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ANTONIO DAVID CATTANI

JEAN-LOUIS LAVILLE
LUIZ INÁCIO GAIGER
PEDRO HESPANHA

Dicionário Internacional
da Outra Economia
DICIONÁRIO INTERNACIONAL DA OUTRA ECONOMIA

AU T ORE S
ANTONIO DAVID CATTANI
JEAN-LOUIS LAVILLE
LUIZ INÁCIO GAIGER
PEDRO HESPANHA

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Dicionário internacional da outra economia / Pedro
Hespanha…[et al.]. – (CES)
ISBN 978-972-40-3722-6
I – HESPANHA, Pedro,1946-
CDU 330
316
304
364
ÍNDICE

7 Construindo a Outra Economia 55 Cidadania


Antonio David Cattani Paulo Henrique Martins

9 Nota Acerca da Edição Portuguesa 60 Comércio Justo


Boaventura de Sousa Santos Alfonso Cotera
Pedro Hespanha Humberto Ortiz

11 Altermundialização 68 Conselhos de Empresa


Patrick Viveret Hermes Augusto Costa

16 Antiutilitarismo 74 Consumo Solidário


Alain Caillé Euclides André Mance

21 Associativismo 80 Cooperação
Philippe Chanial Paulo de Jesus
Jean-Louis Laville Lia Tiriba

26 Autogestão 86 Cooperação Internacional


Daniel Mothé Dipac Jaiantilal

31 Bancos Comunitários 91 Cooperativas de Trabalho


de Desenvolvimento Jacob Carlos Lima
Genauto Carvalho de França Filho
Jeová Torres Silva Junior 96 Cooperativismo
Rui Namorado
37 Bens Públicos Mundiais
Philip Golub 103 Dádiva
Jean-Paul Maréchal Alain Caillé

43 Cadeias Produtivas 108 Desenvolvimento Local


Lee Pegler Rogério Roque Amaro

49 Capital Social 114 Economia da Família


Susana Hintze Lina Coelho
120 Economia do Trabalho 198 Estado Social
4
José Luis Coraggio François-Xavier Merrien

128 Economia Feminista 203 Ética Econômica


Lina Coelho Anne Salmon
Antonio David Cattani
134 Economia Moral
208 Finanças Solidárias
Noëlle M. P. Lechat
Ruth Muñoz
139 Economia para a Vida
213 Governação Local
Franz J. Hinkelammert
Sílvia Ferreira
Henry Mora Jiménez
219 Identidade
145 Economia Plural
Marília Veríssimo Veronese
Jean-Louis Laville
Egeu Gómez Esteves
150 Economia Popular
224 Incubação de Redes
Ana Mercedes Sarria Icaza
de Economia Solidária
Lia Tiriba
Genauto Carvalho de França Filho
156 Economia Social Eduardo Vivian da Cunha
Jacques Defourny
231 Justiça Cognitiva
Maria Paula Meneses
162 Economia Solidária
Jean-Louis Laville
237 Macroeconomia e Economia Popular
Luiz Inácio Gaiger
Ricardo Diéguez
169 Eficiência
Luiz Inácio Gaiger 243 Microcrédito
Jean-Michel Servet
175 Emancipação Social
Antonio David Cattani 248 Microempreendedorismo
Pedro Hespanha
181 Empreendimento Econômico
Solidário 255 Moeda Social
Luiz Inácio Gaiger Claudia Lúcia Bisaggio Soares

188 Empresa Social 260 Movimento Social


Jacques Defourny Ana Mercedes Sarria Icaza

193 Empresas Recuperadas 264 Património Comum da Humanidade


Gabriel Fajn José Manuel Pureza
268 Políticas Públicas 299 Sociedade-Providência
5
Walmor Schiochet Pedro Hespanha
Sílvia Portugal
273 Previdência Social
Claudia Danani 305 Sociologia Econômica
Benoît Lévesque
278 Redes de Colaboração
Solidária 310 Solidariedade
Euclides André Mance Jean-Louis Laville

284 Redes Sociais 315 Tecnologia Social


Breno Fontes Renato Dagnino
Sílvia Portugal
322 Terceiro Sector
289 Responsabilidade Social Empresarial Sílvia Ferreira
Anne Salmon
Antonio David Cattani 328 Utopia
Antonio David Cattani
293 Saberes do Trabalho Associado
Maria Clara Fischer 335 Autores
Lia Tiriba e Corpo Técnico
CONSTRUINDO A OUTRA ECONOMIA

A construção desta obra está sintonizada gre, em janeiro de 2003 (Porto Alegre,
com os ideais e as realizações objetivas da Veraz Editores). A obra alcançou grande
outra economia, aquela que se apresenta sucesso e, graças ao empenho de José Luis
como alternativa material e humana supe- Coraggio, foi logo traduzida para o espa-
rior à economia capitalista. Designadas por nhol (Buenos Aires, Editorial Altamira,
termos tais como economia solidária, eco- 2004). No ano seguinte, por iniciativa de
nomia do trabalho, novo cooperativismo, Jean-Louis Laville, contribuições euro-
empresas autogestionárias e outros, essas péias foram agregadas a uma seleção de
formas correspondem a realizações inova- verbetes sob o nome Dictionnaire de l’Autre
doras, associadas a novos valores e princí- Economie (Paris, Desclée de Brouwer,
pios que se opõem às práticas excluden- 2005). Nova edição foi publicada na cole-
tes, social e ambientalmente predatórias. ção Folio Actuel (Paris, Gallimard, 2006,
A construção do novo, do socialmente 1ª reimpressão em 2008). Parte desta últi-
mais avançado, remete a processos com- ma versão foi publicada na Itália, sob o
plexos que ultrapassam a mediocridade título Dizionario dell’Altra Economia (Roma,
e as limitações das relações de produção Edizione Miltimediali, 2006).
capitalistas. Nestas, os termos associados O Dicionário Internacional da Outra
são concorrência, exploração, acumulação Economia é legatário da experiência acu-
compulsória, exclusão. A outra economia é mulada nas publicações anteriores, cons-
regida pelos princípios da solidariedade, tituindo-se, ao mesmo tempo, em obra
da sustentabilidade, da inclusão, enfim, inédita. Pedro Hespanha e Luiz Inácio
da emancipação social. Esses princípios Gaiger reforçaram o trabalho de coor-
não se reduzem a boas intenções, mas denação dos mais de cinquenta autores,
constituem realizações concretas, viáveis oriundos de três continentes. A equipe
e, sobretudo, em expansão no mundo multidisciplinar, proveniente de vários
inteiro. horizontes teóricos, políticos e sociais,
O histórico do Dicionário Internacional buscou ampliar e atualizar o trabalho
acompanha a evolução recente da temá- de clarificação teórica e conceitual, de
tica. Uma edição pioneira começou a ser maneira a aprofundar a reflexão crítica
gestada em 2002, na sequência de semi- sobre as formas mais avançadas de produ-
nários teóricos e conceituais realizados ção social. Essas produções intelectuais
no Brasil. O resultado desse trabalho não são neutras, tampouco despojadas
coletivo foi lançado durante o III Fórum de valores, princípios, desejos e esperan-
Social Mundial, ocorrido em Porto Ale- ças. Algumas elaborações decorrem do
envolvimento direto com experiências em nição sintética, gênese e desenvolvimento
curso; outras são formulações proceden- histórico do termo, controvérsias e ques-
tes de exercícios analíticos do observador tões atuais relacionadas). Cada autor é
externo aos processos. Em todos os casos, responsável por seus textos. O ponto de
não há percepções resignadas da realida- união da equipe é a crença nos valores
de social e econômica, mas elementos da civilizadores: cooperação, solidariedade e
disputa pela legitimidade no campo das compromisso com a vida, com a natureza,
idéias. com a justiça social. Acreditamos todos
Na grande maioria dos casos, os ver- que um mundo melhor é possível e que ele
betes seguem uma estrutura básica (defi- está sendo construído pelas realizações
concretas da outra economia.

Antonio David Cattani


Porto Alegre, janeiro de 2009.
NOTA ACERCA DA EDIÇÃO PORTUGUESA

Portugal partilha, de um modo muito sentido a este valioso património de coo-


especial com outras sociedades de capita- peração e de resistência.
lismo periférico, a circunstância de man- O CES tem procurado, desde sempre,
ter formas de usar os recursos, de produzir aprofundar o conhecimento dos proces-
e de trocar cujo fundamento e motivação sos de inclusão das sociedades como a
nada têm a ver com o individualismo pos- portuguesa no sistema económico mun-
sessivo e a competição cega que caracteri- dial, partindo precisamente das ideias de
zam a economias capitalistas. complexidade e de transformação dialéc-
A persistência de formas tradicionais tica: complexidade pela sua posição inter-
de cooperação e solidariedade torna-se média no sistema da economia-mundo e
particularmente visível em muitos sec- transformação dialéctica pela sua incor-
tores da pequena produção, em grupos poração diferenciada no capitalismo glo-
sociais que foram marginalizados e em bal. A um nível microscópico estas ideias
territórios do interior do país que foram ajudam a compreender por que razão nes-
deixados para trás e hoje estão em pro- tas sociedades as classes têm contornos
cesso de desertificação física e humana. tão mal definidos ou por que a racionali-
Mas essas formas encontram-se igual- dade dos agentes se afasta tanto da racio-
mente presentes em espaços mais desen- nalidade do sistema quando se analisam
volvidos onde o capital conseguiu incor- os padrões de reprodução económica.
porar uma mão-de-obra que subsiste nos De vários pontos de vista, certas particu-
limites da sua própria reprodução graças laridades da sociedade portuguesa, como
às redes de entreajuda e à persistência por exemplo, o peso elevado da economia
de padrões de vida próprios das clas- informal e da semi-proletarização, o défice
ses populares. Não admira, assim, que da acção colectiva ou a permeabilidade
em períodos de crise económica, vivida do Estado aos interesses privados, são
pelos trabalhadores como desemprego e mais facilmente compreendidas quando
instabilidade laboral, perda de poder de comparadas com sociedades da América
compra ou endividamento, estas formas Latina ou mesmo de África.
económicas estranhas ao capitalismo, e Reconhecer a persistência de formas
que este nunca pôde totalmente absor- económicas distintas da do capital ou a
ver, se reforcem e tornem mais visíveis. emergência de formas económicas alter-
Não admira também que as novas ideolo- nativas ao capital, umas e outras forte-
gias ou os movimentos sociais de cunho mente relacionadas com este último, é
solidarista recuperem ou procurem dar uma opção aparentemente incontroversa
mas com implicações enormes, dada a recuperadas, as redes de colaboração soli-
diversidade de entendimentos acerca dária, as finanças solidárias, a responsabili-
dos processos de relacionamento entre o dade social ou o comércio justo.
capitalismo e aquilo que lhe é estranho. A Espera-se, assim, que ela possa ajudar
própria dissociação entre os fenómenos a tornar mais inteligíveis as anomalias do
económicos e a sociedade onde estes se nosso sistema económico, a reconhecer a
geram, que o pensamento económico libe- existência de lógicas distintas de produzir
ral inventou, contribuiu decisivamente e de (con)viver e a discernir a presença,
para a invisibilidade daquelas formas. resistente ou emergente, de outras econo-
A literatura sobre este assunto é vasta e mias mais justas e solidárias.
por vezes demasiado hermética para não Uma última nota sobre dois apoios
iniciados. Por isso, visou-se, com a presente importantes para esta edição: de um lado,
obra, divulgar para públicos alargados os a prestimosa ajuda de Sílvia Ferreira,
conceitos e as teorias mais marcantes sobre Colega da Faculdade e investigadora do
as alternativas à economia capitalista extra- CES, na mobilização dos contributos para
ídos dessa literatura especializada. Nela o Dicionário; de outro, as oportunidades
se abordam temas tão diversos quanto os de debate oferecidas pelo Grupo EcoSol,
fundamentos e as modalidades da outra recentemente criado pelos estudantes
economia ou os marcos históricos do pen- de pós-graduação do CES no âmbito do
samento alternativo, a par de outros mais Núcleo de Cidadania e Políticas Sociais.
específicos relacionados com as empresas A ambos o devido reconhecimento...

Boaventura de Sousa Santos


Director do Centro de Estudos Sociais

Pedro Hespanha
Coordenador do Núcleo de Cidadania e Políticas Sociais
A

11

A
ALTERMUNDIALIZAÇÃO de interpretação desse novo conceito. De
Patrick Viveret fato, ele permanece marcado por sua ori-
gem francófona, e sua tradução em inglês
1. O termo altermundialização expressa o refere-se assiduamente a essa origem.
caráter multiforme de um movimento que
pretende suscitar valores como a democra- 2. O movimento altermundialista focaliza-
cia, a justiça econômica e social e a proteção se na crítica às lógicas econômicas domi-
ao meio ambiente e aos direitos humanos nantes e na busca de alternativas a elas.
a fim de estabelecer condições para uma Tais lógicas revelam-se particularmente
mundialização democrática, controlada nas instituições econômicas e financei-
e solidária. Os termos altermundialização e ras internacionais, alvos privilegiados das
altermundialismo foram criados em 2002, manifestações altermundialistas: a Orga-
na Bélgica e na França (principalmente nização Mundial do Comércio (OMC), o
no âmbito da revista Mouvements), tendo Fundo Monetário Internacional (FMI), a
como inspiração o slogan do Fórum Social Organização de Cooperação e Desenvol-
Mundial de Porto Alegre, realizado no vimento Econômico (OCDE) e o Banco
Brasil: “um outro mundo é possível”. Para Mundial (BM). Dois grandes processos
seus idealizadores, o conceito foi também levaram ao surgimento da altermundiali-
um meio de se opor à apresentação des- zação. O primeiro processo relaciona-se
se movimento, ao mesmo tempo cívico à expressão internacional do fato associa-
e social, veiculada pela mídia como uma tivo, que se traduziu na multiplicação de
iniciativa contrária à mundialização. Essa “fóruns de ONGs”, por ocasião das reuni-
recusa não tange à própria mundialidade, ões internacionais de cúpula das Nações
inscrita na continuação dos valores inter- Unidas organizadas na década de 1990.
nacionalistas (nossa “terra-pátria”), mas à O primeiro fórum ocorreu durante a Con-
sua forma atual, julgada ecológica e social- ferência das Nações Unidas para o Meio
mente destrutiva. O conceito difundiu-se Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92.
de maneira mais ampla, ultrapassando O segundo processo, marcado por uma
os limites da francofonia, por ocasião do tradição mais radical, manifestou-se por
Fórum Social Europeu, ocorrido em Paris, meio de várias iniciativas: o People’s Power
em novembro de 2003. Até mesmo uma 21, reunião de movimentos asiáticos;
oficina, intitulada As palavras, as línguas, a conferência contra o neoliberalismo,
os símbolos do movimento altermundialista, organizada pelos zapatistas em Chiapas;
dedicou-se aos problemas de tradução e as manifestações anuais contra o Fórum
A
Econômico Mundial de Davos e os Encon- Nos planos econômico e social, os
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tros Internacionais de Paris, da ATTAC altermundialistas rejeitam a idéia de que o
(Associação pela Tributação das Transa- direito da concorrência possa ser superior
ções Financeiras em Apoio aos Cidadãos), àqueles inscritos na Declaração Universal
ocorridos em 1999. dos Direitos do Homem. Criticam regras
Esses dois processos uniram-se, em favoráveis demais à propriedade intelec-
parte, durante as manifestações contra tual ou ao patenteamento da vida, pratica-
a OMC realizadas em Seattle (1999) e das em detrimento dos países do Sul e, de
em Gênova (2001), onde a polícia italia- modo mais amplo, dos cidadãos. Denun-
na matou a tiros um participante. Essas ciam as patentes sobre o material genético
manifestações favoreceram sobretudo a tradicional e o preço exorbitante de certos
construção de um acontecimento de refe- medicamentos cobrado de habitantes dos
rência, o Fórum Social Mundial (FSM), em países mais pobres (por exemplo, as drogas
oposição ao Fórum Econômico Mundial necessárias ao combate à AIDS, na África).
de Davos. A expressão “fórum-espaços”, Algumas associações que participam ati-
forjada por Whitaker, um dos co-funda- vamente dos encontros altermundialistas,
dores do FSM, expressa o caráter volunta- como a organização britânica Oxfam, não
riamente pluralista do processo: ausência combatem abertamente a OMC, pois jul-
de declarações finais, votos majoritários gam útil haver uma regulação do comércio
ou instruções, assim como inexistência mundial. Em contrapartida, criticam os
de organismos dirigentes. Em termos de países industrializados, que, além de não
estrutura, o Fórum Mundial possui um se empenharem em suprir as falhas demo-
secretariado, responsável por sua organi- cráticas e jurídicas desse sistema, tirariam
zação, e um conselho internacional. proveito delas.
O FSM ocorreu três vezes em Porto Os altermundialistas defendem idéias
Alegre, no Brasil, depois em Mumbai, na favoráveis à regulação dos mercados finan-
Índia, antes de voltar a Porto Alegre no ceiros. A mais conhecida é a proposta de
início de 2005. Em 2006, foi realizado se fixar uma tributação sobre as transações
em Caracas; em 2007, em Nairobi; e, em financeiras, conhecida pelo nome de seu
2008, foi convertido em dia mundial de criador, Tobin, Prêmio Nobel da Econo-
mobilização. Em 2009, voltará a ser reali- mia (na verdade, trata-se de um prêmio
zado no Brasil (Belém, Pará). do Banco Central Sueco em memória de
Alfred Nobel, erroneamente apresentado
3. A altermundialização agrupa atores de como Prêmio Nobel). Os altermundia-
culturas muito diversas, como terceiro- listas propõem ainda a atribuição de um
mundistas, ecologistas, marxistas, cristãos papel mais importante a organizações
progressistas, keynesianos ou anarquistas. como a Organização Mundial da Saúde
Com frequência, reúne ainda atores rara- (OMS) e a Organização Internacional do
mente vistos nos mesmos lugares, como Trabalho (OIT). São também favoráveis à
integrantes dos movimentos pacifistas criação de uma organização mundial do
israelenses e dos movimentos progressis- meio ambiente dotada de poderes efetivos
tas muçulmanos. de sanção e apóiam todas as iniciativas em
A
prol do desenvolvimento de um comércio paga várias vezes por seus juros e de que
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realmente justo. ela tem, em contrapartida, as dívidas eco-
O altermundialismo investe muito nas lógica ou colonial. Os altermundialistas
lógicas de rede e na utilização das novas exigem igualmente: o combate efetivo aos
tecnologias da informação, apoiando- paraísos fiscais, em um primeiro momen-
se em certos veículos de comunicação. to, e a posterior supressão desses espaços,
Entre os mais conhecidos, estão o jornal onde se confundem economias especu-
Le Monde Diplomatique, a rede Indymedia lativa e criminosa; a exclusão definitiva
Center e o jornal alternativo Bretzel, assim de certos setores, tais como a educação
como organizações a exemplo da ATTAC, ou a saúde, dos ciclos de negociação da
idealizadora do projeto Tobin. As mobi- OMC; a elaboração de um balanço exaus-
lizações altermundialistas fizeram com tivo e independente das políticas seguidas
que a OMC, o G8 e o BM passassem a nos últimos vinte anos pelas instituições
organizar seus encontros cada vez mais financeiras internacionais; a cobrança
longe dos grandes centros, em lugares de garantias de progressos democráticos
afastados e pouco acessíveis à população, quando da concessão de auxílio econômi-
o que aumenta a suspeita acerca de seu co a países não-democráticos; e o estabe-
caráter pouco democrático. Em 2001, a lecimento de um controle cidadão sobre
OMC congregou-se em Doha, no Qatar. as ajudas econômicas.
Em 2002, a Cúpula do G8 reuniu-se no Desde o primeiro Fórum Social Mun-
coração das Rochosas, em Kananaskis, e, dial de Porto Alegre, houve também o
em 2003, em Évian, na França. Para a Reu- crescimento de propostas que tendem
nião de Cúpula do G8 de 2004, George W. a desenvolver uma outra abordagem da
Bush escolheu Sea Island, uma pequena riqueza e da moeda. Novos indicadores
ilha privada da Geórgia. Em 2005, foi a de riqueza (indicadores de desenvolvi-
vez de Gleneagles (Escócia); em 2006, de mento humano, de saúde social, de bem-
São Petersburgo, na Rússia, e, em 2007, de estar econômico, de desenvolvimento
Rostock, Alemanha, considerada uma ver- sustentável) são cada vez mais debatidos
dadeira prisão de luxo. e elaborados, frequentemente no âmbi-
Entre as propostas evocadas com mais to de instituições internacionais como o
frequência nos planos econômico e social, PNUD (Programa das Nações Unidas para
encontram-se principalmente: o controle o Desenvolvimento) ou a OMS. De manei-
das instituições financeiras internacionais ra ainda mais radical, iniciou-se recente-
– FMI, BM, OMC – pela organização das mente um debate sobre a natureza da pró-
Nações Unidas (ONU); a preservação dos pria moeda, suas condições de emissão e
serviços públicos ameaçados pelo Acor- circulação e sobre a lógica perversa das
do Geral sobre o Comércio dos Serviços taxas de juros. Tanto no plano teórico,
(AGCS); e a anulação da dívida dos países como no experimental, multiplicam-se
pobres, algumas delas contraídas por um iniciativas de sistemas de troca, de moedas
governo anterior não-democrático, para ecológicas e sociais e de novas formas de
manter-se no poder. Tal demanda baseia- crédito. Tais ações apóiam-se no conhe-
se nas alegações de que essa dívida já foi cimento adquirido durante as tentativas
A
registradas na década de 1990, como os titui o único risco que pesa, no início do
14
Clubes de Trocas (LETS, de local exchange século XXI, sobre a humanidade. Os dois
trade system, nos países anglo-saxões), os maiores obstáculos enfrentados ao esta-
SEL (sistemas locais de trocas, nos paí- belecimento de uma civilidade mundial
ses francófonos), os sistemas de trocas são o fundamentalismo, sob formas mais
com base no tempo (bancos do tempo, e mais violentas, e um capitalismo esta-
na Itália; time dollar, nos Estados Unidos; dunidense, cada vez mais autoritário e
fair bank, na Grã-Bretanha), ou as moedas menos liberal. Na administração Bush,
sociais alocadas (como o cheque-serviço, o esse capitalismo revela-se sempre mais
tíquete-restaurante, o cheque-férias, etc.). nacionalista e oposto a regulações mun-
diais ecológicas (rejeição ao Protocolo de
4. Esses debates e experiências propiciam Kyoto), jurídicas (objeção à Corte Penal
até mesmo a formulação de um projeto Internacional), políticas (recusa a uma
concebendo uma unidade contábil e de reforma das Nações Unidas) e até eco-
troca mundial. Tal instrumento permitiria, nômicas (imposição de barreiras prote-
aos atores que demonstrassem a necessi- cionistas a sua agricultura, sua indústria
dade de utilizar a moeda como um meio e suas patentes). O desafio é combater-se
e não como um fim, privilegiar as trocas e mais um capitalismo autoritário, que se
os investimentos inseridos nessa lógica. opõe a regulações mundiais, e menos uma
Todas essas tentativas dão novo impulso mundialização liberal. O confronto por
ao projeto histórico da economia social uma democracia mundial deve inscrever-
(cooperativas, sistemas mutualistas e asso- se nessa alternativa aos riscos autoritá-
ciações), revisitado pela nova energia cria- rios, que podem assumir tanto a forma do
dora da economia e das finanças solidárias. capitalismo, como a expressão do funda-
O altermundialismo constitui a parte mentalismo. Essa democracia não pode
mais dinâmica do que se conhece pelo ter- contentar-se em desmilitarizar a luta pelo
mo amplo “sociedade civil internacional”. poder, precisando mudar sua natureza.
O movimento desenvolveu-se de modo Se a forma associativa é uma das mais
extremamente rápido, mesmo dispon- adaptadas à exigência democrática, isso se
do de expedientes irrisórios em relação dá justamente porque ela se ajusta muito
àqueles das empresas multinacionais, das mais ao poder como criação do que como
instituições financeiras, dos Estados e dos dominação. Foi por essa razão que se viu
grandes meios de comunicação. Sucedido surgir, a partir da década de 1990, não
esse impulso, o altermundismo atravessa somente uma sociedade civil, mas tam-
atualmente um momento crítico de sua bém uma “sociedade civil mundial”. Com
jovem história, devendo contornar os ris- efeito, essas associações de um novo tipo,
cos que levaram ao fracasso muitas tenta- as que se caracterizam como movimentos
tivas anteriores, em especial nos regimes de cidadania ou associações cívicas, tra-
comunistas. tam diretamente de questões políticas.
O capitalismo (ou o que se nomeia, Um encontro como o Fórum Social Mun-
frequentemente, com o termo preguiço- dial de Porto Alegre é, no melhor sentido
so “globalização neoliberal”) não cons- do termo, um encontro político.
A
Essa qualidade democrática é mais BIBLIOGRAFIA
15
necessária no movimento cívico e societá- ARRUDA, M. (2003), L’endettement est-il une dette
rio emergente em escala mundial porque légitime. Revue du Mauss. L'alter-économie, Paris: La
Découverte, n. 21, prem. sem.
foi nesse terreno que fracassaram as ten-
tativas anteriores de alternativa ao capita- ATTAC (2001), Agir local, penser global, Paris: Éditions
Mille et Une Nuits.
lismo. Todas as forças que, no começo do
século XXI, acreditam na possibilidade de CORDELLIER, S. (Dir.) (2000), La mondialisation au-delà
des mythes, Paris: La Découverte.
haver um outro mundo devem trabalhar
LAVILLE, J.-L. (Dir.) (2000), L'économie solidaire:
internamente para superar as lógicas de
une perspective internationale, Paris: Desclée de
rivalidade e de suspeição que minaram o Brouwer.
movimento operário e seus componen-
OÙ VA le mouvement altermondialiste? (2003),
tes políticos e sociais. Nem as diferenças Paris: La Découverte. Edité par un collectif à
nem os desacordos são perigosos; os mal- l’initiative des revues Transversales Science Culture
entendidos, os processos de intenção, as et Mouvements.
lógicas de rivalidade e de relações de força PASSET, R. (2000), L’illusion néo-libérale, Paris: Fayard.
é que o são. A pluralidade das tradições VIVERET, P. (2003), Reconsidérer la richesse, Paris: Edi-
políticas, culturais e espirituais que com- tions de l’Aube. Rapport du Secrétaire d’État à
põe o movimento da “altermundializa- l’économie solidaire.
ção” é uma força, não uma fraqueza, desde WHITAKER, C. (2003a), Forum Social Mundial, espace
que ela edifique coletivamente uma ética ou mouvement. Cultures en Mouvement, n. 61, oct.
e uma qualidade democrática proporcio- ___. (2003b), Où va le Forum Social Mundial? Cultu-
nais a suas ambições. res en Mouvement, n. 62, nov.
A
ANTIUTILITARISMO incompletude do mercado e dos defeitos
16 Alain Caillé de coordenação que ela acarreta, a exem-
plo do que fazem o keynesianismo, o neo-
1. O antiutilitarismo define-se por opo- institucionalismo e as escolas da regula-
sição à Economia e à Ciência Econômica ção ou das convenções. De qualquer sorte,
dominantes e à cristalização e condensa- salienta-se a incapacidade intrínseca de a
ção de práticas, visão de mundo e filoso- Ciência Econômica primar pela natureza,
fia utilitaristas. A crítica à Economia será pelo ser vivo e pelo ser humano. Frequente-
antiutilitarista ou não o será. Essa afirma- mente, essas diversas críticas, passadistas,
ção suscita tanto problemas quanto solu- reformistas ou revolucionaristas, técnicas,
ções, pois supõe que se delibere sobre o ecológicas ou epistemológicas, entrecru-
que convenha entender-se por utilitaris- zam-se e combinam-se, o que não facilita
mo. A asserção tem ainda inspirado todo o a definição do que seja antiutilitarismo.
trabalho da Revue du MAUSS (Movimento No interior desse conjunto crítico pro-
Antiutilitarista em Ciências Sociais) des- teiforme, pouco se duvida de que o mar-
de sua fundação, em 1981. xismo tenha desempenhado, por muito
A crítica à Economia e à Ciência Eco- tempo, o papel principal, ainda que ambí-
nômica, nascida com o capitalismo moder- guo. Cabe indagar se a crítica à economia
no e sua economia política, desponta por política, por diversas vezes recomeçada e
volta de 1800, assumindo formas e graus reformulada por Marx e seus discípulos,
de intensidade infinitamente variados. deve ser entendida como a esperança de
Para os males engendrados pelo capitalis- se criar uma Ciência Econômica mais
mo, buscou-se uma solução, durante dois científica que a economia política bur-
séculos, na volta aos bons velhos tempos, guesa – a verdadeira Ciência Econômica
na invocação de dias melhores (socialistas enfim encontrada –, ou como uma crítica
ou comunistas), ou então, mais modesta- aos limites de qualquer discurso econômi-
mente, em uma organização social-demo- co possível. Do mesmo modo, cabe ques-
crata da livre concorrência. A crítica à tionar se a crítica ao capitalismo deve ser
Ciência Econômica ocorre, basicamen- compreendida como a denúncia da subor-
te, sob três vertentes principais, entre dinação da vida real dos homens concretos
outras. Primeiramente, ela pode incidir aos imperativos abstratos da economia,
sobre pontos técnicos mais ou menos ou, com a contribuição do materialismo
específicos, a exemplo da crítica ao con- histórico, um apelo a um excesso de rea-
ceito de capital formulada pela escola de lismo economicista e ao desenvolvimento
Cambridge, ou da demonstração do irrea- sem fim das forças produtivas. É possível
lismo dos postulados protagonizada pela demonstrar-se que essa ambiguidade está
teoria do equilíbrio geral. A crítica à Ciên- na raiz dos dramas engendrados pelas ten-
cia Econômica pode ainda questionar a tativas de se construir o comunismo, pois
imagem do sujeito econômico racional, elas se mantiveram exaustivamente dividi-
cuja racionalidade é, na melhor das hipóte- das entre um economicismo (apologia ao
ses, subjetiva e limitada. Finalmente, essa planejamento racional) e um antiecono-
crítica pode consistir na demonstração da micismo (escolha pela abolição das cate-
A
gorias mercantis e apelo ao devotamento le século. Podem-se citar três exemplos,
17
do proletariado), igualmente hipertrofia- entre dezenas de outros. Nietzsche foi
dos. Outra oposição situa-se entre um uti- inicialmente um defensor do utilitaris-
litarismo e um antiutilitarismo desenfrea- mo antes de se tornar um antiutilitarista
dos. Com efeito, o marxismo compartilha radical, vendo no homem utilitarista um
com o pensamento burguês a certeza utili- calculador, aquele que buscaria acima de
tarista de que, sendo o econômico o único tudo a própria felicidade, a figura execrá-
real, a sociedade não passa de uma supe- vel do “último homem”, com quem fin-
restrutura da economia. Ele a critica, mas daria a história da humanidade. Contra
o faz em nome de um antiutilitarismo, de o utilitarismo de Spencer, Durkheim, o
uma aspiração a deixar o utilitarismo do sociólogo mais popular da Europa dos
qual ele não consegue se desvincular, já anos 1880, fundou o que se tornaria a
que o próprio marxismo procede em boa escola sociológica francesa. Por sua vez, a
parte do utilitarismo. grande tradição socialista francesa – aque-
la que culminou com Jaurès – segue a linha
2. Não é raro que uma mesma doutrina seja do benthamismo, por se querer raciona-
objeto de leituras totalmente divergentes, lista, mesmo pretendendo infleti-lo para
e isso se aplica também ao utilitarismo. dar lugar maior ao altruísmo do que ao
Neste caso, em particular, a diversidade egoísmo. O socialismo não-marxista vê-
das interpretações é surpreendente. Sob se assim como um utilitarismo com certo
a ótica do “Continente” (Alemanha, Fran- tom de simpatia (CHANIAL, 2000).
ça, Itália), o utilitarismo, concebido como O cerne do debate que reserva mui-
uma doutrina particularmente banal, não tas surpresas polariza-se entre egoísmo e
interessava a mais ninguém. As histórias da altruísmo. Para a maior parte dos econo-
Filosofia ou das Ciências Sociais mal faziam mistas, e para quase todos os sociólogos, o
menção a ele, limitando-se a lembrar a exis- utilitarismo estabelece: a) que os homens
tência de Bentham (1970), considerado o são ou devem ser considerados como
pai da doutrina. No máximo, citavam-se indivíduos, separados e mutuamente in-
alguns precursores, os moralistas escoce- diferentes, não podendo, por natureza,
ses, Hutcheson, Hume ou Smith, ou então buscar algo além de sua própria felicida-
Helvétius ou Beccaria, e pelo menos um de ou de seu próprio interesse; b) que é
sucessor importante, Stuart Mill, autor da bom e legítimo que assim o seja, pois esse
obra Utilitarismo (1998), que teria estabele- é o único objetivo racional oferecido aos
cido o essencial da doutrina. seres humanos; c) enfim, que os indiví-
Esse desinteresse radical pelo utili- duos buscam essa satisfação de seu pró-
tarismo causa surpresa diante do fato de prio interesse ou deveriam buscá-la racio-
que os principais debates teóricos e polí- nalmente, maximizando seus prazeres
ticos do século XIX, ocorridos na Europa, (ou ainda, sua utilidade, suas preferên-
desenvolveram-se em uma relação central cias) e minimizando suas dificuldades (ou
com ele e, principalmente, com a doutrina sua falta de utilidade). Assim concebido,
de Bentham, tal como seu discípulo suí- o utilitarismo mostra-se como uma “dog-
ço Dumont expusera-a no início daque- mática do egoísmo” (HALÉVY, 1995) e faz
A
mais do que antecipar o que ainda se cha- Segundo economistas, o homo œcono-
18
ma de “modelo econômico” ou, de modo micus não é necessariamente egoísta. Há
mais geral, de individualismo metodoló- certos indivíduos para quem a satisfação
gico e de Rational Action Theory (RAT), tor- do próprio interesse passa pelo contenta-
nados o modelo explicativo dominante mento dos outros. Eles seriam, em suma,
nas Ciências Sociais. Assim o consideram egoístas altruístas. A discussão sobre o
todos os autores importantes da tradição alcance do utilitarismo torna-se logo
sociológica, para quem a Sociologia deve complexa, e quatro teses podem ser apre-
ser pensada como um antiutilitarismo, sentadas para se analisarem essas intrica-
um discurso que reconhece a legitimi- das questões.
dade do cálculo de interesse e da racio- Conforme a primeira tese, o utilitaris-
nalidade do homo œconomicus, mas que se mo caracteriza-se pela combinação difí-
recusa a acreditar que toda ação reduzir- cil (até impossível) entre uma afirmação
se-ia à racionalidade instrumental (LAVAL, positiva – os indivíduos são calculistas
2002). interessados racionais – e uma afirmação
A dificuldade reside no fato de que a normativa consequencialista: é justo e
corrente ultradominante da filosofia moral desejável o que maximiza objetivamente a
anglo-saxônica, desde Mill até Rawls, pas- felicidade do maior número ou o interesse
sando por Sidgwick e Moore, repousa geral. Em suma, o utilitarismo distingue-
sobre uma interpretação bem diferente se pela combinação de um egoísmo e de
do utilitarismo. Em sua discussão sobre o um altruísmo racionais.
utilitarismo, todos esses autores interes- As teorias econômicas liberais, que
sam-se menos pelo postulado do egoísmo apelam ao mercado e ao contrato a fim de
racional do que pelo princípio de justiça conciliar esses dois princípios, podem ser
utilitarista enunciado por Bentham: é jus- consideradas como utilitaristas lato sensu. Já
to o que permita maximizar “a felicidade as teorias utilitaristas stricto sensu são aque-
do maior número”. Deduz-se a sequência: las que, a exemplo do Bentham reformador
para ser justo e moral, pode-se revelar ser do Direito, postulam ser essa conciliação
necessário sacrificar os interesses egoístas somente possível mediante a intervenção
à felicidade do maior número. O utilita- de um legislador racional que manipule os
rismo, que antes parecia consistir em uma desejos, equacionando penas e recompen-
dogmática do egoísmo, mostra-se como sas, pelo que Halévy denominava-a “har-
uma doutrina que prega o altruísmo; até monização artificial dos interesses”. Estas
mesmo o sacrifício. Foi precisamente para compõem o segundo grupo de teses.
evitar o sacrifício dos interesses ou a liber- Embora a palavra utilitarismo seja rela-
dade dos indivíduos sob o pretexto de tivamente recente (foi criada por Mill), os
maximizar a utilidade comum que Rawls dois princípios de base do utilitarismo,
tentou definir outros critérios de justiça já claramente enunciados por Sócrates e
além do parâmetro utilitarista. Seu êxito é Platão, são tão antigos quanto as filosofias
duvidoso, já que o autor não soube expli- ocidental e chinesa, conforme Mao-Tse
car-se sobre o estatuto da hipótese do (HAN-FEI-TSE, 2000), cuja história pode
egoísmo racional. ser lida como a de uma longa batalha
A
entre teses utilitaristas e teses antiutilita- um objeto, o qual se pode possuir e dele
19
ristas (CAILLÉ; LAZZERI; SENELLART, 2001). se apropriar, e considerar o sujeito que o
Esse embate foi substituído pelo confron- persegue, indivíduo ou Estado racionais,
to entre Ciência Econômica e Sociologia. como um senhor ou um proprietário onis-
De acordo com a quarta tese, o utilita- ciente e onipotente. De modo mais con-
rismo nada mais é do que a teoria da racio- creto, as sociedades modernas decidiram
nalidade prática ampliada à totalidade o debate estabelecendo que a medida
da filosofia moral e política. Apoiada no adequada da felicidade seria o Produto
postulado do homo œconomicus, a Ciência Nacional Bruto (identificado com a Feli-
Econômica representa a cristalização do cidade Nacional Bruta) e que a maximi-
utilitarismo. zação da vida ou da sobrevida brutas seria
alcançada a qualquer preço, com o risco
3. Criticar o utilitarismo é delicado, em da infelicidade.
razão da força de sua intuição constitutiva. A esses discursos que difundem uma
É difícil opor-se algo às idéias aparente- visão puramente instrumental da exis-
mente manifestas de que os indivíduos não tência humana (solapando assim toda
podem buscar nada mais do que a satisfa- possibilidade de felicidade objetiva),
ção de seu próprio interesse e que não há pode-se objetar que, como mostra Mauss,
outro objetivo legítimo concebível para os em Ensaio sobre a Dádiva (2003), a moti-
Estados ou para as sociedades senão asse- vação primeira da ação não é o interesse
gurar a maior felicidade ao maior número. pessoal, mas a obrigação de dar, de mos-
Muitos fatores estão envolvidos, entretan- trar-se generoso diante dos outros; que a
to, neste estudo, é possível fazer-se apenas hipótese do homo donator é, portanto, tão
um breve apanhado deles. plausível quanto a do homo œconomicus
No plano positivo, as explicações utili- (GODBOUT, 2000). O essencial da existên-
taristas da ação humana são infinitamen- cia reside sem dúvida nessas premissas, e
te mais fracas do que se poderia crer no a visão utilitarista do mundo desconsidera
início: ou elas não conseguem se libertar que, antes mesmo de os sujeitos poderem
do formalismo e da tautologia, limitando- satisfazer suas necessidades e calcular
se a repetir, sob múltiplas formas, que os seus interesses, é preciso que existam e
homens preferem o que preferem e inte- se constituam enquanto tais, quer se tra-
ressam-se pelo que os interessa; ou elas te dos indivíduos, quer dos coletivos. Essa
caem em uma forma ou outra de utilitaris- construção de subjetividade relaciona-se
mo vulgar, afirmando serem os interesses à subordinação da necessidade à exigên-
materiais (o dinheiro, o sexo, ou o gosto cia de sentido (para o indivíduo ou para
pelo poder) que conduzem o mundo. o coletivo) e implica a subordinação das
No plano normativo, a questão princi- considerações utilitárias a um momento
pal é que, se a felicidade pode certamente antiutilitarista constitutivo. Em outros
ser desejada, nem por isso pode ser obje- termos, a crítica consistente à economia
tivada, pois não é palpável. Fazer dela uma política implica o reconhecimento da
meta (e não um resultado desejável pos- essência política (e não econômica) das
sível) implica considerá-la quase como sociedades. O utilitarismo contribuiu
A
para o nascimento da democracia moder- CHANIAL, P. (2000), Justice, don et association, Paris: La
20 Découverte.
na, mas corre o risco de revelar-se mortal
à sua sobrevivência. Esta só será possível GODBOUT, J. T. (2000), Le don, la dette et l’identité, Paris:
mediante o entendimento de que a demo- La Découverte.
cracia deve ser desejada por si mesma e HAN-FEI-TSE (2000), Le tao du prince: introduction et
que as considerações de eficácia funcional traduction de Jean Lévi. Paris: Seuil.
e instrumental devem estar subordinadas HALÉVY, E. (1995), La formation du radicalisme philoso-
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bonheur et l’utile, Paris: La Découverte. MILL, S. J. (1998), L'utilitarisme, Paris: PUF.
A
ASSOCIATIVISMO social e político, a solidariedade. Por essa
Philippe Chanial 21
razão, as práticas associativas e as formas
Jean-Louis Laville associativas delas resultantes (mutualida-
des, cooperativas, sindicatos, associações
1. A associação é uma tradução em atos do civis, etc.) constituem uma política origi-
princípio de solidariedade que se expres- nal: o associacionismo. Aceitar essa hipóte-
sa pela referência a um bem comum, se permite esclarecer-se o que confere ao
valorizando pertenças herdadas, no caso agir associativo sua especificidade, antes
da solidariedade tradicional, ou perten- de retomarem-se as teorizações que fize-
ças construídas, no caso da solidariedade ram dele o fundamento de um projeto
moderna filantrópica ou democrática. A político.
criação associativa é impulsionada pelo
sentimento de que a defesa de um bem 2. A tentativa de se explicar o agir associa-
comum supõe a ação coletiva. Em sentido tivo a partir de motivações exclusivamen-
genérico, incluindo tanto as formas jurí- te utilitárias só pode resultar em aporias.
dicas associativas, como as cooperativas e Assim acontece com as abordagens acerca
mutualistas, a associação pode ser aborda- do terceiro setor atinentes à economia
da sociologicamente como um espaço que neoclássica, que buscaram interpretar a
opera a passagem, graças a um encontro vantagem corporativa das associações via
interpessoal, entre redes de socialidades imposição de não-lucratividade. Segundo
primária e secundária, entre esferas priva- essas análises, o comportamento desinte-
da e pública (LAVILLE, 2004, p. 63). As rela- ressado dos promotores torna-se o sinal
ções diretas personalizadas ultrapassam de confiança que convence os usuários
o contrato entre pessoas, para englobá-lo a recorrerem a seus serviços. Em outras
na busca de fins comuns. palavras, os usuários estimam que a pre-
A cada ano, nascem e desenvolvem- servação de seu interesse seja garantida
se milhares de associações, nas quais se pelo comportamento altruísta dos empre-
inventam novos lugares de definição e de endedores de organizações não-lucra-
exercício da cidadania, implantando-se tivas. Logo se vê o impasse lógico de tal
redes de solidariedade e ajuda mútua às concepção, salvo se admitirmos que o
margens do Estado ou do mercado. Se o desinteresse material dos criadores de
evento associativo impõe-se atualmente projetos associativos recobre um interes-
como um “fato de sociedade”, a própria se não-material, mas é o conteúdo desse
idéia de associação permanece insufi- interesse então que se torna enigmático.
cientemente problematizada em sua sin- Quanto às concepções da economia social
gularidade. O ato mesmo de associar-se que relacionam a solidariedade ao interes-
interpela diretamente nossas categorias se coletivo, geral ou mútuo, elas deixam
sociológicas fundamentais de análise. Se “de lado um vasto mundo de motivações
o vínculo de associação é irredutível tanto e de racionalidades não consumistas e
ao cálculo de interesse quanto aos jogos não-instrumentais” (EVERS, 2000, p. 568).
e relações de poder, isso ocorre porque Somente uma teorização que considere a
ele indica uma outra modalidade do laço solidariedade como um princípio de ação
A
coletiva independente, distinto do agir a do socialismo associacionista francês,
22
instrumental e estratégico, tem condições tentou fornecer uma resposta positiva a
de compreender a originalidade do que se esse questionamento. É claro que o socia-
expressa nas práticas associativas. A soli- lismo jamais teve o monopólio da associa-
dariedade remete à liberdade positiva de ção, que foi teorizada e praticada tanto no
se desenvolverem práticas cooperativas e campo liberal, quanto no campo conser-
ultrapassa, pela busca das condições inter- vador. Ocorre porém que, quando alguns
subjetivas da integridade pessoal, a lógica buscavam na associação um simples remé-
do interesse. dio aos excessos do individualismo e às
A adesão a um bem comum não bas- ameaças do poder de Estado, os socialis-
ta para se constituírem os elementos mos associacionistas franceses transcen-
necessários a uma ação duradoura, pois deram essa formulação. Eles constituíram
ela deve ser acompanhada de um acordo a Associação como matriz, como para-
sobre princípios de justificativa (BOLTANSKI digma para pensar e reformar as ordens
e THÉVENOT, 1992). Esses princípios assu- social, econômica, política e moral. Nesse
mem a forma de lógicas institucionais sentido, essa tradição não se limita a um
quando oferecem regras fiáveis em maté- nome, o de Proudhon, frequentemente
ria de: prestações; relações com os usuá- apontado como o anti-Marx. Ela defi-
rios e com os membros; recrutamento e ne, antes, a singularidade do socialismo
formação; representação e expressão dos francês, principalmente em relação a seu
voluntários e dos assalariados; e, entre camarada alemão, a qual pode ser resu-
outras, de mobilização dos recursos. Para mida em alguns traços reveladores de sua
se liberarem de um trabalho interpretati- atualidade.
vo extenuante, as relações cristalizam-se O socialismo associacionista precur-
em torno dessas lógicas (doméstica, de sor, aquele dos pioneiros – Saint-Simon,
ajuda social, de ajuda mútua, de movi- Fourier e seus discípulos –, foi por mui-
mento social, etc.), facilitando a sua coor- to tempo definido, até mesmo estigma-
denação. Essa organização explica por que tizado, como um socialismo utópico.
a associação, quando de seus primórdios, Se utopia há, ela se deve ao fato de esse
dá mostras de criatividade, mas apresen- socialismo ter se conformado à margem
ta-se frágil ao buscar a consolidação que dos grandes princípios revolucionários
atualize seu projeto fundador. A difícil de 1789. Aqueles socialistas não espera-
elaboração de um universo simbólico divi- vam nada da democracia, da República
dido pela capacidade de articular registros ou mesmo do político. Era necessário
gerais para tratar de um bem comum sin- construir, sobre as ruínas deixadas pela
gular choca-se incessantemente com os Revolução, algo bem diferente. O ponto
fenômenos de isomorfismo institucional. de partida comum aos fourieristas e aos
saint-simonianos foi, deveras, a constata-
3. Cabe indagar, em face dessa aborda- ção de uma desordem, encarnada sobre-
gem, se a associação pode constituir uma tudo pela “anarquia industrial” (Fourier),
política e, em sendo possível, qual seria contudo, seria errôneo limitar o alcance
ela. Uma tradição política negligenciada, dessa matriz associacionista apenas à
A
esfera econômica. Nessa esteira, a questão jam os sentimentos egoístas, para dar uma
23
social não pode ser entendida como um forma solidarista ou socialista aos grupos
mero problema material, pois ela se inscre- humanos (MALON, 1894).
ve também, e, sobretudo, na esfera moral. Essa combinação original entre aspec-
A desordem liberal – o “reinado da desas- tos individualistas e coletivistas e essa
sociação”, segundo a fórmula de Leroux rearticulação entre interesse e desinteres-
(1997) – consiste-se, acima de tudo, no se não culminam em um moralismo ou em
reinado de um individualismo estrito jus- um sentimentalismo associacionista. Essa
tificado por essa “ciência sem moralidade”, moral da associação prolonga-se em uma
conforme a fórmula saint-simoniana, ou política republicana da associação simbo-
essa “ciência das nações que morrem de lizada por alguns aspectos da Revolução
fome” – na expressão do fourierista Con- de 1848, na França. Não é ilegítimo inter-
sidérant, a economia política. Associar pretar essa Revolução, ao menos em parte,
os homens consiste menos em combinar como uma revolução de e pela associação
seus interesses com vistas a um benefício (CHANIAL, 2001; DESROCHE, 1981; CHANIAL
máximo e mais em associar as paixões para e LAVILLE, 2001; LAVILLE, 1999). A Associa-
atingir a Harmonia (Fourier), em fortale- ção, como princípio de uma reorganização
cer os sentimentos e laços de simpatia que geral da sociedade, recebe então uma dupla
devem unir os homens (Saint-Simon) ou significação, ao mesmo tempo política e
em efetivar a Justiça, desenvolvendo novos social. A República democrática e social
laços de mutualidade ou de reciprocidade de 1848 pretende – pelo menos idealmen-
(Proudhon). te – encarnar essa dupla lógica. Sendo uma
Desse ponto de vista, o socialismo da República dos cidadãos e dos trabalhado-
associação é, em princípio, um socialismo res associados, ela reconhece simultanea-
moral. Essa moral socialista deve ser inter- mente, por meio do sufrágio universal, o
pretada como uma moral da cooperação, direito de associação no nível do Estado
em busca de uma síntese entre felicidades e, pela organização do trabalho, o direito
individual e coletiva, amor próprio e amor de associação no nível da vida econômica.
aos outros, liberdade pessoal e solidarie- Reforma política e reforma social são ago-
dade social. Essa moral é indissociável da ra indissociáveis: o homem não poderia
filosofia da história defendida por esses ter direitos civis e ser simultaneamente
autores, contrastando radicalmente com servo da indústria.
a grande narrativa liberal. Segundo esta, Apesar do impasse que essa República
o progresso da humanidade identifica-se indissociavelmente democrática e social
com a liberação do homem de todas as encontrou quase imediatamente, o asso-
correntes que o prendiam, mas, ao con- ciacionismo de 1848 esboçou uma outra
trário, o progresso da humanidade é, aci- definição da cidadania, a da legitimidade,
ma de tudo, o progresso da associação, a da representação e da soberania. Em seu
caminhada rumo à Associação Universal próprio movimento, a República soube,
(Saint-Simon). Ele se identifica com esse durante alguns meses, redefinir a exigên-
processo histórico em que progressiva- cia republicana e redesenhar as práticas
mente os sentimentos altruístas sobrepu- democráticas. Esta é, além das reformas
A
concretas propostas, a principal heran- cooperativa e ação política, esse politeís-
24
ça de 1848, principalmente meio século mo conduz Mauss a defender um coleti-
mais tarde. De fato, na virada do século, vismo original.
esse socialismo de 1848 ainda permanece O projeto coletivista sustentado na
vivo. O solidarismo e o radicalismo reivin- mesma época por Jaurès tampouco se
dicam-no, mas é sobretudo o socialismo resume a um socialismo de Estado. Em
democrático francês de Jaurès, assim como 1895, o autor já evoca o que será o siste-
o de Mauss, que prolonga sua herança, e ma econômico soviético: “Entregar aos
isso para melhor conter, no duplo sentido homens de Estado e aos governantes, já
do termo, o marxismo. Esse “socialismo donos da nação armada e da diplomacia
dos três pilares” (partido, sindicato, coo- nacional, a direção efetiva do trabalho
perativa) é, ao mesmo tempo, um socialis- nacional, dar-lhes o direito de nomear a
mo experimental e pluralista. todas as funções diretivas do trabalho [...]
À intransigência e ao dogmatismo seria dar a alguns homens um poder perto
dos guesdistas franceses, a seu marxismo do qual aquele dos déspotas da Ásia não
estreito e bitolado, Mauss (1997) opõe um é nada” (JAURÈS, 1931, p. 345-6). Jaurès
socialismo resolutamente experimental. esclarece que essa propriedade, esses bens
Se a ação política deve permanecer secun- que sofreram um processo de apropriação
dária e se, em contrapartida, os sindicatos coletiva, ao contrário, devem ser delegados
e as cooperativas são privilegiados, é por- pela Nação, em condições determinadas, a
que já constituem uma experimentação indivíduos ou a grupos de indivíduos, pois
concreta na qual se inventam uma econo- “a propriedade soberana que o coletivismo
mia, um direito, uma nova moral; de fato, quer atribuir à nação não exclui de modo
para Mauss, trata-se de “viver imediata- algum a propriedade dos indivíduos ou das
mente a vida socialista, criá-la em todos os associações particulares” (ibid., p. 165).
sentidos”. De modo mais geral, se o socia- O papel do Estado consiste em garan-
lismo de Estado não é nem viável nem tir, a todo cidadão, a co-propriedade dos
desejável, é porque não poderia ser instau- meios de trabalho que se tornaram pro-
rado sem atingir certos costumes, idéias priedade coletiva. Para Jaurès, somen-
democráticas e liberdades duramente te a democracia permite organizar essa
conquistadas. Ao contrário, o socialismo co-propriedade; tal é o cerne de sua teo-
somente poderá edificar-se abrindo espa- ria da propriedade social (CHANIAL, 2001).
ço inicialmente a uma parcela importante Quer se trate da coletivização da indús-
de liberalismo e de individualismo. Expe- tria, do desenvolvimento e da gestão dos
rimental, o socialismo maussiano é tanto serviços públicos ou da implantação da
plural, como híbrido. Sua crítica precoce e seguridade social, Jaurès sempre mobiliza
feroz ao bolchevismo leva-o a desconfiar, estes dois aspectos da propriedade social:
já em 1924, de um socialismo consagrado a propriedade social como compartilha-
a um único deus, sobretudo se este for o mento, como mutualização (dos meios
Estado ou o partido. Defendendo, ao con- de produção, dos serviços, das proteções
trário, esse socialismo dos “três pilares”, e das seguridades) e a propriedade como
no qual se articulam ação sindical, ação socialização dos poderes, realizando
A
aquele velho sonho operário de fazer as dão, principalmente aquela das forças do
25
suas próprias coisas. A propriedade social, mercado, como a estatal. Essa sociedade
para Jaurès, não é portanto somente uma é, em suma, isenta de dominação. Mes-
propriedade comum, compartilhada, e, mo que essa tradição política tenha sido
por essa razão, “propriedade dos sem-pro- historicamente derrotada na França, ela
priedade”; ela é também uma propriedade reencontra, no contexto do desmorona-
cívica, “poder dos sem-poder”. Pela pro- mento dos “socialismos reais”, da crise da
priedade social, concretiza-se tanto o ide- social-democracia e de desgaste do acordo
al de justiça social, quanto o imperativo de fordista, uma nova atualidade sob formas
liberdade e de cidadania social. Proprieda- já em construção.
de cívica, a propriedade social supõe uma
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lidade crescente, uma densificação das LA REVUE DU MAUSS (2000), L’autre socialisme, Paris:
La Découverte; MAUSS, n. 16.
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A
AUTOGESTÃO seus representantes e de expertos. Esse
26 Daniel Mothé regime político toma o governo de Ate-
nas do século V a. C. como modelo de
1. A autogestão é um projeto de organiza- referência.
ção democrática que privilegia a democra-
cia direta. Esta constitui um sistema em 2. O termo autogestão foi introduzido
que voluntariamente, sem perceberem como conceito, na década de 1950, pelo
remuneração e sem recorrerem a inter- partido comunista iugoslavo, que espe-
mediários, os cidadãos debatem todas as rava modernizar o sistema econômico do
questões importantes, em assembléias. País, atraindo a participação dos cidadãos
A periodicidade dessas reuniões deve ser depositários dos conhecimentos técnicos
compatível com a disponibilidade dos e profissionais nas empresas e nas muni-
agentes envolvidos. A democracia repre- cipalidades em que o aparelho do partido
sentativa, por seu turno, corresponde ao detinha o poder. O termo seria aplicado,
sufrágio universal dos Estados democrá- durante alguns anos, a regimes autoritá-
ticos, em que os cidadãos elegem uma rios (por exemplo, Iugoslávia e Argélia).
minoria de mandatários remunerados, Outros regimes totalitários comunistas
incumbidos de representá-los em instân- instituiriam assembléias de democracia
cias decisórias de governanças nacionais e direta (China, Camboja, Albânia), que
locais. Os eleitos atuam ainda em muitas serviriam para encobrir Estados libertici-
outras instituições, como as de natureza das, mas não empregariam o tema autoges-
representativa ou os conselhos de admi- tão, devido a conflitos internos ao bloco
nistração das associações. comunista.
A democracia participativa é uma for- O sentido que a autogestão assumiu
ma atenuada de autogestão, consistindo na França, sobretudo a partir de 1968, foi
em reunir-se, em assembléias, o conjunto o de uma democracia radical, ao mesmo
dos atores envolvidos em um tema com tempo opondo-se às experiências stali-
vistas a debatê-lo (por exemplo, a orga- nistas e reivindicando Marx. A democra-
nização do trabalho em uma oficina ou a cia radical propunha a volta às origens do
limpeza urbana em determinado bairro). socialismo, baseando-se nas perspectivas
Frequentemente, o papel dessas assem- do comunismo e recusando aos partidos
bléias é apenas consultivo, e a participa- de vanguarda o monopólio sobre a repre-
ção nesses encontros não é conquistada sentação dos interesses dos cidadãos.
por seus executantes, mas viabilizada Esse conceito de democracia radical já
pelos dirigentes. aparecia nos anos 1920, nas correntes
A democracia radical é uma forma marxistas revolucionárias: em Rosa de
ampliada de autogestão, na qual todos Luxemburgo, na oposição operária russa e
os cidadãos devem poder debater e votar nos comunistas de conselhos holandeses,
sobre as leis e regras administrativas que sem se esquecer a corrente libertária. Na
lhes digam respeito. Sua consequência é década de 1950, muitos marxistas e liber-
o aumento do poder direto do cidadão e tários constataram que as ditaduras dos
a diminuição da margem de manobra de países do Leste não haviam deixado lugar
A
algum à democracia operária, prometida 3. A concepção política maximalista da
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tanto nas fábricas, como na Nação. Uma autogestão repousa sobre três hipóteses:
corrente que poderia, mais tarde, ser cha- o sistema capitalista, fator de desigual-
mada de autogestionária, propôs-se então dade econômica, deve ser destruído para
a voltar às fontes originais do socialismo, que se realize a autogestão; o exercício do
constatando que a abolição da proprieda- poder corrompe o indivíduo; e os cida-
de privada não bastara à concretização do dãos livres da exploração capitalista e dos
projeto socialista. O termo autogestionário profissionais da política ficarão disponí-
abrangeria também a ação dos empresá- veis para investir nas questões públicas.
rios alternativos agindo nas cooperativas Afirmando inicialmente que a autoges-
operárias de produção, nas associações e tão não é compatível com a economia
em comunidades, instituindo formas de de mercado e que só poderá se realizar
democracia direta sem participar obriga- quando abolida a propriedade privada, os
toriamente dos debates ideológicos dos maximalistas priorizam a revolução e não
militantes políticos. aceitam qualquer tentativa experimental
Os adeptos da autogestão são assim de autogestão. Parecem ignorar a experi-
representados por duas correntes: os ência das práticas de democracia direta
políticos e os alternativos. Os militantes das cooperativas, das sociedades mutua-
políticos julgam que a introdução de uma listas e das associações que se instituíram
parcela maior de democracia direta nas em reação ao sistema capitalista desde o
instituições constitui em si um programa século XIX.
de transformação política o qual tange à Os militantes revolucionários, por seu
ideologia socialista. Por essa razão, subor- turno, aceitam a idéia de que a democra-
dinam a autogestão à conquista política cia direta possa ser utilizada em um sis-
do poder. De um lado, encontram-se os tema capitalista, unicamente no âmbito
maximalistas revolucionários, que prome- das reivindicações dos assalariados. Essa
tem uma sociedade de autogestão radical democracia direta das lutas assumiu, a
cujos espaços político, administrativo e partir dos anos 1970, um lugar cada vez
produtivo serão submetidos à democracia maior nas práticas de conflito – os gru-
direta; de outro, estão os reformistas, que pos revolucionários tentavam substituir
prometem, em seus programas eleitorais, o poder dos sindicatos pelos comitês de
efetuar algumas melhorias por meio de greve, unidos entre si por coordenações
uma participação mais importante dos dependentes de uma democracia dire-
cidadãos nas decisões. Para essas duas ta permanente de grevistas, na qual os
tendências, a ação política é a chave para representantes sindicais frequentemen-
a passagem a uma sociedade autogerida. te desempenhavam apenas um papel
Os alternativos são essencialmente pro- secundário. Os revolucionários, que, até
fissionais que tentam materializar espaços então, haviam privilegiado o conceito de
de autogestão limitados e circunscritos, classe social como a explicação cêntrica da
aqui e agora, na produção, no consumo, dominação, ampliaram-no ao conceito de
na cultura, na educação, na inserção, nos dominante. Podiam assim provar, median-
bairros, na habitação, etc. te exemplos históricos, que se poderia
A
submeter o povo sem se pertencer à classe de base era indispensável para se melho-
28
dos capitalistas, mas somente exercendo rar a racionalidade dos processos de pro-
a profissão de representante eleito. A res- dução. Chegou-se a criticar o taylorismo
posta política para se evitar essa inflexão exatamente em nome da produtibilidade
seria reabilitarem-se a democracia direta e capitalista. Invocando-se o utilitarismo,
o controle dos representantes eleitos. Res- constatou-se que as experiências dos assa-
gatava-se a proposta sugerida por Rosa de lariados de base extraídas de seu trabalho
Luxemburgo: a revogabilidade permanen- tornavam-nos depositários de informa-
te desses representantes. Na democracia ções absolutamente indispensáveis à ope-
autogestionária, a virtude cívica natural do ração eficaz dos novos sistemas industriais
homem deve ser protegida contra a ten- automáticos e informatizados. Experiên-
tação não menos natural do exercício do cias de grupos autônomos de produção
poder em seu proveito pessoal ou daquele substituíram o trabalho em linha de mon-
de um clã político liberado da vontade de tagem, e círculos de qualidade levaram
seus mandantes. os assalariados a contribuírem intelectu-
A autogestão parte de uma ambição almente para a melhoria dos produtos e
antropológica, especulando sobre as poten- para sua fabricação. Na França, em 1982,
cialidades infinitas abertas ao imaginário novas regras internas nas empresas e uma
humano de cidadãos livres do jugo da ide- lei sobre os grupos de expressão buscaram
ologia dominante. Ela abre o caminho para instituir procedimentos autogestionários
uma idéia de progresso diferente daque- limitados a equipes de trabalho e circuns-
le da produção ilimitada das riquezas: o critos a alguns temas.
progresso ilimitado de uma democracia A idéia de que os cidadãos possuem
criadora. Ao mesmo tempo em que se diz conhecimento ganhou credibilidade
não saber antecipadamente o que os cida- quando o setor dos serviços desenvolveu-
dãos decidirão, afirma-se saber o que eles se e percebeu-se que a organização padro-
não decidirão. Defende-se implicitamente nizada não convinha mais ao atendimento,
a idéia de que, uma vez livres da ideologia devendo este ser adaptado à pessoa singu-
burguesa dominante, eles não desejarão lar do usuário. Os profissionais das áreas
voltar a ela, pois a racionalidade igualitária sociais vêm tentando substituir a política
mantém sempre a força de sua convicção. social do gabinete pela participação dos
No início do século XX, a idéia dos usuários na solução de seus problemas.
anarcossindicalistas, segundo a qual o tra- Assim, na França, uma lei de 2004 sobre
balho manual não é somente uma força, o direito dos usuários recorreu a argu-
mas um produto da inteligência, foi sen- mentos teóricos extraídos dos autogestio-
do cada vez mais admitida pela opinião nários. Nesse espírito, o atendimento ao
pública. Pela primeira vez na História, público tende a incluir o indivíduo como
atribuía-se um estatuto político ao traba- um dado informativo específico, em face
lho manual. Essa idéia foi retomada na do desperdício ocasionado pela padroni-
década de 1970 pelos gestores das empre- zação. A individualização do atendimento
sas industriais, quando se constatou que adaptado à identidade da pessoa abala os
o conhecimento prático dos assalariados princípios burocráticos.
A
Os autogestionários que criticavam a cidadãos. Aqueles que fazem experiências
29
separação entre dirigentes e executantes baseadas na democracia direta têm busca-
parecem ter sido ouvidos na sociedade do do, há muitos anos, procedimentos para
início do século XXI, na qual noções tão atrair, aos debates, os menos experientes,
abstratas e pessoais quanto o desejo do sem que estes sofram os estigmas de sua
cidadão entram no campo político. Dese- ignorância e de sua inabilidade diante dos
jos de minorias sexuais, por exemplo, tor- acadêmicos e dos militantes. Ao reunirem
nam-se reivindicações políticas e, depois, populações heterogêneas, as experimenta-
leis. Assiste-se a uma conjunção entre ções autogestionárias obrigam seus organi-
princípios coletivistas autogestionários zadores a encontrar métodos para atenuar
e os princípios individualistas liberais, esses déficits, a fim de que as assembléias
reconhecendo-se no indivíduo um cida- não reproduzam um sistema oligárquico,
dão soberano. não mais fundado sobre o capital financei-
Representantes eleitos que estão per- ro, mas sobre o capital cultural.
dendo credibilidade acabam por entrever A autogestão foi pensada no âmbi-
a participação dos habitantes na gestão to de um elã revolucionário cujos atores
municipal. O envolvimento dos cidadãos são movidos pelo desejo da mudança. No
é percebido pelos mandatários como uma calor de uma vitória sobre seus opresso-
resposta política ao desencanto com a res, as multidões convidam-se à mesa do
democracia parlamentar. Nesse plano, a debate político; não precisam ser convida-
perenidade dos métodos participativos das. Esses são breves períodos que servem
em cidades brasileiras mostra que o enga- de referência, superando os menos espe-
jamento dos eleitores no processo inicial taculares, assinalados ao longo do tempo,
das decisões facilita a exequibilidade de como os kibutzim e as cooperativas operá-
projetos. Não há somente antecipações rias, os quais devem sobreviver ao ardor
técnicas detalhadas por parte dos futu- pela mudança desencadeada por seus fun-
ros executantes, mas estes desenvolvem dadores. Essa constatação põe-nos diante
o sentimento de que são co-autores da de uma evidência, qual seja, a de que a
decisão e das restrições que devem acei- democracia direta só se sustenta na sub-
tar. Pode-se concluir que, em meio século, jetividade da intenção. Se a democracia
as idéias autogestionárias e suas práticas direta não reunir uma parcela significativa
dispersas, em temas e terrenos, ganharam dos cidadãos envolvidos, sua legitimida-
credibilidade e foram concretizadas, não de não ultrapassará aquela dos partidos e
da maneira fulgurante que os revolucioná- dos sindicatos. Ao serem tomadas somen-
rios esperavam, mas, pouco a pouco, tanto te por um número reduzido de cidadãos
mediante a ação política, como por meio voluntários, as decisões não terão mais
de iniciativas práticas. autoridade do que aquela das democra-
Os integrantes de associações voltadas cias representativas.
à educação popular sabem, há bastante Argumentos teóricos que justifiquem
tempo, que uma das dificuldades interpos- a democracia direta não são suficientes
tas à democracia continua sendo a distri- para se sustentar um modelo que consuma
buição assimétrica do capital cultural aos muito tempo do indivíduo. Nesse sentido,
A
basta refletir-se sobre a distribuição atual envolvidas em uma decisão, mais é preciso
30
dos tempos sociais dos cidadãos, aqueles recorrer-se a uma democracia represen-
consagrados ao trabalho, à vida familiar e tativa. É nesse limiar que a autogestão é
à locomoção, não esquecendo as ativida- questionada, apresentando-se o dilema
des lúdicas. Essa dificuldade natural dos de como conservar-se a riqueza da demo-
tempos disponíveis nunca é evocada na cracia direta em outra dinâmica incontor-
abundante literatura dos anos 1970-1980 nável, a da democracia representativa. No
sobre o assunto. Já a autogestão apresen- início do século XXI, ainda surpreende o
ta-se diferentemente conforme se situe quanto certos conceitos adquiriram, em
em um mesmo espaço como a empresa ou meio século, um lugar legítimo no pensa-
na vida externa ao trabalho. Na empresa, mento e na prática democrática, abrindo
os participantes estão dispostos a discu- à necessidade de enriquecer o conceito
tir em grupo sem que isso lhes crie um com todas as realizações do planeta.
incômodo maior, pois o tempo do debate
insere-se no período de trabalho. A auto- BIBLIOGRAFIA
gestão que se efetua em espaços externos, CASTORIADIS, C. (1999), Figures du pensable: les carre-
cujos participantes precisem deslocar-se fours du labyrinthe VI, Paris: Seuil.

