Você está na página 1de 5

In: FISHER, Mark.

Realismo capitalista: é mais fácil


imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?
São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 137-141.

Não prestar para nada 80

Sofro intermitentemente de depressão desde a adolescência.


Alguns desses episódios foram profundamente debilitantes -
resultando em auto-mutilação, isolamento (quando passava
meses confinado em meu próprio quarto, aventurando-me a
sair apenas para procurar emprego ou para comprar as quanti­
dades mínimas de comida que consumia), e visitas frequentes a
enfermarias psiquiátricas. Não diria que me recuperei inteira­
mente dessa condição, mas tenho satisfação de dizer que tanto a
incidência quanto a gravidade dos episódios depressivos dimi­
nuíram muito nos últimos anos. Em parte, isso é consequência
de mudanças na minha situação de vida, mas também tem a
ver com uma distinta compreensão a que cheguei sobre minha
depressão e suas causas. Exponho aqui minhas próprias experi­
ências de angústia mental não porque ache que há algo especial
ou único sobre elas, mas em apoio à tese de que muitas formas
de depressão são melhor compreendidas - e combatidas - por
meio de quadros analíticos impessoais e políticos, e não indivi­
duais e “psicológicos”.
Escrever sobre sua própria depressão é difícil. Faz parte da
depressão uma voz “interior” desdenhosa que nos acusa de au-
toindulgência - “você não está deprimido”, “você está apenas
sentindo pena de si mesmo”, “dê um jeito nisso” -, passível de
ser disparada ao tornarmos pública a condição. É claro que não

80 “Good for Nothing” em Occupied Times, 19 de março 2014.


