poder
que subjuga ecoage, mas que também écapaz de cooptar,
como no caso das práticas assistenciais empreendidas pelo
patronato extramuros da empresa.
Outra forma de disciplina e coação entre os traba
lhadores diz respeito aos cartões de controle inaugurados
por certas empresas. O processo consistia no seguinte: a
partir do momento em que um operário se despedisse ou
fosse despedido de uma fábrica, para ser admitido em ou
tra, era obrigado aapresentar um cartão dado pela fábrica
quesaía. Ou seja, a fábrica se reservava o direito de reter
ou não otrabalhador, no caso deterinteresse em que con
tinuasse no estabelecimento, recusando-se a fornecer
o cartão. No caso contrário - o do operário ser despedi
do -estabelecia-se com arede de informações gerada pelo
cartão da fábrica de origem uma verdadeira "lista negra"
que dificultava ao trabalhador encontrar emprego. ADe
mocracia Social trazia o fato à luz, lembrando:
[...] atodos os que negam a questão social no Brasil e que
não precisa sair de Pelotas para se enxergar as faces de cé
lebre questão: que aqui ela existe, não tanto como em Fran
ça, mas mais, muito mais, porque os operários aqui ainda
não chegaram às regiões do govemo e lájá. [...] Aqui [...]
impõe-se condições destas a homens branco, coisa que
nunca lembrou aos escravagistas do Brasil de impor à sua
mercadoria humana (8 out. 1893).
Trata-se, pois, de umaforma de controle que era as
sociada à forma mais brutal de coerção humana, a escra
vidão, recentemente extinta enquanto instituição no país
e à qual os operários freqüentemente incorriam nas suas
comparações. Por outro lado, toma-se claro que a função
da classe operária no sul do Brasil acompanhava o pro
cesso universal capitalista de sujeição dos subalternos à
lei da fábrica. Especificidades regionais, diferenças de

56
escala e qualidade entre os níveis de acumulação de capi
tal não invalidam esta constatação. Esta prática que se de
senvolvia na fábrica encontrava ressonância nos circuitos
privados. A técnica da retenção da mão-de-obra junto ao
local de trabalho era também utilizada nos regulamentos
dos serviçosde criados impostospelamimicipalidade.Em
Pelotas, por exemplo, o criado que sem prévio aviso aban
donasse a casa de seu patrão perderia o salário vencido até
o dia em que se ausentasse... (Democracia Social^ 3 dez.
1893)
Os contratos de trabalho celebrados entre as empre
sas e aqueles que ali procuravam emprego reproduzem
também esta técnica de cerceamento de conduta do ope
rário. Volta à baila a tão criticada fábrica de Júlio Silva &
Cia., de Pelotas, que os jornais operários criticavam, re
produzindo um contrato de trabalho entre Taveme & Cia.,
representantes em Paris da empresa, e os operários que se
engajavam para o serviço do estabelecimento:
Artigo 1° - F. declara saber trabalhar habilmente e compro
mete-se a seguir para Pelotas, salvo caso de força maior, a
fim de prestar serviços, como bom e fiel operário, à Manu
fatura de Calçados Pelotense.
Artigo 2° - Os salários e preços de obra da Manufatura de
Calçados variam entre 3$000 e óSOOO (moeda papel) para
cada dia de trabalho.
Artigo 3° - A Manufatura de Calçados garante a F., salvo
caso de força maior, empregá-lo nestas condições por dia
ou por pela dureinte o tempo contratado.
Artigo 4.° - A Manufatura de Calçados toma a si o custo
do transporte de F. até Pelotas, sendo viagem de estrada
de ferro feita em 3" classe e a de vapor à proa.
Artigo 5° - Os srs. Taveme & C. abonarão a F. a quantia
de 100 fr. que F. obriga-se a pagar à Manufatura de Calça
dos por meio de descontos em seu salário.
Artigo 6° - Depois de 18 meses de bons e leais serviços à
Manufatura de Cáfçados, F., se quiser voltar à França, a
Manufatura de Calçados lhe pagará a passagem de volta,
mas nas mesmas condições de ida {Democracia Social, 3
dez. 1893).

57
o periódico proletário alertava, com propriedade, para
o termo "bons e leais serviços", bastante dúbio enquanto
juízo. Ou seja, se competia ao patrão avaliar seo trabalho
seguia ou não este padrão de fidelidade e competência,
ele poderia deixar de cumprir a sua parte no contrato toda
vez que considerava que aquele "nível" deixasse de ser
atendido. Também é dúbia a possibilidade de o operário
deixar o serviço em"casode força maior", o quetambém
ficava a cargo dojulgamento do empresário. Na prática, o
tratado era unilateral e se constituía numa camisa de força
para o trabalhador.
Na mesma linha se comportava a ítalo Brasileira, fá
brica detecidos deRio Grande, cujos operários tinham vin
do da Itáliacom a promessade ganharo dobro do que rece
biam na pátria de origem e que aquios gêneros alimentícios
eram mais baratos. Na verdade, os operários, em vez de
receberem no Brasil os 6$000 da promessa, passaram a
receber 3$500 e 3$800, salário corrente para o operário da
terra, mas que implicava um engodo para a mão-de-obra
estrangeira importada, que se via desassistida para poder
reivindicar seusdireitos {Echo Operário, 19e 26 set. 1897).
A lei da fábrica tinha seus agentes. O aumento do
espaço fabril, do contingente de operários, a introdução
de máquinas e a divisão do trabalho demandaram a figu
ra de fiscais, mestres e contramestres, a que se destinava
o papel de "vigiar e punir", exercendo o controle da pro
dução e da conduta.
Taisagentes do capital eramjulgadospelostrabalha
dores como elementos que se valiam de sua posição supe-
. rior na empresa para abusar e maltratar os Operários. As
queixas se avolumavam, dirigidas aosjornais, aospatrões
ou até as autoridades do município, acusando que os mes
tres não se restringiam apenas à figura do operário que
violaraas regras da fábrica, mas atingiamtambém pesso
as de sua família que trabalhavam na empresa. Exemplifi
cando este caso, tem-se a seguinte notícia sobre a fábrica
de tecidos Rheingantz, de Rio Grande:

58
Dizem que a família de um operário distinto pela altivez do
caráter fora intimada a deixar a casa que ocupa, porque
querem vingar-se da altivez do chefe em não agüentar os
desaforos dos capatazes. Não obstante ter ele três pessoas
da família trabalhando na fábrica, foi obrigado a mudá-la
mesmo com uma das pessoas em estado de invalidez por
doença. Aí está como na fábrica de tecidos se trata os ope
rários mais dignos: perseguições até com a família que não
tem culpa do que faz o chefe (Echo Operário^ 12 set. 1897).

Via de regra, reclamações sobre as condições de traba


lho,atrasos no pagamento ou maustratossofridos eramres
pondidos com a dispensa sumária do trabalho^^ ou com a
recomendação de que se as condições não agradavam, fos
se o trabalhador procurar outro emprego {Gazetinha, 6 jun.
1897). Não menos freqüentes eram os casos em que os
mestres agrediam os operários fisicamente (7 mar. 1897).
Causava revolta no meio operário incidentes como o que
envolvera o mestre de oficinas de uma fábrica, "escravocrata
grosseiro" {Echo Operário, 26 set. 1897), que agredira um
velho operário a bofetadas e que também afrontava os de
mais ao fumar nas oficinas, o que era expressamente proi
bido segundo o regulamento da empresa.
Todavia, aqueles sobre os quais recaíam os maiores
maus tratos eram as mulheres operárias.
Os baixos salários dos trabalhadores, como já foi vis
to, eram compensados pelos reforços advindos do ingresso
de outros membros da família na empresa, como as mu
lheres e as crianças. A própria mecanização dos estabe
lecimentos, com a entrada em cena das máquinas, impli
cou uma desqualificação/qualificação da força-trabalho
e dos seus "saberes", hierarquizando o quadro do pessoal
fabril. De um lado, dispunham-se aqueles que detinham
o conhecimento necessário de gerir a máquina, via de
regra trabalhadores "importados" Junto com elas ou man
dados buscar na Europa a posteriori, isso antes de que no
Rio Grande se montassem estabelecimentos profissiona
lizantes.
Tal processo implicava uma desqualificação do saber

59
artesanal do operário, tornando desnecessária sua
"virtualidade técnica" para as operações fabris mecani
zadas. O corolário desta hierarquização era a entrada em
cena de uma mão-de-obra da mais baixa qualificação ain
da, ou como tal considerada: mulheres e crianças. Acom
panhava este processo uma escala salarial que atribuía a
estes últimos também os mais baixos rendimentos, o que
era percebido pela classe operária:
A dura e negra lei do salário dá ao homem, como recom
pensadeseuembrutecedor e pesado trabalho, o estritamen
te ou menos que o estritamente indispensável para reparar
as forças gastas no mesmo; à mulher, o seu pesado laboré
pago com um terço do que se dá ao homem. Pessimamente
alimentadas, mal vestidas, como poderá lutar contra os agen
tes naturaise artificiaisque a rodeiam? Sangue depauperado,
pela falta de alimentos reconstituintes do seu organismo,
que condições de vida, de robustez, oferece à sua prole?
{Echo Operário, 17 out. 1897)
O moderno maquinismo, fazendo tão apta a mulher como o
homem para certos trabalhos industriais, permitiu que seja
arrancada ao lar doméstico para arrojá-la à oficina. Não foi
a falta de braços masculinos o que provocou esta industria
lizaçãoda mulher,que a obriga ao mesmotempo a fabricar
produtores e a fabricar produtos. Se os capitalistas têm
utilizado de preferência os braços femininos, é porqueen
contraram neles - como nos braços das crianças - instru
mentos humanos de trabalho por menor preço [...]. Pelo
mesmopreço que deveria comprar-sea única força de tra
balho dò homem, do chefe de família, se a mulher não
estivesse na oficina, o capitalista compra atualmente a tri
pla fp^çade trabalho: do homem, da mulher e do menino.
As mulheres sujeitam-se mais à exploração que os ho
mens, por trabalharem sempre mais barato que estes [...].
Até agora só as mulheres do proletariado é que temos
visto exercer todas as profissões por pesado que seja o
exercício delas, é isso devido à condição de miséria da
classe a que pertencem e que a sociedade atual a expôs, de
modo que estas infelizes, antes dp se lançarem no vício.

60
Atividades nas docas,
inicio do século 20.
socorrem-se do trabalho por mais cruel que ele seja [...].
(24 out 1897).
Os salários mais baixoseram, por vezes, acompanha
dos de uma exigência no campo da produtividade. Em
1895, o proprietário de um estabelecimento, ao recrutar
costureiraspara calças, camisas, ceroulas e paletós, preve
nia que só distribuiria costuras àquelas que fizessem mais
de seis peças por dia {Mercantil, 26 jan. 1895).
Além da exploração salarial do trabalho feminino,
estas se encontravam mais à mercê das investidas amoro
sasde diretores de empresas {Echo Operário, 26 set. 1898)
ou de mestres, contramestres e capatazes. Sobre elas
incidiam com mais freqüência as multas da fábrica. Como
dizia o jornal Democracia Social, ao comentar a punição
de uma operária:
Não sabemos se os homens incorrem na mesma multa por
idêntica falta, sendo possível que não, porque os homens
têm um espemear mais pronto (18 nov. 1893).

Tais abusos contra a figura feminina atingiam pro


porções maiores quando se tratava de mulheres grávidas.
A Gazetinha descrevia desta forma a falta de compreen
são das empresas para com as operárias neste estado, ocor
rida com uma trabalhadora de uma fábrica de tecidos de
Porto Alegre:
Há dias, achando-se em adiantado estado de gravidez e
não podendo porém faltar à oficina porque precisava au
xiliar o sustento dos seus, ela, aproveitando um momento
em que a máquina de que se servia dispensava a sua inter-
Xi^nção imediata, e como se sentisse mal em razão de seu
estado, encostou-se em outra máquina fronteira à sua a
fim de descansar um pouco, sem contudo descuidar-se do
regular funcionamento da que estava a seu cargo. Viu-a
assim o gerente e, sem atender a nenhuma razão, sem con
sideração de espécie alguma, imediatamente multou-a em
5$000 réis! E nota-se que o salário dessa pobre operária é
de 2$500 réis diários! (6 jun. 1897)
Quando não eram multas, eram severas repreensões

62
pelo "relaxamento da postura" que as grávidas realizavam
após longas horas de trabalho em pé. Caso a faltosa insis
tisse no "delito", era despedida da fábrica, segundo a es
tratégia disciplinar obedecida por uma fábrica de meias
de Porto Alegre (Gazetinha, 24 set. 1898).
Desta forma, quando o conhecido comerciante, de
PortoAlegre, EleutérioAraújo passou a empregarmoças
como caixeiras de seu estabelecimento, em 1911, a novi
dade foi bastante comentadapela opinião pública:
Que na Europa e em outros lugares isso se faça ali compre
ende-se porque todos os ramos da atividade humana já es
tão por demais explorados e são tradicionais as normas de
respeito e de seriedade devidas às jovens que labutam pelo
pão cotidiano. Aqui, porém, não: há mil ocupações domés
ticas para as moças, sem que lhes seja preciso ocupação tão
imprópria da sua modéstia e da sua delicadeza de seu sexo!
{O Exemplo, 1^ de maio 1911)

Entretanto, o articulista de O Exemplo convinha que,


atrás de um balcão de loja, as moças ficavam mesmo expos
tas aos gracejos e abusos a que eram submetidas aquelas
[...] pobres senhoritas que perambulam diariamente pelas ruas
da cidade, no vai-e-vém das fábricas, onde intemam-se nas
diferentes seções e ficam sujeitas ao subomo pernicioso
dos capatazes, caixeiros, caixas, guarda-livros e quejandos.

Em suma, o lugar da mulher era no lar, no trato da


família, ao resguardo da vida "fora de casa", aspiração
esta negada pelas precárias condições de existência do
proletariado urbano.
Quanto à presença das crianças no mercado de traba
lho, esta pode ser notada no comércio como nas indústrias.
Anúncios de jornais da época requisitavam caixeiros
de 14 a 16 anos {Mercantil, 12 jan. 1899) ou mesmo de 10
. a 14 anos {Jornal do Comércio, 24 fev. 1883), para o que
se exigia "boa conduta". Imagine-se o qüé deveria ser a
esperada boa conduta para a criança que trabalhasse: no
mínimo, que deixasse de ser criança. Pela sua provável
"falta de atenção", as crianças operárias ficavam mais

63
sujeitas aos acidentes no trabalho, de queeram vítimas.
Os jomais operários não deixavam de denunciar tais
abusos, considerados verdadeiros crimes, como aquele anun
ciado noperiódico ARazão, sobre a morte de um menino
de11 anos, vítima daexploração notrabalho fabril:
Quando deveria ainda andar no colégio, já era obrigado a
ganhar um desgraçado salário para ajudar-se a sustentar.
Quemiserável sociedade estaburguesa. Umpai vê-seobri
gado a sacrificarseus inocentesfilhos para não vê-los pas
sar fome... (1° maio 1896)

Neste sentido, era com verdadeira indignação que os


jomais operários denunciavam casos como os aconteci
dos na Rheigantz, de Rio Grande:
Dizem que a gente de uma fábrica importantíssima desta
cidade proibiu ao professor das aulas da mesma fábrica que
ensinasse aos filhos dos operários além das quatro opera
ções, leitura e escrita. Os operários não precisavam gramá
tica nem estudos mais profundos do que as quatro opera
ções, disse ele (Echo Operário, 12 set. 1897)..
Ou seja, na opinião do periódico, a medida visava con
servar o proletariado na ignorância, cerceando a educação
de seus filhos, para melhor garantir a sua dominação.
Em síntese, os testemunhos apontam para as duras
condições de trabalho que se processavam no Rio Grande
do Sul, no período em que se constituía a sua classe tra
balhadora, convertendo o espaço fabril em reduto do exer
cício da disciplina e do controle do operariado.

64
EU, TRABALHADOR: A CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE OPERÁRIA

Os indivíduos e grupos dão sentido ao mundo e a si


próprios através da representação.
A representação coletiva implica na configuraçãode
idéias-imagens que, constituídas a partir da vivência de
cada grupo, atribuam uma identidade ao grupo. Ou seja,
ela corresponde a práticas sociais e historicamente dife
renciadas que visualizam a realidade de uma determinada
forma, estabelecendo uma rede de interligações de ima
gens, valores, crenças e comportamentos. Enquanto pro
cesso de constituição da identidade, a auto-imagem do
grupo fortalece a coesão interna, estabelecendo, por um
lado, os elementos de regularidade e semelhança e, por
outro, marcando as diferenças com os demais.
O processo de construção da identidade/alteridade
tem, pois, sua relação com o mundo social, embora diga
respeito ao plano do imaginário. A mediação entre con
creto real e concreto pensado não é, assim, de oposição,
tal como uma clivagem entre verdade e não-verdade, real
e não-real. As idéias-imagens de representação coletiva
são elas também parte do que se convencionou chamar
como real (condições concretas de existência). São pro
duzidas em interação permanente e, por sua vez, atuam
sobre este "real", motivando ações e comportamentos.
A leitura dos jornais operários permite surpreender o
reiterado recurso às representações alegóricas da situação
do proletariado, suas condições de vida e trabalho, que são
relatadas através deoontos, parábolas, sonhos, poesias ou
charges. Ora, a expressão alegórica implicareferir-se a uma
coisa, mas apontar para uma outra, para um sentido mais

65
além. Mais do que isso, implica realizar a representação
concretade uma idéiaabstrata, cujosentidonão é manifes
to. Subjacente ao quese vê, se lê ou se imagina, a alegoria
comporta um outro conteúdo (Kothe, 1986).
No casodosperiódicos operários, a narrativa alegóri
ca se faz acompmihar, no final, da indicação de um códi
go que permitirá decifi-ar a parábola. A chave da deciffa-
ção é explícita, para que não caiba dúvida quanto ao sen
tido das imagens empregadas. A simbologia é didática e
tem por fim reiterar a opressão sofrida pelos operários,
exaltar as virtudes do trabalho e contribuir para a
autoconsciência da categoria. Muito freqüentes nos jor
nais eram as pequenas historietas ou contos.
Versão modificada da história do Rei Midas, um dos
contos narrava a atitude de um monarca, ao proibir seus
súditos de trabalharem na terra, para dedicarem-se só ao
trabalho nas minas. A rainha, após tentar inutilmente
dissuadi-lo, serviu lhe de comer somente iguarias... de
ouro. O rei voltou atrás de sua decisão, mas já era tarde:
o tempo do plantio já havia passado, sobreveio a fome na
época da colheita e o monarca foi vítima da revolta dos
lavradores.
A identificação dos personagens da parábola vinha
como lição ao fim do conto, para não haver dúvidas de
interpretação:
[...] o rei é o Capital, a rainha a Razão é os lavradores o
Povo; o trabalho das minas é a exploração de que somos
vítimas, o banquete de ouro os temores burgueses a revolta
dos lavradores a Revolução Social (Avante, 24 fev. 1901).

As alegorias retomam na narrativa de um sonho, na


qual o indivíduo via a beira de um rio uma flor tão bela
que ninguém tinha coragem de apanhar, até que uma jo
vem, não menos bela e resoluta, o fez, despetalando-a ao
vento... As consideraçõesinterpretativaspassam longe dos
cuidados ecológicos e enveredam pelo caminho da crítica
social: a flor simboliza a sociedade livre e para a qual ca
minhava a humanidade a passos de gigante; a jovem re-

66
presentava os valentes precursores deste ideal (Proletá
rio^ 28 maio 1906).
Por outro lado, certos contos são pungentes, dramá
ticos e exploram as condições de vida e de trabalho do
proletariado no sentido de compor tragédias que tenham
o sabor de "verídicas". Ora é o drama de uma família
paupérrima que, em noite de tempestade, vê morrer o
chefe da casa, deixando a viúva com a criança em aban
dono, conto que finaliza com a exortação da mãe ao filho
à vingança, lembrando-lhe que Deus não existe (Avante,
24 fev. 1901), ora é a historieta que narra a falta de com
paixão de um mestre em adiantar dinheiro para o infeliz
carpinteiro que precisava alimentar sua família, mas que
contudo foi salvo pela generosidade do velho guarda da
obra, pobre também como ele, mas que lhe entregou suas
economias (Echo Operário, 1°jan. 1898).
A ligação imediata com o cotidiano não se faz espe
rar, expressa no final do conto: "assim corre a vida de
muitos operários que nós vemos por aí, de rosto pálido e
amargurado".
Implícita fica a mensagem da solidariedade e da ne
cessária união dos pobres ante a avareza dos ricos.
No mesmo tom melodramático é o conto no qual
uma pobre costureira tuberculosa trabalha no vestido bran
co de uma noiva rica, sobre o qual deixa cair um fio de
sangue que lhe escorre dos lábios roxos:
[...] o último talvez daqueles pobres pulmões que não pu
deram resistir ao peso de tantos vestidos de noivas abasta
das! A verdade é que surpreendemos no trabalho um ca
dáver! Ah, alegre desposada! Como não flcarás quando
souberes amanhã que o teu alvo vestido foi manchado pelo
fio de sangue onde o patologista encontrará os indícios do
bacilo de Koch? (A Luta, 15 dez 1906)

O exemplo das costureiras, símbolo da mulher ope


rária, vítima da exploração capitalista, é contrastado com
a visão das mulheres das classes abastadas, que, despre
ocupadas, não precisam matar-se nas longas jornadas de
trabalho.