para encontrar os outros membros do GRET, M.; SINTOMER, M. (2002), Porto Alegre, Paris: La
Découverte.
grupo, supõe que esse tempo seja tomado
do lazer. Mesmo que os tempos de reunião GROUPE DE RECHERCHE ADMINISTRATIVES POLITIQUES ET
SOCIALES – GRAPS (1999), La démocratie locale, Paris:
sejam retribuídos, as compensações nun-
PUF.
ca serão suficientes para se concretizar o
GUILLERM, A.; BOURDET, Y. (1975), Clefs pour l'autoges-
projeto de democracia radical. tion, Paris: Seghers.
As constatações empíricas permitem
MORIN, E.; LEFORT, C.; COUDRAY, J. M. (1968), Mai
afirmar que resultados eficazes da demo- 1968: “la brèche”, Paris: Fayard.
cracia direta podem verificar-se entre um MOTHÉ, D. (1958), Journal d’un ouvrier, Paris: Éditions
número limitado de pessoas, em um espa- de Minuit.
ço público em que cada indivíduo possa ___. (1980), L’autogestion goutte à goutte, Paris: Centu-
expressar-se mediante outros recursos, rion.
além de aplausos e gritos. Quando mais ROSANVALLON, P.; VIVERET, P. (1977), Pour une nouvelle
pessoas dispersas geograficamente estão culture politique, Paris: Seuil.
B
BANCOS COMUNITÁRIOS finalidades conforme as linhas de crédito
DE DESENVOLVIMENTO definidas pelos bancos, seu maior objetivo
Genauto Carvalho de França Filho e compromisso são a construção de redes
Jeová Torres Silva Junior locais de economia solidária mediante a
articulação de produtores, prestadores de
1. Os bancos comunitários de desenvol- serviços e consumidores locais.
vimento (BCDs) podem ser definidos Tais redes são também conhecidas
como uma prática de finanças solidárias como redes de prossumidores, pelo fato de
de apoio às economias populares situa- associarem produtores e consumidores
das em territórios com baixo índice de locais por meio do estabelecimento de
desenvolvimento humano. Estruturados canais ou circuitos específicos de rela-
a partir de dinâmicas associativas locais, ções de troca, o que implica uma ruptura
os BCDs apóiam-se em uma série de fer- com a clássica dicotomia entre produção
ramentas para gerar e ampliar a renda no e consumo, característica da lógica capi-
território. Para tanto, articulam-se quatro talista de organização do funcionamento
eixos centrais de ações em seu processo de econômico. A construção de redes des-
intervenção: fundo de crédito solidário, se tipo materializa a expressão concreta
moeda social circulante local, feiras de de uma outra economia nos territórios,
produtores locais e capacitação em eco- a forma encontrada para se fortalecerem
nomia solidária. Diferente das práticas de as economias locais, reorganizando-as na
microcrédito convencionais, orientadas direção de um outro modo de promover o
à pessoa ou organização individual, os desenvolvimento, com base nos princípios
BCDs preocupam-se com o território ao da economia solidária. Os BCDs afirmam-
qual pertencem, seja ele uma comunidade, se como partícipes de um movimento de
um bairro, seja um pequeno município. economia solidária, seja atuando no âmbi-
Nesse sentido, os BCDs procuram inves- to dos fóruns regionais e nacionais desse
tir simultaneamente nas capacidades de movimento, seja na constituição de sua
produção, geração de serviços e consumo própria rede, a rede brasileira de bancos
territorial. Para tanto, financiam e orien- comunitários.
tam a construção de empreendimentos
socioprodutivos e de prestação de servi- 2. Uma das condições indispensáveis à
ços locais, bem como o próprio consumo criação de um BCD diz respeito à mobi-
local. Isso porque, para além da dissemi- lização endógena do território, embo-
nação de microcréditos com múltiplas ra haja várias possibilidades de arranjo
B
institucional nesse sentido, mediante mo local pautam-se sob juros justos, que
32
aportes de recursos de outras instituições. possibilitam a geração de renda e oportu-
Em outras palavras, o início de um BCD nidades de trabalho a toda a comunidade;
deve se dar a partir do desejo intrínseco da c) a concessão e cobrança dos emprésti-
comunidade, ainda que existam motivação mos baseiam-se em relações de vizinhan-
e processos de estimulação por parte de ça e domesticidade, impondo um contro-
agentes externos. De todo modo, alguns le muito mais social que econômico; e d)
requisitos devem ser atendidos, tais como a criação de instrumentos alternativos de
a disponibilidade de: capital financeiro incentivo ao consumo local – cartão de
para o fundo de crédito; recurso financei- crédito e moeda social circulante local – é
ro para pagamento das despesas operacio- reconhecida por produtores, comercian-
nais do banco; organização comunitária tes e consumidores como meio eficaz para
(associação, fórum, conselho, etc.) que a dinamização da economia local.
possa assumir a gestão do banco; pessoas
capacitadas para as funções de agente de 3. Na origem dos BCD, encontra-se a
crédito e gerente de crédito; e assessora- experiência do Banco Palmas, ocorrida
mento para assimilação da tecnologia pela em Fortaleza, no Brasil (FRANÇA FILHO e
comunidade. SILVA JÚNIOR, 2006). Esse banco foi criado
Outro aspecto salutar ao funciona- em 1998, como fruto da ação da Associa-
mento dos BCDs é a existência de garan- ção de Moradores do Conjunto Palmeiras
tia e controle baseados nas relações de (ASMOCONP) no processo de construção
proximidade e confiança mútua, ou seja, do próprio bairro e melhoria das condi-
um BCD considera o cadastro formal do ções de vida naquele espaço. Mais parti-
tomador de empréstimo apenas como um cularmente, a idéia de um banco comuni-
registro para o conhecimento de sua vida tário delineou-se em face da constatação
na comunidade. O agente de crédito do de que as condições de infra-estrutura
banco consulta assim a rede de relações de urbana no bairro haviam avançado, porém
vizinhança como fonte de conhecimento. os problemas de falta de renda e oportu-
Por sua vez, a cobrança do crédito ocorre nidades de trabalho permaneciam muito
mediante a introdução de um sistema de significativos. Os êxitos obtidos por essa
controle social extremamente inédito: são experiência, em termos de geração de ren-
os próprios moradores do território que da e redução da exclusão local, atribuíram
passam a exercer um mecanismo de pres- alto grau de reconhecimento institucional
são moral sobre os demais. à iniciativa. Diante dos apelos à replicação
Em suma, quatro características resu- dessa metodologia, foi criado, em 2003,
mem a especificidade dos BCDs enquanto o Instituto Palmas de Desenvolvimento
experiência de finanças solidárias segun- e Socioeconomia Solidária, no intuito de
do a própria visão da rede brasileira de implantar tecnologias sociais de economia
BCD: a) a coordenação do banco e a ges- solidária em parceria com diversas insti-
tão dos recursos são efetuadas por uma tuições no Brasil.
organização comunitária; b) as linhas de A repercussão das ações do Institu-
microcrédito para a produção e o consu- to Banco Palmas no sentido de replicar a
B
metodologia do banco comunitário ini- para a produção, consumo e desenvolvi-
33
ciou ao final de 2004, com a implantação mento local. Não obstante, diferente do
do Banco PAR, em Paracuru, CE. No ano governo venezuelano, o governo brasilei-
seguinte, o Ministério do Poder Popu- ro não constituiu ainda um marco legal
lar para a Economia Popular (MINEP), ou garantiu recursos para o fundo de cré-
do Governo da Venezuela, aproximou-se ditos desses bancos comunitários. Essa
do Instituto Banco Palmas e demons- dificuldade foi parcialmente superada
trou interesse em transpor a experiência no início de 2006, quando outro parcei-
dos Bancos Comunitários àquele país. O ro juntou-se à iniciativa, o Banco Popular
modelo de banco comunal/comunitário do Brasil (subsidiário do Banco do Brasil
foi assumido como política pública de para o segmento de microcrédito e cor-
desenvolvimento pelo governo venezuela- respondente bancário). Essa instituição
no. No ano seguinte, em maio de 2006, foi passou a agir no suporte às iniciativas de
aprovada a Lei dos Conselhos Comunais, bancos comunitários mediante o aporte
que estabeleceu os bancos comunais como de recursos financeiros à constituição do
administradores de recursos outorgados fundo de crédito do Banco Comunitário.
pelo executivo para desenvolvimento de O Projeto de Apoio à Implantação e
projetos locais. Em 2008, já se computa- Consolidação de Bancos Comunitários
vam algumas dezenas de bancos comunais teve um efeito importante na ampliação
em todo o país, estimulados por uma série dos BCDs enquanto tecnologia social
de programas governamentais, mas con- para o desenvolvimento socioeconômico
duzidos principalmente pelo Ministério de territórios. Em outras palavras, o Pro-
do Poder Popular para a Economia Comu- jeto funcionou como um amplificador das
nal (MINEC). parcerias e como catalisador de esforços
O Governo Federal brasileiro, sob para tornar os bancos comunitários uma
orientação da Secretaria Nacional de referência de política de incentivo à gera-
Economia Solidária (SENAES/MTE), tam- ção de trabalho e renda para populações
bém tem entendido o BCD como produto excluídas socialmente. Isso fica evidente
catalisador das ações do desenvolvimento quando se constata uma série de ações e
territorial ao articular, simultaneamente, parcerias estabelecidas entre essas orga-
produção, comercialização, financiamen- nizações e os órgãos dos governos fede-
to e formação cidadã. As ações governa- ral, estadual e municipal desde fins de
mentais iniciaram em 2005, quando a 2005. Dado esse esforço, até o primeiro
SENAES decidiu investir no Projeto de semestre de 2008 já estavam implantados
Apoio à Implantação e Consolidação de cerca de 30 BCDs em diferentes cidades
Bancos Comunitários, proposto pelo brasileiras.
Instituto Palmas. Desse modo, a SENAES Ainda será necessário haver o aperfei-
passou a atuar, juntamente com o Insti- çoamento processual para que os BCDs
tuto Palmas, no apoio à organização de possam se multiplicar de modo susten-
bancos comunitários a fim de consolidar tável, constituindo-se em uma política
essa metodologia e torná-la referência de pública eficaz de mitigação das desi-
política nacional de incentivo ao crédito gualdades sociais e de desenvolvimento
B
socioeconômico de um território. Três Nesse tipo de economia, perde sentido
34
grandes aspectos devem ser observados a consideração da oferta e demanda como
para a consolidação dos BCDs: 1) identi- entidades abstratas, do mesmo modo que
ficação e captação de recursos de fundos a competição deixa de ter importância
que alimentem as linhas de crédito do nessa lógica. O objetivo da rede é instituir
BCD; 2) estabelecimento de infra-estru- a ruptura com a dicotomia habitual entre a
tura tecnológica que torne mais eficientes produção e o consumo, estimulando a livre
e eficazes as operações do banco comuni- associação entre produtores e consumido-
tário; e 3) utilização de linhas de fundos res (ou prestadores de serviços e usuários)
públicos para viabilizar projetos socioeco- e permitindo a afirmação do conceito de
nômicos locais por meio da metodologia prossumidores. Nessa economia de prossumi-
dos bancos comunitários. Quando esta dores, a regulação ocorre via debates públi-
última meta passar a ser executada, con- cos concretos travados no espaço associa-
tando com um amparo legal próprio, juros tivo, em um exercício de democracia local
mais baixos e mecanismos apropriados às em que os próprios moradores planejam e
experiências de microfinanças, será dado decidem sobre a oferta de produtos e/ou
um passo definitivo na consolidação da serviços (ou seja, a criação de atividades
metodologia de BCDs enquanto política socioeconômicas) em função das deman-
pública. das efetivas identificadas anteriormente
por eles próprios. O estímulo à criação de
4. Cabe indagar se os BCDs expressam fóruns locais torna-se comum na prática
uma outra economia e se estão contri- dos BCDs, a exemplo do fórum econômi-
buindo para um outro modo de desenvol- co local (Fecol), do bairro do Conjunto
vimento possível. Em primeiro lugar, os Palmeiras, em Fortaleza.
BCDs têm vocação a promover uma cons- Finalmente, a edificação conjunta da
trução conjunta da oferta e da demanda. oferta e da demanda como característica-
Eles materializam uma iniciativa associa- chave dessa outra economia estimulada
tiva envolvendo moradores, em um deter- pelos bancos comunitários supõe haver
minado contexto territorial, que buscam a ainda, no nível da ação, uma articulação
resolução de problemas públicos concre- fina entre dimensões socioeconômica e
tos relacionados à sua condição de vida no sociopolítica. A elaboração das atividades
cotidiano, por meio do fomento à criação socioprodutivas conjuga-se a uma forma
de atividades socioeconômicas. Nesse de ação pública: trata-se de moradores
sentido, o estabelecimento de atividades em um determinado território debaten-
ou oferta de serviços dá-se em função de do politicamente seus problemas comuns
demandas reais expressas pelos morado- e decidindo seu destino. Esse processo é
res de certo local. A idéia visa estimular, coerente com o fato de que o banco comu-
no território, a concretização de um cir- nitário, enquanto vetor de desenvolvi-
cuito integrado de relações envolvendo mento socioeconômico da rede, inscreve-
produtores ou prestadores de serviços em se em uma dinâmica associativa local. Tais
articulação com consumidores ou usuá- iniciativas têm vocação a constituírem-se
rios de serviços. também como formas inéditas de espaço
B
público em seus respectivos territórios comunitária própria à sua dinâmica orga-
35
de pertencimento, ensejando a idéia de nizativa. Trata-se de iniciativas sem fins
espaços públicos de proximidade (LAVILLE, lucrativos, voltadas para o desenvolvimen-
1994). to do território onde se situam mediante o
Em segundo lugar, devido à natureza envolvimento dos próprios moradores na
dos serviços prestados, assim como a suas autogestão da iniciativa e na oferta de pro-
fontes bastante diversificadas de geração dutos e serviços diretamente vinculados às
e captação de recursos, os BCDs agen- reais necessidades da população local. Em
ciam diferentes lógicas em sua dinâmica suma, a utilidade social dos bancos comu-
de funcionamento. Tais lógicas remetem nitários reside no fato de constituírem-se
a distintos princípios do comportamento em organizações radicalmente distintas
econômico quando se adota uma concep- de outras. Seu modo de atuar no território
ção plural acerca do funcionamento da marca sua singularidade. Esta se baseia em
economia real. Essa concepção opõe-se à relações de proximidade e na mobilização
interpretação habitual da economia sem- de valores e princípios como exigências
pre como sinônimo exclusivo de econo- básicas para a sua prática, tais como a con-
mia de mercado. Ao contrário, os BCDs fiança mútua, a participação cidadã ou os
promovem uma hibridação de princípios mecanismos de solidariedade redistribu-
econômicos diversos entre economias tiva. Seu papel institucional é de grande
mercantil, não-mercantil e não-monetá- relevância para o território, não podendo
ria (LAVILLE, 1994). É assim que a susten- ser desempenhado de igual maneira por
tabilidade nesse tipo de iniciativa articula outro ente qualquer, seja ele uma empre-
diferentes fontes de geração e captação sa, uma organização não-governamental,
de recursos (consubstanciado na idéia do seja o próprio poder público.
fundo solidário de investimento comu- É precisamente esse caráter de uti-
nitário): mercantil, pela prestação de lidade social ou comunitária dos BCDs,
alguns serviços; não-mercantil, mediante inscrito ainda em uma lógica de constru-
a captação de recursos junto a instituições ção conjunta da oferta e da demanda (ou
públicas governamentais e não-gover- de fomento à criação de um sistema local
namentais, permitindo subsidiar muitas de prossumidores), que permite situar a
operações e serviços; e não-monetária, natureza de alguns de seus serviços como
por meio de contribuições voluntárias e prestações mercantis não-concorrenciais.
da própria lógica solidária, traduzida em Nesses termos, a atuação de um banco
um modelo de garantia e controle social comunitário, enquanto organização que
dos empréstimos fundamentado em rela- envolve os próprios moradores na con-
ções de cooperação e confiança. dição ao mesmo tempo de profissionais
Com base nesse mecanismo plural de remunerados, gestores do empreendi-
sustentabilidade, cujo equilíbrio de ges- mento e usuários ou beneficiários diretos
tão deve ser preservado em nome, acima dos produtos ou serviços ofertados, cria
de tudo, do imperativo solidário como uma mais-valia social no seu território. Esse
registro maior de sua ação, os BCDs afir- aspecto relevante vem somar-se ao fato
mam ainda a condição de utilidade social ou de os BCDs atuarem em um campo de
B
atividades cujas demandas não são satis- sociabilidade a partir de novas formas de
36
feitas nem pelo mercado, nem pelo Esta- relações econômico-produtivas; logo, os
do. Por mais-valia social, devem-se con- serviços financeiros solidários ofertados
siderar os benefícios diretos e indiretos por um banco comunitário, mesmo quan-
advindos da atuação de um BCD por meio do envolvem trocas mercantis, não podem
da prioridade à geração de trabalho e cir- ser postos em situação de concorrência
culação da renda no próprio território. com outros entes públicos ou privados.
Na avaliação de tais benefícios, deve-se O reconhecimento da especificidade des-
considerar ainda uma dimensão qualitati- sas formas de organização torna-se então
va fundamental oriunda de sua prática: a uma questão de suma importância para
contribuição para a formação e qualifica- seu desenvolvimento institucional.
ção das pessoas, bem como para o forta-
lecimento do tecido social local mediante BIBLIOGRAFIA
novos padrões de sociabilidade calcados FRANÇA FILHO, G.; LAVILLE, J.-L. (2004), Economia soli-
na disseminação de valores como confian- dária: uma abordagem internacional, Porto Alegre:
Editora da UFRGS.
ça, lealdade e solidariedade.
A ousadia de um BCD reside na busca FRANÇA FILHO, G.; SILVA JÚNIOR, J. (2006), Uma experi-
ência emblemática no Nordeste brasileiro. In: FRAN-
pela restauração de laços e vínculos sociais
ÇA FILHO, G.; LAVILLE, J-L.; MEDEIROS, A.; MAGNEN, J. P.
seriamente degradados pelas condições (Org.), Ação pública e economia solidária: uma perspecti-
mais gerais de vida das pessoas localiza- va internacional, Porto Alegre: EDUFRGS; Salvador:
das em bairros populares, por meio de Edufba.
um novo tipo de relação com o dinheiro LAVILLE, J.-L. (Org.) (1994), L’économie solidaire:
e de organização da vida econômica local. une perspective internationale, Paris: Desclée de
Essa relação constrói um novo tipo de Brouwer.
B
BENS PÚBLICOS MUNDIAIS pelo Estado, seria amplamente retomada
Philip Golub 37
e aprofundada pela análise econômica.
Jean-Paul Maréchal Atualmente, distinguem-se no geral
duas categorias de bens de consumo: os
1. Os bens públicos mundiais são aqueles bens privados e os bens públicos. Os pri-
basilares para a humanidade. Concernem meiros são os “que podem ser divididos
à preservação da natureza, recursos natu- entre os diferentes indivíduos”, ao pas-
rais, ar puro, água, patrimônio mundial so que os segundos são aqueles “de que
e paz, à prevenção e erradicação das epi- todos se beneficiam conjuntamente, sen-
demias mundiais, à promoção da solida- do que o consumo de um bem desse tipo
riedade internacional, no caso de crise por uma pessoa não vem em prejuízo do
humanitária, e, de forma geral, dizem consumo desse bem por outra pessoa”
respeito a qualquer fenômeno que ultra- (SAMUELSON, 1966, p. 1223). Em outras
passe fronteiras nacionais. A globalização palavras, diferentemente do que se obser-
neoliberal implica resultados catastró- va quanto a um bem privado – tal como a
ficos tanto no plano societário, quanto gasolina ou os legumes –, o consumo de
no ambiental. Conforme resume Stiglitz um bem público por um agente econô-
(2002, p. 279), Prêmio Nobel de Eco- mico – como, por exemplo, a iluminação
nomia em 2002 e ex-economista-chefe de uma rua ou um ambiente de quali-
do Banco Mundial, “a globalização não dade – não diminui em nada a quantida-
funciona. Não funciona para os pobres de disponível do bem em questão para os
do mundo. Não funciona para o meio outros agentes econômicos.
ambiente. Não funciona para a estabilida- Um bem público (ou coletivo) será
de da economia mundial.” Tal diagnóstico chamado de puro se detiver as proprie-
remete sobretudo à produção insuficien- dades de não-exclusão e não-rivalidade.
te de bens públicos e, em particular, de Mediante a primeira expressão, entende-
bens públicos mundiais. se que nenhum agente econômico pode
ser excluído do benefício da produção
2. A noção de bens públicos remon- do bem; pela segunda, estabelece-se que
ta pelo menos à escola clássica inglesa. o consumo do bem por uma pessoa não
Adam Smith, nos anos 1770, atribuiu ao diminui em nada a possibilidade de que
poder público um triplo dever: garantir outra o faça.
a defesa nacional e a justiça e prover o A defesa nacional constitui o exem-
financiamento “dos trabalhos e das ins- plo perfeito de um bem público puro, na
tituições que facilitam o comércio da medida em que cada novo cidadão (todos
sociedade”. Os primeiros constituiriam os dias nascem cidadãos) dela se benefi-
as infra-estruturas rodoviárias e portuá- cia (não-exclusão) sem que isso diminua
rias, ao passo que as instituições mate- em nada o nível de proteção desfrutado
rializar-se-iam nos estabelecimentos de pelos outros membros da coletividade
ensino elementar (SMITH, 1995, Livro nacional (não-rivalidade). Além da defesa
V, cap. I). Essa tese, segundo a qual um nacional, os bens públicos mais frequen-
conjunto de bens deveria ser fornecido temente citados são a segurança nacional,
B
a pesquisa fundamental (diferentemente etc.) e imateriais (conhecimentos, etc.);
38
da pesquisa aplicada, que pode ser objeto sua dimensão espacial – do local (ruído,
de patenteamento), os programas de luta etc.) ao planetário (ozônio estratosférico);
contra a pobreza, as políticas de estabi- ou sua dimensão intemporal (maior ou
lização, a regulamentação trabalhista, a menor irreversibilidade) (HUGON, 2003,
redistribuição de renda, as normas e con- p. 20). O primeiro e mais importante dos
venções – inclusive da língua e unidades bens públicos é, naturalmente, a paz.
de medida. Existe um grande número de A necessidade de se produzirem esses
bens públicos que não são puros, dividi- bens coletivos internacionais revela-se
dos entre bens mistos (ou bens de clube) e bens problemática devido à ausência de uma
comuns. Nos primeiros, a exclusão é possí- autoridade transnacional. Às falhas do
vel, embora não sejam rivais, a exemplo da mercado, que justificam a intervenção
auto-estrada ou do parque natural. Já nos estatal, acrescentam-se, no caso dos bens
segundos, nenhuma exclusão pode ser públicos internacionais, e a fortiori globais,
considerada, conquanto sejam rivais. as falhas dos próprios Estados, pois o que
A particularidade essencial dos bens é verdadeiro para os agentes econômicos
públicos reside no fato de, sendo não- em uma economia nacional (ou seja, os
rivais e não-exclusivos, não poderem ser comportamentos oportunistas) também
produzidos pelos mecanismos mercantis o é para os Estados no que tange às rela-
tradicionais. Uma vez que consumidor ções que mantêm entre si.
racional algum está disposto a pagar por Esse duplo fracasso – do mercado e
um bem do qual possa beneficiar-se gra- dos Estados – motiva, segundo Hugon, a
tuitamente – situação em que é chamado definição de duas áreas de bens públicos
passageiro clandestino –, nenhuma empresa mundiais. A primeira, oriunda dos fra-
desejará assegurar tal produção. É essa cassos dos mercados, concerne aos bens
“falha” do mercado em fornecer esses coletivos puros (resultantes da pesquisa
bens (e serviços), úteis a todos, que torna fundamental, erradicação das epidemias,
indispensável a intervenção do Estado. recursos genéticos, não-reforço ao efeito
Via impostos, este é o único agente econô- estufa, etc.), aos bens de clube (direitos
mico em condições de obrigar os cidadãos de propriedade industrial, conhecimen-
a financiar a produção desses bens. tos técnicos, etc.) e a certos bens comuns
Concebida inicialmente por Adam (recursos haliêuticos e outros). A renova-
Smith para o âmbito da economia nacio- ção destes últimos encontra-se em perigo
nal, a noção de bens públicos foi trans- devido à rivalidade crescente de que são
posta, nos últimos anos, para o nível objeto. A segunda área, engendrada pelas
internacional. Nessa dinâmica reside o falhas dos Estados, é muito diferente da
porquê das expressões bens públicos interna- anterior: “Trata-se das funções regalianas
cionais, mundiais ou globais, podendo estes e reguladoras do Estado que não podem
ser definidos segundo critérios distintos. ser asseguradas por Estados em um terri-
Tais parâmetros podem referir-se a: suas tório nacional. Trata-se de bens tutelares
características intrínsecas – bens naturais nacionais em vias de regionalização ou de
(água, etc.), artificiais (medicamentos, globalização devido ao transbordamen-
B
to das fronteiras e dos espaços de ação da escola neo-realista estadunidense, a
39
política: educação, saúde, segurança físi- cooperação não implica absolutamente
ca ou alimentar, estabilização financeira” a harmonia ou a convergência dos inte-
(HUGON, 2003, p. 40). resses dos diferentes atores estatais, mas
Essas duas séries de falhas geram a apenas o ajuste de seus comportamentos
necessidade de elaborarem-se regras respectivos. Embora a concentração do
internacionais coercivas. Tal exigência poder nas mãos de um Estado dominante
indica, aliás, a existência de uma terceira engendre ordem, sua manutenção dura-
falha, pois as regras em questão são igual- doura relaciona-se estreitamente à capa-
mente um bem público mundial. Diante cidade de essa potência conservar uma
dessas incapacidades sucessivas dos Esta- posição hegemônica. Conforme tal racio-
dos e dos mercados, deve-se identificar a cínio, o declínio desse Estado só pode
ou as fontes de autoridade capazes de per- induzir à anarquia – a ausência de gover-
mitir a implantação de regimes de gover- nança, formal ou não, em escala mun-
nança que garantam a produção dos bens dial – e favorecer o conflito, por exemplo,
públicos internacionais. mediante a constituição de blocos rivais.
À potência hegemônica, é atribuído
3. Sob o prisma teórico neo-realista das o papel de institucionalizar regimes de
relações internacionais, a criação de bens governança internacionais a fim de asse-
coletivos internacionais pode, e deve, gurar a estabilidade e a continuação do
ser assumida por um hegemon. Segundo sistema capitalista em sua totalidade.
Kindleberger (1986), fundador da teoria Ela estabelece as normas e as restrições
da “estabilidade hegemônica”, nume- do sistema, age como estabilizador em
rosos autores neo-realistas, partindo último recurso no caso de falha dos mer-
de uma análise dos ciclos hegemônicos cados e garante a paz, condição indis-
sucessivos britânico e americano, julgam pensável para o funcionamento e expan-
que a estabilidade do sistema interna- são dos mercados. Essa teoria pressupõe
cional depende da intervenção de uma que o hegemon seja um ator racional com
potência predominante. Esta deve ter objetivos unificados e que os objetivos
condições e vontade de manter uma em questão avancem infalivelmente no
ordem internacional liberal, mediante sentido do bem comum. Ora, isso não se
a aplicação de um conjunto de regras, verifica nem no plano empírico nem no
normas e disciplinas às relações interes- plano teórico. Além de a hegemonia não
tatais. Nessa perspectiva, o hegemon é pro- constituir absolutamente uma condição
dutor de bens públicos internacionais na necessária e suficiente para a coopera-
medida em que a ordem que ele constitui ção (KEOHANE, 1984), a teoria da estabi-
garante não somente a paz e a segurança, lidade hegemônica comporta três falhas
bens públicos essenciais, mas também a significativas.
manutenção de um sistema econômico Primeiramente, ela negligencia o fato
internacional aberto e cooperativo. Há de que hegemonia é, desde a Revolução In-
que se ter reservas quanto ao sentido dustrial européia, simultaneamente a cau-
deste último adjetivo. No vocabulário sa e a consequência da divisão desigual do
B
mundo entre centros dominantes e pe- historicamente contextualizados dos gru-
40
riferias dependentes e dominadas. Como pos sociais dominantes. Essa é a razão da
salienta Braudel (1985, p. 96), “o centro crítica vigorosa de Ashley (1984, p. 239),
[é] a ponta dominante, a superestrutura para quem o neo-realismo funda-se em
capitalista do conjunto da construção. um “modelo histórico cujas coalizões
Como há reciprocidade das perspectivas, dominantes encontram uma justificativa
se o centro depende dos abastecimentos para legitimar e obter o consentimento
da periferia, esta depende das necessida- para seu reinado precário.”
des do centro, que lhe dita sua lei”. Ainda Em terceiro lugar e em decorrência
que a pax britannica tenha se traduzido por das razões acima, a teoria da estabilidade
um longo período de paz interestatal e de econômica cala-se completamente quan-
expansão econômica na Europa, o impe- do o próprio hegemon torna-se fonte de
rialismo da livre-troca engendrou uma instabilidade sistêmica e de guerra, como
hierarquia desigual entre o centro euro- ocorre atualmente. Ela se revela incapaz
peu e as periferias, a qual, mutatis mutandis, de explicar, menos ainda de prever, os
perdura em suas linhas gerais ainda hoje. momentos em que o poder hegemônico
No caso dos Estados Unidos, a hegemonia desmantela os regimes de governança, os
pós-1945 não deu lugar à constituição de quais ele próprio instaurou, e questiona
um império no sentido principal do termo a ordem internacional que ele suposta-
– “territorial” –, e a esfera da cooperação mente comanda. Neste caso, rui a hipó-
hegemônica abrangeu, de fato, apenas os tese de que uma distribuição do poder
países capitalistas desenvolvidos. hegemônico propicia a instituição ou
Em segundo lugar, naturalizando o permanência de regimes liberais, coope-
status quo, a teoria da estabilidade econô- rativos e estáveis.
mica exclui possibilidades de transfor-
mação. Toda mutação da ordem interna- 4. Dessa constatação, sucede ser neces-
cional constituída pelo hegemon, a saber, sário identificar-se uma fonte de autori-
toda difusão ou redistribuição do poder, dade democrática que possa assegurar a
aumenta por definição o risco de anar- produção de bens públicos globais. Con-
quia, ao passo que a manutenção do status quanto tal fonte não exista atualmente,
quo hegemônico continua sendo a prin- sobejam reflexões sobre o tema, como
cipal condição da paz. Desse modo, um provam os trabalhos de autores tão dife-
sistema multipolar ou descentrado será rentes quanto Rawls, Walzer, Habermas
considerado a priori mais instável e perigo- ou Ikenberry. Independentemente des-
so do que uma ordem hegemônica a qual, sas teorias – bem examinadas por Golug
supostamente, inibe as rivalidades (KAGAN, e Maréchal (2004) –, os princípios igua-
1998). A teoria tampouco reconhece a litários e imparciais enunciados na Carta
contribuição das dinâmicas e das contra- das Nações Unidas permitem imaginar
dições sociais à construção da política do uma construção institucional não-hege-
Estado hegemônico. Ora, a política inter- mônica que transcenda o âmbito interes-
nacional de um Estado não poderia expri- tatal tradicional, onde prevalecem ape-
mir nada além dos interesses particulares nas as relações de força.
B
Toda reforma que buscasse fidelida- rança econômica, social e ecológica”, cuja
41
de aos princípios fundadores dessa Carta missão seria projetar ações comuns nas
deveria, primeiramente, traduzir-se por áreas da pobreza, alimentação, migrações,
uma democratização das tomadas de deci- poluição e exploração dos recursos natu-
são e por uma redefinição das políticas rais, entre outras. Igualmente, seria preci-
recomendadas pelas instituições respon- so ainda, como reivindica Bauchet (2003,
sáveis pela orientação da globalização: o p. 82-88), conceber e adotar uma consti-
Fundo Monetário Internacional (FMI), tuição das instituições internacionais que
o Banco Mundial (BM) e a Organiza- definisse as tarefas das diversas institui-
ção Mundial do Comércio (OMC). Essa ções públicas internacionais, suas rela-
redefinição passaria por um “retorno” à ções e os princípios de suas intervenções.
motivação fundadora do FMI e do BM, em Seriam três esses preceitos: o princípio de
1944 – a construção de um mundo melhor, subsidiaridade, o princípio de regulação
por meio de uma política regulamentá- (harmonização das imposições fiscais, das
ria e redistributiva, social e democrática. condições de emprego, etc.) e o princí-
Tal reorientação terá poucas chances de pio de gestão consensual (entre poderes
estabelecer-se (mesmo que se constatem públicos e interesses privados).
certos avanços interessantes) enquanto O caminho que resta a percorrer para
os sistemas de direitos de voto que pre- se alcançar a produção de bens públi-
valecem nos órgãos diretivos dessas orga- cos globais é ainda longo e acidentado.
nizações – sistemas favoráveis aos países Ele exige políticas audaciosas que façam
ricos – não forem modificados. prevalecer a cooperação sobre a compe-
É imperativo reequilibrar-se a composi- tição, prática que nada tem de espontâ-
ção do Conselho de Segurança da Organi- neo. Como prova a construção européia
zação das Nações Unidas (ONU) para que – único exemplo atual de regionalização
ele melhor reflita a diversidade do planeta bem-sucedida e, mais ainda, de constru-
e os interesses de todos. A solução a mini- ção interestatal não-hegemônica –, esse
ma consistiria em pôr-se fim ao monopólio caminho é geralmente engendrado por
dos cinco membros permanentes, dando- grandes catástrofes. Os milhões de víti-
se voz não-simbólica mas efetiva, isto é, um mas da AIDS e a ameaça de uma mudan-
assento de membro permanente, aos gran- ça climática não parecem, por enquanto,
des países hoje excluídos das tomadas de constituir elementos suficientemente
decisão (Índia, Brasil e outros). Aprofun- graves para se demoverem os favorecidos
dando-se a reflexão, poder-se-ia se imagi- de sua visão de curto prazo. O cenário
nar um sistema de representação regional mundial indica que as avaliações desfavo-
ou sub-regional no Conselho (África, Amé- ráveis têm futuro.
rica Latina, etc.), que teria a vantagem de
compartir a tomada de decisão e de federar BIBLIOGRAFIA
os Estados. ASHLEY, R. (1984), The poverty of Neorealism. Inter-
Além dessa primeira reforma, poder- national Organization, v. 38, n. 2, p. 225-286, Sum.
se-ia apoiar, a exemplo da França, o pro- BAUCHET, P. (2003), Concentration des multinationales
jeto de criação de um “Conselho de segu- et mutation des pouvoirs de l’État, Paris: CNRS Éditions.
B
BRAUDEL, F. (1985), La dynamique du capitalisme, Paris: KINDLEBERGER, C. P. (1986), International public
42 Arthaud. goods without international government. The Ameri-
GOLUB, P.; MARÉCHAL, J. P. (2004), Hyper puissance can Economic Review, v. 76, n. 1, p. 1-13, Mar.
américaine et biens publics globaux. Géoéconomie, SAMUELSON, P. A. (1966), The pure theory of public
n. 30, été. expenditure. In: STIGLITZ, J. E. (Ed.), The collected scien-
HUGON, P. (2003), L’économie éthique publique: biens tific papers of Paul A. Samuelson, Cambridge: The MIT
publics mondiaux et patrimoines communs, Paris: Press. v. 2.
UNESCO. Publication du programme interdiscipli- SMITH, A. (1995), Enquête sur la nature et les causes de la
naire Éthique de l’Économie. richesse des nations, Paris: PUF (1.ª edição, em inglês,
KAGAN, R. (1998), The benevolent empire. Foreign 1776).
Policy, n. 111, p. 24-35, Sum. STIGLITZ, J. (2002), La grande désillusion, Paris: Fayard.
KEOHANE, R. (1984), After hegemony: cooperation and
discord in the world political economy, New Jersey;
Princeton: Princeton University Press.
C
CADEIAS PRODUTIVAS grandes avanços alcançados nas comu-
Lee Pegler nicações e na logística, que facilitaram o
desenvolvimento das cadeias, também
1. O debate relativo às cadeias produtivas abriram possibilidades para ações mais
e à perspectiva de um desenvolvimento rápidas, visíveis e coordenadas pelos tra-
mais justo e igualitário traz consigo um balhadores e pelas organizações da socie-
grande número de conceitos tradicionais, dade civil, interessadas em discutir tais
assim como algumas idéias novas e, tam- desigualdades (BRONFENBRENNER, 2007).
bém, diferentes maneiras de se conceber
o processo de desenvolvimento. Em um 2. A teoria de cadeias produtivas nasceu
sentido amplo, o sistema de cadeias produti- a partir de um conceito mais limitado de
vas apropria-se da idéia de “cadeia” (usada cadeias de fornecimento, que evoluiu para
nas ciências físicas) e aplica-a no intuito cadeias produtivas e, então, para sistemas ou
de que a produção se torne mais distri- redes de produção. Entre outras razões, isso
buída em diversos países, sendo ao mes- reflete um desenvolvimento e um enten-
mo tempo mais bem coordenada pelas dimento mais sofisticado da fluidez com
empresas e por seus gestores. O caso das que o valor é agregado aos produtos, em
grandes empresas, com poucas fábricas vários estágios de sua produção. Serviços,
próprias e longas cadeias de fornecimen- como o turismo, também podem ser anali-
to, é provavelmente o mais notório desse sados dessa forma. Outra distinção impor-
fenômeno. tante a considerar diz respeito a dois tipos
A maior dispersão, combinada à maior de cadeias produtivas: o cluster, de alcance
coordenação da produção, tem repercus- geográfico limitado, mas com uma varie-
sões fundamentais no reconhecimento dade de empresas frequentemente maior;
de direitos, nas condições de trabalho, na e o global, em que a produção é distribuída
mão-de-obra diretamente empregada e pelos continentes, terminando à mercê
nas comunidades locais. Como as relações das empresas que coordenam a cadeia.
e os direitos do trabalho apresentam-se O conceito de cluster – um grupo de
dentro de muitas dessas cadeias de forma firmas que gera benefícios mútuos via
desigual, a questão levantada por vários coordenação da produção – tem suas
estudiosos é a seguinte: essa forma de raízes nos trabalhos da antiga Economia
organização e de distribuição de direitos Neoclássica. Uma visão mais acurada das
e dividendos deve ou pode ser modifica- análises econômicas e das tendências das
da? Em uma perspectiva mais positiva, os políticas públicas mostra como os clusters
C
estiveram e deixaram de estar em voga. cional e ativista, está recheada de estudos
44
Assim, evidências da inovação e compe- e de propostas estratégicas afirmando que
titividade elevadas em certas áreas da os clusters, promovidos mais cuidadosa-
indústria na Itália e na Alemanha, duran- mente em seus aspectos sociais e como
te os anos 1970 e 1980, promoveram um dispositivos de rede, poderiam oferecer
interesse renovado nos possíveis benefí- novas e amplas oportunidades aos países
cios da coordenação interfirmas. Introdu- em desenvolvimento (UNIDO, 2006). Uma
ziram uma dinâmica de pequenas empre- questão interessante, levantada amiúde
sas e um debate em relação à nova onda de recentemente, em particular na América
industrialização, denominada especiali- Latina, vai mais além: formas cooperativas
zação flexível (PIORE e SABLE, 1984). Tais de negócio (ou clusters cooperativos) pode-
estudos, e outros mais recentes sobre o riam ajudar a assegurar que a inserção na
mesmo assunto (PALPACUER, 2000), tam- cadeia produtiva não promovesse apenas
bém sugeriram que os trabalhadores iriam o crescimento, mas também levasse a uma
beneficiar-se em termos de habilidades, divisão mais igualitária dos benefícios,
salários e força no mercado. dentro da empresa e da cadeia, inclusive
A euforia inicial suscitada por esse para aliviar a pobreza. Essas, são hipóteses
ressurgimento particular dos clusters foi desafiadoras, a indicarem que os direitos
atenuada. O abrandamento deu-se não dos trabalhadores e a governança, mais
somente em relação à potencialidade do uma vez, ocupam uma posição chave na
modelo para as empresas, mas também política e nos debates das ciências sociais.
em relação aos limitados benefícios para A organização de cadeias produtivas glo-
o trabalhador e à segmentação do merca- bais, apesar da novidade da designação,
do de trabalho, tanto dentro das firmas possui também importantes antecedentes
como no mercado de trabalho em geral. históricos e conceituais. Os insumos e os
Temas como confiança (ou capital social), produtos finais (inputs e outputs) lembram
intercâmbio de informação e aprendizado o conceito de ligações a montante e a jusan-
entre as organizações continuaram a ser te dentro da teoria de desenvolvimento. O
importantes áreas de estudo. Enquanto territorialismo das cadeias globais destaca
isso, conexões mais polêmicas surgiram o crescente alcance geográfico da produ-
entre a área das cadeias produtivas e o ção, enquanto a distinção entre os tipos
desenvolvimento, no que tange à força de conduzidos pelo comprador (buyer dri-
trabalho intrafirmas e ao potencial de res- ven) e aqueles conduzidos pelo produtor
postas organizacionais alternativas, com a (producer driven) mostra como as caracte-
finalidade de resolver problemas relacio- rísticas dos produtos podem influenciar
nados à produção e aos direitos trabalhis- a distribuição da produção, o emprego e
tas. Esses temas merecem alguma discus- as habilidades ao longo da cadeia. Nes-
são, especialmente no tocante às cadeias se nível tipológico, um bom exemplo de
produtivas globais. cadeias conduzidas pelo produtor é a de
O conceito de cluster também tem sido automóveis, na qual é mais provável que o
incorporado por muitos setores da socie- produtor conduza a cadeia, isto é, decida
dade civil. A literatura acadêmica, institu- sobre os pontos de produção. Ademais,
C
a decisão sobre a localização nos vários inserção dos países em desenvolvimento
45
mercados será relativamente fixa, por cau- nas cadeias produtivas globais segue em
sa do grande investimento de capital, e a geral o modelo hierárquico, de modo que
produção poderá depender fortemente oferece menores oportunidades para as
de trabalhadores formais, mais qualifi- empresas locais.
cados. Alternativamente, cadeias produ- O que parece ser mais importante é o
tivas como as do ramo calçadista podem nível inicial no qual a firma ou país tenham
ser conduzidas por vários compradores, sido inseridos na cadeia, além do papel
as “aranhas”, que procuram os locais de das firmas líderes da cadeia, em particular
produção ao redor do mundo, tanto para sua propensão para promover os direitos
a fabricação de peças como para a mon- trabalhistas e o desenvolvimento local.
tagem do produto final. Nesses casos, a A entrada em uma alta esfera da cadeia,
produção também é mais flexível, a qua- combinada com um relacionamento
lificação dos trabalhadores mais baixa e a participativo entre as empresas que lide-
organização do trabalho tende a ser, geral- ram, parece ser ideal, pelo menos para o
mente, mais informal. empreendedor. Além disso, essas firmas
O conceito de governança enfatiza nes- líderes não precisam ser necessariamente
se campo o fato de que algum estamento as montadoras do produto final. As firmas
da gestão está definindo o produto, bem mais importantes podem ser produtoras
como sua qualidade e o eventual merca- de insumos chave, como é o caso, no Bra-
do, o local da produção, os fornecedores e sil, dos circuitos eletrônicos das cadeias de
ainda, em última instância, a distribuição TV e DVD, ou dos compressores da cadeia
de renda dentro da cadeia. É nesse pon- de refrigeradores.
to que o sistema parece mais dinâmico, Com relação a isso, outro conceito
mais sujeito ao debate e também mais útil central na literatura é o de upgrading. As
como uma ferramenta de direito traba- categorias empregadas pelos estudiosos,
lhista e de promoção do desenvolvimen- são o upgrading de produtos, o upgrading
to local. Para as empresas integrantes de de processos e o upgrading funcional ou de
uma cadeia, a governança pode envolver rede (atinente à coordenação dentro da
um relacionamento de mercado, ou uma cadeia). Enquanto cada um desses tipos
hierarquia, definindo o poder que uma de upgrading tem diferentes implicações
firma tem, de fato, dentro da cadeia. Aqui, para os cargos, habilidades e condições
ganha interesse o fato de que, na aborda- de emprego, geralmente é observado
gem de clusters, um maior grau de interação que esses benefícios aumentam confor-
entre as firmas seja considerado um dos me a empresa assuma na cadeia papéis
benefícios mais positivos, enquanto que, funcionalmente mais importantes. A re-
na literatura sobre as cadeias produtivas levância dessa categorização torna-se
globais, as relações mais distantes entre as ainda mais clara ao se perceber que um
empresas da cadeia geralmente sugerem nível mais alto de upgrading é mais viá-
que as empresas (e a mão-de-obra) locais vel quando as firmas na cadeia exibem
podem ter melhores opções de cresci- relacionamentos mais distantes. Uma
mento (HUMPHREY e SCHMITZ, 2002). A vez que os países em desenvolvimento
C
provavelmente se inserem em hierar- qualidade, na qual até mesmo empresas
46
quias predefinidas (HUMPHREY e SCHMITZ, que fazem upgrading podem perder para
2002), dispõem de menor possibilidade de seus competidores, pode se tornar regra
upgrading e de menor aprimoramento nas (KAPLINSKY, 1998). Ao lado das diretrizes
condições de emprego, como resultado e dos acordos internacionais e nacionais,
da sua inserção em cadeias produtivas. o atual sistema da governança trabalhista
Por conseguinte, as cadeias produtivas inclui um grupo de agentes dos setores
não se livram das dificuldades fundamen- privado e público compromissado e mui-
tais quanto ao nível de igualdade e de jus- to mais transparente (HASSEL, 2008), e
tiça, evidente dentro das estruturas atuais estes parecem ter semeado certas “ilhas”
do capitalismo e resultante do processo de produção responsável (KNORRINGA,
de globalização. Em um nível conceitual 2007). No entanto, qualquer desejo de
e empírico, isso se reflete em expressões multiplicar esses exemplos pode ser total-
como high road e low road – termos que sig- mente frustrado pelo impacto crescen-
nificam estratégias para alta e baixa quali- temente dominante das estratégias das
dade dos produtos. Permanece, ao fundo, cadeias produtivas das gigantes asiáticas,
uma importante questão: até que ponto, tais como a China e a Índia, na economia
ou sob quais condições, as empresas, as mundial (ALTENBURG et al., 2008).
regiões e os países têm realmente outras
opções estratégicas? Como fato preocu- 3. Alguns estudos sobre mudanças seto-
pante, a análise de estudos de caso con- riais registraram melhorias de salário e
tinua demonstrando que a inserção e o emprego como resultado da inserção em
upgrading oferecem frequentemente con- cadeias produtivas globais (NADVI, THO-
dições de trabalho e sustento adversos, BURN, THANG et al., 2004). Ainda que esse
especialmente para mulheres e agentes equilíbrio dê-se em função do contexto,
em situações conduzidas pelo comprador ele reflete a maneira pela qual as políti-
(DOLAN, 2004). Mesmo os exemplos oti- cas governamentais afetam as decisões
mistas de inserção em cadeias produtivas de investimento e os resultados sobre
mostram que, enquanto alguns trabalha- o emprego bem como o grau em que os
dores beneficiam-se, um maior número agentes sociais são capazes de se mobili-
vivencia insegurança crescente ou maior zar e atuar. Assuntos que recebem aten-
segmentação e diferenciação, diante de ção específica na literatura a esse respeito
uma aristocracia trabalhista altamen- incluem a relevância e a aplicabilidade
te especializada (KNORRINGA e PEGLER, dos padrões da Organização Mundial do
2006). Trabalho (OIT) e da Organização de Coo-
A possibilidade de tornar o trabalho peração Econômica ao Desenvolvimen-
informal mais formal, ou de converter o to (OCED) a atividades de cooperação
trabalho decente em um conceito efetivo, entre empresas transnacionais. Além dis-
em particular nos países em desenvolvi- so, tratam da eficiência dos parâmetros
mento, está longe da realidade. O cresci- nacionais e de questões relacionadas com
mento miserável (immiserising growth), cau- a efetividade de estratégias tais como a
sado pela contínua competição com baixa negociação ética e a certificação, com
C
os padrões trabalhistas em contratos de têmico (HEROD, 2001). O relacionamento
47
negócios e com as iniciativas de respon- dos sindicatos com o crescente movimen-
sabilidade social corporativa (RSC) para to de ONGs e com as cooperativas está
a promoção de tais direitos (JENKINS et al., também sob minucioso exame, no mun-
2002). A relação entre a RSC, a redução da do global socialmente em rede (EADE e
pobreza, a inclusão social e outros direitos LEATHER, 2005).
humanos também figura como importan- Existem sinais claros de que os sindi-
te tópico de debate. catos estão selando parcerias e relaciona-
É preciso mencionar especificamen- mentos mais estáveis com as ONGs e com
te a probabilidade de que o impacto da o movimento cooperativo, tanto em âmbi-
RSC sobre a produção sustentável e jus- to local quanto internacional. Isso é muito
ta, no plano dos direitos humanos e do importante, pois diversas cadeias produti-
ambiente natural, torne-se mais a norma vas cruzam as fronteiras organizacionais,
do que a exceção, especialmente ao longo setoriais e ocupacionais. O fato de que o
de cadeias produtivas (KNORRINGA, 2007). valor esteja sendo agregado cada vez mais
De um início bastante sujeito a ceticismo, ao longo da distribuição da cadeia aponta
que consistia em solicitar aos capitalis- os desafios existentes para as estruturas
tas para monitorarem e moderarem seu dos sindicatos, por ramo de ocupação ou
próprio comportamento, a RCS tem mos- por setor. Diante disso, é promissor que as
trado sinais de maior profundidade (ao propostas de novas combinações verticais
longo da cadeia) e amplitude (tipos de e horizontais entre as estruturas represen-
atividades) no tocante à forma como as tativas, incluindo sindicatos e coopera-
firmas promovem os direitos trabalhistas, tivas, com a intenção de promover a pro-
a sustentabilidade e a inclusão na comu- dução responsável, encontrem suas raízes
nidade (KOLK e VAN TULDER, 2006). Ape- dentro das políticas e práticas de muitas
sar das crescentes evidências empíricas agências e organizações. As concepções
de que os relacionamentos trabalhistas acerca de muitas das estruturas necessá-
estáveis, representativos e participativos rias para uma melhor governança ao longo
irão melhorar significativamente a per- das cadeias produtivas estão muito mais
formance das empresas (KUCERA, 2001), claras do que há uns anos.
existe ainda a preocupação de que RSC Sob a ótica do pensamento desenvol-
possa ser também um mecanismo para vimentista, as cadeias produtivas globais
enfraquecer os sindicatos e negligenciar têm suas raízes na teoria de dependên-
a representação coletiva de trabalhadores cia. Possuem, portanto, seu lugar entre os
(JUSTICE, apud JENKINS et al., 2002). Con- expoentes dessa escola de pensamento,
frontar essa estratégia também requer moderados ou radicais. Assim, uma visão
que os sindicatos desenvolvam estruturas frankiana restrita afirmaria que os resul-
organizacionais e identidades mais efe- tados dos produtos high road, bem como
tivas, para se conectarem com os traba- os direitos trabalhistas high road, não irão
lhadores localmente e, ao mesmo tempo, disseminar-se em um mundo globalizado.
tratarem os desafios das cadeias produti- Em contrapartida, existe otimismo em
vas para os trabalhadores em um nível sis- casos como o do Leste da Ásia, de contínuo
C
upgrading das empresas no setor do vestu- HUMPHREY, J; SCHMITZ, H. (2002), How does Insertion
48 in Global Value Chains Affect Upgrading in Indus-
ário, o que poderia ser replicado se cer-
trial Clusters? Regional Studies, v. 36, n. 9, p. 231-27.
tas estruturas e parâmetros das políticas
JENKINS, R; PEARSON, R; SEYFANG, G. (Ed.) (2002), Cor-
mudassem (UNIDO, 2006; SABLE, O’ROURKE
porate Responsibility and Labour Rights; Codes of Con-
e FUNG, 2000). Exemplos onde isto ocor- duct in the Global Economy, London: Earthscan.
re, nos quais são evidentes as melhorias
KAPLINSKY, R. (1998), Globalisation, Industrialisa-
nos direitos trabalhistas, provavelmente tion and Sustainable Growth: The Pursuit of the Nth
permanecerão minoritários (KNORRINGA Rent, IDS Discussion Paper, n. 365.
e PEGLER, 2006). Os movimentos sociais, KNORRINGA, P. (2007), Reach and Depth of Respon-
com o seu contínuo aprofundamento e sible Production: Towards a Research Agenda, Paper
ampliação, nos planos local e internacio- for Workshop on Global Production Networks and Decent
Work: Recent Experience in India and Global Trends, ILO/
nal, por meio de sindicatos, cooperativas
IILS, Bangalore, India.
e redes, são vitais para o progresso nesse
KNORRINGA, P; PEGLER, L. (2006), Globalisation, Firm
sentido. O uso ativo da análise de cadeias
Upgrading and Impacts on Labour, TESG – Jour-
produtivas, para avaliar pontos de dificul- nal of Social Geography, Special Issue, v. 97, n. 5, p.
dade e de desigualdade e para a construção 468-477.
de estratégias coordenadas, contribuirá KOLK, A.; VAN TULDER, R. (2006), Poverty Alleviation
consideravelmente para outra economia, as Business Strategy? Evaluating Commitments of
mais justa. Frontrunner Multinational Corporations, World
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Economy, London: Routledge, p. 83-99. DO/COMPID Programme, Vienna.
C
CAPITAL SOCIAL nas idéias da obra de Robert Putnam, que
Susana Hintze 49
o utilizou para analisar o desempenho ins-
titucional na Itália a partir dos anos 1970.
1. O capital social refere-se, em um senti- Em 1994, um ano depois da sua publica-
do amplo, às características da organiza- ção em inglês, já havia uma tradução ao
ção social que facilitam a cooperação e a espanhol do livro Making Democracy Work,
coordenação em prol do benefício mútuo, seu trabalho mais influente sobre o tema.
como, por exemplo, o compartilhamento Não se deve deixar de reconhecer a
de redes, a confiança e as pautas de reci- ascendência dos organismos internacio-
procidade. Esse conceito é um exemplo nais, como o Banco Mundial e o Banco
emblemático da maneira como se cons- Interamericano de Desenvolvimento, na
troem e popularizam formas de interpre- utilização do conceito, sobretudo referin-
tação do âmbito social. Periodicamente, do-se às condições de vida dos grupos vul-
utilizam-se, nas ciências sociais, alguns neráveis. Para o caso da América Latina, os
conceitos que se referem a modos especí- estudos sobre o capital social, tanto aca-
ficos de organização das relações sociais, dêmicos quanto aqueles produzidos pelos
respondendo a diferentes objetivos, pers- organismos internacionais de financia-
pectivas ou enfoques sobre elas. A partir mento, em sua grande maioria, apresenta-
das críticas pós-modernas às grandes teo- ram o conceito como um ativo dos setores
rias e, especialmente, ao marxismo – por pobres, o qual poderia agir como mecanis-
suas limitações para incorporar, à sua mo para superar ou, pelo menos, aliviar tal
teoria, dimensões como a subjetividade, a condição. O conceito foi usado por Loury
cultura e o comportamento cotidiano dos em 1977 para referir-se aos recursos ine-
sujeitos àquele movimento cíclico –, acres- rentes às relações familiares que resultam
centa-se ainda a preocupação em encon- mais úteis ao desenvolvimento cognitivo
trarem-se conceitos capazes de relacionar das crianças ou dos adolescentes (HER-
os níveis micro e macro da reprodução REROS e DE FRANCISCO, 2001). Desde os
social. Entre eles, se encontra o conceito anos 1960, essa definição foi utilizada
de capital social. por James Coleman e discutida no livro
A Reprodução, de Pierre Bourdieu, no
2. É comum a literatura sobre capital começo dessa década.
social estipular seus antecedentes na obra Ambíguo, conceitualmente equívo-
A Democracia na América (1835/1840), de co, imprecisamente definido, condutor
Alexis de Tocqueville, que ressaltava a de raciocínios circulares, polissêmico,
importância das associações cívicas na novo nome para questões amplamente
conformação de instituições democrá- trabalhadas pela Sociologia e pela Antro-
ticas estáveis e eficazes (PUTNAM, 1994). pologia (HERREROS e DE FRANCISCO, 2001;
Não obstante, o conceito de capital social, LECHNER, 2000; PORTES, 1999; SMITH e
formulado por autores dos países capita- KULYNYCH, 2002), são algumas das ressal-
listas avançados, adquiriu credibilidade vas feitas sobre o conceito, paralelamente
nas ciências sociais latino-americanas na à sua ampla aceitação. Sob o ponto de vis-
década de 1990, principalmente balizado ta metodológico, objeta-se à dificuldade
C
de encontrar indicadores que permitam adquirir autonomia –, a cuja reprodução
50
operacionalizá-lo na pesquisa empírica. contribui.
Conforme Portes (1999), a populari- Bourdieu retomou os atributos do
dade do conceito (“parcialmente exagera- capital em seu sentido convencional:
da”, segundo suas palavras) justifica-se por acumulação, investimento, manutenção,
sua capacidade de acentuar “fenômenos rendimento, mobilização e concentra-
reais e importantes”. O exagero provém ção, utilizando-se de um conceito para
do fato de que não são fenômenos novos, referir-se aos proprietários do capital: “O
tendo já sido estudados: “[...] denominá- capital social é o conjunto dos recursos
los capital social é, em maior medida, ape- atuais ou potenciais vinculados à posse
nas uma forma de apresentá-los com uma de uma rede duradoura de relações mais ou
embalagem conceitual mais atraente”. menos institucionalizadas de interconhe-
Preocupado com a utilização dada ao con- cimento e inter-reconhecimento; ou, dito
ceito nas literaturas científica, jornalística de outro modo, à pertença a um grupo”, no
e política e na linguagem cotidiana, esse qual seus membros estão unidos por “vín-
autor acrescenta que “[...] estamos aproxi- culo permanentes e úteis” que se baseiam
mando-nos de um ponto em que o capital em intercâmbios materiais e simbólicos
social é aplicado a tantos fatos e em tantos (BOURDIEU, 2001).
contextos diferentes que ele perde qual- O volume do capital social depende da
quer sentido distintivo que poderia che- extensão da rede e dos recursos que seus
gar a ter” (PORTES, 1999). Soma-se a isso componentes possuam. A rede de víncu-
a convicção de haver poucas razões para los é o resultado de estratégias de inves-
se supor que o capital social oferecerá timento social destinadas, consciente
solução aos grandes problemas sociais, tal ou inconscientemente, à instituição ou à
como registram algumas versões derivadas reprodução de relações sociais utilizáveis.
da análise de Putnam. Portes considera Segundo o autor, o capital social não é
que, enquanto “denominação abreviada algo espontâneo – nem “algo que é dado
das consequências positivas da sociabili- socialmente” –, ao contrário (do mesmo
dade”, o conceito tem “um lugar definido modo que o capital convencional, poder-
na teoria sociológica”. se-ia acrescentar), é o resultado de uma
construção que supõe haver importan-
3. Antes de sua vasta difusão nas versões tes investimentos materiais, simbólicos e
atuais – e tendo uma perspectiva distin- esforços que implicam outros gastos. Sua
ta –, o conceito havia sido formulado por utilidade é vista nos benefícios materiais e
Pierre Bourdieu, relacionando-o a preo- simbólicos (o prestígio, por exemplo) que
cupações que se reiterariam ao longo da permitem sua apropriação, dependendo
sua obra: as estruturas e processos que da participação na rede de relações.
facilitam a reprodução do poder e os privi- A construção do capital social permite
légios sociais. A perspectiva de Bourdieu é converter “relações contingentes” (vizi-
especialmente significativa porque mostra nhança, parentesco e outras) em “relações
que o capital social não pode ser desvincu- necessárias e eletivas” que subentendem
lado do capital econômico – muito menos obrigações institucionais, comunicativas
C
e sentidas (como respeito, amizade, grati- sociais cooperativas). A segunda consi-
51
dão). A reprodução do capital é derivada dera o capital social como um fenômeno
das instituições que delimitam as trocas subjetivo, composto por valores e atitudes
legítimas e excluem as ilegítimas, “[...] dos indivíduos que determinam sua inter-
favorecendo oportunidades (reuniões, relação, baseados na confiança social em
cruzeiros, caçadas, recepções, etc.), luga- pautas de reciprocidade e em princípios
res (bairros elegantes, escolas seletas, clu- de cooperação compartilhados (HERREROS
bes, etc.) ou práticas (esportes para ricos, e DE FRANCISCO, 2001).
jogos de sociedade, cerimônias culturais, A distinção das funções básicas do capi-
etc.)” (BOURDIEU, 2001), por intermédio tal realizada por Portes (1999), a partir da
das quais um proprietário de capital con- revisão da literatura, constitui uma boa
vencional aumenta seu capital privado. categoria organizadora do campo teórico
James Coleman (1988), outro pre- importante à compreensão dessa segunda
cursor na história do conceito, considera perspectiva, na qual o capital social é, em
serem formas de capital social as obriga- definitivo, entendido como um ativo dos
ções, expectativas e fiabilidade das estru- atores. Conforme essa distinção, o capital
turas, os canais de informação e as normas é percebido: a) como fonte de controle
e sanções efetivas. O autor acentua a forma social mediante a imposição de normas e
como as relações entre indivíduos afetam regras com base em relações de confian-
a acumulação de capital social, mas não ça em estruturas comunitárias; b) como
atenta à maneira como as relações entre fonte de apoio familiar; e c) como fonte
diferentes classes, estratos e grupos atin- de benefícios por intermédio de redes
gem essas alianças entre indivíduos. Esse extrafamiliares.
é, em contrapartida, um aspecto central Os teóricos do capital social ponde-
no enfoque de Bourdieu. ram os efeitos deste sobre as condições
Uma forma de sistematizar as diferen- macrossociais (bom governo, democra-
tes concepções sobre o capital social – a cias vitais, desenvolvimento econômico).
partir de alguns dos seus maiores expo- Para Putnam, o capital social diminui a
entes – que caracterizam a grande quan- necessidade de monitoramento, negocia-
tidade de trabalhos destinados a difundir ções, litígios e acordos formais. Assim, o
o conceito está nas idéias propostas por capital social “refere-se às características
Herreros e De Francisco (2001). Para da organização social como, por exemplo,
esses autores, Bourdieu e Coleman (com redes, normas e confiança, que facilitam a
as diferenças existentes entre ambos) cooperação e a coordenação em benefício
mantêm uma visão “estrutural” do capital mútuo” (PUTNAM, 2001) e constitui “um
social em contraposição à “disposicional ingrediente vital para o desenvolvimento
ou cultural”, postulada por Putnam e seus econômico no mundo” e uma condição
seguidores. A primeira perspectiva enfa- para a revitalização da democracia e o bom
tiza os recursos disponíveis pelos atores governo. “Uma política inteligente pode
sociais, derivados de sua participação em favorecer a formação de capital social e,
redes (acesso à informação, obrigações de por sua vez, o capital social aumenta a
reciprocidade, aproveitamento de normas eficácia da ação do governo. Desde os
C
serviços de expansão agrícola durante o estratégias de competitividade sistêmica
52
século passado [XIX] até as isenções de que pressupõem a participação das pes-
impostos para as organizações comunitá- soas envolvidas”, embora a organização da
rias neste século [XX], o governo dos Esta- participação tenda a oferecer problemas,
dos Unidos promoveu com frequência pois “as pessoas querem beneficiar-se com
os investimentos em capital social e ago- os resultados da ação coletiva, sem pagar
ra deve renovar esse esforço. Uma nova pelos custos da cooperação”. Baseando-se
administração que esteja mais disposta a em Putnam e Grootaert, Lechner (2000)
utilizar o poder público e o orçamento do afirma que esse dilema pode ser supera-
Estado para o interesse público não deve- do mediante uma sociabilidade gerado-
ria subestimar a importância das redes ra de laços de confiança e cooperação.
sociais como apoio a uma política eficaz” Para esse autor, o capital social permite:
(PUTNAM, 2001). Adotando o mesmo viés “1) compartilhar informação e diminuir,
teórico, o Banco Mundial argumenta que assim, a incerteza acerca das condutas dos
“O capital social refere-se às instituições, outros; 2) coordenar atividades e assim
relações e normas que conformam a qua- reduzir os comportamentos oportunistas;
lidade e quantidade das interações sociais 3) graças ao caráter reiterativo da relação,
de uma sociedade. Diversos estudos incentivar a realização de experiências de
demonstram que a coesão social é um fator sucesso de colaboração e 4) fomentar uma
crítico para que as sociedades prosperem tomada de decisão coletiva e, assim, atin-
economicamente e para que o desenvol- gir resultados equitativos para todos os
vimento seja sustentável. O capital social participantes”.
não é apenas a soma das instituições que Outra resposta sublinha as implica-
conformam uma sociedade, mas a matéria ções do próprio termo capital. Como a
que as mantém unidas.” (THE WORLD BANK linguagem é uma construção social e his-
GROUP, 2008). tórica, o termo inevitavelmente abriga um
conjunto de significações impossíveis de
4. Cabe indagar acerca das razões que evitar. Acerca dessa polissemia, Smith e
explicam a ampla utilização do conceito. Kulynych (2002) sustentam argumentos
O questionamento justifica-se, sobretudo, de difícil contestação. Conforme eles, a
ao se considerar que o desenvolvimento do partir da terminologia jurídica do direito
conceito ocorre quando – como ressaltam romano, o conteúdo do vocábulo é essen-
Smith e Kulynych (2002) –, ironicamente, cialmente monetário. Ademais, historica-
se escrevem em profusão trabalhos acadê- mente, ele aparece ligado ao capitalismo,
micos, políticos e jornalísticos que expli- um sistema econômico vinculado, por
cam uma grande variedade de problemas sua vez, ao individualismo, ao interesse
relacionados ao capital social, ao mesmo próprio, à concorrência e ao afã de lucro,
tempo em que, globalmente, as desigual- aspectos que geralmente resultaram anti-
dades de riqueza e renda adquirem enor- téticos com as virtudes cívicas que os teó-
mes dimensões no capitalismo. ricos do capital social defendem.
Lechner oferece um tipo de resposta. Segundo os autores, ao atribuir o
Segundo o autor, “[...] a globalização exige nome de capital a um conjunto tão amplo
C
de relações (usualmente positivas), as Nova Iorque. Além das ligas de boliche,
53
relações sociais, econômicas e políticas do Putnam cita, como exemplos de criação
capitalismo são naturalizadas e legitimadas. de redes de sociabilidade e confiança, os
Consideram que seu emprego, na versão órfãos, grupos de dança, movimentos de
de Coleman, de Putnam e de seus segui- direitos civis e organizações de trabalha-
dores, pode ser explicado pelo contexto dores (SMITH e KULYNYCH, 2002; PUTNAM,
econômico, político e social prevalecente 1994, 2001).
ao final do século XX, sob o predomínio O conceito de capital social, se homo-
de concepções neoliberais, e pela forma geneizado, oculta o que é específico das
como o vocabulário do mercado impreg- relações sociais, cuja diversidade e rique-
nou o discurso político e social. Além dis- za as ciências sociais deveriam contribuir
so, o termo constitui uma expressão do para esclarecer. O emprego dos “outros
economicismo reinante nas ciências polí- capitais” nas linguagens acadêmica, polí-
ticas e sociais norte-americanas (SMITH e tica e técnica (habilidades, destrezas e
KULYNYCH, 2002). credenciais educativas transformadas em
Para Smith e Kulynych (2002), a utili- capital humano e redes de confiança, inter-
zação do conceito obscurece a interpreta- câmbio e reciprocidade convertidas em
ção dos processos que pretende explicar, capital social) comporta uma noção ampla
especialmente quando ele é usado para de capital, no momento em que o capi-
referir-se às organizações dos trabalha- tal apresenta uma concentração extrema
dores e dos pobres. Diante do fato de que e que algumas das suas formas (como o
a solidariedade da classe trabalhadora é capital financeiro globalizado) comandam
considerada uma forma de capital social, o processo mundial de acumulação. Essas
juntamente com várias outras expressões formas delimitam não só as condições de
sociais, os autores indagam sobre as apro- inclusão no desenvolvimento global dos
ximações dessa forma de relação e aque- sujeitos, grupos e classes sociais, mas tam-
la estabelecida entre os integrantes de bém de regiões inteiras do planeta.
uma liga de boliche (referindo-se a outro Tais atributos do conceito revelam
importante trabalho de Putnam, Bowling suas limitações para descrever e explicar a
Alone, America’s Declining Social Capital). questão da reprodução e das condições de
Acerca dessa analogia, vale mencionar vida dos setores populares e a ela propor
que, em Coleman, alguns exemplos de soluções. A preocupação pelo capital dos
expressão empírica do conceito de capital pobres, principalmente, resulta em mais um
social são: os comportamentos de ativistas artefato ideológico do que em uma contri-
estudantis radicais na Coréia do Sul, que buição significativa para a abordagem de
se opõem a um regime opressivo; as fontes tais questões. A ênfase para potencializar
de confiança entre médicos e pacientes; a seus recursos – indubitavelmente vitais
forma como os comerciantes do mercado para a sobrevivência – tende a negligen-
central do Cairo cooperam para satisfa- ciar o problema central dos “pobres”: sem
zer suas necessidades e as preferências se desconhecer a importância do desen-
dos seus clientes; e a estreita unidade da volvimento de redes baseadas na confian-
comunidade de comerciantes judeus de ça, na solidariedade, na reciprocidade e
C
no “núcleo duro” da superação da desi- HERREROS, F.; DE FRANCISCO, A. (2001), Introducción:
54 el capital social como programa de investigación,
gualdade, enfatiza-se que a pobreza passa
Zona Abierta, Madrid, n. 94/95, p. 1-46.
centralmente pela distribuição da riqueza
LECHNER, N. (2000), Desafíos de un desarrollo huma-
e, portanto, do capital convencional.
no: individualización y capital social, Instituciones y
Diante dessa análise, a resposta acerca Desarrollo, Instituto Internacional de Gobernabili-
da adequação teórica e empírica do con- dad, Barcelona, n. 7.
ceito torna-se um desafio complexo. Se, PORTES, A. (1999), Capital social: sus orígenes y aplica-
como muitos autores consideram, esse é ciones en la sociología moderna. In: CARPIO, J.; NOVA-
um conceito que chegou para ficar, seria COVSKY, I. (Comp.), De igual a igual: el desafío del Esta-

