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O espaço fílmico de Dogville

Rodrigo Castro Forte Cardoso – 61392


Resumo: o objetivo deste artigo é analisar o espaço fílmico de Dogville (2003),
baseado no conceito de espaço moderno de Alberto Tassinari em comparação
com as artes plásticas, sobretudo a questão da interação entre o filme e o
espectador.
Palavras-chave: Espaço fílmico. Cinema. Lars von Trier.

Introdução
O cinema europeu sempre se diferenciou do estadunidense, e mais especificamente do
hollywoodiano, devido ao seu experimentalismo, à pretensão (em grande parte devida aos
movimentos de vanguarda do velho continente) de se realizar um cinema-arte, que fugisse do
comercialismo de Hollywood que ainda hoje dita o padrão de qualidade de muitos filmes –
qualidade hollywoodiana, deve-se sempre relembrar. Lars von Trier, nascido e graduado em cinema
na Dinamarca, é um bom exemplo do que se pensa na Europa sobre a Sétima Arte. Em Dogville,
que estreou em 2003, o cineasta explorou uma nova formatação de filme, utilizando um espaço fora
do usual para a encenação – ou, nas palavras de Fábio Crispim de Oliveira, um “não-cenário”
(OLIVEIRA, 2008, p. 6), já que o filme foi feito numa caixa preta, com apenas alguns objetos
cênicos reais e marcações no chão, como se feitas em giz, sobre os locais cenográficos e demais
objetos.
A experiência de von Trier não foi mera brincadeira ou apenas mais um experimento. Tudo o
que acontece, então, se amarra harmoniosamente com o fato de não haver paredes, nem paisagem,
nem perspectiva, nem nada além da própria cidade, cujo nome Dogville já indica que o espaço será
uma das peças fundamentais da obra, como indica Oliveira:
O fato do próprio nome do filme ser o nome da cidade já é um indício de que o espaço é um
dos principais personagens do filme. Na verdade, o fato de que não existe uma cidade faz
exatamente com que esse espaço se evidencie, causando um grande estranhamento para
o(a) espectador(a). (OLIVEIRA, 2008, p. 6)

A aposta em se retratar um espaço fílmico não realista vai na contramão do que a “magia”
do cinema diz tacitamente aos criadores: quanto mais o espectador sentir que o filme é crível, mais
sucesso o filme terá, pois alcançará as emoções do espectador de forma plena. O deixar-se enganar
voluntariamente que faz parte da experiência de ver um filme no cinema só faz sentido se o
espectador “finge” não saber que o que está se passando naquelas duas horas é mentira, que é, na
verdade, uma representação do real, uma imitação do que acontece no mundo de verdade. Isso tem
como base a narrativa linear da literatura do século XVIII, como bem explicita Oliveira: “A
narrativa linear, por si só, é muito anterior ao cinema, mas com o crescimento da imensa indústria
cinematográfica hollywoodiana, tal forma de narrativa se tornou tão recorrente que o cinema como
um todo passou a ser percebido com uma relação intrínseca a ela.” (OLIVEIRA, 2008, p. 2).
Dogville, mesmo utilizando uma narrativa linear (inclusive sem o uso de flashbacks, que também é
uma herança cinematográfica dos romances clássicos), com um narrador em off onisciente que
conta tudo ao espectador, parece sussurrar “ei, isso é só arte mesmo” - e é exatamente esse sussurro
que causa o estranhamento, pelo menos a princípio, do espectador em relação ao que está vendo na
tela.

1. O espaço em si
O espaço de Dogville é totalmente diferente do que se costuma ver em outros filmes. Graças
à pretensão de ser o maior representante da realidade entre todas as artes, os espaços
cinematográficos buscam sempre se retratar o mais fiel possível ao que existe de fato: ruas, casas,
paisagens, etc. É curioso o fato dessa arte, moderna por excelência temporal, utilizar recursos
considerados pelos seus contemporâneos de outros ramos artísticos, muitos deles ligados à arte
moderna, ultrapassados. Alberto Tassinari, em sua tese O Espaço Moderno, enfatiza a oposição arte
moderna/arte predecessora, ressaltando a importância das concepções espaciais nas artes plásticas
dos diversos períodos artísticos:
A arte moderna formou-se tanto a partir quanto contra o naturalismo de matriz renascentista
que a precedeu. Caso seu início seja datado por volta de 1870, foi em relação a mais de
quatro séculos de ininterrupta tradição naturalista que a arte moderna se posicionou. Além
dos estilos de época, um mesmo esquema espacial genérico, o da perspectiva artificial,
engloba a arte dos séculos XV ao XVIII. Uma compreensão por negação do espaço da arte
moderna sempre foi possível, por isso, como sendo não perspectivo. (TASSINARI, 2001, p.
17)