Disponível em: https://theoccupiedtimes.org/?p=i284i. Traduzido
para o português por Victor Marques.
se trata bem de uma voz “interior”, e sim da expressão internali­
zada de forças sociais reais, algumas das quais têm um interesse
oculto em negar qualquer conexão entre depressão e política.
No meu caso, a depressão sempre esteve conectada à con­
vicção de que eu literalmente não prestava para nada. Passei a
maior parte de minha vida, até os trinta anos, acreditando que
nunca conseguiria ter uma profissão. Aos vinte e poucos, alter­
nava entre a pós-graduação, períodos de desemprego e empre­
gos temporários. Em qualquer um desses casos, o sentimen­
to era de que não me encaixava - na vida acadêmica, porque
sentia que não era um pesquisador sério, apenas um diletante
que tinha de alguma forma fraudado meu caminho até ali; no
desemprego, porque não estava realmente desempregado como
aqueles que buscavam trabalho honestamente, e sim um “vaga­
bundo” se aproveitando do sistema; e em empregos temporá­
rios por sentir que era incompetente e que, em todo caso, não
pertencia exatamente a trabalhos de escritório ou de fábrica,
não porque fosse “bom demais” para eles, mas - muito pelo
contrário - em virtude de ser excessivamente instruído e inútil,
tirando o trabalho de alguém que precisava e merecia mais do
que eu. Mesmo na enfermaria psiquiátrica, sentia como se não
estivesse realmente deprimido - era como se estivesse apenas
simulando a condição para evitar o trabalho, ou, na lógica in­
fernalmente paradoxal da depressão, simulando-a para escon­
der o fato de que eu era incapaz de trabalhar, e que não havia
lugar para mim na sociedade.
Quando finalmente consegui um emprego como professor
em um instituto de Educação Complementar, fiquei exultante
por um tempo - embora esta alegria, por sua própria natureza,
mostrasse que eu ainda não havia me livrado do sentimento de
inutilidade, o que logo desencadearia novos episódios depres­
sivos. Como professor, faltava-me a confiança serena de quem
nasceu para o papel. Em algum nível não muito profundo, eu
evidentemente ainda não acreditava que fosse o tipo de pessoa
que poderia fazer um trabalho como aquele.
Mas de onde vinha essa crença? A escola dominante de pen­
samento em psiquiatria localiza as origens de tais crenças no
mau funcionamento da química cerebral, que deve ser corrigi­
do por produtos farmacêuticos; a psicanálise e demais formas
de terapia por ela influenciadas são famosas por procurar as
raízes da angústia mental no contexto familiar, enquanto a Te­
rapia Cognitiva-Comportamental está menos interessada em
localizar a fonte de crenças negativas do que em simplesmente
substituí-las por um conjunto de alternativas positivas. Não é
que esses modelos sejam inteiramente falsos, é que eles deixam
escapar - e necessariamente têm que deixar escapar - a causa
mais provável de tais sentimentos de inferioridade: o poder so­
cial. A forma de poder social que mais teve efeito sobre mim
foi o poder de classe, embora, naturalmente, o gênero, a raça
e outras formas de opressão funcionem produzindo o mesmo
sentimento de inferioridade ontológica, melhor expressado jus­
tamente no pensamento que articulei acima: que você não é
o tipo de pessoa capaz de desempenhar papéis destinados ao
grupo dominante.
Por recomendação de um dos leitores do meu livro Realismo
capitalista, comecei a estudar o trabalho de David Smail. Smail
- um terapeuta, mas que tomou a questão do poder como cen­
tral para sua prática - corrobora as hipóteses sobre a depressão
nas quais havia esbarrado por acaso. Em seu livro crucial, The
origins of unhappiness [As origens da infelicidade], Smail des­
creve como as marcações de classe são projetadas para serem
inabaláveis. Para aqueles que foram ensinados desde o nasci­
mento a se verem como inferiores, a aquisição de qualificações
ou renda raramente será suficiente para apagar - em suas pró­
prias mentes ou na mente dos outros - o sentimento primordial
de inutilidade que os marca tão cedo na vida. Alguém que sai
da esfera social a qual estaria “designado” a ocupar estará sem­
pre sujeito ao perigo de ser dominado por sentimentos de verti­
gem, pânico e horror: .. isolado, separado, cercado de espaço
hostil, você de repente se vê sem conexões, sem estabilidade,
sem nada para mantê-lo firme ou no lugar; uma irrealidade ver­
tiginosa e nauseante se apossa de você; você se vê ameaçado por
uma completa perda de identidade, um sentimento de comple­
ta fraude; você não tem o direito de estar aqui, agora, habitando
este corpo, se vestindo desta maneira; você é um nada, e ‘nada’
é, literalmente, o que você sente que está prestes a se tornar”.
Já há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da
classe dominante tem sido a da “responsabilização”. Cada mem­
bro individual da classe subordinada é encorajado a sentir que
sua pobreza, falta de oportunidades, ou desemprego é culpa sua
e somente sua. Os indivíduos culparão a si mesmos antes de
culparem as estruturas sociais; estruturas que, em todo caso,
foram induzidos a acreditar que de fato não existem (são ape­
nas desculpas, invocadas pelos fracos). O que Smail chama de
voluntarismo mágico” - a crença de que está dentro do poder
de cada indivíduo se tornar o que quer que seja - é a ideolo­
gia dominante e a religião não oficial da sociedade capitalista
contemporânea, empurrada goela abaixo tanto pelos “experts”
da T v e gurus de negócios quanto pelos políticos. O voluntaris­
mo mágico é ao mesmo tempo um efeito e uma causa do nível
historicamente baixo da consciência de classe. É o outro lado
da depressão - cuja convicção subjacente é a de que somos to­
dos exclusivamente responsáveis pela nossa própria miséria e,
portanto, a merecemos. Um duplo imperativo particularmente
cruel é imposto aos desempregados de longa duração no Reino
Unido: uma população que, durante toda a sua vida, foi levada
a acreditar que não prestava para nada é simultaneamente bom­
bardeada pela injunção de que pode fazer tudo o que quiser.

140
Devemos entender a submissão fatalista da população do
Reino Unido à austeridade como consequência de uma depres­
são deliberadamente cultivada. Esta depressão manifesta-se na
aceitação de que as coisas vão piorar (para todos, exceto para
uma pequena elite), que somos sortudos de ter um emprego
(então não devemos esperar que os salários acompanhem a
inflação), que não podemos nos dar ao luxo de bancar servi­
ços públicos providos coletivamente. A depressão coletiva é o
resultado do projeto da classe dominante de ressubordinação.
Há algum tempo, temos cada vez mais nos resignado à ideia de
que não somos o tipo de pessoa que pode agir. Esta não é uma
falha de vontade individual, da mesma forma que uma pessoa
deprimida não pode simplesmente sair da depressão em um
“estalar de dedos” ao “arregaçar as mangas”. A reconstrução da
consciência de classe é, de fato, uma tarefa formidável, que não
será alcançada com soluções prontas e fáceis. Mas, ao contrário
do que nossa depressão coletiva nos diz, é uma tarefa que pode
ser realizada: inventando novas formas de envolvimento políti­
co, revitalizando instituições que se tornaram decadentes, con­
vertendo o descontentamento privatizado em raiva politizada.
Tudo isso pode acontecer, e, quando acontecer, quem sabe o
que será possível?

141

Você também pode gostar