necessário repensar, à luz das críticas aci- do ante los nuevos problemas sociales, Buenos Aires:
Fondo de Cultura Económica; SIEMPRO-FLACSO.
ma abordadas, seus conteúdos e abran-
PUTNAM, R. (1994), Para hacer que la democracia funcione,
gência, discutindo se – exceto na versão
Caracas: Editorial Galac.
de Bourdieu – ele constitui um conceito
___. (2001), La comunidad próspera. El capital social
fértil para se refletir sobre as realidades
y la vida pública, Zona Abierta, Madrid, n. 94/95, p.
sociais contemporâneas. 89-104.
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C
CIDADANIA Além dos elementos da moral e da
Paulo Henrique Martins 55
política, o constructo da cidadania exige
componentes jurídicos. Nessa perspec-
1. Cidadania é um constructo moral, polí- tiva, a cidadania apenas ganha força de
tico e jurídico ambivalente que aparece lei e de sanção com a linguagem escrita,
em sociedades históricas, complexas e com os códigos jurídicos e com as cons-
abertas, nas quais o dilema entre indiví- tituições republicanas que, ao nomea-
duo e sociedade é equacionado mediante rem a coisa pública como central na vida
o surgimento de esferas públicas que valo- coletiva, permitiram que a idéia de cida-
rizam o “mundo comum”. Na Modernida- dania ganhasse estatutos jurídico e legal,
de, tais esferas reduzem as influências do ou melhor, constitucional. Aqui, há de se
privado e realçam a importância da igual- assinalar a influência das tradições grega e
dade como conquista política e jurídica, romana. Para os gregos, a idéia de cidada-
ou seja, nelas, a propriedade individual é nia não se confundia com o indivíduo con-
relativizada pela propriedade social. Do creto. O respeito às leis da polis era a única
ponto de vista moral, o valor básico da maneira de se evitar que a comunidade
cidadania é aquele da igualdade social que, fosse submetida a um único mestre ou
nos casos das experiências democráticas, tirano, como se supunha serem os casos
é pautada por um novo valor de liberdade, dos povos bárbaros de então. A tradição
o qual não é mais aquele do tirano, mas romana, em seguida, acentuaria o aspecto
do homem comum. Promover a igualdade legal e representador da cidadania. Para
significa privilegiar o todo social, a vonta- Cícero, a cidadania relacionava-se com a
de coletiva, a obrigação moral supra-indi- presença de uma comunidade de direitos.
vidual e a predominância da sociedade, A definição romana do cidadão em termos
enfim, aceitar que a propriedade social jurídicos permitiu, igualmente, intro-
implica certa socialização da antiga pro- duzir-se um segundo grupo de valores, a
priedade privada. Conjuntamente obser- começar pela universalidade de direitos, a
vados, os valores morais básicos da igual- qual foi reapropriada, nos séculos seguin-
dade e da liberdade ganham consistência tes, pelo cristianismo e difundida pelo
histórica e sociológica mediante ações espírito colonizador europeu.
políticas geradas nas tensões entre a pers-
pectiva de manutenção das crenças e valo- 2. Historicamente, a cidadania apenas é
res coletivos e as pressões crescentes do reconhecida com a passagem do Direito
individualismo contemporâneo a favor da do Estado para o Estado de direito, com a
liberalização dos desejos e singularidades. substituição do ponto de vista do príncipe
Na prática, essa ambivalência constitutiva pela ótica dos indivíduos comuns sem títu-
da cidadania resolve-se entre as mobiliza- los de nobreza, mas com garantias consti-
ções crescentes em prol de diferenciação tucionais abrigadas pela legislação comum.
(de gênero, de etnia, de nacionalidades e A organização desse Estado de direito e a
de culturas, entre outros) e aquelas vol- quebra dos privilégios aristocráticos não
tadas para a preservação da ordem social constituíram um processo histórico sim-
estabelecida. ples. O advento da cidadania moderna a
C
partir do século XVIII teve sucesso graças a nia, presente em autores como N. Bobbio
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revoluções sangrentas como a americana e e R. Rorty, e os defensores de uma noção
a francesa. Se o pensamento renascentista comunitária e multicultural da cidadania,
preparou o retorno do ideal republicano como C. Taylor e W. Kymlicka.
da cidadania moderna, sua sistematização
deveu-se a alguns pensadores tidos como 3. Recentemente, passou-se a consta-
fundamentais para se refletir sobre a natu- tar uma forte tendência – sobretudo em
reza do indivíduo. autores influenciados pela filosofia polí-
T. Hobbes (1982) propunha a idéia de tica contemporânea – de se valorizar a
um contratualismo vertical, decidido de cidadania pela ótica do direito. Para T. H.
cima para baixo por um legislador sobe- Marshall (1976), é possível organizar-se
rano. Acreditava que, tendo o ser humano o desenvolvimento dos direitos de cida-
uma natureza hostil, este seria incapaz de dania a partir de três fases distintas: a
deliberar espontaneamente a respeito do dos direitos civis, tidos como direitos de
interesse coletivo. Em orientação contrá- primeira geração; a dos direitos políticos
ria, J. Locke (2004) propunha que a socie- que seriam de segunda geração; e a dos
dade seria fruto de um contrato entre direitos sociais, como direitos de terceira
indivíduos livres que comporiam uma geração. Os direitos de primeira e segun-
pluralidade organizada anterior à pró- da gerações teriam sido granjeados entre
pria sociedade. Em uma outra direção, J. os séculos XVIII e XIX. Os direitos civis
J. Rousseau (2002) acreditava que os indi- teriam sido conquistados no século XVIII,
víduos teriam todo o interesse de se colo- correspondendo aos direitos individu-
carem espontaneamente sob o manto de ais de liberdade, igualdade, propriedade,
uma vontade geral. Para o autor, o contra- de ir e vir, de segurança, entre outros. Os
to social derivado de um pacto desse por- direitos políticos teriam sido alcançados
te, edificado sobre o consentimento, seria no século XIX e diriam respeito à parti-
a condição para que cada cidadão pudesse cipação eleitoral e à liberdade de associa-
assimilar a liberdade e a obrigação como ção, de reunião e de organização política
virtudes comuns. No fundo, Rousseau e sindical. Por sua vez, os direitos sociais
articulou a idéia de cidadania com a de teriam sido institucionalizados no século
comunidade. Nessas três tendências do XX, a partir das lutas operárias e sindicais,
pensamento político tradicional, temos expressando-se nos direitos ao trabalho,
as bases de modalidades diferentes de à saúde, à educação e à aposentadoria, ou
organização da cidadania: a cidadania seja, aquelas garantias de acesso ao bem-
tutelada, encontrada em vários regimes estar e ao bem social. Enfim, na segunda
autoritários, inspira-se em Hobbes; o pen- metade do século XX, poderia falar-se de
samento liberal remonta a Locke; e a for- direitos que teriam como titular não o
mulação comunitarista e associativa alude indivíduo, mas grupos humanos como a
a Rousseau. Tais concepções continuam a nação, as coletividades étnicas ou a pró-
predominar ainda no séc. XXI, sendo atu- pria humanidade. Seriam exemplos destes
alizadas pelo debate entre os defensores os direitos à autodeterminação dos povos,
de um entendimento liberal da cidada- os direitos ao meio ambiente, o direito do
C
consumidor e os direitos das mulheres, de se discutirem formas alternativas de
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das crianças e dos idosos. Alguns autores já integração e de inserção social a partir de
falam em direitos de quarta geração, como uma nova relação entre Estado de direito
os relativos à bioética e aqueles voltados a e democracia.
impedir a destruição da vida ou a criação Identificar-se cidadania com democra-
sem critérios da vida em laboratórios. cia e reduzir-se sumariamente uma à outra
Há autores que fazem restrição a Mar- constituem equívocos. Embora a segunda
shall, por considerarem que os direitos não exista sem a primeira, a cidadania
de cidadania não foram estabelecidos em pode existir sem a democracia. Os gregos
etapas complementares, conforme teria tinham ciência dessa diferença. Mesmo
sido aventado na análise desse pensador. considerando cidadão apenas aqueles que
Tais autores lembram que, ao se observar participavam do poder deliberativo ou
o mosaico da cidadania em nível plane- judiciário na coletividade de indivíduos
tário, percebe-se que as modalidades de denominada polis, Aristóteles aventava a
seu aparecimento variam enormemente possibilidade de existir cidadania em regi-
entre sociedades e culturas. Nesse sen- mes não-democráticos, como os despóti-
tido, propõem, seria mais interessante cos ou tirânicos. Na atualidade, a conquis-
pensarem-se os direitos de cidadania no ta jurídica, política e moral da igualdade
marco da diversidade cultural. Autores não tem sido tarefa fácil, e, dependendo
como W. Kymlicka (1996) alvitram a tese do contexto, predominam as opiniões dos
da cidadania diferenciada, forma de supera- que consideram a propriedade social mais
ção do velho fator nacional e de adoção importante do que a individual ou vice-
de uma perspectiva multicultural. Essa versa. Nos regimes burocrático-socialistas
tese seria comprovada por fatos novos, do século XX, exagerou-se o valor da obri-
como a série de lutas em torno de direi- gação sobre a liberdade e, nos regimes de
tos linguísticos, de autonomia regional, democracias burguesas, em particular os
de imigrações e naturalizações, de rei- mais influenciados pela ideologia neoli-
vindicações territoriais e de diferenças beral, vê-se o contrário: a liberdade indi-
religiosas, entre outros. Nessa mesma vidual é mais apreciada que a obrigação
perspectiva, C. Taylor (1995) sugere que coletiva. Nos dois casos, a relação entre
as novas lutas pela cidadania não podem cidadania e democracia é problemática,
mais ser reguladas pela gestão clássica do pois se o abusivo peso da igualdade coleti-
social, exigindo instaurar-se uma polí- va sufoca as liberdades individuais, o con-
tica do reconhecimento e da dignidade trário também é verdadeiro, o excesso de
para se responder efetivamente às novas liberdade individual reprime as perspecti-
demandas. Por sua vez, J. Habermas vas de sobrevivência do “mundo comum”.
(2002) também se preocupa com o tema Entre um e outro caso, expandem-se as
da nova cidadania e da rediscussão da tentativas de se conciliarem cidadania e
relação entre nação e direitos, mas enfa- democracia, mediante experiências de
tiza a idéia de uma cidadania pós-nacional. democracias participativas que buscam
Pensando nos desafios da integração incluir e harmonizar os ganhos da repre-
européia, o autor destaca a importância sentação (escolha indireta) individual e
C
da assembléia (escolha direta) coletiva, ao ralizou-se assim, no Ocidente, a crença de
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mesmo tempo em que reconhecem a pos- que a cidadania seria um valor democrá-
sibilidade de divergências. tico, universal e necessariamente fundado
Se a moral, a política e o direito são os nos direitos humanos. Sendo um direi-
fundamentos inquestionáveis da cidada- to universal e um bem intangível do ser
nia, sua permanência e estabilidade his- humano, a cidadania democrática moder-
tóricas dependem de fatores complemen- na deveria, por conseguinte, ser tida como
tares. Aqui podemos lembrar o princípio referência para toda organização política
da universalidade de direitos, que busca independentemente dos contextos cultu-
compatibilizar os valores primários da rais particulares. A concretização desses
igualdade e da liberdade em um patamar ideais humanistas vem conhecendo na
institucionalmente mais complexo, que prática, contudo, dificuldades importan-
integre as diferenças nacionais em uma tes, como o provam as tentativas proble-
esfera comum mundializada. A despeito máticas dos colonizadores europeus de
desse princípio, a cidadania não é, ao con- imporem verticalmente o ideal da repú-
trário do que possa supor o senso comum, blica democrática a outros povos, ao lon-
uma espécie de “direito natural” humano e go dos últimos 200 anos. A construção
universal. As evidências históricas provam da cidadania exige uma série de acordos
que ela é um fenômeno histórico localiza- intersubjetivos que não se limitam apenas
do e que as sociedades organizadas a par- à redistribuição das riquezas materiais e de
tir do ideal de cidadania são minoritárias bens de poder. Em muitas sociedades, tais
na história humana. O sentimento de que acordos devem incluir necessariamente
a cidadania seja algo natural é apenas o reconhecimentos identitários, culturais,
resultado de um processo de interioriza- religiosos e políticos. Essas pressões coti-
ção de uma ordem moral, a moderna, que dianamente renovadas, geradas pelas lutas
busca erroneamente inscrevê-la como uma por bens materiais e simbólicos, incidem
evidência universal a priori, negligencian- necessariamente sobre as instituições
do o valor da esfera pública como espaço sociais, em geral, obrigando a criarem-se
de conversação e organização dos fins novos mecanismos de participação, de
comuns incertos (TAYLOR, 1995). O valor regulação e de deliberação dos direitos da
da universalidade é, no fundo, uma espé- cidadania, em vários níveis das sociedades
cie de operador simbólico transnacional organizadas: desde o poder central até os
da política, legitimado pela possibilidade poderes regionais e locais.
de realizar com sucesso as operações de Finalmente, há que se ressaltar a forte
tradução e de adaptação de significações pressão gerada pelo pensamento neolibe-
nacionais, religiosas, históricas e cultu- ral para se reduzir a discussão sobre cida-
rais, que são sempre diferenciadas e parti- dania à questão econômico-mercantil, rea-
cularizadas. Tal sucesso nem sempre está firmando-se as idéias de autonomização do
assegurado. mercado, de redução do papel regulador do
4. A idéia da cidadania como um direito Estado e de limitação de direitos de cida-
universal tem sido reforçada por outro dania ao consumo produtivo e ao trabalho
princípio, o dos direitos humanos. Gene- flexibilizado. Contra essa visão reducionis-
C
ta, há sempre que se recorrer às tradições direitos cívicos, políticos, sociais, econô-
59
dos pensamentos antigo e moderno que se micos, culturais e ambientais. Tal conver-
abrem para entendimentos complexos dos gência deve se dar em torno da experiên-
fundamentos da cidadania, como foi acima cia de um mundo comum, que não pode
exposto, recolocando a questão econômica ser privatizado por indivíduos ou corpora-
no interior do social. Igualmente é mister ções. Esse entendimento é particularmen-
reforçar-se a organização de um pensa- te importante ao se considerar a invenção
mento crítico antiutilitarista que revalori- da cidadania democrática, que oscila per-
ze a discussão da cidadania nas esferas da manentemente entre as ambivalências da
moral, da política e da justiça, evitando-se vida social – os interesses individuais e os
sua redução à ideologia mercadológica. coletivos, as ordens instituídas e as insti-
Nesse sentido, vale lembrar B. S. Santos tuintes, os espaços global e local.
(1995, p. 261), para quem a organização de
um entendimento complexo de cidadania, BIBLIOGRAFIA
que responda às exigências de abolição das ARENDT, H. (1958), The human condition, Chicago: The
formas atuais de opressão e de exclusão, University of Chicago Press.
não pode efetivar-se com a mera concessão ARISTOTE (2004), Politique, Paris: Nathan.
de direitos, esta típica de parte importante BOBBIO, N. (1992), A era dos direitos, Rio de Janeiro:
das tendências teóricas recentes. Tal orga- Campus.
nização exige uma reconversão global dos HABERMAS, J. (2002), A inclusão do outro: estudos de
processos de socialização e dos modelos de teoria política, São Paulo: Edições Loyola.
desenvolvimento. Essa observação é muito HOBBES, T. (1982), Le citoyen ou les fondements de la poli-
relevante em sociedades periféricas, onde tique, Paris: Flamaryon.
a construção da cidadania é permanente- KYMLICKA, W. (1996), Ciudadania multicultural, Barce-
mente obstruída por problemas estruturais lona; Buenos Aires: Paidós.
gerados pela modernização e pelos valores LOCKE, J. (2004), Essay concerning human understanding,
tradicionais dominantes (SOUZA, 2003). London: Penguin.
O entendimento contemporâneo da MARSHALL, T. H. (1976), Class, citizenship and social
cidadania exige considerar-se que o jurí- development, Connecticut: Greenwood.

dico é apenas um dos seus termos consti- RORTY, R. (2007), Contingência, ironia e solidariedade,
São Paulo: Martins Fontes.
tuintes, devendo ser lembradas igualmen-
te a moral e a política, como foi assinalado ROUSSEAU, J. J. (2002), Du contrat social et discours sur
l´économie politique, Paris: Athena.
no início deste texto. Individualmente
SANTOS, B. S. (1995), Pela mão de Alice: o social e o polí-
considerados, cada um desses termos é
tico na Pós-Modernidade, São Paulo: Cortez.
insuficiente para se explicar a emergência
SOUZA, J. (2003), A construção social da subcidadania:
da cidadania. Seu sucesso como projeto para uma sociologia política da modernidade peri-
histórico procede da confluência das lutas férica, Belo Horizonte; Ed. UFMG; Rio de Janeiro,
pelo reconhecimento e pela dignidade, IUPERJ.
pela participação e representação livres TAYLOR, C. (1995), Philosophical arguments, Cambridge;
e igualitárias e pelo usufruto comum de London: Harvard University Press.
C
COMÉRCIO JUSTO assume relações de compromisso com os
60 Alfonso Cotera produtores, ao estar informado sobre a
Humberto Ortiz origem do produto (nos aspectos éticos e
ambientais). Pode-se definir o comércio
1. Comércio justo é o processo de inter- justo como a relação de troca econômi-
câmbio de produção-distribuição-consu- ca e ética entre produtores responsáveis
mo, visando a um desenvolvimento soli- e consumidores éticos, orientados ao
dário e sustentável. Esse desenvolvimento desenvolvimento humano integral soli-
procura beneficiar sobretudo os produto- dário. Em sua base, está o trabalho por
res excluídos ou empobrecidos, possibi- uma economia justa e solidária.
litando melhores condições econômicas,
sociais, políticas, culturais, ambientais e 2. O comércio internacional tradicional
éticas em todos os níveis desse processo, vem se desenvolvendo sob relações de
tais como o preço justo para os produ- troca, em um modelo que gera injustiça,
tores, educação para os consumidores e desigualdade e marginalidade. No âmbi-
desenvolvimento humano para todos e to agrícola, os países do Norte importam
todas, respeitando os direitos humanos produtos que não se desenvolvem nos cli-
e o meio ambiente de forma integral. O mas dessas regiões, para que sua popula-
comércio justo traduz-se no encontro fun- ção possa consumi-los, como banana, café,
damental entre produtores responsáveis e cacau, açúcar, etc. Da mesma forma, esses
consumidores éticos. países importam produtos que deman-
Busca-se obter condições mais justas dariam altos custos de mão-de-obra caso
para os produtores, especialmente os mais fossem produzidos localmente, se com-
marginalizados, fazendo-se evoluírem as parados aos preços baratos pagos aos paí-
práticas e as regras do comércio interna- ses do Sul, onde a mão-de-obra é menos
cional em direção a critérios de justiça e remunerada. Além disso, subsidiam sua
equidade, havendo, para tanto, o apoio agricultura e até mesmo a indústria, mas
dos consumidores. Um indicador do fazem todo o possível para que os países
impacto resultante do comércio justo não do Sul assim não procedam.
reside na soma daqueles que já eram ricos Os acordos internacionais sobre
e tornaram-se ainda mais ricos por meio comércio (OMC) estipularam que os paí-
desse comércio, mas no montante dos que ses industrializados reduzissem os impos-
ele ajudou a sair da pobreza, da exclusão e tos sobre as importações agrícolas em
da marginalidade em todos os níveis. 36%, em um prazo de seis anos, e que os
O comércio justo não se configura países em desenvolvimento chegassem a
apenas como uma relação comercial. Ele 24%, em dez anos. Na prática, os países
procura estabelecer um vínculo de coo- desenvolvidos mantêm subvenções agrí-
peração e parceria entre os produtores colas muito elevadas, enquanto os países
do Sul e os importadores do Norte, base- em desenvolvimento não podem fazê-lo
ada na igualdade e no respeito mútuo. No devido aos condicionamentos princi-
comércio justo, o consumidor consciente palmente do sistema financeiro interna-
não só adquire produtos, mas também cional, gerando, assim, um verdadeiro
C
dumping e tornando os produtores do Sul Esses mercados propiciam uma relação
61
menos competitivos. mais direta com os produtores dos países
A consequência dessa situação é a do Sul, oferecendo-lhes melhores condi-
continuidade da exportação de produtos ções comerciais. Essa relação direta dá-se
agrícolas e matérias-primas por parte de não tanto pela redução da distância física,
países e regiões cujas populações pade- mas pela aproximação ética, o que pode
cem de fome a outros países com super- ser denominado uma “economia da pro-
produção alimentícia. Os produtos locais ximidade”, apesar das grandes distâncias
e tradicionais dos países do Sul são usu- geográficas.
frutuados no tocante ao direito à proprie- A proposta originária de um comércio
dade pelas empresas transnacionais, sem justo consistia em substituírem-se as rela-
que estas reconheçam seu saber ancestral, ções de assistência Norte/Sul por relações
apesar do acordo 169 da OIT. de solidariedade no nível das trocas eco-
Há quase 50 anos, as organizações nômicas (Trade, not aid – comércio, não
não-governamentais dos países do Norte, assistencialismo). Após essa iniciativa,
especialmente as européias, em diálogo verificaram-se, em quase todos os países
com organizações não-governamentais e da Europa e da América do Norte, diver-
grupos de produtores dos países do Sul, sas experiências nacionais de certificação
vêm desenvolvendo enfoque e processo mediante o selo de comércio justo (fair
alternativos ao comércio internacional trade label) e certificação orgânica e de qua-
tradicional. Sob as denominações comércio lidade. Esses agentes também importam
justo ou comércio equitativo e solidário, pro- e promovem produtos das cooperativas,
curam reverter “desde baixo” a tendência associações e pequenos produtores dos
injusta presente nas trocas realizadas no países do Sul.
comércio internacional, promovendo o Em 1997, todas essas iniciativas uni-
reconhecimento ao trabalho dos produ- ram-se sob a FLO-Internacional (Fair-
tores do Sul mediante o pagamento de trade Labelling Organizations), para
um preço justo a seus produtos e sensibi- munirem-se de um selo de comércio justo
lizando os consumidores do Norte sobre internacional. A partir desse momento,
o conhecimento dessa realidade, o con- esses agentes passaram a trabalhar em
sumo saudável e seu verdadeiro poder de conjunto para facilitar a exportação dos
compra não só econômico, mas principal- produtos das organizações de pequenos
mente ético. produtores e promovê-los, com o intui-
O movimento do comércio justo pôs to de reduzir a distribuição desigual de
em andamento mercados alternativos bens entre o Norte e o Sul. Atualmente,
nos países do Norte, com normas preci- no México, o comércio justo interno está
sas para cada produto. O número desses sendo desenvolvido, visando à promoção
produtos é cada vez maior, e sua produção dos pequenos produtores, havendo um
mais diversificada, sendo eles oferecidos selo não só de certificação equitativa, mas
em lojas solidárias e em alguns supermer- também de comercialização (com uma
cados (como exemplo, há a experiência marca comércio justo, a experiência Usiri). For-
mexicana dos supermercados solidários). mou-se também uma rede de produção
C
e comercialização solidária entre produ- multifuncionalidade do comércio justo,
62
tores do México e dos Estados Unidos da não se devendo analisá-lo apenas como
América do Norte, denominada Coalizão uma estratégia de comercialização, mas
Rural (Rural Coalization). também de promoção da produção local
No início do século XXI, a possibilida- permanente e sustentável, da criação de
de de se criarem certificadoras solidárias empregos, do estabelecimento de relações
nos próprios continentes do Sul já avan- de equidade entre mulheres e homens e
çou. Em 2006, a rede latino-americana de entre gerações, de mobilização de valores
comércio justo propôs a criação de um selo ético-culturais e de desenvolvimento a
no subcontinente contemplando inclusive partir do espaço local.
a “certificação cruzada”, pela qual a enti- O comércio justo implica ainda pro-
dade de um país, cumprindo os padrões, duzirem-se estratégias de diálogo com os
e com legitimidade, pudesse certificar os Estados, as organizações multilaterais e as
produtos de outro país, e assim sucessi- redes sociais, buscando-se a incorporação
vamente. A rede vem realizando estudos de um estatuto jurídico para o comércio
para o lançamento desse “selo do Sul”, que justo aos níveis nacional e internacional.
permitirá acesso de um maior número de No caso da União Européia, por exemplo,
pequenos produtores a ela. o Parlamento Europeu aprovou, por una-
nimidade, a Resolução A4-198/98, sobre
3. O conceito de comércio justo ampliou- a promoção do “comércio equitativo e
se, estendendo essa definição ao comércio solidário”, em 2 de julho de 1998.
praticado internamente nos países, revalo- No Equador, sob iniciativa de Maquita
rizando o mercado local (e não só a expor- Cushunchic (“demo-nos as mãos comer-
tação) e a comercialização entre os países cializando como irmãos”), impulsionou-
do Sul, bem como entre países do Norte e se, a partir do comércio interno, um movi-
do Oriente-Ocidente. Nessa direção, situ- mento de comercialização comunitária
am-se os acordos propostos durante o I com as organizações populares do campo
Encontro Latino-Americano de Comér- e da cidade, denominada Rede Latino-
cio Justo, Consumo Ético, Troca e Moeda Americana de Comercialização Comuni-
Social, realizado em Lima, Peru, em março tária (RELACC), com sedes em 18 países
de 2001. da América Latina. Tendo por objetivo
O comércio justo vincula-se também tornar-se uma alternativa ao livre comér-
ao consumo ético, sendo ambos duas face- cio (ao TLCAN), formou-se a Coalizão
tas de uma mesma concepção, uma não Rural, uma aliança composta por mais de
podendo existir sem a outra. Tal como o 90 organizações de pequenos produtores
escambo (intercâmbio direto) e a moeda e assalariados agrícolas do México e Esta-
social, constituem meios de troca nas eco- dos Unidos. No Peru, existe a Rede Peru-
nomias locais e regionais, especialmen- ana de Comércio Justo e Consumo Ético,
te para os grupos mais marginalizados e agrupando redes de produtores nacionais
pobres, embora igualmente demonstrem vinculados às redes internacionais de
sua viabilidade em meio a outros setores comércio justo, como as do café, reunidas
sociais. Reconhece-se, cada vez mais, a na Junta Nacional do Café (JNC), e as de
C
artesanato, coligadas na Central Inter- tem como princípios: a) a criação de novas
63
Regional de Artesãos do Peru (CIAP). Esta formas de trocas econômicas, fundamen-
congrega 19 associações de artesãos e tadas na solidariedade, que buscam o
artesãs dos setores camponeses e urbanos desenvolvimento sustentável e justo dos
populares, impulsionando toda uma dinâ- territórios e seus habitantes; b) a coope-
mica, com a criação das lojas solidárias de ração como base e condição das trocas, o
comércio justo em várias cidades do país, que implica confiança, transparência na
e incentivando redes de turismo solidá- informação e relações justas e duradou-
rio, produtores orgânicos e organizações ras; c) a incorporação dos custos sociais e
de consumidores ecológicos, produto- ambientais à sustentabilidade das trocas,
res em cárcere (apoiados pela Comissão os quais se supõe serem assumidos cons-
Episcopal de Ação Social), o movimento cientemente pelos produtores e consumi-
das crianças e adolescentes trabalhadores dores; d) a formulação de critérios e nor-
(MANTHOC) e os grupos de iniciativa de mas que permitam haver mais equidade
economia solidária. nas transações comerciais entre os países
No Chile e no Peru, as experiências do Norte e os países do Sul, modificando a
em comercialização, das organizações de tradicional divisão internacional do traba-
mulheres (“comprando juntas”, no pri- lho; e) o estabelecimento de uma relação
meiro caso, e as empresas comerciantes mais direta e solidária entre produtores e
de alimentos, no segundo), procuraram consumidores, não só como mecanismo
vincular diretamente os produtores aos de barateamento do preço dos produtos,
consumidores. Na mesma linha, há as fei- mas também como um processo de socia-
ras de consumo na Venezuela (experiên- lização com vistas a se construir um mun-
cia de CECOSESOLA) e as experiências do responsável e sustentável; e f ) a huma-
de troca e moeda social desenvolvidas nização do processo comercial, por isso, o
na Argentina, México, Equador, Brasil e comércio justo integra-se a uma visão da
outros países. Sob essa perspectiva, for- economia centrada na pessoa, não se limi-
mou-se também a Feira de Santa Maria, no tando às trocas mercantil e monetária.
Brasil, a qual, a partir do comércio justo, O comércio justo possui diversos
projetou suas idéias durante o Encontro objetivos. O primeiro deles é fazer evo-
Latino-Americano e Caribenho de Eco- luírem as práticas comerciais em direção
nomia Solidária, que, em sua última con- à sustentabilidade e à incorporação dos
vocatória, reuniu mais de 140.000 partici- custos sociais e ambientais, incidindo
pantes. Todas essas são experiências tanto sobre a conscientização das pessoas e as
de troca de produtos, como de troca de legislações nacionais e internacionais.
saberes. Essa conscientização dos consumidores
O poder transformador do comércio respeita ao seu poder (de compra ética)
justo permite estabelecerem-se outros de atuarem a favor de trocas mais justas.
tipos de relações entre produtores e con- Outro objetivo é impulsionar estratégias
sumidores, baseados na equidade, na coo- que busquem o equilíbrio entre os merca-
peração, na confiança e no interesse com- dos locais e internacionais. Já a promoção
partilhado. Essa modalidade de comércio da igualdade de gênero e entre gerações
C
visa incentivar a participação humana comunidade onde estão localizados, por
64
integral, mediante relações equitativas exemplo, mediante políticas e programas
entre homens e mulheres e entre pessoas de saúde e educação, melhoramento das
de diferentes idades, em uma dinâmica moradias e sistemas de água potável, entre
que propicie, às mulheres, desempenha- outros.
rem um papel mais ativo no processo de Há critérios básicos para que se desen-
desenvolvimento, na tomada de decisões volva o comércio justo. É preciso estabe-
e na gestão da organização. Para tanto, lecer-se a relação o mais direta possível
deve-se promover uma maior participação entre produtores e consumidores, redu-
das mulheres nas atividades econômica, zindo-se a intervenção de especuladores
social e política. Com o objetivo de favo- e intermediários convencionais. A troca
recer a expressão das culturas e valores deve ser realizada a um preço justo, que
locais, no âmbito de um diálogo intercul- permita, ao produtor e à sua família, vive-
tural, o comércio justo busca o reconhe- rem dignamente dos frutos de seu traba-
cimento de que os produtos não só têm lho. Com relação às condições de trabalho
valor de uso e valor de troca, mas, por meio dos produtores (quando se trata de traba-
deles, expressam-se realidades e vivências lhadores assalariados), estas precisam cor-
características da cultura de quem os pro- responder, ao menos, às normas interna-
duz. Eles são veículos de comunicação e cionais da Organização Internacional do
troca que possibilitam haver um diálogo Trabalho (OIT), ou às normas do respec-
intercultural de consumidores, os quais tivo país, se estas forem superiores às da
expressam seus gostos e desejos que são OIT, respeitando-se o direito de associa-
considerados respeitando-se identidades. ção e proibindo-se o trabalho forçado. No
Finalmente, o comércio justo objetiva caso de produtores autônomos, se estes
promover o desenvolvimento integral em necessitarem, financiamentos parciais
termos econômico, organizativo, social e devem ser autorizados antes da colheita
político. Para isso, no âmbito econômico, ou da produção manufatureira. As rela-
enfatiza a melhoria das técnicas de produ- ções contratuais são estabelecidas em lon-
ção e a diversificação da produção, com a go prazo, baseando-se no respeito mútuo
meta de evitar que as pessoas dependam e nos valores éticos. Essas relações pro-
de um só produto como fonte de renda. No curam não só determinar um preço justo
âmbito organizacional, o comércio justo para os produtos, como também criar as
opera melhorando a capacidade gerencial condições para haver um desenvolvimen-
e administrativa dos diretivos presentes e to sustentável dos grupos de produtores
futuros da organização, bem como supõe ou assalariados. Esses critérios mínimos
a plena participação dos membros na defi- resumem-se em solidariedade, justiça,
nição das estratégias a serem seguidas e na responsabilidade e enfoque nos direitos.
utilização das rendas adicionais resultan- Além deles, as organizações de comércio
tes das vendas realizadas. No plano social, justo estabeleceram, para alguns casos,
o comércio justo volta-se à melhoria das os denominados critérios de “progresso”.
condições de vida dos membros da orga- O movimento do comércio justo ocor-
nização e de suas famílias e, em geral, da re sob um processo de criação e desen-
C
volvimento constante de formas diversas o mercado, pelo menos o regulamentan-
65
que evoluem de acordo com os contex- do de acordo com critérios ambientais e
tos socioeconômico, político, cultural e sociais ou propondo um quadro jurídico
ambiental, em cada uma das regiões do para o comércio justo.
mundo. Nesse processo, diversos atores Outro grupo de atores é formado
têm participado da implantação, pro- pelas instituições de comércio justo, que são
moção e formação de trocas econômicas entidades ou organizações criadas espe-
mais justas. Os atores são todos os que cificamente para dar prosseguimento ao
estão vinculados na dinâmica de troca de processo de troca de comércio justo. As
comércio justo, ou seja, os que intervêm organizações de produtores/as são aquelas
na atividade econômica de forma direta. cooperativas, associações de produtores,
Os produtores são todos os que elabo- sindicatos de trabalhadores ou outras que
ram os produtos, de acordo com certas representem o interesse dos seus associa-
exigências, normas técnicas e condições, dos nas negociações no interior do movi-
oferecidos no mercado de comércio justo. mento de comércio justo e nas relações
Esses produtores encontram-se, em sua interinstitucionais com outros. Em outra
grande maioria, marginados do comércio ponta, as organizações dos/as consumidores/as
tradicional e procedem dos países do Sul são as associações e cooperativas dos con-
ou do Leste. Os consumidores/as são todas sumidores que trabalham na promoção
as pessoas que consomem os produtos do comércio justo, colaborando à forma-
oferecidos no mercado do comércio jus- ção da consciência do cidadão perante os
to, fazendo-o por sensibilidade diante desafios que se apresentam a um consumo
do injusto sistema internacional de troca ético e responsável. Algumas delas implan-
comercial ou por consciência solidária taram sistemas originais de distribuição
em relação aos marginados e excluídos do de produtos regionais ou de importação
sistema. Esses consumidores encontram- sob condições justas. As agências de certifica-
se, em sua grande maioria, nos países do ção são aquelas entidades dedicadas a cer-
Norte. Por sua vez, as empresas integradas tificar se os produtos estão em condições
ao comércio justo são entidades do setor de entrar no mercado do comércio justo,
privado que têm responsabilidade social permitindo sua distribuição nos super-
e que estão dispostas a trabalhar sob a mercados. Formaram-se ao final dos anos
perspectiva dessa forma de comércio. A 1980 e desenvolveram certos critérios para
classificação não se aplica àquelas cuja res- cada produto. Outros agentes, as centrais
ponsabilidade social for apenas um meca- de compras ou importadores do comércio justo,
nismo de marketing para infiltrarem-se no são os encarregados de adquirir e colocar
movimento do comércio justo. Diferente os produtos no mercado (distribuidores,
das empresas, as organizações de cooperação lojas de todo o mundo, pontos de venda
são aquelas que oferecem contribuições varejistas). A venda direta ao consumidor
econômica, técnica ou promocional à fica a cargo das lojas de comércio justo, cujos
estruturação do comércio justo. Já os gover- provedores, muitas vezes, são as centrais
nos são aquelas administrações públicas de compras do comércio justo, embora
locais, regionais ou nacionais que ajudam essas lojas também possam ter relações
C
comerciais diretas com os produtores. e comercialização orgânica e o comércio
66
Por fim, os distribuidores e pontos de venda são justo, é preciso incorporarem-se critérios
os sócios comerciais das organizações do ambientais aos selos de comércio justo e
comércio justo (produtores, emissores de critérios socialmente solidários aos selos
selos e centrais de compra) encarregados orgânicos, buscando-se a participação
da distribuição dos produtos no merca- de todos os protagonistas (produtores,
do aberto, buscando sua maior difusão, consumidores, instituições, organizações
especialmente dos produtos alimentícios. e outros). Nessa direção, os parâmetros
Muitas são as perspectivas que se apre- de comércio justo devem contemplar os
sentam à temática do comércio justo. Pri- impactos dos modos de produção e tro-
meiramente, a ampliação do conceito de cas internacionais sobre o meio ambien-
comércio justo supõe haver mais inter-relação te, no âmbito da busca de um comércio
entre atores e líderes dessas experiências e sustentável.
entre as próprias experiências, para adotar Novos produtos e novos setores de-
e renovar critérios comuns e sensibilizar mandam a elaboração de normas equitati-
outros atores a incorporarem a perspecti- vas, ao mesmo tempo em que a ampliação
va do comércio justo nas dimensões locais, da distribuição dos produtos justos não
regionais e nacionais e nas transações pode incorrer em práticas oligopólicas.
comerciais Sul/Sul e Norte/Norte, supe- Busca-se ainda que a transformação dos
rando a visão restritiva da União Européia, produtos primários seja efetuada pelos
que reconhece apenas a dimensão Norte/ mesmos produtores, o mais próximo pos-
Sul. Sob essa ótica de ampliação, é necessá- sível ao lugar de origem dos respectivos
rio reconhecerem-se os produtores e assa- produtos.
lariados como atores com plenos direitos O movimento do comércio justo faz
e contribuir-se ao alargamento da comu- parte de uma proposta integral de econo-
nicação entre todos os atores do comér- mia solidária, devendo-se articular com
cio justo. Para tanto, é importante imple- outros movimentos e esforços de promo-
mentarem-se plataformas de articulação ção de atividades econômicas solidárias.
entre os atores e experiências de comércio Entre estes, estão as finanças solidárias, o
justo nos níveis local, regional, nacional e desenvolvimento local, o turismo respon-
internacional. sável, o consumo ético, a troca e a moeda
Ao impulsionar estratégias de desen- sociais, as trocas de saberes e os serviços de
volvimento local, como um todo, e, especi- proximidade, entre outros, que permitem
ficamente, de desenvolvimento econômi- gerarem-se sinergias econômicas e sociais
co local, os objetivos centrais do comércio e propiciam, à economia solidária, fazer-
justo devem ser promover a soberania, a se mais presente nos espaços públicos.
segurança alimentar, o emprego, a saúde, No âmbito legal, o comércio justo deve
a diversificação produtiva, a articulação se expressar mediante um estatuto jurídi-
econômica local, a abertura de mercados co nacional e internacional que promova
regionais e o progresso endógeno e inte- e facilite tal atividade. Nesse sentido, é
grado. Na perspectiva de firmar-se a cola- necessário ainda se intervir nos proces-
boração entre o movimento de produção sos de troca e integração comercial que
C
se desenvolvam na esfera internacional. COTERA FRETELL, A. (2008), Visiones de una economía res-
ponsable, plural y solidaria en América Latina y El Caribe, 67
Em aliança com outros atores econômi-
Lima: mimeo.
cos e sociais, devem-se promover diálogos
entre a sociedade civil e os Estados acer- FASSA, R. (1998), RAPPORT sur le commerce équi-
table, Commission du Développement et de la
ca das implicações dos acordos multila-
Coopération.
terais sobre os investimentos, os condi-
cionamentos das instituições financeiras FBES (2007), Experiencias de la Feria de Santa María,
Documentos FBES.
internacionais, as negociações nas zonas
de livre comércio, os convênios e outros FLO-Internacional (2000), El comercio equitativo, una
alternativa viable para pequeños productores.
acordos das cúpulas mundiais. Ao se pro-
moverem acordos de integração equitati- FUNDACIÓN CONSUMIDOR CONSCIENTE (2001), El planeta
va regionais e sub-regionais nos continen- necesita un consumidor consciente.
tes do Sul, assume-se uma atitude crítica GRESP (2001), Memoria del Encuentro Latinoamericano de
e ativa com respeito às propostas dos tra- Comercio Justo y Consumo Ético.
tados de livre comércio e aos acordos de IFAT (2002), Estándares para las organizaciones del comercio
associação. justo, mimeo.
É necessário assumir-se uma estratégia JOHNSON, P. (2001), Alianza para un mundo respon-
integral, afirmando-se os princípios, obje- sable, plural y solidario, Cuaderno de Propuestas para el
tivos e méritos do movimento de comér- Siglo XXI: COMERCIO JUSTO, Ed. Charles Léopold
cio justo. Essa forma de ação implica Mayer.