67
Às vezes, o tom detragédia abre espaço para um fio
de esperança, motivado por uma redenção individual. Na
peçateatral "A honra proletária", levada a efeito em Rio
Grande, em 1906, e que se destinava à propaganda das
idéias libertárias, o patrão acusa de ladrão a um operário e
sua família, que são perseguidos pela polícia, mas o dra
ma tem um final feliz porque o patrão se arrepende e volta
atrás (O Proletário, 28 maio 1906).
Sem pertencer a um teatro operário, mas sem dúvida
alguma classificando-se como um teatro social, encontra-
se a obra de Joaquim Alves Torres, crítico da sociedade
burguesa do século 19, com seus valores, estereótipos,
modismos e comportamentos. Interessa, no caso em pau
ta, aquelas peças que dão conta da realidade operária, como
"O trabalho", na qual se defende o socialismo e denuncia
a exploração capitalista.
Refere Heemann:

Em "O trabalho" toda a complexidade nascente da socieda


de industrial com suas lutas entre o capital e o trabalho faz
uma surpreendente aparição. Esse confronto serve como
sustentáculo da açãoe da narrativa. Não importa que o con
flito crie um vilão e um herói que terminam em posições
esquemáticas. E que o desfecho, com sentido moralizante,
ponha contomo unidimensional e maniqueísta nos prota
gonistas. Capital e trabalho aparecem perfeitamente colo
cados em suas posições antagônicas e digladiantes (Torres,
1989, p.2).

Na peça "O trabalho", por exemplo, o cruel patrão


chantageia um pobre operário que cometera um furto para
salvar a vida da mulher. Para não denunciá-lo à polícia,
quer que lhe entregue a filha como esposa. Esta, natural
mente, é moça virtuosa, bela e ama outro, justamente o
gerente da fábrica, que acaba entrando em conflito com o
proprietário e saindo do estabelecimento. Seguem-se pres
sões, ações de solidariedade entre os operários com o ge
rente que se demite, vilanias e chantagens do patrão, mas
a bondade e a justiça vencem: no final, o patrão cai
fulminado por uma congestão cerebral.

68
Que reações deveria ter provocado esta peça? Sem
dúvida alguma, a intenção do autor, ao polarizar papéis e
estereotipar personagens, era revelar o quadro da questão
social. O granfinale, contudo, não é mais uma vez a revo
lução social, mas a vitória do bem sobre o mal, da justiça
sobre a iniqüidade, como num conto de fadas. Que expec
tativas uma peças dessas atenderia? À esperança de que
ospatrões seregenerassem, sefossem maus? À crença de
que, no final, a nobreza da alma se sobreporia e faria
triunfar a Justiça social? Saídas, sem dúvida, baseadas
em performances individuais e critérios morais, que fi
cam abaixo de uma conscientização propriamente políti
ca da questão social.
A poesia, como outra das manifestações da cultura
operária, divulga ora a imagem da triste recompensa que
aguarda os proletários após uma vida de labuta, ora exorta
à união e à luta, como forma única de superar a ordem
vigente:
Trabalhei o quanto pude.
Regando com meu suor,
Campos que não eram meus
Velho e com pouca saúde
Sem mais amparo, senhor
Peço pelo amor de Deus!
{Exemplo, 12maio 1911)

Proletários! unidos brademos:


Liberdade, progresso e união;
Igualdade na Pátria queremos
Baixe a força e impere a razão
{Proletário, 12jul. 1896).

Outras poesias celebram a figura digna do trabalha


dor, seu vigor físico verdadeiro exemplo de perseverança,
como se pode ver no soneto de Damasceno Vieira:
Eu gostava de ver a valentia
Do músculo obreiro já grisalho.
Cuja fronte, banhada em santo orvalho
Serena e bravamente se expandia!

69
Que rijeza de pulso! Que alegria
Tinhasobrea bigomade trabalho
Batendo firme, comvigoro malho
O malho que só ele suspendia!

Eu, se às vezes nas Artes tenho ingresso


E me sinto cansado jomaleiro.
Enfraquecido às Lutas do progresso,

Não abato o cerviz; mas altaneiro


A liça do trabalho me arremesso
Seguindo o nobre exemplo do ferreiro
(Operário, 6 dez. 1885).
Contos, peças de teatro e poesia se faziam acompa
nhar por representações gráficas do trabalhador. Este é
sempre umhomem corpulento, branco, de barba, ao qual
a rusticidade do desenho não deixa escapar um ar altivo
{Gazetinha, 24 nov. 1895). Junto a ele, instrumentos de
trabalho, os quais o operárioempunhacomo uma arma. E
arma realmente não seriam enquanto sentido simbólico
de força e união contra o capital?
E interessante, contudo, contrapor este tipo de ilus
tração alegórica do trabalhador - alguém dotado de nobre
za pela função que exerce, encamação de uma força que
se espera despertar - com um outro tipo caricatural que
começou a aparecer com freqüência nos jornais do fim do
século. Em particular, a Gazetinha apresentava uma série
de ilustrações que punham em cena os subalternos sob
uma outra ótica: o Zé Povinho.
Magro, enfezado, de pele escura, com falta de dentes
e cabelos em desalinho, mal vestido, Zé Povinho compu
nha o tipo do pobre: sofredor, desassistido pelas autorida
des, deserdado pelo sistema, ludibriado pelos comercian
tes, merojoguete nas mãos dos políticos. Seu tipo racial é
um tanto indefmido e talvez pudesse ser associado a um
mulato. É sobretudo umpobre coitado quesótemdeveres
- trabalhar, pagar impostos - e muito poucos direitos. Re
clamando sempre das autoridades, sem que suas queixas
sejam levadas em conta, ZéPovinho sesitua nocentro da

70
questão da cidadania. Habitante da cidade, era, contudo,
um cidadão de segunda classe.
Já no início da déçada de 80, o jornal O Século criti
cava o sistema político na monarquia, do qual era excluí
do o Zé Povinho (2 dez. 1980).ComQnX^náodíperformance
dos políticos, comentava o jornal:
As coisas são sempre assim: brigam, decompõem-se, esfo-
lam-se e, por fim de contas, quem perde é o pobre Zé Povi
nho que paga impostos escandalosos para sempre
distribuídos entre os pimpolhos (25 set. 1881).

Com a Proclamação da República e a abolição dos


privilégios de nascimento, a palavra cidadania passou a
ter um sentido preciso de extensão de direitos ao povo,
estabelecendo uma relação entre os governados, que pa
gavam impostos, obedeciam às leis e votavam, e o Esta
do, que administrava os serviços públicos e controlava a
política. Todavia, as diferenças sociais perpassavam os
desideratos políticos e, na prática, constituíam-se duas clas
ses de cidadãos. A reversão de expectativas se fazia sentir
em jornais dedicados às causas dos subalternos que se viam
desassistidos no novo regime:
Onde estão estas promessas de bem-estar, de abundância e
de liberdade que a cada passo se fazia com palavrões chei
os de uma retórica que hoje consideramos ridícula por par
te deste governo que dirige atualmente os destinos do Esta
do? [...] Esta política intolerável, imprestável mesmo, rou
ba-lhe o necessário tempo para cuidar dos interesses do
povo, deste mísero e infeliz povo que, no entanto, é a alma
do Estado, a alavanca do progresso, o motor da liqueza
pública (Gaze/írt/ífl, 3 abr. 1892).

Ao fim de contas, ser Zé Povinho, no final do século


19, em Porto Alegre, significava, entre outras coisas, ser
um trabalhador pobre, isto é, ocupar uma posição subal
terna e socialmente desqualificada no mercado de traba
lho, morar em cortiços ou em habitações precárias e an
dar mal vestido. Representado caricaturalmente nestes
termos, ora com ar ingênuo, ora triste, mas sempre hu-

71
mílde e porbaixo nas situações (Gazetinha, 10 nov. 1895,
29mar. 1896), ZéPovinho eraobjeto depiadas e charges
alusivas à suacondição de explorado. O humor, contudo,
nãovisaridicularizá-lo, masdenunciar, pelapiada, a situa
ção das classes menos favorecidas. Sua imagem é bem
distante daquela representação do trabalhador altaneiro,
tipodeus grego comgrilhões, prontoa rebelar-se. Crê-se,
contudo, quese tratade diferentes construções simbólicas
emtomode ummesmo personagem, o proletariado urba
no. A questão poderia ser tratada tanto seriamente - a
alegoria quanto à nobreza do trabalho - como de forma
picaresca - as desventuras do cidadão de segunda classe -
, mas se trata de diferentes instâncias de abordagem. O
Zé Povinho, por exemplo, não é um ocioso, um vaga
bundo, mas um cidadão que é oprimido pelo sistema. O
operário é um trabalhador que, injustamente, sofre na
fábrica a mesma iniqüidade do sistema vigente.
Trata-se, a nosso ver, de diferentes espaços e formas
da construção de uma identidade operária, que se repre
senta sob diferentes facetas.
Todavia, a construção da identidade do proletariado
não se manifestou só no plano da produção literária e artís
tica. Os periódicos da época estão plenos de conceituações
valorativas sobre a classe, que tem como tônica a identifi
cação de alguns traços comuns: a subaltemidade, o traba
lho como condição de vida, a pobreza, a exploração:
O homem operário, acostumado às lutas da vida, é o incan
sável trabalhador de sempre, vive às custas do honrado la
bor cotidiano que dignifica, nobilitando o caráter [...] sujei
to, infelizmente, à especulação ridícula de exploradores
mercenários, transforma-se em fonte inesgotável de extor
sões aviltantes, baixas e miseráveis que tem por objetivo
único e exclusivo salientar a opulência dos porta-vozes da
hipocrisia, sem ter o direito de reclamar o justo valor do
seu trabalho [...] (O Direito, 2 set. 1900).

Em estilo grandiloqüente, o operário é apresentado


como o responsável pelo progresso da sociedade e pela
riqueza das nações:

72
o proletário é o mineiro que penetra as entranhas da terra
para de lá tirar o combustível com que se alimentam as
máquinas e, também, o ouro com que se satisfaz a vaidade
humana; é o marinheiro que, enfrentando as águas do oce
ano, julga-se mais forte que as ondas [...] é o lavrador que,
cantarolando, sulca a terra, deita nela o grão, o vê crescer,
cuida-o escolhe-o, é o artista que constrói o que de mais
sublime no gênero da arquitetura, pintura ou estatuária [...].
Oproletário é o povo, é a nação, é a humanidade, é o uni
verso de que ele representa maioria absoluta [...]. Sem ele
nada progride, as principais fontes produtoras do capital -
agricultura, indústria e comércio - não poderão existir [...].
O proletário e o gigante cujos ombros são as bases de toda
a organizaçãogovernamental, produtorese financiadoradas
nações, suporta, entretanto, o desprezo da sociedade [...]
{O Proletário, 5 jul. 1896).

Obreiro do progresso, mas aviltado pelo sistema, peça


essencial da sociedade moderna, mas humilhado pela mes
ma sociedade, a visão do proletário sobre si mesmo, sem
dúvida, não representava o ápice de um processo de cons
ciência de classe. Esta, contudo, se constrói ao mesmo tem
po que a classe,num processo lento e históricode identifi
cação de vivências comuns e de contraste com as condi
ções dos outros grupos sociais.Neste processo de identida-
de/alteridade, independente das posturas políticas assumi
das pelosjornais (socialista, anarquistaou sem filiaçãoideo
lógica defmida), a constatação da desigualdade social ope
rava como o contraponto da visão burguesa do mundo.
É interessante a correlação que se estabelece com fre
qüência entre a situação da escravidão, recém-abolida nb
fmal do século, com a atual situação vivenciada pelo proleta
riado. Dizia o Echo Operário, em 1898, que não haviam
sido os interesses da pátria ou sentimentos humanitários os
que haviam inspirado aquele ato tão aplaudido, mas sim
[...] a exploração burguesa que, depoVs de acurados estu
dos e cálculos, chegou a convicção de que, mantendo es
cravizado o espírito, mais lucros auferia do que a velha
escravidão do homem (28 mar. 1898).

73
Em suma, a lógica do capital é que determinava a
emancipação, convertendo-se o operário num novo tipo
de escravo, mais rentável para o sistema em termos de
acumulação.
Para a construção desta auto-imagem certos concei
tos sãofundamentais no imaginário socialproletário: povo,
trabalho, capital, a natureza da relaçãoentre ambos,justi
ça social e, como não podia deixar de ser, em se tratando
da classe trabalhadora, as metas a serem seguidas.
Em princípio, o operário, base da nação, maioria
absoluta de sua população, é opovo (jO Pampeiro,6 maio
1886),é a própria humanidade. Neste sentido, o trabalho
é entendido como o guia da humanidade ao longo da his
tória, responsável por todas as conquistasfeitas:
O trabalho é o perfeito arquiteto de todos os momentos que
a liberdade há levantado através dos séculos: é a luz que
vemos brilhar nos astros sublimes das constelações do sa
ber e do engrandecimento humano; é a tradução de todas as
liberdades passadas, os sustentáculos das presentes e será,
decerto, da verdadeira democracia, da verdadeira igualda
de (O Proletário, 26 Jul. 1896).
A idealização do trabalho como atividade humana e
enobrecedora é recorrente nos textos operários:
Creio no trabalho honesto, todo poderoso criador do bem
sobre a terra, e no progresso um "Só seu filho, que não tem
senhor, o qual é concebido do santo espírito do Direito e
nasce da virgem Justiça. Creio que Trabalho e Progresso,
Direito e Justiça, padecem sob o poder do govemo bur
guês, são torturados sempre e espoliados e deram ao in-
' ^ femo chamado miséria. Creio que há de surgir o dia da
reivindicação, em que o trabalhador subirá à posição que
lhe compete [...] (Avante, 17 jul. 1908)

Um credo desta natureza, onde a religião se confunde


com a concepção do operário como Homofaber, onde a
redenção viria pela revolução social, sem dúvida deveria
causar impacto nas comunidades trabalhadoras com for
te influência religiosa, tipo a italiana.

74
Ora, sendo o trabalho atributo ou função da natureza
humana e potencialmente gestor da sua felicidade e bem-
estar, responsável por tudo de grandioso que a sociedade -
ou o trabalho social acumulado - pudera produzir, por que
isto não se realizava?
A resposta estava nas duas condições vigentes do
capitalismo, nas quais o trabalho não era um direito, mas
uma opressão, tolhendo-lhe a força, a criatividade, a li
berdade, a inteligência(yf Voz do Operário^ l°abr. 1899).
Naturalmente, a documentação analisada diz respeito
a jornais operários que, como todo periódico, visa à for
mação da opinião pública. No caso em pauta, é uma opi
nião classista e, acrescentado o fato de que muitos destes
periódicos tinham propostas políticas definidas (socialis
tas, anarquistas), trata-se de uma opinião ideologizada.
Também é certo que os articulistas não podem ser toma
dos como a expressão da classe em seu conjunto, mas tal
vez como a sua vanguarda que, por ser politizada, relati
vamente instruída e engajada num projeto determinado,
pretendem convencer e socializar suas idéias pelo conjun
to do proletariado.
Difícil é medir a eficácia da penetração de tais idéi
as no meio proletário. É possível identificar, isto sim, a
presença dos líderes no movimento sindical e grevista,
retomando o discurso da igualdade, da justiça social, da
revolução.
Entretanto, tais discursos, elaborados a partir de pres
supostos teóricos alienígenas - Engels, Marx, Bakunin,
etc. -, são, neste momento, correlacionados com as con
dições de trabalho e vida do operariado brasileiro e lo
cal. O texto, pois, se refere a um contexto onde a
cotidianidade reforça a teoria importada. O objetivo pa
rece ser o de possibilitar ao leitor a identificação de sua
condição operária no discurso geral do opressão capita
lista. Se esta era a leitura obtida pelo conjunto da classe,
é difícil medir. Mais uma vez o contexto vem em apoio
ao discurso: a constância da resistência, da greve, da sa
botagem, do inconformismo ante as condições da e-

75
xistência operária dá talvez umapistano sentido de que a
auto-identidade começava a se afirmar.
O operariado se viacomo importante, por ser identifi
cado com o trabalho, e portanto como fator de progresso,
mas se sentia subalterno e injustiçado por não ter o direito
de usufinir os fiutos do seu labor, como pensava merecer.
O resultado objetivo era a constatação da miséria,
que ocorria nos grandes centros urbanos e industrializa
dos e na Porto Alegre dos inícios do século:
Em nosso meio a miséria é a mesma e quem se desse ao
trabalho de percorrer os tugúriosescassos onde habitam os
deserdados encontraria as mesmas figuras tristes e macilen-
tas que caracterizam os explorados de outras partes, veria
criancinhas débeis, que não têm nos lábios o rubor da vida,
nem acharia nestes lábios descorados o enczuitador sorriso
dos crianças. E quantas e quantas destas criancinhas, flores
delicadas que só vivem de amor e de carinhos, fenecem por
não terem os seus tristes pais os recursos precisos para desde
o primeiro dia que nasce um filho tratá-lo com a solicitude
requerida? E os jovens operários que na escravidão das ofi
cinas vão tendo dia a dia o organismo minado por enfermi
dades que ele sente, mas a necessidadede ganhar a vida obri-
ga-o a trabalhar até que se vá um dia morrer num catre de
hospital? Não é isso miséria? (A Luta, 13 set. 1906).

A intenção era comover, apontar as agruras, revelar


a pobreza, denunciar a insatisfação e fomentar a resis
tência. Era, principalmente, demonstrar a falta de justiça
social vigente:
Suprema irrisão d'um grande ideal, falsificação pungente da
mais bela esperança. Que escámeo! Justiça não é o oiro do
saber, não é o pão, não é a benevolência, não é a Liberdade,
o desprendimento Justiça é o homem sujeito ao tribunal
piolhoso, são as promulgações obtusas d'um código, são os
decretos néscios d'um intendente, são as máximas sediças.jde
todo o bisbórriaempanturrado à hora da digestão.Justiçaé o
policial manhoso quenosespreita, ofiscal municipal, o guarda
da alfândega bisbilhoteiro, o oficial de diligências, toda a
variedade de esbirros, toda a espécie de beleguins, toda a
raçade cãesde guarda (O Proletário, 28jan. 1906).

76
o cotidiano era assim esquadrinhado, realidade próxi
ma ao proletariado, pedaços da vida de cada dia, que encon
trassem significância, que dessem sentido a uma represen
tação mental da categoria. Humilhado, espezinhado, avilta
do,explorado, roubadomas, ao mesmotempo,digno,obrei-
ro, construtor do progresso, sustentáculo da sociedade.
A relação entre o capital e o trabalho era evocada dida
ticamente pela vivênciade cada um, onde as considerações
morais encontravam fácil associação com a cotidianidade
ou com exemplos corriqueiros e de fácil entendimento:
Acerca das relações entre operários e burgueses, a nossa
questão é simples, desde que todos queiram ver classe e pôr
a palavra a serviço da visão mental. Como classes, os nos
sos interesses são tão antagônicos quanto os poderem ser
coisas diametralmente opostas: eles são os exploradores,
nós os explorados. Não há adversários mais irredutíveis do
que aquele que mata e aquele que morre. Os viajantes que,
numa diligência em caminho deserto, se vêem de noite ata
cados por salteadores não podem esperar mercê. Nós tam
bém não a esperamos (Echo Operário, 1° maio 1910).
Neste contexto, a "Justiça social" se encontrava, sim,
do lado do mais forte, agindo em defesa do capital, e a
burguesia era comparada ao Minotauro da fábula, na sua
ânsia jamais saciada, ou ao sanguinário deus Moloc dos
fenícios. O texto passa do exemplo didático do cotidiano
ao refinamento das imagens mitológicas, que seriam com
preendidas por poucos ilustrados. Tratava-se, muitas ve
zes, de traduções de artigos escritos na Europa, nascidos
numa outra cultura, mas que se buscava encontrar reci
procidade de acolhida no contexto brasileiro. O intento
era visualizar todo o sistema como injusto, entendendo
ser o mesmo vicioso em origens:
O capitalista, fruto do roubo em sua origem e sustentado
através das idades com o produto do trabalho alheio, teve
logo após o seu desastroso nascimento, como principais au-
xiliares ria manutenção do seu iníquo domínio das criações
diabólicas e antinaturais: a Autoridade e a Religião {Echo
Operário, 1°maio 1901).