Mesmo os espaços que não existem concretamente, como o dos sonhos, são representados
de forma que se tornam reais aos olhos do espectador. Essa potência de transformar a mentira, ou
melhor, a ilusão, em algo possível, real, crível, é apontado como o grande trunfo do cinema por
diversos teóricos, já que representa a possibilidade de o espectador viver diversas vidas, participar
de inúmeras experiências, sem precisar, contudo, de fato vivê-las. Dogville, no entanto, parece fazer
questão de se mostrar obra-de-arte. Seu espaço não se parece em nada com o que vemos na vida
real. Até mesmo a luz que compõe o espaço enfatiza o fato do filme ser apenas uma ficção, apesar
do seu tema histórico: só três tons de luminosidade ditam a passagem do tempo: fundo todo branco,
quando é manhã; preto, quando é noite – o que inclusive se confunde com a própria caixa preta
onde se desenvolve o filme; e um tom alaranjado, em momentos muito específicos, como quando
Grace, a protagonista, visita o velho cego e o convida a observar a paisagem de sua janela, que se
revela espetacular através da narração e da luz alaranjada.
Não há perspectiva espacial, um recurso artístico utilizado justamente para dar mais
realismo à obra, especialmente pela pintura naturalista e realista, apesar de ter começado sua
difusão ainda na época do Renascimento italiano (TASSINARI, 2001). Ismail Xavier, ao citar um
trecho do livro de André Bazin, Qu'es-ce que le cinéma?, dá uma definição que corrobora a
conceituação de Tassinari sobre o espaço na arte moderna e nas suas predecessoras:
Os limites da tela (cinematográfica) não são, como o vocabulário técnico às vezes o sugere,
o quadro da imagem, mas um “recorte” (cache em francês) que não pode senão mostrar
uma parte da realidade. O quadro (da pintura) polariza o espaço em direção ao seu interior;
tudo aquilo que a tela nos mostra, contrariamente, pode se prolongar indefinidamente no
universo. O quadro é centrípeto, a tela é centrífuga. (BAZIN apud XAVIER, 1977)

Como já dito, o espaço da pintura clássica buscou usar a perspectiva para torná-la uma
representação fiel da realidade que se via. Daí surgem as telas com paisagens magníficas, situações
que mais pareciam fotografias de tão fieis que eram ao objeto real representado. O cinema, depois
de tanto tempo de passada essa tradição naturalista, caminhou justamente ao encontro dessa
tradição, como evolução da fotografia, a que se delegou, à época, a pecha de representante da
realidade por excelência, e com a vantagem do movimento conferido às imagens antes estáticas, o
que confere ainda maior realismo aos objetos retratados na tela.
A única noção de perspectiva que se tem é devida ao narrador, onisciente, que, assim como
num livro, conta ao espectador o que se vê além da caixa preta. Isso pode ser visto na cena em que
Grace chega a Dogville: Tom, outro protagonista e cidadão de Dogville, ouve tiros ao longe,
provavelmente vindos de Georgetown (uma cidade citada, mas nunca vista no filme), e então olha
na direção de onde veio o barulho dos disparos, no meio das montanhas, e é quando Grace chega à
pequena cidade. Toda essa descrição é designada ao narrador, e a câmera posiciona-se próxima a
Tom, às vezes atrás, mostrando apenas a noite de Dogville, o fundo preto; não se vê a paisagem a
qual se referem os tiros, nem se vê as montanhas nas quais Dogville está encrustada, e nem se sabe
para que direção, exatamente, fica Georgetown, de onde provavelmente vieram os tiros. O filme não
conta, portanto, com um universo diegético convencional, pois algumas referências dele não
encontram respaldo dentro do filme, mas apenas na mente e imaginação do público. Lars von Trier
mais uma vez quebra com uma convenção de cinema: o universo diegético dos filmes é o que
garante a imersão do público na história, como explica Oliveira:
Aquilo que se chama “suspensão da incredulidade” dos(as) espectadores(as) começa a se
fazer exatamente quando a câmera passa a incidir mais incisivamente na construção desse
mundo da diegese, construindo um efeito de ficcionalidade que pretende imitar o mundo
real. O(a) espectador(a) geralmente se permite esquecer que a câmera é operada por um
narrador, aceitando as convenções que formam esse mundo ficcional, a fim de conseguir
compartilhar esse mundo diegético. (OLIVEIRA, 2008, p. 6)

