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Introdução
O cinema europeu sempre se diferenciou do estadunidense, e mais especificamente do
hollywoodiano, devido ao seu experimentalismo, à pretensão (em grande parte devida aos
movimentos de vanguarda do velho continente) de se realizar um cinema-arte, que fugisse do
comercialismo de Hollywood que ainda hoje dita o padrão de qualidade de muitos filmes –
qualidade hollywoodiana, deve-se sempre relembrar. Lars von Trier, nascido e graduado em cinema
na Dinamarca, é um bom exemplo do que se pensa na Europa sobre a Sétima Arte. Em Dogville,
que estreou em 2003, o cineasta explorou uma nova formatação de filme, utilizando um espaço fora
do usual para a encenação – ou, nas palavras de Fábio Crispim de Oliveira, um “não-cenário”
(OLIVEIRA, 2008, p. 6), já que o filme foi feito numa caixa preta, com apenas alguns objetos
cênicos reais e marcações no chão, como se feitas em giz, sobre os locais cenográficos e demais
objetos.
A experiência de von Trier não foi mera brincadeira ou apenas mais um experimento. Tudo o
que acontece, então, se amarra harmoniosamente com o fato de não haver paredes, nem paisagem,
nem perspectiva, nem nada além da própria cidade, cujo nome Dogville já indica que o espaço será
uma das peças fundamentais da obra, como indica Oliveira:
O fato do próprio nome do filme ser o nome da cidade já é um indício de que o espaço é um
dos principais personagens do filme. Na verdade, o fato de que não existe uma cidade faz
exatamente com que esse espaço se evidencie, causando um grande estranhamento para
o(a) espectador(a). (OLIVEIRA, 2008, p. 6)
A aposta em se retratar um espaço fílmico não realista vai na contramão do que a “magia”
do cinema diz tacitamente aos criadores: quanto mais o espectador sentir que o filme é crível, mais
sucesso o filme terá, pois alcançará as emoções do espectador de forma plena. O deixar-se enganar
voluntariamente que faz parte da experiência de ver um filme no cinema só faz sentido se o
espectador “finge” não saber que o que está se passando naquelas duas horas é mentira, que é, na
verdade, uma representação do real, uma imitação do que acontece no mundo de verdade. Isso tem
como base a narrativa linear da literatura do século XVIII, como bem explicita Oliveira: “A
narrativa linear, por si só, é muito anterior ao cinema, mas com o crescimento da imensa indústria
cinematográfica hollywoodiana, tal forma de narrativa se tornou tão recorrente que o cinema como
um todo passou a ser percebido com uma relação intrínseca a ela.” (OLIVEIRA, 2008, p. 2).
Dogville, mesmo utilizando uma narrativa linear (inclusive sem o uso de flashbacks, que também é
uma herança cinematográfica dos romances clássicos), com um narrador em off onisciente que
conta tudo ao espectador, parece sussurrar “ei, isso é só arte mesmo” - e é exatamente esse sussurro
que causa o estranhamento, pelo menos a princípio, do espectador em relação ao que está vendo na
tela.
1. O espaço em si
O espaço de Dogville é totalmente diferente do que se costuma ver em outros filmes. Graças
à pretensão de ser o maior representante da realidade entre todas as artes, os espaços
cinematográficos buscam sempre se retratar o mais fiel possível ao que existe de fato: ruas, casas,
paisagens, etc. É curioso o fato dessa arte, moderna por excelência temporal, utilizar recursos
considerados pelos seus contemporâneos de outros ramos artísticos, muitos deles ligados à arte
moderna, ultrapassados. Alberto Tassinari, em sua tese O Espaço Moderno, enfatiza a oposição arte
moderna/arte predecessora, ressaltando a importância das concepções espaciais nas artes plásticas
dos diversos períodos artísticos:
A arte moderna formou-se tanto a partir quanto contra o naturalismo de matriz renascentista
que a precedeu. Caso seu início seja datado por volta de 1870, foi em relação a mais de
quatro séculos de ininterrupta tradição naturalista que a arte moderna se posicionou. Além
dos estilos de época, um mesmo esquema espacial genérico, o da perspectiva artificial,
engloba a arte dos séculos XV ao XVIII. Uma compreensão por negação do espaço da arte
moderna sempre foi possível, por isso, como sendo não perspectivo. (TASSINARI, 2001, p.