agir-se em diversos cenários, estabelecen- MCCH – Maquita Cusunchic, Comercializando como


do-se relações de apoio e articulação com Hermanos (2002), Quince años del MCCH, Mercado Éti-
co con Calidad y Espiritualidad, Quito, Ecuador.
outros movimentos sociais que busquem
transformar as condições injustas do atual ORTIZ, H.; MUÑOZ, I. (1998), Simposio Internacional:
sistema econômico e procurando-se ins- Globalización de la Solidaridad: un Reto para Todos, Ed.
GES.
tituir alianças estratégicas com setores
do Estado e empresas que ofereçam ver- PDP – Promoción del Desarrollo Popular A. C. (1999-
2000), Generando un sistema de productos y servicios utili-
dadeiras evidências de responsabilidade
zando vales multitrueque, Tlaxcala, México.
social.
PDP e FONAES (2001), Talleres regionales local, global y
BIBLIOGRAFIA mundial, surge un sistema sinérgico de intercambio de
valores, México.
ALOE (2008), Intercambiando visiones sobre una economía
responsable, plural y solidaria, Paris: FPH. SIMONCELLI-BOURQE, E.; COTERA, A. (2002), Directorio
CHRISTIAN, A. (2001), Manifiesto por el movimiento del de Comercio Justo, Ed. GRESP.
comercio justo, London: mimeo. SOARES, F.; DIEHL, N. (2001), Alianza para un mundo
CIAP – Central de Instituciones de Artesanos y artesa- responsable, plural y solidario, Cuaderno de Propuestas
nas del Perú (2002), “Marcando huellas”, la experien- para el Siglo XXI: CONSUMO ÉTICO, Ed. Charles Léo-
cia de 10 años del CIAP, Lima. pold Mayer.
C
CONSELHOS DE EMPRESA sa europeus merece um destaque especial,
68 Hermes Augusto Costa ainda que também existam experiências
(em menor número) de conselhos de
1. Os conselhos de empresa são instâncias empresas mundiais.
de representação e participação laboral
em contexto empresarial, vinculadas aos 2. De um ponto de vista histórico, pode-
locais de trabalho (shop floor). Ao assegu- rá dizer-se que os conselhos de empresa
rarem a expressão de interesses colecti- se constituem como estruturas comple-
vos dos assalariados de uma determinada mentares aos sindicatos. Embora não
organização, configuram-se, regra geral, sejam propriamente rivais dos sindicatos
como instituições a quem é conferido o mas, sim, paralelos a eles, os conselhos de
direito: de exercer um controle de gestão empresa são organizações que, no espa-
ao nível da empresa; de informação e con- ço da empresa, acabaram por “desafiar”
sulta sobre os aspectos económicos/finan- a hegemonia dos sindicatos. Não no sen-
ceiros ou sociais relativos à actividade da tido de substituírem ou de se tornarem
empresa; de participação nos processos mais representativos do que os sindicatos,
de reestruturação empresarial, organiza- mas de exercerem um controle mais direc-
ção do trabalho, formação profissional, to sobre o processo de produção. O facto
etc. Trata-se, assim, de instâncias que de assentarem numa dinâmica de proxi-
concorrem para a democracia laboral na midade entre trabalhadores e administra-
empresa. ções das empresas – afinal os conselhos de
A utilização do termo “conselhos de empresa actuam no contexto empresarial,
empresa” não é, todavia, uniforme trans- ao passo que a actuação dos sindicatos,
nacionalmente. Na Alemanha, fala-se em podendo ser de empresa, conhece outros
betriebsrät, na França em comité d’entreprise, princípios de organização, como o ofício,
em Itália em consiglio di fabrica, na Bélgi- a indústria ou a categoria – constitui um
ca em conseil d’entreprise, em Portugal em elemento de valorização do seu papel.
comissão de trabalhadores, em Espanha em É inquestionável o papel histórico do
comités de empresa, no Brasil em comissão de movimento sindical no contexto da socie-
fábrica, etc. A composição dos conselhos dade capitalista industrial saída do último
pode também variar entre uma compo- quartel do século XVIII. Esse papel tradu-
sição simples de trabalhadores e uma ziu-se, de resto, na afirmação de um con-
composição mista de interesses laborais junto de ambições – emancipação, homo-
e interesses patronais (neste domínio, geneização e internacionalização – que,
por exemplo, as comissões/comités de por sinal, ainda hoje continua a ser pros-
segurança, higiene e saúde no trabalho seguido. Ainda que com distintos impac-
são uma realidade em vários países). Esta tos à escala internacional, os múltiplos
multiplicidade de experiências nacionais sinais de crise sindical que se abateram
tornaria, pois, recomendável uma certa sobre o sindicalismo nas últimas décadas
uniformidade transnacional de procedi- (crise de agregação de interesses, de soli-
mentos. Assim sendo, a uma escala trans- dariedade ou de representatividade, entre
nacional o papel dos conselhos de empre- outros) e, por vezes, o consequente abra-
C
çar de lógicas burocráticas ou mesmo par- Portugal, por sua vez, as comissões de tra-
69
tidárias têm vindo a pôr a nu algumas das balhadores conheceram sobretudo uma
suas fraquezas. Mesmo que os sindicatos expansão nas médias e grandes empresas
continuem a ser hoje os principais agen- na sequência do 25 de Abril de 1974, em
tes que testemunham a importância da resultado do processo de democratização
centralidade do trabalho nas nossas socie- do país. Poderá mesmo dizer-se que o seu
dades, observa-se que nalguns contextos nascimento foi espontâneo, tendo estas
a sua visão fundadora, assente na busca organizações constituído um importante
de uma outra economia e de uma outra instrumento de democracia directa.
sociedade, vai por vezes cedendo lugar Em teoria, o alcance dos conselhos de
a um enfraquecimento de estratégias de empresa afigurar-se-ia até mais engloban-
contrapoder. te (na medida em que representam todos
O surgimento dos conselhos de os trabalhadores de uma empresa, estejam
empresa não é também (tal como sucedeu ou não sindicalizados) do que o requisito
com o do movimento sindical) simultâneo corporativo e selectivo que recorrente-
em diferentes países. Em países europeus mente se encontra associado à actividade
(como a França, a Alemanha, a Itália ou sindical. Na prática, porém, há dois “con-
a Inglaterra) o seu surgimento remonta tras”: por um lado, é às associações sin-
mesmo ao final do século XIX, início do dicais que é confiado legislativamente o
século XX. Nessa época e, por exemplo, no papel de celebração de convenções colec-
contexto das revoluções russas, aos soviets tivas de trabalho ou de participação na
(conselhos/assembleias) era reservado elaboração da legislação laboral (no Brasil,
o papel de luta revolucionária contra o por exemplo, as comissões de fábrica não
capitalismo no sentido da sua destruição. estão previstas na legislação, ao passo que
Enquanto embrião dos soviets, os conse- em Portugal as comissões de trabalhado-
lhos de fábrica (empresa) conferiam auto- res, embora estejam previstas legalmente,
nomia ao processo produtivo e pugnavam não têm competências de representação
pela abolição da divisão da sociedade em laboral nas negociações colectivas); por
classes. No Brasil, e sem prejuízo de algu- outro lado, a fronteira/autonomia entre
mas referências que remontam ao início conselhos de empresa e sindicatos exis-
do século XX, costuma situar-se a origem te, mas por vezes os representantes que
das comissões de fábrica na região do ABC falam em nome dos conselhos de empresa
paulista entre o final dos anos 1970, início pertencem também aos sindicatos, o que
dos anos 1980, contribuindo para o refor- atesta que os conselhos de empresa não
ço da resistência da classe trabalhadora estão imunes à influência das próprias
brasileira emergente nos últimos anos estruturas sindicais e sobretudo às orien-
da ditadura e acompanhando também o tações político-ideológicas que as guiam.
surgimento do “novo sindicalismo”. A pri- Apesar de não serem um instrumen-
meira experiência de comissão de fábri- to de negociação colectiva, os conselhos
ca remontará mesmo a 1965 (à empresa de empresa desempenham por vezes um
Cobrasma, localizada na cidade de Osas- papel de maior relevo do que os próprios
co), ainda em plena ditadura militar. Em sindicatos. Um exemplo nesse sentido
C
(onde foi notória a influência de um para experiências de carácter transversal e
70
“modelo alemão” de co-gestão) ocorreu transnacional (mesmo que, também aqui,
em Portugal, na Autoeuropa (filial da o seu impacto seja distinto consoante
Volkswagen – VW), onde a administração os sistemas de relações laborais de cada
da empresa e a comissão de trabalhadores país) como as ocorridas no quadro das
acordaram manter mais de um quarto dos multinacionais. Com efeito, no “reino”
empregos em troca de um congelamento das multinacionais, por sinal o leitmotiv da
salarial durante dois anos, confirmando globalização económica, o papel dos con-
o princípio da flexibilidade do horário de selhos de empresa deve ser enquadrado
trabalho sem perda de salário. Este exem- como elemento de novas oportunidades
plo, apesar de contestado e classificado para muitos colectivos de trabalhadores
mesmo de ilegal por alguns representan- espalhados pelo mundo fora. Na linha
tes sindicais (sobretudo os pertencentes da construção das novas solidariedades
às estruturas sindicais com menor poder operárias transnacionais – baseadas, por
de influência nas referidas comissões de exemplo, em múltiplas experiências de
trabalhadores), pois, como se disse, é aos alianças sociais transnacionais sintoniza-
sindicatos que a lei confere os requisitos das com o espírito do Fórum Social Mun-
da contratação colectiva, acabou por não dial e das quais emergem articulações
ser minimamente abalado. A importân- entre lutas emancipatórias de diferentes
cia estratégica da Autoeuropa para a eco- campos sociais –, o papel de tais conse-
nomia portuguesa, aliada ao facto de a lhos de empresa concorre para ajudar a
empresa, influenciada pela tradição alemã desvendar, a uma escala transnacional, a
de parceria social, dialogar preferencial- “caixa negra” das multinacionais e, por-
mente com a comissão de trabalhadores tanto, para ajudar a encontrar alternativas
conferiu a este exemplo sinais de uma para o mundo laboral. A este propósito,
“outra economia” que os sindicatos foram duas experiências regionais transnacio-
levados a aceitar pois não dispunham nais são aqui mencionadas: os Conselhos
também de uma alternativa melhor para de Empresa Europeus (CEE) e o Contra-
propor. Na prática, o conselho de empre- to Colectivo do Mercosul (inspirado nos
sa (comissão de trabalhadores) negociou CEE).
melhores condições de trabalho com a Os CEE são produto de uma regu-
administração da empresa e nessa valori- lação descendente, pois resultam de uma
zação de uma dimensão humana (assen- lei comunitária (Directiva 94/45/CE, de
te na salvaguarda de postos de trabalho) 22.09.1994) que visa melhorar o direito
conquistou o direito ao trabalho e anteci- à informação e consulta dos trabalhado-
pou-se aos sindicatos. res nas empresas ou grupos de empresas
de dimensão comunitária que, no Espa-
3. Não existindo propriamente uma teo- ço Económico Europeu (EEE – Estados-
ria geral sobre o papel dos conselhos de -membros da UE, Islândia, Noruega e
empresa, tanto mais que é em acções con- Liechtenstein), empreguem pelo menos
cretas (e historicamente situadas) que a 1000 trabalhadores e que, em pelo menos
sua utilidade é posta à prova, convirá olhar dois Estados-membros diferentes, empre-
C
guem um mínimo de 150 trabalhadores do acordo foi o de estabelecer princípios
71
em cada um deles (note-se, no entanto, básicos de relacionamento entre capital e
que uma empresa americana, africana, bra- trabalho no âmbito do Mercosul. As prin-
sileira, etc., pode ser abrangida desde que cipais áreas envolvidas foram: a troca de
possua filiais em pelo menos dois Estados informações, a competitividade, a solu-
do EEE). As questões sobre as quais os ção de conflitos, a formação profissional
trabalhadores podem ser informados ou e a representatividade. Este último ponto
consultados – a estrutura da empresa; a merece ser realçado por se ter traduzido
situação económica e financeira; a evo- na constituição de comissões internas de
lução provável das actividades, produção fábrica nas unidades fabris da VW onde
e vendas; a situação e evolução provável não existiam, suscitando assim uma maior
do emprego; os investimentos; as altera- mobilização e pressão conjunta (comis-
ções de fundo relativas à organização; a sões de fábrica e sindicatos) sobre o modus
introdução de novos métodos de traba- operandi da empresa e fiscalizando o cum-
lho ou de novos processos de produção; primento do CCM. Em resultado de um
as transferências de produção; as fusões, aperfeiçoamento do CCM, em 2000 seria
a redução da dimensão ou encerramento celebrado um Protocolo de Entendimento
de empresas, de estabelecimentos ou de acautelando domínios como o intercâm-
partes importantes de estabelecimentos; bio de informações entre representantes
os despedimentos colectivos – apontam, da empresa e representações internas dos
assim, o caminho do reforço do diálogo empregados da VW Brasil e Argentina, a
social dentro das multinacionais. Mas a formação de trabalhadores e a celebração
importância da Directiva extravasa o plano de códigos de conduta (a “Carta Social”
jurídico, na medida em que comporta uma da VW, assinada em 2002, foi exemplo
dimensão política e simbólica fundamen- disso).
tal de sentido ascendente. Ou seja, os CEE Em comum, ambas as experiências
abrem também a possibilidade de criar têm o facto de: i) terem sido constituídas
condições para uma organização laboral em torno de um objectivo amplo: criar
transnacional assente numa articulação de mecanismos de informação e consulta
lutas resultante da partilha de problemas dos trabalhadores nas multinacionais, de
comuns aos trabalhadores de uma mesma modo a instituir princípios de diálogo
empresa, ainda que de diferentes nacio- transnacional entre capital e trabalho; ii)
nalidades, superando-se, assim, barreiras serem instâncias de representação laboral
linguísticas e culturais e reforçando-se o mais amplas, reunindo não apenas sindi-
diálogo social transnacional. catos (mesmo que estes estejam em maior
Celebrado em 1999, e tendo por refe- número), mas também conselhos de
rência o “modelo” dos CEE, o Contrato empresa (comissões de trabalhadores ou
Colectivo do Mercosul (CCM) foi subscri- comissões de fábrica); iii) contribuírem
to, pela parte laboral, por vários sindicatos para a partilha transnacional de experiên-
e comissões de fábrica do Brasil e Argen- cias no local de trabalho e para o reforço
tina e, pela parte patronal, pela VW Brasil da solidariedade operária transnacional;
Ltda e VW Argentina SA. O objectivo geral iv) criarem condições supranacionais de
C
diálogo que muitas vezes compensam os sa salvaguarda do direito à formação dos
72
défices de diálogo à escala nacional. trabalhadores que participam nos CEE;
Mas o facto de estarmos diante de fracturas internas (de tipo cultural, ide-
experiências ainda relativamente escas- ológico e linguístico) entre colectivos de
sas (por exemplo, no que concerne aos trabalhadores; escassez de tempo reserva-
CEE, em meados de 2008, num universo do pelas administrações das empresas aos
de mais de 2200 multinacionais em con- representantes dos trabalhadores para que
dições de os constituir, apenas cerca de estes exponham os problemas e os pontos
800 o haviam feito, num total de mais de de vista dos seus representados; acessos
14 milhões de trabalhadores envolvidos só desiguais à informação, consoante os tra-
na Europa) recomenda que se modere a balhadores participem no Conselho Res-
euforia em redor delas. No caso dos CEE, trito (órgão que gere o CEE) ou estejam
é mesmo possível distinguir entre uma próximos do país-sede da multinacional; o
linha de optimistas – que vêem nos CEE os papel da consulta é recorrentemente sub-
verdadeiros “embaixadores” da Europa vertido, havendo muitas decisões que as
Social – e outra de pessimistas – para quem multinacionais apresentam como meros
os CEE são sobretudo extensões de dife- factos consumados e não obedecendo,
rentes estruturas nacionais de informação como tal, a uma consulta prévia aos repre-
e consulta dos trabalhadores. Na verdade, sentantes dos trabalhadores nos CEE, etc.
são conhecidos resultados favoráveis pro- O processo de revisão da Directiva em
piciados pelos CEE: melhor percepção das curso ao longo de 2008 (depois de estar
actividades das multinacionais (perspecti- previsto desde 1999) dirá que luz se fará
va macro); antecipação de problemas que no futuro sobre esta matéria no sentido de
afectam outras sucursais de multinacio- reverter alguns destes obstáculos.
nais; criação de redes informais e formas O mesmo se poderá dizer do CCM. Por
de interconhecimento à margem das reu- um lado, o CCM significou uma conquista
niões formais; intercâmbio de informa- para os trabalhadores, pois foi portador da
ções e experiências entre representantes conquista de direitos sociais num contex-
(direitos, regalias, métodos de trabalho, to neoliberal adverso, cuja característica
organização laboral, etc.); pressão trans- central é a exclusão. Desde logo no Brasil,
nacional para a resolução de problemas onde é escassa a cultura de organização
nacionais/locais; mitigação da competi- dos trabalhadores no local de trabalho, a
tividade entre sucursais; dinamização de criação de comissões internas de fábrica
acções de solidariedade transnacional; nas unidades fabris da VW onde não exis-
etc. Em simultâneo, porém, são identificá- tiam constituiu, por si só, uma conquista
veis obstáculos à constituição e funciona- importante para os trabalhadores. Por
mento dos CEE: nomeação de represen- outro lado, porém, não podem esquecer-
tantes de trabalhadores manipulada pelas -se alguns obstáculos: o CCM não é ainda
administrações das empresas; direitos de uma realidade facilmente “exportável”
informação sobre transferências de pro- para outras empresas do Mercosul ou
dução, fusões, aquisições ou despedimen- apropriável pelo tecido empresarial; os
tos colectivos relativamente fracos; escas- centros de produção da VW estão muito
C
fechados sobre si mesmos, predominan- de Mestrado em Ciências Sociais), São Paulo: Ponti-
fícia Universidade Católica. 73
do uma visão autocentrada da fábrica
enquanto local de produção; a articulação COSTA, H. A. (2008), Sindicalismo global ou metáfora
entre as várias unidades fabris da VW do adiada? Discursos e práticas transnacionais da CGTP
e da CUT, Porto: Afrontamento.
Mercosul está aquém do que seria dese-
jável; subsistem resistências empresariais DORNELAS, A. (coord.), (2006), Livro verde sobre as rela-
à constituição de comités de negociação ções laborais, Lisboa: Ministério do Trabalho e da Soli-
dariedade Social.
bi-nacionais ou bi-regionais; o CCM está
despido de cláusulas que salvaguardem o KNUDSEN, H. (1995), Employee participation in Europe,
London: Sage.
seu cumprimento e que punam quem o
desrespeite; a crise no mercado automó- LECHER, W.; PLATZER, H.-W.; RUB, S.; WEINER, K.-P.
vel mundial induz igualmente efeitos per- (2002), European Works Councils: negotiated Euro-
peanism. Between statutory framework and social
versos no tecido produtivo, etc.
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CÉSAR, S. (1996), As comissões de fábrica da Ford e da Towards a European Labour Identity. The case of the
Volkswagen na Autolatina: práticas e experiências (Tese European Works Councils, London: Routledge.
C
CONSUMO SOLIDÁRIO necessária ao giro da produção pela venda
74 Euclides André Mance da mercadoria. Essa dinâmica possibilita
a conversão do valor econômico objeti-
1. O ato de consumo não é apenas econô- vo (do bem ou serviço comercializado)
mico, mas também ético e político. A pes- em valor econômico geral, viabilizando a
soa que consome um produto ou serviço obtenção do lucro e o acúmulo de mais-
cuja elaboração ou oferecimento impli- valia. Para atender a essa finalidade, a
quem exploração de seres humanos ou vida útil de muitos produtos é encurtada,
dano ao ecossistema é co-responsável por e estratégias de marketing são adotadas,
esses efeitos. Seu ato de compra contribui visando-se, neste caso, ampliar a busca
para que os responsáveis por essa opres- por certas mercadorias para as quais não
são econômica e pela agressão ambiental havia demanda.
possam converter as mercadorias produ- O consumo como tal pode ser analisa-
zidas daquela forma em capital a ser rein- do enquanto consumo produtivo de insu-
vestido do mesmo modo, reproduzindo mos, energia, etc., para a realização de um
práticas socialmente injustas e ecologi- bem ou serviço, e consumo final, compre-
camente danosas. O consumo é, pois, um endido como o acabamento ou consuma-
exercício de poder pelo qual efetivamen- ção do produto e fruição do bem ou servi-
te se pode tanto apoiar a exploração de ço. Ambos podem ser divididos em quatro
seres humanos, a destruição progressiva classes: alienado, compulsório, realizado
do planeta, a concentração de riquezas e para o bem-viver e solidário.
a exclusão social, quanto se contrapor a O consumo alienado é, em geral, prati-
esse modo lesivo de produção. Neste caso, cado por influência das semioses publici-
promove-se, pela prática do consumo soli- tárias. A mercadoria, neste caso, cumpre
dário, a ampliação das liberdades públicas principalmente o papel de objeto suporte
e privadas, a desconcentração da riqueza dos signos elaborados pela empresa na
e o desenvolvimento ecológica e social- estratégia de marketing, sendo modelada
mente sustentável. Quando uma pessoa sob diversos significados que a associam
seleciona e consome produtos e serviços imaginariamente a propriedades extrínse-
da economia solidária, o valor econômico cas, as quais ela não contém, mas em razão
por ela despendido para tanto realimen- das quais é interpretada e consumida.
ta a produção solidária em prol do bem- Gerando desejos e fantasias, a publicidade
viver de todos os que integram as redes incita as pessoas a comprar determinados
solidárias de produtores e consumidores produtos de certas marcas, não propria-
e, igualmente, fomenta a manutenção do mente por suas funções objetivas de uso
equilíbrio dinâmico dos ecossistemas. (similares às de outros produtos de mes-
O consumo final é o instante de aca- mo tipo disponíveis no mercado), mas por
bamento do processo produtivo. Teorica- associá-los semioticamente a outros obje-
mente, é em função dele que o processo tos que gostariam de ter, situações que
de produção é organizado, contudo, nas lhes parecem aprazíveis ou identidades
sociedades capitalistas, o próprio con- que almejariam assumir. Ao comprar tais
sumo acaba reduzido a uma mediação produtos, entretanto, as pessoas assegu-
C
ram o lucro a determinada empresa e não produtos e serviços da economia solidária
75
a uma concorrente, viabilizando assim a em relação aos produtos de empresas que
completude do seu giro de produção. exploram os trabalhadores e degradam
O consumo compulsório é aquele indis- os ecossistemas. O consumo solidário é
pensável à satisfação de necessidades bio- igualmente praticado com vistas a contri-
lógicas, culturais e situacionais, ocorren- buir-se à geração e manutenção de postos
do quando a pessoa tem poucos recursos de trabalho sob estratégias de desenvol-
para atendê-las ou não dispõe de alterna- vimento territorial sustentável, para se
tivas. Neste caso, quando o consumidor preservar o equilíbrio dos ecossistemas e
faz suas compras, busca geralmente o pro- melhorar o padrão de consumo dos parti-
duto mais barato, mesmo que ele não seja cipantes de redes colaborativas solidárias.
de boa qualidade, visando essencialmente Concorre-se, assim, para a construção
alcançar a quantidade requerida para o de sociedades mais justas e sustentáveis,
atendimento a suas necessidades. Aqui, a combatendo-se a exclusão societária e a
preocupação primeira não se relaciona à degradação ambiental.
melhor qualidade do produto ou a marcas A todos favorece a adoção de preços
famosas, mas à ampliação da quantidade justos, negociados com autonomia entre
do que a pessoa poderá comprar com o produtores, comerciantes e consumi-
mesmo dinheiro, que lhe é pouco. Outro dores no interior de redes colaborati-
caso em que também se pratica o consu- vas solidárias, com base em critérios de
mo compulsório, é aquele em que, por ordens ética e econômica, remunerando
exemplo, para chegar-se a um destino, é de maneira equitativa o trabalho e resul-
necessário pagar-se pedágio a fim de se tando em preços acessíveis aos consumi-
transitar por uma via, não havendo rota dores. Essa realidade torna-se possível
alternativa. graças ao privilégio dado a cadeias produ-
O consumo para o bem-viver, por sua vez, tivas curtas e à sua remontagem solidária,
ocorre quando o consumidor não se dei- suprimindo-se os focos de concentração
xa iludir pelas artimanhas publicitárias. de riqueza em seu interior, particular-
Tendo recursos que possibilitam escolher mente os verificados nos processos de
o que comprar, opta por aqueles produtos intermediação, logística e financiamento
e serviços adequados a seu bem-viver, à da produção e consumo. O consumo soli-
satisfação de sua singularidade como ser dário dos produtos e serviços dessas redes
humano. colaborativas possibilita que seus empre-
Por fim, o consumo solidário é aquele endimentos vendam toda a sua produção,
praticado em função não apenas do bem- ampliando-se o excedente alcançado e
viver pessoal, mas também do bem-viver as possibilidades de seu reinvestimento
coletivo, em favor dos trabalhadores que coletivo na implantação de outros empre-
produzem, distribuem e comercializam os endimentos solidários, remontando-se as
bens e serviços consumidos e, igualmen- cadeias produtivas. Esse reinvestimento
te, em prol da manutenção do equilíbrio gera novos postos de trabalho e viabili-
dinâmico dos ecossistemas. Trata-se, pois, za a produção de outros bens e serviços
do consumo em que se dá preferência aos ainda não disponibilizados nessas redes,
C
assegurando-se sua oferta aos consumido- consumidor os famosos 4R: a) redução do
76
res, com mais diversidade e melhor quali- consumo de itens inúteis, descartáveis,
dade. Igualmente, incrementa a distribui- que despendem recursos não-renováveis,
ção de renda, pela incorporação de mais etc.; b) reutilização dos bens, abandonando
pessoas ao processo produtivo, o que, por modismos, adquirindo produtos usados,
sua vez, possibilita o aumento de deman- etc.; c) reparação dos bens que se danifi-
da final e de sua satisfação com produtos cam, aumentando sua vida útil; e d) recicla-
e serviços de economia solidária, preser- gem de tudo que seja possível, reduzindo
vando-se o equilíbrio dos ecossistemas. o descarte e a emissão de resíduos. Além
disso, propõe-se: não desperdiçar energia
2. O conceito de consumo solidário é (petróleo e outros recursos) e privilegiar
sucedâneo à noção de consumo crítico, o uso da energia renovável; agir defensi-
desenvolvido nas últimas duas décadas, vamente nos supermercados (uma vez que
tendo origem em movimentos ecológi- a música ambiental, a exposição dos obje-
cos e de defesa dos consumidores. Sob tos, as entregas em domicílio, a facilitação
a lógica do consumo crítico, cada ato de de pagamento, o incentivo ao endivida-
consumo é um gesto de dimensão pla- mento, as publicidades e outros elemen-
netária, passível de tornar o consumi- tos visam incitar ao consumo de bens que,
dor um cúmplice de ações desumanas e a rigor, seriam dispensáveis); encorajar os
ecologicamente prejudiciais, pois o con- serviços coletivos – em particular, o uso do
sumo pode ser poluidor, insustentável e transporte público – ou a utilização cole-
opressivo. Além de se considerar o lixo tiva de equipamentos tais como lavadoras,
final derivado do consumo – invólucros, computadores, etc.; por fim, superar o
embalagens, etc. –, avalia-se o impacto medo da sobriedade, isto é, perceber que
ambiental do processo produtivo, que é possível viver confortavelmente dispon-
pode ser insustentável, causando não do de menos objetos e utensílios os quais,
apenas fenômenos de esgotamento de muitas vezes, nada acrescentam signifi-
recursos naturais, mas também mudan- cativamente às mediações necessárias ao
ças prejudiciais aos ecossistemas locais e bem-viver.
planetário. Como exemplos, há o aumen- A fim de pressionarem as empresas
to do buraco na camada de ozônio, o efei- no sentido de terem práticas socialmen-
to estufa, a alteração de correntes de ar, te justas e ecologicamente sustentáveis,
chuvas ácidas e muitos outros, cujas con- consumidores desenvolveram, ao longo
sequências são dramáticas para as popu- do tempo, dois instrumentos: o boicote e
lações e para o planeta como um todo. O o consumo crítico. O boicote consiste na
consumo pode ainda configurar-se como “[...] interrupção organizada e temporária
uma forma de conivência com a opressão da aquisição de um ou mais produtos para
e a injustiça, quando consumimos produ- forçar a sociedade produtora a abandonar
tos que resultam de atividades produtivas certos comportamentos” (CENTRO..., 1998,
desumanas e cruéis. p. 18). Por sua vez, o consumo crítico é “[...]
Em frente a essa situação, consideran- uma postura permanente de escolha, toda
do-se o aspecto ecológico, propõe-se ao vez que fazemos algum gasto, em frente a
C
tudo o que compramos. Concretamente, tégia de enfrentamento à reprodução
77
o consumo crítico consiste em escolhe- do capitalismo. Segundo a primeira, o
rem-se os produtos tendo por base não consumo solidário “[...] pressupõe um
somente o preço e a qualidade destes, mas conhecimento a respeito de cada pro-
também a sua história e a dos produtos duto – desde quem os produziu, a forma
similares, e o comportamento das empre- como foi feita, o material utilizado e os
sas que os oferecem.” (ibid., p. 19). Des- impactos da produção e consumo desses
se modo, o consumo crítico apóia-se no produtos no meio ambiente e na socieda-
exame dos produtos e das empresas que de – que é impossível de ter” (ASSMANN
os elaboram, permitindo, ao consumidor, e MO SUNG, 2000, p. 150). A segunda
pautar suas escolhas por critérios cons- objeção segue os argumentos de Singer
cientes, considerando, além das qualida- (2002, p. 119), para quem, “ao proteger
des técnicas dos produtos e seus similares, as pequenas unidades solidárias de pro-
os impactos de sua produção e consumo dução, o consumo solidário lhes poupa a neces-
sob uma perspectiva econômica, ética e sidade de se atualizar tecnicamente, levando-as
ecológica. a se acomodar numa situação de inferioridade,
O consumo crítico distingue-se do em que ficam vegetando”.
consumo solidário porque é possível pra- À primeira objeção, contrapõe-se o
ticar-se o consumo crítico comprando-se fato de ser possível representar-se facil-
produtos tanto de empresas capitalistas, mente, em um selo, os elementos soli-
como de empresas solidárias. Já o consu- dários e ecológicos de qualquer produto
mo solidário pode ser praticado somente ou serviço, considerando-se toda a sua
ao comprarem-se produtos e utilizarem- cadeia produtiva. Um selo desse tipo pode
se serviços que sejam oriundos da econo- se compor de uma figura dividida basi-
mia solidária. camente em três partes, reservadas aos
aspectos de insumos, produção e comer-
3. A difusão do consumo solidário é um cialização. Essas partes podem ser sub-
dos elementos centrais à estratégia de divididas em outras duas, referindo-se às
expansão das redes de colaboração soli- propriedades solidárias e ecológicas dos
dária ou das redes colaborativas de eco- insumos, da produção e da comercializa-
nomia solidária. A difusão desse consu- ção. Cada um desses seis campos, por sua
mo possibilita, aos empreendimentos, a vez, pode ser preenchido, em proporções
venda de toda a sua produção e a geração diversas, com cores distintas indicando
de excedentes que, reinvestidos coletiva- afirmação, negação ou desconhecimento
mente, permitem montar novos empreen- daquela propriedade. A proporção de pre-
dimentos autogestionários. Remontam-se enchimento tanto pode corresponder ao
assim as cadeias produtivas e expandem- valor relativo de custos dos diversos itens
se as redes colaborativas, diversificando de certos campos, quanto seguir padrões
as ofertas e ampliando seu número de preestabelecidos pelas redes colaborati-
consumidores. vas de economia solidária.
Duas são as principais objeções à prá- Considerando-se diversas escalas des-
tica do consumo solidário como estra- sas proporções, podem-se gerar códigos
C