A cidade em si já representa um espaço diferenciado, pois tem apenas uma única rua, com
casas dispostas dos dois lados da mesma, que são identificadas pelos nomes dos moradores escritos
no chão em branco, contrastando com o cinza escuro do chão e que possibilita facilmente a
identificação dos lugares da vila quando vistos pela tomada do topo do cenário, que acontece
algumas vezes durante o filme. A rua Elm, a única de Dogville, também é identificada no chão,
além de outros lugares da cidade. É interessante notar, neste espaço não realista, a importância que
o som adquire para para a compreensão do filme, principalmente se se considerar o conceito de som
diegético: muitas vezes o som não corresponde a algo que existe no cenário, mas sim a um conceito
abstrato que o espectador já possui. Oliveira explicita de forma mais clara as “cinco matérias de
expressão”, das quais o som faz parte:
[...] o discurso audiovisual cinematográfico pode manipular cinco matérias de expressão: as
imagens, os barulhos, as falas, as menções e a música. […] se a composição destas se der
em uníssono, a função é a de compor uma narratiza eficaz e naturalista, que dê ao(à)
espectador(a) uma construção verossímil do ambiente. (OLIVEIRA, 2008, p. 2)

Em Dogville não há a preocupação de se realizar uma “composição em uníssono” para dar