17)
Mesmo os espaços que não existem concretamente, como o dos sonhos, são representados
de forma que se tornam reais aos olhos do espectador. Essa potência de transformar a mentira, ou
melhor, a ilusão, em algo possível, real, crível, é apontado como o grande trunfo do cinema por
diversos teóricos, já que representa a possibilidade de o espectador viver diversas vidas, participar
de inúmeras experiências, sem precisar, contudo, de fato vivê-las. Dogville, no entanto, parece fazer
questão de se mostrar obra-de-arte. Seu espaço não se parece em nada com o que vemos na vida
real. Até mesmo a luz que compõe o espaço enfatiza o fato do filme ser apenas uma ficção, apesar
do seu tema histórico: só três tons de luminosidade ditam a passagem do tempo: fundo todo branco,
quando é manhã; preto, quando é noite – o que inclusive se confunde com a própria caixa preta
onde se desenvolve o filme; e um tom alaranjado, em momentos muito específicos, como quando
Grace, a protagonista, visita o velho cego e o convida a observar a paisagem de sua janela, que se
revela espetacular através da narração e da luz alaranjada.
Não há perspectiva espacial, um recurso artístico utilizado justamente para dar mais
realismo à obra, especialmente pela pintura naturalista e realista, apesar de ter começado sua
difusão ainda na época do Renascimento italiano (TASSINARI, 2001). Ismail Xavier, ao citar um
trecho do livro de André Bazin, Qu'es-ce que le cinéma?, dá uma definição que corrobora a
conceituação de Tassinari sobre o espaço na arte moderna e nas suas predecessoras:
Os limites da tela (cinematográfica) não são, como o vocabulário técnico às vezes o sugere,
o quadro da imagem, mas um “recorte” (cache em francês) que não pode senão mostrar
uma parte da realidade. O quadro (da pintura) polariza o espaço em direção ao seu interior;
tudo aquilo que a tela nos mostra, contrariamente, pode se prolongar indefinidamente no
universo. O quadro é centrípeto, a tela é centrífuga. (BAZIN apud XAVIER, 1977)
Como já dito, o espaço da pintura clássica buscou usar a perspectiva para torná-la uma
representação fiel da realidade que se via. Daí surgem as telas com paisagens magníficas, situações
que mais pareciam fotografias de tão fieis que eram ao objeto real representado. O cinema, depois
de tanto tempo de passada essa tradição naturalista, caminhou justamente ao encontro dessa
tradição, como evolução da fotografia, a que se delegou, à época, a pecha de representante da
realidade por excelência, e com a vantagem do movimento conferido às imagens antes estáticas, o
que confere ainda maior realismo aos objetos retratados na tela.
A única noção de perspectiva que se tem é devida ao narrador, onisciente, que, assim como
num livro, conta ao espectador o que se vê além da caixa preta. Isso pode ser visto na cena em que
Grace chega a Dogville: Tom, outro protagonista e cidadão de Dogville, ouve tiros ao longe,
provavelmente vindos de Georgetown (uma cidade citada, mas nunca vista no filme), e então olha
na direção de onde veio o barulho dos disparos, no meio das montanhas, e é quando Grace chega à
pequena cidade. Toda essa descrição é designada ao narrador, e a câmera posiciona-se próxima a
Tom, às vezes atrás, mostrando apenas a noite de Dogville, o fundo preto; não se vê a paisagem a
qual se referem os tiros, nem se vê as montanhas nas quais Dogville está encrustada, e nem se sabe
para que direção, exatamente, fica Georgetown, de onde provavelmente vieram os tiros. O filme não
conta, portanto, com um universo diegético convencional, pois algumas referências dele não
encontram respaldo dentro do filme, mas apenas na mente e imaginação do público. Lars von Trier
mais uma vez quebra com uma convenção de cinema: o universo diegético dos filmes é o que
garante a imersão do público na história, como explica Oliveira:
Aquilo que se chama “suspensão da incredulidade” dos(as) espectadores(as) começa a se
fazer exatamente quando a câmera passa a incidir mais incisivamente na construção desse
mundo da diegese, construindo um efeito de ficcionalidade que pretende imitar o mundo
real. O(a) espectador(a) geralmente se permite esquecer que a câmera é operada por um
narrador, aceitando as convenções que formam esse mundo ficcional, a fim de conseguir
compartilhar esse mundo diegético. (OLIVEIRA, 2008, p. 6)
A cidade em si já representa um espaço diferenciado, pois tem apenas uma única rua, com