78

de barras capazes de armazenar as infor- primeiro número indica a propriedade


mações das cadeias produtivas peculiares ecológica, e o segundo, a solidária.
a cada produto, como no exemplo do Basta considerar-se a participação
código simplificado, abaixo. Na primei- dos insumos diversos na composição do
ra parte da barra, tem-se a especificação produto final para gerarem-se as pro-
do caráter solidário e ecológico e, na segun- porções que lhe sejam correspondentes
da parte, do não-solidário e não-ecológico. ao selo de tal produto. Considerando-se
Assim, quanto mais próximo de 9 esti- as peculiaridades do empreendimento
verem as barras da primeira parte, mais que o produz, define-se o segundo par
ecológico e solidário será o produto. de valores e, observando-se a forma de
Quanto mais próximo de 9 estiverem as comércio do produto, define-se o tercei-
barras da segunda parte, menos solidá- ro par.
rio e ecológico ele o será. Em ambas as Quanto à segunda objeção, descon-
partes, o primeiro par de dígitos refere- sidera-se que o consumo solidário é uma
se aos insumos, o segundo, à produção e modalidade do consumo para o bem-viver.
o terceiro, ao comércio. Em cada par, o Se o produto assegura o bem-viver do con-
sumidor e o processo produtivo garante o
bem-viver dos produtores e o equilíbrio
do ecossistema, não há problema em que
ele seja mantido em tais parâmetros de
sustentabilidades técnica, social e ecoló-
gica. Entretanto, se o produto deixa de
propiciar bem-viver aos consumidores,
em razão do refinamento da sensibilidade
destes, ou se o processo produtivo invia-
biliza a geração de mais tempo livre, con-
C
siderando o desenvolvimento tecnológico BIBLIOGRAFIA
79
já alcançado socialmente, então caberá às ASSMANN, H; MO SUNG, J. (2000), Competência e sensi-
redes solidárias promover as transforma- bilidade solidária: educar para a esperança, Petrópolis:
Vozes.
ções requeridas para que os novos padrões
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Paulo: Fundação Perseu Abramo.
C
COOPERAÇÃO Na perspectiva do materialismo histórico,
80 Paulo de Jesus Marx (1980, p. 374) define a cooperação
Lia Tiriba como “a forma de trabalho em que muitos
trabalham juntos, de acordo com um pla-
1. O termo cooperação está dicionarizado no, no mesmo processo de produção ou
como o ato de cooperar ou operar simul- em processos de produção diferentes mas
taneamente, colaborar, trabalhar em con- conexos”. Tendo se dedicado, no capítulo
junto. Está associado às idéias de ajuda XI do livro I de O Capital, a analisar a coo-
mútua, de se contribuir para o bem-estar peração no processo de trabalho, o autor
de alguém ou de uma coletividade. No destaca que “o simples contato social, na
sentido amplo, indica a ação coletiva de maioria dos processos produtivos, provoca
indivíduos com o intuito de partilhar, de emulação entre os participantes, animan-
forma espontânea ou planejada, o traba- do-os e estimulando-os, o que aumenta
lho necessário para a produção da vida a capacidade de realização de cada um”
social. Também é entendido como proces- (MARX, 1980, p. 375). Nesse sentido, os
so social em que pessoas, grupos, institui- processos cooperativos, nos quais se com-
ções e/ou países atuam de forma combina- bina o trabalho de muitos trabalhadores,
da para atingir objetivos comuns ou afins caracterizar-se-iam pela fusão de muitas
(v. Cooperação internacional). No sentido forças em uma força social comum, o que
restrito, a cooperação é entendida como resulta em um produto global diferente
a base das relações econômico-sociais que das forças individuais dos trabalhadores
os trabalhadores associados pretendem isolados ou superior à soma dessas. Redu-
estabelecer no processo de trabalho (v. zindo o tempo socialmente necessário
Cooperativismo). Denota um valor ético- para a produção, a jornada coletiva de tra-
político, resultante de uma visão de mun- balho geraria uma quantidade de valores
do e de ser humano que atribui ao sujeito de uso maior que a soma das jornadas de
coletivo a disposição, o empenho, a soli- trabalho individuais, isoladas. Em outras
dariedade, o compromisso de apoiar, de palavras, o aumento da capacidade pro-
fazer com, de produzir com, de tomar par- dutiva não seria o resultado da elevação da
te de um empreendimento coletivo cujos força individual de trabalho ou o produto
resultados dependem da ação de cada um da soma das forças produtivas individuais,
dos sujeitos ou instituições envolvidas. mas o efeito da criação de uma força pro-
dutiva nova: a força social coletiva. Para
2. Em todos os espaços e tempos his- Marx, a força produtiva do trabalho social
tóricos, para garantir sua sobrevivência teria sua origem na própria cooperação,
enquanto espécie, os seres humanos traba- que, em última instância, seria parte cons-
lham em cooperação. Sendo uma ação inten- titutiva do processo de formação humana,
cional para atingir determinados objeti- pois, “ao cooperar com outros, de acordo
vos, as peculiaridades da cooperação têm com um plano, desfaz-se o trabalhador dos
como referência as formas como os grupos limites de sua individualidade e desenvolve
e classes sociais relacionam-se no processo a capacidade de sua espécie” (MARX, 1980,
de produção da realidade humano-social. p. 378).
C
A partir do conceito marxiano de coo- Na perspectiva marxiana, “a coopera-
81
peração, podemos inferir que, ao contrá- ção capitalista não se manifesta como for-
rio da competição, em que um trabalha- ma histórica especial da cooperação, mas
dor ou um grupo de trabalhadores tenta a cooperação é que se manifesta como for-
maximizar suas vantagens em detrimento ma histórica peculiar do processo de pro-
dos demais, a cooperação pressupõe a dução capitalista, como forma histórica
coordenação do esforço coletivo para se que o distingue especificamente” (MARX,
atingirem objetivos comuns. Fundada na 1980, p. 384). Nesse mesmo horizonte,
divisão do trabalho e sendo a forma como podemos verificar haver, ao longo do capi-
os homens, trabalhando lado a lado, com- talismo, distintas tecnologias de produ-
pletam-se mutuamente, Marx sinaliza que ção e de gestão da força de trabalho que
a cooperação manifesta-se desde o iní- pressupõem existir diferentes estilos de
cio das civilizações, estando presente nos cooperação. Essas tecnologias originam,
modos de produção anteriores ao capita- grosso modo, a “cooperação passiva” e
lismo. A despeito dessa ampla ocorrência, a “cooperação ativa”, em diversos níveis.
é preciso distinguirem-se três formas de Na primeira, o comando da cooperação
cooperação: a) a cooperação que se funda- dos assalariados cabe à gerência cientí-
menta na propriedade comum dos meios fica (organização taylorista-fordista); na
de produção; b) a que se baseia nas rela- segunda, mesmo se diminuindo os níveis
ções diretas de domínio e servidão (como de hierarquia e aumentando-se os níveis
na Idade Média); e c) aquela que pressupõe de participação na gestão da empresa
o assalariamento, ou seja, a venda da for- (organização toyotista), as ações dos tra-
ça de trabalho. É no capitalismo que esta balhadores permanecem sob o comando
última apareceria como força produtiva do da “autoridade do capitalista, como o
capital. Seu valor de uso torna-se a produ- poder de uma vontade alheia que subor-
ção de mais-valia, assegurada pela reunião dina a um projeto próprio a ação dos assa-
e atuação de vários trabalhadores no mes- lariados aos objetivos do capital” (MARX,
mo local ou no mesmo campo de ativida- 1980, p. 380).
de. Sob a coordenação, direção e controle Admitindo-se existirem diferentes
do capitalista e daqueles que o represen- contextos em que se processa a coopera-
tam na divisão do trabalho, a cooperação ção (relações diretas de domínio e servi-
é obtida por meio da emulação, da promo- dão, propriedade comum dos meios de
ção do ânimo dos trabalhadores. Ao deter- produção e assalariamento), é possível
minar o ritmo e a intensidade do trabalho afirmar-se que o exercício da cooperação
coletivo, a maquinaria cumpre um papel pode ensejar diversas práticas sociais, o
fundamental no processo cooperativo, que pode igualmente sugerir haver posi-
garantindo a subsunção efetiva do traba- cionamentos distintos em relação ao ato
lhador ao capital. A produtividade do capi- de se produzir. Em se querendo uma outra
tal não seria a soma das forças individuais economia (v. Associativismo, Economia Soli-
de trabalho, mas o resultado da nova força dária, Economia Popular e Desenvolvimento
coletiva produzida pelo trabalho combina- Local, entre outros), sinaliza-se também
do dos trabalhadores assalariados. para outra sociedade, onde, espera-se,
C
predominem os contextos de proprieda- poder antecipar um proveito da coopera-
82
de comum dos meios de produção. Em ção”. Em contrapartida, Monnier e Thiry
tal sociedade, ensejam-se estruturas pro- (1997), por exemplo, chamam a atenção
dutivas formatadas de modo a evitar-se a para o enfoque neoliberal ou utilitário-
exclusividade sobre a produção da mais- monetarista, segundo o qual a hipótese
valia – restrição essa típica da produção do egoísmo, que caracterizava inicialmen-
capitalista –, embora tenhamos como cer- te só o homo æconomicus, foi progressiva-
to um bom período em que ocorreriam mente contaminando todas as áreas da
relações comerciais com outras estruturas atividade humana, inclusive da vida fami-
econômicas. Nessa direção, haveremos de liar, tendo hoje se radicalizado. A visão de
redefinir e reotimizar cooperação, admitin- homem egoísta normal teria passado para
do, por exemplo, ser uma nova cooperação aquela de “homem egoísta total, cínico e
ativa aquela em que os trabalhadores per- calculador, que persegue seu interesse”
mitam-se trabalhar com, aceitando, inclu- quase sempre medido pelas vantagens
sive, eventual divisão técnica do trabalho pecuniárias. Esses autores evocam as últi-
a partir de ato voluntário. mas tendências das pesquisas em ciências
No atual contexto em que, com a cri- cognitivas, que mostram o ser humano
se do emprego estrutural, vivencia-se a como um sujeito no qual se enfrentam
proliferação de organizações econômicas permanentemente a utilidade ou inte-
associativas, frequentemente se escuta: resse e a moral: “mesmo que o indivíduo
aqui não há cooperação! As pessoas não coo- seja um ser racional que sabe escolher os
peram! A discussão sobre a natureza dos meios adequados aos fins que persegue,
motivos que levam uma pessoa a parti- também atua sob o impulso das emoções
cipar de uma cooperativa, por exemplo, e sob a influência de certos valores. [...] os
pode ser importante para compreensão valores de solidariedade e de democracia
dos desafios da organização dos trabalha- econômica, em que se baseiam os movi-
dores. Poder-se-ia então perguntar: quais mentos cooperativos e mutualistas e a
os motivos da falta de cooperação? O que incita ação voluntária, dificilmente têm espaço
o trabalhador ou trabalhadora para a prática na visão ‘utilitário-monetarista’ do indiví-
da cooperação? Na resposta a essas ques- duo” (MONNIER e THIRY, 1997, p. 17). Talvez
tões, a polarização “interesse individual” se possa afirmar, contudo, que os motivos
versus “interesse coletivo” novamente se que levam à cooperação tanto podem ser
manifesta. Há autores como Eschenburg de natureza individual, como podem ser
(1983, p. 7) para quem, “segundo a teoria relacionados ao interesse geral ou coleti-
econômica, o indivíduo toma uma decisão vo: quando alguém decide integrar uma
a favor da cooperação somente quando a cooperativa ou dela participar, o faz por
cooperação lhe favorece a possibilidade razões ou motivos pessoais/individuais
de uma maior satisfação de suas neces- (sozinho/a não teria condições de mon-
sidades, comparando-as com as outras tar um empreendimento) e por razões
possibilidades”, ou seja, “um grupo de coletivas (a consciência de que está opor-
indivíduos se une em cooperação quando, tunizando renda para o grupo de pessoas
e somente quando cada um deles acredita que integram o empreendimento ou está
C
contribuindo para uma cultura do traba- derações sejam pertinentes, não se pode
83
lho calcada em novas relações econômi- deixar de lado o fato de que, nos casos de
co-sociais). Razeto (1993) entende que, “subdesenvolvimento estrutural social e
dependendo do grau de estabilidade dos econômico”, como no Brasil, havia uma
processos cooperativos e dos valores que sociedade e uma economia baseadas na
os trabalhadores e trabalhadoras atribu- força de trabalho escrava. Nesse contex-
am às organizações econômicas popula- to, os movimentos sociais tinham como
res, estas podem representar uma estra- motivação e objetivo primeiro a libertação
tégia de sobrevivência, uma estratégia de dos escravos, existindo poucas condições
subsistência e, mesmo, uma estratégia de de pensar-se nas formas de organização
vida. No último caso, a preferência pelo do trabalho cooperativo. Também não
trabalho associado ou cooperativo dar-se- se pode esquecer de que, no começo do
ia porque as pessoas consideram fecha- século XX, o movimento cooperativo esta-
das as formas tradicionais de trabalho ou va legalmente vinculado ao movimento
porque valorizam a liberdade, o compa- sindical, sendo de competência dos sindi-
nheirismo e o exercício da autogestão. catos a criação de cooperativas (LUZ FILHO,
Na tentativa de se buscar a unidade 1939).
dialética entre o “local” e o “global”, há Ao resgatar as relações de cooperação
que se considerar que a motivação para na história da humanidade, autores como
cooperar está relacionada com as condi- George Lasserre (1967) analisam que,
ções materiais e imateriais que dão sus- nas “comunidades naturais”, o indivíduo
tentação a uma determinada estrutura encontrava, no grupo, a proteção e os
econômico-social, a qual só pode ser com- meios materiais necessários à vida. Embo-
preendida se situada no espaço/tempo ra ele não gozasse de direitos nem de exis-
histórico. Os vínculos com os movimentos tência jurídica própria, nessas sociedades
sociais são um elemento a ser levado em predominava um pensamento conformis-
conta nas relações de cooperação. Quanto ta em face do abuso de poder por parte de
a essa questão, é elucidativa a comparação chefes e castas dirigentes, que oprimiam
feita por Patrick Develtere (1998) entre a as pessoas e opunham clãs, nações e impé-
expansão do movimento cooperativo na rios (ibid., p. 5). Para o autor, o coletivis-
Europa e a situação verificada nos países mo foi pouco a pouco sendo substituído
do hemisfério sul. O autor defende a tese pela civilização individualista, a qual se
de que toda iniciativa cooperativa que não materializa por meio de várias revolu-
se apóie em um movimento parece conde- ções, a saber: revolução econômica (sucedi-
nada ao fracasso. No caso de países perifé- da quando os indivíduos separaram-se
ricos do capitalismo, as cooperativas não da economia familiar para terem uma
apresentaram ligação alguma com outros vida econômica independente); revolução
tipos de associações cívicas, tais como as intelectual (ocorrida no Renascimento,
associações de ajuda mútua e os grupos de quando o homem descobriu o uso da razão
auto-assistência, entre outros, não fazen- e do pensamento livre e laico, tornando a
do parte de amplos movimentos sociais ciência possível); revolução espiritual (iden-
(DEVELTERE, 1998). Embora essas consi- tificada com a Reforma, que “possibilitou
C
a conquista mais preciosa da era indivi- tários. De acordo com as relações que os
84
dualista: a liberdade de consciência”); grupos e classes sociais estabeleçam entre
revolução agrícola (verificada quando os si no processo de produção material, a coo-
camponeses liberaram-se das formas cole- peração pode ser voluntária ou mesmo for-
tivas e dos direitos feudais); revolução políti- çada pelas circunstâncias sociais. No atual
ca (quando a democracia passa a favorecer contexto histórico do século XXI, quando,
a conquista das liberdades individuais fun- com a crise estrutural do emprego, obser-
damentais) e revolução industrial (associada va-se o crescimento vertiginoso de organi-
ao capitalismo moderno e ao progresso zações econômicas geridas pelos próprios
material rápido). Ao analisar os processos trabalhadores, muito se tem debatido sobre
civilizadores calcados no individualismo, os desafios colocados aos processos coope-
Lasserre enfatiza que “o movimento da rativos. Na perspectiva de constituição de
história se inverte: o individualismo pare- uma “outra economia”, tem-se perguntado
ce ter dado tudo que podia dar e esgota de que maneira seria possível, na prática,
sua fertilidade [...] A tendência que se materializar-se um estilo de cooperação
desenha agora é a de um retorno ao cole- em que a coordenação do esforço coleti-
tivo”, seja em função do progresso técnico vo tivesse como horizonte a possibilidade
(ruptura com as velhas rotinas, no qual de, nos termos de Gramsci (1982), todos
a iniciativa individual e a livre iniciativa os trabalhadores tornarem-se governantes
estão superadas e as fortunas individuais de si, controlando aqueles que, transito-
mostram-se insuficientes, impondo-se a riamente, os dirigissem. Cabe indagar se a
sociedade anônima), seja devido à condi- gestão cooperativa contribui, de fato, para
ção de classe dos trabalhadores construída a construção da autonomia dos trabalha-
historicamente pelo capitalismo. O autor dores ou assemelha-se à gestão participati-
conclui que “os trabalhadores compreen- va proposta pelos empresários.
deram pouco a pouco que uma mudança Pode se apresentar como um desafio a
profunda de natureza social era neces- discussão mais ampla acerca das concep-
sária e que sua única arma [...] residia na ções e práticas de organização do processo
associação, graça à qual, seu número, de de trabalho em que grupos sociais tenham
fraqueza, transformava-se em força”. Para por horizonte a construção de relações
Lasserre (1967, p. 6-9), o movimento dos de cooperação, aqui entendida como prá-
trabalhadores desenvolve-se e progride tica econômica, social e cultural e como
crescentemente em três direções princi- movimento dos trabalhadores associados
pais: o sindicalismo, o socialismo político na produção da vida social. No processo
e a cooperação. A última nasceu “no mes- de (re)criação de relações de convivên-
mo meio social, na mesma época, da mes- cia que caminhem no sentido inverso ao
ma miséria proletária e da mesma opres- da “sociedade dos indivíduos”, ou seja,
são, sob o impulso do mesmo espírito que “do mercado”, pode tornar-se relevante a
originou o sindicalismo e o socialismo”. compreensão da necessidade de se supe-
Ao longo da história da humanidade, a rar a “cooperação capitalista” como meca-
cooperação tem sido um elemento chave nismo de exploração da força de trabalho.
de produção e reprodução dos laços socie- O desafio consiste em estabelecerem-se
C
as condições objetivas e subjetivas para o LASSERRE, G. (1967), La coopération, Paris: PUF.
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C
COOPERAÇÃO INTERNACIONAL timento directo estrangeiro e o fluxo de
86 Dipac Jaiantilal capitais financeiros privados, por se rege-
rem pela lógica da maximização do lucro
1. Por cooperação internacional, em sen- privado. Estas duas últimas modalidades
tido lato, entende-se o conjunto de acções não serão tratadas aqui, senão quando se
de carácter bilateral ou multilateral relacionem com as principais formas de
desenvolvidas por organizações públicas cooperação internacional mencionadas.
internacionais, como as Nações Unidas, De entre as formas de cooperação
ou por organizações não-governamentais internacional, assume principal relevância
e da sociedade civil com vista a colaborar a chamada Assistência Pública ao Desen-
num objectivo de reconhecido interesse volvimento (APD), não só pela sua dimen-
para um determinado país e relacionado são, mas sobretudo por conter elementos
com o seu desenvolvimento. Num senti- de concessionalidade (na forma de dona-
do mais restrito, e mais frequentemente tivos ou de empréstimos a juros abaixo do
usado, o objectivo declarado da coope- nível de mercado) e ser principalmente
ração internacional é a promoção do motivada pela ajuda ao desenvolvimento.
desenvolvimento de países periféricos ou São estas características que permitem
da semi-periferia caracterizados por ele- que os receptores da assistência possam,
vadas taxas de pobreza e por um acesso na medida do permitido pelos condicio-
inadequado e desigual aos serviços bási- nalismos geralmente ligados aos acordos
cos com o concurso de recursos dos países de concessão, utilizá-la em actividades
industrializados. Existem contudo fluxos económicas de tipo solidário, nomea-
de cooperação entre os países do Sul – a damente em empreendimentos colecti-
chamada cooperação Sul-Sul – quer seja vos de geração de rendimentos visando
entre os países periféricos, quer seja entre a inclusão dos pobres e excluídos pela
estes e os países chamados emergentes economia de mercado e a sua participa-
como o Brasil, a Índia, a África do Sul e a ção na gestão e no desenvolvimento local,
China, ou ainda entre os próprios países com reforço do respectivo tecido social.
emergentes. Contudo existem hoje várias organiza-
Mesmo entre países ricos e industria- ções governamentais internacionais de
lizados do Norte existem formas de coo- grande dimensão que se dedicam tanto
peração internacional, seja de tipo for- a acções de desenvolvimento nos países
mal como no caso da OCDE, seja de tipo periféricos (Oxfam, Action Aid, Mercy
semi-formal ou informal como no caso Corps) quanto à dinamização do “comér-
dos fóruns internacionais do grupo dos cio justo” entre os mercados dos países
países mais industrializados, G-7, a nível desenvolvidos e a produção dos países
ministerial, e G-8, a nível presidencial, de subdesenvolvidos. O mesmo acontece
elevada influência na direcção das linhas com fundações de carácter desenvolvi-
principais de evolução política, económi- mentista ou filantrópico que já atingiram
ca e financeira do mundo contemporâneo. um volume financeiro e de actividades
Geralmente excluem-se da noção de coo- considerável e que não podem deixar de
peração internacional os fluxos de inves- ser referidas neste contexto.
C
2. No período posterior à vaga de consti- 1952 a base legal da sua ajuda internacio-
87
tuição das nações modernas, nos séculos nal, o “Mutual Security Act”, pela qual a
XVIII e XIX, assistiu-se a disputas interna- cooperação ficou desde o início compro-
cionais pelo controlo dos mercados ou pela metida com os objectivos estratégicos de
hegemonia económica que culminaram segurança internacional e com os impe-
na I Guerra Mundial. Em resultado desta rativos da guerra fria, e ao abrigo da qual
foi criada a Liga das Nações para, através foi prestada ajuda, entre outros países, à
de negociações e diplomacia, garantir um Coreia do Sul, Formosa (Taiwan), Filipi-
sistema de segurança colectiva, o desar- nas, Tailândia, Paquistão e Irão.
mamento e a prevenção de guerras bem O final da Guerra Mundial inicia o
como a melhoria da qualidade de vida glo- período das independências na Ásia – Fili-
bal (Tratado de Versalhes, 1919-20). Ape- pinas em 1946, Índia e Paquistão em 1947
sar de alguns sucessos iniciais notáveis, a e Ceilão em 1948 – e, um pouco mais tar-
Liga das Nações mostrou-se incapaz de de, na África – Gana em 1957 –, tendo os
impedir a agressão das Potências do Eixo novos países passado a ter uma voz na are-
nos anos 1930 e o começo da II Guerra na internacional, mesmo que fraca. A assi-
Mundial, tendo após o final desta sido metria de poder entre os “doadores”, de
substituída pela Organização das Nações um lado, e os “recipientes” da assistência
Unidas (ONU). Esta herdou um número internacional, do outro, foi e continua a
de agências e organizações fundadas pela ser em grande medida uma característica
Liga, entre as quais a OIT (Organização das relações desiguais entre estes grupos
Internacional do Trabalho) e a OS (Orga- de países. Em 1955 ela veio a ser reconhe-
nização de Saúde, rebaptizada a partir de cida na Conferência Afro-Asiática de Ban-
então de OMS, Organização Mundial de dung dando lugar ao surgimento do que
Saúde). viria a ser designado de movimento dos
Do fim da II Guerra à década de 1980. não-alinhados. Dois anos depois, é cria-
Com a vitória dos aliados liderada pelos do o Fundo Europeu de Desenvolvimen-
EUA, seguiu-se um período de hegemo- to para apoiar financeiramente projectos
nia desta potência na Europa Ocidental nas antigas colónias de África, Caraíbas e
e no Mundo não-socialista. O sucesso da Pacífico, a que se segue a criação do Ban-
reconstrução europeia, graças ao Plano co Interamericano de Desenvolvimento,
Marshall, gerou a convicção optimista bem como de outros bancos de desenvol-
de que seria possível replicar o desenvol- vimento similares para a Ásia e África.
vimento nas zonas subdesenvolvidas do Nos anos 1960 surge a APD (Ajuda
mundo, ao mesmo tempo que se tentava Pública ao Desenvolvimento) e o princípio
impedir o avanço do comunismo para além do tratamento preferencial aos países peri-
dos países do Leste Europeu. Em 1944 foi féricos, em 1964 a CNUCED (Conferên-
instituído um novo sistema financeiro cia das Nações Unidas para o Comércio e
mundial, com a criação do Banco Mundial Desenvolvimento) e, no mesmo ano, apro-
(BM) e do Fundo Monetário Internacio- va-se o Sistema Generalizado de Preferên-
nal (FMI), que se tornou operacional em cias, dentro do AGTC (Acordo Geral de
1946. Por sua vez, os EUA aprovaram em Tarifas e Comércio), antecessor da actual
C
Organização Mundial do Comércio. Sob o com zelo na promoção de programas eco-
88
mandato de McNamara, o Banco Mundial nómicos com essa orientação em países
reorienta a sua acção para a luta contra a subdesenvolvidos dependentes de supor-
pobreza, promovendo políticas educacio- tes financeiros externos para enfrentar
nais, de saúde e nutrição e de desenvolvi- as crises. Ao mesmo tempo, as agências
mento rural. Em 1970, as Nações Unidas das Nações Unidas viram-se com falta de
aprovam uma resolução que recomenda recursos e relativamente marginalizadas,
aos países ricos um aumento de 0,7% do sendo um exemplo marcante o CNUCED,
seu rendimento nacional para a assistên- que tinha vindo a pugnar por uma pers-
cia, tendo-se os países nórdicos salientado pectiva desenvolvimentista e interven-
como os primeiros (dos poucos) a cum- tiva. O bloco socialista afunda-se neste
prir. Nos meados dos anos 1970 iniciam- período.
-se discussões sobre as relações Norte-Sul As novas crises da década de 1990 na
no seio da CNUCED, com a participação Ásia e América Latina, bem como o fracas-
activa do Grupo dos 77, maioritariamen- so dos programas de ajustamento estrutu-
te composto pelos não-alinhados, cami- ral em África, levaram a um retrocesso das
nhando-se para o conceito de uma Nova formas mais extremas do modelo neolibe-
Ordem Económica Internacional. Porém, ral, com a reintrodução de fundos sociais
os debates fracassaram nos princípios dos para a amortização dos efeitos nefastos
anos 1980, tendo os países da OCDE, em na destruição de empregos e no cresci-
1983, substituído esse conceito pelo de mento da informalidade, do custo de vida
interdependência como base dos debates e das desigualdades sociais. A Cimeira
entre o Norte e o Sul. do Desenvolvimento Social de 1995, em
Dos anos 1980 até aos finais do século Copenhaga, marca uma nova viragem na
XX. A subida ao poder de regimes conser- cooperação internacional, ao comprome-
vadores e neoliberais nos Estados Unidos ter os governos a terem metas quantifica-
e no Reino Unido coincidiu com o agrava- das e prazos pré-definidos para atingir as
mento da crise financeira na América Lati- suas metas no tocante à redução da pobre-
na e da dívida externa dos países africanos za. O próprio BM, no seu relatório de 2001
e veio pôr um fim ao período optimista sobre a pobreza, salienta a importância do
anterior, dando lugar à dominância das combate à pobreza e propõe-se substituir
políticas do “Consenso de Washington” os programas de ajustamento estrutural
(WILLIAMSON, 1990), baseadas na noção de nos países de baixo rendimento que se
um Estado mínimo, na primazia do mer- qualificaram à redução da dívida, por cré-
cado no estabelecimento dos preços e das ditos de apoio às estratégias de redução
regras de jogo da sociedade, na privatiza- da pobreza que estes venham a elaborar.
ção das empresas e dos serviços sociais e Nos restantes tipos de intervenção, o BM,
na liberalização do comércio externo. O bem como o FMI, continuaram a seguir
FMI e o BM, tidos pelos países doadores os paradigmas económicos tradicionais.
como líderes na assistência internacional Na sequência da Cimeira citada, foi acor-
aos países da periferia, e na coordenação dado, em 1996, pelos países doadores a
e planeamento de políticas, lançaram-se fixação de “metas de desenvolvimento
C
internacional” a serem atingidas até 2015 mento, em particular, orientadas para a
89
que incluíam a redução da pobreza extre- remoção de subsídios nos países avança-
ma para metade em todo o mundo e, em dos. Entretanto, após o 11 de Setembro
2000, na Cimeira do Milénio das Nações de 2001, verificou-se um reacentuamento
Unidas, foram aprovados os oito “Objec- da primazia dos interesses políticos e de
tivos de Desenvolvimento do Milénio” segurança na ajuda dos Estados Unidos
(ODM) a atingir igualmente até 2015. (ANING, 2007).
Estes objectivos incluem a redução para
metade do número de pessoas sofrendo 3. Apesar dos compromissos assumidos, a
de fome, a educação primária para todos, APD global decresceu desde 2004 (rever-
a eliminação das disparidades de género tendo os aumentos anteriores devidos,
em todos os níveis escolares, a redução em parte, ao perdão da dívida do Iraque e
em dois terços da mortalidade infantil e Nigéria), tornando assim muito duvidosa
de três quartos da mortalidade materna, a a referida duplicação para África até 2009.
reversão das taxas de malária, HIV-SIDA, Apesar de alguns avanços, se as tendências
tuberculose e outras doenças, a redução actuais continuarem, muitos dos ODM
para metade dos que não têm acesso a não serão atingidos, como por exemplo,
água potável e serviços de saneamento, a redução da pobreza extrema em África
o melhoramento da sustentabilidade e, a nível global, o aumento do acesso da
ambiental e as parcerias para o desenvol- população a serviços básicos de salubri-
vimento em termos de fundos de coope- dade e a redução da subnutrição infantil
ração, a resolução abrangente das dívidas (UN, 2007).
dos países subdesenvolvidos e um sistema Num cenário mais pessimista, se a
de comércio internacional e financeiro actual crise financeira nos Estados Uni-
mais equitativo. dos levar a uma recessão prolongada, com
De 2000 até ao presente. Em 2002, na repercussões nos outros países avançados
Conferência de Monterrey para o Finan- cujas economias estão mais integradas na
ciamento do Desenvolvimento e, mais economia americana, as tendências pode-
uma vez, na Cimeira do Milénio de 2005, rão ser ainda mais graves. A subida acele-
os países ricos comprometeram-se a ele- rada do preço do petróleo e o aumento
var as suas contribuições para o nível de dos preços dos produtos alimentares, que
0,7% do seu PNB para que os ODM sejam muitos organismos internacionais pre-
atingidos. Dado o atraso maior da África vêem que se mantenha por um período
em alcançar os ODM, os países industria- prolongado, poderão (continuar a) causar
lizados comprometeram-se a duplicar a retrocessos na redução das taxas de pobre-
APD para aquele continente até ao ano za de diversos países.
2010. Em Doha, em 2001, como parte dos O mundo actual dispõe de recursos
esforços colectivos para favorecer o clima e tecnologia para resolver os problemas
para o desenvolvimento dos países do Sul, principais que confrontam a humanida-
acordou-se que as negociações na área do de, porém as desigualdades não param
comércio internacional seriam conduzi- de aumentar, não só a nível interno dos
das de forma a beneficiar o desenvolvi- países mas também a nível internacional.
C
Os montantes da ajuda internacional são ção, como é o caso de Moçambique (KILLI-
90
ainda residuais e insuficientes para fazer CK et al., 2005). Em contrapartida, uma
face aos problemas existentes. Além disso, avaliação independente mostrou recente-
tudo leva a crer que venham a surgir novos mente que os condicionalismos macroe-
problemas, com possíveis repercussões conómicos do FMI não se reduziram; pelo
negativas nas condições de vida e de dig- contrário, aumentaram em áreas tradi-
nidade humana, como é o caso das altera- cionalmente fora das suas competências
ções climáticas. – domínio fiscal e monetário – passando
No sistema actual, baseado numa rela- a referir-se a modificações estruturais
ção assimétrica entre as nações, em que (IMF-IEO, 2007). Esta situação parece
prevalecem os interesses dos países mais mostrar quão profundamente enraizados
fortes, avanços no sistema podem, contu- estão certos hábitos e ideias no mundo da
do, ser de utilidade, mesmo que se reco- cooperação internacional e confirmar que
nheçam os seus limites. É o caso da Decla- os esforços das forças de mudança, tanto
ração de Paris sobre a Eficácia da Ajuda ao nos países desenvolvidos como nos países
Desenvolvimento (2005), que prevê que periféricos, têm que persistir na luta por
os países ajudados exerçam liderança no um novo tipo de relacionamento entre
delineamento e implementação das estra- esse grupo de países.
tégias de desenvolvimento, por meio de
BIBLIOGRAFIA
processos consultivos amplos (em que os
ANING, K. (2007), Has aid become a political tool? Otta-
doadores respeitem essa liderança) e do
wa: North-South Institute.
uso de sistemas e procedimentos “refor-
IMF-IEO (2007), An IEO evaluation of IMF structural con-
çados” por parte dos países recipientes
ditionality in IMF-supported programs 2007, Washing-
para aumentar “a apropriação, a harmo- ton DC: IMF-IEO.
nização, o alinhamento, os resultados e KILLICK, T.; CASTEL-BRANCO, C.; GERSTER, R. (2005),
a responsabilidade mútua”, incluindo o Perfect Partners? The performance of programme Aid
aumento da previsibilidade dos recursos a partners in Mozambique, Maputo: Programme Aid
médio prazo. Partners.
A implementação desta Declaração MOLINA, N.; PEREIRA, J. (2008), Critical Conditions: the
tem mostrado que, apesar de alguns pro- IMF maintains its grip on low-income governments,
Brussels: EURODAD – European Network on Debt
gressos verificados, ainda se está longe do
and Development.
abandono das condicionalidades, da con-
OCDE (2007), Debt relief is down: other ODA rises sli-
sideração plena das condições locais para
ghtly, Paris: OCDE.
o desenvolvimento e da priorização dos
UN (2007), The Millennium development goals report
programas identificados pelos próprios 2007, New York: United Nations.
beneficiários. Em certos casos, o aumento WILLIAMSON, J. (1990), What Washington means
do apoio directo ao orçamento dos países by policy reform. In: ______. (ed.), Latin American
beneficiários tem levado a um incremento Adjustment: how much has happened, Washington:
da monitorização dos acordos de coopera- Institute for International Economics.
C
COOPERATIVAS DE TRABALHO aldeias cooperativas de Owen – propos-
Jacob Carlos Lima 91
tas ao governo inglês – e da experiência
implantada no estado de Indiana, Estados
1. Por cooperativas de trabalho, enten- Unidos. Esta funcionou por quatro anos,
dem-se formas autogestionárias de orga- seguida por comunidades profissionais na
nização da produção, do controle da ativi- Inglaterra, que tiveram vida curta, nas pri-
dade laboral e do produto realizado pelos meiras décadas daquele século. Na Fran-
próprios trabalhadores. Constituem-se ça, Charles Fourier propôs os falanstérios,
em associações voluntárias de trabalha- comunidades autogeridas que reuniriam
dores que organizam a cooperativa, uma até 1.800 pessoas, nas quais a proprieda-
empresa da qual todos são sócios e partici- de seria coletiva, sob a forma de sociedade
pam dos processos decisórios, assim como acionária e de livre escolha dos trabalhos.
do resultado do labor coletivo. Essas coo- Esses grupos atuaram mais enquanto
perativas têm como princípios fundamen- movimento do que como experiência prá-
tais a democracia, a autonomia, a solida- tica. Os princípios fourieristas também
riedade e a igualdade social. balizaram três associações estabelecidas
Cooperativas de trabalho e cooperati- nos Estados Unidos (SINGER, 2002) e uma
vas de produção industrial têm definições comunidade autogerida composta por
distintas, embora os termos sejam empre- 2.000 pessoas, na França, organizada pelo
gados como sinônimos. As primeiras refe- industrial Jean-Baptiste-André Godin e
rem-se à prestação de serviços pessoais seu Familistère de Guise. No geral, essas
especializados, reunindo, por exemplo, propostas concebiam o associativismo
profissionais de educação ou de saúde, como forma de superação das precárias
motoristas de táxi e assim por diante. Em condições de vida e de trabalho dos operá-
geral, os cooperados utilizam seus pró- rios e baseavam-se em princípios de soli-
prios instrumentos, atuando a cooperativa dariedade e colaboração de classes.
como intermediária na captação e na dis- Ao lado dessas propostas, o movi-
tribuição dos serviços. No segundo tipo mento operário também proporia coo-
de cooperativa, a produção de bens resul- perativas como formas de resistência e
ta do trabalho coletivo, tendo-se a fábrica como alternativas ao capital. No ano de
como modelo. As fábricas, ou unidades de 1844, encontra-se o marco de constitui-
produção – oficinas, ateliês –, são geridas ção do movimento cooperativista, com a
coletivamente. De qualquer forma, embo- criação da Rochdale Society of Equitable
ra a utilização dos termos seja controversa Pioneer, em Rochdale, próximo a Man-
e eles se confundam, as duas formas de chester, Inglaterra. Inicialmente, essa era
cooperativa têm por fundamento o traba- uma cooperativa formada por operários de
lho como elemento de posse e de gestão indústrias têxteis, voltada ao consumo de
coletiva. bens. Em 1850, a Rochdale abriu uma coo-
perativa de produção industrial – um moi-
2. A origem das cooperativas de trabalho nho – e, em 1854, uma tecelagem e fiação.
e de produção encontra-se nos socialistas O movimento expandiu-se rapida-
utópicos do século XIX, a exemplo das mente em diversos países europeus. Em
C
1852, foi promulgada, na Inglaterra, a Lei fim destas, uma vez que as democracias de
92
das Sociedades Industriais e Cooperati- produtores enfrentariam as necessidades
vas, que dispunha sobre as relações das de adequação ao mercado, progressiva-
cooperativas com o Estado. Em 1895, em mente incorporando o lucro e passando a
Genebra, foi criada a Aliança Cooperativa contratar trabalhadores assalariados.
Internacional, que ratificou os princípios Durante a maior parte do século XX,
basilares de Rochdale: a adesão voluntária as cooperativas tiveram seu crescimento
e livre de seus membros, a gestão demo- vinculado a crises econômicas e à forma-
crática, a participação econômica dos ção de frentes de trabalho por diversos
membros na criação e no controle do capi- Estados europeus, nos quais se manti-
tal, a educação e a formação dos sócios e a nham apenas em situações de crise e nos
intercooperação no sistema cooperativis- quais os princípios cooperativistas nem
ta (LIMA, 2004). sempre eram observados. Com o Estado
O movimento cooperativista iria refle- de bem-estar social e a consolidação do
tir suas origens e as clivagens existentes assalariamento, bem como a permanência
no movimento operário do século XIX. de uma situação próxima ao pleno empre-
Nele, passariam a conviver desde pro- go, o movimento perdeu força. Mesmo
postas revolucionárias de contraposição assim, Itália e França destacaram-se pela
ao capital, até propostas reformistas de presença de um forte setor cooperati-
humanização das relações capital-traba- vista, conhecido, no segundo país, como
lho de inspiração cristã. economia social. A experiência soviética
No debate sobre o papel das coopera- das cooperativas deixou de lado a questão
tivas na construção do socialismo, Marx da autonomia, constituindo-se em empre-
(1977) destacava o avanço que represen- sas integrantes do planejamento esta-
tavam ao se constituírem em ponto de tal. Mesmo as iniciativas iugoslavas não
partida para o novo modo de produção. chegaram a romper esse vínculo, embora
Ao mesmo tempo, enfatizava o risco de tenham avançado no sentido de haver
os trabalhadores auto-explorarem-se, mais autonomia para os trabalhadores.
pelo fato de serem patrões de si mesmos Nos países em desenvolvimento, no início
e pelos riscos inerentes às exigências do dos anos 1970, políticas de organização de
mercado capitalista. cooperativas foram apoiadas por órgãos
Outras críticas foram implacáveis. internacionais com vistas a reduzir-se a
Luxemburgo (2001) avaliava ser contra- pobreza, materializando-se elas sobretu-
ditório os operários serem trabalhado- do em iniciativas para geração de renda e
res e patrões de si mesmos. Essa situação em atividades localizadas em áreas rurais
colocaria as cooperativas em um impasse, (LIMA, 2004).
tendo de escolher entre transformarem-
se em empresas capitalistas ou dissolve- 3. O movimento cooperativista retomou
rem-se. Crítica similar foi feita por Webb fôlego a partir dos anos 1970, mas como
e Webb (1914) com a “tese da degenera- resposta a movimentos contraculturais
ção das cooperativas”, segundo a qual o e em reação ao desencanto com as estru-
sucesso das cooperativas representaria o turas fossem capitalistas, fossem socialis-
C
tas. Por outra via, respondeu igualmente possibilidades de trabalho autogestioná-
93
à reestruturação produtiva, identificada rio, ao lado de diversas outras experiências
com o desemprego resultante das trans- italianas que demonstram a viabilidade de
formações econômicas e da produção no empresas cooperativas sobreviverem no
âmbito das novas tecnologias e técnicas mercado mantendo os princípios do movi-
organizacionais, processo que se conven- mento cooperativista e a capacidade de os
cionou chamar de produção enxuta, ou trabalhadores gerirem empreendimentos
acumulação flexível. autônomos.
Novas questões pautaram o movimen- Nesse contexto, situa-se o movimen-
to dos trabalhadores no final do século to de economia solidária, que, no Brasil,
XX. Entre elas, verificavam-se o fecha- já reúne milhares de empreendimentos,
mento de postos de trabalho, a reespacia- nos quais as cooperativas de trabalho e de
lização da indústria, o enxugamento do produção constituem o eixo central, ocu-
setor de serviços, a derrocada do mundo pando milhares de trabalhadores. Essas
socialista, a perda da força ideológica das formas de associação agrupam fábricas
bandeiras classistas operárias e o enfra- recuperadas e cooperativas organizadas
quecimento do movimento sindical, com para a produção fabril, a prestação de ser-
a redução dos contingentes de trabalha- viços e a geração de renda, voltando-se à
dores. Representando grupos ecológi- população de baixa renda, como as coope-
cos, setores políticos diversos e minorias rativas de reciclagem e de coleta de lixo.
sexuais, cooperativas alternativas voltadas Diversas entidades – vinculadas a ONGs,
à prestação de serviços societários foram centrais sindicais, igrejas ou universida-
organizadas em diversos países. Sua pro- des – prestam suporte à incubação dessas
posta era o estabelecimento de uma nova cooperativas, atuam como consultoras e
economia solidária e social, e seu objetivo apóiam a formação e capacitação técni-
era a construção de uma nova sociedade, ca dos trabalhadores. A partir da segun-
mais justa e igualitária. Com o apoio de da metade da década de 1990, políticas
sindicatos, partidos e movimentos sociais, públicas foram implementadas com o
trabalhadores ocuparam fábricas em situa- objetivo de incentivar-se a multiplicação
ção falimentar, objetivando garantirem desses empreendimentos e, a partir de
empregos e gerarem renda. 2003, tornaram-se política de Estado,
O mercado deixou de ser demonizado, com a criação da Secretaria Nacional de
e as cooperativas buscaram adequar-se a Economia Solidária (SENAES).
ele, sem se descaracterizarem enquanto
projeto alternativo. Tinha-se por modelo 4. Grandes problemas ainda persistem.
o Complexo de Mondragón, no País Bas- Da mesma forma que as cooperativas
co espanhol, visto como experiência bem- foram organizadas pelos trabalhadores
sucedida de democracia industrial e de como reação ao desemprego e como pos-
inserção competitiva no mercado. Da mes- sibilidade de construção de uma alterna-
ma forma, cooperativas da “Terceira Itália”, tiva democrática e autônoma, elas tam-
detentoras de amplo desenvolvimento tec- bém foram percebidas pelos empresários
nológico, passaram a ser indicadas como como meio de rebaixamento de custos, na
C
lógica da competitividade internacional gerir do executar. Há ainda os problemas
94
em redes de terceirização. Embora essa disciplinares, aguçados quando todos se
situação tenha existido no início do sécu- tornam donos da empresa. Em face des-
lo XX, o que alimentou a resistência de sas questões, os momentos iniciais são
parte do movimento operário às coope- penosos para as cooperativas, e muitas
rativas, no final do século, assumiu nova acabam operando como terceirizadas ou
configuração na sociedade em rede, com se organizando para tanto. Nesses termos,
forte tendência à desregulamentação das configura-se um quadro de subordinação
relações capital-trabalho. às empresas primeiras o qual indepen-
Numerosas cooperativas foram orga- de da observância interna dos princípios
nizadas sob supervisão empresarial e mes- autogestionários. Tais variáveis propiciam
mo com o suporte de políticas de governos a discussão acerca do caráter “autêntico”
municipais e estaduais, visando à terceiri- ou não da cooperativa. Esse debate cen-
zação industrial, de serviços e da área agrí- tra-se na vinculação das cooperativas a
cola. Brechas na legislação permitiram órgãos representativos cujas concepções
a terceirização de cooperativas sem que afastam-se do cooperativismo, o que via-
houvesse ônus para as empresas. A multi- biliza alegar-se haver gradações de auten-
plicação desses empreendimentos reque- ticidade às vezes com forte conotação ide-
reu mais fiscalização por parte do Minis- ológica, mas sem sustentação na prática
tério Público, sendo vários deles fechados da autogestão.
ou revertidos em empresas regulares. Esses fatores, somados a uma legis-
Outras cooperativas regulamentaram seu lação fundada nos direitos sociais vin-
funcionamento, garantindo os fundos de culados ao assalariamento, tornam as
reserva e as justas retiradas financeiras por cooperativas, de uma forma geral, sus-
parte dos trabalhadores, o que viabilizou peitas de fraudarem a lei e de utilizarem
sua permanência. Em diversos estados do assalariamento disfarçado. Instauram-se
Nordeste, cooperativas organizadas sob situações constrangedoras e provocam-se
esse formato funcionaram por dez anos, fechamentos injustificados, decorrentes
apoiadas por fortes incentivos governa- de interpretações distintas do que seja o
mentais. Após esse período, a fiscalização trabalho em cooperativas. Outro pretexto
constante e as ações dos trabalhadores ao qual se recorre para tanto é a suposta
contra o “assalariamento disfarçado” utilização política das cooperativas, por
tornaram-nas desinteressantes para as exemplo, por sindicatos ligados a centrais
empresas contratantes. sindicais distintas.
Questões comuns a todas as coope-
rativas são a escassez de capital para se 5. As cooperativas de trabalho e produção
organizarem e de capital de giro para industrial representam uma alternativa
manterem suas atividades, a inserção ou a de ocupação e de renda em um merca-
reinserção no mercado, os equipamentos do de trabalho segmentado e altamente
obsoletos, a falta de experiência gerencial informal. Apontam um caminho em que
dos trabalhadores e a carência de uma cul- a autogestão constitui uma possibilidade
tura de assalariamento na qual se separa o em frente ao assalariamento, sem que ela
C
necessariamente signifique precarização. as transformações operadas no mundo do
95
A observância aos princípios cooperativis- trabalho e do assalariamento.
tas pode garantir melhores condições de
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posta ao desemprego, São Paulo: Contexto.
em cooperativas como tendo necessa-
VIEITEZ, C. G.; DAL RI, N. M. (2001), Trabalho associado:
riamente um caráter precário. O mesmo
cooperativas e empresas de autogestão, Rio de Janei-
pode ser dito acerca da relação dos sindi- ro: DP&A.
catos com as cooperativas, conflituosa em WEBB, S.; WEBB, B. (1914), Cooperative production
inúmeras situações. O dilema da gestão and profit sharing, New Statesman, v. 2, n. 45, p. 20-22.
precisa ser enfrentado, considerando-se Special Supplement.
C
COOPERATIVISMO abordado ou do objectivo visado, dar-se-á
96 Rui Namorado prioridade ao movimento cooperativo ou
ao sector cooperativo.
1. São várias as palavras que concorrem Aceitando-se a noção que a Aliança
entre si para designarem o fenómeno coo- Cooperativa Internacional (ACI) consa-
perativo como realidade global. Num dis- grou: “Uma cooperativa é uma associação
curso corrente podem ser utilizadas como autónoma de pessoas unidas voluntaria-
sinónimos, mas se forem pesadas com mente para prosseguirem as suas necessi-
rigor reflectem ângulos de abordagem dades e aspirações comuns, quer económi-
diferentes. Pode assim falar-se em movi- cas, quer sociais, quer culturais, através de
mento cooperativo, sector cooperativo uma empresa comum democraticamente
e cooperativismo, para se deixar de lado controlada.”
expressões puramente descritivas como o Assim, a ACI assumiu a perspectiva, há
já usado fenómeno cooperativo, realidade muito adoptada por G. Fauquet, que via
cooperativa e outras afins. na cooperativa uma simbiose de associa-
Quando se fala em movimento coo- ção e de empresa. Valorizou a autonomia,
perativo, designa-se o conjunto das coo- destacando a voluntariedade da pertença,
perativas numa perspectiva dinâmica, salientando que as necessidades ou aspi-
historicamente situada, encarado como rações que aquela visa satisfazer são não
um movimento social que assume uma só de natureza económica, mas também
identidade marcada por um horizonte de natureza social e cultural. A nature-
específico. za democrática das cooperativas não foi
A expressão sector cooperativo tem uma esquecida.
conotação sincrónica, referindo-se ao con- A lógica cooperativa contraria a lógi-
junto das cooperativas que existem numa ca lucrativista das empresas capitalistas,
certa circunstância temporal e espacial, dominante nas sociedades actuais. É, por
radicado em características específicas. isso, uma lógica subalterna, reflectindo
Quando se fala em cooperativismo, naturalmente a subalternidade do coope-
envolve-se quer a dinâmica cooperativa rativismo nas sociedades capitalistas. Daí
como evolução histórica com um passado à invisibilidade mediática do fenómeno
e um futuro, quer o conjunto das coopera- cooperativo e à respectiva desconsidera-
tivas realmente existentes, não se deixan- ção simbólica vai apenas um passo.
do de fora a doutrina cooperativa, nem a Justifica-se, por isso, dar um panora-
normatividade inscrita na identidade coo- ma do movimento cooperativo mundial,
perativa, nem a respectiva reflexão teóri- como ilustração da sua importância. As
ca, nem mesmo o proselitismo coopera- cooperativas expandem-se por todos os
tivista. Sem a pretensão de lhe percorrer sectores de actividade e assumem dimen-
todos os recantos, o cooperativismo será sões muito distintas. Podem ser pequenos
encarado no seu sentido mais amplo, de grupos artesanais ou de prestação de ser-
modo a assinalar-lhe com clareza as raízes viços, bem como grandes empresas. Exis-
e a tornar evidente a sua energia futuran- tem em todos os continentes. De acordo
te. Quando for útil, em função do tema com os dados fornecidos pela própria
C
ACI, em todo o mundo são mais de oito- Jaurès viu no movimento operário uma
97
centos milhões os membros de coopera- articulação de três pilares: um político,
tivas, entre os quais 236 milhões na Índia um sindical e um cooperativo. O políti-
e 180 milhões na China. Como simples co, correspondente aos partidos políticos
indício da sua importância relativa, em operários de matriz socialista; o sindical,
alguns países, recorde-se que, por exem- envolvendo a defesa dos trabalhadores,
plo, no Canadá, na Noruega e nas Hondu- em face dos patrões, pugnando pela defe-
ras um cidadão em cada três é cooperador. sa dos seus direitos; o cooperativo, tra-
Nos EUA, um em cada quatro é membro duzindo a intervenção na vida social de
de uma cooperativa. Tanto na Argentina protagonistas ligados ao movimento ope-
como no Reino Unido, contam-se mais de rário, por intermédio de uma actividade
nove milhões de cooperadores. Em todo empresarial.
o mundo, as cooperativas no seu todo Não se afastam, no essencial, desta
geram mais de cem milhões de empregos, perspectiva os que partem da existência
ou seja, mais 20% do que o emprego gera- de uma nebulosa associativa inicial para
do por todas as empresas multinacionais sustentarem que a sua evolução suscitou
juntas. a sua diferenciação. O fenómeno associa-
tivo amadureceu dando lugar a três tipos
2. Encarando o cooperativismo como pro- diferenciados de associações: os partidos,
jecção e apologia do movimento coope- os sindicatos e as cooperativas.
rativo, que, desse modo, com ele se iden- Esta evolução, estruturada em três
tifica, pode dizer-se que emergiu, com a vias principais, não impediu que outros
fisionomia actual, no início do século XIX, amadurecimentos diferenciadores, mas
conjugadamente com a hegemonia do socialmente menos radicados, tivessem
capitalismo. Manifestou-se então como ocorrido. Uma destas especializações
uma rede de organizações predominante- mais relevantes foi a que suscitou o mutu-
mente económicas, cujo eixo principal era alismo, mantendo-se a natureza associati-
a cooperação entre os seus membros. va das entidades que o integraram. Menos
Deste modo, as cooperativas moder- universais, mas também marcantes nal-
nas traduzem a centralidade de uma práti- guns países, surgem as associações de ins-
ca social, a cooperação, que é um dos teci- trução pública e as recreativas.
dos conjuntivos das sociedades humanas, A centralidade dos comportamentos
tendo, aliás, havido uma época no dealbar cooperativos inscrita no código genético
da história em que ela foi uma verdadeira destas organizações e a sua inserção no mo-
condição de sobrevivência da espécie. vimento operário, que emergiu com signifi-
As cooperativas são, assim, a expressão cativa relevância na Europa do século XIX,
moderna das práticas sociais de coopera- são os elementos mais relevantes do enrai-
ção, bem gravadas no seu código genéti- zamento histórico da identidade cooperati-
co, mas revelam-se por intermédio de um va. E este segundo aspecto dá-lhe natural-
movimento social que se afirma no seio mente uma tonalidade social própria.
do movimento operário como uma das Mas a especificidade dessa tonalidade
suas vertentes, o movimento cooperativo. social, que reflecte uma conexão íntima
C
entre as práticas cooperativas e o carác- si própria, uma ligação genética do movi-
98
ter operário do movimento social que mento cooperativo com o movimento
as exprimiu e impulsionou, não se deve operário.
entender como se o movimento coopera- Nesta perspectiva, embora a coope-
tivo tivesse sido, em todos os casos, des- ratividade conserve, por essa via, a mar-
de o seu início um movimento apenas de ca genética do movimento operário, ela
operários e, muito menos, como se sem- deixou de ser um tipo de resposta usado
pre assim se tivesse mantido. apenas (ou sequer, predominantemente)
De facto, hoje, nas organizações coo- por essa classe social. E, sendo assim, vale
perativas estão congregados cooperado- a pena procurar-se a existência de uma
res oriundos dos mais diversos grupos motivação genérica típica que possa aju-
sociais que representam diversos sectores dar a compreender esse alargamento do
produtivos, sendo algumas delas, pelo espaço social da sua incidência.
seu tipo e pelo seu objecto, participadas Porventura, o traço mais comum será o
por elementos com múltiplas pertenças de haver estímulo à cooperatividade sempre
sociais. Há até alguns ramos em que pre- que os potenciais cooperadores prevejam
dominam, ou têm inequívoca relevância, a concorrência ou o enfrentamento com
as cooperativas de empresários, como é o entidades dotadas de uma força ou de um
caso da comercialização. potencial claramente maiores. Na verdade,
A partir desta constatação, pode per- a especificidade desse artefacto empresa-
guntar-se que sentido tem atribuir ainda rial, historicamente radicado no movimen-
um significado, que não seja o da sua rele- to operário, foi a de reunir um máximo de
vância histórica, à inserção do movimento sinergias perante a provável competição
cooperativo no movimento operário. Será com iniciativas idênticas, no objecto de
possível encontrar uma resposta a essa actividade, de uma envergadura muito
questão, lembrando que o fenómeno coo- maior ou financeiramente mais robustas.
perativo está fortemente impregnado, no Pode acontecer que a resposta coope-
cerne da sua própria identidade, por uma rativa se baseie também na necessidade de
componente normativa. E nesta, assumem se darem respostas rápidas e concertadas
uma centralidade evidente os princípios a problemas especialmente graves, ines-
cooperativos, conjunto de mensagens perados ou melindrosos. E, é claro, não
normativas gerais onde está o essencial da podem menosprezar-se as virtualidades
identidade cooperativa. de indução de comportamentos social-
Ora, esses princípios têm uma origem mente positivos e eticamente virtuosos,
histórica bem determinada: emergiram, inerentes às práticas cooperativas.
na sua primeira versão, numa cooperativa Na verdade, a origem e o código genéti-
de operários em 1848, em Rochdale, nos co das cooperativas não podem ser esque-
arredores de Manchester. As suas muta- cidos sob pena de se não compreender a
ções, ocorridas através de reformulações lógica mais funda do fenómeno em causa.
feitas no quadro da ACI, nos anos 30, 60
e 90, do século XX, não romperam com 3. As cooperativas são empresas com a
a sua matriz inicial, a qual incorpora, em especificidade de terem de obedecer a um
C
conjunto de princípios e de agir em con- bros das cooperativas assumem os valores
99
sonância com um leque de valores. Uns éticos da honestidade, transparência, res-
e outros, conjugando-se com uma noção ponsabilidade social e altruísmo."
caracterizadora, constituem, na sua globa- Foram assim diferenciados dois con-
lidade, a identidade cooperativa. juntos de valores. O primeiro, fundamen-
Desde a sua fundação, em 1895, que a talmente, dirige-se à actividade das coo-
ACI, fiel à tradição de Rochdale, assume os perativas como organizações. O segundo
princípios cooperativos que a exprimem envolve, mais directamente, o comporta-
como a sua matriz identitária, ao mesmo mento dos cooperadores enquanto tais.
tempo que se responsabilizou pela aferi- Quanto aos princípios em si próprios,
ção periódica da respectiva perenidade. De apesar de terem sofrido várias alterações,
facto, logo na sua fundação, a ACI delimi- o texto aprovado não rompe com a tradi-
tou o seu âmbito com base nesses princí- ção de Rochdale.
pios. Nos anos 30 do século XX, promoveu Saliente-se que o actual elenco de prin-
a textualização formal dos princípios coo- cípios é resultado de três complexos pro-
perativos, ajustando-os também ao pas- cessos de revisão, ocorridos ao longo do
sar do tempo, sem que isso representasse século XX. Os cooperativistas que os lide-
qualquer ruptura com a matriz inicial. Em raram tinham origens diversificadas e não
1966, consumou-se um novo processo de se limitaram à conjugação de elaborações
actualização dos princípios, numa época teóricas. De facto, analisaram as experiên-
em que o fenómeno cooperativo adquirira cias vividas por milhões de cooperadores
uma expressão mundial inequívoca. e centenas de milhar de cooperativas, um
A sua mais recente reformulação con- pouco por todo o mundo. Cruzaram pers-
cluiu-se no Congresso de Manchester, em pectivas diferentes, promoveram deba-
1995, por ocasião das comemorações do tes, elaboraram estudos, observaram em
primeiro centenário da ACI. Pela primeira detalhe o fenómeno cooperativo na sua
vez, eles deixaram de exprimir, por si sós, diversidade e na sua evolução. Aliás, a pró-
a identidade cooperativa. Embora conti- pria experiência de Rochdale não foi uma
nuem a ser o seu elemento central, essa construção de fundadores iluminados. A
identidade passou a ser constituída não só indesmentível criatividade dos pioneiros
por eles, mas também pelos valores coo- foi alimentada por uma cuidadosa ava-
perativos e por uma noção de cooperativa, liação das causas de muitas experiências
precisamente aquela que foi enunciada falhadas de iniciativas congéneres, ponde-
acima. radamente tidas em conta.
Em 1995, a ACI textualizou em Man- É certo que os princípios de Rochdale
chester os valores cooperativos, inte- estão longe de exprimir um programa
grando-os na identidade cooperativa, revolucionário de destruição do capitalis-
nos seguintes termos: "As cooperativas mo, mas não deixam de ser elementos de
baseiam-se nos valores de auto-ajuda, uma dinâmica social, harmonizável com
responsabilidade individual, democracia, a superação do capitalismo e, por isso,
igualdade, equidade e solidariedade. Fiéis estruturalmente consonante com uma
à tradição dos seus fundadores, os mem- lógica que lhe resista.
C
Continham também, implicitamente, recentes ou episódicas da energia coo-
100
uma visão crítica quanto a aspectos pon- perativa. Alguns existem, com pequenas
tuais das sociedades vigentes, respostas a particularidades distintivas ou de sim-
bloqueios conjunturais do sistema, estan- ples nomenclatura, em todos os países;
do impregnados por valores diferentes outros são especificidades que se mani-
dos que legitimam o capitalismo. festam num ou noutro país, num ou nou-
tro continente.
4. Nos anos 1930, sob o impulso doutriná- Tem também algum eco na doutrina
rio de Georges Fauquet e em convergência cooperativa uma classificação que trans-
com o início de afirmação do conceito de cende os ramos para valorizar como eixo
economia mista, ganhou força a ideia de de distinção fundamental o contraponto
encarar a realidade cooperativa como um entre cooperativas de utentes e coopera-
sector específico que se conjugaria com tivas de produtores, no âmbito das quais
um sector privado, mas também como um são proeminentes as cooperativas de tra-
sector público. Ou seja, a diversificação da balhadores (ou de trabalho). Nesta pers-
paisagem económica manifestava-se tam- pectiva, há quem proponha ainda uma
bém através da emergência de uma com- terceira categoria onde se colocariam as
ponente cooperativa autónoma. cooperativas que em si próprias expri-
Assim se exprimia também a perda de mem uma conjugação entre trabalhadores
força da “república cooperativa”, como e utentes.
horizonte que disputava o futuro ao capi- Desde a reformulação de 1966 que
talismo, como alternativa específica. Um a intercooperação é um dos princípios
horizonte alternativo que o economista cooperativos, tendo-se tornado um factor
francês Charles Gide teorizou, através de determinante do desenvolvimento coope-
uma proposta radicada no cooperativismo rativo. Na verdade, a ideia de olhar para as
dos consumidores. cooperativas como um sector induz uma
Passada a II Guerra Mundial, nos países certa racionalidade de conjunto e uma
exteriores ao modelo soviético, a noção de conjugação de sinergias.
sector cooperativo permitiu valorizar e Por isso se estimula quer a intercoo-
compreender a galáxia cooperativa em si peração informal, traduzida numa cola-
própria, tendo-se ainda revelado como boração corrente e quotidiana, traduzida
via adequada para reflectir, estabilizar e em trocas e entreajuda, quer a intercoo-
esclarecer a inserção das cooperativas no peração formal, traduzida na criação de
conjunto da sociedade. uniões, federações e confederações coo-
Mas o sector cooperativo não é uma perativas, dentro de cada país, bem como
paisagem uniforme. A doutrina coope- de instituições internacionais e mundiais,
rativa, reflectindo e potenciando uma sectoriais ou globais, constituídas por
diferenciação das respectivas práticas, cooperativas.
há muito o repartiu em diversos ramos. Assim, muito antes de a colaboração
Alguns são, desde o seu início, aspectos em rede ser um índice de modernidade do
estruturantes do movimento coope- tecido empresarial já era o modo de ser do
rativo, outros são manifestações mais universo cooperativo.
C
Nas últimas décadas, com um rele- do ele veio incorporar respostas compen-
101
vante protagonismo inicial da França, satórias às sequelas mais gritantes das
tem vindo a emergir a estruturação de um pulsões mais predatórias do capitalismo.
novo conjunto de organizações no qual as Uma resistência que, não apagando a sua
cooperativas se integram. É um espaço de subalternidade perante a lógica domi-
limites ainda instáveis, com uma caracte- nante, não permitiu que se diluísse nela
rização em parte ainda controversa, cuja sem retorno e alimentou, de algum modo,
designação não está ainda estabilizada, também a sua alternatividade perante o
nem é unívoca. capitalismo.
Podemos chamar-lhe economia social. É essa alternatividade, em face do
Mas com esta expressão concorrem tam- capitalismo, que inscreve o horizonte
bém os conceitos de economia solidá- cooperativo como um dos rostos possíveis
ria, de terceiro sector, de organizações do pós-capitalismo. Esse era, no fundo, o
não-lucrativas, para só referir as mais sentido mais futurante das concepções de
difundidas. Charles Gide quando propôs a sua “Repú-
Esta problemática será objecto de blica Cooperativa”.
análise aprofundada noutros textos des- Neste registo, o cooperativismo expri-
te dicionário, pelo que aqui cabe apenas miria uma alternatividade concorrente
sublinhar que as cooperativas convi- com a do socialismo, o que configuraria o
vem neste conjunto emergente com os pós-capitalismo também como uma com-
outros tipos de organizações que para ele petição entre um horizonte cooperativo
convergem. e um horizonte socialista. Mas esta linha
Das outras vertentes da economia autonomista do cooperativismo foi per-
social as cooperativas podem receber uma dendo força, sendo hoje particularmente
contaminação solidária através de um inexpressiva.
robustecimento significativo do princípio Tem, pelo contrário, virtualidades
do interesse pela comunidade. Quer isto maiores, principalmente após a implosão
dizer que essa evolução não será um acres- do modelo soviético, a perspectiva que
cento virtuoso à identidade cooperativa, encara o horizonte cooperativo como um
mas o seu amadurecimento natural. elemento integrante de um horizonte
Em contrapartida, as outras vertentes socialista, valorizando a presença coope-
da economia social podem ter nas coo- rativa nesse horizonte, até ao ponto de
perativas um alfobre de democraticidade sustentar que a anemia dessa presença
e de participação com que muito pode pode ser fatal para a credibilidade desse
ganhar o seu modo de funcionarem. horizonte.
É claro que há uma ideologia coopera-
5. É importante não esquecer que a irra- tiva, implícita nas concepções de muitos
diação moderna do cooperativismo, dos práticos do movimento cooperati-
desencadeada no início do século XIX e vo, que aponta para a perenidade de um
que o tornou num fenómeno universal, sistema predominantemente capitalista,
sempre se processou como resistência à onde o sector cooperativo se situa como
hegemonia do capitalismo, mesmo quan- um espaço estruturalmente subalterno,
C
com uma função compensatória que BIBLIOGRAFIA
102
ajude a atenuar o peso das sequelas do BOOK, S. A. (1993), Valores cooperativos num mundo em
capitalismo em certos grupos sociais ou mudança, Lisboa: INSCOOP.
profissionais, ou em certos territórios. COLE, G. D. (1988), Rochdale. Son premier projet.
Neste conjunto, muitos são aqueles que Ses premiers principes (1844-1862), Communautés,
n. 83.
vivem as práticas cooperativas em si pró-
prias sem cuidarem das suas implicações DESROCHE, H. (1982), Charles Gide, 1847-1932: trois
étapes d'une créativité: coopérative, sociale, univer-
mais amplas, o que não implica que não
sitaire, Paris: CIEM.
possam protagonizar essas práticas com
DRIMER, A. K.; DRIMER, B. (1975), Las cooperativas – Fun-
plena autenticidade.
damentos – Historia – Doctrina (2ª Ed.), Buenos Aires:
Seja qual for a imaginação do futuro Intercoop.
incorporada nas perspectivas dos coope-
FAUQUET, G. (1979), O sector cooperativo, Lisboa: Livros
rativistas sobre o fenómeno cooperativo Horizonte.
ela não impede a cooperação entre os MACPHERSON, I. (1996), Princípios cooperativos para o
que protagonizam posições diferentes. século XXI, Lisboa: INSCOOP.
Sem excluir que haja aspectos particula- MORLEY-FLETCHER, E. (1986), Certezza per rischiare,
res onde essas diferenças se possam fazer competere per cooperare: una introduzione. In: Coo-
sentir, raramente atingirão graus e esferas perare e Competere (vol. I), Milano: Feltrinelli.
verdadeiramente relevantes. Podem assim NAMORADO, R. (2000), Introdução ao direito cooperativo,
colaborar no seio do movimento coope- Coimbra: Almedina.
rativo, sem reserva mental e sem instru- ___ (2005), Cooperatividade e direito cooperativo, Coim-
mentalização mútua, cooperadores com bra: Almedina.
diversas maneiras de encarar o próprio TORRES Y TORRES LARA, C. (1983), Cooperativismo – el
cooperativismo. modelo alternativo, Lima: Universidad de Lima.
D
DÁDIVA de um conceito preciso de dádiva, estimu-
Alain Caillé la-se o rompimento definitivo com toda
idéia de interesse particular, de contrato,
1. Dádiva pode ser definida como o ofere- de devolução ou de reciprocidade. Era por
cimento aos outros de um bem ou serviço meio desse expediente que, em suas épo-
sem garantia de que haverá retribuição, cas, Stalin ou Mao Tse-Tung conclamavam
mas com esperança de que ocorrerá corres- os trabalhadores a renunciarem aos “esti-
pondência, situação que pode estabelecer mulantes materiais” e a produzirem sob
relações de aliança e de amizade. Dádiva a motivação única do desenvolvimento
não é filantropia ou sacrifício, tampouco da sociedade comunista. É assim ainda,
gratuidade sem motivo e sem intenções. em uma ordem de idéias bem diferentes,
Para todos aqueles que desejem libertar- que a tradição teológica e depois filosó-
se das imposições da economia, quer ten- fica afirma que a dádiva não pode existir
tando construir uma economia diferente, como tal se não for absolutamente pura,
quer procurando um lugar distinto, para isto é, desprovida de qualquer intenciona-
além da economia, a menção à dádiva lidade e de qualquer expectativa de retor-
impõe-se como uma evidência principal, no. Se dou, explica, por exemplo, Derrida
como um recurso obrigatório. Se os bens e (1991), então não dou, pois, sabendo que
os serviços não devem ser produzidos em dou, olho-me dando e aproveito ao menos
função do interesse individual, do lucro, o prazer de minha posição de doador. De
se não se destinam à venda, então têm de outra forma, sustentava Marion (1997),
ser concedidos, compartilhados ou, no para que haja dádiva (pura e verdadeira),
mínimo, portadores de uma dimensão é preciso que não exista o sujeito que dá,
de gratuidade. Dificilmente uma econo- nem objeto ofertado, tampouco o recebe-
mia poderá ser “solidária” se aqueles que dor da dádiva. Os preceitos anutilitaristas,
a reivindicam não se inspirarem, de uma portanto, reduzem a dádiva a uma “doa-
maneira ou outra, no princípio da dádi- ção” sem sujeito.
va; entretanto, imediatamente se coloca A concepção antiutilitarista, com cer-
a questão de como convém entender tal teza menos grandiosa, entretanto mais
espírito. adaptável à realidade, não conclama abso-
Dois grandes posicionamentos con- lutamente ao sacrifício da utilidade, do
frontam-se sobre essa questão: anutilita- interesse, da intenção, da subjetividade
rista e antiutilitarista. O primeiro seduz nem a qualquer renúncia. Os antiutili-
por um aparente radicalismo. Pela falta taristas consideram a dádiva como um
D
operador sociológico, criador de aliança, Para que a sociologia econômica (isto é,
104
laços afetivos e ações solidárias, asseme- uma maneira de pensar a economia dife-
lhando-se aos motivos que impelem as rentemente dos economistas) desenvolva-
relações sociais pela cooperação, acima se, ela deverá necessariamente se interro-
de qualquer interesse, seja em tempos de gar sobre o lugar ocupado pelas lógicas de
paz, seja em conjunturas de guerra. Para mercado, em cada tipo de prática da eco-
instaurar associações e criar a confian- nomia atual, da hierarquia redistributiva
ça, faz-se necessária, de fato, a presença e da dádiva recíproca respectivamente.
de uma parcela de gratuidade e de feitos Acredita-se que, além da sociologia eco-
desinteressados, fundadores da relação nômica, a teoria da dádiva seja indispen-
social. Nessa perspectiva, a incondiciona- sável à teoria sociológica geral e à filosofia
lidade subjaz às vantagens individuais que política.
possam ser obtidas. A dádiva antiutilita- A descoberta essencial de Mauss pode
rista é, portanto, absolutamente gratuita ser assim generalizada: na sociedade pri-
e incondicional; mais ainda, limita-se a meva, o laço social não se construía a par-
subordinar o momento da conveniência, tir do contrato ou das trocas mercantis,
do cálculo e do interesse a imperativos de mas obedecia à imposição de rivalizar em
conceder sem ônus e de incondicionali- generosidade manifesta. A dádiva selva-
dade primeiros. Ela se ordena de acordo gem, carregada de agressividade e ambi-
com uma lógica da incondicionalidade valência, não se harmonizava com o que
condicional. prescreve a caridade cristã; é uma dádiva
Essa concepção antiutilitarista da agnóstica. Adquire-se prestígio e eleva-se
dádiva pode assumir uma perspectiva o próprio nome quando não se medem
antropológica, que se apóia em múltiplos gastos, despende-se dinheiro até o des-
trabalhos. Desde a publicação, em 1923- perdício e aceita-se essa perda. Essa des-
24, do célebre Ensaio sobre a Dádiva, de coberta lança evidentemente um desafio
Marcel Mauss (1985), sobrinho e legatário fantástico aos postulados centrais da
teórico universal de Durkheim, fundador teoria econômica e da Rational Action The-
da escola sociológica francesa, a interro- ory, já que atesta, como escrevia Mauss,
gação sobre as práticas da dádiva cerimo- que “o homo œconomicus não está atrás
nial é medular no trabalho dos etnólogos. de nós, mas diante de nós”, não tendo o
A obrigação de dar – ou, antes, a “tripla despojamento e a universalidade que lhe
obrigação de dar, receber e devolver” –, atribuem os economistas. Aliás, os bens
que constituiu a regra social basilar de ao dados, aceitos e devolvidos no âmbito da
menos certo número de sociedades selva- obrigação de reciprocidade generosa não
gens e arcaicas, segundo Mauss descobriu, têm, na maioria das vezes, qualquer valor
nada mais é do que a tradução concreta do utilitário. Só valem enquanto símbolos
princípio de reciprocidade colocado por da relação social que criam e nutrem,
Lévi-Strauss no fundamento de sua antro- fazendo circular indefinidamente entre
pologia estrutural. Cabe ressaltar que os parceiros uma dívida que poderá – e
Polanyi, por meio de suas idéias de troca e deverá – inverter-se, mas nunca se anular.
de distribuição, contrastou esse preceito. As dádivas são alegorias, pois pressupõem
D
uma devolução, mesmo que não imediata ra na qual a personalidade dos indivídu-
105
e equivalente. Não se trata apenas da cir- os importa mais que as funções que eles
culação de bens positivos, de benefícios, cumprem) e que, mesmo no âmbito em
mas, igualmente, de insultos, vinganças princípio impessoal da socialidade secun-
e feitiçarias, malefícios, ou seja, se não dária (a instância do mercado, do Estado
se é capaz de dar o mal, não se pode dar e da ciência, onde a exigência de eficácia
o bem. Os exemplos mais célebres des- funcional das pessoas importa mais que
sas práticas agonísticas de dádiva são o sua personalidade), a obrigação de dar,
potlatch dos índios kwakiutl da Colômbia receber e devolver desempenha um papel
Britânica, no Oeste do Canadá, e a kula subordinado, mas decisivo, já que tam-
das ilhas Tobriand, no Nordeste da Nova bém nela as ações funcionais são sempre
Guiné. realizadas por pessoas. Não poderia exis-
O que subsiste, ainda no século XXI, tir empresa, administração ou laboratório
desse universo primitivo da dádiva, à par- de pesquisa eficazes se não conseguissem,
te as práticas de presentear nas festas, não de um modo ou de outro, mobilizar a seu
é muito aparente, porque nossa concep- favor a energia criativa, isto é, o impulso
ção da dádiva sofreu modificações ao ser de dar, a lealdade e a fidelidade de seus
modelada por dois mil anos de cristianis- membros.
mo. Todas as grandes religiões devem, de Sob essa ótica, o vínculo entre a des-
resto, ser interpretadas como transforma- coberta de Mauss e a nova sociologia eco-
ções do sistema arcaico da dádiva, pois nômica revela-se mais estreito. Não é na
agiram para universalizá-la (deve-se dar a racionalidade individual nem em regras
outros que não os próximos), para radica- holísticas, as quais a tudo se sobrepõem,
lizá-la (dar realmente o objeto desejável que se deve buscar a chave das ações
e não somente seu signo) e para interio- sociais, explica-nos Granovetter, mas nas
rizá-la (renunciar à dádiva ostensiva). redes e na confiança que liga e une os seus
Não obstante, todo um conjunto de bens membros. Cabe ressaltar que esse mes-
ainda circula no mundo da dádiva, e seria mo tema também se encontra nas idéias
totalmente errôneo crer que as práticas de de Callon (1998) e dos teóricos da ANT
dádiva concernem apenas às sociedades (Analysis Network Theory). Essas concep-
selvagens e que teriam desaparecido das ções são exatas, desde que se acrescente
sociedades contemporâneas. que é pela dádiva que as redes criam-se
Desde Titmuss (1972), o exemplo e pela renovação das dádivas que a con-
mais célebre é o da dádiva do sangue. fiança mantém-se. A relação de rede é um
Godbout (GODBOUT e CAILLÉ, 1992), por vínculo de dádiva – a primeira grande rede
sua vez, mostra que a característica da estudada foi o círculo kula, observado por
dádiva moderna é o fato de ela se tornar Malinowski (1992).
também dádiva aos estranhos. É possível,
de modo mais geral, se propor a hipótese 2. Algumas implicações teóricas possibili-
de que a obrigação de dar permanece a tam e tornam necessário ir-se além dessas
regra fundamental da socialidade primária, observações, conforme postula o grupo
das relações de pessoa a pessoa (essa esfe- da Revue du M.A.U.S.S., o qual aceita que
D
a sociologia encontra sua especificidade crítica ao economismo. Afirma-se que não
106
em relação à ciência econômica no antiu- só existem e que deve haver ações que não
tilitarismo – presente tanto em Durkheim procedam somente do interesse material
quanto em Weber, Marx ou até Pareto. calculado (como no caso do mercado) ou
Outrossim, esse antiutilitarismo só se fun- de uma obrigação (como no caso do Esta-
damenta quando se organiza a partir da do e da redistribuição), mas também e pri-
descoberta de Mauss e respeita o “para- meiramente de uma lógica da aliança e de
digma da dádiva”. O que Mauss mostra, certa gratuidade. O paradigma antiutilita-
com efeito, estudando a dádiva arcaica, rista, em compensação, encontra-se incon-
é que a ação social não obedece somente teste mais próximo dos partidários da eco-
ao interesse racional, mas também a uma nomia solidária e da valorização de tudo o
lógica primeira da simpatia, e que essa que se faça em nome do princípio associa-
tensão entre interesse e desinteresse coin- tivo. Se, no setor associativo, o espírito da
cide com outra, entre obrigação e liberda- dádiva é em princípio hierarquicamente
de. A exigência de dar é ato compulsório dominante em relação às lógicas do inte-
paradoxal de liberdade. A relação social resse individual e da obrigação, ele não o
não se constrói, portanto, nem a partir é necessariamente e sempre na prática e,
do interesse racional – como acreditam por sua vez, certa dimensão de gratuidade
os individualistas metodológicos – nem a é imprescindível no seio da empresa ou
partir de uma lei sempre presente e acima dos aparelhos de Estado. Longe das opo-
de tudo, como afirmam os defensores do sições claras entre dádiva pura e interesse,
holismo metodológico. Essas duas ver- ou entre mercado, Estado e associações, o
tentes teóricas e metodológicas, entre as paradigma da dádiva leva a compreender
quais oscila a maior parte das escolas em com clareza não só a diferença das lógicas,
ciência social, compartilham, para além de mas também as continuidades e as varia-
sua oposição, o desejo de explicar a ação ções dialéticas. A dádiva identifica-se com
e a história, reduzindo-as às escolhas e às uma concepção propriamente política da
decisões de um sujeito substancial pree- relação social por insistir vigorosamente
xistente: o indivíduo ou a sociedade tidos na idéia de que a condição primeira e pré-
como entidades. O que falta é a dimensão via da eficácia (sem discutir o significado
de advento da relação social ou da psique desse termo) de todo coletivo humano
dos sujeitos. O emprego da dádiva não é reside nas próprias modalidades de sua
explicado pela caridade ou pelo altruísmo, constituição em sujeito. Em contrapar-
como se acredita muitas vezes, mas pela tida, não há nação próspera que não seja
emergência. A dádiva assim concebida primeiramente um país, uma pátria; não
representa a modalidade privilegiada do existe consórcio solidário que não privi-
que se pode chamar de ações constitutivas legie o princípio associativo sobre impe-
(PERRET, 2004), sendo da mesma ordem rativos funcionais; não há empreitada de
que a ação no sentido de Arendt ou que o laboratório ou de equipe esportiva eficaz
conceito do político. que não seja também uma comunidade.
Devem ser salientadas duas implica- Disso se deduz que as alternativas
ções do paradigma da dádiva quanto à que imperiosamente devem-se buscar ao
D
megacapitalismo contemporâneo não DERRIDA, J. (1991), Donner le temps, Paris: Galilée.
107
são, em primeiro lugar, propriamente eco- GODBOUT, J. T. (2001), Le don, la dette, l’identité, Paris:
nômicas. Em certo sentido, não há mais La Découverte; MAUSS.
alternativa econômica plausível para a GODBOUT, J. T.; CAILLÉ, A. (1992), L’esprit du don, Paris:
economia de mercado. O lugar da econo- La Découverte; Poche.