ao filme mais naturalismo; é exatamente o contrário, já que muitas vezes não há relação entre o som
e a imagem. Um exemplo ilustrativo são as entradas e saídas dos carros pelo portão de Dogville:
tanto o personagem que transporta mercadorias de Dogville para os portos, quanto a polícia que
visita a cidade duas vezes e os mafiosos que entram na cidade também por duas vezes, necessitam
que alguém abra os portões, que, por sua vez, não existem fisicamente, mas apenas são
referenciados pelo barulho de um portão rangendo. Na cidade, os personagens batem em portas
imaginárias, que fazem barulho ao serem abertas e fechadas, e tudo é ouvido pelo espectador. Lars
von Trier dá uma espécie de nova definição ao conceito de som diegético, já que alguns sons do
filme referem-se a objetos inexistentes fisicamente no filme, mas que sabe-se abstratamente que
estão lá. Nem mesmo o cachorro que dá título ao filme existe, mas seus latidos se fazem presente,
inclusive alertando a Tom a chegada de um estranho à vila. No final do filme, quando a cidade é
incendiada, apenas o cão, que se chama Moisés, sobrevive, e toma forma real, aparecendo de fato
por alguns segundos antes dos créditos finais.
Mesmo que carregue influências do teatro em sua composição cenográfica, Dogville
apresenta características que podem ser consideradas como integrantes do conceito de Tassinari
sobre o que é o espaço moderno, mesmo que o próprio autor enfatize a dificuldade de se chegar a
um conceito definido sobre o que é o espaço moderno. Ele aponta, contudo, algumas peculiaridades
dos movimentos artísticos modernistas, e que podem ser transportados para a análise do espaço
fílmico de Dogville:
[…] cada qual a seu modo, os movimentos da arte moderna eram antiperspectivos. Em
certa medida eram também antiespaciais, pois, se a perspectiva imita não o espaço mas a
visão do espaço, a diferença não se mostrou relevante. É que a distinção entre o espaço e a
sua visão é facilmente elidível. O espaço não é em si mesmo perspectivo. O que não é
evidente, porém, no momento em que se experimenta uma visão. Ainda que a perspectiva
imite uma visão apenas grosso modo, a ilusão que ocasiona é forte o bastante para que se
confunda, como na visão natural, o espaço que se entreabre perspectivamente como o
próprio espaço. (TASSINARI, 2001, p. 19)
O autor descreve - sem querer, pois o foco de seu livro são as artes plásticas - o que é
considerado o grande trunfo do cinema e, consequentemente, a base da concepção de espaço fílmico
convencional, no qual a ilusão de se ver um espaço retratado na tela do cinema, em perspectiva,
com profundidade de campo, muitas vezes é confundida com o próprio espaço em si, mesmo que
apenas naquele momento em especial no qual se está assistindo ao filme. Em Dogville não há como
o espectador se desvencilhar da ficção do filme, mesmo apesar da narração realista que o narrador
em off faz, pois não há em cena nada que cause essa ilusão no espectador. Em momento algum ele
pode se deixar enganar pela ficção retratada, pois o próprio filme não permite tal enganação
voluntária de seu público. O espectador de Dogville deve construir o espaço em conjunto com o
desenrolar do próprio filme, pois o espaço de Dogville, apesar de estar retratado de forma acabada,
pronta, precisará sempre da interação do espectador para se continuar construindo, em concordância
com a definição de Tassinari sobre o que, afinal é o espaço moderno:
O espaço moderno, mais que um espaço de colagem ou um espaço manuseável, é um
espaço em obra, assim como é dito de uma casa em construção que ela está em obras. Por
meio da locução “em obra”, um espaço em obra possui um significado assemelhado, com a
diferença de que uma obra de arte moderna, na maioria dos casos, não é algo incompleto,
inacabado, mas algo pronto que pode ser visto como ainda se fazendo. (TASSINARI, 2001,
p. 49-50)
Além disso, a construção que Lars von Trier fa do espaço fílmico em Dogville serve, para
além do propósito político que toda arte tem ou deve ter, para relembrar que, acima de tudo, ele é
parte de uma manifestação artística autônoma, e deve ser considerado como tal. É o que Ferreira
Gullar disse em sua Teoria do não-objeto, quando declarou a autonomia da arte contemporênea em
relação à arte representacional, em que mais valeria ser o mais fiel possível à realidade
representada:
A tela em branco, para o pintor tradicional, era o mero suporte material sobre o qual ele
esboçava a sugestão do espaço natural. Em seguida, esse espaço sugerido, essa metáfora do
mundo, era rodeada por uma moldura cuja função fundamental era inseri-lo no mundo. Essa
moldura era o meio-termo entre a ficção e a realidade, ponte e amurada que, protegendo o
quadro, o espaço fictício, ao mesmo tempo fazia-o comunicar-se, sem choques, com o
espaço exterior, real. [...]. Não se trata mais de erguer um espaço metafórico num cantinho
bem protegido do mundo, e sim de realizar a obra no espaço real mesmo e de emprestar a
esse espaço, pela aparição da obra objeto especial - uma significação e uma transcendência.
[…] Romper a moldura e eliminar a base não são, de fato, questões de natureza meramente
técnica ou física: trata-se de um esforço do artista para libertar-se do quadro convencional
da cultura, para reencontrar aquele “deserto” de que nos fala Malevitch, onde a obra
aparece pela primeira vez livre de qualquer significação que não seja a de seu próprio
aparecimento. Pode dizer-se que toda obra de arte tende a ser um não-objeto e que esse
nome só se aplica, com precisão, àquelas obras que se realizam fora dos limites
convencionais da arte, que trazem essa necessidade de deslimite como a intenção
fundamental de seu aparecimento. (GULLAR, 1960)