77
Diante de um tipo de relação social baseado na iniqüi
dade", "despotismo", "menosprezo" e"parcialidade" (A De-
mocracia, maio 1905), os articulistas se perguntavam se
a sociedade tinha duas lógicas, a das aparência burguesas
de sentimentalismo e justiça e a do indiferentismo ante a
situação operária {Democracia Social, 19 nov. 1893). Invo
cava-se a fábula do lobo com a pele de cordeiro (A Demo
cracia, P maio 1905), verdadeira imagem daburguesia dis
simulada que sefazia passar por caridosa.
A coisificação do operário era lembrada, indicando
a sua desumanização, a sua conversão num mero apare
lho deproduzir mais e mais {A Democracia, 22out. 1905).
A solução para tais males variava conforme a postura
político/ideológica da imprensa operária: oraeraa reden
ção moral doproletariado, pela educação e pelaparticipa
ção política(socialismo), ora o desenvolvimento do espí
rito associativo, baseado nos ideais de fraternidade e Jus
tiça (anarco-sindicalismo).
Há, contudo, uma idéiaque perpassae que não é per
tinente a esta ou aquela tendência: o princípio evolucio-
nista, caro ao pensamento do século 19 e base do mito do
progresso.
Como dizia o Echo Operário no início do século: "a
natureza não dá saltos e será pela evolução que hão de
fazer-se as reformas necessárias (P maio 1901).
Ora, identificado o século 19 como o "século do capi
tal" {Avante, 24 fev. 1901), cabia ao século 20 realizar a
concretização da tendência finalista presente no pensa
mento proletário. Na necessária e inexorável evolução
da humanidade, a idéia do progresso, na versão dos su
balternos, haveria de redimir os dominados e restaurar a
sua dignidade:
Evoluir... esse o 'mot d'ordre' que hoje escapa de todos os
lábios e que as inanimadas coisas parecem ecoar. Tudo evo
luiu,tudo se agita em luta ciclópica, gigante, para alcançar
umacoisamelhor, apenas emsonho entrevista, emmórbidos
sonhos acarinhadas [...]. Quea desigualdade é a leida natu
rezae a igualdade absoluta umautopia - nósbem o sabemos.

78
ItVi
Nlss a. solução do problema social nãoconsiste em estabele
cera igualdade absoluta, sim, em organizar a sociedade de
modo a oferecer e facilitar a cada um dos meios de poder
desenvolver livremente assuas capacidades, sem prejudicar
uns aos outros. Consiste em fundir o inferno e o paraíso e
não haver mais duas humanidades: uma que esgota a exis
tência das orgias e morre naopulência; eoutra que esgota-se
no trabalho e morre namiséria (À Evolução, 2 fev. 1902).
Trata-se de uma visão não radical, onde até a identi
ficação da utopia é feita e se admite que os caminhos
para a redenção passam pela razão, pela justiça ou mes
mo pelo amor. Não se trata de uma visão revolucionária
que pregue a luta armada. A revolução social, ápice do
processo produtivo, viria, não pela violência, mas pelo
associativismo, pela resistência, pela denúncia.
Este tipo de visão, bastante difundido no meio operá
rio, contrasta com outras tendências que pregavam a vin
gança e a luta de classes, como se pode ver no jornal
socialista Avante (22 fev. 1901, 29 abr. 1902).
A tendência geral, contudo, não era a luta armada, e
as incitações "literárias" à vingança e à participação pas
savam pelos caminhos da intemacionalidade da conscien
tização. O operário devia visualizar-se como oprimido e
subalterno, mas encaminhar a sua ação para os movimen
tos associativos, sindicais ou do partido político que res
pondesse pelos interesses proletários.
Considerando as condições de formação do proletaria
do urbano rio-grandense, sabe-se a importância que ocupa
va o coritingente de origem estrangeira, fosse ele "importa
do" do exterior pelos empresários, em busca de mão-de-
obra qualificada, fosseele oriundo do processo imigratório
vigente. Da mesma forma, constata-se a preferência do
empresariado localpor estetipo de mão-de-obra, conside
rada de superiorqualidade, habilitada para o serviçofabril,
concentrando em si as virtudes capitalistas do trabalho.
Como o operariado se visualizaria neste contexto? O
componente nacional teria sobre si também a carga pejo
rativa da escravidão a pesar-lhe sobre os ombros? O traba-

80
lhador estrangeiro, louro e de olhos azuis, também se colo
caria ante a própria classe como o melhor e mais apto?
A documentação nos fornece algumas pistas. Refe
ria o jornal O Proletário, em 1896:
Estes nossos operários hão de ser sempre os mesmos, nada
mais os endireita. Não fazem mais caso de classe nem de
coisa alguma; querem de tudo isso o sossego segundo pare
ce. Domingo houve quem caisse em convidar os operários
para uma reunião na Rua Ramiro Barcelos e sabe o que
sucedeu a esse alguém? Ficou como macaco que mete a
mão em cumbuca, pois à hora aprazada lá tinha pouco
mais de ninguém. A reunião era de operários nacionais,
vê-se logo, porque se fosse de estrangeiros isso não se
daria. Domingo, a uma hora, efetua-se uma outra reunião.
Quererão os operários nacionais desmentir o conceito pou
co lisonjeiro que deles se faz? (26 jul. 1896).

No final do século 19, pois, o preconceito existia e


se manifestava pelas páginas da imprensa operária. Implí
cita ao comentário, está a apreciação sobre as partes: o
operário estrangeiro era responsável, consciente e pontu
al, e o operário nacional despreocupado com as questões
relativas a seu interesse, inconseqüente. A diferença apon
tada no texto diz respeito a comportamento, a modo de
ser, a hábitos condenáveis ou não, não tratando de pos
síveis desníveis em termos de habilitação técnica. Abor
da diferenças culturais, não profissionais.
Todavia, a distinção entre nacionais e estrangeiros
tenderia a persistir. Por ocasião de um encontro da asso
ciação operaria ocorrido em Porto Alegre, em 1906^sdado
o grande número de alemães foi aventada a questão da
língua oficial da sociedade: seria adotada a portuguesa
ou as duas, portuguesa e alemã? Este ponto de discussão
provocou celeuma, gerando opiniões controversas. Con
tudo, prevaleceu o julgamento de que a língua adotada só
poderia ser o português, idioma db país onde a associação
se instalara; por outro lado, todo recém-chegado a uma
nação estranha deveria procurar aprender a língua local
{A Luta, 13 set. 1906).

81
o incidente é elucidativo tanto para demonstrar o forte
contingente de alemãesno proletariado urbano da capital
quanto para evidenciar as questões culturais que se inter
punham entre os dois grupos.
A tentativa era de fazer prevalecer uma auto-imagem
que ultrapassaria tais distinções promovendo a coesão so
cial da categoria. As possíveis diferenciações ou pontos
de divergência de hábitos, comportamento e idioma deve
riam ser postos de lado em função da busca de condições
de vida e trabalho que irmanassem a todos numa concep
ção comum frente a classe.

82
o ESPAÇO DA VIDA:
ONDE MORAM OS POBRES

Michelle Perrot aponta para um fenômeno que teria


ocorrido no século 19: enquanto que o movimento ope
rário imaginava o advento de um mundo novo no qual a
classe proletária seria a demiurga, as classes dominantes
se retirariam para o conforto da vida privada e a constru
ção do "eu". Estabelecer-se-ia, assim, uma separação en
tre público e privado (Perrot, 1981, p.VIII).
Ao contrário da situação vivida hoje pelos operários,
na qual se encontraria uma preocupação com o espaço
privado, subtraindo ao olhar do patrão seu lar, no século
19 os operários reivindicariam "menos direito ao aloja
mento que o direito à cidade, espaço para viver (p.l9).
Complementa Perrot:
Durante um longo período, a reivindicação operária
conceme ao aluguel, não ao alojamento. Destes, se fala em
termos de custo, de peso no orçamento, não de conforto ou
de espaço. Que as greves não digam nada com relação a
isso, nada de surpreendente:tal não é o seu objeto (p.20).
Ou seja, a separação entre o público e o privado no
século 19 resguardaria o burguês no reduto do lar e en-.
tregaria a rua ao domínio público.
A "rua", antes de ser um lugar histórico, um lugar
político, é umhabitai,uma"interioridade" (Georgel, 1986,
p.1),é o espaço do povo, que se opõe radicalmenteà casa,
lugar da intimidade burguesa...
Como refere Sennett (1989, p.30-í2), a família bur
guesa do século 19 tentou preservar uma certa distinção
entre o sentido da vida privada e a realidade exterior ao

83
lar. No primeiro, reduto da intimidade, regido pelos laços
do afeto e das leis da família, contrastaria com o espaço
público, onde as pessoas eram forçadas a conviver com
grupos díspares e desconhecidos, para o que se estabele
ceram regras diferentes para apresentação dos indivíduos.
Surgiram padrões de interação social adequados ao inter
câmbio com estranhos, ao mesmo tempo emqueo espaço
público passou a ostentar redutos de socialidades inde
pendentes do controle direto das famílias burguesas. De
uma certa forma, determinados redutos acompanhavam
distinções sexuais e sociais marcadas, produzidas no bojo
daconstituição deumaordem burguesa. Cafés, porexem
plo, eram redutos de socialidades masculinas, e se nas
confeitarias eram admitidas mulheres, estas pertenciam
sem dúvida ao círculo das elegantes e andavam sempre
acompanhadas. Tal como os clubes ou teatros, estes lo
cais públicos funcionavam como que uma extensão do
domínio privado burguês.
Mas nos parques, nas praças e nas avenidas, não ha
via como proibir a circulação dos demais: as ruas se en
chiam de gente do povo, num vaivém promíscuo de trajes
e odores, que colocava lado a lado a distinta senhora que
ia às compras com um descuidado cangueiro a caminho
do porto. Quem sabe até se este, no seu modo desengon
çado de andar, não roçaria um vestido trabalhado com ren
das e fariabalançar a sombrinha que resguardava a dama
dos rigores do sol?
Esta era, todavia, uma realidade inevitável: à medida
que a cidade crescia, que a vida comercial e fabril da urbe
se estendia, um povo sem rosto parecia habitar as ruas.
Eram, em princípio, pobres, mal vestidos, muitas vezes
mal-encaradose freqüentemente atemorizavama vida das
famílias burguesas. A caminho do trabalho, na volta da
fábrica, fazendo biscates, mendigando ou simplesmente
flanando, a rua parecialhespertencer. O domínio do pu
blico parecia particularmente perigoso, atentatório aos
padrões morais dafamília burguesa, ameaçadora aosbons
costumes. Afinal de contas, era no espaço público que a

84
maior parte dos crimes se perpetravam e também a mai
oriados seus agentes era gente pobre.
Sennett coloca que, num século 19 europeu convul-
sionado pela consolidação do capitalismo, fortaleceu-se
a idéia de que o espaço da rua era perigoso. Era preciso
refugiar-se dos perigos do domínio público abrigando-se
no privado. Orefugio básico daconcepção burguesa será
a família, concebida como reduto da moral, do amor, da
tranqüilidade. Para tanto criou-se todo um discurso, um
padrãode conduta,uma forma de trajar que demarcassem
os domínios do convívio familiar daqueles do público. Na
turalmente, este tipo de confrontação, brotado das condi
ções de constituição de uma sociedade capitalista, condu
ziram, enquanto comportamento, a uma duplicidade de
moral. O queera imperativo ao larburguês podia servio
lado na rua sem maiores problemas de consciência. O
mundo exclusivo da privatização familiar permanecia
intocado e moralmente superior, mesmo que os seus mem
bros - masculinos sem dúvida - rompessem suas regras
no domínio do público.
A constatação, contudo, não pode levar a imaginar
queo espaço público se tomasse, efetivamente, o reino da
desordem e do vale-tudo. Justamente as pressões de
privatização suscitadas pelo capitalismo no século 19
conduziriam também a um intento de normalização do es
paço público.
Tais considerações, feitas a partir da análise de con
dições concretas da vida urbana nas cidades européias do
século 19, remetem a uma dúvida: esses processos teri
am se repetido nas condições locais?
Tomemos o caso de Porto Alegre, maior cidade da
província e no qual teríamos configurado, a partir da se
gunda metade do século 19, um crescimento urbano,
acompanhado do surgimento de fábricas. Nesta Porto Ale
gre dafin de siècle, onde uma ordem urbana se instalava
e os trabalhadores marcavam a sua presença nas indústri
as nascentes, onde moravam os pobres? Teriam os traba
lhadores urbanos também pouca preocupação com o alo-

85
jamento? Encarariam a rua, o espaço público, como seu
domínio e esfera de ação?
No caso de Porto Alegre, a ocupação do espaço prin
cipiou pela ponta da península, num conglomerado de
casas que seestendeu aolongo detrês longas ruas, parale
las à praia, cortadas por pequenas ruas transversais que
desciam da cidade alta à cidade baixa. No decorrer do sé
culo 19, a cidade adquiriu um maior movimento quando
se tomou o centro escoadouro dos gêneros produzidos
pela zona colonial alemã. Por ocasião do cerco à cidade,
durante a Revolução Farroupilha, osprimeiros problemas
propriamente urbanos eclodiram: a população fora obri
gada a concentrar-se na área central, e esta proximidade
pôs a nu problemas até então não conhecidos pelo antigo
burgoaçoriano. Aglomerados de casas de todos os tipos,
num cmzamento de mas e becos, exibiam um crescimen
to anárquico.
Nas décadas de 50 e 60, a cidade cresceu para além
dos limites da área central e surgiram os arraiais, zonas
suburbanas onde se erguiam olarias, moinhos, matadou
ros e pequenas fábricas.
Todavia, era na área do Centro que se verificava, na
opinião dos notáveis da cidade, uma promiscuidade
indesejada de ricos e pobres, vivendo face a face. A cida
de se revelava suja, malcheirosa, desordenada.
Os velhos sobrados e casarões, que haviam sido mo
rada de baronesas e brigadeiros, passaram a atestar a di
versificação social da Porto Alegre do século 19. Enquan
to seus donos se retiravam para a Duque de Caxias ou
peira a Independência constmindo novos palacetes, as an
tigas construções, sublocadas, passaram a abrigar nos seus
porões uma população pobre que se tomava cada vez mais
numerosa.

Já no início da década de 90, encontramos referência


à moradia nos porões e nos sobrados e à construção de
habitações coletivas irregulares, espécie de galpões for
mados por um conjuntode cubículos, chamadoscortiços.
A moral pública indignava-se com a revoltante pro-

86
miscuidade dos habitantes de tais ambientes e do espetá
culo nada edificante que ofereciam às famílias de bem.
Ora eram porões que abrigavam mulheres de má vida (O
Século^ 15 jan. 1882), ora eram cortiços cujos habitantes
promoviam algazarras nos fins-de-semana, trazendo as
famílias moradoras nas imediações em contínuo sobres
salto {O Mercantil, 9 e 13 fev. 1889).
Em 1890, um levantamento "estatístico" dava 5.996
prédios para a cidade de Porto Alegre. Destes,4.692 eram
térreos, 464 assobradados, 634 sobrados e 141 cortiços. A
opinião sobre este último tipo de prédio expressava o de
sagrado de uma cidade que crescia e se queria bela, orde
nada, higiênica:
Restam-nos 141 cortiços, gênero de habitação muitas ve
zes indescritíveis, onde a aglomeração e tal que dificil
mente se chegará a um bom recenseamento entre seus habi
tantes, a maior parte sem família e vivendo em promiscui
dade repugnante (Anuário do Estado, 1893, p.l55).

A República, que trouxera consigo os ideais do pro


gresso econômico e da ordem burguesa, iria tentar impri
mir à cidade uma disciplinarização do espaço. Por outro
lado, este processo não reverteria em prol do enunciado
positivista da "incorporação do proletariado à sociedade
moderna?
Uma das formas de impedir a proliferação de habita
ções insalubres, feias e atentatórias à moral era aumentar
o imposto predial, particulamente no que dizia respeito
aos cortiços, o que já fora feito desde 1890 (Bakos, 1986,
p.l76). Outra medida seria estabelecer as regras a serem
observadas para as construções na cidade, o que seria
enunciado no Código de Posturas Municipais em 1893.
Buscava-se ordenar, padronizar e regulamentar o surgi
mento de novas edificações, dando um aspecto mais "ci
vilizado" à cidade. Casqs alinhadas, com alturas míni
mas dos pés direitos interiores; quartos com obrigatorie
dade de arejamento e área mínima; fixação da espessura
das paredes; regras para construir sacadas e balcões; proi-

87
bição de rótulas e portas de abrir para fora; obrigatorie
dade delatrinas; distância média para o alinhamento, eram
medidas a serem observadas pelos construtores ou
reformadores de habitações, que ficariam sujeitas à fis
calização pela municipalidade. Ficavam proibidas as
edificações em madeira nos alinhamentos das ruas ou
contíguas a outros prédios. As edificações que fossem
repartidas para mais de uma habitação não teriam em
comum quintal, esgoto, latrinas e tanques. Em suma, os
prédios coletivos deveriam satisfazer as condições de hi
giene, segurança e estética a juízo da Intendência (Códi
go de Posturas, 1893).
Na defesada regulamentação dasconstruções, o con
selheiro municipal Ramiro Barcelos argumentava emtor
nodaproibição damoradia emprédios que não satisfizes
sem as condições de higiene: como se dá por exemplo
com os inúmeros porões no Centro da cidade e que cons
tituem também um dos focos de insalubridade (Anais do
Conselho Municipal, 24 jan.1893, p.72).
O Código de Posturas visava claramente colocar fora
das normas e padrões aceitos os velhos sobrados e corti-
ços,ficando a intendência capacitada a mandardemolir as
novas construções que não seguissem estas regras. Abria-
se também, legal e publicamente, espaço para uma cam
panhacontraas moradias dos pobresno Centroda cidade.
Jornais identificados com a çausa popular, como a
Gazetinha, denunciavam que a intendência municipal con
tribuía para tomar mais cara a residência na cidade:
Parece inverossímil, mas infelizmente a triste realidade é
esta: a intendência influi diretamente para que o aluguel
das casas, aqui na capital, seja elevado a preços excessivos
(25 ago. 1895).

A acusação se dava em termos de revelar que a Inten


dência, ao elevar os impostos urbanos, incentivava os pro
prietários a superlotar as casas de aluguel, elevando tam
bém as mensalidades da locação. A situação acabava em
despejo paraostrabalhadores que, combaixos salários, não

88
podiam arcar com a elevação dos aluguéis (16 jan. 1896).
Tais denúncias diziam respeito à ausência de casa pró
pria para os proletários urbanos, que se viam obrigados a
recorrer às habitações dealuguel e,como tal, ficar sujeitos
às decisões do senhorio. Esta era uma questão amplamen
te discutida no seio do Conselho Municipal, a quem com
petia fixar os impostos. Era entendido que a elevação do
aluguel tinha causa primeira na falta de prédios para alu
garaospobres (Anais doConselho Municipal, 7 nov. 1894,
p.22), subentendida ficava a questão de que, a cada eleva
ção do imposto, os proprietários repassavam os custospara
oslocatários. A situação descambava para uma situação de
fraude, pois, como a lotação do imposto predial era feita
por funcionários municipais que visitavam asmoradias, com
freqüência se estabelecia um "acerto" entre as partes, com
evidente prejuízo da arrecadação.
A Intendência encontrava-se frente a três problemas
trazidos pela política habitacional: a necessidade fiscal de
cobrar o imposto predial, as tentativas de impedir o au
mento arbitrário de aluguéis e a busca para anular as prá
ticas lesadoras do fisco.
Uma das formas de controlar a fraude foi estabelecer,
através do Ato n° 3, de 16 de dezembro de 1896 , que a
lotação do imposto predial fosse feita mediante apresen
tação do recibo do aluguel.
Por outro lado, tentando acelerar o processo de novas
construções, o Conselho Municipal aprovou, em 19 de
março de 1896, um projeto de lei impondo o imposto sobre
os terrenos baldios ainda presentes na área central (p.lO).
A questão, pois, não era a inexistência de espaços va
zios, mas a sua propriedade. A assimetria social reprodu
zia-se na desigual ocupação do espaço urbano. Estas evi
dências se chocavam com o conceito de cidadania, res
gatado com força pelo novo regime republicano. Obede
cer às leis e pagar impostos, eis os deveres dos cidadãos,
que tinham como expectativa ver o Estado executar cor
retamente as leis, aplicar com justiça o imposto arreca
dado e fiscalizar a prestação dos serviços públicos.