mia pode ser limitado, isto é, ela deve ser LA REVUE DU MAUSS. (1993), Ce que donner veut dire,
Paris: semestrielle n. 1, 1er semestre.
instituída de outro modo e subordinada
___. (1997), L’obligation de donner. La découverte
principalmente a exigências de gratuida-
sociologique capitale de Marcel Mauss, Paris: semes-
de, dádiva e democratização. trielle n. 8, 2ème semestre.
MALINOWSKI, B. (1992), Les argonautes du Pacifique occi-
dental, Paris: Gallimard.
BIBLIOGRAFIA MARION, J. L. (1997), Étant donné: essai d’une phéno-
CAILLÉ, A. (2000), Anthropologie du don: le tiers para- ménologie de la donation, Paris: PUF.
digma, Paris: Desclée de Brouwer. MAUSS, M. (1985), Essai sur le don (1923-24). In:
___. (2004), Don, intérêt et désintéressement: Bourdieu, Sociologie et Anthropologie, Paris: PUF.
Mauss, Platon et quelques autres, 2ème éd., Paris: La PERRET, B. (2004), La société comme monde común, Paris:
Découverte; MAUSS. Desclée de Brouwer.
CALLON, M. (Ed.) (1998), The laws of the markets, Oxford: TITMUSS, R. M. (1972), The gift relationship: from human
The Sociological Review; Blackwell Publishers. blood to social policy, New York: Vintage Books.
D
DESENVOLVIMENTO LOCAL nesse processo e segundo uma perspectiva
108 Rogério Roque Amaro integrada dos problemas e das respostas”.
Para além de uma reformulação teórica
1. O conceito de desenvolvimento local dos paradigmas do Desenvolvimento, de
teve a sua afirmação científica a partir dos um ponto de vista espacial (como expres-
finais dos anos 1970 e o seu reconheci- sam os autores antes mencionados e se verá
mento político-institucional a partir dos adiante), o conceito de desenvolvimento
anos 1990, sendo estes dois dos critérios local corresponde sobretudo a uma multi-
mais importantes para aferir a sua valida- plicidade assinalável de iniciativas de base
ção e utilidade na sociedade contemporâ- local, a partir das quais, actores locais, de
nea (dos últimos 30 anos). muitos tipos e numa grande variedade de
No primeiro caso, são de referir, sobre- situações, tentam encontrar respostas para
tudo, as reflexões propostas e os traba- os problemas colocados pelas crises econó-
lhos publicados por autores como John micas, tecnológicas, ambientais e políticas
Friedmann e Clyde Weaver, Walter Stöhr que puseram termo ao chamado perío-
e David Taylor, José Arocena, Bernard do dos “anos dourados” do crescimento
Pecqueur e Bernard Vachon, entre outros. económico relativamente estável dos 30
Quanto ao reconhecimento político- anos posteriores à II Guerra Mundial.
-institucional do conceito de desenvol- Tais iniciativas são, desse ponto de
vimento local, é de mencionar a propos- vista, a resposta local (das comunidades
ta do Programa “Iniciativas Locais de locais) aos problemas económicos (crises
Emprego” da OCDE, no final dos anos sectoriais, falências e fecho de empresas,
1980, e a importância que este assumiu na desestruturação das economias locais),
definição das políticas europeias de com- sociais (desemprego, pobreza e exclusão
bate ao desemprego e à pobreza e exclu- social, ausência de respostas sociais para
são social, na União Europeia (vg. Progra- o acompanhamento dos mais novos e dos
mas Europeus de Luta Contra a Pobreza mais velhos), culturais (marginalização ou
II e III; Conselhos Europeus de Corfu, em descaracterização das identidades, dos
1993, de Essen, em 1994, de Dublin, em valores culturais e dos patrimónios locais,
1996, e de Florença, em 1997), para além homogeneização cultural) e ambientais
de outras referências explícitas, nos anos (destruição de ecossistemas locais, falta
1990, em relatórios e encontros organiza- de saneamento básico, ameaças à quali-
dos por organismos internacionais como dade de vida, extinção de espécies, des-
o PNUD e a OIT. florestação), provocados pelas alterações
A partir de várias das contribuições dos modelos de desenvolvimento após a
referidas, é possível formular uma primeira década de 1970, pela globalização de pre-
definição de desenvolvimento local como domínio economicista e pelas crises do
“o processo de satisfação de necessidades Estado-Nação e do Estado-providência
e de melhoria das condições de vida de (e afirmação das correntes neoliberais).
uma comunidade local, a partir essencial-
mente das suas capacidades, assumindo 2. Embora se tenha afirmado sobretudo a
a comunidade o protagonismo principal partir da década de 1980, a base histórica
D
do desenvolvimento local remonta a finais los (de economia, de industrialização, de
109
dos anos 1950. Nessa altura, estava-se na tecnologias, de ensino, de medicina, etc.)
fase de afirmação do conceito de Desenvol- de que eram portadores, em vez de pro-
vimento e da sua aplicação aos processos moverem processos de autonomização e
de ajuda aos novos países independentes desenvolvimento, colocavam uma série
(antigas colónias europeias), normalmen- de problemas, nomeadamente: a) ignorar
te chamados de “subdesenvolvidos” que, as necessidades efectivamente sentidas
afirmava-se, muito teriam a aprender com pelas comunidades locais, bem como os
os países já considerados “desenvolvidos” seus recursos e capacidades; b) despre-
(na maior parte dos casos, as suas antigas zar os seus valores, identidades e saberes,
potências colonizadoras). considerando-os primitivos e subdesen-
Para isso, os processos de “ajuda e volvidos; c) estimular a dependência e a
cooperação para o desenvolvimento” subordinação em relação “ao que vem de
propunham (ou impunham, em muitos fora”; d) criar novos problemas (económi-
dos casos) a imitação, por parte desses cos, sociais, culturais e ambientais), até aí
países, dos modelos de desenvolvimento, desconhecidos.
baseados no crescimento económico e Foi a partir desta constatação que mui-
na industrialização, já “testados” histo- tos daqueles técnicos começaram a propor
ricamente nos países “mais desenvolvi- e a pôr em prática um método pragmático
dos”, levando-os a “modernizar” as suas de promover o desenvolvimento, assente
estruturas económicas, sociais, culturais, em três ideias fundamentais:
políticas e tecnológicas, abandonando os – o diagnóstico das necessidades das
seus sistemas tradicionais, considerados comunidades locais deve realizar-se com
um obstáculo ao progresso. Por isso, a esta participação destas;
perspectiva de desenvolvimento, promo- – a resposta a essas necessidades deve
vida por autores como Arthur Lewis e Walt basear-se na utilização dos recursos e
Whitman Rostow, se chamou “paradigma capacidades da própria comunidade;
da modernização” (ou “estruturalista”). – os problemas e as soluções devem ser
Para além desta influência, digamos abordados de forma integrada, conjugan-
teórica, também o peso ideológico do do as suas várias componentes e áreas de
confronto “capitalismo-socialismo” con- intervenção (alimentação, educação, saú-
dicionou sobremaneira aqueles processos de, emprego, rendimento, cultura, etc.).
de “ajuda”, fazendo com que eles fossem A este método alternativo de promo-
mais de “arregimentação” e alinhamento ção do desenvolvimento chamou-se, na
ideológico do que de promoção de efecti- altura, “Desenvolvimento Comunitário”,
vo desenvolvimento. porque assente numa perspectiva de valo-
Na prática e no terreno, muitos téc- rização das comunidades locais e das suas
nicos dos organismos internacionais aspirações e capacidades. Mas, porque foi
(no âmbito da ONU) e das organizações essencialmente um método prático mais
não-governamentais (ONG), que come- do que uma teoria, passou despercebido
çavam então a surgir neste campo de à quase totalidade dos autores teóricos do
intervenção, constatavam que os mode- desenvolvimento, não sendo mencionado,
D
em regra, nos manuais publicados nessa espaço geográfico à sua volta e porque ins-
110
época sobre este tema. pirado na lógica funcionalista dos proces-
No entanto, implicou a acção de mui- sos de desenvolvimento) ou “top-down”
tos técnicos dos departamentos da ONU, ou, ainda, “from above” (FRIEDMANN e
com intervenções no domínio da ajuda WEAVER, 1979; STÖHR e TAYLOR, 1981; STÖHR,
ao desenvolvimento, e várias ONG que 1984; PECQUEUR, 1989).
estavam então a surgir, como foi o caso, Segundo este modelo, o desenvolvi-
nomeadamente, da ONG sueca “Dag mento regional deveria ocorrer do centro
Hammarskjöld Foundation” que, liga- para a periferia, das grandes metrópoles e
da à Universidade de Uppsala, editou das cidades para as zonas rurais, da nação
uma revista sobre estes temas, designada para as regiões, dos pólos de desenvolvi-
“Development Dialogue”, onde algumas mento para as suas “áreas de influência” e,
destas questões foram reflectidas. E está portanto, “de cima para baixo”, segundo
seguramente na base da formulação do uma lógica (automática) de centrifugação
conceito de desenvolvimento local, a par- do progresso.
tir dos anos 1980, como já foi referido. Argumentavam esses autores que o
Foram os problemas surgidos, a partir saldo era predominantemente o inverso,
de finais dos anos 1970, como menciona- de resultados centrípetos, que acentua-
do, que levaram ao ressurgimento/actuali- vam ainda mais o efeito de polarização e
zação desses processos e iniciativas de base de concentração do desenvolvimento, em
local, como resposta da sociedade civil às vez de o difundirem para as áreas perifé-
“falhas” e aos problemas provocados pelo ricas, que, desse modo, seriam sempre
mercado (de forte influência liberalizante desfavorecidas.
e com uma feição cada vez mais global) e Propunham, em contrapartida, que o
às “falhas” e insuficiências das respostas desenvolvimento, a nível espacial, devesse
do Estado-providência, então em crise. “partir de baixo”, de cada território, atri-
buindo a cada comunidade local a iniciati-
3. Se, como já foi dito, o desenvolvimento va e o protagonismo dos seus processos de
local se afirma pela via indutiva (da inicia- desenvolvimento, a partir das suas capaci-
tiva das comunidades locais, como respos- dades, invertendo portanto as dinâmicas e
ta aos seus problemas), também encontra lógicas consideradas até aí.
um importante pilar na reformulação teó- Para isso, consideravam que a essência
rica dos paradigmas do Desenvolvimento deste paradigma residia nas potencialida-
Regional. des endógenas, mais do que nos impulsos
É a partir dos finais dos anos 1970 e, em exógenos, embora estes pudessem ser
parte, na sequência das crises económicas importantes para dinamizar e fecundar
e sociais dessa década, que vários autores aquelas, sobretudo quando as comunida-
(como os assinalados anteriormente) colo- des locais tivessem perdido a capacida-
cam em causa o paradigma dominante até de de iniciativa e a vontade de mudança
aí denominado de “funcionalista” (porque (muitas vezes por acção dos modelos de
assente no princípio das funções centrais desenvolvimento importados, desmobili-
a desempenhar por cada centro urbano no zadores das forças locais).
D
Porque assente no protagonismo de c) que tem como uma das suas motiva-
111
cada território, foi este paradigma desig- ções fundamentais a resposta a necessida-
nado de “territorialista”, tendo, muitas des básicas da comunidade que estão por
vezes, sido oposto, de forma radical, à satisfazer;
perspectiva funcionalista, a que corres- d) a partir essencialmente da mobili-
ponderam também por vezes de maneira zação das capacidades locais;
excessivamente contrastada as oposições e) o que implica a adopção de meto-
endógeno-exógeno e local-global. dologias participativas e de “emporwer-
No entanto, a maioria daqueles auto- ment” da comunidade local (do ponto de
res evoluiu para uma posição menos radi- vista individual e colectivo);
cal, a que alguns chamaram de “neoterri- f ) contando também com a contri-
torialista”, conjugando as perspectivas e buição de recursos exógenos, capazes de
as forças “de fora” e “de dentro”, embora mobilizar e fertilizar os recursos endóge-
continuando a colocar o acento tónico nos (e não de os substituir ou inibir);
nestas. g) numa perspectiva integrada, na abor-
A par da inspiração indutiva (vinda das dagem dos problemas e das respostas;
experiências da acção concreta), foi este h) o que exige uma lógica de trabalho
paradigma (territorialista/neoterritorialis- em parceria, ou seja, de articulação dos
ta) que enquadrou a (re)conceptualização vários actores, protagonistas e instituições
do desenvolvimento local, como se viu locais ou a trabalhar no local;
na linha do método do Desenvolvimento i) com impacto tendencial em toda a
Comunitário, ensaiado a partir dos finais comunidade;
dos anos 1950 em muitas intervenções de j) e segundo uma grande diversidade
apoio ao desenvolvimento nos novos paí- de processos, dinâmicas e resultados.
ses ditos “subdesenvolvidos”. Como se percebe, há uma ligação ín-
tima entre esta definição e os pontos
4. A partir destas contribuições, é possível de referência do método designado por
propor uma definição mais aprofundada Desenvolvimento Comunitário, antes indi-
do que se pode entender por desenvolvi- cado, situando-se na mesma perspectiva de
mento local. desenvolvimento e lógica de intervenção.
Define-se então desenvolvimento local Note-se que, nesta acepção, o desen-
a partir de dez atributos, a saber: volvimento local não é uma decomposi-
a) um processo de mudança, levando à ção do Desenvolvimento Regional, como
melhoria do bem-estar e das condições de por vezes se supõe (e este, nessa mesma
vida da população; lógica, uma divisão espacial do Desenvol-
b) centrado numa comunidade ter- vimento a nível nacional). Trata-se, sim,
ritorial de pequena dimensão, definida de uma outra perspectiva metodológica
pela existência (real ou potencial) de uma de abordagem dos processos de desen-
identidade comum, capaz de mobilizar volvimento, centrando-os na comunida-
solidariedades de acção (colectiva) e com de local e no seu território, com as conse-
pretensões a uma autonomia de afirmação quências em termos teóricos e práticos
do seu destino; daí resultantes, como se referiu.
D
Neste sentido, o conceito de desen- Nesse sentido, pode dizer-se que o
112
volvimento local pertence à mesma cate- desenvolvimento local tem servido de
goria conceptual de um outro conceito de amortecedor às crises e problemas trazi-
afirmação recente (também a partir dos dos pela globalização, perante as falhas
anos 1980) que é o de Desenvolvimento das regulações supranacionais (da União
Participativo, colocando a ênfase, como a Europeia, por exemplo) e as ausências
designação indica, na questão da partici- das regulações à escala mundial (inope-
pação das pessoas como eixo nuclear dos rância da ONU e do entendimento entre
processos de desenvolvimento. as grandes potências sobre a resolução
partilhada dos grandes problemas mun-
5. Não deixa de ser curioso constatar diais – veja-se o caso do Protocolo de
que o ressurgimento do desenvolvimento Quioto).
local como conceito e como prática, nos Pode então afirmar-se que o desen-
anos 1980, é simultâneo com a aceleração volvimento local não tendeu, nem tende,
e acentuação dos processos de globali- a desaparecer com a globalização, antes,
zação das sociedades contemporâneas, pelas duas razões postuladas, a comple-
sobretudo nos seus aspectos económico- mentá-la (e a contrariá-la, propondo uma
-financeiros. Pareceriam ser lógicas opos- outra globalização a partir do local), daí
tas e contraditórias. E são-no, em grande se entendendo a sua afirmação simultâ-
medida, mas também apresentam com- nea, balizando o que se poderia entender
plementaridade, noutros aspectos. por processo contraditório e paradoxal de
De facto, pode dizer-se que o desen- “glocalização”.
volvimento local resulta, por um lado,
da resistência das economias locais e das
identidades locais às consequências da BIBLIOGRAFIA
liberalização da circulação de mercado- AMARO, R. R. (2003), Desenvolvimento – um concei-
rias, serviços e capitais, e da homogeneiza- to ultrapassado ou em renovação? Da teoria à prática
ção cultural provocadas pela globalização e da prática à teoria. In: Cadernos de Estudos Africanos,
dominante e que tende a destruir aquelas n.º 4, Janeiro/Julho, Centro de Estudos Africanos,
ISCTE, Lisboa, p. 57 e ss.
especificidades. Mas, por outro lado, é
também a resposta (local) aos problemas AYDALOT, P. (Org.) (1984), Crise et espace, Paris:
económicos, sociais, culturais, ambien- Economica.
tais e políticos dela resultantes; numa fase FRIEDMANN, J.; WEAVER, C. (1979), Territory and func-
em que o Estado-providência, de âmbito tion: the evolution of regional planning, London: E.
nacional, entrou em crise e perdeu a efi- Arnold Publications.
cácia na regulação daqueles problemas e HOUÉE, P. (2001), Le développement local au défi de la
não surgiu, ainda, em alternativa, nenhum mondialisation, Paris: Éd. L’Harmattan.
modelo de regulação de âmbito global PECQUEUR, B. (1989), Le développement local, Paris:
(supranacional ou transnacional). Syros-Alternative.
D
STÖHR, W. (1984), La crise économique demande- temporary Europe, London: The United Nations
-t-elle de nouvelles stratégies de Développement University. 113
Régional ? – vers un nouveau paradigme du Déve- STÖHR, W.; TAYLOR, D. F., (Ed.) (1981), Development
loppement Régional. In: AYDALOT, P. (Org.), Crise et from Above or from Below?, Chichester: John Wisley &
espace, Paris: Economica. Sons.
STÖHR, W. (Ed.) (1990), Global challenge and local res- VACHON, Bernard (1993), Le développement local : théo-
ponse – initiatives for economic regeneration in con- rie et pratique, Montréal: Gaëtan Morin.
E
ECONOMIA DA FAMÍLIA cas que determinam vantagens compara-
Lina Coelho tivas diferenciadas para cada um. A teoria
postula decisões familiares (de consumo,
1. A economia da família ocupa-se das oferta de trabalho ou alocação) consensu-
determinantes económicas das relações ais (representadas através duma só função
entre as pessoas no seio da família, sejam utilidade), pois que, embora a família seja
estas de natureza conjugal (produção constituída por pessoas com preferências
doméstica, oferta de trabalho, consumos diversas, o chefe de família ao transferir
diferenciados de homens e mulheres, parcelas do seu rendimento para os res-
violência doméstica) ou intergeracional tantes familiares assegura que estes ajam
(despesas com educação, saúde e nutrição de acordo com as preferências dele. O
das crianças, investimentos desiguais em bem-estar das mulheres e das crianças e
filhos e filhas, apoio económico dos filhos a sua subordinação ao poder masculino
aos pais, etc.). são questões omissas neste modelo unitá-
Gary Becker trouxe a família para o rio da família, pois que não está em causa
corpo central da ciência económica ao qualquer propósito de questionamento
evidenciar as motivações económicas da ou transformação das relações sociais.
sua formação e funcionamento e o seu
contributo decisivo para a sobrevivên- 2. A evolução da economia da família tem-
cia e bem-estar das sociedades humanas. -se norteado pelo duplo esforço conceptu-
Este esforço conceptual foi feito no qua- al de superação da questão metodológica
dro metodológico da teoria neoclássica, relativa ao individualismo do homo æcono-
dando primazia às preocupações relativas micus, por um lado, e da questão ética rela-
à eficiência em detrimento da equidade, tiva à equidade entre sexos e gerações, por
pelo que a família é encarada como uma outro. O espectro de teorias disponíveis
entidade análoga à empresa, visando asse- contém desde propostas onde os pressu-
gurar a maximização do excedente econó- postos e os métodos da teoria hegemónica
mico com base na especialização produti- estão claramente presentes – individualis-
va dos seus membros, justificada esta por mo, preferências exógenas, comportamen-
diferentes produtividades do trabalho. tos maximizadores de eficiência, equilíbrio
Nesta família, o pai opera como ganha-pão das soluções obtidas, rigor formal – até
(breadwinner) e a mãe assegura o trabalho leituras fortemente subversivas da ortodo-
doméstico e de reprodução (housekeeper), xia, como a feminista, onde o rigor formal
em consequência das diferenças biológi- e a axiomática sobre os comportamentos
E
humanos são preteridos a favor dos “pro- pode ser interpretada como o resultado
115
blemas económicos reais”. de preferências individuais diferenciadas.
No âmbito conceptual hegemónico, a Ignoram-se assim os valores, as normas e
principal debilidade da teoria de Becker as instituições que condicionam, moldam
reside no tratamento da família como e limitam a própria formação de preferên-
unidade de decisão, contrariando o prin- cias. Parece inquestionável que, nas socie-
cípio da prossecução do interesse pró- dades onde são escassas as oportunidades
prio enquanto motivação fundamental de vida para as mulheres fora do casamen-
para os comportamentos económicos. Os to, a margem de escolha por preferências
desenvolvimentos teóricos consequentes alternativas é diminuta bem assim como o
seguem duas vias diferenciadas: a chama- poder negocial das mulheres. Já nos paí-
da teoria colectiva da família, por um lado, ses desenvolvidos, as escolhas são condi-
e os modelos de negociação baseados na cionadas pelo facto de se continuarem a
teoria dos jogos, por outro. atribuir às mulheres as tarefas atinentes à
A teoria colectiva da família prossegue reprodução.
uma linha metodológica eminentemente Os modelos baseados na teoria dos
ortodoxa, partindo do pressuposto de que jogos aprofundam a análise ao caracte-
os resultados da interacção intrafamiliar rizarem a interacção conjugal como uma
são sempre eficientes segundo Pareto e negociação entre pessoas com poder
apresentando-se como uma teoria geral, à eventualmente diferenciado. Manser e
luz da qual outras podem ser tratadas como Brown (1980) e McElroy e Horney (1981)
casos “especiais”. O modelo usa informa- construíram modelos cooperados de
ção sobre a despesa ou a oferta de trabalho negociação, com consideração explícita
específica de cada cônjuge para determinar de preferências individuais diferenciadas,
a regra de partilha intrafamiliar, ou seja, a sendo a alocação de recursos na família a
parcela do rendimento familiar auferida solução negociada que resulta de um jogo
por cada pessoa, sendo esta usada para cooperado de Nash aplicado a duas pes-
explicar a alocação intrafamiliar (BROWNING, soas. Supondo perfeita comunhão de ren-
BOURGUIGNON, CHIAPPORI e LECHENE, 1994). dimentos e soluções Pareto-eficientes, o
Significa isto que o modelo não procura casamento é vantajoso se a utilidade indi-
explicar o processo de interacção entre as vidual obtida for superior à da situação de
pessoas, apenas se limitando a constatar os solteiro, tendo os indivíduos que decidir
seus resultados. sobre a repartição dos ganhos do casa-
Em obediência aos imperativos do mento. O ponto de conflito do jogo cor-
individualismo e da eficiência, a Economia responde à utilidade possível em caso de
hegemónica apresenta-se como “social- divórcio, a qual depende não só dos rendi-
mente neutra” mas resulta, de facto, em mentos familiares e dos preços mas, tam-
interpretações apologéticas do status quo. bém, dos rendimentos de cada indivíduo
A desigualdade – de remunerações, rendi- e do enquadramento sócio-jurídico (fun-
mentos e oportunidades – entre homens cionamento dos mercados de casamento,
e mulheres, ainda que sistemática e obser- estrutura legal que enquadra o casamento
vável em todas as sociedades, é omitida ou e o divórcio, tributação e transferências
E
públicas ou privadas associadas ao esta- – As mães empenham-se mais no
116
tuto marital ou familiar, valores culturais bem-estar dos filhos do que os pais. O
e religiosos). empoderamento das mulheres através da
Já os modelos de negociação não- legislação relativa ao casamento e à famí-
-cooperada procuram superar, por um lia, subsídios à maternidade, educação ou
lado, o irrealismo dum ponto de conflito reforço do rendimento conduz a aumen-
exterior ao casamento (o divórcio) e, por tos das despesas de consumo e saúde das
outro, a inadequação da hipótese ineren- crianças e mulheres comparativamente
te aos jogos cooperados segundo a qual os aos homens. Por outro lado, determina
acordos negociais internos ao casamento reduções nos consumos de álcool e tabaco
são vinculativos e susceptíveis de se faze- (bens viciantes), bem assim como redu-
rem cumprir sem custos. Um exemplo é o ções na fecundidade e na parcela de traba-
“modelo negocial com esferas de actuação lho doméstico realizada pelas mulheres;
separadas” para os diferentes membros do – Pais e mães manifestam diferentes
casal definidas em conformidade com “os preferências por filhos e filhas, com os pri-
papéis tradicionais de género e as expec- meiros a investirem mais nos rapazes e as
tativas existentes quanto a esses papéis” segundas nas raparigas;
(LUNDBERG e POLLAK, 1993). O modelo cor- – A afectação dos recursos produtivos
responde à situação dum casal que maxi- no âmbito familiar nem sempre se revela
miza a sua utilidade, com cada cônjuge a eficiente.
tomar o comportamento do outro como No entanto, a informação estatística
dado. A manutenção dum casamento infe- disponível e os quadros conceptuais de
liz pode ser preferida ao divórcio porque, referência restringem muito as possibili-
mesmo assim, os indivíduos usufruem de dades de mensuração das realidades eco-
bens públicos familiares, ainda que de for- nómicas intrafamiliares, sendo particular-
ma não eficiente, ou seja, em quantidade mente penalizante conseguir estimar-se a
(e qualidade) inferior às que ocorreriam distribuição entre cônjuges, por um lado,
em situação de cooperação e coordena- e entre pais e filhos, por outro, mas não
ção. As actividades desenvolvidas por cada ambas em simultâneo. Carece-se, pois,
cônjuge serão, neste caso, as que confor- de abordagens multidimensionais, o que
mam os papéis tradicionais de género. levanta a questão, ainda não resolvida, de
sintetizar indicadores múltiplos de forma
3. Estas diferentes concepções de família satisfatória.
têm inspirado um vastíssimo trabalho de Os modelos económicos não abor-
pesquisa empírica em países com níveis dam a família como um todo mas tão-só
de desenvolvimento, culturas, religiões e facetas da realidade familiar. Por exem-
tradições diversos, cujos resultados já per- plo, nos modelos referidos o objecto de
mitiram um amplo consenso em torno de estudo não é o agregado familiar mas,
algumas ideias importantes: sim, “o casal”. Os filhos, ou são omitidos
– Homens e mulheres não comungam ou tratados como “bens”. Esta truncagem
dos rendimentos familiares, o que implica da família decorre quer das dificuldades
a rejeição empírica do modelo unitário; de formalização matemática quando se
E
consideram mais de dois agentes, quer da do poder de alguém ou estão em posição
117
implausibilidade de considerar as crianças de exercer poder sobre outros. O acesso ao
como indivíduos autónomos, racionais rendimento é uma determinante incontor-
e conscientes do seu interesse egoístico. nável da posição ocupada. Agarwal (1997)
Assim se evidenciam as dificuldades da afirma que as desigualdades económicas
teoria hegemónica para a compreensão são uma das principais determinantes das
do mundo real. relações de poder, ao proporcionarem a
Um outro aspecto crítico é a omis- algumas pessoas maior autoridade na defi-
são da produção doméstica na maioria nição de regras e na sua interpretação do
dos modelos, na medida em que esta é que a outras. Um exemplo é a formulação
maioritariamente o resultado do trabalho das normas sociais que determinam o con-
feminino. Se todos os bens domestica- trole reduzido da propriedade pelas mulhe-
mente produzidos tivessem substitutos res. Folbre (1994) aponta um conjunto de
no mercado, esta omissão não constituiria quatro variáveis que afectam o modo como
óbice à compreensão da realidade econó- as pessoas fazem as suas escolhas no mer-
mica. Os homens e as mulheres optariam cado, na família ou noutras instâncias: os
por afectar o seu trabalho a actividades activos, as normas, as regras políticas e
domésticas ou remuneradas, consoante a as preferências. São activos, o tempo e o
sua produtividade em cada uma. Mas este dinheiro; as regras evidenciam-se através
raciocínio é falsificador na presença de das leis; as normas decorrem da pertença
bens domésticos sem substituto mercan- a determinados grupos sociais; e as prefe-
til como a criação dos filhos, um trabalho rências variam com a pessoa. Cada indiví-
tão radicalmente decisivo quanto é dele duo situa-se numa configuração específica
que depende a sobrevivência da própria definida pela combinação daquelas com
espécie. Esta omissão é uma das princi- seis categorias colectivas – género, idade,
pais expressões do viés androcêntrico do preferências sexuais, nação, raça e clas-
discurso dominante, pois dela decorre, em se –, daí resultando a situação particular
grande medida, a ocultação do papel eco- do indivíduo no conjunto social e na sua
nómico das próprias mulheres. A mesma relação com os outros, e daí decorrendo as
ordem de ideias se aplica à natureza estáti- suas possibilidades de escolha e controle.
ca da maioria dos modelos, por inviabilizar Sen (1990) sublinha que a individu-
a análise das consequências assimétricas alidade de cada ser humano constitui o
que o surgimento dos filhos produz sobre resultado (nem sempre harmonioso) de
a capacidade negocial relativa do pai e da identidades múltiplas associadas ao sexo,
mãe. à posição dentro da família, à classe social,
Numa perspectiva feminista, o poder ao grupo ocupacional, à nação ou à comu-
é crucial em economia como em todas nidade a que se pertence. Todas influen-
as outras formas de relação social (veja- ciam o modo como cada pessoa apercebe
-se, a propósito, o verbete Economia Feminis- os seus interesses, bem-estar, obrigações,
ta). Nelson (1996) sublinha que as pessoas objectivos e legitimidade dos comporta-
vivem as suas vidas como pessoas-em-rela- mentos. A percepção acerca do interesse
ção e que, nesta qualidade, ou dependem próprio e a percepção que os outros têm
E
sobre a contribuição de cada um para o pertinentes e adequadas ao combate à
118
bem-estar da família são elementos deter- pobreza infantil e à promoção da poupan-
minantes da alocação intrafamiliar. Nal- ça das famílias, do bem-estar, da formação
gumas sociedades as mulheres identificam de capital humano, da eficácia da seguran-
de tal modo o seu bem-estar individual ça social, dos cuidados aos idosos e cuida-
com o da família que isso as impossibili- dos de saúde, da equidade intrafamiliar
ta de equacionar de forma minimamente (incluindo a de género), das heranças ou
objectiva os seus próprios interesses. Por de um tratamento fiscal eficiente e equi-
outro lado, as actividades relacionadas tativo dos dependentes e dos encargos
com o sustento, a sobrevivência e a repro- familiares.
dução da família tendem a ser encaradas Ainda assim, mesmo no quadro hege-
como “não produtivas” o que condiciona mónico, as implicações normativas das
a percepção social acerca da legitimidade diferentes concepções teóricas são radi-
das mulheres reivindicarem para si uma calmente diversas: o modelo de decisão
parcela justa dos rendimentos familiares. unitária de Becker sustenta que as políticas
O poder relativo dos homens e das mulhe- dirigidas a melhorar a situação económica
res na família decorre da tecnologia social de categorias específicas de indivíduos no
própria a cada comunidade, a qual deter- seio da família (como as mulheres ou as
mina, inter alia, uma dada divisão sexual crianças) são totalmente ineficazes; já os
do trabalho e percepções estereotipadas modelos de escolha colectiva sustentam a
sobre esforço e merecimento. O estudo eficácia de intervenções dirigidas à altera-
da família deve, pois, fazer-se no quadro ção dos rendimentos ou do controle sobre
de uma teoria negocial qualitativa, centra- o rendimento de homens e mulheres.
da no conceito de conflito-cooperativo, e Alderman et al. (1997) relevam o facto
que atenda a três diferentes determinan- da complexidade dos processos em causa
tes da alocação intrafamiliar de recursos: dificultar um quadro conceptual univer-
os níveis relativos de bem-estar obteníveis sal sobre a família, válido para todas as
pelo homem e pela mulher em caso de culturas e para todas as questões de natu-
ruptura da cooperação, a percepção do reza política, dada a importância deter-
interesse próprio e o modo como é aper- minante de factores culturais, sociais e
cebida a contribuição de cada um para o institucionais. Ainda assim, face à evidên-
bem-estar da família. cia empírica e às discussões teóricas já
Ao considerar como não económicas desenvolvidas, consideram que a omissão
(exógenas) variáveis como os valores, as dos processos de alocação intrafamiliar
normas, ou as determinantes das prefe- determina frequentemente o insuces-
rências individuais e ao conformar-se ao so das políticas dirigidas à promoção do
espartilho dos modelos formalizados, a bem-estar e que, apesar da adopção de
Economia hegemónica situa-se aquém do uma política errada envolver sempre cus-
necessário para compreender cabalmente tos, a aplicação errónea do modelo unitá-
a realidade e, assim, promover a melhoria rio tem consequências políticas mais gra-
das condições de vida em geral, nomea- ves do que a aplicação errónea do modelo
damente informando decisões políticas colectivo.
E
A escolha do enquadramento teóri- BROWNING, M., BOURGUIGNON, F., CHIAPPORI, P.-A.,
LECHENE, V. (1994), Income and Outcomes: a struc- 119
co adequado a diferentes circunstâncias
tural model of intrahousehold allocation. Journal of
e a avaliação dos benefícios de políticas
Political Economy, v. 102, n. 61, p. 1067-96.
dirigidas a públicos específicos (targeting)
FOLBRE, N. (1986), Hearts and Spades: paradigms of
são questões ainda em aberto, às quais household economics. World Development, v. 14, n. 2,
só poderá vir a responder-se cabalmente p. 245-55.
aprofundando a investigação. Sugerem-se, ___. (1994), Who Pays for the Kids: gender and the
como vias a seguir, a interdisciplinaridade, structure of constraint, New York: Routledge.
a integração de dados qualitativos e quan- HADDAD, L.; HODDINOTT, J.; ALDERMAN, H. (Ed.) (1997),
titativos e o teste das hipóteses próprias a Intrahousehold Resource Allocation in Developing Coun-
diferentes modelos conceptuais em con- tries: methods, models and policy, Baltimore: Johns
Hopkins University Press.
textos nacionais (logo, culturais, sociais e
institucionais) diversos. LUNDBERG, S.; POLLAK, R. A. (1993), Separate Spheres
Bargaining and the Marriage Market. Journal of Politi-
cal Economy, v. 10, n. 6, p. 988-1010.
BIBLIOGRAFIA MANSER, M.; BROWN, M. (1980), Marriage and
AGARWAL, B. (1997), ‘Bargaining’ and Gender Rela- Household Decision-Making: a bargaining analysis.
tions: within and beyond the household. Feminist International Economic Review, v. 21, n. 1, p. 31-44.
Economics, v. 3, n. 1, p. 1-51. MCELROY, M. B.; HORNEY, M. J. (1981), Nash-Bargai-
ALDERMAN, H., HADDAD, L.; HODDINOTT, J. (1997), ned Household Decisions: toward a generalization
Policy Issues and Intrahousehold Resource Allo- of the theory of demand. International Economic
cation: conclusions. In: HADDAD, L.; HODDINOTT, J.; Review, v. 22, n. 2, p. 333-49.
ALDERMAN, H. (Eds.), Intrahousehold Resource Allocation NELSON, J. A. (1996), Feminism, Objectivity and Eco-
in Developing Countries: methods, models and policy, nomics, London: Routledge.
Baltimore: Johns Hopkins University Press. SEN, A. (1990), Gender and Cooperative Conflicts.
BECKER, G. S. (1981), A Treatise on the Family, In: TINKER, I. (Ed.), Persistent Inequalities: women and
Cambridge, Massachusetts: Harvard University world development, Oxford: Oxford University
Press. Press, p. 123-49.
E
ECONOMIA DO TRABALHO período neoliberal, o preço do trabalho e
120 José Luis Coraggio as condições do contrato de trabalho são
estipulados pela oferta e demanda. Essas
1. A economia do trabalho alude às for- forças não são mero mecanismo que reú-
mas de organização da produção de acor- ne quantidades de qualidades homogê-
do com uma lógica reprodutiva da vida. neas, mas um verdadeiro campo multidi-
Nelas se incluem os processos autoges- mensional de forças, no qual a cultura, os
tionados pelos trabalhadores, sejam indi- valores e a estrutura de “capitais” permi-
viduais ou coletivos – empreendimentos tem ocorrer diferenciação, segmentação
familiares, associações que organizam as e determinação de práticas que, por sua
condições de vida, caixas de consórcio e vez, reproduzem ou geram variações na
cooperativas. Essas modalidades abran- estrutura, tal como o recente surgimento
gem também os trabalhos doméstico e de segmentos de alta qualificação deten-
comunitário, as diversas formas de asso- do conhecimentos especializados, que os
ciação para melhora dos termos de tro- distinguem do proletariado (BOURDIEU,
ca e, certamente, o trabalho assalariado, 1997; CUNCA BOCAYUVA, 2007).
mesmo sob a direção do capital e a ten- A partir de sua primeira “grande trans-
são relativa à busca por uma crescente formação”, o capitalismo organizado regu-
autonomia e emancipação dos sistemas lou o mercado de trabalho por meio de
produtivistas, tayloristas ou toyotizados. forte intervenção estatal e poderosas orga-
Nessa perspectiva, o trabalhador não é o nizações sindicais. Com esse regramento,
proprietário de um recurso organizado permitiu que os trabalhadores e a socieda-
pelo capital, mas o sujeito da produção, de como um todo progredissem em dire-
em pugna por sua autonomia a partir do ção a uma cultura de direitos do traba-
cerne do sistema capitalista. lhador e da sua família, ao mesmo tempo
A perspectiva de uma economia do impondo limites ao jogo livre do mercado
trabalho só pode ser compreendida cabal- e impedindo que o salário se firmasse nos
mente traçando-se um contraponto com níveis do “livre mercado”. Assim se cons-
a economia do capital. Esta gerou, entre tituiu a denominada “sociedade salarial”
outros efeitos, um modo de organização (CASTEL, 1995), em que o trabalho organi-
e um sentido de trabalho específicos, pró- zou-se dentro de uma institucionalização
prios desta época denominada capitalis- regulada do mercado enquanto princípio
mo. Um de seus aspectos característicos é de interação social universal. Tal como
a mercantilização do trabalho, mediante a Polanyi havia antecipado, o mercado de
separação, de um lado, entre a pessoa e a trabalho – juntamente com os mercados
sua capacidade de trabalho – a força de tra- de terra, dinheiro e mercadorias fictícias
balho, como denominou Marx (1971) – e, (aos quais se poderia acrescentar, no sécu-
de outro, a compra e venda dessa força de lo XXI, o conhecimento) – passou a fun-
trabalho num mercado, como mercadoria cionar sob fortes restrições do Estado e da
fictícia (POLANYI, 1957). Funcionando em sociedade civil organizada.
termos de um mercado auto-regulado, A organização capitalista do traba-
no capitalismo liberal ou novamente no lho abrange ainda a própria organização
E
material do trabalho e as consequências vertiginosas, tornando-se mais precário
121
diretas desta sobre a subjetividade e quali- e perdendo sua centralidade para o capi-
dade da vida cotidiana dos trabalhadores, tal sem que antes tenha sido substituído
enquanto resultado da divisão social do por processos equivalentes de integração
trabalho que impulsionou não só os pro- social. O trabalho desregulamentado dei-
cessos imediatos de produção, mas tam- xa de ser, para enormes massas de trabalha-
bém aqueles mediados pelo mercado de dores, uma fonte de obtenção de recursos
mercadorias. O controle da ciência e da para a sobrevivência, anteriormente defi-
tecnologia pelo capital, instrumentando nidos como um valor histórico da força de
o conhecimento como meio para a bus- trabalho, tornando-se um desestruturante
ca de lucros, permitiu que o proletariado dos horizontes de vida. Mesmo os que têm
passasse a conformar uma massa de tra- um trabalho vivem-no como uma “segu-
balhadores como portadores de trabalho rança precária”, que fratura a sociedade
abstrato (valor), tendo sua força de tra- entre os poucos protegidos e os muitos
balho como um recurso mais a ser econo- assistidos, em um contexto de ausência
mizado. A tendência intrínseca do capital de proteção social (COSTANZO, 2007) cons-
de substituir o trabalho vivo pela força do truído para que a fome e o medo da desti-
aparelho produtivo objetivado ficou clara tuição definitiva pressionem aqueles que
mediante a ruptura do modelo de capita- não possuem nada além da sua força de
lismo organizado e o ataque conservador trabalho a aceitarem qualquer oportuni-
ao estatismo, fosse socialista, fosse social- dade como uma oferta de emprego.
democrata. O trabalho concreto tornou- Uma vez que o imaginário da socieda-
se cada vez mais atribuído à máquina, aos de salarial perdura, sente-se saudade desse
robôs, aos sistemas automatizados de pro- trabalho, almejado mais do que as posses
dução mediados por mercados que, para individuais, reaprendendo-se a buscá-lo,
vários bens homogeneizados, funcionam mantê-lo e defendê-lo contra a disputa
também como autômatos. dos outros trabalhadores. Esse trabalho
O trabalho do capital, que, sob a pers- continua sendo assalariado, desenvolvi-
pectiva dos trabalhadores, era a institui- do sob o jugo de um patrão (privado ou
ção integradora e orientadora das opções público), um trabalho que, mesmo não
e estratégias de vida, permanecia hetero- permitindo a autonomia, pode ser valo-
nômico e alheio a essas transformações. rizado como “digno”, por ser obtido no
Cada processo de produção mantinha-se mercado, lugar onde “se sabe quem é
dirigido pela ditadura do capitalista ou quem” e o quanto valem as coisas e as pes-
dos seus representantes, e o trabalho cres- soas. Tanto no âmbito da dinâmica parti-
centemente passou a ser imposto por um cular de produção quanto na esfera da sua
sistema de necessidades gerado em função divisão social, esse trabalho não gera soli-
do acúmulo de capital privado, algo que as dariedade, inter-subjetividade positiva
invenções organizacionais do toyotismo nem um sentido que transcenda sua mera
não puderam superar (GORZ, 1988). Com utilização como meio para a obtenção de
o neoliberalismo e a debilitação dos sin- dinheiro, o representante das coisas que
dicatos, o trabalho sofreu transformações necessitamos ou desejamos.
E
Sob a perspectiva da economia do capi- direção do capital), para que todos pos-
122
tal, o conjunto da economia é visto como sam ter renda e consumir o que a cultura
elemento institucionalizado por um úni- do sistema capitalista decida produzir.
co princípio de mercado, do qual partici- Essa questão implica reconhecer, recupe-
pam indivíduos utilitaristas e calculistas. rar, potencializar, inventar e desenvolver
Nele, a capacidade de competir e ganhar outras formas de motivação e coordena-
dá acesso desde a riqueza, até o potencial ção das atividades humanas, para que se
de autodesenvolvimento, e sua orienta- alcancem outros produtos e resultados
ção geral baliza-se conforme a lógica da desejáveis e para que se possa desfrutar
acumulação de capital. Já sob a ótica da plenamente a vida cotidiana, a qual tam-
economia do trabalho, o conjunto da eco- bém inclui trabalho como experiência de
nomia é concebido a partir da constituição deleite e fraternidade.
de um sistema que combina cinco princí-
pios de integração social: a) autarquia da 2. No âmbito das sociedades capitalistas
unidade doméstica; b) reciprocidade intra realmente existentes, do mesmo modo
e intercomunidades; c) redistribuição nos que a empresa de capital constitui a forma
diversos níveis da sociedade; d) intercâm- elementar de organização microeconômi-
bio em mercados regulados ou livres; e) ca para o acúmulo de capital, a unidade
planejamento da complexidade (em par- doméstica (UD) materializa a forma ele-
ticular, dos efeitos não-intencionais das mentar de organização microssocioeco-
ações particulares), orientada solidaria- nômica própria do trabalho e sua repro-
mente pela lógica da reprodução ampliada dução. As UDs podem estender sua lógica
das capacidades de todas as pessoas e da particular por meio de associações, comu-
qualidade da vida em sociedade. nidades organizadas e redes formais ou
Para a economia do capital, o cresci- informais de diversos tipos, consolidando
mento quantitativo da massa de mercado- organizações socioeconômicas que visem
rias representa um critério definitivo de melhorar as condições da reprodução da
eficiência da economia, enquanto, para a vida dos seus membros. Em seu conjunto,
economia do trabalho, o que prevalece é as UDs conformam o que chamamos eco-
a qualidade da vida, a realização efetiva do nomia popular (CORAGGIO, 1999) e estabe-
potencial das pessoas interligadas por rela- lecem relações de intercâmbio, dentro de
ções de solidariedade, com justiça e paz. uma economia mista sob a hegemonia do
Embora possam ser dotados de significado capital, com o subsistema de empresas de
pelas sociedades, os recursos mobilizados capital e com o subsistema de organismos
são entendidos como um meio e não um do Estado.
fim, e o manejo estratégico das relações Essas organizações da economia popu-
interpessoais deve ser minimizado, dando lar podem atender a aspectos especí-
lugar a processos de mútuo reconhecimen- ficos da reprodução, manifestando-se,
to, negociação e acordos entre pares. por exemplo, na ação dos sindicados que
Segundo a economia do trabalho, a lutam pelo valor das condições contra-
questão social não reside na busca pela tuais do trabalho assalariado; das asso-
recuperação do pleno emprego (sob a ciações de produtores autônomos que
E
compartilham meios de produção ou ços contraditoriamente institucionaliza-
123
canais de comercialização; das coopera- dos sob a égide do capital.
tivas de autogestão de serviços; das redes No seu afã de acumular, apelando a
de abastecimento; ou dos movimentos uma racionalidade instrumental totali-
reivindicativos de recursos e ativos (ter- zante, as empresas de capital consideram
ra, moradia, serviço de saúde, educação). recursos ou obstáculos todos os elemen-
Essas iniciativas propiciam uma espécie tos dos contextos social, político, ecoló-
de acumulação originária na qual a nova gico ou simbólico, entre outros, e digla-
economia recupera recursos da economia diam-se por possuí-los ou eliminá-los, à
capitalista, não mediante o intercâmbio medida que seu projeto para obter lucros
mercantil, mas por meio da pressão, for- o requeira e seu poder para dispor deles o
ça, reivindicação de direitos (NAVARRO permita. Na esfera mesoeconômica, não
MARSHALL, 2007) e de associações de obstante, esse poder encontra-se limitado
bairro que auto-administram seu habitat pela concorrência e, na esfera de sistema,
comum enquanto constroem espaços de por forças tidas como “extra-econômicas”,
sociabilidade primária (MUTUBERRÍA, 2007; sejam elas relativas à sociedade ou ao meio
ARROYO, 2007). Além disso, organizações ambiente.
da economia popular podem adotar um Em geral, a empresa capitalista não fre-
enfoque mais abrangente, respeitando à ará espontaneamente a expropriação do
sociedade como um todo, integrando-se, meio ambiente, a exploração do trabalho
por exemplo, a movimentos em defesa alheio, a troca desigual ou a degradação
do meio ambiente, direitos humanos, da da qualidade de vida enquanto essas ope-
posse pela terra, água ou território, da rações resultarem em lucros exorbitantes.
igualdade de gênero (QUIROGA, 2007), da Encerrado nos equilíbrios e desequilíbrios
afirmação étnica, educação popular, polí- de mercado, o capital (principalmente
ticas culturais ou pela incidência e contro- aquele capaz de mobilizar-se em esca-
le sobre determinadas políticas estatais la global) não se preocupará, de moto-
(HINTZE, 2007), entre outros. próprio, com os desequilíbrios sociais,
Ambas as formas de organização eco- políticos, psicológicos ou ecológicos ge-
nômica – a do capital e a popular – podem rados por suas ações ou pelo conjunto
desenvolver mesossistemas e auto-regula- das empresas nos territórios onde ele se
ção, planejamento estratégico ou repre- aloje temporariamente. É necessário que
sentação dos seus interesses. Ademais, o Estado e o sistema interestatal demo-
ambas se vinculam – geralmente com con- cratizem-se, gerando espaços públicos
tradições – à economia pública, suas políticas, de debate sobre o bem comum, partin-
seus espaços de concertamento e suas orga- do das críticas das tendências empíricas
nizações político-administrativas, con- resultantes, muitas vezes, de efeitos sis-
formando, entre os três subsistemas, uma têmicos não-intencionais. Caso contrá-
economia mista. Essa é a base material de um rio, é preciso que outras formas de poder
sistema em que predomina o capitalismo, coletivo (sindicatos, movimentos ecológi-
dando lugar a uma luta contra-hegemô- cos, movimentos feministas, movimentos
nica ou de resistência em múltiplos espa- étnicos, associações de consumidores ou
E
outras) atuem como representantes do Possibilitar a realização social de outro
124
bem comum, promovendo formas social- trabalho, enquanto capacidade subjetiva
mente mais eficientes do sistema empresa- dos trabalhadores associados e autoges-
rial, defendendo a ética não-manipulada tionários, implica uma mudança cultural,
pela mesma lógica da acumulação (SAL- não apenas das valorações acerca do tra-
MON, 2002) e limitando coativamente suas balho independente de patrões, mas dos
tendências destrutivas. comportamentos dos cidadãos no mer-
Polanyi (1957) evidenciou a perversi- cado, orientados pela reprodução da sua
dade de um mercado livre que pretende vida imediata. Enquanto consumidores,
reduzir a integração social ao mero meca- os trabalhadores podem contribuir para
nismo formador de preços pela oferta e a ampliação dos desequilíbrios desper-
demanda, engendrando uma sociedade cebidos pelo capital e para a reprodução
de mercado autodestrutiva e uma vida ampliada do capital, mais do que para o
humana e uma natureza que se deterio- desenvolvimento de outro trabalho orga-
ram. Anteriormente, Marx já apontara nizado sob formas solidárias. Mesmo os
haver a geração de um sistema de domínio setores que promovem a economia social
abstrato, aparentemente natural, quando (essa prática de construção socialmente
o que ocorrera e ocorre continuamente é consciente de outra economia e de outra
a construção e institucionalização desses sociedade) podem ser levados a interna-
projetos de domínio particular (POSTONE, lizar formas de organização do trabalho
2006). Nessa visão da boa economia, os sob valores e critérios de eficiência da
trabalhadores não são sujeitos, mas obje- empresa privada, ainda que não tenham
tos, são “recursos humanos”, aos quais o lucro por objetivo. Essa internalização
se acrescentaram as noções de “capital pode se dar pela “prova do mercado”,
humano”, “capital social” e toda a família pela sustentabilidade definida estrita-
de ativos e “capitais dos pobres”. mente em termos financeiros e pelo res-
peito à liberdade (negativa) de opção dos
3. A economia social pode ser analisada como consumidores, conquanto seus gostos
transição da economia mista a uma economia e critérios sobre a boa vida, o valor dos
do trabalho. Nesses termos, considera-se a produtos e as relações sociais tenham
possibilidade de desenvolver-se uma eco- sido produzidos sob uma hegemonia do
nomia centrada no trabalho para satisfazer capital.
as necessidades legítimas de todos, arti- A economia do trabalho propõe,
culada e coordenada com um alto grau de como o sentido da economia, a resolução
reflexividade crítica e mediada não só por das necessidades e desejos legítimos de
um mercado regulado, mas também por todos. Em seu horizonte estratégico, não
diversas relações diretas de solidariedade. se considera o acesso ao “reino da liber-
Esse trabalho não pode ser o mesmo tra- dade” como superação da “necessidade”.
balho assalariado, fragmentado, alienado, Ao contrário, propõe-se a crítica prática
organizado pelo capital para que o homem à estrutura de desejos ou demandas de
converta-se em um homo laborans, extensão bens e serviços, a qual gera o imaginário
da maquinaria produtiva (ARENDT, 2003). do consumo numa sociedade capitalis-
E
ta, a tendência utilitarista das massas de dos trabalhadores organizados ou das for-
125
consumidores médios, pobres ou empo- mas de governo e gestão descentralizadas
brecidos. Trata-se de redefinir democra- e autenticamente democráticas.
ticamente um espectro de definições do Pode haver diferenças culturais mui-
que seja necessário e do que seja suficien- to amplas entre UDs ou relações de troca
te, útil e legitimamente desejável (CORA- regidas pela cooperação utilitária, pela
GGIO, 2007; CAILLÉ, 2003; LAVILLE, 2003), reciprocidade centralizada ou generali-
chegar a um acordo relativo às formas zada, ou pela identificação comunitária,
de produção e consumo mais adequadas assim como forte concorrência entre
(MAX-NEEF et al., 1990; ELIZALDE, 2001) e comunidades ou indivíduos, dependen-
reconhecer, nos âmbitos locais, a unida- do dos valores e instituições com as quais
de entre o trabalho de produção e o de estejam imbricadas. A proposta de uma
reprodução, bem como a necessidade de economia do (outro) trabalho implica
ampliar os níveis de autarquia local, fre- expor-se a essa rica pluralidade de formas,
ando as irracionalidades dos mercados na contramão da tendência do capital
globais de alimentos. de impor o trabalho abstrato e o consu-
Essas ações implicam um reconhe- mo incessante como niveladores sociais.
cimento do peso e do potencial da eco- Devem coexistir muitas concepções do
nomia popular realmente existente e que seja a boa vida, mas todos necessi-
uma crítica a ela superadora, porque essa tam ter, antes de tudo, a vida garantida
economia popular reativa e adaptativa não para poder escolher o novo ou ater-se a
pode garantir a sobrevivência de todos sua cultura original (HINKELAMMERT, 1984;
no contexto de transformação do capita- HINKELAMMERT e JIMÉNEZ, 2005). Esse
lismo global. Ela requer uma abordagem esquema propõe duas hipóteses sob o
sistêmica para transformar esse todo caó- ponto de vista microssocioeconômico:
tico em um conjunto organicamente vin- a) o emprego em troca de um salário não
culado de produção e reprodução, que foi e não é a única forma de concretizar
volte a relacionar o trabalho (outro tra- as capacidades de trabalho das UDs e de
balho) com a satisfação de necessidades aceder às condições e meios de vida; b)
definidas historicamente por sociedades as relações de produção, trabalho e dis-
democráticas. tribuição podem não estar objetivadas
O ato de consumo ou de produção nem se impor como estruturas abstratas,
doméstica requer que as UDs tenham mas podem estar sujeitas a relações inter-
acesso a outras condições (gerais, de uso pessoais transparentes que vão desde o
coletivo compartilhado) da produção parentesco até as relações de concidadãos
doméstica ou da reprodução imediata da em uma democracia participativa.
vida (e, portanto, das suas capacidades de A economia popular representa o pon-
trabalho), o que demandará a acumulação to de partida socioeconômico das práticas
material como meio e não como fim. Sob de economia social orientadas à institu-
a perspectiva de uma economia do traba- cionalização de uma economia do traba-
lho, o controle das condições gerais da sua lho. Na esfera macroeconômica, em uma
própria reprodução deve passar às mãos economia mista em transição, a economia
E
popular condiciona-se aos preços relativos paradigma tecnológico do início do sécu-
126
do trabalho e dos bens e serviços que ofe- lo XXI, baseado na informação e conhe-
rece, dos meios de vida e de produção que cimento alienados da massa de trabalha-
adquire nos mercados, ponderados pela dores, assim como na superexploração do
estrutura de seus insumos, consumos e trabalho e na expropriação da natureza,
produtos. Esses preços não refletem mera- o confronto com o grande capital pela
mente, como se espera, as diferenças de reprodução da vida é iniludível, o princí-
produtividade entre formas de produção, pio do bem comum colocando-se como
sendo, ao contrário, o resultado do acesso barreira às dimensões predatórias da glo-
diferenciado às tecnologias, conhecimen- balização (HINKELAMMERT, 2003).
tos e informações – principalmente como Enquanto o lucro e a eficiência do pro-
bens privados e não como bens públicos –, cesso produtivo comandado pelo capital
assim como dos poderes relativos no mer- podem ser quantificados (ou reduzidos
cado de empregadores e empregados, de ao quantificável), a qualidade de vida é
ofertantes e usuários/compradores. Eles essencialmente qualitativa, ainda que
refletem, também, a ação do Estado no abrigue aspectos quantitativos. O capital
sentido de regular ou flexibilizar o mer- economiza custos de trabalho e de aces-
cado de trabalho e os mercados de bens so aos recursos naturais, degradando-os,
e serviços que fazem parte da cesta bási- extinguindo-os. Em função da reprodu-
ca de um domicílio padrão, bem como de ção ampliada da vida de todos, o trabalho
intervir redistributivamente, subsidiando auto-organizado economiza a natureza e
ou impondo fiscalmente a produção ou zela por seu equilíbrio, reconhecendo os
a distribuição dos produtos de primeira seres humanos como sujeitos necessita-
necessidade e beneficiando ou limitando dos, partes do ciclo natural, mais do que
os lucros e rendas monopólicas ao estimar como Homo sapiens dominadores do meio
e frear os efeitos não-desejados das ações ambiente situados em um “lado de fora”
fragmentárias. social metafísico.
Sob esses parâmetros, poderá haver, A economia popular realmente exis-
na esfera pública, um confronto entre tente e uma economia pública em tensão
as lógicas da economia do trabalho e da por um projeto democratizante podem
economia do capital. Caberá aí a possi- conformar a base de um sistema de
bilidade de alianças entre as múltiplas economia do trabalho capaz de repre-
formas mencionadas de organização dos sentar e fortalecer de maneira eficaz os
trabalhadores, com certas frações do projetos de qualidade de vida em uma
pequeno capital e do médio capital orga- sociedade mais igualitária, mais justa e
nizadas como sistemas produtivos enca- autodeterminada. Essa premissa supõe
deados ou como conjuntos territoriais. O um horizonte estratégico que visa trans-
desenvolvimento local pleno pode cum- cender a escala microssocial, os empreen-
prir a função de favorecer a visibilidade dimentos ou microrredes solidárias para
dos interesses particulares e o surgimen- a sobrevivência, assumindo o projeto de
to de possíveis alianças sob a hegemonia chegar a um consenso democrático acerca
do princípio da reprodução ampliada. No de outra definição de riqueza, de natureza
E
e de trabalho produtivo, outra forma de HINKELAMMERT, F. J.; JIMÉNEZ, H. M. (2005), Hacia una
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ECONOMIA FEMINISTA reais (...) – tornam-se a raison d’être da pro-
128 Lina Coelho fissão económica, e não mais a elabora-
ção duma particular teoria axiomática do
1. “A Economia Feminista é um repensar comportamento humano.”
da disciplina com o objectivo de melho- Neste esforço, a economia feminista
rar a situação económica das mulheres” está a (re)abrir questões mais amplas do
(STROBER, 1994, p. 143). Os autores femi- que as habitualmente postas pelos econo-
nistas (quase só mulheres) partilham a mistas, questões essas que põem em causa
perspectiva de que a ciência económica os supostos adquiridos acerca de concei-
é uma construção social que omitiu tra- tos como os de trabalho, valor e bem-estar.
dicionalmente a realidade específica das As(os) autoras(es) feministas provêm das
mulheres e, nessa medida, abordou as várias “escolas” em economia – neoclás-
questões económicas de forma truncada sica, institucional, marxista... –, mas nas
e parcial. O seu grande objectivo é então duas últimas décadas o esforço principal