2. Grace e a relativização da percepção espacial


Antes de se analisar a relação de Grace e o espaço da cidade de Dogville, e
consequentemente a percepção que o espectador tem desse espaço, é preciso, brevemente, contar a
história da personagem interpretada por Nicole Kidman. Grace é filha de um mafioso, que tenta
matar a própria filha por motivos não explicitados no filme. Ela consegue fugir da tentativa de
homiceidio e acaba caindo em Dogville por acaso, e serve como uma espécie de cobaia para uma
teoria de Tom, que a considera um presente num momento mais que oportuno. Ao explicar sua
teoria a Grace – que, basicamente, afirma que a população de Dogville, e as pessoas em geral, tem
um grande e grave problema de aceitação de algo diferente em suas vidas -, Tom propõe a Grace
que fique na cidade para provar sua tese, o que ela aceita para escapar dos mafiosos que tentam
matá-la. Para provar aos cidadãos de Dogville de que não é perigosa, Grace passa a ajudar às
pessoas em algumas pessoas, também partindo de um conceito de negação de ação, tal qual o
cenário: ela passa a fazer coisas que não são necessárias. Começa então a fase de encantamento de
Grace pela cidadezinha, que considera amável e aconchegante, a despeito de tudo o que Tom havia
lhe contado sobre seus cidadãos.
O narrador acompanha essa fase de alegria e empatia entre Grace e Dogville, e mesmo que
não obtivesse sucesso no começo de sua empreitada em ajudar os cidadãos ela ainda estava
satisfeita em saber que poderia ser útil a todos. A sensação, contudo, não é recíproca, pelo menos no
início. Na cena em que Grace conta a Tom sobre a dificuldade em desempenhar sua nova função,
todos os moradores olham na direção do casal, o que causa uma situação extremamente opressora,
em que a cidade encara Grace como se estivesse a testar seu caráter, os olhos desconfiados,
desdenhosos. O potencial opressor da cena vem justamente do fato de o espectador, diante da tela,
poder ver tudo, inclusive o que a própria Grace talvez não visse, já que, para os personagens, o
espaço está lá, mesmo invisível aos olhos, enquanto o espectador pode, nessas situações, esquecer-
se de que, na realidade do filme, há paredes e janelas e portas. Assim, o espectador vê todos os
moradores de Dogville dentro de suas casas olhando, imóveis, para a nova invasora, que surge sabe-
se lá de onde.
Quando vai conquistando pouco a pouco a confiança de cada um dos moradores, ou pelo
menos da grande maioria, Grace passa a gostar mais do lugar, ganhando inclusive um lugar para
morar, mesmo que não seja tão confortável. Os cidadãos inclusive armam um plano para esconder
Grace caso a polícia ou os mafiosos que a procuravam chegassem a Dogville. A sensação de
segurança e refúgio é então passada mais uma vez ao espectador através do narrador que tudo sabe,
além de o fato do cenário não possuir nenhum limite causar a sensação de uma comunidade
funcional que, mesmo com todos os problemas individuais, consegue se organizar e garantir uma
organicidade para todos. Vale ressaltar que logo no momento em que Grace chega a Dogville esse
equilíbrio da comunidade já é quebrado, o que explica e evolução da narrativa até o ponto em que
Grace cai em desgraça na cidadeziha. Mas, antes disso, tudo parece ainda estar bem, inclusive
porque a nova moradora não interfere nas antigas tarefas dos antigos moradores, apenas presta
alguns serviços desnecessários à população.
Quando as buscas por Grace por parte dos mafiosos se intensifica é que a trama começa a
sofrer sua reviravolta. Espalhando mentiras de que era perigosa e divulgando uma boa recompensa
para quem obtiver informações sobre o paradeiro da moça, os mafiosos vão conseguindo, pouco a
pouco, sem se fazer presentes efetivamente, sabotar a relação entre os cidadãos de Dogville e Grace,
já que estes passam a cobrar mais da forasteira pelo alto risco que correm em mantê-la na cidade.
Grace aceita, e então tudo começa a ruir, até o ponto alto da degradação de sua relação com a cidade
no momento em que ela é acorrentada a uma pesada roda e fixa-se nela um sino, de modo que todos
saibam onde está. Grace passa a sofrer estupros constantes, desencadeado por um dos cidadãos mais
desconfiados e, paradoxalmente, um dos mais lúcidos quanto a relação Grace-Dogville. O que antes
era uma cidadezinha exótica, em meio às montanhas gigantescas, passa a ser um inferno privado
quando os moradores de Dogville passam a abusar de sua autoridade.
Novamente a composição do cenário de Lars von Trier desempenha papel fundamental no
entendimento do espectador quanto à nova situação de Dogville. Levado pela narração onisciente
do narrador em off, o público pode ver, sem nenhum empecilho, como se a verdade estivesse sendo
mostrado tal como ela é, toda a transformação sinistra pela qual os moradores passam – ou,
pensando melhor, o público vê como de fato Dogville não aceita tão bem quanto se supunha uma
pessoa de fora, confirmando, de forma cruel, a teoria de Tom. Esse momento de iluminação pelo