89
Ac[U6stâo dos âluguéis cdos impostos, contudo, âin-
dasearrastaria pela República a fora.
Em 1900,o Correio do Povo comentava a inconfor
midade dapopulação com o aumento do imposto predial,
ressaltando que principalmente os cortiços eram onera
dos. Naturalmente, um jornal de opinião conservadora
partilhava da posição oficial de desencorajar as habita
ções deste tipo, "pestíferas, sem aresem luz" (2set. 1900),
que tanto enfeiavam a cidade. Entretanto, mesmo um jor
nal conservador concordava que a corda rebentava do la
do mais fraco: "os pobres comem menos carne e ficam
semos cortiços porcausado aumento dos impostos muni
cipais" (6 set. 1900).
Embora a referência à carne fosse fazer os contempo
râneos sorrir, a constatação mais evidente se dava com
relação ao agravamento das condições de vida dos traba
lhadores urbanos, que agredia os padrões da época.
Existia, pois, um problema habitacional claro, que
se convertia numa questão social a ser resolvida pelos
poderes públicos e que fazia parte do rol de denúncias
dos jornais populares.
Não é possível esquecer que, em 1897 {Jornal do
Comércio^ 16 maio 1897), por ocasião da fundação do
Partido Socialista emPortoAlegre, umadasreivindicações
fosse a da construção de casas operárias pelo Estado.
Havia, contudo, uma linha de argumentação higie-
nista, moralizante e estética que perpassava a sociedade e
era usado pela opinião conservadora e pela "popular".
O que se podia esperar de locais insalubres e infectos,
tais como os que o pobre habitava? Casebres sem ar e sem
luz, eram focos de miasmas deletérios {Gazetinha, 12 dez.
1897), mas esta situação não comovia nem os proprietá
rios e nem os poderes públicos:
Aqui nesta cidadequem possuium pedaçoqualquerde ter
reno julga ter uma califómia cuja exploração é facílima.
Para isso constróem um galpão, sem alinhamento, sem
confortabilidade, dividem-se em centenas de nichos faltos
de luz e de ar e por preço exorbitante alugamos ao pobre

90
proletário que vê-se na necessidade de habitá-los. Além
desses infectos cortiços, há a moradia em porões, o que por
forma alguma deveria existir, pois está mais que provado
que essashabitações são sumariamente nocivas não só aos
que nelavivem como também paraa cidade emgeral. Tan
toos cortiços como osporões sào úmidos e infectos, sendo
em tudo e portudo prejudiciais. Há um artigo do código
de posturas municipais que obriga os proprietários de cor
tiços a caiarem os mesmos ao menos uma vez por ano,
sob pena de multa, entretanto jamais se ouviu dizer que
um só fiscal pusesse em execução tal artigo, mas não é,
podemos afirmar, porque os proprietários não hajam in
fringido a Lei.
E os casebres imundos onde pululam todas as espécies de
miasmas, conhecidas ou não, continuam empestando a ci
dade (Gazetinha, 20 ago. 1898).
Vistos desta forma, os cortiços e porões careciam do
espaço necessário para se tomarem habitações higiênicas.
Cubículos sem ar e sem luz, seus moradores também não
tinham dinheiro para se servirem dos cubos do asseio
público, fazendo despejos de lixo e águas servidas nas
proximidades, o que contribuía para aumentar a sujeira
da cidade. Não observando às posturas municipais, fica
vam à mercê de falsos e verdadeiros fiscais da Intendên-
cia, que lhes cobravam multas {Gazetinha, 22 set. 1898).
A intendência de Porto Alegre organizava as "visitas
domiciliares", que consistiam na ida dos fiscais às resi
dências para constatarem as condições de higiene das mes
mas e o recolhimento dos doentes, se fosse o caso.^ A
ação se concentrava nas ruas do Centro, e do princípio da ,
"Cidade Baixa", como Demétrio Ribeiro, Gen. Salustiano,
Espírito Santo, Fernando Machado, Gen. Vasco Alves,
Gen. Portinho, Gen. Canabarro, Vinte e Quatro de Maio,
João Manuel, Gen. Paranhos, Gen. Vitorino, Trav. Dois
de Fevereiro, Rua da Misericórdia, etc. Com freqüência
ocorriam intimações aos moradores pára limparem os
quintais, mas tais diligênciasda municipalidademereciam
crônicas com críticas acerbas:

91
Estão em vigor asvisitas domiciliares. Éuma grande medi
da, não resta dúvida, e a divulgação dessa notícia seria bas
tante para revolucionar as legiões de micróbios dos porões
e quintais, pondo-os em vertiginosa fuga, se não falásse
mos no condicional. De fato, não confundo higiene capaz
sem um serviço completo de limpeza particular. Por exem
plo, as casas cujos moradores por seu estado de pobreza
não podem pagar o serviço do asseio público, onde fazem
os despejos? Não será o caso de fazer o serviçográtis? [...]
Agora, se a comissão sanitária limita-se a perguntar da por
ta da rua dos domicílios: - Olá, como vão as crianças? En
tão será o caso de felicitar toda a grande família microbiana
pela segurança e bem-estar em que vive {Gazeta do Co
mércio, l°jan. 1903).
A julgar pela freqüência das intimaçõespara limpeza
do quintal, pode-se apreciar o nível econômico dos mora
dores daquelas ruas, que sem dúvida não se utilizavam
dos serviços do asseio público por não terem condição
para tal. Mas outros serviços lhes eram cobrados, assim
como multas.
O habitante pobre da cidade era, pois, um cidadão de
segunda classe, enquanto que os proprietários muitas ve
zes ficavam isentos da observância das leis. Insinuava-se
o princípio da desigual apropriação do solo urbano que
negava o teto àqueles que trabalhavam e deixava
desassistidos pelo poder público, vendo a aplicação das
leis passar ao largo da sua cotidianidade.
Se esta era uma visão "posicionada" junto à causa prole
tária, metabolizava,contudo, alguns valores burgueses domi
nantes. A visão trabalha em tomo de dados reais: carestia,
baixos salários, altos aluguéis, superlotação de prédios, pre
cárias condições higiênicas. Incorporava também elemen
tos de sonho: a casa própria, a família unida, o lar estável. A
argumentação implica umadenúncia contra o Estado e o ca-

^A Gazeta do Comércio, em 1903, traz quase cotidianamente no


tícias sobretaisvisitas, que percorriam as masda cidade, identifi
cando o número de moradores,o número de homens e mulheres,
as intimações havidas, o recolhimento dos doentes, etc.

92
pitai, solidários na exploração do trabalhador.
A questão dos cortiços e porões mobilizaria também
uma outra linha de argumentação frente a mesma realida
de e que se alinhava também no estilo "denúncia". A Ga
zeta da Tarde, periódico contemporâneo à Gazetinha, de
dicava-se ao comentário das questões urbanas, mas seu
enfoque era ainda mais penetrado pelo imaginário burguês.
Falando em nome da higiene e da moral pública, o
jornal ora denunciava a situação dos cortiços, ponto de
reunião das mulheres de má vida (25 abr. 1896), ora de
mandava maior fiscalização na Intendência na edificação
de prédios irregulares:
Na Praça da Harmonia um dos mais aprazíveis sítios de
nossa capital, está se dando um abuso [...]. É o caso que,
não se sabe por ordem de quem, foi há tempos construído
nos fundos do chalet daquela praça uma espécie de galpão
de tábuas, dividindo os compartimentos, que estão sendo
devidamente alugados à gente de ínfima classe social. E
nada mais nada menos do que um cortiço o que temos ali,
com grave prejuízo da salubridade e asseio que devem existir
numa praça pública e freqüentada. Além disso, trata-se de
uma edificação grosseira e suja, a contrastar com a beleza
do local (15 dez. 1896).

Moral, higiene e estética, eis os três elementos que


sustentariam, nos anos vindouros, uma verdadeira cam
panha contra os cortiços do centro da cidade. A urbe se
queria ordenada, bela e asséptica, e não agredida por cons
truções que concentravam gente potencialmente perigosa
e degenerada. No final do século, todas as argumentações
valiam, ligando-se às teorias científicas européias, que clas
sificavam os indivíduos de acordo com seu biotipo e vin
culavam os comportamentos ao meio social. Os pobres
eram feios, sujos e malvados, por que não? Morar amon
toado, viver de biscate, apresentar proceder duvidoso eram
todos indícios de algo que os cidàdãos honrados não que
riam enfrentar no seu cotidiano.
Não ficava alheio aos comentários da Gazeta da Tar
de que, por trás daquela triste cena, se deveria encontrar

93
uni especulador que lucrava com os aluguéis. Sobre ele,
porém, não caia a mão dajustiça, e as reivindicações se
davam no sentido de "extirpar o mal", acabando com tal
tipo de habitação coletiva. Asolução apontada pelo perió
dico era a criação de habitações baratas para os pobres:
Dar aos trabalhadores de todas as categorias a realização
do seu mais ardente sonho - uma família, um lar e um fim
louvável e meritório. [...] Nada poderá com mais eficácia
afastar o operário da tavema, esse flagelo social, e excitá-
los à economia, que o retê-lo junto à família, dando-lhe
por mais modesto que seja o seu salário, uma habitação
agradável, sã e econômica (13 mar. 1896).
O tom é acentuadamente moralizante e reproduz,
em certa medida, os conceitos relativos à intimidade do
lar burguês, fator de união, fonte de amor, refúgio do
bulício e das ameaças da vida citadina. O discurso acen
tuava a distinção entre os domínios do público e do pri
vado. A família, tal como apropriedade, eram fatores
de ordem moral e estabilidade social. A implantação
progressiva de uma ética burguesa dava seus frutos,
introjetando valores e generalizando opiniões. Come
çava, com fortes argumentos, a "varrida" do pobre do
Centro da cidade, em longas exposições pelo jornal que
condenavam os cortiços :
E, também, uma das tolerâncias criminosas das intendênci-
as que passaram, terem consentido nestas edificações im
próprias de uma cidade nova como a nossa. Devia-se ter
proibido essa exploração de usuários da terra, fazendo-os
pela falta de Licenca para tais construções, que empregas
sem;seus capitais em casinhas higiênicas nos arrabaldes. E,
no entanto, notável o acréscimo de cortiços nesta capital no
decorrer do presente decênio. Bem andará o ilustrado
intendente adotando um tipo mínimo para edificação nos
limites urbanos. Com regulamentação das edificações, po
deremos, no espaço de cem anos, ter modificado a cidade.
A higiene modema condena estas edificações, e mesmo
autorizaa intervenção públicano sentidode obstá-las {Ga
zeta da Tarde, 13 abr. 1897).

94
Vê-se, no caso, que, apesar da regulamentação im
postapela Intendência em 1893, prosseguiam as constru
ções irregulares dos cortiços, negócio lucrativo para os
proprietários dos terrenos no Centro. Da mesma forma, a
Gazeta da Tarde atacava a morada em porões:
Está merecendo a atenção da diretoria de higiene e inten
dência municipal a grande quantidade de porões, infectos,
insalubres, sem luz nem ventilação, que existem nesta ca
pital e estão sendo aproveitados para habitação (24 maio
1898).

Comparados a verdadeiras "sepulturas" ou "subter


râneos", os porões eram lugares infectos, propagadores
de doenças e propiciadores de"repugnante promiscuida
de", para os quais se demandava intervenção imediata.
Como dizia o articulista da Gazeta da Tarde: "A moradia
em porões é denecessidade urgente proibir, mas demodo
terminante, sem transigências" (17 jan. 1898).
Isso com relação aos moradores pobres, habitantes
de cortiços, porões ou casebres levantados no fundo de
terrenos,que evidenciavam um estabelecimento mais ou
menos regular de famílias ou grupos.
Havia, contudo, aqueles que nem mesmo esta espé
cie de lar tinham e onde a busca de um abrigo para passar
a noite era uma prática cotidiana:
Entreas providências de saneamento da capital, reclamaa
atenção da higiene municipal a aglomeração de indivíduos
nashospedarias noturnas. Existem disseminadas pelacida
denumerosas casas, de propriedade deestrangeiros, onde à
noite dormem grande número de indivíduos. Conheço al
gumas, que podendo acomodar no máximo quatro indiví
duos, recebem vinte, assim como uma que existe junto à
Praça da Harmonia, Junto à farmácia Estrela do Sul. Em
um salão escuro, úmido, sem ventilação suficiente, armam
à noite numerosas maças de lona que alugam a 200 réis.
Nelasdormem indivíduos suJoS»; de acordocomo assoalho,
quenãovêáguahámuito tempo e asparedes quenãovêem
cal (12 abr. 1897).

95
Naturalmente, a campanha dahigiene pública, quese
desdobrava na higienemoralda cidade, demandava a ins
peção sanitária de todas as casas, mas seu foco principal
de ataqueeramas moradias dospobres, focosde miasmas
deletérios e antros de horríveis perversões. A campanha
de moralização pretendia extirpar os vícios tal como de
veria combater a sujeira e a doença. Afinal, não estavam
todos estes elementos intimamenteligados e presentesnos
mesmos locais insalubres, habitados porgente suja e de
vassa?
Quais as saídas para esta população pobre? Já se ha
via apontadocom as delíciasda casaprópria,com o acon
chego de um lar modesto, com o recato da vidaem famí
lia. Mas para tudo isto era preciso espaço e, no Centro,
este já tinha dono.
Referia o articulista da Gazeta da Tarde:
Quem é pobre não tem luxo, como diz o amigo Fischer,
boticário de Santa Maria. More na cidade quem puder pre
encher as condições de cidadão e, se não, faça como eu,
que procurei um arrabalde (12 abr. 1897).
Logo, a imagem do cidadão morador da urbe era de
alguém que tivesse propriedade para morar, dinheiro para
pagar impostos, correto proceder na vida familiar e pú-
bfica e saúde para não empestar a vizinhança com doen
ças. Quem não se enquadrasse, que demandasse às zonas
mais afastadas.
Começava a retirada dos pobres do Centro da cidade:
[...] Mas onde irá morar esta gente pobre? É fácil a res
posta. Há quatro anos dificilmente encontrar-se-ia casa
grande oupequena mesmo em arrabalde; agora não existe
menos de 400 em disponibilidade. Os arrabaldes estão aí
e devem ser habitados pelos proletários. Na cidade pro
priamente dita, só devem residir os que podem sujeitar-se
ás regras e preceitos da higiene. Ora, num porão ou corti-
ço, não pode asseio e, conseqüentemente, a higiene desa
parece {Gazeta da Tarde, 17jan. 1898).
A argumentação alerta para um dado significativo: a

96
existência de casas paraalugar ou vender nosarrabaldes,
disponíveis para quem as quisesse habitar. Encontrava-
se em curso na cidade um processo de loteamento das
regiões mais afastadas do Centro e para as quais deveri
am ser canalizadas as populações pobres, até então habi
tantes do Centro.
O crescimento da cidade nos primeiros anos da Re
pública levaria a intendência de Porto Alegre a fixar os
limites urbanos da capital pelo Ato n.° 12, de 31 de de
zembro de 1892, visando estender à toda área ocupada os
benefícios da vida propriamente citadina, cuja implanta
ção ficaria por conta da municipalidade (Legislação Mu
nicipal, 1895).
Ora, a organização do espaço urbano oferecia à bur
guesiaemergentenovas oportunidades de investimento de
capitais. Os terrenos se valorizavam principalmente na
quelas que eram consideradas as zonas nobres da cidade e
onde as elites fixavam suas residências: a Duque de Caxias
e a Independência, no que se poderiachamar então de "ci
dade alta".
A cidade crescia, com palacetes, armazéns, fábricas,
novos sobrados, prédios públicos, num processo estimu
lado pelo próprio governo.
À medida que se valorizava o solo urbano, subiam
os impostos e também os aluguéis, problema que, como
já se viu, afligia os não-proprietários. Como, a partirde
1897, o governo passou a cobrar o imposto predial nas
ruas servidas pelas linhas de bonde, as áreas mais distan
tes puderam configurarse como um refugio para o não-
pagamento dos impostos. Abria-se caminho para a espe
culação imobiliária, formando-se companhias loteadoras
que, arrematando terrenos a baixo preço em áreas mais
afastadas, passaram a fracioná-los e a vendê-los à popu
lação, expandindo a urbanização para além dos limites
da "península" porto-alegrense.
Em 1895 surgiu, a Companhia Territorial Porto-
Alegrense, que realizoü o loteamento dos bairros Nave
gantes e São Geraldo. Entre seus incorporadores se acha-

97
vam prestigiosas figuras da elite endinheirada de Porto
Alegre que, pelos seus negócios, tinham interesse em es
tender os benefícios da vida urbana para zonas distantes.
Tome-se o caso do seu diretor-gerente, o capitalista José
Luís Moura de Azevedo. Era presidente da Companhia
Hidráulica Porto-Alegrense, diretor-secretário da Com
panhia Carris Porto-Alegrense, diretor-presidente da
Companhia Predial, diretor-presidente do Banco Nacio
nal do Comercio.
É de registrar que o intendente municipal da época,
Alfredo Augusto Azevedo, dirigia a Companhia Hidráu
licaGuaibense e depois passou também à Companhia Fiat
Lux (Franco, 1988). Ou seja, os interesses se cruzavam,
entre a municipalidade e a acumulação privada, tomando
o loteamento dos arrabaldes um negócio lucrativo. A tais
elementos se agregava umapreocupação adicional: a bur
guesia emergente dos capitães de indústria tinha interesse
no assentamento da população trabalhadora próximo às
fábricas. Esta contigüidade entre vida e trabalho, entre
cotidiano do lar e cotidiano da fábrica, implicava uma
expansão do processo de disciplinarização para além dos
muros da empresa.
Surgia, assim, com o crescimento da cidade, uma so
lução para o "problema habitacional". Se, para o pobre,
ele se configurava em termos de encontrar um lugar para
morar a baixo preço e próximo ao local de trabalho, para a
elite e o governo a questão apresentava outras conotações.
Habitação para as classes menos afortunadas Já podia se
converter numa fonte de renda para os proprietários de
sobrados e cortiços no Centro da cidade, mas agora tam
bém se revelava atrativo lotear as zonas afastadas, subur
banas, que assim se viam integradas à cidade.
Desta forma, aparecia uma nova modalidade de acu
mulação capitalista na cidade. Na mesma época em que a
Companhia Territorial Porto-Alegrense loteava Nave
gantes e São Geraldo, realizava-seo loteamentodo bairro
Auxiliadora, sob a iniciativa de Manoel Py, comerciante e
industrialista da capital.

98
A rápida expansão da cidade levou a intendência a
realizar nova divisão do município em distritos, alteran
do o Ato rfil, de 12 de dezembro de 1892, pornãocorres
ponder mais à realidade urbana de Porto Alegre. Ficava
o município dividido em 8 distritos, sendo os três pri
meiros urbanos e os cinco últimos suburbanos. Eram re
feridos os arraiais de Navegantes e Menino Deus, mas a
cidade possuía ainda os de Teresópolis, Partenon, Glória
e Tristeza.
Mas as diferenças eram contrastantes no que diz res
peito aos melhoramentos urbanos. Em 12 de março de
1878, o Mercüntil alertava para o irregular consumo de
luz entre a cidade alta e a cidade baixa.
A Gazetinha, especialista em denúncias sobre as
mazelas da municipalidade, falava noabandono do Me
nino Deus (23 dez. 1898) e na desolação do arraial da
Tristeza, esquecidos como se não pertencessem à Porto
Alegre, comose fossem "uma possessão chinesa" (!) (13
ago. 1898). Da mesma forma, precários eram os servi
çosdas estradas que levavam paraos subúrbios, como as
do Mato Grosso, a Estrada do Meio e a do Passo da Areia
(16 ago. 1898).
O contraste da prestação dosserviços públicos eratan
to mais flagrante quando se levava em conta que tanto os
moradores do Centro como os dos arrabaldes pagavam im
postos sobreremoção do Ibco, policiamento e iluminação (25
e 26 ago. 1898). Quanto às casas das populações pobres, re
produzia-se no arraial a mesma condição das do Centro:des
providas de higiene, careciam de luz e ventilação.
O arraial que, contudo, receberia a maior parte da
população trabalhadora seria o de Navegantes, constituí
do como bairro fabril já no final do século. Em 1906, o
relato do viajante italiano Vittorio Buccelli dá conta de
uma grande movimentação de barcos que escoavam a pro
dução dos núcleos agrícolas coloniais. Ao longo da Vo
luntáriosda Pátria,estabelecimentoscomerciaisde expor
tação e de fábricas animavam o bairro, assim como gran
des depósitos de madeira e materiais de construção

99
(Buccelli, 1906,p.87). Transversais ao rio, pequenasruas,
que a empresa loteadora chamava "avenidas",abrigavam
uma populaçãode moradoresoperários. Todavia, em 1908
encontramos os moradores da área reclamando contra o
mau estado da rua Dona Teodora, lembrando mais uma
vez que pagavam impostos tal como os moradores do
Centro da cidade {OIndependente, 18 fev. 1902).
No Centro, a campanha saneadora e moralizante da
fin de siécle teria continuidade na Belle Époque. Às pa
lavras de ordem, da higiene e dos bons costumes se acres
centariam, cada vez mais, os postulados do progresso, da
civilização, dos padrões estéticos. Porto Alegre crescia,
sem dúvida, e para isso era preciso declarar greve aos be
cos, antros de prostituição, casas de tavolagem, botequins.
Para a construção de uma nova cidade - limpa, bela, orde
nada - era preciso que se procedesse à destruição dos cor-
tiços {O Independente, 18 fev. 1902).
Os efeitos pós-encilhamento se faziam sentir no meio
urbano. Pequenas empresas fechavam com o fim do am
plo crédito comjuro baixo e com a valorização da moeda,
os produtos importados puderam entrar com mais facili
dade no mercado interno brasileiro. Desemprego, concen
tração empresarial, falências. Na Porto Alegre do início
do século, os sintomas da crise se fizeram sentir. Os jor
nais falavam de gente dormindo ao relento na Praça da
Matriz {O Independente^ 26 out. 1902), de trabalhadores
desempregados que não podiam pagar o aluguel (5 jan.
1902).
Os cortiços e porões continuavam a incomodar e a
ofender a moral pública e os preceitos da higiene:
Uma grande parte de nossa população vive, ou antes, vegeta
em pequenos cubículos faltade ar e luz,respirando o ar vici
ado dos porões e de velhos casebresque abundam em nossa
capital. [...] A opinião abalizada de alguns higienistas é que
cada indivíduo necessita, paraviver, de respirarregularmen
te detrezentos a quatrocentos péscúbicos dear puroemcada
24horas; segundo aciência, o sangue para imprimir vitalida
deaonosso organismo tem queatravessar milhares devezes

100
os pulmões absorvendo oxigênio, deixándo em sua passa
gem as substâncias nocivas que contêm e que são expelidas.
Assim sendo, o indivíduo que habita em um dos cubículos a
que nos referimos, não pode fatalmente respirar um ar livre
de impurezas, já pela falta de condições higiênicas de sua
casa. Já porque pela expiração tem tomado impuro o ar que
respira {O Independente, 17jan. 1904).
Para quem recorrer, frente a realidade dos pardieiros
infectos e dos porões úmidos? Não aos proprietários dos
prédios, só preocupados com o rendimento dos aluguéis,
mas antes ao poder público, e mostrar que o saneamento
não podia se restringir às ruas habitadas por ricos. O go
verno é que tinha o dever de proteger o proletariado (7
fev. 1904) . Operiódico O Independente propunha as se
guintes medidas:
1. Demolição de todos os casebres depois de um rigoroso
exame da Junta de Higiene e que esta declare que não estão
em condições de serem habitados.
2. Vedar que os proprietários e locátarios de casas
assobradadas, cujos porões tenham menos de três metros
de altura e sem janela ou portas para os pátios das áreas,
abriguem os mesmos.
3. Serem, pela repartição competente, fiscalizadas as cons
truções que forem levantadas nos perímetros da cidade, as
quais devem obedecer a todas as condições de higiene (28
jan. 1904).