casas dispostas dos dois lados da mesma, que são identificadas pelos nomes dos moradores escritos
no chão em branco, contrastando com o cinza escuro do chão e que possibilita facilmente a
identificação dos lugares da vila quando vistos pela tomada do topo do cenário, que acontece
algumas vezes durante o filme. A rua Elm, a única de Dogville, também é identificada no chão,
além de outros lugares da cidade. É interessante notar, neste espaço não realista, a importância que
o som adquire para para a compreensão do filme, principalmente se se considerar o conceito de som
diegético: muitas vezes o som não corresponde a algo que existe no cenário, mas sim a um conceito
abstrato que o espectador já possui. Oliveira explicita de forma mais clara as “cinco matérias de
expressão”, das quais o som faz parte:
[...] o discurso audiovisual cinematográfico pode manipular cinco matérias de expressão: as
imagens, os barulhos, as falas, as menções e a música. […] se a composição destas se der
em uníssono, a função é a de compor uma narratiza eficaz e naturalista, que dê ao(à)
espectador(a) uma construção verossímil do ambiente. (OLIVEIRA, 2008, p. 2)
Considerações finais
Lars von Trier é uma das mentes mais inquietas do cinema atual, e isso é facilmente
percebido no seu modo de fazer cinema. Dogville é apenas um pedaço de um grande diretor, que a
cada filme que faz causa reações diversas entre público e crítica. O filme, que faz parte de um
trilogia ainda inacabada sobre a história dos Estados Unidos da América e, nas palavras do próprio
von Trier, “um retrato do desenvolvimento de uma mulher até a fase de seu amadurecimento”
(TRIER, 2004), é uma pequena obra-prima que buscou ir além do que normalmente o cinema está
acostumado a fazer. É uma obra-de-arte que se revela como tal desde o começo, sem pretensão de
se mostrar como cinematográfica, com os vícios que assolam muitas obras de cinema, ao apostar
num espaço fílmico inusitado, se não novo ao menos diferente, e que desempenha papel
fundamental na relação que o espectador estabelece com o filme. Lars von Trier insere o público de
fato dentro do filme, sem dar-lhe uma fórmula pronta, já mastigada e digerida, desrespeitando
algumas regras que se acredita ainda hoje que devem ser cumpridas para realização de filmes de
sucesso.
Ao se deparar com uma pequena cidade, uma micro cidade, sem paredes, portas, janelas,
sem nada que se parece com o que é uma cidade real, o espectador é levado a participar de uma
exposição do espírito e da mente humana, em que a falta de barreiras físicas que por vezes podem
viciar nossa concepção de espaço direcionam o olhar diretamente sobre as ações que decorrem no
filme e como elas alteram o espaço mostrado e por ele são influenciadas. O espectador de Dogville
deve se desamarrar de todas as convenções cinematográficas às quais por ventura estiver preso, pois
o filme requer uma postura ativa por parte do público, necessita que ele participe do “não-cenário”
criado pelo diretor, de modo que o espectador não seja mais o sujeito que se deixa enganar
propositalmente a fim de fruir a magia do cinema, mas sim seja participante, seja ativo (STAM apud
OLIVEIRA, 2008).
Além do espaço utilizado ser completamente anti-realista, Lars von Trier usa, em Dogville,
uma mistura de diversas outras artes, o que Oliveira chamou de “intermidialidade subversiva da
narrativa”, pois o diretor pega algumas características tradicionais do cinema e junta-as às suas
inovações criativas, resultando sempre numa obra ao menos diferente do que se vê normalmente nas
salas de cinema. Não é por acaso que Lars von Trier alterna entre elogios à sua genialidade e vaias à
sua ousadia exacerbada à medidade em que vai realizando novos filmes. Dogville foi uma clara
produção crítica aos EUA, não só pelo fillme em si e tudo o que ele represente de anti-
hollywoodiano e que já foi analisado aqui sob o foco do espaço fílmico, mas também uma crítica do
próprio diretor aos estadunidenses que, de um modo geral, não aceitam abertamente suas obras.
Referências bibliográfcas
BARROSO, Ana Paula Machado. Transfigurações da cidade no cinema Mulholland Drive: o espaço
como registro referencial de sonhos, de memórias e de fantasmas. 2007. Dissertação. Mestrado em
Estudos Americanos - Universidade Aberta, Lisboa, 2007.
TRIER, Lars von. It was like nursery – but 20 times worse. Guardian.co.uk. Disponível em
<http://www.guardian.co.uk/film/2004/jan/12/1> Acessado em 16 nov. 2010.