contribuir para transformar a disciplina tem sido dirigido a repensar os fundamen-
no sentido de a capacitar para abordagens tos e métodos da ciência económica.
mais abrangentes e universais, explici- Contudo, os métodos de trabalho neo-
tando o papel económico específico das clássicos também podem servir os objec-
mulheres e da família e as condicionantes tivos feministas, como o demonstram os
a que elas estão sujeitas enquanto agen- contributos dentro desta perspectiva,
tes económicos. Põe-se assim ênfase no principalmente no domínio da economia
valor do trabalho não remunerado no seio do trabalho, ao esclarecerem e aprofun-
da família, ou nas normas e valores que darem questões tão importantes como as
determinam um contrato social particular relativas à oferta de trabalho das mulhe-
entre os sexos em cada comunidade, con- res, à segregação ocupacional e à discrimi-
duzindo a formas desiguais de acesso aos nação laboral e remuneratória com base
recursos económicos e desembocando em no sexo e, em particular, ao hiato remu-
soluções economicamente ineficientes neratório entre homens e mulheres (BLAU
por limitarem o contributo das mulheres et al., 2006; e JACOBSEN, 2007, abordam
para o crescimento e o aumento de bem- amplamente estes contributos).
estar na medida ajustada às suas capacida-
des e competências. 2. O maior investimento intelectual da
A economia feminista tem vindo a economia feminista tem vindo a fazer-se,
ocupar-se, portanto, daquilo a que Sen no entanto, em torno da ideia de que as
(1987) chamou as questões “éticas” em categorias conceptuais em que se baseou
economia, por contraponto às questões o paradigma dominante em Economia na
da “engenharia”. Nas palavras de Nelson segunda metade do séc. XX não permi-
(1993, p. 33): “Questões relativas à organi- tem explicações satisfatórias para muitos
zação da produção, ao poder e à pobreza, fenómenos económicos. A ciência econó-
ao desemprego e à dureza das condições mica nasceu centrada no mercado, lugar
de vida, aos cuidados de saúde e à educa- de livre troca entre indivíduos motivados
ção – em suma, os problemas económicos pelo seu interesse próprio. Adam Smith
E
viu o mercado como o lugar de actuação ca e do desenvolvimento. Pode pois con-
129
de uma “mão invisível” cuja acção compa- cluir-se, com Apps (2004, p. 8), que: “A
tibiliza interesses individuais divergentes, literatura sobre os modelos que incorpo-
resultando na prossecução do interesse ram explicitamente a produção doméstica
de todos. Esta ideia fundadora teve como tende a ser encarada como especializando
implicação perversa limitar o objecto de e não generalizando a abordagem padrão
estudo da economia ao conjunto dos bens nos modelos da família, ou seja, como
destinados ao mercado e que, por essa via, pertencendo a uma subdisciplina vocacio-
têm um preço monetário. Um deles é o nada para a análise detalhada da família
trabalho, cujo valor se expressa através de enquanto instituição económica específi-
um salário. A Economia tende a ignorar, ca.” A gravidade desta situação reside no
por isso, todas as produções que, sendo facto de assim se ignorar a importância
embora cruciais para a sobrevivência e o do trabalho em causa para a satisfação das
bem-estar das pessoas, não são valoradas necessidades materiais e emocionais das
através do mercado. Fica assim de fora do pessoas e, no limite, para a sobrevivência
seu âmbito de estudo aquilo a que hoje da própria espécie. Por isso, várias auto-
chamamos o sector não formal (Smith ras feministas têm vindo a estudar méto-
apelidava-o de “trabalho improdutivo”), dos para incorporar o valor do trabalho
do qual faz parte, de modo muito subs- doméstico não remunerado nas medidas
tancial, o trabalho doméstico e, muito em de produção, distribuição do rendimen-
particular, o trabalho reprodutivo. Esta to, carga horária de trabalho e produção
omissão é lida pelas(os) autoras(es) femi- de capital humano pela família (veja-se, a
nistas como uma das expressões do viés propósito, Feminist Economics, 1996, p. 3).
androcêntrico da ciência económica, uma A afirmação da abordagem neoclássica
vez que aquele é um trabalho esmagadora- da Economia conduziu à definição desta
mente desempenhado pelas mulheres. A ciência pela metodologia de análise uti-
sua invisibilidade em Economia determi- lizada, assente no pressuposto do indivi-
na por isso, em grande medida, a descon- dualismo egoístico e racionalizado como
sideração da importância económica das padrão dominante dos comportamentos
próprias mulheres. humanos, e no recurso a modelos mate-
Apesar da New Home Economics de máticos de maximização condicionada
Becker constituir um alvo de eleição das como instrumento analítico fundamental.
críticas feministas (GUSTAFSSON, 1991; O sujeito desta análise é então um indi-
FERBER, 2003), ela teve o mérito de trazer víduo racional, dotado de plenas capaci-
para a mainstream economics a importância dades físicas e intelectuais, autónomo,
da produção doméstica (BECKER, 1965). autodeterminado, social e familiarmen-
Quase meio século volvido, impressio- te descomprometido, que prossegue a
na o facto de esta dimensão da realidade máxima satisfação das suas necessidades.
económica continuar a ser extensamente A este “agente económico representa-
ignorada nos modelos referenciais ou nas tivo” são alheias algumas características
discussões sobre alternativas de política, inerentemente humanas, como o facto
exceptuando as áreas da economia públi- de sermos seres-em-relação e de, nessa
E
qualidade, dependermos de outros ou ser- implica, quer ao nível teórico quer empí-
130
mos responsáveis por outros. Nesse senti- rico, ter em conta a heterogeneidade sis-
do, são liminarmente erradicados como temática das preferências e as assimetrias
sujeito da análise as crianças, os deficien- de poder, as quais podem assumir formas
tes, os idosos, mas também as mulheres, diversas... (KATZ, 1997). A teoria económi-
na medida em que lhes é atribuída em ca ortodoxa é particularmente limitada na
quase todas as sociedades a responsabili- sua abordagem da família na medida em
dade pela provisão das necessidades dos que: trata a família como uma entidade
membros dependentes da família. caracterizada por cooperação interna e
Por outro lado, o agente económico é altruísmo, em que as decisões económicas
um indivíduo motivado pelo seu interesse são unas ou (o que é o mesmo) tomadas
próprio e dotado de livre-arbítrio e poder por consenso e os cônjuges detêm idênti-
de decisão, constrangido apenas pelo ren- co controle sobre o rendimento; o objecto
dimento de que dispõe. Todas as outras estudado é a família ocidental, nuclear,
condicionantes das decisões económicas heterossexual – excluindo múltiplas for-
– normas sociais, posição nas hierarquias mas de arranjo familiar como sejam as
sociais, sexo, percepção do interesse pró- famílias monoparentais, alargadas, recons-
prio – são tratadas como não económicas tituídas, homossexuais, etc.; considera
(exógenas). Na realidade, contudo, mui- implicitamente que na origem da família
tas pessoas dispõem de uma margem de estão relações heterossexuais livremente
manobra limitada para fazer opções ape- consentidas, ocultando assim os efeitos
nas em função do seu interesse próprio coactivos de situações individuais muito
(FOLBRE, 1994), enquanto que, em muitas desiguais para homens e mulheres em ter-
sociedades, a própria percepção do inte- mos de acesso a rendimento, alternativas
resse próprio é distorcida pelos valores de vida, medo de violência física ou sexual.
e normas vigentes, como, por exemplo, Embora os relacionamentos de natureza
quando estes condicionam as mulheres a sexual na maioria dos países desenvolvidos
identificar de tal modo o seu bem-estar não sejam actualmente determinados por
individual com o da família que isso as este tipo de factores, não podemos afirmar
impossibilita de equacionar de forma o mesmo no que respeita à realidade vivi-
minimamente objectiva os seus próprios da por milhões de mulheres que no nosso
interesses (SEN, 1990). mundo continuam coagidas à exploração e
Estas questões têm implicações deci- abuso permanentes no âmbito de relações
sivas na chamada economia da família (ver conjugais (ou não-conjugais) sustentadas
verbete) que, numa perspectiva feminista, por gritantes desigualdades de escolha
deve atender à “medida em que os mem- e controle fundadas na condição sexual.
bros da família são tratados em função do Sendo o homo æconomicus um adulto
género e não apenas como indivíduos; por autónomo, as questões atinentes à repro-
outras palavras, o reconhecimento de que dução e resultantes da total dependência
ser-se homem ou mulher importa para das crianças nas primeiras fases da vida
determinar o modo como as decisões são são omitidas pela economia ortodoxa.
tomadas e os recursos são alocados”. Isto Ignora-se assim, por exemplo, como dife-
E
rentes políticas de família (licenças de na produção/rendimento monetariamen-
131
maternidade e paternidade, disponibili- te expresso, desprezando as actividades
dade e qualidade de equipamentos sociais que, embora não sendo valoradas pelo
dirigidos ao cuidado e educação das crian- mercado, contribuem tanto ou mais do
ças, etc.) interagem com práticas e nor- que aquelas para a satisfação de necessida-
mas vigentes nos postos de trabalho, com- des humanas (cuidado a crianças, idosos
binando-se de forma a limitar o sucesso e outros dependentes no seio da família,
profissional relativo das mulheres face aos satisfação de necessidades emocionais,
homens. Mesmo nas sociedades onde se cozinhar, recolecção de matérias com-
verifica crescente participação das mães bustíveis ou água potável, coordenação
no trabalho remunerado, mantém-se evi- da satisfação de necessidades da família,
dente um trade-off entre o trabalho remu- etc.). Por outro lado, o bem-estar indi-
nerado e o trabalho de cuidado às crianças vidual depende também dos modos de
ou, dito de outro modo, entre os investi- ocupação do tempo das pessoas, sendo
mentos nas crianças e os investimentos na que a dupla jornada de trabalho a que
produtividade do trabalho. Isto significa muitas mulheres estão sujeitas (ao acres-
que a persistência de estruturas de uma cerem tempos de trabalho não-remune-
sociedade caracterizada pela dominação rado aos tempos próprios a um emprego
masculina continua a influenciar as esco- remunerado) limita as suas possibilidades
lhas que homens e mulheres fazem em de usufruto de lazer, de tarefas de cuida-
relação ao trabalho e à vida familiar. Daí do a si próprias ou de participação cidadã,
que, na sequência da maternidade, conti- muito mais do que acontece à generali-
nue a ser a mãe e não o pai que altera o seu dade dos homens. Finalmente, porque a
empenhamento no mercado de trabalho, teoria económica tradicional pressupõe
seja ela que assuma total ou quase total- uma perfeita comunhão de rendimentos
mente a licença de maternidade e, quan- pelos diferentes membros da família que
do volta ao trabalho, o faça geralmente em não corresponde à evidência empírica
regime de tempo parcial. O estudo da vida comprovada.
familiar requer, pois, que se tenham em
conta as relações de poder quer de nature- 3. O discurso económico feminista
za económica – relacionadas com o acesso tem vindo também a mostrar que a não
diferenciado a opções alternativas – quer consideração de realidades económicas
normativa – resultantes de valores, como e contributos de autores não ocidentais
os relativos ao entendimento da materni- conduziu à elaboração de teorias que
dade e da paternidade. se arrogam uma falsa universalidade.
O viés androcêntrico da economia Agarwal (1994) mostra como a compreen-
ortodoxa é também claramente eviden- são do bem-estar na Ásia do Sul (e, em par-
te no modo como é definido e medido ticular, da desigualdade económica entre
o bem-estar das pessoas (veja-se, a pro- os homens e as mulheres) depende mais
pósito, Feminist Economics, 1999, p. 2). dos direitos de propriedade e uso da ter-
Desde logo por que as medidas de bem- ra do que do rendimento monetário. Ao
-estar habitualmente usadas se baseiam ignorar esta dimensão da análise, a teoria
E
económica dominante e os programas de Economics, a partir de 1995. As múltiplas
132 facetas do pensamento e acção acumula-
desenvolvimento que ela inspira enfer-
mam de graves enviesamentos e diminui- dos convergem para um ponto: contribuir
ção de eficácia em detrimento das mulhe- para o empoderamento e o bem-estar das
res e das crianças. mulheres e de todos ou outros grupos de
As autoras feministas defendem que seres humanos que pela sua raça, nação,
“o poder é tão crucial em economia classe, idade, orientação sexual ou outros
como em todas as outras formas de rela- factores geradores de discriminação con-
ção social” (JARL, 2003, p. 35). “O poder é tinuam sub-representados na partilha dos
uma questão-chave em qualquer análise recursos e do poder, e limitados nas suas
feminista. (...) A insuficiência de recursos oportunidades de vida. A economia femi-
das mulheres pobres também significa nista não pretende portanto constituir-se
falta de poder. Aqueles que têm poder como um corpo teórico alternativo, meto-
sobre outros reconhecem-se facilmente dologicamente homogéneo e com cabal
pelo facto de controlarem e terem aces- capacidade explicativa dos fenómenos
so a recursos. E os recursos dão poder económicos. Embora os caminhos a per-
para controlar, recompensar e punir correr estejam a fazer-se e não possamos
outros” (JARL, 2003, p. 48). A importân- adivinhar o futuro da disciplina, a melhor
cia do poder, determinado pelo controle medida do seu sucesso é o contributo para
individual sobre os recursos económicos a transformação emancipatória da reali-
e determinante do mesmo, questiona dade económica.
claramente a capacidade da economia
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E
ECONOMIA MORAL 2. Na história da humanidade, até o
134 Noëlle M. P. Lechat século XVIII, não havia distinção entre
economia e moral, pois existia uma uni-
1. Uma economia moral em si não existe; dade entre o social, o econômico, o polí-
a moralidade, embora subjetiva, faz parte tico e o religioso, a tal ponto que não fazia
da cultura e, como tal, depende do con- sentido separar-se uma da outra. Segun-
texto sócio-histórico. A moral é o modo do a expressão cunhada por Karl Polanyi
costumeiro de agir pautado por valores (1980), a economia estava enraizada no
e normas, fruto da transmissão e rein- sistema social, sendo impossível separá-la
terpretação destes por um grupo social mentalmente de outras atividades socie-
em função de certa experiência de vida. tárias. Em muitas sociedades não havia,
Enquanto uma determinada sociedade inclusive, uma palavra específica para
não distinguir, de maneira específica, as designar a economia. Estudos feitos por
atividades econômicas das demais, não Russel Belk (apud WILK, 1996) mostram
haverá a necessidade de se estabelecer o que diversas religiões advertem sobre o
conceito de economia moral. Atualmen- poder corruptor da riqueza, condenam
te, já que houve uma separação entre a a mesquinhez e elogiam a candura da
esfera econômica e os outros domínios, e pobreza. Ao final do século XX, esse tema
que a riqueza de certas nações ou regiões foi desenvolvido por Albert Tévoédjrè
tem por corolário a miséria de outras, o (2002) no livro A Pobreza, Riqueza dos Povos,
conceito de economia moral é utiliza- obra que inspirou, por exemplo, o Projeto
do para dar-se conta de uma oposição Esperança (COOESPERANÇA) de eco-
à concepção clássica de economia. Na nomia popular solidária, desenvolvido na
literatura, não há uma definição desse cidade de Santa Maria (RS, Brasil).
conceito, aliás, é mais comum encontra- Se, para filósofos e teólogos da Ida-
rem-se textos sobre ética do que sobre de Média, não havia dúvida acerca da
moralidade. A despeito dessas lacunas, subordinação da economia à moralidade
pode definir-se economia moral como cristã, tal visão foi totalmente suplanta-
uma reunião coerente de normas e valo- da pelos utilitaristas e por Adam Smith,
res que deveriam ser respeitados pela mesmo que este acreditasse na morali-
atividade econômica. No quadro da eco- dade da máxima “Deixem fazer, deixem
nomia solidária, trata-se de uma econo- passar”. No século XVIII, os economistas
mia cuja base são certos valores como a clássicos consideravam o comércio como
justiça social, a solidariedade e o respei- um poderoso agente moralizador, pois,
to à natureza. A economia moral busca segundo eles, só as pessoas que inspiras-
a socialização da riqueza, privilegiando sem confiança pela sua decência e hones-
as necessidades sociais e não o lucro, o tidade teriam êxito nos negócios. Além
valor de uso e não o valor de troca. Seria do mais, o exercício do comércio exigi-
em nome desses valores que, por exem- ria um ambiente pacífico. David Hume
plo, os proprietários de terra poderiam e Adam Smith chegariam a atribuir, à
ser expropriados, em vista de uma justiça expansão do comércio e da indústria o
redistributiva. fortalecimento de “virtudes tais como
E
a aplicação e a assiduidade, a frugalida- A submissão do ser humano à neces-
135
de, a pontualidade e, o que talvez seja sidade (a fome) é, conforme Karl Polanyi,
mais importante para o bom andamen- um fenômeno moderno. Foi somente com
to da sociedade de mercado, a probida- a desarticulação da economia (no sentido
de” (HIRSCHMAN, 1986, p. 15). A visão do de oikonomia) que o homem passou a ter
mercado assim expressa é, de fato, irreal, sua sobrevivência ameaçada, ao contrário
porquanto supõe haver uma sociedade do que se verificava nas sociedades tradi-
em que o comprador poderia sempre cionais, onde não faltavam alimentos. A
escolher o vendedor, ou até não comprar, sociedade estava organizada de maneira
caso as condições de venda parecessem- tal, que todas as pessoas encontravam-
lhe injustas. Essa alternativa é inviável se amparadas, independente de sexo ou
quando se trata, por exemplo, de alimen- idade. O custo do “progresso” é a desarti-
tação ou de outro produto básico. culação do social, da cultura e, consequen-
A separação entre economia e moral temente, da moral, os quais passam a rear-
foi progressiva. Durante o período mer- ticular-se em termos de subordinação aos
cantilista, foi se delineando a noção de interesses individuais da acumulação.
economia enquanto mecanismo objeti- Cabe analisar-se o processo de erosão
vo independente de imperativos morais, do patrimônio social. Segundo Hirsch
encontrando mais receptividade em certas (apud HIRSCHMAN, 1986), o fenômeno
áreas que em outras. A obrigação de o Esta- passou a ocorrer porque a cooperação e a
do proteger os pobres – e, indiretamente, preservação dos bens coletivos foram difi-
evitar revoltas que deslegitimariam seu cultadas em face da primazia do interesse
poder – tornava a ser afirmada na distribui- individual sobre o coletivo. Ademais, o
ção interna de bens de primeira necessida- sistema fundado no interesse pessoal não
de, sobretudo em tempos de escassez. dispunha de recursos próprios para moti-
Conforme a tese da autodestruição, o var o interesse geral. Finalmente, a base
capitalismo traz em si mesmo o germe de racionalista e individualista do mercado
seu aniquilamento. Nesses termos, pode- minou a atitude religiosa que pregava
se afirmar que “a sociedade de mercado, virtudes. Marx e Engels já haviam denun-
longe de promover a suavidade e outras ciado que, na sociedade capitalista, tudo
atitudes louváveis, manifesta uma forte passara a se transformar em mercadoria,
tendência a minar os fundamentos morais os trabalhadores teriam se alienado e os
que servem de base a toda sociedade” laços sociais estariam se dissolvendo pelo
(HIRSCHMAN, 1986, p. 16). Reforçam essa dinheiro. Essas avaliações são pertinentes
teoria os escândalos financeiros ocorridos mesmo se “Marx se mantém estritamente
a partir da segunda metade do século XX, na tradição de Maquiavel, de Montesquieu
provocando crise e recessão. De fato, o eco- e de Smith, quando se recusa constante-
nômico emancipou-se das regras morais mente a apelar para o argumento moral”,
herdadas do passado pré-capitalista e pré- como sublinha Hirschman (1986, p. 121).
industrial graças à separação radical ope- Nas cidades européias, na segunda
rada entre o tecido social e os aspectos metade do século XIX, numerosas associa-
hoje denominados “econômicos”. ções e o movimento operário organizado
E
contestariam, cada vez mais, a dominação 3. No século XX, foi E. P. Thompson quem
136
exercida pela economia capitalista. Várias utilizou pela primeira vez o termo econo-
utopias socialistas e o próprio movimen- mia moral, em seu texto A Economia Moral
to cooperativista tiveram aí sua origem, da Multidão Inglesa no Século XVIII, escrito
pois a liberdade dos mercados e dos em 1971. Nele, o autor refuta o reducio-
empreendedores e a proteção dispensa- nismo econômico crasso, argumentan-
da à propriedade privada e à acumulação do ser possível detectar-se, nas revoltas
liberaram as energias do capitalismo, que populares da Inglaterra do século XVIII,
irromperiam com grande custo social. plena legitimidade. Segundo Thompson,
Não obstante esses efeitos, no meio rural eram evocados princípios morais, e não
as comunidades tradicionais preservaram, econômicos, quando das queixas e confis-
durante muito tempo, os valores morais cos de grãos ou de pães, os quais se davam,
e religiosos como reguladores de suas em geral, de maneira disciplinada e sob
transações econômicas. Pode-se afirmar objetivos claros.
que, de modo geral, esses comportamen- Nesse primeiro texto, Thompson
tos ainda são encontrados entre amigos e (1998, p. 152) escreve que aquela econo-
parentes. mia moral “supunha noções definidas, e
Segundo Amartya Sen (1992), a eco- apaixonadamente bem defendidas, do
nomia tem duas origens, ambas ligadas à bem-estar comum”. Além do mais, essa
política. Uma diz respeito à ética, e a outra, economia não se manifestava unicamen-
à “engenharia”. A primeira, já descrita por te em momentos de crise, mas estava
Aristóteles, vincula a economia ao tema presente no pensamento geral da época
das finalidades humanas e à resposta a duas e “incidia de forma geral sobre o gover-
questões fundamentais: “como se deve no”. Thompson limita, então, o conceito
viver?” e “o que é desejável socialmente?”. de economia moral ao estudo dos con-
Segundo essa visão, a política, arte mestra, flitos ingleses do século XVIII ocorridos
engloba todas as outras ciências, pois ela entre o tradicionalismo e a nova econo-
legisla sobre o que devemos e o que não mia política, os quais giravam em torno
devemos fazer. Para Aristóteles, a oikono- das Leis dos Cereais. O tradicionalismo
mia concerne ao aprovisionamento e ao é definido pelo autor como um modelo
cuidado material da casa e da cidade, ao paternalista inscrito na lei estatutária,
passo que a crematística consiste na forma no direito consuetudinário e no costu-
mercantil de se adquirirem bens tendo-se me. Tradicionalmente, as vendas de grãos
por motivação a ganância. Por sua vez, deviam ser efetuadas diretamente do agri-
Sen desenvolve o conceito de engenharia, cultor para o consumidor, tendo preços e
ciência econômica focada em questões medidas controlados, antes que os comer-
logísticas em detrimento de outros fins da ciantes pudessem efetuar suas compras.
sociedade. Conforme Sen, a importância Thompson justifica o uso do termo moral,
do enfoque ético enfraqueceu-se substan- que se tornou tão polêmico. Para o autor,
cialmente no processo de desenvolvimen- a economia moral dos pobres é uma visão
to da economia moderna, empobrecendo consistente tradicional do conjunto “das
assim a própria economia. normas e obrigações sociais [e] das fun-
E
ções econômicas peculiares a vários gru- mistas políticos, ausência de referência ao
137
pos na comunidade” (THOMPSON, 1998, p. “ser humano inferior que uma ocupação
212). Segue afirmando que essa economia única e fixa deve necessariamente produ-
poderia ser também denominada sociológi- zir” (apud ibid., p. 256).
ca, considerando o significado original do Atualmente, a teoria da economia
termo economia (oikonomia). moral está sendo utilizada em áreas e
O que Thompson deseja assinalar é a estudos diversos, sendo, por isso, necessá-
oposição entre dois modelos econômicos ria a sua redefinição em cada caso. Entre
cujos pressupostos são distintos. A dife- os estudos de economia moral realizados
rença entre ambos reside no fato de que acerca de sociedades camponesas, há o
o primeiro “apela a uma norma moral – ao de James Scott. Em The Moral Economy of
que devem ser as obrigações recíprocas the Peasant, esse autor escreve que o termo
dos homens –, [e] o segundo parece dizer: designa “’concepções camponesas de jus-
‘é assim que as coisas funcionam, ou fun- tiça social, direitos e obrigações, recipro-
cionariam se o Estado não interferisse’” cidade’ [...], mas vai muito além de des-
(THOMPSON, 1998, p. 162). O primeiro crições de ‘valores’ ou ‘atitudes morais’”
modelo vigorava no Estado pré-capitalista, (THOMPSON, 1998, p. 259). Conforme
em que a produção e o comércio subordi- Scott, a ameaça às instituições redistribu-
navam-se a uma série de regras estabeleci- tivas, às obrigações religiosas caritativas,
das pelos costumes e pelos valores morais. às normas de reciprocidade e ao direito
O segundo modelo passou a vigorar no à subsistência, bem como a dominação
sistema capitalista, tendo sido criado pela européia e as racionalizações do merca-
economia política clássica, desobrigando do, incitaram, muitas vezes, a participação
proprietários e comerciantes de qualquer dos camponeses em movimentos revolu-
dever em relação aos pobres. cionários. Em Weapons of the Weak, Scott
No capítulo Economia Moral Revisi- examina as formas de resistência que os
tada, de seu livro Costumes em Comum, pobres podem manifestar frente ao poder
Thompson (1998) retoma o tema da e aos limites que lhes podem ser impostos.
economia moral para examinar e refutar Há uma série de acordos tácitos sobre tais
as críticas dirigidas a seu texto de 1971 e limites que são, a todo o momento, tes-
comentar outros trabalhos por meio do tados e renegociados. Aqui, a economia
mesmo conceito. De início, o autor adver- moral apresenta-se sob a forma de reci-
te: “A ‘economia moral’ não nos conduz a procidade entre forças sociais desiguais,
um único argumento, mas a uma confluên- traduzindo-se em alguns direitos que os
cia de raciocínios, e não será possível fazer fracos ainda podem contrapor aos mais
justiça a todas as vozes” (THOMPSON, 1998, fortes.
p. 203). Segundo Thompson, o termo
economia moral foi registrado na Inglaterra 4. No início do século XXI, os movimen-
do século XVIII, onde o Cartista Bronter- tos sociais e políticos progressistas alvi-
re O’Brien dele se valeu ao opor-se aos tram a substituição da moral do interesse
defensores da economia política. O’Brien pela moral da solidariedade, exigindo que
criticou haver, nos trabalhos dos econo- a riqueza produzida seja controlada pela
E
sociedade e que mercados éticos sejam tos podem ser considerados defensores de
138
construídos. Integrando esses movimentos, uma economia moral.
encontra-se a Associação pela Tributação O termo economia moral descreve,
das Transações Financeiras para Ajuda aos então, a maneira como muitas relações
Cidadãos (ATTAC), entidade internacional econômicas são reguladas segundo nor-
para o controle democrático dos mercados mas e valores nas comunidades de traba-
financeiros e de suas instituições. Valendo- lhadores rurais ou urbanos e expressa a
se do slogan “O mundo não está à venda”, legítima resistência à economia do “livre
a ATTAC denuncia a mercantilização da mercado”.
sociedade. Outro exemplo é o movimento
BIBLIOGRAFIA
da economia solidária, o qual vem se reve-
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lando como uma nova dinâmica de enfren-
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Produzir, trabalhar e consumir de forma
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de pensar hegemônicos. Esses movimen- of economic anthropology, Indiana: Westview Press.
E
ECONOMIA PARA A VIDA liberdade, mas esta é, necessariamente,
Franz J. Hinkelammert 139
uma parte derivada e subordinada. Onde
Henry Mora Jiménez há necessidades, as preferências ou os
gostos não podem constituir o critério de
1. Uma economia para a vida julga a liber- última instância da orientação aos fins. O
dade humana focalizando as possibili- parâmetro básico deve ser, precisamente,
dades de vida ou morte, pois o exercício o das necessidades. Quando essas neces-
da liberdade somente ocorre no âmbito sidades são substituídas por simples “pre-
da vida humana tornada possível. O pon- ferências”, o problema da reprodução da
to de partida dessa economia é a análise vida é deslocado, quando não eliminado,
da coordenação do trabalho social e dos da reflexão econômica, embora este seja,
critérios de viabilidade das múltiplas ati- de fato, o problema fundamental da práxis
vidades humanas necessárias para criar-se humana e o princípio de uma economia
um produto material que permita a sobre- para a vida.
vivência e o desenvolvimento de todos, Escolher entre “alimento” e “entrete-
a partir de uma satisfação adequada das nimento” não se reduz à mera questão de
necessidades humanas. gostos ou preferências, uma vez que cer-
Enquanto sujeito corporal, natural, tas opções podem pôr em risco a vida. O
vivente, o ser humano situa-se antes de viciado que “prefere” continuar usando
tudo em um âmbito de necessidades. uma droga, renunciando à alimentação,
Como parte integrante da natureza, o à segurança e à vida afetiva, opta pela
homem não pode colocar-se acima das leis morte. Depois de morto, nenhuma outra
naturais, pois elas determinam a existên- escolha é possível. Em geral, onde houver
cia de necessidades humanas para além necessidades, estará em jogo uma decisão
das simples “preferências” (gostos) assi- sobre vida ou morte, incluindo-se deter-
naladas pela teoria econômica neoclás- minações sobre o lugar de cada um na
sica. Essas necessidades não se reduzem divisão social do trabalho, na distribuição
às fisiológicas – aquelas que garantem a da renda e na satisfação e potencialização
subsistência física, biológica, da espécie – de tais necessidades. Em face dessas asser-
apesar de as incluírem obviamente. Trata- tivas, o ponto de partida deste verbete foi
se, antes, de necessidades antropológicas o sujeito de necessidades, ou o sujeito
(materiais, afetivas e espirituais), sem cuja necessitado.
satisfação a vida humana simplesmente Independente de quais sejam os gostos
não seria possível. de uma coletividade ou pessoa, sua viabili-
Para “escolher”, deve-se poder viver dade baseia-se no respeito à satisfação das
e, para isso, utilizar-se um critério de necessidades. Esta torna a vida possível,
satisfação das necessidades conforme a ao passo que a satisfação das preferências
escolha dos fins. Estritamente falando, o pode torná-la mais ou menos agradável,
ser humano (sujeito corporal) não é livre porém, para que a vida possa ser agradá-
para escolher, mas livre para satisfazer vel, ela tem de ser, antes de tudo, possível.
suas necessidades. Satisfazê-las confor- Deve-se analisar esse problema a partir
me preferências individuais faz parte da do circuito ou metabolismo natural da
E
vida humana, que se estabelece entre o remos racionalidade reprodutiva. Nesses ter-
140
ser humano, enquanto ser natural (isto é, mos, uma teoria da racionalidade humana
parte da natureza), e sua natureza exterior tem de analisar e desenvolver não apenas
ou circundante, na qual a vida humana é essa ação racional meio-fim, mas também
viável e desenvolve-se. Nesse intercâm- a possibilidade de que a própria práxis
bio entre o ser humano enquanto natu- humana possa condicionar a lógica da
reza específica e a natureza externa a ele, racionalidade meio-fim àquela do circuito
a natureza em geral é humanizada (ou natural da vida humana, enquanto racio-
desumanizada) pelo trabalho humano. O nalidade da vida e de suas condições de
trabalho é, portanto, o elo desse circuito existência. Tal possibilidade de uma práxis
entre o ser humano e a natureza (HINKE- humana para além da racionalidade meio-
LAMMERT e MORA, 2001). fim (a racionalidade reprodutiva) pressu-
Para entender e orientar a práxis huma- põe o reconhecimento de que a relação
na dentro desse metabolismo, certamente entre essas duas racionalidades é confli-
é pertinente o desenvolvimento de uma tuosa e que, portanto, a simples amplia-
teoria da ação racional, quer se trate de ção dos critérios da relação meio-fim não
uma “gestão da escassez” (teoria econô- é capaz de assegurar essa racionalidade
mica neoclássica), quer de uma “gestão da necessária à reprodução da vida.
sustentabilidade” (economia ecológica). Dado esse conflito, é necessário haver
Não obstante, uma teoria da ação racio- uma mediação entre ambas, na qual se
nal, tal como foi formulada inicialmente reconheça a racionalidade do circuito
por Max Weber e retomada pelo pensa- natural da vida humana como a última
mento econômico neoclássico, restringe- instância de toda racionalidade, pois ela
se a uma teoria da relação meio-fim, à qual fornece o critério de avaliação da racio-
subjaz um critério de racionalidade ins- nalidade meio-fim. Essa aceitação pres-
trumental próprio do cálculo hedonista supõe, por sua vez, um reconhecimento
de utilidade (utilitarismo) e das relações anterior, que é o mútuo reconhecimento
mercantis (eficiência formal). A redução dos seres humanos enquanto seres natu-
de toda reflexão teórica e de toda práxis rais e necessitados, já que cada ser huma-
humana a essa racionalidade instrumental no depende de outro, sustenta o outro e
meio-fim levou a humanidade a uma crise participa do desenvolvimento do outro,
de sustentabilidade que hoje ameaça até comungando de uma aventura, de uma
mesmo sua sobrevivência e a da própria origem e de um destino comuns. Apenas
natureza. a partir desse reconhecimento do outro
A ação racional meio-fim, mesmo como ser natural surge a possibilidade de
quando necessária em contextos parciais se fixar o circuito natural da vida huma-
e delimitados, resulta como uma ação na como o condicionante de toda vida
cujo núcleo é irracional, sendo necessário humana e, consequentemente, também
transcendê-la, superá-la (mas não aboli- de qualquer institucionalidade.
la), condicionando-a a uma racionalida- Esse é o marco inicial de toda refle-
de mais integral que respeite o circuito xão econômica, pois só mediante esse
natural da vida humana, à qual denomina- reconhecimento do outro como ser natu-
E
ral e necessitado, o ser humano chega a Qualquer concepção da melhor socie-
141
ter direitos, não podendo ser reduzido a dade possível deve iniciar com uma aná-
objeto de simples opções próprias ou de lise da “melhor sociedade concebível”. A
outros. O reconhecimento do ser humano melhor sociedade possível apresenta-se,
enquanto sujeito vivente, a corporeidade então, como uma antecipação da melhor
do sujeito, suas necessidades e direitos sociedade concebível. O conteúdo do pos-
devem ser os pontos de referência básicos sível é sempre algo impossível que, apesar
para a avaliação de qualquer racionalidade de tudo, dá sentido e direção ao que seja
econômica e de toda organização econô- possível. A política é justamente a arte
mica institucionalizada. Estes têm prima- de tornar o impossível progressivamente
zia sobre a eficiência abstrata ou qualquer possível. Partindo dessa análise, pode-se
uma das suas derivações (competitividade, reconsiderar a contraposição tradicio-
taxa de crescimento, produtividade, taxa nal entre socialismo e capitalismo, bem
de lucros, “liberdade econômica”, moder- como a viabilidade de qualquer propos-
nização, etc.), as quais têm constituído a ta de sociedade perfeita, quer se trate de
norma dominante. uma sociedade comunista, uma sociedade
anarquista (sem instituições) quer de uma
2. Questionar-se acerca da sociedade sociedade de mercado total (concorrência
alternativa que se pode querer instaura perfeita).
de imediato uma pergunta fundamental Tome-se o exemplo da contraposição
da política e da filosofia política: qual é a entre socialismo e capitalismo que, em
melhor sociedade possível? Thomas More, grande medida, continua vigente no deba-
em Utopia, Francis Bacon, em A Nova Atlân- te teórico. Tomem-se, também, dois de
tida, e Tomás Campanella, em A Cidade do seus principais representantes: Karl Marx
Sol, foram os primeiros teóricos do Renas- e Max Weber. Marx parte de uma premissa
cimento e da Modernidade que tentaram inteiramente relevante: a afirmação da vida
responder a essa pergunta, antecedidos humana concreta, corpórea e não de qual-
por Platão, na Antiguidade Clássica, em A quer tipo de antropocentrismo abstrato.
República, sua obra-prima. Não obstante, a O autor situa tal afirmação em termos de
busca por uma sociedade perfeita tende a uma plenitude que descreve o comunismo
tornar-se uma armadilha, podendo, inclu- como “reino da liberdade” e concebe, com
sive, tomar o rumo do totalitarismo. relação a ele, a sociedade socialista à qual
Em primeiro lugar, uma resposta dire- aspira como uma aproximação ou anteci-
ta à pergunta “qual é a melhor sociedade pação ao “melhor possível”.
possível?” é impraticável, pois é necessá- A conceituação dessa plenitude é
rio haver um referente ao “melhor possí- absolutamente radical, pois a sociedade
vel”. Essa referência não pode balizar-se em construção aparece sobretudo como
por uma ética preconcebida, pois, nesse uma sociedade viável que se realiza o
caso, não haveria qualquer critério de via- “máximo possível”. Para Weber, ao contrá-
bilidade. Antes de se formularem deveres rio, esse reino da liberdade é impossível,
ou modelos de sociedade, é necessário utópico, e contra ele o autor lança sua crí-
determinar-se esse marco de viabilidade. tica. Constata que a abolição das relações
E
mercantis – a qual Marx considera como na tudo o que não pareça ser compatível
142
parte do possível – inscreve-se no âmbito com esse progresso calculado e, com isso,
do impossível, entretanto, em sua própria suprime-se praticamente a realidade; e
análise, Weber dá continuação ao esque- c) porque promete a utopia desde que se
ma que critica em Marx. Precisamente o renuncie a toda crítica, a toda resistência.
capitalismo poderia garantir a reprodução A utopia chega a ser o poder destrutivo
material da vida humana, mas, como não absoluto. Se a realidade não for compatí-
é possível comprovar tal hipótese em ter- vel com os termos da sociedade perfeita,
mos empíricos, essa reprodução também então, deve-se eliminá-la, inclusive a das
é concebida em termos de uma plenitude ciências empíricas. A realidade só é per-
capitalista impossível, tomando o concei- cebida como empiria quantificável, uma
to das primeiras análises neoclássicas do abstração que substitui a realidade pelas
equilíbrio geral dos mercados. Essas uto- ciências empíricas; contudo, a realidade é
pias podem ser chamadas “utopias trans- uma realidade da vida.
cendentais”, compreendendo as utopias Real é aquilo com o que se pode viver
do comunismo, do anarquismo e a utopia e do que se necessita para viver: a nature-
neoliberal do mercado total. Ora, qual- za e o convívio humano. Para voltar a essa
quer proposta de sociedade vinculada a realidade, o ponto de partida só pode ser
uma plenitude perfeitamente impossível a reivindicação do ser humano enquanto
termina por se autodeturpar, já que sua sujeito, que insiste em suas necessidades
consecução fática é tida como passos em e seus direitos, em conflito com a lógica
direção aos quais aquele infinito distan- própria dos sistemas institucionais. Não
cia-se da concepção. A história do século se trata apenas de um conflito de classes,
XX foi abundante em projetos de constru- mas, principalmente, do conflito entre a
ções utópicas, com consequências desas- possibilidade da vida perante a lógica pró-
trosas para o ser humano e a natureza. pria dos sistemas.
O horizonte utópico da práxis humana Deve-se considerar a referência utópica
é, indubitavelmente, um elemento cen- de outra forma. A utopia é uma fonte de
tral, essencial, dessa práxis; porém, ele não idéias sobre o sentido da vida, uma refe-
pode ser formulado apoiando-se em uma rência para o discernimento, uma reflexão
sociedade perfeita que possa ser alcança- sobre o destino, uma imaginação dos hori-
da mediante uma aproximação quantita- zontes. Para não invalidar essa pretensão, a
tiva calculável (aproximação assintótica), utopia jamais pode se converter em um fim
como se se tratasse de uma relação meio- a ser realizado, nem sequer de forma assin-
fim. Ao eleger-se esse caminho, transfor- tótica. A utopia não deve se transformar em
ma-se a questão da busca por uma melhor societate perfecta que rege a vontade de todos
sociedade em um problema de progresso e a realidade, impondo-se sobre elas. A uto-
calculável, o que pode ser destrutivo pelo pia é, ao contrário, uma espécie de “idéia
menos por três razões: a) porque aniqui- reguladora”, no sentido kantiano do ter-
la toda vivência da sociedade humana mo (especificamente em Kant da Crítica da
nesse caminho fictício para a realização Razão Pura). Somente nessa acepção a uto-
da sociedade perfeita; b) porque elimi- pia não chega a ser novamente um cárcere,
E
um muro ou um campo de concentração, Como exemplo, pode-se citar o caso
143
mas uma fonte de vida e de esperança. Esta da “liberdade do consumidor”. As rela-
é a utopia necessária. ções mercantis capitalistas interferem de
A “melhor sociedade possível” não se tal forma na espontaneidade do consumi-
inscreve na realização do ideal utópico dor que a deformam. Substituem a orien-
como tal, mas na aspiração a um estado tação segundo valores de uso por outra
em constante reevolução que ainda não baseada nos valores de troca e no lucro.
existe, mas cuja realização é desejável e Embora essa interferência ocorra em
possível. No início do século XXI, o rea- todos os modos de produção, ela predo-
lismo político, ou a política como arte de mina na produção mercantil, já que, nesta,
tornar possível o impossível, deve propor há também a preponderância da especifi-
um mundo, uma sociedade na qual cada cação da necessidade em geral mediante
ser humano possa assegurar sua possibi- as relações de produção. O consumidor
lidade de vida em um âmbito que inclua perde, assim, sua liberdade. Reivindicá-la
a reprodução da natureza, sem a qual a significa enfrentar e restringir as mesmas
própria reprodução da vida humana não relações mercantis à medida que se com-
é viável. portem como destruidoras da espontanei-
A liberdade humana só pode existir dade e, portanto, da liberdade.
mediante uma relação entre o sujeito e Uma economia para a vida não se
suas instituições, às quais ele submete dedica à análise de instituições parciais
suas condições de vida. Ao contrário, as (empresas, escolas, sindicatos ou outras)
“máquinas de liberdade” (automatismo nem de instituições globais (sistemas de
do mercado, leis da história) prometem a propriedade, mercado, Estado), mas às
liberdade enquanto resultado da submis- formas da organização e coordenação da
são absoluta às instituições e às suas leis. divisão social do trabalho, nas quais essas
Não admitem qualquer “sujeiticidade” instituições se inserem. A importância
do ser humano, que é transformado em dessas formas reside no fato de elas deci-
uma parte da engrenagem da “máquina da direm sobre a vida e a morte do ser huma-
liberdade” (FRIEDMAN, 1989). Os sujeitos no e, consequentemente, sobre a possível
são livres à medida que sejam capazes de liberdade humana.
relativizar a lei em função das necessida- A opção pela vida humana ameaçada
des da vida. A liberdade não está na lei, requer uma nova solidariedade, aquela que
mas na relação entre os sujeitos e a lei. reconhece ser a opção pela vida do outro a
Considerando a lei do mercado, a liber- opção pela própria vida. O outro está em
dade consiste, precisamente, em poder mim, e eu estou no outro. Em nome desse
submetê-la às necessidades dos sujeitos. sujeito, toda lei absoluta, e especialmen-
O reconhecimento mútuo entre sujeitos te a lei do mercado, deve ser relativizada
corporais e necessitados implica, neces- com relação à possibilidade de viver. Essa
sariamente, a relativização de qualquer lei lei pode ser válida apenas enquanto se res-
em função desse reconhecimento. A lei peite a vida, não sendo legítima se exigir
vale somente enquanto não impedir esse a morte ou conduzir a ela, ao sacrifício de
reconhecimento mútuo. vidas, ao cálculo de vidas.
E
O objetivamente racional é subordi- dissolverem essas “forças compulsivas dos
144
nar todas as racionalidades à reprodução fatos” (cf. HINKELAMMERT e JIMÉNEZ, 2003,
da vida de todos, estando nisso incluída 2005).
a natureza, porque só haverá lugar para a
vida humana se houver uma natureza que
BIBLIOGRAFIA
a torne possível. Ora, essa racionalidade
da vida só pode basear-se na solidarieda- FRIEDMAN, David. (1989), The Machinery of Freedom:
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de entre todos os seres humanos. Trata-se
de uma solidariedade necessária. Pode-se HINKELAMMERT, F. J.; JIMÉNEZ, H. M. (2003), Por una
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enfrentar o processo destrutivo do merca-
de, n. 22/23, mar./dez.
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DEI.
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E
ECONOMIA PLURAL tas preocupados com uma reflexão episte-
Jean-Louis Laville 145
mológica sobre sua ciência (BÁRTOLI, 1977;
MARÉCHAL, 2001; PASSET, 1996; PERROUX,
1. Economia plural é uma abordagem da 1970). A partir dessa distinção, podem-
economia real que parte do pressuposto se destacar dois traços característicos da
de que as relações entre os produtores e economia moderna.
entre estes e a natureza são regidas por A autonomia conferida à esfera econô-
princípios econômicos plurais e assumem mica assimilada ao mercado constitui o
formas institucionais igualmente diversas. primeiro traço. A ocultação do sentido
Essa percepção analítica constitui uma crí- substantivo da economia resulta na con-
tica à identificação estreita entre mercado fusão entre a economia e a economia mer-
e economia classificada por Karl Polanyi cantil ao fim desse longo “retraimento”,
como um sofisma econômico. Polanyi atestado pela adoção da definição formal
salienta o valor heurístico de uma retoma- da economia, cujas etapas são descritas
da reflexiva da definição de economia. por Passet, dos fisiocratas aos neoclássicos
(PASSET, 1996, p. 31-37).
2. O termo econômico, geralmente empre- A identificação do mercado como ins-
gado para designar certo tipo de atividade tância auto-regulada constitui o segundo
humana, oscila entre dois pólos de signi- traço característico da economia moderna.
ficação. O primeiro sentido, formal, pro- As hipóteses racionalista e atomista sobre
vém do caráter lógico da relação entre fins o comportamento humano permitem o
e meios, acepção que também origina a estudo da economia a partir de um méto-
definição do econômico por referência à do dedutivo por agregação de comporta-
escassez. O segundo sentido, substantivo, mentos individuais graças ao mercado,
insiste sobre as relações entre os homens sem levar em conta o quadro institucional
e entre estes e os meios naturais onde bus- em que eles tomam forma. Considerar
cam sua subsistência. A definição substan- o mercado como auto-regulador, isto é,
tiva integra essas interdependências como como mecanismo de correlação da ofer-
constitutivas da economia. ta e da procura pelos preços, resulta em
Essas duas orientações para as quais silenciar sobre as mudanças institucionais
pode tender a economia humana provêm necessárias para que ele se produzisse e
“de fontes essencialmente diferentes” e em esquecer as estruturas institucionais
são “ambas primárias e elementares”, con- que o tornam possível.
forme Menger (1923, p. 77). Tal discussão A esses dois pontos desenvolvidos
foi esquecida, não sendo retomada em por Polanyi (1983), pode-se acrescentar
qualquer apresentação da economia neo- um terceiro sobre o qual insistiram mui-
clássica, que se caracteriza por uma apre- tos autores, entre os quais Marx, Mauss e
ensão da economia em seu sentido formal. Weber: a identificação da empresa moder-
Polanyi (1983) sugere que essa redução do na com a empresa capitalista. Em uma
campo do pensamento econômico acarre- economia capitalista baseada na proprie-
tou uma ruptura total entre o econômico e dade privada dos meios de produção, a
o ser vivo, como o desenvolvem economis- criação de bens supõe haver um lucro
E
possível para os detentores de capitais. A procidade e redistribuição. As inscrições
146
empresa é uma “unidade econômica de institucionais dessa regulação foram
lucro”, e “a conta de capital está, portanto, múltiplas.
no fundamento da forma racional da eco- Contra a redução da economia ao mer-
nomia lucrativa”, já que permite calcular cado, mobilizou-se o princípio da redis-
se há um excedente “em relação ao valor tribuição. Outro pólo, tão constitutivo da
estimável em dinheiro dos meios investi- modernidade democrática quanto a eco-
dos na empresa” (WEBER, 1991, p. 14-15). nomia mercantil, é o da economia não-
O reconhecimento da sociedade por ações mercantil, correspondente à economia
propicia uma concentração de capitais cuja distribuição de bens e serviços é con-
inédita, já que os direitos de propriedade fiada à redistribuição. Com a escalada da
podem ser trocados sem que seus detento- questão social, apresenta-se a necessidade
res precisem se conhecer, pois a mediação de se promoverem instituições capazes de
da bolsa de valores garante paralelamente neutralizar os efeitos politicamente não-
uma liquidez a seus haveres. desejáveis. O Estado social confere, aos
Por fim, a economia abordada como a cidadãos, direitos individuais, graças aos
combinação entre o mercado auto-regula- quais eles se beneficiam de uma garan-
dor e a sociedade de capitais dá lugar a um tia que cobre os riscos sociais ou de uma
outro desenvolvimento: o projeto de uma assistência que constitui um último recur-
sociedade enraizada no mecanismo de sua so para os mais pobres. O serviço público
própria economia. Quando não conhece define-se, desse modo, pelo fornecimento
limites, a economia de mercado resulta na de bens ou prestação de serviços reves-
sociedade de mercado, na qual o mercado tidos de uma dimensão de redistribui-
tende a englobar e a organizar a socieda- ção (dos ricos para os pobres, dos ativos
de; a busca do interesse privado materia- para os inativos e assim por diante), cujas
liza o bem público sem passar pela deli- regras são estabelecidas por uma auto-
beração política. A irrupção dessa utopia ridade pública submetida ao controle
de um mercado auto-regulador diferencia democrático.
a modernidade democrática das outras Contra a confusão entre mercado e
sociedades humanas em que existiram mercado auto-regulador, operou-se um
elementos de mercado sem que se visasse retraimento do mercado por meio de seu
ordená-los em um sistema autônomo. enquadramento institucional. Ainda que
Revelou-se impossível atingir o hori- exista uma tendência de desencastramen-
zonte da sociedade de mercado, visto to do mercado própria à Modernidade, ela
que a sociedade reagiu a essa perspectiva, foi neutralizada por reações recorrentes da
recorrendo principalmente à solidarieda- sociedade com o objetivo de “socializar”
de. Essa noção constituiu uma referência o mercado, isto é, de inscrevê-lo em um
para o estabelecimento de uma regula- conjunto de regras elaboradas a partir de
ção democrática da economia, sobre a um processo político de deliberação. Essa
qual Mauss (2001) reflete nas conclusões tensão entre desencastramento e encastra-
do Ensaio sobre a Dádiva. Nesse trabalho, mento pode ser considerada como consti-
o autor insiste nas relações entre reci- tutiva da economia mercantil moderna.
E
Historicamente, a meta de estabelecimen- nomia apresenta um duplo movimento: o
147
to de um mercado auto-regulador engen- primeiro exprime a tendência a seu desen-
drou a criação de instituições reguladoras. castramento, e o segundo traduz a tendên-
“A maioria dos mercados de hoje conforma cia ao reencastramento democrático da
acima de tudo regras, instituições, redes economia, no qual a referência à solidarie-
que enquadram e controlam a formação dade revela-se primordial. A extensão do
e a união da oferta e da procura”; contu- mercado “encontrou um contramovimen-
do, eles são contestados por impulsos de to controlando essa expansão” (POLANYI,
desregulação, que apelam para “o alinha- 1983, p. 179), razão da passagem a “uma
mento desses mercados diversos à norma grande transformação”, que teria liberado
ideal e impessoal do mercado concorrente a sociedade das ameaças que o liberalismo
perfeito, para a dessocialização dos merca- econômico fazia pesar sobre ela.
dos” (GADREY, 1999). Como lembra Dumont (1983), essa
A essas investidas para a desregulação, reviravolta culminou, com os regimes
acrescentam-se tentativas para fundar e fascistas e comunistas, na destruição da
legitimar práticas e instituições não-capi- liberdade e no reinado da opressão. Para o
talistas. Em empresas cujos direitos de autor, a conciliação entre liberdade e igual-
propriedade pertencem aos investidores, dade não pôde ser garantida pela grande
o objetivo resume-se à maximização do transformação pretendida por governos
lucro, e o fator trabalho é subordinado a totalitários, mas por “uma aliança sem fór-
essa lógica de acumulação. Diante desse mula precisa” própria à social-democracia.
modelo amplamente dominante, análises Designando dessa forma os acordos entre
mostraram haver inúmeras formas de pro- mercado e Estado próprios ao período de
priedade, isto é, de pessoas que podem expansão subsequente à Segunda Guerra
deter os direitos de propriedade. Contra- Mundial, Dumont subestima a coerência
riamente às empresas capitalistas, certas das sociedades industriais fordistas e pro-
empresas não pertencem aos investidores, videncialistas. Nestas, regras sociais impu-
mas a outros tipos de stakeholders, e, conse- nham-se à economia mercantil mediante a
quentemente, seus objetivos diferenciam- legislação e a negociação coletiva, e orga-
se da acumulação do capital. Nelas, a ope- nizava-se igualmente um vasto conjunto
racionalização da ação econômica remete redistributivo de economia não-mercan-
mais à reciprocidade, na qual “o vínculo til, cujas regras eram editadas pelo Estado
sobrepuja o bem”, do que à maximização social. Não obstante, o autor ressalta, com
do interesse individual. razão, o caráter reversível desses acordos,
As reações à utopia da sociedade de cujos fundamentos a ofensiva neoliberal
mercado foram variadas, manifestando- minou, exonerando o mercado de certas
se como mobilização de outros princípios regras sociais percebidas como rigorismos
econômicos, criação de instituições limi- e deslegitimando uma economia não-
tando e editando regras para a esfera do mercantil que encontrava sua fraqueza na
mercado ou adoção de formas de proprie- burocratização por meio da sujeição do
dade distintas das capitalistas. Vê-se assim usuário. Essa reversibilidade tornou-se
que, na modernidade democrática, a eco- evidente no início do século XXI.
E
Com o retorno da utopia da sociedade Essas iniciativas poderão contribuir para a
148
de mercado pelo viés do neoliberalismo, realização de um projeto de democratiza-
o teor da réplica democrática revela-se ção da economia e da sociedade se conse-
crucial. Na falta dela, o desejo de libera- guirem agrupar-se para além de suas inser-
ção corre o risco de se inverter, havendo ções setoriais e aprofundar a avaliação do
a escalada do fundamentalismo e das ten- que esteja em jogo e suas implicações às
sões identitárias como resultado da glo- regulações públicas, bem como aliar-se à
balização do mercado e de sua extensão economia social e aos movimentos sociais
a áreas inalcançadas anteriormente. Se que compartilhem de suas finalidades.
esse risco é verdadeiro e confirmado por A questão que se coloca diz respeito à
acontecimentos dramáticos, é porque a possibilidade de haver instituições em con-
perspectiva da sociedade de mercado já se dição de assegurar a pluralização da eco-
mostrou incompatível com a democracia nomia para situá-la em um quadro demo-
no século XX. A visão econômica do mun- crático, o que a lógica do ganho material
do, quando se torna um fim em si, nega, compromete quando se torna única e sem
aos processos democráticos, o direito a limites. A resposta a essa questão só pode
definir um sentido e um projeto humano ser buscada em invenções institucionais
(ROUSTANG, 2002, p. 12). A restauração dos amparadas em práticas sociais, pois são
acordos anteriores está fadada ao fracas- estas que podem indicar os caminhos de
so. Por exemplo, o progresso social não uma reinserção da economia em normas
pode mais ser garantido pelas deduções democráticas. A reflexão sobre a concilia-
operadas sobre a economia mercantil por- ção entre igualdade e liberdade, que per-
que existem novas dificuldades. Enquanto manece o ponto nodal da democracia em
seria conveniente limitar o mercado para uma sociedade complexa, só pode progre-
que ele não se estendesse a todas as esfe- dir mediante a consideração das reações
ras da vida humana, e relações solidárias que emanam da sociedade. Esse é outro
fossem preservadas, conviria igualmente ponto sobre o qual concordam Mauss e
que o crescimento mercantil fosse o mais Polanyi: o analista deve apoiar-se em prá-
elevado possível, para extrair o máximo de ticas para informar sobre sua existência e
meios para financiar os sistemas de redis- examiná-las, ou seja, ele necessita partir
tribuição que demonstram a solidarieda- do “movimento econômico real” e não de
de entre grupos sociais. um projeto de reforma social colado na
realidade.
3. Com vistas a sair desse impasse, é neces- Manifesta-se assim uma concepção das
sário considerar todos os procedimentos mudanças sociais, as quais “não coman-
que, concretamente, rejeitam uma mer- dam absolutamente essas alternativas
cantilização cada vez maior da vida social. revolucionárias e radicais, essas escolhas
É essa a grande importância das experiên- brutais entre duas formas de sociedade
cias de economia solidária. Por sua pre- contraditórias”, mas que “se fazem e se
sença multiforme, elas integram ações que farão por meio de processos de construção
contestam evoluções apresentadas pela de grupos e de instituições novas ao lado
ideologia neoliberal como irreversíveis. e acima das antigas” (MAUSS, 2001, p. 265).
E
Com Mauss e Polanyi, esboçam-se os LAVILLE, J.-L. (1994), L’économie solidaire: une perspec-
tive internationale, Paris: Desclée de Brouwer. 149
fundamentos teóricos de uma aborda-
gem plural da economia e inicia-se uma MARÉCHAL, J. P. (2001), Humaniser l’économie, Paris:
reflexão sobre a mudança social que não Desclée de Brouwer.
se satisfaz com a evocação ritual de uma MAUSS, M. (2001), L’essai sur le don, sociologie et anthro-
reviravolta do sistema. Nessa concepção pologie, 9ème édition, Paris: PUF (1.ª ed. 1950).
de mudança, é preciso impulsionar-se, em MENGER, C. (1923), Grundsätze der Volkwirtschaftslehre,
um quadro democrático, a evolução das Vienne: Edition Carl Menger.
relações de força, para que a pluralidade PASSET, R. (1996), L’économique et le vivant, Paris:
dos modos de instituição ou de inscrição Economica.
social da economia possa ser plenamente
PERROUX, F. (1970), Les conceptualisations implicite-
legitimada. A abordagem plural da econo- ment normatives et les limites de la modélisation en
mia permite renovar os termos do debate économie, Économie et société, Cahiers de l’ISEA, tome
entre reformismo e radicalismo. IV, n. 12, déc.