Os conhecimentos científicos eram invocados em nome


da higienepública,comprovando cabalmente aos leitoresa
necessidade de destruição dos cortiços e reorientação do
espaço urbano. Se Porto Àlegre queria deixar de ser uma
aldeia grande (21 jun. 1913), precisava corrigir as marcas
deum passado que permitia construções anárquicas que não
atendiam os princípios de solidez ou que não gzirantissem
condições de saúde para seus habitantes.
O retomo da imposição de um códigode constmção
em 1913 faz lembrar a tentativa de 1893: vinte anos pas
sados, o problema continuava, e, apesardos alertas e de
núncias, as habitações precárias haviam proliferado:

101
A subida rápida dospreços dealuguéis e escassez demora
dias, partindo acentuadamente do período revolucionário
de 1893 para cá, determinou por parte dos argentários
gananciosos, menos previdentes e pouco humanos, cons
truções rápidas com economia de material e ameaçadoras
pela fragilidade davida deseus alugadores (19 jul. 1913).
Aspirando ao status de uma cidadeprogressista, o pe
riódico fazia votos de que o novo código fosse cumprido:
Urge uma revista geral na cidade, para o seu saneamento,
embora secontrarie osexploradores decortiços, gente sem
alma, que só quer dinheiro. Deve-se promover a visita de
todos os prédios que dão fundo ao arroio denominado Ria
cho. Nenhum deles entrega lixo às carroças, como nenhum
tem serviço de remoção de material fecal. Conclui-se que
os moradores lançam tudo no arroio. Também no lado opos
to há moradores que têm fossas nos quintais, outros que
não as têm, porém não possuem cubo.
Código de construção com fiscalização e com higiene: sem
isso será ele [...] inteiramente burlado (21 jun. 1913).
O processo de demolições começava, e os jornais
principiaram a anunciar com orgulho as novas constru
ções que substituíam as velhas: ora era um palacete,
construído na Praça Mal. Deodoro, na área até então ocu
pada por quatro velhos prédios que enfeiavam o local (5
Jun. 1904), ora era a demolição de um casebre que era
imposta em prol da segurança de todos os que por ali pas
savam (6 set. 1906). E assim, pouco a pouco, os velhos
pardieiros eram demolidos a fim de que novos edifícios
surgissem, para o embelezamento da cidade (29 maio e
23 Jun. 1916).
Os próprios moradores das adjacências dos porões e
cortiços começaram a se mobilizar, exigindo a sua retira
da do local em nome da saúde pública ou, pelo menos, o
completo saneamento do local pelas autoridades (24Jan.
e 21 mar. 1907).
Todavia, a cruzada higienista, se por um lado
progressivamente varria os pobres doCentro, não acaba
va por resolver o problema de moradia do proletariado

102
urbano. Os arraiais e arrabaldes, é bem verdade, ali esta
vam à disposição, mas neles também o solo tinha dono.
Os proprietários de prédios urbanos, inconformados
com os impostos a pagar e os baixos aluguéis que arreca
davam, pois sua clientela era pobre, uniram-se em 1908
numa associação para assegurarem seus direitos. OInde
pendente recomendava que talvez fosse este ocaminho a
seguir pelos proletários:
Uma grande associação de proletários poderá vencer todas
as dificuldades. Bastará que ela conte com cinco mil sócios,
oque não énada com relação àpopulação proletária da capi
tal. Uma vez conseguido este número de sócios, dentro de
poucos anos, o proletário contará com abrigo próprio. Cal
culemos, suponhamos, cinco mil pobres associados com o
fim de se auxiliarem mutuamente para que cada um possa
obterumacasinha e ficar isento do pesodo aluguel. Secada
sócio entrar com uma jóia de 20$000 e a mensalidade de
5$000, ter-se-á no primeiro mês um capital de125.0005000.
Este dinheiro poderá logoserempregado emterras nosarra
baldes e em construção dechalets dedois tipos: um dovalor
dedoiscontos de réis, outrodetrêscontos. Empregam-se 25
contosnas terras, cemcontosde réis para as obras.Comeste
dinheiro será possível no primeiro mês construir 50chalets
de dois contos de réis. Incluindo-se a área das terras que to
caráa cadaum, ficará cadaumdeles pelocusto de2.250$000
(5Jan. 1908).
Numa progressão geométrica, o plano previa um po
voamento dos arrabaldes por um número cada vez mais
crescente de moradias para as classes populares, que ia
conseguindo os chalets mediante sorteio. Pí"opunha-se uma
espécie de consórcio, no qual a despesa do gerenciamento
da "mutualidade" sairia dos Juros do dinheiro colocado
no banco (9 jan. 1908).
O projetonão se concretizou, provavelmente pela falta
de organização de recursos dos necessitados de moradia.
Os trabalhadores teriama questãodo alojamento como
uma reivindicação presénte?
Já se viu que, na sua criação, o Partido Socialista de
mandava, em 1897, moradias paraos operários construídas

103
pelo Estado. Ao mesmo tempo, têm-se jornais identifica
dos com a causa popular e outros nem tanto que expõem o
problema - faltade espaço, de luz,de higiene, aluguelcaro,
imposto alto, baixo salário - e demandavam solução das
autoridades. Opróprio AFederação, órgão oficial doPRR»
falava,em 24 dejaneiro de 1911,sobre a urgênciade cons
truir casas para osproletários, com aluguel apreços módi
cos e principalmente higiênicas, vistoriadasperiodicamen
te pela fiscalização.
Situações vividas por famílias pobres eram trazidas
a público, como a história de uma infeliz família mora
dora no arrabalde de São João e que era objeto de um
movimento de solidariedade por parte da vizinhança
Federação, 1® ago. 1917).
Por outro lado, nas inúmeras greves operárias, a ques
tão do alojamento não apareceu como causa deflagradora
do movimento. Todavia, a questão dos aluguéis era men
cionada pelos comitês operários no decorrer do conflito,
em suas discussões. Por ocasião da greve geral de 1917
em Porto Alegre, por exemplo, a Liga de Defesa Popular
deliberava sobre as medidas a serem levadas a efeito em
face da carestia de gêneros e aluguéis (Correiodo Povo, 7
ago. 1917). Da mesma forma, a Liga Operária de Pelotas
propunhauma frente unida para lutar contra os abusos da
cobrança dos aluguéis (Echo do Sul, 2 ago. 1917).
A generalizada reclamação contra os aluguéis direta
mente se relacionava com a questão salarial e, indireta
mente, com a casa própria.
Elites e povo, poder público e populares faziam uso
de um discurso que remetia à burguesia, à moral e à po
breza. Entretanto, a construção de um discurso não se dá
num vazio de intenções, desejos e relações sociais.
Gente morando em precárias condições não só agre
dia a vista, o olfato, a saúde, quem sabe a vidadas elitç3
dirigentes. Eraumachaga exposta, umproblema a serre
solvido. Um elemento de tensão social, sem dúvida. Mes
moque a motivação deum crime, um furto ouuma greve
nãofosse explicitamente relacionada comas penosas con-

104
dições dehabitação dopobre, havia uma condição depre
cariedade presente à vista de todos.
Em síntese, a produção de um texto tem por referên
ciao contexto, e na mediação entreambos é que é possí
vel desvendar o significado do discurso. Portanto, a de
núncia e o alertapara as condições de moradia do pobre
não só mantinham algum grau de correspondência com
as condições concretas de existência do proletariado ur
bano nas cidades enquanto encerravam em si pressões,
expectativas, esperanças. Um jornal livre forma opini
ões, distorce fatos, canaliza interesses. Não há uma cor
respondência reflexa entre concreto real e concreto pen
sado, e é só pela trama das relações humanas que pode-
nios enveredar pela trilha de decifração dos símbolos
inscritos no discurso.
Os jornais da época, independente de suas intenções
- políticas, sociais? - convergiam para criar uma represen
tação do problema da habitação popular: as edificações
existentes não seriam, por serem sujas, focos de infecção,
fonte de maus exemplos, propagadoras de vícios? Com
esta argumentação o jornal defendia ou atacava o pobre,
morador de tais locais? As duas coisas ao mesmo tempo.
Tanto a denúncia do problema implicava uma solução
(realocar as populações nos arrabaldes, por exemplo),
quanto se identificava o morador do cortiço como sujo,
feio, perigoso. As noções relativas à influência do meio
sobre o comportamento das pessoas e a sua própria apa
rência física estavam em voga.
Uma outra questão é a d.ainterpretação das^formas de
pensar e sentir o mundo. A representação do lar burguês,
da vida privada como refúgio da agitação da rua sem dú
vida alguma deveria exercer atração entre os subalternos.
Como refere Grinzburg (1987, p.21), existe uma
circularidade ou influxo recíproco entre cultura subalter
na e cultura hegemônica, uma interpenetração de valores
que não nos permite lidar com conceituação do tipo "cul
tura popular pura".
Finalmente, cabe ainda considerar neste arrolamento

105
de argumentações o entendimento de que as leis não são
apenas instrumentos dedominação, que refletem uma re
lação unilateral deimposições de cima para baixo. Como
refere Thompson (1987, p.352-3), a lei pode ser vista como
mediação e reforço das relações de classe existentes, ex
pressando com isso o resultado de uma negociação frente
as forças sociais.
Considerando a situação histórica específica do Rio
Grande do Sul, o discurso sobre a higiene, a moral e a
estética que implicava o deslocamento dos pobres para
os arrabaldes tanto mediatizava interesses burgueses
quanto revelava a existência de uma pressão social das
populações urbanas em termos de moradia, o que se apre
sentava como um problema posto. Da mesma forma, o
encaminhamento de soluções legais, comoo loteamento
dos arrabaldes, lidava com as duas pontas da cadeia: a
tensão social presente nos centros urbanos e as
possibilidades de especulação imobiliária. Ainda neste
sentido é que se pode entendera preocupação governa
mentalem construircasaspara operários, paralelamente
à ocupação dos arrabaldes e a campanha do "bota-abai-
xo" dos cortiços.
Desde 1899,Borgesde Medeirosjá cogitava de lotear
os Campos da Redenção e com o produto da venda destes
lotes construir escolas e habitações populares (A Federa
ção, 19 mar. 1899). O projeto não foi adiante e a
municipalidade propôs a conversão da área em espaço
público para lazer, mas revela sem dúvida uma intenção
antiga. No Conselho Municipal esta questão seria ampla
mente debatida, advogando-se as construções baratas mas
higiênicas e apropriadas, que desfizessem a terrível apa
rência das moradias dos pobres, que se assemelhavam a
"aldeias chinesas" (Anais do Conselho Consultivo Muni
cipal, 1912, p.32).
Já o relatório do intendente José Montaury de Aguiar
Leitão ao Conselho Municipal, em 1912, expressava esta
preocupação:

106
A falta de condições de higiene, de conforto e o elevado
aluguel da maiorparte das pequenas habitações ocupadas
pelosproletários fez com que chamasse vossaatenção para
esse fato, sobre o qual convinha tentar a municipalidade
alguma providência tendente a minorar essa lamentável si
tuação. [...] Na última sessão ordinária votou o Conselho o
crédito necessário paraconstrução de umgrupo decasas de
operários que permitisse a Intendência conhecer o custo
exato de cada tipo determinado por um certo número de
peças - e daí estabeleceu os favores às empresas ou parti
culares que quisessem sujeitar-se às condições idênticas
às estabelecidas pela Intendência pelaocupação destas ha
bitações (Relatório do Intendente, 1912, p.18-19).
Eram indicados como local propício os arrabaldes,
ficando os interessados isentos do pagamento do impos
to de construção, redução do imposto predial e dos ser
viços industriais que explore. Apesar das isenções fis
cais e regalias concedidas pela Intendência a particula
res, nem o poder público nem os capitalistas locais leva
ram a efeito a proposta de construir as habitações para
operários nos anos seguintes. O relatório dos intendentes
dos anos de 1915e 1916 retomam a idéia do Campo da
Redenção para a construção de casas para operários e
também da intenção de adquirir outros terrenos nos
arrabaldes de Navegantes e São João, para o mesmo fim
(Relatório do Intendente, 1917, p.24). Renovavam-seos
favores especiais para os particulares, sem que estes se
decidissem a investir em casas higiênicas e de baixo custo
para operários.
Em suma, as decisões, favores e isenções, aprovados
pela Câmara, não se concretizavam em medidas efetivas.
Lamentava o intendente, no relatório de 1917, que até
aquela data nenhum requerimento fora feito naquele sen
tido, mas independentedo interesseparticular a intendên
cia estava fazendo um empréstimo para construir as tais
casas (1987, p.352-353).
Secundando a ação do governo, a Escola de Enge
nharia de Porto Alegre fazia estudos para solucionar o
problema das habitações populares nos bairros fabris.

107
Como resultado, divulgavam-se artigos como este:
Urge uma ação humanitária, concedendo habitações salu-
bres e baratas para o proletariado a fim de lhe tomar a
vida menos importuna efatigante. Essa iniciativa será mais
humanitária porque o benefício levado às classes pobres
não aproveitam somente elas, mas também a coletividade
pela extinção dos focos insalubres, não terá a um fim tão
estritamente higiênico, estabelecia a elevação moral, mai
orapuro nos sentimentos do proletariado, a correlação de
sua conduta e aqueles que viveram ao abrigo do cuidado
deganhar o pão decada dia. Quanto laroperário existe ao
abandono, sem o apoio do chefe de família e quetem por
causa principal o estado de imundície repelente, que só
encontra origem na obscuridade envenenadora do corti-
ço? O homem que não encontra o conforto do lar, é inevi
tavelmenteatraído para a vida exterior e vai ter ao recinto
dos lupanares, onde preponderam o riso nervoso dos
bacanais, o álcool, é o jogo que lhe roubam as economias
com que saldaria o aluguel da casa. A mulher, o ente por
excelência que encerra n'alma a maior soma de sentimen
tos afetivos, quevivedo lar e parao lar,torna-se descren
te, acaba deixando tudo caminhar ao acaso, sem norte,sem
guia e as crianças vãoter à rua, parase dedicarem ao van
dalismo, na maldade, para mais tarde aumentarem o ca
dastro policial. [...] Esta cidade tinha em 1908 147 corti-
ços; hoje possui 109, dada a criação de um imposto que
difícultou a sua existência. O projeto do código (urbano)
tornará interditas novEis construções, mas a despeito, au-
ment2indo a população da cidade [...] devem ser criadas
habitações salubres e de baixo aluguel (Egaíea, v.5, n.4,
p.259-260).

A questão habitacional se configurava, pois, como


uma questão moral, e sua solução garantia a estabilidade
de uma ordem burguesa. Invocava-se Comte, nas alu
sões ao papel da mulher como elemento de freio, afetivo
e estabilizador da sociedade, e construía-se a figura do
trabalhador: honrado, dedicado ao sustento de sua famí
lia, construtor do progresso. Um lar ele merecia, por que
não? Deixado entregue a si próprio, ele se transformava
num elemento perigoso,nocivo à moral pública, um agi-

108
Periferia de PortoAlegre
no inicio do século 20.
tador social. A casa, a figura do lar, erapois o elemento
essencial, o fio terra que o ligaria, em laços de solidário*"
dade, à ordem instituída. Daí também a preocupação dos
capitalistas, quando construíam casas para operários jun
to à fábrica, em alugá-las ou vendê-las só a homens casa
dos. Terumafamília, mantê-la, educá-la, eram freios aos
mausinstintos, era introjetar na mentedo trabalhador umn
preocupação com o amanhã.
Como braço dogoverno, a revista Egatea divulgava
plantas deprojetos econômicos para construção demora
dias populares:
Devido a grande falta de moradia, à carestia do material e,
emconseqüência disso, aosfabulosos aluguéis atuais, é de
grande vantagem que ascasas sejam construídas de modo
que ocupem pouco lugar e apresentam as necessárias co
modidades [...]. É de lastimar que nesta capital não haja
empresas de construção com um fim filantrópico e quese
satisfaçam com pequenos lucros [...]. Hámuitos capitalis
tas filantrópicos que poderiam se interessar por uma em
presa deste gênero, empregando dinheiro para este fim, do
qual receberiam osjuros(v.6, n.6, p.329).
Entretanto, ajulgar pelafaltade interessados no pro
jeto, ou os capitalistas não eramtão filantrópicos assim
ou, quando construíam habitações operárias, não o fazi
am segundo um plano maior, para a comunidade, mas
cada empresário para os operários de sua fábrica. É o
caso de Pedro Adams, proprietário de fábrica de calça
dos em São Leopoldo (O Independente^ 27 ago. 1919),
que adquirira terras, para construir casas para os seus
operários, ou da Empresa Rheigantz, de fiação e tecidos
de Rio Grande, ou ainda das charqueadas Santa Tereza,
em Bagé, ou Guaíba, de Pedras Brancas, todas com aglo
meração de casas operárias em tomo. Os exemplos são
muitos: o Saladeiro Uruguaiana, a Companhia Armpur
de Livramento, o Frigorífico Swifl de Rio Grande, a Fá
brica de Papel e Papelão de Guaíba, o estabelecimento
industrial e farmacêutico Souza Soares de Pelotas, a
Companhia Minas de Carvão do Jacuí, a Compagnie

110
Auxiliaire des Chemins de Fersau Brésil de Santa Maria,
a Fiação e Tecidos Porto-Alegrense da capital, a Com
panhia de Tecelagem Italo-Brasileira de Rio Grande, a
Metalúrgica Abramo Eberle de Caxias do Sul. Todas es
tas medidas levadas a efeito por empresários visavam
estender os limites dadominação do capital e dadisciplina
dotrabalho para além dos muros da fábrica (Pesavento,
1988).
Foi preciso que se chegasse na segunda metade da
década de 20 para que as intenções, anualmente repeti
das nos relatórios da intendência, tivessem algum resul
tado prático. O relatório da Diretoria Geral de Obras e
Viação, correspondente ao exercício de 1926-1927, re
gistra a construção de 16 casas para operários da Lim
peza Pública na Chácara Municipal, situada na Estrada
DonaTeodora, nas proximidades das oficinas da Viação
Férrea, em Gravataí. Resultado, como se vê, bastante mo
desto paraumaproposta encaminhada hámais de 10anos
pelos poderes públicos. Na sua exposição de motivos, o
relatório dizia:
A construção dessas casas recebeu os maiores encômios da
imprensa da capital, pois foi adotado o que se está fazendo
nas cidades mais industriais. O aumento crescente das indús
trias atrai grande quantidade de operários, e estes se vêem
em dificuldades para conseguirem as habitações precisas,ten
do então os poderes públicos de ir-lhes ao encontro, pois esta
gente só dificilmente consegue alugar casas em quantidade
suficiente ou casas próprias, embora seja hoje facilitada a
venda de terrenos e c^as modestas. Porém estes terrenos,
acessíveis aos que dispõem de pequenos salários, são situa
dos nas piores condições higiênicas. Estes terrenos, ou são
alagadiços e insalubres da zona de São João e Navegantes,
situados em níveis inferiores aos das ruas, não se dando, por
tanto, o escoamento das águas, ou são situados nos pontos
altos, em cima dos mçíTos e afastados completamente dos
meios de transportes urbanos (p.348-349).
Portanto, amparados pelo poder público ou não, os
pobres estavam sendo progressivamenteexpulsos do Cen-

111
tro da cidade para zonas menos nobres: ou para os terre
nos alagadiços dos bairros fabris Navegantes e São João,
que demandavam maior eficácia dos serviços urbanos, ou
para as terras altas de Mont, Serrat,para onde tinham ido
na décadade 20 os negros que moravam na Colônia Afri
cana, no início do século. Mas também a Cidade Baixa e o
Menino Deus eram alvo da procura das populações de
baixa renda: no Areai da Baronesa, na Praia do Riacho, na
Rua da Varzinha, nas barrancas do arroio Dilúvio se er
guiam casebres.
O poder público falava em operários, em gente
formalmente engajada no mercado de trabalho, e o seu
deslocamento para as áreas fabris tinha fins explícitos,
como se pode ver no relatório do intendente municipal de
Porto Alegre de 1928:
O intuito da municipalidade, fazendo habitar os operários
no próprio local de sua atividade, teve em vista aproveitar,
o mais possível, o rendimento do seu trabalho (Relatório
do Intendente Municipal, 1928, p.209).
Mas entre os habitantes pobres da cidade nem todos
se enquadravam na categoria de operários.
Num processo de formação do mercado livre de tra
balho, importava destacar a figura do operariado urbano.
Os elementos à margem deste mercado eram desviantes,
perigosos e suspeitos. Se as próprias classes trabalhadoras
eram potencialmente perigosas, o que dizer da massa mais
ampla de subalternos, que vivia de expedientes, biscates
ou sei lá o quê?
Viu-se que o proletariado era sensível à questão da
moradia, mas não porque postulasse casa própria como
uma questão central do movimento partidário, sindical
ou grevista.
Por outro lado, os jornais que falavam da questão
habitacional não podem ser considerados exclusivamente
como veículos ideológicos da classe dominante. Eles são
permeadostambém pelas expectativas,aspiraçõese dese
jos coletivos das camadassociais às quais se destinam.