qual passa o público, que vê toda a verdade se revelando através das paredes das casas, será
compartilhado futuramente pela própria Grace, quando seu pai chega a Dogville e lhe dá a
oportunidade de retornar para casa com ele, concedendo-lhe poderes irrestritos imediatamente.
Dogville revela-se, e o espaço fílmico é o principal agente dessa revelação ao se mostrar tão
límpido, tão claro, tão evidente, cruel e insensível, incapaz de ajudar a alguém em um tempo em
que a sociedade estadunidense (e também a do mundo todo, já que muitas nações já no momento da
Grande Depressão estavam interligadas) estava imersa num caos total.
Duas cenas merecem uma análise um pouco mais detalhada para enfatizar a relativização do
espaço e como ele é sentido por Grace e pelo espectador. A primeira é a cena em que ocorre o
primeiro estupro; a segunda refere-se ao final do filme, em que Grace, graças a uma composição da
luz do cenário, vê Dogville pela primeira vez com um olhar totalmente diferente do que o que até
então estava acostumada. Quando Grace sofre o primeiro abuso sexual o impacto causado no
público é tão arrebatador quanto cruel por parte de Lars von Trier. A cena se passa dentro da casa de
uma mãe, enquanto Grace ensinava seus filhos algumas lições escolares. O pai da família chega e
avisa Grace que a polícia estava mais uma vez em Dogville, agora acompanha pelo FBI, o que
preocupou a protagonista. Após chantageá-la ameaçando entregar seu paradeiro à polícia, o homem
força-a a fazer sexo com ele, e daí vem a sensação de revolta do espectador. Não pelo estupro em si;
é diferente de um filme como Irreversível, de Gaspar Noé, em que a personagem de Mônica Belucci
sofre um abuso em condições totalmente distintas, num subsolo escuro na madrugada parisiense.
Em Dogville, a falta de paredes permite ao espectador ver tudo, enquanto a rotina da cidade
permanece inalterável, inabalada, e assistir aos cidadãos se preocupando mais com a presença da
polícia na cidade é revoltante se comparado ao que se passa dentro da casa. Pior ainda é quando
Tom, que estava nos arredores, pergunta ao homem, que acabava de sair de sua casa, se havia visto
Grace, e este lhe responde sarcasticamente de que ela esteve ocupada em sua casa. Tom não
coragem de entrar, e então enquadra-se Grace deitada no chão e Tom do lado de fora, separados pela
parede invisível. Se antes a opressão viera por meio da vigilância, quando todos se puseram a olhar
fixamente Grace com o intuito de pressioná-la, agora veio por meio de uma certa indiferença,
sentida mais por quem vê o filme do que pelos seus personagens, pois ao espectador é revelado
tudo.
Na cena final do filme acontece a vingança de Grace contra a cidade que ela tratou tão bem e
lhe retribuiu tão mal os favores prestados. Após ser acorrentada depois de uma tentativa frustrada de
fuga, Grace passa a simplesmente aceitar todos os abusos que lhe eram cometidos. Quando seu pai
chega a Dogville por receber um telefonema de Tom, que lhe conta onde a filha está, Grace é
libertada de suas correntes, e vai conversar com o mafioso dentro de um dos carros. Até este
momento ela justifica as ações dos cidadãos de Dogville, enquanto são mostrados os moradores,
numa situação que, combinada com as palavras misericordiosas de Grace, quase consegue de fato
lhe exprimir toda a culpa. Então, ao descer do carro para uma última olhada na cidade, a fugitiva,
ajudada pela lua que se desvela na paisagem, parece finalmente enxergar Dogville levando em conta
o que de fato lhe aconteceu lá. É nesse momento que Grace compartilha do sentimento que o
espectador já estava sentindo quando a cidade, que antes de fato parece ser agradável, amiga, se
mostrou em toda sua vileza, crueldade, preconceito, indiferença. Grace então se vinga daquele lugar
maldito pedindo que matem a todos, matando ela mesma Tom, que representa uma das figuras mais
ambíguas e egoístas no filme.
Ao pedir que a cidade seja destruída e seus cidadãos executados, afirmando que será melhor
para todos se o mundo não souber que algum dia Dogville existiu, Grace finaliza sua relação com
aquele espaço que antes lhe fora bom. Lars von Trier desnuda as sensações, os sentimentos, os
pensamentos e o caráter de cada personagem através de seu não-cenário, como se estivesse
facilitando ao espectador a possibilidade de analisar a história conhecendo a verdade de fato. Seu
narrador off guia o espectador sem tomar claramente parte de nenhum dos lados envolvidos na
trama. Sua onisciência não se traduz em apontar as qualidade e defeitos de nenhum dos
personagens, mas apenas guia o espectador pelo cenário inusitado e não-realista do filme, através de
uma narração que é o perfeito contrário do espaço, isto é, realista, como num romance clássico. O
espaço de Dogville, sem sofrer nenhuma alteração física, passa de acolhedor para opressor, de bom
para rim, apenas com a revelação das atitudes tomadas pelos seus moradores em relação a uma
única pessoa, que por sua vez é quem guia o espectador para dentro do filme.