112
A moradia dos trabalhadores não seria, pois, um tema
com uma só direção, mas uma trilha de duas vias: a ideo
lógica e a utópica, permeadas ambas por um problema
concreto.
E a vida nas ruas, espaço do público, seria o reduto
do povo ?

113
os PERIGOS DA RUA:
NA CONTRAMÃO DA ORDEM

Refere Chantal Georgel (1986) que, no decorrer do


século 19, a rua tomou-se objeto de um novo imaginário
social. Microcosmo da transformação capitalista do mun
do, que teve na urbanização um de seus processos consti
tuintes, a rua adquiriu uma nova identidade. Não mais
espaço de separação entre as casas, ela foi perdendo as
suas antigas formas - medievais na Europa, coloniais na
América - para render-se às exigências do viver em cida
des. Foi alargada, redesenhada, higienizada, moralizada,
embelezada. Cartão de visitas de uma cidade, as ruas
deveriam atestar o seu progresso ou atraso. Por definição,
a rua se opunha à casa, delimitando espaços e vivências.
Se o lar delimita a propriedade e a intimidade da família, a
ma é o espaço do público: nela se cmzam personagens
diversas, de diferentes estratos sociais. Os historiadores
que resgatam este processo no contexto europeu falam de
uma ma como espaço do povo, um domínio e um exercí
cio de poder (Georgel, 1986; Perrot, 1981). Na ma, o povo
exerceria o seu poder de revolta e de pressão enquanto
massa. Na ma, o espaço se revelava "democrático", uma
vez que oportunizava a todos a circulação e o acesso aos
logradouros públicos. Na ma se expressava a irreverência
de atitudes e socialidades que eram estranhas e condena
das pela família burguesa.
Ou seja, a ma se revelava como um espaço de amea
ças, as quais era preciso controlar.
O aburguesamento da sociedade levara a uma inter
venção direta do poder público nos espaços urbanos, eli
minando velhas constmções, alterando o traçado das mas.

114
alargando as vias, demolindo quadras inteiras em nome
doprogresso e daordem. Mas a intervenção burguesa não
se limitaria a uma reordenação do espaço: elase orienta
ria também para a eliminação de certas socialidades po
pulares, próprias aopovo das ruas e atentatórias à moral e
aos bons costumes.
Na Porto Alegre dafin desiècle a Belle Époque, este
processo traduziu-se nadestruição dos becos e nocomba
te aos bordéis, botequins e casas de jogo.
Principiemos pelo espaço. Os becos da velha Porto
Alegre, com os seus nomes pitorescos, relembravam um
tempo de crescimento anárquico de uma cidade onde to
dos se conheciam. Assim, a designação dos lugares aten
dia às características datopografia do local (Beco Quebra
Costas) ouàspráticas sociais quealisedesenvolviam (Beco
do Jogo da Bola). Por vezes os nomesremontavam a anti
gas profissões (Beco dos Ferreiros, Beco dos Marinheiros,
Beco da Olaria), às pessoas que ali habitavam (Beco do
Jacques, Becodo Firmo, Beco do Mota, Becodo Farinha)
ou a algum prédio ou atividade específica que ali se desse
(Beco da Cadeira, Beco do Rosário, Beco do Cemitério,
Beco doÓpera). Uns eram célebres por uma atração à par
te, como o Beco do Garapa, no qual se vendia uma exce
lente garapa extraída de um canavial no Caminho Novo.
A maior parte deles era temido e atacado pela opinião con
servadora, como o famigerado Beco do Céu, o Beco do
Oitavo, o Beco do Fanha ou o Beco do Império, famosos
pelos seus prostíbulos. Que dizer então da Rua dos Sete
Pecados Mortais, alysiva a sete casinhas que lá havia, ha
bitadas por moças de hábitos pouco recomendados? Algu
mas tinham nomes picarescos, como a dos Nabos a Doze,
rememorando sem dúvida uma oferta excepcional de al
gum comerciante do passado. Não é possível debcar de
mencionaro Beco da Pulga, provavelmente não muito vi
sitado pelos higienistàs, ou ainda o Beco do Céu, que, ape
sar do nome, era célebre pelos seus crimes.
A Porto Alegre de outrora era, pois, profusa em be
cos e vielas, que se entrecruzavam num emaranhado de

115
passagens e abrigavam socialidades condenadas, vistas
como próprias do povo das ruas e as quais era preciso
coibir.
Um levantamento desses locais permite cobrir a área
central da cidade na qual eles se concentravam, espalhan
do-sepela cidadebaixa. Poucohavia emregiõesmais afas
tadas.

Beco do Brito ou Beco do João Coelho - Trav.Acilino de Carva


lho
Beco do Freitas - área do Mercado
Beco do Poço - trechos Gen. Paranhos (atual Borges de Medeiros)
Beco do Rosário - Otávio Rocha
Beco doLeite (também Beco doBarriga, Beco D.Úrsula, Beco
do Lisboa) Trav.Angustura (que não há mais, ficava entre
Andrade Neves e Andradas)
Beco do José Araújo - Trav. Araújo Ribeiro
Beco do Pedro Mandinga - Gen. Canabarro
Beco do Império ) _ , _
n
Beco j Cemiteno
do i-. J} Espirito Santo
Rua dos Sete Pecados Mortais - Bento Martins, da Rua da Praia
até a Rua da Ponte
Beco do Jogo de Bola - Bento Martins, da Rua da Ponte até a
Rua da Igreja
Beco dos Nabos a Doze - Bento Martins, da Rua da Igreja até a
Rua do Arvoredo
Beco do Inácio Manoel Vieira ^
Beco do Quebra Costas Trav.Paissandu)
Beco do Fanha J
Beco João Inácio ) ^
„ , ^ > Gen. Camara
Beco do Garapa j
Beco do Bota Bica "j
Beco do João Vieira > Gen.Portinho
Beco do Visconde de Castro J
Beco da Cadeia - Trav.-Dois de Fevereiro
Beco do Trem - trecho da Salgado Filho, entre a Rua de Bragança
(Marechal Floriano) e Rua do Rosário (Vigário José Inácio)
Beco do Arco da Velha - Gen. Vitorino
Beco do Ópera \
Beco do Porto dos Ferreiros >Rua Uruguai
Beco dos Ferreiros J

116
Beco dos Guaranis - Vasco Alves
Beco da Rua Clara 1^ , , « , «
Beco dos Marinheiros / ^
Beco do Jacques ou ) , ^ ^ .
Beco da Fonte / ®
Beco do Barbosa - Barros Cassai
Beco do José de Souza Costa \
Beco da Olaria > Sarmento Leite
Beco do Israel Paiva J
Beco do Gitano - André da Rocha
Beco do Couto "j
Beco dos Cordoeiros > Senhor dos Passos
Beco do Cordeiro j
Beco do Firme ou do Firmo - rua Avaí
Beco do Totta - República
Beco D.Amélia - Otávio Correia
Beco do Cameiro 1« . ^
j Marcela
Beco da x>r 1 Jr Ramiro Barcelos
Beco do Céu - situado na Colônia Africana
Beco da Pulga
Beco do Motta - Sete de Abril
Beco do Sapo - Rua Emancipação, entre Sete de Abril e Câncio
Gomes (Franco, 1988; Coruja, 1983).

Que perigos abrigavam esses caminhos, esses verda


deiros subterrâneos da cidade, que expunham a popula
ção à toda sorte de malefícios e doenças? Numa associa
ção entre conceitos higienistas e morais, os habitantes de
lugares infectos e insalubres só podiam ser degenerados e
entregar-se a todos os vícios.
Sem dúvida alguma, eram das mais^baixas camadas
sociais, a escória da cidade das quais era preciso preservar
o trabalhador honrado. Se esta era uma intenção mani
festa no momento em que se constituía o mercado de
trabalho urbano, desde o ponto de vista dos trabalhado
res, era preciso também opor uma distância entre tais per
sonagens e o proletariado. Se o processo de construção
da identidade dos operários passava pela regeneração do
conceito de trabalho, não havia como negar que no pólo
oposto se encontrava a vadiagem. Esta era própria aos

117
não-engajados no mercado formal de trabalho, que vivi
am de "expedientes" ou formas escusas de ganhar a vida.
Desta forma, confluíam para o mesmo enfoque mo-
ralizador os discursos dos subalternos e os dos grupos con
servadores: tais socialidades danosas, que se abrigavam
em tais antros, era preciso extirpar. Assim como se fazia
umadesinfecçào higienista, a cidadeprecisava de uma lim
peza moral.
Comentando a intenção do diretor de HigienePúbli
ca em alargar o Beco do Fanha, O Independente referia
que a medida era digna de aplausos, com vantagens de
ordem material e moral:
Foi neste beco que se manifestou o primeiro caso de peste
bubônica aparecido em Porto Alegre, seguindo-se muitos
outros não só de peste, como também varíola, febre tifóide
outras moléstias contagiosas. Os registros de polícia estão
repletosde delitos no beco praticados, desde o assassinato
até o estupro, sendo raro o dia em que não se dêem desor
dens mais ou menos graves. Isto quanto ao ponto de vista
da tranqüilidade, quanto ao da higiene, está afinado pelo
mesmo diapasào. Os moradores são ou vagabundos incor-
rigíveis ou prostitutas da mais baixa esfera, infelizes que às
vezes nem têm o que comer e que, para poderem pagar o
aluguel das casas, aglomeram-se as vezes seis ou oito em
casas que com dificuldades conteriam três moradores. Nes
sas casas, a imundície é das mais flagrantes, sendo os apar
tamentos ao mesmo tempo sala, dormitório, sala de jantar,
cozinha e latrina (18 fev. 1906).*
O articulista comentava que as famílias moradoras na
Riachuelo, nas cercanias do famigerado beco, para evita
rem o espetáculo das "cenas repugnantes" que ali se tra
vavam, preferiam, para ir ou voltar da Rua dos Andradas,
dar uma volta pela Rua da Ladeira ou Rua Clara. Famílias
de bem evitavam os becos, era inadmissível a freqüência
e o contato com tais personagens.
As pressões de tais famílias deveriam motivar a
ocorrência de múltiplas denúncias, nas quais se associava
o local (o beco) com seus personagens (marginais à or-

118
dem burguesa e ao mercado formal de trabalho) e com as
socialidades que aí se praticavam (o botequim, a casa de
jogo, o prostíbulo).
A discriminação social acompanhava a crítica aos
desviantes da conduta "normal". Como se referia o jornal
O Século sobre os habitantes de um casebre na Rua Gen.
Portinho, antigo Beco do Bot'a Bica:
É a pior vizinhança que se pode imaginar. Nos sábados e
domingos fazem os tais negrinhos batuques infemais. [...]
Se os vizinhos não enlouqueceram com a algazarra e por
que têm consideração que o Hospício ainda não está acaba
do... (28 maio 1882)

O estigma da escravidão acompanhava os negros


numa associação cruel para quem fora a força-trabalho
por excelência do País ao longo dos séculos: os ex-escra-
vos eram associados à vagabundagem. Na repontuação
valorativa do trabalho que acompanhara a formação de
um mercado de mão-de-obra livre, a força redentora do
País era identificada com o imigrante europeu. Os negros
eram associados ao não-trabalho, mão-de-obra da mais
baixa categoria, só empregada quando faltassea força dos
brancos, estrangeiros ou nacionais (Pesavento, 1989).
A questão básica que se configurava era a de compe
lir os indivíduos ao mercado formal de trabalho. Celebra-
va-se o operário e condenava-se o vagabundo.
Vagar pelas ruas, não ter uma ocupação defmida?
Energia, severidade, controle, demandavam os perió
dicos, porque a ociosidade era o caminho para o crime:
Pensamos, como um jomal desta terra, que a polícia deve
ser mais vigilante no sentido de prevenir certos fatos cri
minosos; cumprindo-lhes conhecer a ocupação de muitos
indivíduos que por aí andam a suspender o alheio e a pra
ticar quanta infâmia há. [...] Os vagabundos campeiam
altaneiros nesta C9pital e com tamanha audácia que che
gam a ameaçar as autoridades {O Século, 14 out. 1883).
Contrastando com a figura do vagabundo-crimino-
so, erguia-se a do heróico-trabalhador:

119
o trabalho é o alimento das almas enérgicas e severas. O
homem que trabalha para preencher o necessário à vida - é
honesto. O que, pelas economias, prepara uma velhice tran
qüila e independente - é belo. O que trabalha para a educa
ção de seus filhos, abrindo-lhes [...] um futuro ao abrigo
das misérias - é sublime. Junto à banca do trabalho todos
são iguais. A oficina é o templo onde todos trabalham para
o edifício enorme do futuro. O estrangeiro ali deixa de o ser
- naquele recinto todos são irmãos. O trabalho coligou-os:
amam-se.

[...] o trabalho perseverante faz de um homem honesto - um


herói. O homem laborioso é, geralmente, honrado. Para co
nhecer-se o indivíduo, basta indagar se ele trabalha. A indo
lência avilta corrompe - o trabalho enobrece, glorifica. O
homem que não trabalha é inútil, mais ainda, é um prejuízo,
um fardo que a sociedade carrega às costas (O Século, 15
jun. 1884).

Verdadeiro hino ao trabalho, o texto é primoroso ao


resgatar as virtudes caras à ordem burguesa: perseveran
ça, parcimônia, previdência. Invoca o princípio da igual
dade inata entre os homens, alardeado pelo liberalismo.
Irmana a todos os trabalhadores sem distinção de etnia,
raça, nacionalidade. O contraste era, sem dúvida, grande
frente a discriminação racial ou às duras condições de
existência dos trabalhadores urbanos. Em suma, o traba
lho era o elemento regenerador, que afastava o homem
dos vícios e desregramentos.
A insistência no tema da vagabundagem e a repres
são à ociosidade são a prova da existência de um certo
tipo de habitantesda urbe que se mantinham à margemdo
mercado formal de trabalho. A repetida condenação dos
vagabundos vem atestar a sua também repetida resistên
cia à disciplina do trabalho.
Referia a Gazeta da Tarde em 1897:

PortoAlegreestá inçadade umamaltade vagabundos mal


feitores, que toma-seurgenteacabarcom ela. [...] Esta cor
ja de indivíduos, sem ofício nem benefício, quando há tan
to trabalho a distribuir, é preciso ser corrigida severamen
te. Entregam-se à maiscompletaociosidade e aos víciose a

120
inconseqüência é o que se estávendo,a perpetraçào de tan
tos crimes tendo todos pormóvel o roubo (27 jul. 1897).
A solução era a compulsão ao trabalho, tomado obri
gatório para os egressos da escravidão. Por que não o ca
minho da lavoura, da qual osex-escravos fugiam? Apesar
do lento processo de desescravização atravessado pelo
País, refletia-se que as estratégias disciplinadoras haviam
falhado em algo:
Origina-se isto tudo de ter-se pregado a abolição da escrava
tura sem cuidar da sua substituição. Os evangelizadores, do
minados pela idéia primordial, esqueceram as conseqüên
cias, não determinaram as resultadoras e agora, eles e os li
bertos, estorcem-se, apertam-se dentro do círculo terrível da
fome... Épreciso agir, já e com energia, opondo uma barreira
à criseque nos assoberba, regulamentando a vadiaçào dentro
da lei, porque se o trabalho é livre para o ócio - que é um
crime - não pode nem deve haver liberdade (21 out. 1897).
O êxodo rural assustava, pois na urbe nem todos se
enquadravam nos parâmetros da ordem instituída. A cida
de se povoava de mendigos que demandavam a caridade
pública, mas muitas vezes os socorros prestados serviam
para acobertar a vagabundagem daqueles que se esquiva
vam ao "trabalho nobilitante" (22 nov. 1897).
Os realmente improdutivos deviam ser recolhidos aos
asilos, mas os exploradores da caridade alheia precisavam
ser obrigados a escolherem outro modo de vida. Lamen-
tava-se o abandono da prática utilizada nos tempos do
Império de cadastrar os mendigos por invalidez, obrigan-
do-os a apresentar um cartão de registro^paraos diferençar
dos vagabundos... {Jornal do Comércio, 8 jan. 1897). A
mendicidade era considerada um meio fácil de levar a vida
e para coibi-la o chefe de polícia passou, em 1910, a reco
lher à chefatura os tais profissionais exploradores da cari
dade pública {O Inçiependente, 18 out. 1906 e 13 mar.
1910).
Tal procedimento deve ter tido continuidade, pois,
em 1913, encontramos a sua justificativa pelos jornais:

121
Dir-se-á que é um atentado querer proibir a mendicidade:
será, mas, a serassim, a argumentar com isso, todos osgo
vernos atentam contra a liberdade. Restringi-la para evitar
outrosmalesnão é atentar, é corrigir, e aperfeiçoar. [...] O
novo Código Penal, no seu artigo 391 ao artigo 392, trata
também dela mandando punir: os que mendigam, tendo
saúde e aptidão para trabalhar; os que o fazem, sendo i-
nábeis paratrabalhar, noslugares onde existem hospitais e
asilos; os que mendigam fingindo enfermidade, ou fazen-
do-o demodo ameaçador e vexatório; osquepermitem que
pessoa menor de 14 anos o faça, sujeito ao seu poder, para
lucroseu ou de outrém, etc.Daíse vê que o Código previu
tudo {O Independente, 7jun. 1913).
Realmente, aos inválidos ou não aptos o asilo era a
únicasolução;o mais era crime,passível de punição, por
que incentivava ao não-trabalho.
Certos vagabundos, como se viu, dedicavam-se ao
roubo, outros à mendicância, alguns divertiam-se em bo
tequins. Mas havia ainda certas façanhas, que arrastavam
mesmo moços de boa família: serenatas e outras aventu
ras noturnas, para os quais indistintamente se demandava
a ação da polícia. Fossem eles "tipos desbriados",
"crápulas", que "sem profissão, viviam à tripa fora", fos
sem eles moços de boa família arrastados pelo vício, era
preciso coibir excessos que levavam à degenerência mo
ral (Gazeta da Tarde, 4 mar. 1899).
Assustador era também o número de crianças atraí
das pela rua e que deixaram de ir à escola para ficarem a
vagabundear nas praças das cidades, a seguirem o mau
exemplo de outros tantos (O Independente, 11 maio 1902).
Crianças e rapazes à solta, tomando banho nas imediações
do Gasômetro (Gazeta do Comércio, 17 dez. 1902), tra
balhadores da estiva jogando capoeira no mercado públi
co e "brincando" de luta de faca ou a dança do maxixe
que, nos fins-de-semana, não deixavam os moradores da
Rua João Alfredo, na Cidade Baixa, dormirem sossegados
(O Independente, 22 nov. 1906 e 21 jun. 1916), eram
todas práticas populares que era preciso coibir. Não que
se objetivasse uma cidade silenciosa, mas era preciso

122
introjetar a disciplina e acostumar à obediência.
A vagabundagem tinha os seus desdobramentos sérios
no caso dos menores abandonados:

Quem deambular pelas ruas da nossa capital [...] fica sur


preendido, infalivelmente, pela grande quantidade de cri
anças, de um sexo ou de outro, a qualquer hora do dia, que,
cobertas de trapos mais ou menos esfarrapados, passeiam a
sua ociosidade pelo mercado e pela doca e, com particular
predileção, pelas praças ajardinadas que enfeitam a cidade
(O Independente, 15 abr. 1906).

Entregando-se a mais completa ociosidade, aos pe


quenos furtos e à mendicidade, estas crianças reproduzi
am o quadro dos não-trabalhadores, tomando-se futuros
marginais. Identificadas como "filhos das últimas cama
das sociais", iniciavam-se desde cedo na prática da ma
landragem e do vício. Para as crianças, reconhecia-se que
a ação da polícia não bastava: era preciso que se criassem
escolas correcionais, onde pudessem ser educadas para o
trabalho e não para o vício. A ma era assim uma escola
funesta, de onde sairiam "ladrões e assassinos, filhos do
mal e do lodo". Sugeria-se também a formação de colônias
agrícolas às custas do Estado, onde também fossem ensi
nados ofícios, com o que, convertendo-se num centro de
trabalho, a instituição produziria para cobrir as suas pró
prias despesas (O Independente, 12out. 1905,16e30Jan.
1908).
A Julgar pelas repetidas notícias dosJomais, Porto Ale
gre se tomara verdadeiro "acampamento da mais descome-
dida e desenfreada vadiagem" (O Independente, 1 mar.
1907), mas tais denúncias devem ser relativizadas. Não que
não houvesse os vadios, refratários a um engajamento for
mal no mercado de trabalho, mas o seu número não amea
çava a ordem no sentido de subvertê-la. Entretanto, uma
ameaça virtual não podia transformar-se numa ameaça real
que efetivamente pudesse pôr a perder todo um intento
disciplinador e de reordenação da urbe.
O que mais amedrontava eram os parceiros e os lo
cais freqüentados pelos vagabundos:

123
[... ] Passam os dias pelas tabemas e bodegas, pelas casas
de meretrizes, rebaixados à mais vil prostituição, em pân
degas, vivendo sem saber como arranjam dinheiro para uma
vida folgada e milagrosa. Bodegas da Rua João Alfredo,
dos arrabaldes, becos do Fanha, João Coelho e Poço, bode
gas do Mercado acham-se sempre plenas desses indivíduos
sem eira nem beira, verdadeiros perigos da sociedade [...].
O Acre está despovoado; ali faltam mulheres; Mato Grosso
precisa de homens vagabundos exportados [...]. Tanto bas
tará para fazer-se um saneamento moral em Porto Alegre
[...] {O Independente, 20 mar. 1910).

Exportar o perigo para fora do Rio Grande, por que


não? Ficar livre dos ameaçadores ociosos que insistiam
em ficar na contramão da ordem, eis uma proposta sedu
tora para as elites.
O texto aponta para um local de preferência dos
vagabundos: as bodegas ou botequins que infestavam a
cidade e que eram habituais lugares de desordem. Ora eram
indivíduos alcoolizados que lutavam na rua, em frente a
uma tavema da Pantaleão Teles, nas proximidades do
Gasômetro {Gazeta da Tarde, 4 maio 1895), ora eram
desocupados, meretrizes, soldados, marinheiros e paisa
nos da ínfima classe que faziam grande algazarra nas bo
degas da famigerada Gen. Paranhos, antigo Beco do Poço
{Gazetinha, 5 mar. 1896).
Estas inconveniências prejudicavam o trânsito públi
co pelo beco, tomando obrigatório para as pessoas de
centes evitar a passagem pelo local.
A opinião moralista lamentava que não houvesse lei
proibindo a existência das tais "bodegas imundas, freqüen
tadas por gente da pior espécie" {Gazeta da Tarde, 27 jul.
1897), que não só ofendiam a moral como davam mar
gem a toda uma sorte de desatinos que inclusive envol
viam praças do Exército e gente da própria polícia. Ou
seja, a bodega, como foco de vício e degradação, estendia
seus maus exemplos a outros freqüentadores, com profis
são fixa e que deveriam, por dever de ofício, ser os agen
tes da moralidade.

124
o Beco do Poço parecia ser manchete freqüente na
crônica policial, com conflitos diários nos seus inúmeros
botequins: brigas entre praças do 25® Batalhão de Infanta
ria e o proprietário do "Restaurante da Mocidade", luta
entre o cabo do piquete do Presidente do Estado e o criou
lo Francisco Gonçalo pelo amor da meretriz Odorica, re
sidente no mesmo beco {Gazeta da Tarde, 17 set. 1896 e
4 ago. 1897), perseguição de dois cidadãos que passavam
pelo beco por dois praças do corpo de bombeiros que sa
íam alcoolizados de um botequim {Gazetinha, 5 jul. 1898).
Alertava-se a opinião pública que as bodegas da Gen.
Paranhos eram "as tendas mais preferidas para o auge da
libertinagem" {O Independente, lójun. 1907).
Mas em outros becos também se localizavam as tascas,
como no célebre Beco do Fanha, onde, entre copos de cacha
ça e palavras obscenas, ia se corrompendo a juventude. Tam
bém o Mercado Público, a Praça da Alfândega {OIndepen
dente, 11 abr. e 3 mar. 1909, 22 mar. 1908), a Rua Pinto
Bwàt\r2i{Gazeta do Comércio, 13 fev. 1903), a Rua Volun
tários da Pátria {O Independente, 5 jan. 1902), a Rua Aurora,
antigo Beco do Barbosa, abrigavam botequins pemiciosos à
moral pública. O mais alarmante era que o processo ia num
crescendo que acompanhava o próprio desenvolvimento ur
bano e o adensamento da população de Porto Alegre:
Muitas outras tascas têm-se aberto pela Cidade Baixa, além
das antigas que continuam franqueando as portas a todos
os viciosos, fomentando a devassidào, pelos becos do Poço,
Fanha e outros {O Independente, 12 jul. 1905).

Outro centro prenhe de botequins era o famoso Beco


do Céu, localizado na Colônia Africana. Lugar onde um
cidadão de bem não podia passar à noite sem correr o
risco de ser esfaqueado ou roubado {Gazetinha, 5 mar.
1896), era um lugar onde "o pau rolava solto nas tavemas",
conferindo ao locai o status de um "tenebroso inferno"
{Gazeta da Tarde, 13 jul. 1896), verdadeira "corte do cri
me", ou Beco do Inferno {Gazetinha, 1°mar. e 2 fev. 1896),
designação esta mais apropriada.

125
Naturalmente, no caso da triste Colônia Africana,
conjugavam-se os vícios e crimes com a cor dos
desordeiros, bêbados e assassinos: estes eram sempre o
negro tal, a crioula fulana, o preto sicrano.
A "sífilis social", que tinha o seu foco disseminado
nos botequins, motivou uma série de artigos que associa
vam o alcoolismo à peste, conjugando a campanha mora-
lizadora com as preocupações higienistas:
[...] assim como as autoridades sanitárias batem-se numa
guerra sem trégua contra os ratos, as pulgas e a bubônica, a
vós cumpre também seguir-lhes os exemplos, batendo-vos
contra os ratos e os ratões das bodegas, esses genuínos agen
tes da desmoralização social {OIndependente, 12jan. 1902).
Os perigos do alcoolismo se estendiam pela descen
dência dos viciados, gerando filhos débeis, e inspiravam
artigos baseados em princípios médicos e experiências
científicas:

Experiências inúmeras, feitas em animais, e observações


concludentes sobre o homem demonstraram que a intoxi
cação alcoólica paterna ou matema perturba o desenvolvi
mento do embrião, imprime um estigma de degenerescência
e provoca em seus órgãos malformação, monstruosidade,
seguidas muitas vezes de aborto ou de morte no momento
de nascer. O álcool torna-se dessa forma uma causa direta
de despopulação. [...] Um número considerável de des
cendentes de alcoólicos tornam-se de constituição débil.
Outros têm convulsões na primeira infância e epilepsia na
idade da puberdade. Os alcoólicos engendram imbecis,
idiotas, bêbados,candidatos à loucura, pervertidos morais,
criminosos {Gazeta da Tarde, 12 set. 1898).

Mas os lugares de má fama da cidade não se resumi


am aos botequins que arrastavam ao vício da bebida. Tam
bém o jogo se fazia presente nas noites de Porto Alegre.
As casas de tavolagem atraíam viciados e incautos e eram
também elas pontos de ajuntamento da escória social (O
Século, 25 jun., 18 fev. e 25 nov. 1882). Uma campanha
moralizante contra a desenfreada jogatina procurou esten-

126
der a denúncia ao Jockey Club e^aos "prados" da capital,
onde, ao lado de homens da melhor sociedade, se juntava
uma canalha da pior espécie.Cabe referir que a prática do
jogo atingia tanto a elite quanto o povo, fazendo o indiví
duo perder o que era seu e o que não era seu:
Se a polícia proíbe que uns pobres diabos, no fundo da
tavema, joguem muito sossegadamenteo seu "parausinho"
[sic] a 10 réis a partida, por que não há de proibir essas
escandalosas e grossas jogatinas? (O 5'écz//o, 13 mar. 1887).

À diferença das socialidades dos botequins, que se


davam entre as mais baixas camadas sociais, o jogo atraía
pessoas conceituadas da cidade. Numa batida dada pelo
chefe de polícia em 1884, nas diversas casas de jogo proi
bidas de funcionarem, haviam sido encontrados comerci
antes, funcionários públicos, bacharéis e até vereadores
{O Século, 27jul. 1884).
Cerca de dez anos mais, encontramos notícias de que
as "batidas" policiais prosseguiam, mas sem êxito. As au
toridades chegavam "sempre tarde"... Avisados com an
tecedência, os proprietários das casas "disfarçavam" a ro
leta em alvo para tiro e faziam "sumir" os freqüentadores
{Gazeta da Tarde, 11 maio 1895).
Os jornais da época ironizavam, insinuando que a
polícia seria conivente com a jogatina {Gazetinha, 23 fev.
1896), outros, na sua campanha sagrada contra "o maior
dos vícios", exortavam a polícia a prosseguir sem tré
guas na sua perseguição aos jogadores {Gazeta da Tarde,
9 mar. e 27 ago. 1898).
Quando a polícia deitava mão em alguma casa de jogo,
pilhando os seus freqüentadores, o feito era saudado com
entusiasmo pelos jornais. Entretanto, era lamentado que
a repressão não baixasse de forma igual sobre todos os
jogadores:
[...] sejamos lícito dizer que conquanto merecedora de
encômios a nossa polícia em tal emergência não foi com
pleta a sua ação benéfica, não nivelou todos os culpados
perante a lei, pois que muitos dos que na mencionada noite

127
foram pilhados na jogatina foram postos em liberdade, às 2
horas da madrugada, ao passo que outros foram conserva
dos detidos até a noite de 3 [3-1-1904]. Por que tal privilé
gio? Nào foram todos encontrados em uma mesma casa,
praticando o mesmo crime previsto pelo artigo 369 do Có
digo Penal da República? (O Independente, 1 jan. 1904)
Prosseguia o artigo, dizendo que, embora a constitui
ção republicana afirmasse serem todos iguais perante a
lei, a igualdade só existia em teoria e nunca na prática.
Diante de indivíduos de diferentes posições sociais, que
haviam praticado o mesmo crime, a lei tinha diferentes
pesos e medidas.
Tal como no caso do alcoolismo, a incidência da
jogatina entre as classes desfavorecidas e abastadas moti
vou a reprodução nos jornais de artigos articulados ao dis
curso de saneamento moral da cidade, como as seguintes
palavras de Rui Barbosa:
Diáthese cancerosa das raças apremiadas pela sensualidade
e pela preguiça, ela entorpece, caleja, desvirtuaiiza os po
vos na filha de cujo organismo lesionou o seu gérmen,
proliferante, inextirpável [...].
Com a mesma continuidade com que devora a noite dos
homens ocupados e os dias do ócio, os milhões de opulen
tos e as migalhas do operário, tripudia enormemente sobre
a sociedade nas quadras de fecundidade e de penúria, as
abastanças, defome, dealegria edeluto. Éa lepra doviver,
é o verme do caráter (O Independente, 13 fev. 1918).

Mas talvez a atividade contra a qual a moral pública


mais tenha investido tenha sido a da prostituição. A julgar
pela recorrência do tema e o tom indignado das acusa
ções, Porto Alegre havia se tomado um verdadeiro lupa-
nar e necessitava de um saneamento em regra:
É a bem da moralidade, da ordem e da tranqüilidade públi
cas. Dia a dia vai aumentando por toda parte desta capital o
número de bordéis, verdadeiros gérmens do vício e do cri
me. A cada passo fora dos limites urbanos, encontram-sejá
destas casas imundas, quase todas com denominações que
facilmentefazem compreenderda procedênciados donos...

128
São eles o abrigo do que há de pior na sociedade. Os vaga
bundos afluem ali noite e dia. As mulheres de má vida,
essas desgraçadas, ali estabelecem seu ninho de amores de
almoeda. Daí sucede o que diariamente os jornais regis
tram: as desordens, os roubos, os assassinatos [...].
Compulsemos a estatística policial a respeito do que afir
mo. Ela está cheia destes fatos, registrados abundantemen
te nos seus cadastros [...]. É tal a devassidão que vai por
estas tascas, que não seria nem arbitrariedade nem violên
cia impor-se o fechamento de muitas. A liberdade tem limi
tes; não deve exceder as raias do que a moral preceitua, do
que a ordem geral exige em benefício de todos (Gazeta da
Tarde, 30 mar. 1897).

Na verdade, os bordéis não mais se restringiam ao


centro da cidade. Se, nas décadas de 70 e 80, eles se en
contravam na Praça do Paraíso, na Riachuelo e nos becos,
no fim do século eles já haviam se espalhado em profusão
pela Cidade Baixa e até no arraial de São João. As mere-
trizes faziam sentir a sua presença (Gazeta da Tarde, 10
jun. 1897).
Uma das formas de impedir a proliferação do mere
trício seria proibir a instalação ou o funcionamento de de
terminados "hotéis". Os jornais dão conta das iniciativas
da polícia neste sentido, convocando os donos de tais ho
téis e dando-lhes um prazo de 24 horas para fazerem de
socupar os quartos de seus estabelecimentos alugados a
meretrizes (Gazeta da Tarde, 23 jan. 1897).
Lamentava-se o fato de que os proprietários dos
bordéis eram geralmente "avisados" das "batidas" que a
polícia iria fazer, retirando em tenipo suas "clientes"'âos
bordéis (Gaze/a da Tarde, 5 abr. 1896). Ou seja, suspeita-
va-se de uma temível convivência entre os agentes polici
ais e os donos dos prostíbulos.
O Código Penal da República estabelecera o lenocínio
como crime, através do seu artigo 278:
Induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou misé
ria, quer constrangendo-as por insinuações ou ameaças, a
empregarem-se no tráfico da prostituição; prestar-lhespor

129
conta própria ou de outros, sob sua ou alheia responsabili
dade assistência, habitação e auxílios para conferir, direta
ou indiretamente, lucrosdesta especulçào{Gazetinha, 5 ago.
1898).

As penas previstas eram prisão celular e multa. A


campanha de saneamento moral identificava uma série de
agentes no negócio. Em primeiro lugar, os tais proprietá
rios dos hotéis ou prostíbulos,que eram responsáveispela
manutenção dos locais e do aluguel dos quartos. A julgar
pela florescência do negócio, os lucros deviam compen
sar o investimento. Uma segunda personagem era o cáf-
ten, o explorador de mulheres, proprietário ou não de um
bordel, mas sempre aquele que arrecadava a maior parte
dos "lucros" auferidos pelas meretrizes. Seu prestígio era
tanto maior quanto fosse o número de "estrangeiras" que
tinha sob o seu controle, ao lado das "nacionais" (O Sécu
lo, 17Jun. 1883).
Na sua versão feminina, a "cafetina", era alvo de to
das as críticas:

Das informações que temos colhido a respeito, viemos a


saber que estas casas são dirigidas por mulheres, cafetinas
da pior espécie, que não se limitam na prática do seu infa
me comércio à espera que a impura clientela lhes venha
em casa, de livre e espontânea vontade; elas introduzem-
se nas casas de suas vítimas, induzindo-as, constrangen-
do-as, intimidando-as para a prática da prostituição, pres
tam-lhes assistência, habitação e auxílios, auferindo lu
cros da imunda especulação (Gazetinha, 5 ago. 1898).
Portanto, as cafetinas eram também aliciadoras de incau
tas ou mulheres que já haviam dado um "passo em falso" e
que as tais fulanas convenciam de que o único caminho a
trilhar agora era o da prostituição. Nessa campanha
moralizante, os jornais se encontram plenos de acusações
sobre cáftense cafetinasque arregimentavammulherése me
ninas para a chamada vida fácil. Era o caso da inglesa da Rua
da Assembléia, célebre no aliciamento de crianças, e do bordel
da crioula Fausta, na Gen. Paranhos, antigo Beco do Poço,
onde raparigasnovas eram levadaspara o caminhoda perdi-

130
ção {Gazeta da Tarde^30 abr. 1898), a crioula Domingas, do
mesmo Beco do Poço, que embriagava crianças, ou a tal
Firmina, residente também naquele beco, que prostituíra sua
filha (Goze/w/za, lójun. 1898).
A cruzada moralizadora falava num número crescen
te de meninas de 12 a 15 anos que já se exercitavam nas
ruas na tarefa de atrair fregueses para os bordéis, corriam
boatos de que inclusive entre as alunas do colégio das filei
ras da Rua do Arvoredo havia jovens prostituídas! Casos
pungentes eram trazidos aos jornais, como o da pobre
menina de 12 anos, vendida pelos pais a um cáften que a
acompanhava na Praça da Alfândega, a oferecê-las aos
passantes {Gazeta da Tarde^ 5 ago. e 18 set. 1895).
A julgar pela freqüência das notícias, pelo detalha
mento das cenas de violência e das proezas sexuais de
homens idosos com menininhas, este tipo de assunto de
veria se constituir num poderoso atrativo para a venda dos
jornais. Ou seja, a campanha moralizante socializava in
formações picantes ao agrado dos consumidores. Não que
a sociedade aplaudisse a prostituição ou o cafetismo, mas
tais notícias deveriam exercer uma certa atração sobre os
leitores. A moralização se fazia necessária, e o relato do
crime, pormenorizado, dava mais ênfase à campanha. Um
misto de atração-repúdio deveria reger este noticiário sen-
sacionalista, que era capaz de tomar em personagens de
folhetins as principais cafetinas da época: a crioula Fausta,
em seu bordel do Beco do Poço, Joana Eiras, com seu
estabelecimento na Dr. Flores, e os envolvimentos destas
com processos e tribunais eram seguido^s. passo a passo
pelas notícias dos jomais.
É nesse clima que se pode apreciar o impacto que
deve ter causado uma entrevista inusitada de um repórter
a um bordel. Justamente no Beco do Poço, o prostíbulo da
famigerada crioula Faqj^ta, que excitava a imaginação dos
leitores:

[...] poucas vezes o intuito do escritor foi desnudar ante o


público a mais horrível e cancerosa chaga da sociedade; essa
que infelizmenteaumenta e aumenta sempre com a influên-

131
cia da devassidão de homens que, na culminância da fortuna,
aproveitam-sedisso para semear a mancheias o ouro em per-
muta da desonra de muitos; essa que dilacera laços de famí
lia: purezad'alma,crenças, tudoquanto compõea partemoral
da criatura e que vai atrofiando, apodrecendo o corpo tam
bém; essa, que se observa simplesmente, afinal, prostitui
ção. Oh! dirão muitos, isso é baixo, é sujo demais para ser
tratado pela imprensa E nós lhe diremos: toda a questão que
afeta o bem-estar da família, afeta a sociedade em geral; o
desenvolvimento da prostituição e a infelicidade de muitas
famílias cujo nome, por isso, é arrastado na lama da desonra,
de um momento para outro; é uma causa pois, que aumen
tando terá como efeito inevitável a desmoralização total da
sociedade (Gazetinha, 11 maio 1898).

Justificando assim o fato de trazer a público o tema,


o periódico havia se dado ao trabalho de ir ver, de fato,
aqueles "antros de vício" que cometiam a desfaçatez de
funcionarem publicamente no centro da cidade, como se
fossem um estabelecimento de comércio legal!
Acompanhado de um indivíduo que conhecia este
submundo, o repórter iniciou a sua visita ao prostíbulo:
[...] fomos ter a uma rua estreita e suja, ou melhor, a um
beco, pouco distante da principal rua de Porto Alegre, isto
é, bem no centro desta piedosa capital de religiosidades e
política. Eram talvez 9 horas da noite. O tal beco parece
mesmo apropriado para ter, em meio de sua extensão, um
lupanar; a impressão que se recebe ao transitar no mesmo
é péssima.
Aqui e ali, de um lado e d'outro, há mulheres de má vida à
janela ou junto à porta de suas pequenas moradias e a
palestrarem em altas vozes com soldados, marinheiros e cri
oulos debochados - a palestra e ponteada cora gargalhadas,
ditos escandalosos, frases obscenas; mais adiante há uma ven
da cheia de uma freguesia barulhenta, no meio da qual estão
mulheres que tomam cachaça. Tal casa de negócio prima pelo
pouco asseio que se nota logo, desde o assoalho ao próprio
dono da casa - um tipo legitimamente de tavemeiro reles. Do
lado fronteiro a esta bodega e um pouco acima, outra tasca da
pior qualidade ainda; ali uma china sentada sobre uns sacos de
milho, feijão e outros gêneros e com uma perna curvada sobre

132
a outra canta desajeitadamente, ao som do buso tocado por um
anspessada da brigada estadual encostado ao sujo balcão da
casa. Outras mulheres, figuras de relaxadas, bebem de parce
ria com sujeitos de sua estopa Ouve-se o vozear de muitas
pessoas, vindo do interior da tasca, prova de que lá dentro, em
outro compartimento, há uma sociedade igual à que se acha na
frente.
Na quadra seguinte e em frente a um sobradinho antigo,
com três janelas no pavimento superior, e duas janelas e
portas com corredor, no térreo, o Quirino parou.
- É aqui, disse.
- E agora ?
- É só entrar e arranjar-se com a donada casa.
- Porém, não a conhecemos.
- Ora, isso é o de menos, vamos juntos.
E entramos com ele, pelo escuro corredor da casa. À es
querda encontra-se a porta da sala; íamos bater, aí porém o
Quirino segurou-nos o braço.
- Espere, espere um pouco, exclamou, interpondo-se entre
nós e a porta.
E colando o ouvido à fechadura, escutou.
- Está ocupado aqui, não se pode entrar. Vamos para dentro.
Seguimos às apalpadelas até o ponto onde uma parede, de
tábuas, no centro da qual uma porta, faz a continuação do
corredor. O Quirino, que seguia na frente, bateu e chamou
em voz baixa: Siá Fausta!
Ato contínuo a porta abriu-se e, no limiar desta apareceu
uma crioula cujas feições não conseguimos apreciar devi
do a escuridão do lugar.
- Que há? perguntou ela.
O Quirino aproximou-se-lhe e ao ouvido segredou-lhe qual
quer coisa. Falou a nosso respeito, certamente, porque a
crioula, indo ao interior do compartimento em que se en
contrava, acendeu um fumegante lampião de querosene e
de lá nos mandou entrar.
Estávamos afinal no interior de um lupanar, situado na par
te mais central da capital! (Gazetinha, 12 maio 1898).
Imagina-se o impacto que a ousadia da reportagem
não deveria ter causado, penetrando em um ambiente que
as famílias de bem evitavam: o Beco do Poço e, nele, o

133
bordel da crioula Fausta, que seguidamente aparecia nos
jornais!
A riqueza de detalhes da descrição da visita permite
acompanhar as passagens e os ambientes avaliados segun
do o olhar crítico da época: os ambientes eram sujos, as
figuras debochadas, os gestos e o linguajar obscenos.
A personagem central deste ambiente - a prostituta,
horizontal ou ratoneira - se constituía num contraponto da
imagem consensualmente aceita para a mulher: nascida
"encantadora menina", crescia "filha extremosa", toma-
va-se "casta donzela" para um dia tornar-se "esposa
amantíssima" e "mãe exemplar", acabando seus dias como
"bondosa avó"... Entre a santidade e a perdição, não havia
muito meio termo, e as que ousassem seguir outros cami
nhos estavam condenadas:

Note-se quantas destas desgraçadas mulheres que chega


vam ao ponto de não serem nem solteiras, nem casadas e
nem viúvas [...] {Gazetinha, 26 mar. 1896).