Considerações finais
Lars von Trier é uma das mentes mais inquietas do cinema atual, e isso é facilmente
percebido no seu modo de fazer cinema. Dogville é apenas um pedaço de um grande diretor, que a
cada filme que faz causa reações diversas entre público e crítica. O filme, que faz parte de um
trilogia ainda inacabada sobre a história dos Estados Unidos da América e, nas palavras do próprio
von Trier, “um retrato do desenvolvimento de uma mulher até a fase de seu amadurecimento”
(TRIER, 2004), é uma pequena obra-prima que buscou ir além do que normalmente o cinema está
acostumado a fazer. É uma obra-de-arte que se revela como tal desde o começo, sem pretensão de
se mostrar como cinematográfica, com os vícios que assolam muitas obras de cinema, ao apostar
num espaço fílmico inusitado, se não novo ao menos diferente, e que desempenha papel
fundamental na relação que o espectador estabelece com o filme. Lars von Trier insere o público de
fato dentro do filme, sem dar-lhe uma fórmula pronta, já mastigada e digerida, desrespeitando
algumas regras que se acredita ainda hoje que devem ser cumpridas para realização de filmes de
sucesso.
Ao se deparar com uma pequena cidade, uma micro cidade, sem paredes, portas, janelas,
sem nada que se parece com o que é uma cidade real, o espectador é levado a participar de uma
exposição do espírito e da mente humana, em que a falta de barreiras físicas que por vezes podem
viciar nossa concepção de espaço direcionam o olhar diretamente sobre as ações que decorrem no
filme e como elas alteram o espaço mostrado e por ele são influenciadas. O espectador de Dogville
deve se desamarrar de todas as convenções cinematográficas às quais por ventura estiver preso, pois
o filme requer uma postura ativa por parte do público, necessita que ele participe do “não-cenário”
criado pelo diretor, de modo que o espectador não seja mais o sujeito que se deixa enganar
propositalmente a fim de fruir a magia do cinema, mas sim seja participante, seja ativo (STAM apud
OLIVEIRA, 2008).
Além do espaço utilizado ser completamente anti-realista, Lars von Trier usa, em Dogville,
uma mistura de diversas outras artes, o que Oliveira chamou de “intermidialidade subversiva da
narrativa”, pois o diretor pega algumas características tradicionais do cinema e junta-as às suas
inovações criativas, resultando sempre numa obra ao menos diferente do que se vê normalmente nas
salas de cinema. Não é por acaso que Lars von Trier alterna entre elogios à sua genialidade e vaias à
sua ousadia exacerbada à medidade em que vai realizando novos filmes. Dogville foi uma clara
produção crítica aos EUA, não só pelo fillme em si e tudo o que ele represente de anti-
hollywoodiano e que já foi analisado aqui sob o foco do espaço fílmico, mas também uma crítica do
próprio diretor aos estadunidenses que, de um modo geral, não aceitam abertamente suas obras.

Referências bibliográfcas

BARROSO, Ana Paula Machado. Transfigurações da cidade no cinema Mulholland Drive: o espaço
como registro referencial de sonhos, de memórias e de fantasmas. 2007. Dissertação. Mestrado em
Estudos Americanos - Universidade Aberta, Lisboa, 2007.

GULLAR, Ferreira. Teoria do não-objeto. Portal Literal. Disponível em:


<http://literal.terra.com.br/ferreira_gullar/porelemesmo/teoria_do_nao_objeto.htm?porelemesmo>
Acessado em 16 nov. 2010.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

OLIVEIRA, Fábio Crispim de. A intermidialidade subversiva na narrativa cinematográfica de


Lars von Trier. Artigo apresentado no XI Congresso Interncional da ABRALIC. São Paulo: USP,
2008.

TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2001.

TRIER, Lars von. It was like nursery – but 20 times worse. Guardian.co.uk. Disponível em
<http://www.guardian.co.uk/film/2004/jan/12/1> Acessado em 16 nov. 2010.

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1977.

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