Ou seja, não eram classificáveis na escala da


normalidade feminina.
O ideário positivista contribuía para consolidar esta
imagem, vendo na mulher o "freio" aos maus instintos,
guardiã dos bons costumes e mantenedora da moral é da
ordem.
Na verdade, a prostituta era potencialmente uma
criminosa. Além de levar uma vida desregrada, que in
fringia todas as normas e valores estabelecidos, era um
elemento catalisador de todos os vícios. Desencaminha-
vam a juventude, pervertiam crianças, seduziam pais de
família, viviam cercadas de bêbados e jogadores. Elas pró
prias se viam envolvidas em cenas violentas de pugilato,
onde navalha e chicote misturavam-se a puxões de cabe
lo, na disputa amorosa por algum freqüentador do bordel,
incidentes que não raro acabavam na delegacia ou necro-'
tério. Mas não paravam aí as Iropelias: ora era uma "da
nada mulata" que, na Praia do Riacho, prostituía suas fi
lhas, por se achar já retirada do "negócio", e roubava o

134
dinheiro dos "clientes", ora era uma tal Avelina, que, na
mesma Praia do Riacho, exercia seu ofício, ofendendo as
famílias com seu linguajar e proceder (O Século^ 17 dez.
1887e 12fev. 1882).
E as cenas prosseguiam, entre bebedeiras de Joanas e
Marias, suicídios de outras tantas Belinhas e Etelvinas,
por ingestão de ácido fênico, em razão de amores mal
correspondidos {Gazeta da Tarde, 13 abr. 1897). Protegi
das ou esbordoadas pela polícia, apanhavam também de
seus clientes e eram capazes elas mesmas de praticarem
crimes.
Nas praças e nos becos, nas ruas escuras e nas aveni
das iluminadas, chocavam as famílias com seus ditos in-
decorosos e seus convites ostensivos aos passantes. Na
frente dos bordéis, a cena se acentuava, não havendo res
peito a quem quer que fosse que por ali transitasse.
Suas festas perturbavam o sono dos cidadãos de res
peito, que protestavam pelos Jornais:
Moradores da Rua Riachuelo, quadra entre a travessa
Paissandu e Rua General Câmara, pedem-nos reclamar a
quem de direito contra uns bailes de lupanar, verdadeiras
chinfrineiras realizadas no edifício da Sociedade "Flores
ta Aurora", que não escrupulizou em alugar seu salão para
gente da mais ínfima classe social.
Ainda no sábado aquele salão foi ocupado por meretrizes
dos becos mais escuros desta cidade, acompanhadas de uma
vagabundagem reles, não fazendo outra coisa mais do que
transformar o prédio em verdadeiro alcouce. O que ali se
passava de imoral e indigno ia repercutir na rua e nas casas
próximas, nos palavrões mais ofensivos à moral. Até as fa
mílias, quando saíam do teatro, foram insultadas ao passar
pelo prédio em questão {Gazetinha, 8 nov. 1897).

Em suma, eram sempre protagonistas de cenas de


gradantes. Debochadas, descompostas, obscenas, condu
ziam os lares à ruína.
Neste contexto, a prostituição era encarada como um
problema a ser sanado, tal como se fazia a profílaxia em
relação a uma doença. Na cruzada moralizante desenca-

135
deadora na fln de siécle pesava a acusação de que tais
mulheres de má vida eram de "désbragada concupiscên-
cia", de uma "voluptuosidade inata". Haviam nascido pre
dispostas ao pecado. Invocando a ciência moderna, en-
tendia-se que o meio e a hereditariedade eram poderosos
agentes de degeneração. Neste sentido, os botequins,
bordéis e espeluncas eram lugares onde eram exploradas
as inclinações libidinosas de tais criaturas. (Gazetinha, 26
mar. 1896) Tal visão não eliminava a influência do meio.
Justamente a medida que cabia tomar era atacar a nefasta
influência do ambiente, uma vez que não havia jeito de
influir na genética. A cruzada se dava em nome da moral,
mas demandava-se a ação da polícia como o braço eficaz
de impor a ordem. Sobre esta, contudo, pesavam suspei
tas terríveis. Já se constatara que policiais eram assíduos
freqüentadores de tais lugares; levantava-se a hipótese
de sólidas ligações entre policiais, cáftens e donos de
bordéis. Invocavam-se leis, códigos penais e princípios,
nomeava-se explicitamente os chefes de polícia, apelan
do para seus brios. Tanto para conter meretrizes, ébrios e
vadios quanto para responsabilizar os proprietários de
prostíbulos pelos charivaris que lá se armavam, deman-
dava-se a ajuda da polícia.
A opinião pública questionava como alguém da po
lícia poderia ter interesse na expansão da libertinagem
nas ruas centrais da cidade {Gazetinha, 26 mar. 1896), e
se depositava esperança numa enérgica repressão do po
der público para conter a onda de devassidão moral.
O raiar do novo século não viu esmorecer a campa
nha saneadora. Porto Alegre crescera, e os articulistas se
perguntavam se a modernidade desejada teria sempre esta
contrapartida de desregramento moral:
Porto Alegre, à noite, não resta dúvida, já tem os povos de
uma grande capital, movimentada e perdida. A mocidade
libertina, de bordel em bordel, atravessa uma noite inteira
levantando brindes obscenos, mostrando no dia seguinte
apenas o sulco fundo das olheiras roxas, atestado fatal de
uma orgia onde embriagou-se e cavou com as próprias mãos

136
mais e ra^s uma cova onde serão enterradas as ilusões de
sua vida inútil e rápida.
Ao lado das prostitutas, gozando beijos e afagos mercená
rios sem a reflexão precisa para evitar tamanho mal, encon
tra-se o moço e o velho libertino, trocando frases indecoro-
sas, tresandando a cachaça, vinho e cerveja barata, no mais
completo bem-estar deste mundo.
Numa verdadeira romaria de perdição vê-se mulheres mo
ças, perdidas, famintas, de tasca em tasca, que, em troca de
instantes de prazeres, exigem para matar a fome que as de
voram, bifes com batatas regadas a vinho intragável (O In
dependente, 6 out. 1901).

A campanha prosseguia, tanto nas tradicionais


reclamatórias à polícia frente a proliferação dos lupana-
res, quanto pela recorrência do tema, explorado sob a for
ma de pequenos contos, que narravam tragédias ambien
tadas num bordel: um homem embriagado reconhece sua
ex-mulher, agora prostituta, e a mata, indo parar na cadeia
(O Independente, 19 jan. e 16 fev. 1902). Juntavam-se
assim todas as contravenções: a bebida, a prostituição, o
crime, demonstrando quão interligadas se achavam tais
práticas condenáveis.
A denúncia ao bordel é como uma história sem fim.
Ao longo da década, as notícias se repetiam, denuncian
do, acusando, tecendo juízos sobre os locais^ as atitudes,
os personagens, todas atentatórios aos bons costumes.
Retratavam-se com minúcias as prostitutas, ora ves
tidas no rigor da moda, mas com o exagero devido para
seduzir clientes, ora cobertas de andrajos, mas sempre
fazendo "corar o pudór" das damas honradas que com
elas cruzavam {O Independente, 5 jun. 1904). Os bordéis
eram comparados a açougues, os cáftens a vampiros so
ciais, ladrões da honra (15 abr. 1906), os becos a verda
deiros viveiros de tuberculosos e sifilíticos, que transmi
tiam às gerações sua pestilência, contribuindo para a
degenerescência da raça (8 abr. 1909). Paralelamente
ao alastramento dos bordéis, crescia o número de atenta
dos ao pudor, fato assinalado como por demais signifi-

137
cativo, em sintonia com a "depressão moral" que assola
va a cidade.
Falando da alta incidência de defloramentos, O
Independente denunciava:
Poucos, muitos poucos processos sào levados a tribunal do
júri, porque os autores de tais crimes iludem a ação da auto
ridade, ou armam-se do subterfúgio que a fraqueza dos códi
gos criminais lhe faculta. Resolvem os casos pelo casamento
para assim liberarem-se da ação repressiva da lei e para logo
abandonar a seduzida, cujo destino é a prostituição (1"ago.
1909).

Transformada a cidade em moderna Sodoma, na fala


dos jornais, as notícias repetiam-se ano a ano:
Percorra-se, à noite, esses becos escabrosos e então só se
poderá julgar das nossas palavras. Ver-se-ão verdadeiras
crianças de 11 e 12 anos exploradas em 'maternidades',
álcoolizando-se todas as noites, cobrindo-se de feridas más.
Essas infelizes, aos 20 anos, quando as outras estão em
pleno vigor, estarão velhas, roídas pela sífilis e pelo ál
cool {O Independente, 24 ago. 1911).
[...] farrapos humanos escrufulosos, umas sem nariz, ou
tras sem lábios, todas com sífilis e a flor do vício a trans
parecer no rosto (lOjul. 1913).

Sucediam-se os incidentes com as meretrizes, que


persistiam no seu trottoir nas ruas centrais, aparente
mente inabaladas pela campanha dos jornais, algazarras
em bailes de maxixe na Cidade Baixa, intercalados por
lutas de faca e bebedeiras; assassinatos faziam parte do
cotidiano das ruas de meretrício, quase, todos girando em
tomo de ciúmes e traições. O Beco do Fanha, o Beco do
Oitavo, o Beco do João Coelho, o Beco do Poço, a Rua da
Cadeia e a Rua Riachuelo eram cenários freqüentes destas
cenas violentas, num sem nunca acabar de incidentes onde
só variavam o nome dos atores. Às vezeseram os própri
os órgãos que deveriam manter a ordem os que promovi
am os distúrbios, como no caso do assalto a um cabaré,
no Beco do Oitavo, promovido por praças do 10°. Regi-

138
Rua Sete de Setembro,
no começo do século 20.
mento de Infantaria. (O Independente, 10 jul. 1913, 10
jan. e 27 nov. 1916, 21 nov., 28 jul. e 24 mar. 1919)
Nada, contudo, se comparou com a campanha ence
tada no início do ano de 1919.
Porto Alegre modemizava-se, tomava o passo de uma
cidade moderna, tinha aspirações a ser metrópole.
Reordenações urbanas haviam sido feitas, planos eram
arquitetados para transformar a sua fisionomia, mas era
preciso que este processo fosse acompanhado de uma es
tratégia de controle eficaz sobre as socialidades malditas
que persistiram:
O estado presente a que desceu Porto Alegre bem contradiz
com os povos de que goza; é mais um trapo de miséria da
sarjeta, da perdição, do lodo, da baixeza do que de uma
capital culta e moralizada. [...] Porto Alegre se infama, se
degrada, dia a dia, pelo descaso dos poderes competentes
cegos pela sífilis políticas de conveniências e protecio-
nismos. (P Independente, 24 mar. 1919)

Todavia, alguns contrastes se impunham. Atacavam-


se as prostitutas e denunciava-se que a devassidão com as
suas "matemidades" e casas de encontros haviam se alas
trado pela Glória, Partenon, Menino Deus, Cidade Bai
xa, Floresta, São João. Mas, no centro da cidade, em ple
na Andrade Neves, antiga Rua Nova, centro da boêmia,
funcionava a todo vapor o "Clube dos Caçadores", o fa
moso "Lulu dos Caçadores", como era conhecido, casa
de jogo e cabaré freqüentado pela elite porto-alegrense.
Se políticos, empresários, banqueiros, militares e advoga
dos eram sua clientela, a polícia não se mobilizava contra
esta casa noturna.
O peso da lei recaía sobre os deserdados do sistema.
Dançarinas e prostitutas de luxo tinham seus padrinhos.
Já as Marias da vida sofriam os rigores da lei, e depoi
mentos em seu favor eram motivo de escândalo:

Era só o que faltava! foi a expressão que mais de pronto


nos veio ao pensamento, quando deparamos uma variada
[sic] do nosso colega Correio do Povo que o advogado

140
Rafael Claro da Rosa havia requerido, ao Superior Tribu
nal do Estado, uma ordem de habeas-corpus, a favor de
30 prostitutas, protestando contra a medida adotada pela
polícia de que as mulheresde vida fácil não podiam perma
necer nas janelas ou conservar luz nas salas de suas respec
tivas residências (O Independente^ 17 fev. 1919).

O artigo acrescentava que a Constituição permitia a


liberdade de profissão, era preciso ponderar qual o caráter
da profissão e quais os limites da liberdade:
Será liberdade as mulheres, messalinas impudicas [...] em
pontos centrais da cidade, como Rua Riachuelo, Praça Ma
rechal Deodoro, Rua Dr. Flores, etc. andarem por estarem
em suas casas, quase como a mãe Eva? Será liberdade de
profissão as hetairas acharem-se em pleno início da noite,
nas janelas com o colo nu, muitas vezes tendo caídas no
peitoril das mesmas as carnes lascivas, para excitar os
transeuntes com ditos e pregões do seu comércio, ofendendo
o decoro das famílias? {O Independente, 17 fev. 1919).

Numa verdadeira blitz, a polícia prendeu de uma só


vez mais de 40 cáftens, numa ação elogiável, mas que
teve seu brilho empanado pela revanche do cafetismo:
uma vez soltos, demonstraram o seu pouco caso com as
leis, organizando imorais desfiles na Rua da Praia duran
te o carnaval. (O Independente, 19 mar. 1919)
Estimulados pela campanha de saneamento moral de
poucos resultados efetivos e pelo acinte debochado do
cafetismo, os jornais passaram a publicar uma série de
artigos intitulados "A prostituição" e "Porto Alegre à noi
te e... às claras", todos eles com forte cunho moral.
Vários lançavam o recurso da fábula, da alegoria, dos
personagens históricos para ilustrar o tema em pauta. Ora
era Maria Madalena, ora era Frinéia, que, invocadas para
o papel de prostituta, encontravam a redenção ou um de
fensor. Restava, contudo, a consideração básica de cunho
moral e afetivo: como a mulher, ser tão frágil e doce, po
dia descer tanto? Como alguém capaz de dar a vida podia
perverter menores, como a velha alcoviteira que mandava
oferecer a filha? (O Independente, 3 e 14 mar. 1919)

141
Entretanto, pela primeira vez a meretriz é aventada
como vítima e os tipos ideais despojados em parte do seu
esteréotipo :
Entre Santa Tereza e Lucrécia Bórgia há um abismo que
vai da mais virginal castidade à mais horripilante devassi-
dào. Se nem toda virgem é uma Tereza de Jesus, nem toda
decaída é uma Lucrécia (O Independente, 24 mar. 1919).

Indagando sobre as causas em função das quais uma


mulher decaía, os articulistas retomavam às velhas expli
cações cientificistas dos estados patológicos, das taras
hereditárias, dos desequilíbrios mentais, acrescentadas de
fatos e sentimentos circunstanciais da vida, como o ciú
me, a paixão, os desenganos. Mas, indo mais além no ra
ciocínio explicativo, indagava-se a respeito do lar mal
constituído, da fome, da miséria. Nesse caso, muitas ve
zes os sentimentos mais nobres para com um filho doente,
uma mãe entrevada é que moviam as mulheres para a "que
da". Insinuava-se aqui a figura sórdida do aproveitador da
miséria humana, às vezes o próprio patrão, responsável
pela sedução e pela infâmia.
Deduz-se a existência de duas espécies de decaídas:
as "naturalmente devassas", predispostas ao vício, e as que
para ele incautamente foram atraídas ou levadas pela ne
cessidade. Para tal drama, a polícia bastava? A seqüência
de artigos assinados por Leopoldo Bettiol ("A prostitui
ção") indicava que a sociedade buscava outras medidas
para solucionar o problema, além da mera repressão. Numa
posição incomum para a sociedade masculina da época,
Bettiol indicava que muitas vezes o responsável pela de
gradação da mulher era o homem: pai, patrão, marido, que
impelia a vítima a atitudes contrárias a sua vontade. De
nunciando a duplicidade da moral, o contraste do com
portamento na vida pública e na privada, Bettiol desve
lava um comportamento típico masculino de sua época:
É o homem que, repugnantemente, para buscar um novo
gozo, cada vez mais variado, lança mão de todos os meios,
desde a ameaça às lagrimas, e das grandes compensações à

142
coação para desfrutar mais donzelas e corromper mais espo
sas e que, comicamente, burlescamente, pretende que o seu
lar seja inviolável, que sua esposa seja uma Raquel e suas
filhas virgens intangíveis e que, ao ver a mulher que o aban
dona para acompanhar o amante e as filhas solteiras darem
à luz ante suas barbas, se revolta e as acusa ainda, miserá
vel e infame, nem coragem tem para arcar com as próprias
responsabilidades e pretende atribuí-las à fraqueza, versa
tilidade e inconstância da mulher, que mais não é do que a
sua vítima {O Independente, 30 abr. 1919).

Já o articulista A. de A., da série "Porto Alegre, à


noite e... às claras", defendiao prosseguimento da campa
nhajusta e honrada contra o vício, que tinha na ação poli
cial a sua arma mais eficaz. Lamentava a ineficácia das
autoridades, denunciando o seu interesse na manutenção
do vício. A "crítica social" se fazia na medida da afirma
ção de que havia mais honra entre os pobres do que na
chamada classe alta (O Independente, 4 abr. 1919). To
davia, não era estabelecidauma correlação entre as pros
titutas, como membros das camadas baixas da popula
ção, e a tal honradez dos subalternos. Nesta vertente de
opinião, ficava sem uma explicação maior a perda da
honra, restando contudo a vaga idéia de que nem todos
os pobres eram devassos. A fatal conclusão era de que
ervas daninhas deveriam ser extirpadas para não com
prometer todo o jardim. Como a falta de honradez dos
ricos dependia da sua regeneração moral, a dos "pobres
malditos" se faria pela intervenção da polícia .

143
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148
A Evolução. Porto Alegre.
Gazeta do Comércio. Porto Alegre.
Correio do Povo. Porto Alegre.
Echo do Sul. Pelotas.

149
síntese
rio-grandense
1. Vida política no século 19
(da descolonização ao movimento republicano)
Helga Iracema Landgraf Piccolo
2. A Revolução Farroupilha
Moacyr Flores
3. O cotidiano da República
(elites e povo na virada do século)
Sandra Jatahy Pesavento
4. O negro
(consciência e trabalho)
Zilá Bernd e Margaret M. Bakos
5. O perigo alemão
René E. Gertz

6. Roteiro de uma literatura singular


Regina Zilberman
7. A crise dos anos 20
(conflitos e transição)
Paulo G. Fagundes VIzentini
8/9. Um passado pela frente
(poesia gaúcha ontem e hoje)
Luís Augusto FIscher
10. História de Porto Alegre
Francisco Riopardense de Macedo
11. Getúlio Vargas e outros ensaios
Sérgio da Costa Franco
12/13. A arquitetura
Günter Weimer
14. Tendências do jornalismo
Francisco Ricardo Rüdiger
15. O doutor maragato
João Eickhoff

16/17. Antecedentes indígenas


Arno Alvarez Kern

18/19. Os pobres da cidade


(vida e trabalho - 1880-1920)
Sandra Jatahy Pesavento
Composição e paginação:
UFRGS/Editora da Universidade

Fotolitagem da capa e ilustrações:


Krisma Editora e Fotomecânica Ltda.
Av. Ipiranga, 3045 - Fone (051) 223-1101

Impressão:
Gráfica Editora Pallotti
Av. Plínio Brasil Milano, 2145 - Fone (051) 341-0455

Porto Alegre, RS
Av. Plínio Brasil Milano. 2145
Fona 3410455 - P. Alegre • RS
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Os pobres da cidade
(vida e trabalho -1880-1920).
São vários os ângulos e enfoques
aue merecem ser resgatados para
voltar-se ao passado e ver o presente.
Sandra Jatahy Pesavento usa
documentos e jornais de época para
mostrar que as imagens construídas
e os discursos que se articulam
numa época podem e se tornam legíveis
em outro tempo.
Este texto mostra os contrapontos
e as sincronias entre ontem e hoje:
os pobres, os populares, os subalternos,
cidadãos de segunda ordem,
que se encontram nas fábricas
e na construção como opérários,
são os perigos da rua,
estão na contramão da ordem,
mas percebem nas benesses
da sociedade moderna que "uns são
mais iguais que os outros".

Editora
da Universidade
Universidade EédenI do Rio Grande do Sd

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