POLANYI, K. (1977), The Livelihood of man, editado por


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préhension plurielle, Le Monde, 10 mar. Paris: Gallimard.
E
ECONOMIA POPULAR obtenção de excedentes que possam ser
150 Ana Mercedes Sarria Icaza trocados no mercado, como também de
Lia Tiriba alguns elementos fundamentais ao proces-
so de formação humana, como a socializa-
1. Entende-se por economia popular o ção do saber e da cultura, saúde, moradia,
conjunto de atividades econômicas e prá- etc. Além das práticas econômico-sociais
ticas sociais desenvolvidas pelos sujeitos cujo objetivo imediato é a obtenção de
pertencentes às classes trabalhadoras com ganhos monetários, as atividades da eco-
o objetivo de assegurarem a reprodução nomia popular verificam-se nas ações de
da vida social mediante a utilização da solidariedade entre familiares, amigos e
própria força de trabalho e a mobilização vizinhos, bem como nas ações coletivas
dos recursos disponíveis. Diz respeito às organizadas no âmbito da comunidade,
estratégias populares de trabalho e sobre- objetivando a reprodução da unidade
vivência, entendidas como a arte de criar doméstica e a melhoria da qualidade de
condições favoráveis para satisfação das vida. Contando com o apoio de redes
necessidades humanas, tanto materiais primárias e comunitárias de convivência,
como imateriais. A economia popular práticas de economia popular podem ser
refere-se a uma forma de produzir, distri- denominadas como grupo de produção
buir e consumir bens e serviços que trans- comunitária, produção associada, associa-
cende a obtenção de ganhos monetários, ção, cooperativa, etc.
vinculando-se estreitamente à reprodu-
ção ampliada da vida (e não do capital) 2. Os processos de reprodução da vida
e tendo como horizonte a satisfação de social comandados por sujeitos de setores
valores de uso e a valorização do trabalho populares variam em diferentes espaços e
e dos seres humanos. O conceito remete tempos históricos, atravessam formações
ao significado etimológico da palavra eco- econômicas distintas e plasmam-se (hege-
nomia, originada do grego oikos (casa) e mônica ou subalternamente) em deter-
nemo (eu distribuo, eu administro). Assim minado modo de produção ou modelo de
como Oikonomia diz respeito ao “cuida- desenvolvimento econômico. Como pro-
do da casa” (entendida como morada duto das condições históricas, o conceito
do ser humano), a economia popular é a de economia popular há de ser redimen-
forma pela qual, historicamente, homens sionado à luz do contexto maior onde esse
e mulheres que não vivam da exploração setor da economia seja produzido.
da força de trabalho alheio tentam garan- A partir das duas últimas décadas do
tir seu estar no mundo, tanto na unida- século XX, o termo economia popular pas-
de doméstica como nos espaços/tempos sou a ser utilizado – de maneira geral – para
mais amplos das relações sociais. fazer-se referência às atividades desenvol-
No contexto do capitalismo, como vidas pelos trabalhadores e trabalhadoras
forma de amenizar as contradições entre excluídos do mundo do trabalho assalaria-
capital e trabalho, os atores da economia do ou que nele jamais tenham conseguido
popular criam estratégias de trabalho ingressar. A esses, somam-se aqueles sujei-
e sobrevivência que visam não apenas à tos que, devido aos baixos salários e à per-
E
da dos direitos sociais assegurados pelo que se classificarem as atividades em “eco-
151
Estado do bem-estar social, buscam, no nomia formal” ou “economia informal”,
trabalho por conta própria (individual ou trata-se de analisar a racionalidade inter-
associativo), a complementação de renda na das organizações econômicas geridas
e dos bens simbólicos necessários à repro- pelos próprios trabalhadores.
dução ampliada da vida. Pode-se inferir, Para Coraggio (1991), a lógica da
então, que a economia popular caracte- “reprodução ampliada da vida” é o prin-
riza-se por ser “abrigo” tanto dos desem- cipal elemento que diferencia economia
pregados, como dos (sub)empregados, popular de outros setores econômicos.
pois é preciso considerar-se que, além dos Segundo o autor (ibid., p. 334), a eco-
rendimentos obtidos na empresa capita- nomia estaria dividida em três subsiste-
lista, existem outras condições necessá- mas: economia empresarial-capitalista,
rias à reprodução da vida. Essas condições economia pública (empresarial estatal e
expressam as diversas formas de solidarie- burocrática estatal, não orientada para
dade existentes entre os trabalhadores, o lucro) e economia popular. Diferente-
suas famílias e a comunidade local, sem as mente de outros setores, cujas lógicas são
quais se tornaria praticamente impossível a da acumulação e a da legitimação do
a sobrevivência de grande parcela da clas- poder, o setor da economia popular inclui
se trabalhadora. todas as unidades domésticas que “não
Principalmente na América Latina, vivem da exploração do trabalho alheio,
alguns economistas e sociólogos come- nem podem viver da riqueza acumulada
çam a desenvolver novas interpretações (incluídos os fundos de investimentos,
sobre os significados das iniciativas eco- etc.), mas que seus membros devem conti-
nômicas dos setores populares. Progressi- nuar trabalhando para realizar expectativas
vamente, o conceito de economia popular médias de qualidade de vida [...] ainda que
passa a ser utilizado por diversos autores todos ou alguns de seus membros traba-
em diversas partes do mundo, inclusive lhem em outros dos subsistemas” (ibid., p.
em alguns países europeus. Desde o final 36). Posteriormente, Coraggio reelabora
do século XX, também estudos acerca da suas idéias acerca da economia popular e
realidade africana vêm sendo desenvolvi- desenvolve o conceito de economia do tra-
dos significativamente (PEEMANS, 1997). balho (ver verbete).
Autores como o chileno Luis Razeto, Por sua vez, Razeto entende a economia
cujas elaborações são construídas com popular como um fenômeno generalizado
base na realidade da classe trabalhadora que se estende nos países latino-america-
daquele país, bem como o argentino José nos, presente nas unidades econômicas
Luis Coraggio, cujos estudos partem de dirigidas individualmente, familiarmente
algumas discussões relativas à realidade ou em grupos, sem que seus atores con-
nicaraguense da década de 1980, argu- tem com nenhum, ou quase nenhum,
mentam que os conceitos de formalidade capital: “sua única riqueza é a força de
ou informalidade são insuficientes para a trabalho e – sobretudo – a ânsia de viver”
análise da complexidade das relações eco- (RAZETO, 1993, p. 31). Neste sentido, o
nômico-sociais. Consideram que, mais autor identifica cinco tipos de atividades e
E
empreendimentos, que vão desde ativida- heterogêneos, nos quais “o mercado existe
152
des ilegais (pequenos delitos, prostituição, em vinculação com a reciprocidade”. Nes-
etc.), passam por soluções assistenciais, se sentido, segundo o autor peruano, “o
iniciativas individuais não-estabelecidas que verdadeiramente caracteriza a econo-
e micro-empresas individuais ou familia- mia popular é que as relações de trabalho
res, até chegar às organizações econômi- e de distribuição de recursos e do produto
cas populares (OEPs). Estas constituem são fundamentalmente organizadas em
pequenos grupos que buscam, associativa torno da reciprocidade e da vida social,
e solidariamente, a forma de solucionar das práticas sociais quotidianas – em uma
seus problemas econômicos, sociais e cul- palavra, em torno da comunidade” (ibid.,
turais mais imediatos. Tais organizações p. 491).
são as que, segundo o autor, constitui-
riam a base e o potencial da “economia de 3. De uma maneira geral, pode-se afir-
solidariedade”. mar que, sob novos paradigmas, as análi-
Existem outras vertentes da econo- ses sobre economia popular viabilizaram
mia popular que, inspiradas nas idéias de ressignificarem-se as práticas mesmas dos
Karl Polanyi, inscrevem-se na perspectiva sujeitos coletivos que buscam subsistir ou
de uma economia plural. Essas vertentes se contrapor à lógica da economia capi-
apontam ser as lógicas que caracterizam talista. Permitiram, também, que a eco-
a economia popular distintas das lógicas nomia popular transformasse-se em um
estatal e mercantil, incorporando o prin- meio de resistência às exclusões política,
cípio da reciprocidade como elemento cultural e social das classes trabalhadoras,
fundamental. Nesse sentido, Larrachea constituindo-se como parte integrante
e Nyssens (1994) situam a estruturação dos movimentos sociais. Há, entretan-
da organização econômica em três pólos: to, algumas questões importantes que o
público, capitalista e relacional. Os auto- uso do conceito suscita e sobre as quais é
res identificam a economia popular como necessário haver maior aprofundamento.
um conjunto de atividades heterogêneas A primeira questão diz respeito à dife-
que se apresentam “em tensão” entre o renciação entre economia popular e econo-
pólo relacional e o capitalista, cuja poten- mia informal. A economia informal (ou
cialidade reside justamente em seu enrai- setor informal) é identificada por uma
zamento (“encastrement”) nas dinâmicas série de fatores, tais como ilegalidade,
sociais e territoriais das quais fazem parte. pequeno porte, baixa produtividade do
As idéias de reciprocidade e de hetero- trabalho, tecnologia intensiva em traba-
geneidade como elementos da economia lho vivo e baixo nível de qualificação dos
popular também são resgatadas por Aní- trabalhadores, entre outros. Remete a um
bal Quijano (2002), ao considerar que, no conjunto de atividades cuja característica
lugar do desaparecimento do setor tradi- essencial é estar pretensamente “fora” da
cional em função do processo de homoge- lógica do que seria o “setor moderno” da
neização da lógica do capital, assistimos à economia capitalista, funcionando como
reconstituição de relações sociais de reci- compensadora das crises ou insuficiências
procidade, com a afirmação de padrões das sociedades capitalistas em desenvol-
E
vimento. Essa perspectiva desdobra-se ra a economia popular aponte para uma
153
em projetos “modernizadores” para o revalorização das atividades econômicas
setor da economia informal, orientados do mundo popular, muitos assinalam a
à implementação de ações que ajudariam ambiguidade na utilização desse concei-
as unidades econômicas que a integram a to no contexto de acumulação flexível,
superarem seus limites. Ao contrário da em que se assistem a novas formas de
economia informal, a economia popular exploração e precarização do trabalho.
alude explicitamente a uma lógica especí- Lia Tiriba (2001), por exemplo, adverte
fica das atividades econômicas do mundo para o fato de que, perante as transforma-
popular, fundada em uma racionalidade ções do mundo do trabalho em curso no
que se encontra submersa nas relações século XXI, a proliferação das atividades
sociais. A economia popular refere-se às da economia popular não se apresenta,
atividades, entre elas o trabalho domésti- necessariamente, como algo alternativo,
co, voltadas a prover-se o sustento de um mas como excrescência do próprio capita-
grupo social, sem haver presença da mer- lismo. Estimulada, também, pelos agentes
cantilização do trabalho. que representam os interesses do capi-
Pode-se concluir que, no processo tal, pode servir apenas para “aliviar a dor
de reprodução da vida social, embora se dos pobres” e diminuir assim os conflitos
encontrem muitas atividades desempe- sociais. Em contrapartida, a autora reflete
nhadas pelos setores populares, elas não sobre o potencial da economia popular,
pertencem necessariamente ao mundo considerando que esta representa o locus
da economia popular, podendo inscrever- onde subsistem antigas relações sociais
se na esfera da economia informal. Uma de produção, as quais poderiam ser o
das argumentações nesse sentido aponta embrião de uma nova cultura do trabalho.
que, independente do número de traba- Ao mesmo tempo em que constituem o
lhadores ou da capacidade produtiva da resquício de formações pré-capitalistas,
unidade econômica, a economia popular as atividades da economia popular anun-
diferencia-se de outros setores da eco- ciariam a possibilidade de haver relações
nomia, entre outros aspectos, pelo repú- econômico-sociais que, em um deter-
dio ao emprego da força de trabalho como minado momento histórico, poderiam
uma mercadoria. A “ausência de vínculo contrapor-se ao modo de produção capi-
empregatício” não decorre da ganância ou talista. No momento histórico em que,
descaso do empregador, mas de uma racio- no Brasil, foi criada a Secretaria Nacional
nalidade interna que pressupõe a negação de Economia Solidária – SENAES –, no
da relação empregador-empregado como interior do Ministério do Trabalho e do
expressão das contradições entre capital e Emprego (Governo Lula), e, na Venezue-
trabalho. la, foi criado o Ministério da Economia
A segunda questão concerne aos adje- Popular (Governo Hugo Chaves), por
tivos e projetos da economia popular e a exemplo, a autora acredita ser prudente
seu significado no interior da sociedade reivindicar-se o “popular” na economia e
capitalista. Este é um assunto polêmico nos processos de educação de trabalhado-
entre os diferentes autores, pois, embo- res associados. Nas práticas econômicas
E
dos setores populares, residiria a gênese nicaraguense Orlando Núñez diferencia a
154
de relações sociais calcadas na reciproci- economia popular de “economia popular,
dade e na cooperação solidária. Ademais, associativa e autogestionária”, esta enten-
por uma questão de classe, não devería- dida como movimento defensivo e, ao
mos renunciar a uma economia (popular) mesmo tempo, ofensivo. Essa dupla natu-
solidária potencialmente favorável aos reza manifesta-se na incubação de novas
interesses da maioria da população. formas de produção que possam amadure-
Outros autores contribuem à análise cer sua supremacia no seio da velha socie-
acerca das potencialidades e limites da dade, até que a tomada do poder político
economia popular no interior da socie- seja um resultado que permita completar
dade capitalista, apontando diversos pro- sua tarefa. O autor argumenta que a asso-
jetos políticos, econômicos e societários ciatividade é a única maneira pela qual os
os quais se refletem em diferentes nomes trabalhadores, sem se converterem em
ou adjetivos que acompanham o termo. capitalistas, poderão empreender “uma
Muitos autores e militantes seguem a estratégia de mercado e tentar competir
perspectiva de Luis Razeto, referindo-se com o capitalismo e sua economia de esca-
a uma “economia popular de solidarieda- la” (CORAGGIO, 1995, p. 121).
de” ou “economia popular solidária”, alu- Contrariando as perspectivas moder-
dindo às experiências que explicitamente nizadoras, Armando Lisboa propõe que
se caracterizam como formas coletivas de a economia popular viabiliza uma nova
organização e que têm a solidariedade ótica para se analisarem os processos de
como projeto político. Nesse sentido, de transformação, na medida em que aponta
acordo com Razeto, o potencial da econo- para modelos de desenvolvimento com um
mia popular consistiria na viabilidade de, enfoque centrado nas classes populares e
pouco a pouco, essas estratégias defensi- nos movimentos sociais. Sob essa ótica,
vas de sobrevivência transformarem-se em “o progresso deixa de emanar do Estado
uma opção social, econômica e política. planificador, das elites, das vanguardas”
Sob essa perspectiva, a economia solidária (1998, p. 29). Para Lisboa, a economia
é percebida como um horizonte da eco- popular, “originada tanto dos [indivíduos]
nomia popular, permitindo assim fazer nunca integrados quanto dos desempre-
avançar um projeto de sociedade baseado gados pelas transformações contemporâ-
na solidariedade e na cooperação (ver ver- neas, aos poucos vai constituindo-se em
bete Economia Solidária). um espaço econômico próprio composto
Segundo Coraggio (1991), as ativida- por todos aqueles que estabelecem for-
des identificadas com a economia popu- mas coletivas de produção material da sua
lar apresentam-se dispersas e atomizadas. vida” (ibid., p. 22).
Devido a esse quadro, o desafio que se Embora sejam controvertidas as análi-
apresenta aos setores populares é confe- ses sobre os limites da economia popular
rirem organicidade a essas iniciativas por e sua capacidade de contribuir ao proces-
meio da materialização de projeto comum so de transformação social, constituindo-
que possa se fortalecer e se confrontar com se como “outra economia”, o fato é que,
os outros setores da economia global. Já o acrescida ou não de adjetivos, ela tem se
E
fortalecido. Essa afirmação ocorre não LISBOA, A. M. (1998), Desordem do trabalho, economia
popular e exclusão social: algumas considerações, Uni- 155
apenas enquanto espaço de inserção no
versidade Federal de Santa Catarina: Depto. de Ciên-
mundo do trabalho, mas também como
cias Econômicas. (Texto para discussão n. 6/98).
movimento social, envolvendo sindica-
tos, organizações comunitárias e associa- NÚÑEZ, O. (1995), La economía popular, asociativa y auto-
gestionária, Managua: CIPRES.
ções diversas. A economia popular conta,
ainda, com o apoio de organizações não- NYSSENS, M.; VAN DER LINDEN, B. (1998), Embeddedness,
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E
ECONOMIA SOCIAL eram, na maioria das vezes, vigiadas, con-
156 Jacques Defourny troladas e até reprimidas pelos poderes
instituídos, que nelas viam possíveis focos
1. Uma definição sumária de economia de contestação à ordem estabelecida. Por
social remete àquelas atividades econô- essa razão, pode-se afirmar que, ao longo
micas concernindo à sociedade de pesso- dos séculos, a gênese da economia social
as que busquem democracia econômica moderna confundiu-se amplamente com
associada à utilidade social. Ampliando-se o moroso surgimento de uma verdadeira
o escopo de significados, pode-se agregar liberdade de associação.
a essa definição o conceito de solidarie- Nos países ocidentais, numerosas ini-
dade e, concretamente, a hibridação de ciativas de tipo cooperativo e mutualista
recursos mercantis, não-mercantis e não- encarnaram essa liberdade crescente no
monetários. Nos países industrializados, campo socioeconômico já na primeira
percebe-se, cada vez mais claramente, que metade do século XIX. À época, os asso-
uma parcela significativa das atividades ciacionismos operário e camponês inspi-
produtivas não se encaixa na distinção ravam-se em várias correntes de idéias que
habitualmente feita entre setor privado marcaram todo o itinerário da economia
(que objetiva o lucro) e setor público (que social e que salientaram seu pluralismo
visa ao interesse geral), a qual constitui, no político-cultural desde as origens até suas
entanto, a grade de leitura mais comum. manifestações contemporâneas (GUESLIN,
Mesmo se desconsiderando toda a esfera 1987).
das atividades e trocas domésticas, essa Com as utopias de Owen, King, Fourier,
realidade continua sendo verdadeira. O Saint-Simon e Proudhon, entre outros, o
que se tem redescoberto, a partir do final socialismo associacionista desempenhou
do século XX, é a importância significativa um papel fundamental. Até 1870, os pen-
das empresas e organizações que combi- sadores do socialismo associacionista, que
nam modos de criação e de gestão priva- promoviam sobretudo as cooperativas de
dos, coletivos (de tipo associativo), com produtores, dominaram até mesmo o
finalidades não centradas no lucro. movimento operário internacional, a tal
ponto que, com frequência, se identificou
2. Embora a economia social moderna socialismo com economia social. O pró-
tenha tido suas principais expressões na prio Marx mostrou-se, em um primeiro
Europa ao longo do século XIX, sua pré- momento, favorável ao desenvolvimento
história remonta às formas mais anti- das cooperativas, antes de suas teses cole-
gas de associações humanas. No Egito tivistas tornarem-se centrais.
dos faraós, na Antiguidade greco-lati- Também o cristianismo participou
na, na Europa da Idade Média, na China do desenvolvimento da economia social.
Imperial ou na América Pré-Colombia- Muitas iniciativas originaram-se no baixo
na, existia grande quantidade de grupos clero e em comunidades cristãs; porém,
profissionais, religiosos ou artísticos, ou no nível da Igreja-instituição, foi espe-
sistemas muito variados de ajuda mútua. cialmente a encíclica Rerum Novarum,
Essas inúmeras formas de vida associativa de 1891, que manifestou um estímulo à
E
economia social. De maneira geral, os jurídicas ou institucionais da maioria das
157
cristãos sociais da época desejavam “cor- iniciativas atuais da economia social, cujos
pos intermediários” para lutar, de um componentes são as empresas de tipo
lado, contra o isolamento do indivíduo, cooperativo, as sociedades de tipo mutua-
falha do liberalismo e, de outro, contra lista, as organizações associativas e as fun-
a absorção do indivíduo pelo Estado, dações. Essa abordagem foi engendrada
armadilha do jacobinismo. Foi principal- na França, principalmente no círculo da
mente sob essa perspectiva filosófica que Revue des Études Coopératives, Mutualistes et
Raiffeisen fundou, na Alemanha, a primei- Associatives, mas sua pertinência ultrapassa
ra caixa rural de poupança e crédito. muito esse país, visto que os três ou qua-
Alguns pensadores do liberalismo tro componentes principais da economia
demonstravam também uma abertura à social são encontrados praticamente em
economia social. Colocando a liberdade todo o mundo.
econômica acima de tudo e rejeitando As empresas de tipo cooperativo encon-
as ingerências eventuais do Estado, eles tram seu marco inicial no projeto dos Pio-
insistiam sobremodo no princípio do neiros de Rochdale (Manchester, 1844).
self-help. Nesse sentido, encorajavam as Este se internacionalizou rapidamente,
associações de ajuda mútua entre os tra- alcançando todas as latitudes no início
balhadores. Embora seus posicionamen- do século XXI, pois a Aliança Cooperati-
tos não fossem absolutamente idênticos, va Internacional (ACI) reúne mais de 750
podem-se relacionar a essa escola liberal milhões de cooperados, distribuídos nos
duas personalidades maiores da história cinco continentes (BIRCHALL, 1997). Além
do pensamento econômico: Walras, pela disso, a cooperação tornou-se uma grande
importância dada às associações popu- árvore, cujos galhos continuam se ramifi-
lares, e Mill, pela defesa da superação cando em cooperativas agrícolas, sociais,
do assalariado mediante a associação de de poupança, de crédito, de consumo, de
trabalhadores. seguros, de distribuição, de trabalhadores,
Poderiam ainda ser citadas outras cor- de habitação e outras (DESROCHE, 1976).
rentes de pensamento, como o “solidaris- Este primeiro componente da economia
mo” de Gide, porém, a lição maior é que, social também pode associar-se a diferen-
na Europa, a economia social moderna tes tipos de iniciativas que, sobretudo nos
forjou-se no cruzamento das grandes ide- países do Sul, não têm um estatuto ou um
ologias do século XIX. Nenhuma delas, rótulo explicitamente cooperativo, mas
assim, pode reivindicar a paternidade que se referem mais ou menos às mesmas
exclusiva do conceito. regras e práticas. Esse é o caso principal-
mente de inúmeros sindicatos ou uniões
3. De modo amplo, há duas grandes de produtores, de certos grupos de cam-
maneiras de se descrever, no início do poneses, de artesãos ou pescadores, de
século XXI, a economia social, cuja defi- numerosas caixas de poupança e “credit
nição mais adequada provém da combina- unions”, além de organizações cujo nome
ção entre ambas. A primeira maneira con- remete somente a uma língua ou cultu-
siste em identificar as principais formas ra locais (DEVELTERE, 1998). Nos países
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industrializados, certas empresas que não lizados, as associações representam de 5 a
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se constituem sob forma cooperativa, mas 15% do emprego assalariado, e o trabalho
cuja finalidade é social, também podem voluntário por elas mobilizado pode atin-
ser assim classificadas. gir até um quarto dos cidadãos (SALAMON
As sociedades de tipo mutualista, ou de et al., 1999).
ajuda mútua, existem em quase todo o Em escala européia, formou-se, nos
lugar e há muito tempo. Institucionali- anos 1990, uma “Conferência permanen-
zaram-se progressivamente e tornaram- te das cooperativas, mutualidades, asso-
se, em diversos países industrializados, ciações e fundações” (CEP-CMAF), que
atores importantes dos sistemas de segu- pretende representar o conjunto da eco-
ridade social (DREYFUS e GIBAUD, 1995). nomia social junto a instâncias da União
Em uma perspectiva Norte-Sul, o compo- Européia. Essa iniciativa sugere que as
nente mutualista compreende também fundações, instituições privadas não-cen-
um grande número de organizações com tradas apenas no lucro, constituem um
nomes muito variados, que respondem quarto componente da economia social.
à necessidade de as comunidades locais Pode-se indagar se essa questão não deve
organizarem elas próprias uma previdên- ser colocada em termos diferentes para
cia coletiva. Isso ocorre particularmente o caso das fundações implementadas
nos países cujos sistemas nacionais de por organizações dos outros três com-
seguridade social são incipientes e cobrem ponentes da economia social e no caso
somente pequena parcela da população. das fundações ligadas a grandes grupos
Essas organizações podem mutualizar ris- capitalistas, cujo fundamento de tipo
cos tão diversos quanto aqueles ligados à associativo não é percebido, nem mesmo
saúde (pagamento do tratamento, compra indiretamente.
de medicamentos, despesas de hospitali- A segunda maneira de se caracterizar
zação), ao óbito e aos funerais, ou a pescas a economia social consiste em destacar os
e colheitas insuficientes. traços comuns das empresas e organiza-
As organizações associativas respaldam-se ções que ela agrupa. Esses traços situam-
no fato de a liberdade de associação ser se essencialmente, de um lado, nas fina-
formalmente reconhecida na maioria dos lidades da atividade e, de outro, em seus
países do mundo, expressando-se sob for- modos de organização. Entre diversas
mas jurídicas muito variadas e em ambien- formulações possíveis dessas característi-
tes mais ou menos favoráveis. Na prática, cas próprias à economia social, uma delas
fazem parte deste terceiro componente combina diferentes fontes, pretendendo
da economia social todas as outras formas ser concisa e elegendo quatro princípios
de livre associação de pessoas que visam à maiores: a) finalidade de prestação de
produção de bens ou serviços, sem haver serviços aos membros ou à coletividade,
objetivo principal de lucro. É evidente sendo o lucro secundário; b) autonomia
que, neste caso, também as denominações de gestão; c) controle democrático pelos
são extremamente diversificadas e as rea- membros; d) primazia das pessoas e do
lidades de campo são muitas vezes maci- objeto social sobre o capital na distribui-
ças. Na maior parte dos países industria- ção dos excedentes.
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Ao eleger-se como finalidade a presta- as grandes organizações, quase sempre
159
ção de serviços, insiste-se no fato de a eco- antigas e fortemente institucionaliza-
nomia social ser um serviço prestado aos das, a uma “nova economia social” ou a
membros diretamente envolvidos na ativi- uma “economia solidária” emergente.
dade ou a uma coletividade mais ampla, e Esta seria a única portadora de inovações
não um instrumento de relação financei- sociais e efervescências democráticas ao se
ra para o capital investido. A retirada de abordarem problemas em destaque neste
eventuais excedentes constitui então um início de século: desenvolvimento dos
meio para se realizar esse serviço, mas não serviços de proximidade, reabilitação dos
a motivação principal da atividade. bairros pobres, auxílio às pessoas idosas
A autonomia de gestão visa principal- ou em dificuldades, comércio justo, finan-
mente distinguir a economia social da ças éticas e solidárias, agricultura susten-
produção de bens e serviços dos pode- tável, gestão ambiental dos resíduos ou
res públicos. De fato, as atividades eco- inserção profissional dos pouco qualifi-
nômicas conduzidas por estes não dis- cados. Note-se que, neste último campo,
põem geralmente de total autonomia, dado o grande número de iniciativas, é
motor essencial de qualquer dinâmica possível confundir-se o segmento “econo-
associativa. mia social de inserção” com o conjunto da
A democracia na instância de con- economia social, infinitamente mais vasto
trole remete teoricamente à regra “uma (DEFOURNY, FAVREAU e LAVILLE, 1998).
pessoa, um voto” (e não “uma ação, um Embora existam diferenças evidentes
voto”) ou, ao menos, a uma estrita limi- entre as gerações de economia social, deve-
tação do número de votos por membro se lembrar que a economia social mais anti-
nos órgãos soberanos. Para além da diver- ga não compõe um conjunto homogêneo:
sidade das práticas efetivas, ela ressalta, ela é, antes, constituída por vagas sucessi-
acima de tudo, o fato de que a qualidade vas de empresas que aceitaram os desafios
de membro e a participação nas decisões de sua época (DEMOUSTIER, 2001). Ademais,
não dependem primeiramente, como nas foram frequentemente seus êxitos e seu
empresas clássicas, da importância do crescimento que engendraram uma neces-
capital detido. sidade maior de institucionalização, ques-
Enfim, o quarto princípio recobre prá- tionando algumas vezes, mas nem sempre,
ticas muito variadas entre as empresas de os princípios fundadores. Enfim, é cada
economia social. São elas remuneração vez mais frequente que organizações tra-
limitada do capital, distribuição dos exce- dicionais estabeleçam parcerias significa-
dentes entre os trabalhadores ou entre os tivas com jovens iniciativas, por exemplo,
membros-usuários sob forma de dividen- em torno do que se chama, no Quebec, de
dos, reserva de lucros para o desenvolvi- desenvolvimento econômico comunitário
mento da atividade ou sua alocação ime- (FAVREAU e LÉVESQUE, 1996).
diata para fins sociais, entre outras. Não obstante as ressalvas, esse pri-
meiro eixo dos debates tem o mérito de
4. No âmbito da economia social, é fre- destacar tensões que sempre agitaram a
quente haver a tendência a se oporem economia social, pois ela precisa garantir
E
permanentemente uma dupla ancoragem. das mutualidades, em nome da “imposi-
160
Ela deve partir da sociedade civil e de seus ção de não-distribuição dos lucros”, que
movimentos para manter seu impulso e supostamente se impõe a toda organiza-
sua capacidade criadora; em contraparti- ção “non-profit” (NYSSENS, 2000). A noção
da, deve inserir-se resolutamente na pai- de economia social, em contrapartida,
sagem socioeconômica, ousando, quando é mais ampla, pois não exclui a busca de
possível, passar da experimentação a prá- lucro se sua alocação e os modos de ges-
ticas mais amplas e forçosamente mais tão da empresa forem não-capitalistas.
estruturadas. A abordagem “economia social” melhor
Mais fecundos, sem dúvida, são os con- demonstra o assentamento dos compo-
frontos da abordagem “economia social” nentes dessa economia em uma mesma
com outras grades de análise, que se reve- matriz histórica, ela própria intimamente
lam, de fato, mais complementares do que ligada às especificidades do modelo social
concorrentes. Diferentes autores desen- europeu. Essa abordagem também parece
volveram representações “tripartites” do mais fecunda sob uma perspectiva Norte-
terceiro setor, salientando, em numerosas Sul, na medida em que a melhoria das con-
iniciativas, as interações verificadas entre dições de vida em muitos países implica,
três grandes categorias de atores (as famí- muitas vezes, a divisão dos lucros entre os
lias, as empresas e o Estado) e a combina- membros de cooperativas e outros grupos
ção entre três modos de troca e tipos de de produtores. Além disso, ela também
recursos (não-mercantis, mercantis e não- permite indicar condições de surgimen-
monetários). A maior contribuição dessas to e desenvolvimento que, mesmo não
abordagens é ressaltar as dinâmicas socio- sendo realmente idênticas, revelam con-
políticas vigentes no terceiro setor, assim vergências surpreendentes entre a abun-
como suas diferentes evoluções possíveis dância associativa do Norte e a escalada
ao longo do tempo (ver, em particular, das sociedades civis no Sul e a multiplica-
EVERS e LAVILLE, 2004). ção de suas iniciativas socioeconômicas
Em outro registro, há os trabalhos (DEFOURNY e DEVELTERE, 1999).
recentes sobre o conceito de empresa
social, principalmente os da rede euro-
péia EMES (BORZAGA e DEFOURNY, 2001). B IBLIOGRAFIA
Estes revelam lógicas empresariais, toma- BIRCHALL, J. (1997), The international co-operative move-
das de riscos econômicos e processos de ment, Manchester: Manchester University Press.
inovação cada vez mais presentes, embora BORZAGA, C.; DEFOURNY, J. (Dir.) (2001), The emergence
pouco se assemelhem à abordagem clássi- of social enterprise, London: Routledge.
ca da economia social. DEFOURNY, J.; DEVELTERE, P. (1999), Origines et con-
Conquanto a literatura sobre o “non- tours de l’économie sociale au Nord et au Sud. In:
DEFOURNY, J.; DEVELTERE, P.; FONTENEAU, B. (Dir.),
profit sector”, rica e muito internacional,
L’économie sociale au Nord et au Sud. Bruxelles: De
esclareça certos componentes da econo- Boeck.
mia social (principalmente as associações DEFOURNY, J.; FAVREAU, L.; LAVILLE, J.-L. (Ed.) (1998),
e as fundações), ela ignora completamen- Insertion et nouvelle économie sociale, un bilan internatio-
te as cooperativas e ao menos uma parte nal, Paris: Desclée de Brouwer.
E
DEFOURNY, J.; MONZÓN CAMPOS, J. L. (Ed.) (1992), Éco- FAVREAU, L.; LÉVESQUE, B. (1996), Développement éco-
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E
ECONOMIA SOLIDÁRIA res desempregados e via serviços de aten-
162 Jean-Louis Laville ção prestados a pessoas em desamparo.
Luiz Inácio Gaiger Graças à sua inserção social e comunitária,
a economia solidária cumpre uma série de
funções em domínios como saúde, educa-
1. A economia solidária é um conceito ção e preservação ambiental. A solidarie-
amplamente utilizado em vários conti- dade é ainda estimulada por meio do enga-
nentes, com acepções variadas que giram jamento cidadão em questões de interesse
ao redor da idéia de solidariedade, em comum. O fato conduz à criação de espaços
contraste com o individualismo utilita- públicos de proximidade, cuja autonomia em
rista que caracteriza o comportamento relação aos espaços de poder instituídos
econômico predominante nas socieda- contribui para sedimentar as bases de um
des de mercado. O termo foi cunhado na modelo democrático dialógico, no qual o
década de 1990, quando, por iniciativa sistema representativo expõe-se à pressão
de cidadãos, produtores e consumidores, legítima de mecanismos constituídos de
despontaram inúmeras atividades econô- participação direta.
micas organizadas segundo princípios de Na entrada do séc. XXI, a aceleração
cooperação, autonomia e gestão demo- dos movimentos do capital, que se des-
crática. As expressões da economia soli- prendem de sua natureza social e de seus
dária multiplicaram-se rapidamente, em compromissos com a coletividade, choca-
diversas formas: coletivos de geração de se com a satisfação decrescente das neces-
renda, cantinas populares, cooperativas sidades humanas e com a perpetuação da
de produção e comercialização, empresas pobreza em amplas regiões do planeta.
de trabalhadores, redes e clubes de troca, Encontrar respostas diante dessas muta-
sistemas de comércio justo e de finanças, ções da economia e da política é uma tare-
grupos de produção ecológica, comunida- fa crucial. A reconstituição das condições
des produtivas autóctones, associações de objetivas e subjetivas de transformação
mulheres, serviços de proximidade, etc. social requer uma atenção redobrada às
Essas atividades apresentam em comum iniciativas que contenham, mesmo em
a primazia da solidariedade sobre o inte- germe e em pequena escala, a capacida-
resse individual e o ganho material, o que de de instituírem outras formas de vida,
se expressa mediante a socialização dos por estarem imbuídas do valor da justiça,
recursos produtivos e a adoção de crité- de um ethos redistributivo e de um ensejo
rios igualitários. de humanização. Em particular, importa
A solidariedade é promovida entre os valorizar as experiências que nascem da
membros dessas iniciativas, que estabele- auto-organização, que defendem os direi-
cem entre si um vínculo social de recipro- tos básicos do trabalho e que apostam na
cidade como fundamento de suas relações associação e em soluções coletivas, for-
de cooperação. Ao mesmo tempo, a soli- mando o lastro de experiências e de con-
dariedade é estendida aos setores sociais vicções morais e intelectuais indispensá-
expostos a maiores necessidades, princi- veis à construção de novos rumos para a
palmente via mobilização de trabalhado- sociedade.
E
2. A economia solidária evoca a longa his- a constituição dos direitos cidadãos e o
163
tória associativa dos trabalhadores, inicia- aprofundamento da democracia. Ao Sul e
da no começo do século XIX. Desde então, ao Norte, esse legado explica a amplitude
essa vertente tem cumprido um papel de da economia solidária e sua força de con-
alargamento da experiência humana, ao vergência entre experiências, demandas
manter vigentes outros princípios de pro- e expectativas de inúmeros segmentos
dução de bens, de organização do traba- sociais, com suas tradições de luta e de
lho e de circulação da riqueza, distintos da organização.
racionalidade estrita do capital. Embora Em seus inícios, a sociedade moder-
tenha conhecido reveses e fases de refluxo, na orientada à produção de mercadorias
essa história exprime a impossibilidade de parecia conter um fundamento adequado
muitos trabalhadores viverem segundo as à nova ordem social, em razão da previ-
oportunidades oferecidas pelo mercado e sibilidade e constância de seu princípio
conforme a sua sociabilidade intrínseca. organizador, que viria a suplantar definiti-
Manifesta, principalmente, a persistência vamente a ordem pregressa. Não obstan-
de sistemas de vida que não seccionam as te, a economia de mercado não cumpriu
relações econômicas das relações sociais tais promessas, ao contrário, sua difusão
e não se moldam segundo princípios engendrou problemas sociais de contor-
utilitaristas. nos dramáticos, tais foram as disparidades
Nos países periféricos, sempre sub- entre riqueza e miséria. Ativistas sociais,
sistiram práticas econômicas escoradas intelectuais e operários propugnaram um
em laços de reciprocidade, nas quais a mecanismo de coordenação oposto à lógi-
produção material subordina-se a neces- ca do interesse, por intermédio do vínculo
sidades coletivas e guarda um sentido associativo, contraído voluntariamente e
primordialmente social. Sobretudo a cultivado mediante atividades econômi-
partir da economia popular, ganharam cas. Fundamentada na igualdade, a asso-
forma experiências genuínas na Améri- ciação reforçaria o poder de ação coletiva
ca Latina, como alternativas para traba- dos trabalhadores, na defesa de mudanças
lhadores rurais e urbanos, indígenas e institucionais.
imigrantes que valorizaram as práticas Entre os principais antecedentes des-
autóctones de ajuda mútua e fizeram seu sa época, destaca-se o cooperativismo
sentimento comunitário prevalecer con- operário formado nas lutas de resistência
tra a desordem introduzida pelo capital. contra a Revolução Industrial. Um dos
Desde então, mesmo sob formas mitiga- seus precursores, Robert Owen, foi pos-
das, a cooperação permaneceu um ele- sivelmente o mais importante iniciador
mento estruturante da vida econômica do movimento socialista e sempre tim-
de parcelas expressivas da população. Na brou em testar suas proposições na práti-
Europa, a extensão alcançada pela Eco- ca social e econômica. Primeiramente, na
nomia Social reflete a importância atri- indústria têxtil em New Lanark; depois, na
buída ao primado das pessoas e de suas colônia cooperativa de New Harmony, nos
coletividades em face dos objetivos de Estados Unidos; mais tarde, à testa de
acumulação econômica, do que resultou potente movimento sindical, pregando a
E
formação de cooperativas para tomar os nuaram-se pouco a pouco, enquanto a
164
mercados capitalistas; por fim, na criação economia de mercado experimentava um
do Labour Exchange, predecessor dos siste- crescimento inédito e ganhava legitimida-
mas e clubes de troca estabelecidos desde de como via de acesso a uma sociedade de
os anos 1980, em países do Norte e do Sul. abundância. Quando a miséria produzida
Outro antecedente importante da pelo desenvolvimento industrial capita-
economia solidária são as cooperativas lista tornou inadiável uma reforma social,
de consumo. O exemplo mais célebre é o sob pressão operária o Estado veio a pro-
da Sociedade dos Pioneiros Equitativos mulgar regras voltadas à paulatina inclu-
de Rochdale, de 1844. Em poucas déca- são dos trabalhadores. Com o sufrágio
das de expansão, os Pioneiros formaram universal, o Estado foi reconhecido como
um conglomerado com mais de 10.000 depositário do interesse geral, à base de
sócios em sua fase áurea. No fim do sécu- um regime institucional que cauciona a
lo XIX, o cooperativismo tornou-se um economia de mercado e compensa as desi-
grande movimento social: ao lado das gualdades mediante a ação pública redis-
cooperativas de consumo e de produção, tributiva. Até a segunda metade do séc.
constituíram-se as cooperativas de cré- XX, a reconciliação da classe trabalhadora
dito, idealizadas por Schulze-Delitsch e com o assalariamento foi estimulada pelo
Raiffeisen, na Alemanha, com a adoção pleno emprego, que reinou durante os
deliberada dos princípios de Rochdale. trinta anos posteriores à Segunda Guerra.
Novas modalidades de cooperativas de O direito de cidadania, outorgado a todos
crédito foram criadas por Luzzatti, na Itá- os que vivem do próprio trabalho, condu-
lia, e por Desjardin, no Québec. ziu os movimentos sociais a centrarem sua
É oportuno recordar o movimento ação estratégica nas relações de classe e
das comunas, cuja peculiaridade consis- na luta pelo Estado. Reconciliados com o
te em praticarem a solidariedade simul- assalariamento, a maioria dos trabalhado-
taneamente na produção, no consumo, res perdeu o entusiasmo e o interesse pela
na poupança e em todas as áreas da vida autogestão.
social. A comuna é antes de tudo uma No séc. XX, com poucas exceções, o
aldeia, que desempenha em pequena cooperativismo de produção e consumo
escala todas aquelas funções. Seu igua- integrou-se paulatinamente à econo-
litarismo, levado às últimas consequên- mia de mercado e converteu-se em uma
cias, exige um altíssimo grau de confiança modalidade de empresa participativa, sem
e afeição entre os membros. As comunas a antiga unidade entre capital e trabalho.
fizeram história, a exemplo dos Kibbut- Desprestigiado, o associativismo veio a
zim, em Israel. Atualmente, comunidades institucionalizar-se, com a missão de pre-
similares apresentam-se motivadas por encher funções sociais complementares e
aspirações a uma sociedade igualitária, subalternas, repassadas às mútuas e asso-
engajando-se em movimentos pacifistas ciações, cuja especialização progressiva
e ambientalistas. redundaria na fragmentação desse setor
As ações pioneiras do séc. XIX sofre- de atividades e na perda de seu ideário
ram, na Europa, forte repressão e ate- original. Entrementes, ideais similares
E
alimentaram ondas associativas em outros zindo situações de maior exploração dos
165
lugares do globo, em particular na Amé- trabalhadores, quanto eliminou parte
rica Latina, bem como a introdução de do trabalho meramente físico, sina do
sistemas coletivos com graus variados de operariado, e introduziu métodos par-
autogestão, em países do Leste e em ex- ticipativos de gestão, que estimularam
colônias africanas. O êxito de tais intentos aspirações a mais autonomia no mundo
parece ter sido condicionado por seu nível do trabalho. Em paralelo, alterações ope-
de atendimento a necessidades premen- radas no modo de vida e na eficácia das
tes, combinado ao grau de liberdade de instituições incentivaram novas formas
seus protagonistas e às suas aspirações por de atuação desde os anos 1960. Surgiram
modos de vida baseados na autonomia e as questões do cotidiano, da preservação
na participação. do ambiente natural, da participação dos
Esses fatos justificam o longo intervalo usuários na concepção e funcionamen-
ocorrido entre os antecedentes históricos to dos serviços públicos, das relações de
da economia solidária e sua revivescência gênero ou, mais amplamente, do reco-
ao final do séc. XX. Nos anos 1980, teve nhecimento dos indivíduos como sujei-
início a retomada da maioria das conces- tos de suas singularidades e direitos. No
sões feitas ao proletariado nas décadas lugar do militante portador de uma ide-
anteriores. O mercado financeiro tornou- ologia de transformação total da socieda-
se hegemônico e passou a impor sucessi- de, fortemente engajado em estruturas
vos arrochos fiscais e monetários, conten- partidárias e de classe, deu-se uma len-
do severamente o ritmo de crescimento ta efervescência associativa, motivando
das economias centrais. O livre comércio envolvimentos específicos em prol de
e a movimentação irrestrita de capitais mudanças limitadas, mas concretas.
passaram a permitir, às empresas, transfe- O ressurgimento atual do associa-
rir gradualmente suas linhas de produção tivismo relaciona-se também a outras
para países com baixos salários e trabalha- mudanças gerais sucedidas na política. A
dores desprotegidos. As reformas fiscais derrocada da experiência socialista colo-
diminuíram o montante de gastos sociais cou em xeque as pautas de intervenção
e afetaram as políticas redistributivas. As das correntes e organizações. Uma vez
classes dirigentes converteram-se ao neo- superado um momento de perplexidade
liberalismo, arrastando consigo os meios e desorientação, o fato contribuiu para
de comunicação e parte dos partidos tra- desobstruir o caminho em direção a novas
dicionais da classe trabalhadora. experiências sociais e a novos esquemas de
Embora motivada por esse cenário análise e formulação estratégica, repercu-
regressivo, a gênese da economia soli- tindo sobre os padrões de militância já em
dária explica-se por um conjunto mais vias de transformação. Problemas como a
complexo de circunstâncias. Já os efeitos convivência entre a economia solidária e
do desenvolvimento tecnológico pós- a economia de mercado deixaram de ser
fordista mostra-se ambivalente para os apenas teóricos, à medida que forças de
trabalhadores: tanto desembocou no esquerda chegaram ao poder, a exemplo
regime da acumulação flexível, produ- da França e de países da América Latina,
E
e viram-se compelidas a produzir respos- como meio para a consecução de outros
166
tas coerentes com o defendido em seus fins. As novas tensões dialéticas entre os
programas. indivíduos e sua coletividade de pertença
A gênese das iniciativas de economia dão vigor a uma identidade propriamente
solidária repousa ainda em fatores mais social, no sentido de estar referida a aspi-
específicos, como o grau de compatibili- rações de indivíduos-em-relação e a uma
dade entre as práticas costumeiras de eco- visão que tende a integrar as dimensões da
nomia e os formatos associativos, o passa- vida humana.
do de cooperação das categorias sociais A tendência da economia solidária a
envolvidas e a presença de lideranças dinamizar redes de interação participa-
genuínas. Aquelas experiências que evo- tivas empresta um conteúdo político à
luíram, dando provas de viabilidade, entu- inserção local das suas iniciativas. Esten-
siasmaram intelectuais e ativistas. O clima didas ao seu entorno, as práticas de auto-
de franco otimismo levou à rápida pro- gestão promovem sistemas mais amplos
fusão de entidades, movimentos e redes, de reciprocidade, nos quais as vivências
articulando as iniciativas e ampliando as concretas de gestão do bem comum con-
possibilidades de ação política. ferem um novo valor às noções de justiça
e de interesse público. A capacidade de
3. O avanço econômico das experiências produzir mudanças, a partir da livre asso-
realiza-se mediante a conjugação de três ciação, depende ainda das articulações
tipos de recursos: aqueles provenientes da construídas com o poder público, único
reciprocidade entre os membros, exercida foro em condições de legislar sobre nor-
via prestações ao coletivo livres de contra- mas redistributivas em favor da equidade.
partidas; os recursos públicos, angariados Mediante sua projeção na esfera pública,
do Estado com fundamento no princípio por meio da participação cidadã, a econo-
da redistribuição; e os recursos do mer- mia solidária qualifica-se como um ator da
cado, obtidos nas relações de troca. Esses solidariedade democrática.
agenciamentos simultâneos levam a eco- Não obstante, persistem sérios desa-
nomia solidária a ser partícipe de uma eco- fios. Um risco fatal das iniciativas é a
nomia plural, constituindo-se suas iniciati- perda do seu espírito associativo e sua
vas em tipos híbridos, entre as economias consequente degeneração. Não faltam pre-
pública e privada, como exemplificam as cedentes, a começar por Rochdale, cujos
empresas sociais. sócios resolveram abolir os últimos res-
O agir coletivo da economia solidária, quícios da participação operária em suas
consubstanciado na autogestão, institui cooperativas de produção, convertidas
novos protagonistas no mundo de trabalho desde 1864 em empresas convencionais,
e nos embates da cidadania, em resposta a embora de propriedade dos cooperados. A
anseios de bem-estar, reconhecimento e autogestão também foi abandonada pelas
vida significativa. Quando os experimen- cooperativas de consumo e de comerciali-
tos coletivos convertem-se em comunidades zação agrícola, administradas como firmas
de trabalho, instituem uma racionalidade capitalistas por quadros contratados pela
na qual a atividade econômica funciona direção, em detrimento da participação
E
e do poder decisório dos sócios. As coo- As alternativas constroem-se nas dia-
167
perativas de produção, sendo exceção à léticas do próprio sistema que combatem.
regra, em compensação cresceram menos. Por não se submeter à lei férrea da acumu-
O próprio êxito econômico das cooperati- lação ampliada, a economia solidária pode
vas teria ensejado sua absorção pelo regi- expandir-se em setores de baixo interesse
me capitalista, fazendo-as ceder ao iso- para o mercado, mas de importância social
morfismo institucional, resultante de fatores inquestionável, como os serviços de proxi-
como o incremento dos custos de transação, midade e os sistemas locais de produção.
que acomete as organizações complexas Nesse terreno, segundo a lição das experi-
dependentes de sistemas descentraliza- ências que alcançaram mais dinamismo, a
dos de decisão. economia solidária tem a possibilidade de
Contra-exemplos de cooperativas de aprofundar sua inserção e encetar redes
grande porte, como Mondragón, demons- mais amplas de cooperação econômica,
tram que o simples crescimento não basta garantindo adicionalmente outros fatores
para operar essa mudança. A autogestão de qualidade de vida. No Sul, a questão
perde força em razão basicamente do desin- primordial consiste em assegurar as con-
teresse dos próprios membros que a deve- dições materiais indispensáveis à sobrevi-
riam praticar. Uma questão de preferências, vência daqueles que jamais foram efetiva-
que se define segundo ao menos dois tipos mente integrados à economia de mercado
de circunstâncias. Os fatores de pressão e ao gozo dos direitos sociais, mediante
negativa minam a eficácia das modalidades alternativas de trabalho, renda e serviços
habituais de sobrevivência ou de garantia ancoradas na matriz popular associativa
de bem-estar para uma dada população, e nas suas lutas de resistência. Ao Norte,
repelindo-as e impondo a necessidade de trata-se, em suma, de enfrentar a crise
buscar alternativas. Por sua vez, fatores de do Estado-providência, a obsolescência e
pressão positiva impelem as novas escolhas a falta de dispositivos eficazes de prote-
em determinada direção, refletindo uma ção social, de reagir à exclusão a partir da
condição de vontade; no caso da economia capacidade de iniciativa e de engajamen-
solidária, uma vontade associada à supe- to solidário. Do ponto de vista sistêmico,
ração do trabalho alienado e da sociabili- ambas as perspectivas demandam uma
dade restrita do utilitarismo. É visível que instituição social da economia que a subor-
as ondas associativas, em seus momentos dine às prioridades coletivas, sancionadas
de expansão, relacionam-se a momentos sobre fundamentos éticos por meio de
históricos de desamparo e insegurança uma deliberação política.
acentuados, diante da erosão e da inviabili- A economia solidária é mais rica do
dade de certas formas de vida. Enquanto a que a sua face conhecida, o que torna fun-
economia solidária mantiver seu poder de damental ampliar e aprofundar a sua apre-
atração e suas iniciativas assumirem uma ensão, para melhor conceituá-la e avaliar
racionalidade própria, na qual passa a ser suas potencialidades. Ela conflui de vários
lógico cooperar com os outros, as chances países para uma perspectiva altermundia-
de degeneração serão menores. Esse desfe- lista, notabilizada nas edições do Fórum
cho não é, portanto, uma fatalidade. Social Mundial. Insere-se então no debate
E
pulsante em torno das possibilidades de LAVILLE, J.-L.; FRANÇA FILHO, G.; MEDEIROS, A.; MAGNEN,
168 J.-P. (Org.) (2006), Ação pública e economia solidária.
construção de alternativas. Talvez mais
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na qual o desenvolvimento social não seja
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E
EFICIÊNCIA re-se essencialmente à exigência de otimi-
Luiz Inácio Gaiger 169
zar-se a relação custo/benefício, pela deci-
siva incidência desta sobre a rentabilidade
1. O conceito de eficiência diz respeito, ou a taxa de lucro dos negócios. Nesses
genericamente, ao grau de efetividade dos termos, a eficiência é compreendida como
meios empregados, em um dado proces- o equacionamento de variáveis reduzidas
so, para alcançar-se um objetivo ou gerar- ao plano econômico, muito embora com-
se o resultado visado; em suma, concerne portem elementos que transcendem essa
à relação entre meios e fins. Não obstante, esfera ou possuem outra natureza, como
quando se trata de processos sociais que o trabalho e os demais agenciamentos
mobilizam indivíduos e causam efeitos sociais da estratégia produtiva em ques-
de profundidade e amplitude variáveis na tão. Classicamente, o custo representa
sociedade, a análise da eficiência não pode perdas de capital inevitáveis no processo
abster-se de considerar a natureza dos produtivo, relativas a consumo de maté-
fins buscados, o que descarta uma visão rias-primas, depreciação de máquinas,
meramente instrumental do problema. tratamento de efluentes, remunera-
Ademais, é necessário contabilizar tanto ção da força de trabalho, impostos, etc.
o dispêndio de recursos assumidos pelos (MILLER, 1981), o que implica a necessida-
indivíduos e pela organização diretamen- de de reduzi-lo, sob o prisma dos inves-
te implicada, quanto os custos indiretos, tidores. Dada a separação entre estes e
revertidos para a sociedade ou transferi- a massa dos trabalhadores, as decisões
dos para gerações futuras. Por conseguin- sobre eficiência são uma prerrogativa do
te, em geral e nos processos de produção capital, nos limites dos seus fins intrínse-
econômica em particular, a eficiência deve cos e como parte da sua lógica de reprodu-
ser entendida sob uma visão sistêmica e ção ampliada.
integrada às dimensões não-econômicas. A eficiência capitalista não consi-
Ela compreende a capacidade de os pro- dera, senão utilitariamente, benefícios
cessos e meios utilizados promoverem a sociais gerados pela ação econômica, tais
qualidade de vida das pessoas que deles como postos de trabalho, valorização do
se valham, bem como propiciar mais bem- ser humano, preservação do ambiente
estar e segurança social. A eficiência com- natural e qualidade de vida. Ela despre-
preende a materialização de benefícios za importantes questões, a exemplo do
sociais – e não meramente monetários consumo de recursos não-renováveis e da
ou econômicos –, a geração de efeitos transferência de custos para o exterior da
benéficos ao entorno em que se situem as empresa ou para as gerações futuras. Das
iniciativas em questão, a garantia de lon- ações econômicas guiadas pelo preceito
gevidade para estas e a concretização de de rentabilidade máxima, resultam, em
externalidades positivas sobre o ambiente boa medida, as principais características
natural, em favor de sua sustentabilidade. negativas das economias capitalistas: pro-
dução sistemática de desigualdades de
2. No âmbito das preocupações ditadas recursos e de poder; reiteração de formas
pela economia capitalista, a eficiência refe- de sociabilidade empobrecidas, baseadas
E
antes no benefício pessoal que no bem- materiais, socioculturais e ético-morais
170
estar coletivo; e exploração crescente dos dos indivíduos e da coletividade, imedia-
recursos naturais em nível global, amea- tos ou de longo prazo. A racionalidade em
çando as condições físicas de vida na Ter- questão compõe-se de valores dirigidos à
ra (SANTOS, 2002). Com tal sentido, a efi- qualidade de vida do grupo diretamente
ciência não resolve esses problemas, mas implicado e à garantia de melhorias e de
tende a agravá-los. segurança humana para a sociedade. Assim
É indispensável contestar a racio- concebida, a eficiência consiste, pois, na
nalidade econômica estrita que orienta capacidade de se gerarem esses resulta-
as decisões empresariais, bem como os dos por meio da oferta de bens e serviços
modelos de desenvolvimento sob padrões com qualidade referida a seu valor de uso,
capitalistas, que subordinam os temas mediante estratégias produtivas e pro-
de naturezas social, cultural e ética aos cedimentos de controle que assegurem
fins e à lógica da acumulação (FRIED- a perenidade de tais processos e a oferta
MANN, 1992). Há que se considerar as permanente daqueles benefícios.
consequências da finalidade estritamente Sob essa ótica, a eficiência pode ser
lucrativa da empresa capitalista, da racio- incluída no conjunto de meios que, além
nalidade estratégica que a sustenta, do da reprodução simples dos indivíduos
laivo mercantil que imprime ao trabalho e da preservação de sua vida biológica e
e da sua limitada aptidão para mobilizar social em níveis moralmente aceitáveis,
a criatividade e a comunidade. Por outra promovam a reprodução ampliada da vida.
via, mais ampla, cabe admitir que o estilo Esse desenvolvimento apresenta-se durá-
ocidental de vida, assim construído, vê- vel e sustentável no tocante à qualidade
se condenado pela sua incapacidade de de vida que contempla, além dos aspectos
responder às exigências de qualidade de materiais, o nível consciente dos desejos,
vida, de reprodução normal dos ecossiste- o acesso igualitário a um sistema de justi-
mas naturais e de segurança humana. Pro- ça e o abrigo contra a repressão política, as
blemas dessa ordem requerem um novo violências física e psíquica e outras fontes
consenso social, firmando mudanças nos de sofrimento. Considerar esse conceito
valores, nos comportamentos e no plano como algo primordial significa reverte-
institucional, de modo a estabelecer uma rem-se hierarquias, deslocando os equi-
nova ação antrópica (CARPI, 1997). líbrios macroeconômicos de sua posição
Uma visão alternativa de eficiência determinante e alinhando os equilíbrios
alia-se indissoluvelmente à discussão psicossociais, os equilíbrios sociais que
sobre a eficácia da ação empreendida, facilitam a convivência pacífica e, por fim,
isto é, sobre os fins a serem alcançados e os equilíbrios naturais (CORAGGIO, 1999,
as possibilidades de atingi-los. Tais fins, p. 136-141).
longe de se restringirem ao faturamento Esta última ênfase põe em xeque a pró-
e ao crescimento econômico ou, ainda, pria idéia de crescimento econômico, ou
a uma profícua relação mercantil entre de expansão da base física da economia,
produtores e consumidores, vinculam-se pois ela virtualmente impede, ou torna
à satisfação de necessidades e a objetivos mais improvável, a preservação do equilí-
E
brio do planeta. Com certeza, é impossível entre capital e trabalho elimina a parce-
171
generalizar o modelo ocidental de produ- la do excedente antes apropriada pelo
ção e consumo (CAMACHO, 1996; SACHS, estamento patronal para fins privados. A
1998), daí ser necessário, em última ins- destinação desse excedente fica sob arbí-
tância, reconsiderar o que se entenda por trio dos trabalhadores, como acréscimo à
necessidades humanas, especialmente as remuneração do trabalho ou como fundo
materiais (ESCOBAR, 1995). A economia de investimento. Esse procedimento é
social e solidária afirmará seu caráter con- também vantajoso à empresa, ao redu-
temporâneo e alternativo à medida que zir custos com estruturas de controle e
se mostrar capaz de prover a reprodução supervisão e com estímulos pecuniários à
da vida, além de qualificar os processos de produtividade, em suma, com as diversas
geração e socialização de bem-estar, sem estratégias da empresa capitalista, fada-
necessariamente incrementá-los a ponto das a recompor continuamente o espírito
de comprometer os recursos humanos e corporativo sempre que situações críticas
naturais que os sustentam. fazem aflorar suas contradições estrutu-
Sob o ponto de vista dos benefícios rais de classe. Ademais, a existência de
econômicos e extra-econômicos visados, a um vínculo direto entre a performance do
eficiência dos empreendimentos de outra empreendimento e benefícios individuais
economia, social e solidária, repousa na auferidos, ao lado da partilha dos valores e
sua racionalidade específica, determina- objetivos da organização, tende a reforçar
da pela apropriação coletiva dos meios de o zelo e a atitude de colaboração dos tra-
produção, pela autogestão e pelo trabalho balhadores, sabidamente indispensáveis
associado. A cooperação na gestão e no a qualquer empresa e geralmente mais
trabalho, em lugar de contrapor-se aos eficazes do que as estratégias patronais
imperativos de eficiência, atua como vetor de convencimento ou coação (COUTROT,
de racionalização do processo produtivo, 1999). O interesse dos trabalhadores em
com efeitos tangíveis e vantagens reais garantir o sucesso do empreendimento
comparativamente ao trabalho individual estimula o empenho, havendo aprimora-
e à cooperação induzida entre os assala- mento do processo produtivo, eliminação
riados pela empresa capitalista (PEIXOTO de desperdício e de tempos ociosos, qua-
e LOPES, 1999; GAIGER, 2001). O trabalho lidade final do produto ou dos serviços e
consorciado age em favor dos próprios redução do absenteísmo e da negligência,
produtores e confere uma conotação bem entre outros efeitos sublinhados pela lite-
mais ampla à noção de eficiência. Esse ratura (DEFOURNY, 1988; CARPI, 1997).
espírito distingue-se da racionalidade O estímulo moral incrementa a capa-
capitalista – que não é solidária e tampou- cidade laborativa e favorece o comparti-
co inclusiva – e da solidariedade popular lhamento e conservação da experiência
comunitária – desprovida dos instrumen- e do aprendizado, tanto mais que a baixa
tos adequados a um desempenho que não rotatividade da força de trabalho é uma
seja circunscrito e marginal. característica importante dos empreen-
A supressão das relações assalaria- dimentos solidários. O ambiente partici-
das e do correspondente antagonismo pativo facilita a comunicação e beneficia
E
a identificação das causas de ineficiência, relações entre si e perante os demais fato-
172
além de empenhar cada um na aplicação res de produção – é inerente à eficiência
das diretivas e na proposição de inova- demonstrada e indispensável à realização
ções. De resto, os fundamentos democrá- de suas metas econômicas e extra-econô-
ticos da autogestão vêm precisamente ao micas (idem, p. 182-4).
encontro dos requisitos de envolvimento Sob a ótica da geração de bem-estar
e participação dos trabalhadores preconi- para a sociedade, em condições susten-
zados pelos métodos de gestão modernos. táveis, a economia social e solidária apre-
Células de produção, grupos de trabalho senta ainda outros comportamentos e
e postos multifuncionais, a par de outras características favoráveis. Entre eles, estão
técnicas de gerenciamento horizontal e o respaldo à presença dos produtores
de responsabilização do trabalhador, típi- na definição dos produtos e no contro-
cas das normas de gestão de qualidade em le do impacto ambiental, valorização do
voga, acomodam-se com naturalidade à papel dos consumidores, permeabilidade
estrutura participativa dos empreendi- a modernas tecnologias poupadoras de
mentos solidários. recursos e de energia, repercussões positi-
Tais empreendimentos, ademais, dis- vas sobre o desenvolvimento local e sobre
põem potencialmente de muitos trunfos o equilíbrio dos territórios e atenção à
para responderem com eficiência às con- segurança humana. Restrições decorren-
dições do mercado global contemporâ- tes dos princípios de funcionamento dos
neo, fragmentado e volátil: flexibilidade de empreendimentos solidários, a exemplo
ajuste às alterações da demanda (SORBIL- do compromisso com a manutenção dos
LE, 2000) e possibilidade de inserção em postos de trabalho, obrigam-nos a buscar
“rede de cooperação econômica, formada alternativas diante de momentos de crise,
por outras empresas pequenas e flexíveis sem simplesmente repassar à sociedade
e por instituições culturais, educativas e os custos das decisões tomadas, como se
políticas de apoio” (SANTOS, 2002, p. 36), observa nos processos de reestruturação
a exemplo dos complexos cooperativos. A das empresas capitalistas. Isso os impe-
participação ativa no processo produti- le a adotar medidas flexíveis e inovado-
vo atua igualmente como fator-chave, na ras. Como os benefícios são repartidos
medida em que redunda em aprendizado entre os associados e não se restringem a
comum e na sua preservação pelo conjun- ganhos monetários imediatos, a difusão
to de trabalhadores. dos empreendimentos tende a gerar um
As características da autogestão e da efeito direto sobre a distribuição da renda
cooperação podem revelar-se não somen- e da propriedade. Ao mesmo tempo, ela
te como opção ética ou ideológica, mas incide sobre as relações da comunidade
como vetor de impulsão dos empreendi- em geral, imprimindo à realidade um sen-
mentos. O trabalho associado converte-se tido oposto às desigualdades motivadas
em uma força produtiva peculiar e deter- pelo capitalismo.
minante (RAZETO, 1990, p. 128). A posi- Esse conjunto de virtudes supõe
ção que os trabalhadores ocupam em uma que os empreendimentos sejam capa-
organização cooperativa e solidária – nas zes de conduzir a organização e a gestão
E
de seus fatores produtivos, humanos e 3. A economia social e solidária expressa
173
materiais, explorando adequadamente e, ao mesmo tempo, representa meios de
as características da comunidade de traba- cultivar e tornar apreciáveis as formas de
lho que os sustenta (GAIGER, 2006). A produzir e entender a produção assentes
eficiência requer o abandono de padrões em padrões culturais diversos, que definem
de gestão típicos da condição precária e de outro modo as necessidades, ultrapas-
subordinada da economia informal e da sam a cultura materialista e instrumental
maior parte da economia popular. Há e estabelecem relação vária entre os seres
que se superar o estilo de gestão basea- humanos e a natureza. As formas singu-
do na capacidade de improvisação ou lares de conhecimento que estimula são
em adaptações sucessivas diante das cir- fontes alternativas de produção (SANTOS,
cunstâncias, que se apresentam neste 2002). Assim considerada, a eficiência
caso como fatos determinantes, sobre evoca uma racionalidade distinta, orien-
os quais não se possui qualquer poder tada à satisfação das necessidades e à rea-
de reação ou controle, senão defensiva- lização das aspirações humanas, estimu-
mente. Ademais, cabe distinguir a reali- lando a simbiose com o ambiente natural,
dade tangível dos indivíduos e famílias por meio de um vínculo integrador e de
que integram o empreendimento (com modelos de desenvolvimento sustentável.
suas demandas muitas vezes prementes Ela demanda outros estímulos para a ação
e justificadoras de uma atitude imediatis- antrópica, individual e coletiva, bem como
ta) da realidade da empresa em si – com um novo conjunto de indicadores para a
seus tempos e rotinas próprias, suas mar- avaliação e o direcionamento da atividade
gens de escolha nunca ilimitadas, sua humana.
complexidade e incontornável exigência
de planejamento. A eficiência implica
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e constitui sua razão de ser ineludível; e
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E
EMANCIPAÇÃO SOCIAL reciprocidade de direitos e obrigações,
Antonio David Cattani 175
enfim, pelo processo civilizador que garan-
te a livre expressão respeitosa da diferença
1. A expressão emancipação social recobre e da liberdade do outro (v. Utopia).
uma extensa gama de princípios, concei-
tos e processos materiais identificados 2. O verbo emancipar é proveniente do
também por outros termos. Entre eles, termo latino emancipare, de ex (fora de,
estão auto-emancipação proletária, auto- não mais) e de mancipium (escravo, indiví-
governo, socialismo, sociedade autogeri- duo dependente). Ele corresponde a uma
da e sociedade dos produtores livremen- figura jurídica já conhecida pelo direito
te associados. Neste verbete, a noção de romano, traduzindo atos de libertação
emancipação social será desenvolvida legal, alforria ou interrupção da tute-
abrangendo-se o conjunto desses signifi- la e da autoridade de um sobre outrem.
cados e processos. Emancipar remete à liberdade concedi-
O conceito de emancipação social da, adquirida ou conquistada. Durante
designa o processo ideológico e histórico séculos, o termo foi usado para se referir
de liberação por parte de comunidades a situações individuais ou de pequenos
políticas ou de grupos sociais da depen- grupos. Foi somente a partir do Século das
dência, tutela e dominação nas esferas eco- Luzes e da Revolução Francesa que o con-
nômicas, sociais e culturais. Emancipar-se ceito adquiriu o sentido amplo e dinâmi-
significa livrar-se do poder exercido por co que vigora até o século XXI. Nas socie-
outros, conquistando, ao mesmo tempo, dades pré-modernas, dominadas pelos
a plena capacidade civil e cidadã no Esta- fatos religiosos, com seus dogmas, e pela
do democrático de direito. Emancipar-se percepção da legitimidade imanente do
denota ainda aceder à maioridade de cons- poder, via de regra, monárquico, as idéias
ciência, entendendo-se, por isso, a capaci- de soberania popular, de livre arbítrio ou
dade de conhecer e reconhecer as normas de emancipação social não tinham lugar.
sociais e morais independentemente de Por meio de múltiplas dimensões de cará-
critérios externos impostos ou equivocada- ter religioso, ideológico, político e cultu-
mente apresentados como naturais. ral, as sociedades tradicionais concebiam
Emancipação social vincula-se ao con- a ordem e o sentido da vida em sociedade
ceito de autonomia. Uma comunidade como decorrentes e dependentes de for-
política é emancipada, é livre, quando suas ças e de vontades superiores e exteriores
leis não são impostas por processos repres- às dos homens.
sivos, tutelares ou paternalísticos; é autô- O desejo de liberdade, de autodetermi-
noma quando não obedece a regramentos nação, sempre existiu. Revoltas populares
subjetivos, adventícios ou arbitrários; é, eclodiram ao longo dos séculos, porém,
verdadeiramente, emancipada, quando a foram constantemente marcadas por mes-
lei maior é o bem comum, objetivo e uni- sianismos diversos, não apresentando con-
versalizador. Na sociedade emancipada, os sequências duradouras. Sobretudo, não
indivíduos possuem o máximo de liberda- foram conduzidas e concebidas como pro-
de, mas esta é pautada pela igualdade, pela cessos emancipadores, universalizadores,
E
dependentes da livre agência humana. Com burocratização – multiplicaram-se. Esses
176
a Modernidade, os indivíduos passaram a movimentos fizeram com que termos tais
se confrontar com a verdade dos seus atos: como soberania popular, livre determi-
a sociedade não mais seria definida por for- nação, igualdade, liberdade e fraternida-
ças transcendentes, mas pela conjugação de para todos não permanecessem como
de processos humanos na sua relação com devaneios ou figuras retóricas, converten-
a natureza, com as necessidades de repro- do-os em princípios basilares de um pro-
dução material e com o processo de criação jeto inédito na história da humanidade.
histórica. Na Modernidade, formaram-se as
sociedades marcadas pela agência humana 3. Uma melhor e mais nítida definição
e pela recusa aos determinismos e à inespe- de emancipação social pode ser estabe-
cífica repetição do tempo cíclico. lecida apresentando-se as situações e
As idéias de progresso, moderniza- concepções a ela opostas. Nunca faltaram
ção ou desenvolvimento estimularam o candidatos para dirigir o processo histó-
surgimento das “sociedades mobilizadas rico e para tentar ordenar a sociedade.
e agenciadas por projetos” (BOUTINET, Reatando com as tradições mais antigas e
1990), isto é, aquelas que se autoprodu- conservadoras da vida política, as versões
zem segundo a capacidade de controle das contemporâneas do pensamento elitista
lógicas societárias e econômicas. A capaci- reafirmam, continuamente, a incapaci-
dade de antecipação vai além da simples dade congênita do povo de ter iniciati-
predição; ela se constitui em elemento vas autônomas e de manifestar e defen-
decisivo para romper com a inércia, para der seus próprios interesses. Partindo da
galvanizar forças em torno de projetos constatação de que existem desigualdades
de ruptura ou de reordenamento inten- reais na constituição física, nos recursos
cional do presente. No início da Moder- intelectuais e na distribuição dos talentos
nidade e do desenvolvimento capitalista, dos indivíduos, o pensamento elitista jus-
esse processo foi conduzido pelas novas tifica a concentração do poder e riquezas
elites: burgueses empreendedores e con- nas mãos dos mais “capazes”. O homem-
quistadores, déspotas esclarecidos e jaco- massa é o homem-medíocre, abúlico,
binos voluntariosos. Concomitantemente com comportamento de rebanho, para
a esses processos inovadores nas esferas o qual nada mais resta que se prostrar e
econômicas e políticas, forças sociais pas- submeter-se à condução dos líderes.
saram a ser articuladas, agora potencia- Na contemporaneidade, as formas
lizadas e legitimadas por novos quadros mais radicais do pensamento elitista não
teóricos. Teoria e prática conjugaram-se se manifestam explicitamente. Versões
para anunciar o advento da universaliza- amenizadas ou transvestidas proliferam
ção dos direitos humanos e sociais e do sob, pelo menos, duas variantes básicas.
acesso das massas à dignidade. Os movi- A primeira apresenta-se como perten-
mentos que tinham como horizonte a cente ao campo progressista e, imbuída
verdadeira sociedade comunista – isto é, a das melhores intenções, almeja o bem
sociedade não mais mutilada pela luta de comum. Esse é o caso de variantes do
classes ou pela ditadura que primava pela espírito vanguardista consubstanciado
E
no jacobinismo e nas adaptações oportu- cientes dos seus verdadeiros interesses,
177
nistas do leninismo. Para as vanguardas tentam o caminho incerto da liberdade.
operantes e altruístas, as massas, embru- Todas essas formas antiemancipado-
tecidas pelo processo de trabalho, são ras são, de certo modo, convencionais,
incapazes de desenvolver uma consciên- isto é, facilmente perceptíveis na história
cia da totalidade concreta, de si e de seus das relações entre soberanos e vassalos,
verdadeiros interesses. Precisam, pois, de entre dirigentes e dirigidos, definindo
quadros impolutos “capazes de tomar o configurações espúrias ou legítimas do
poder e conduzir todo o povo ao socialis- contrato social. Muito mais complexa é a
mo, de dirigir e organizar um novo regime forma contemporânea de controle social,
e de ser o instrutor, o guia e o chefe de que naturaliza a dominação mediante as
todos os trabalhadores” (LENINE, 1983). A relações capitalistas. Estas têm a figura do
tradição jacobina manifesta-se nas polí- mercado como auto-referente, auto-insti-
ticas keynesianas ou social-democratas tucionalizante e ordenadora suprema das
– que buscam promover, desde o alto, o relações entre os indivíduos. As imagens
bem comum, mesmo que seja à revelia dos clássicas do poder (Estado, tirano, líder) e
interessados – e em versões modernas do suas ações são identificáveis, ao passo que
cesarismo social. Segundo Gramsci, este a figura do mercado é diluída, vaga, engen-
seria um regime político que dispensa ins- drando a ficção imprecisa da “individuali-
tituições intermediárias, cujo poder está dade soberana”.
centralizado em personagens carismá- Segundo a teoria neoliberal, o indi-
ticos identificados como defensores do víduo é livre e consciente. Ao agenciar
povo. A segunda variante do pensamento recursos na busca dos seus interesses
elitista é representada pelas concepções segundo um cálculo racional de custos e
assumidamente tutelares. Neste caso, a benefícios, ele constrói o “mundo possí-
participação autônoma das massas não é vel”. A mão invisível do mercado encarre-
tolerada, uma vez que elas são considera- gar-se-ia de compatibilizar as diferenças
das incapazes, carecendo da proteção das de expectativas, regular as preferências
elites, autoproclamadas racionalizadoras e, sobretudo, definir o lugar de cada um
da ação política e da vida pública. Cau- na composição social. A forma produ-
dilhos, modernos déspotas esclarecidos, tiva regida pela racionalidade capitalis-
governantes populistas têm na esfera do ta (produzir para acumular, acumular
Estado seu campo de ação e, de cima, ope- para dominar) é a célula mater, ou usi-
ram para que o povo seja integrado aos na nuclear, da reprodução social. É no
projetos políticos que controlam (cf. SILVA processo de trabalho que se materializa
et al., 2000). Buscando o bem comum a objetivamente a domesticação dos pro-
qualquer preço, a forma tutelar desdobra- dutores diretos. Ao alienar sua força de
se em práticas assistencialistas e caritati- trabalho, o trabalhador aliena-se, subme-
vas que reforçam as relações de subservi- te-se ao poder discricionário de outrem,
ência dos indivíduos e das instituições. Se perdendo a capacidade de administrar
necessário, traduz-se em práticas repressi- sua vida, de se realizar como criador livre
vas quando os sujeitos, tidos como incons- das obras humanas.
E
Considerando-se apenas o século XX, lização da dominação, ou seja, mediante
178
o processo de trabalho foi orientado por essa confluência, os indivíduos passam
princípios tayloristas e fordistas. Esses a internalizar as normas de controle, de
princípios conformaram estratégias tem- obediência, crendo serem elas naturais e
porais que, mediante a fragmentação e necessárias.
especialização das tarefas e a separação
entre funções de concepção, planejamen- 4. Existem inúmeras referências teóricas
to e execução, asseguravam o controle aos processos emancipadores. Na Filoso-
estrito do trabalho humano. O trabalha- fia, a idéia de emancipação associa-se à
dor não só era explorado, mas também ampliação do verdadeiro entendimento
reduzido a situações de vulnerabilidade que permitiria uma liberação abstrata na
e de dependência, o que o levava a crer esfera da política. Esse é o caso da percep-
que nada haveria além do trabalho frag- ção kantiana dos processos éticos e histó-
mentado, repetitivo, monótono e caren- ricos, segundo a qual a emancipação per-
te de sentido. Um novo paradigma, em mite a utilização livre e pública da razão,
construção a partir dos anos 1980, alterou fundamentando princípios morais válidos
esse quadro. A dominação constitui-se para o indivíduo e para sua relação com a
não apenas majoritariamente por meio de sociedade. Conforme outros pensadores
relações estáveis, mas também da inser- sociais, a exemplo de Fourier, a emanci-
ção laboral esporádica, precária e incerta. pação está associada à criação de um novo
Entre outras consequências, a especiali- homem e de uma nova sociedade, daí a
zação flexível, prática organizacional da necessidade de se detalharem, com pre-
produção e dos serviços na sociedade do cisão, as modalidades do processo eman-
século XXI, remete ao trabalhador a res- cipador (instituições e ordenamentos físi-
ponsabilidade por sua “empregabilidade” cos, urbanísticos, etc.). Os agentes desses
e sua inserção laboral como empreende- processos, via de regra, são sujeitos indefi-
dor coletivo ou como profissional assala- nidos. A mesma concepção não é encon-
riado ou autônomo. Outra vez, a ideologia trada na obra de Marx. Para este autor, a
dominante, assente nas novas condições emancipação é centrada na figura emble-
da produção social, assegura que “cada mática do operário industrial, que, ao
um tenha o que mereça e esteja no lugar defender seus interesses, promove a ação
que lhe convenha”. revolucionária, assegurando a superação
A despeito de seu potencial libertá- do capitalismo e o atendimento aos inte-
rio, a educação pode ser agenciada inti- resses do conjunto da humanidade. Pou-
mamente com o processo de dominação co preocupado com as “receitas a serem
social. Nas sociedades de classes, sem desenvolvidas nos caldeirões do futuro”,
participação democrática, a escola refor- Marx não aprofunda as várias referências
ça a desigualdade e legitima a fixação dos à emancipação do proletariado, mesmo
indivíduos na estrutura hierarquizada ao argumentar a favor de uma “sociedade
(GENTILI e FRIGOTTO, 2000). A conjugação dos produtores livremente associados”
entre educação e trabalho (incluindo-se a e ao proclamar que “a emancipação da
formação profissional) é a base da natura- classe operária será obra da própria classe
E
operária”. Para muitos autores vinculados em repressão, apatia social, isolamento e
179
à tradição marxista, a emancipação social esgotamento da ação militante. Ademais,
constituiria um resultado ulterior aos a pauta da emancipação social é cada vez
processos revolucionários. Após a toma- mais extensa, pois abrange sempre novas
da do poder, as vanguardas promoveriam exigências. Entre elas, incluem-se as ques-
a socialização dos meios de produção tões de gênero e a discriminação contra
(abolição da propriedade privada), e o minorias étnicas e culturais, entre outras.
controle direto da produção social seria A essas se acresceram, a partir das últimas
exercido pela camada esclarecida, técni- décadas do século XX, a sustentabilidade
co-burocrática, preparando terreno para a ambiental e o novo internacionalismo
futura sociedade comunista. O resultado contra-hegemônico. Em face da globaliza-
do “socialismo realmente existente” foi a ção excludente e do caráter predatório do
hipertrofia do aparelho estatal, autoritá- capitalismo, a defesa do meio ambiente
rio, burocrático e repressor das transfor- e da biodiversidade deve estar associada
mações verdadeiramente emancipadoras. a iniciativas populares verdadeiramente
A emancipação social manifesta-se nos internacionais. Há ainda, no mínimo, dois
múltiplos combates às normas arbitrárias novos desafios. O primeiro é a emancipa-
e às hierarquias opressoras e promotoras ção social no quadro dos avanços tecno-
da discriminação e da desigualdade. Seu lógicos, os quais, sob gestão capitalista,
corolário, vinculado ao conceito de auto- reforçam e ampliam as desigualdades. A
nomia, “é a apropriação coletiva, a descen- auto-emancipação proletária não pode, a
tralização, a participação consciente no título de igualizar as oportunidades dos
processo produtivo, na vida em sociedade indivíduos, promover ações regressivas,
e na criação cultural. Emancipação impli- alvitrando uma pretensa sociedade mais
ca associativismo livre, fundamentado na simples, despojada dos atributos do con-
igualdade dos indivíduos; subentende, forto moderno e dos recursos tecnológi-
também, responsabilidades e oportuni- cos. Ao contrário, o desafio que se coloca
dades iguais para que fins comuns sejam é o da apropriação e administração social-
atingidos; a divisão de tarefas e o sentido mente justa da produção científica de
do trabalho livremente estabelecidos, ele- ponta. O segundo grande desafio refere-se
gibilidade e revogabilidade dos cargos de ao estatuto do trabalho. Para muitos auto-
direção” (CATTANI, 2000). Alguns exem- res consagrados, progressistas ou conser-
plos de manifestações concretas da eman- vadores, só haverá realização plena dos
cipação social são analisados no verbete indivíduos com a supressão do trabalho.
Utopia e em outros desta obra. Para eles, o tempo verdadeiramente livre
é o tempo do não-trabalho, do ócio, ou da
5. Ao combater as ordens injustas, a tute- realização de atividades não-impostas pelo
la ou o paternalismo das elites e, sobre- reino das necessidades. Essa concepção
tudo, a naturalização do controle social idílica de uma Idade de Ouro, na qual os
que configura a “servidão voluntária”, indivíduos seriam, ao mesmo tempo, pro-
os movimentos libertários enfrentam as dutores-filósofos-poetas-pescadores pas-
costumeiras dificuldades materializadas seando no país da Cocagna esvazia a ação
E
humana de seu potencial transformador. BIBLIOGRAFIA
180
Trabalho é ato de criação, de superação do BOUTINET, J. P. (1990), Anthropologie du projet, Paris:
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ro: Faperj; Tempo; Mauad.
E
EMPREENDIMENTO ECONÔMICO de objetivos culturais e ético-morais. Esse
SOLIDÁRIO 181
espírito distingue-se tanto da racionali-
Luiz Inácio Gaiger dade capitalista, como da solidariedade
comunitária, por ser esta desprovida dos
1. O conceito de empreendimento econômico instrumentos adequados a um desempe-
solidário compreende as diversas modalida- nho social e econômico que não seja cir-
des de organização econômica, originadas cunscrito e marginal. Além disso, dado o
da livre associação de trabalhadores, nas papel decisivo de um conjunto crescente
quais a cooperação funciona como esteio de organizações e agentes mediadores, os
de sua eficiência e viabilidade. Sua pre- empreendimentos solidários tendem a
sença tem se verificado em setores da pro- buscar ou criar mecanismos e instituições
dução, prestação de serviços, comerciali- de articulação, representação e intercâm-
zação e crédito. Esses empreendimentos bio, econômico e político. Com suas vin-
adotam, em proporção variável, arranjos culações e extensões, constituem a célula
coletivos na posse dos meios de produ- propulsora básica da economia solidária.
ção, no processo de trabalho e na gestão
do empreendimento, minimizando a pre- 2. Desde o séc. XIX, registram-se tentati-
sença de relações assalariadas. Mediante vas de se instituírem formas comunitárias
a socialização dos meios de produção e e democráticas de organizar a produção e
a autogestão, expressam uma inflexão da o consumo, em resposta a aspirações de
economia popular, de base doméstica e igualdade econômica e à necessidade de
familiar, ou ainda, em alguns dos seus seg- se garantirem meios de subsistência para a
mentos, uma reconversão da experiência massa de trabalhadores desprezada pelas
operária do trabalho. Apresentam-se sob empresas capitalistas. Segundo a refle-
forma de grupos de produção, associa- xão teórica que essa realidade emergen-
ções, cooperativas e empresas de auto- te vem suscitando, os empreendimentos
gestão, combinando suas atividades eco- solidários expressam uma germinação de
nômicas com ações de cunhos educativo formas de economia alternativa, distintas da
e cultural. Valorizam, assim, o sentido da lógica mercantil capitalista, e de alternati-
comunidade de trabalho e o compromisso vas econômicas, por conformarem estabele-
com a coletividade na qual se insiram. cimentos viáveis, capazes de assegurar sua
As práticas características de tais reprodução social. Esses empreendimen-
empreendimentos inscrevem-se em uma tos incrementam o leque das formas não-
nova racionalidade produtiva, na qual o capitalistas de produção (SANTOS, 2002),
solidarismo converte-se em sustentáculo contudo, suas virtudes não estão deter-
dos empreendimentos, ao gerar resulta- minadas, pois constituem tendências e
dos materiais efetivos e ganhos extra-eco- possibilidades que se materializam com
nômicos. O trabalho consorciado age em maior ou menor intensidade, de acordo
favor dos próprios produtores e confe- com as condições objetivas e subjetivas
re, à noção de eficiência, uma conotação em que se desenvolva cada experiência.
bem mais ampla, incluindo a qualidade O êxito dos empreendimentos depende,
de vida dos trabalhadores e a satisfação ademais, não apenas do cenário em que
E
se encontrem, mas do investimento que mico não tenha sido objeto de proposi-
182
neles se realize. Ao se apontarem os aspec- ções sistemáticas, são flagrantes as simi-
tos novos e promissores das experiências litudes entre as designações de diferentes
de economia solidária, o conceito deve ser autores que observam o fenômeno ao Sul
utilizado principalmente como um instru- e ao Norte. Em meio a outros exemplos,
mento para o estudo de casos empíricos, nas empresas de economia popular predomi-
segundo as questões e ângulos de análise nam relações de reciprocidade e coope-
que propõe, ao mesmo tempo em que evo- ração, bem como certo hibridismo entre
ca um direcionamento histórico possível, arranjos formais e informais e entre prá-
a ser verificado. ticas não-mercantis e aquelas integradas
A expansão atual desses empreendi- ao mercado (NYSSENS, 1996). Já em empre-
mentos remete tanto a capítulos anterio- sas de economia solidária, desenvolvem-se
res da história de lutas dos trabalhado- os diversos tipos de atividade econômica
res, quanto a correntes de pensamento e baseados na associação voluntária, na
ação política. Suas raízes mais longínquas propriedade comum dos meios de pro-
situam-se no século XIX europeu, quando dução, na gestão coletiva, no exercício de
a proletarização do mundo do trabalho poder pela comunidade de trabalhadores
provocou o surgimento de um movimento e no esforço mútuo, em prol de interesses
operário associativo e das primeiras coo- comuns (VERANO, 2001). Por sua vez, as
perativas autogestionárias de produção. empresas alternativas funcionam segundo
Essa práxis esteve intimamente associada princípios de preservação dos postos de
à matriz intelectual e política que, desde trabalho, de inserção de pessoas social-
então, tem evoluído por caminhos diver- mente desfavorecidas, de maior implica-
sos: socialistas utópicos (Saint-Simon, ção e evolução pessoal dos trabalhadores,
Fourier), anarquistas (Proudhon, Kro- de conservação do meio ambiente, de
potkin), cooperativistas (Owen, Gide), promoção de ações sociais e culturais e de
cristãos (Le Play, Raiffeisen), socialistas envolvimento nos movimentos coletivos
(Jaurès, Pannekoek) e comunitaristas (RAZETO, 1990). Finalmente, as organiza-
(Lebret, Mounier). À medida que se veri- ções produtivas da economia social diferen-
ficaram experiências de autogestão em ciam-se ao avocarem a propriedade coleti-
outros continentes e sucederam-se epi- va dos meios de produção, o primado dos
sódios marcantes na história política do membros trabalhadores sobre o capital, a
século XX, o caldeamento operado entre institucionalização da gestão democráti-
essas vertentes resultou em uma profu- ca do processo de acumulação, a eficácia
são de abordagens e na entrada em cena em lograr a satisfação de necessidades, a
de novas referências, a exemplo do pen- superação da estrita relação mercantil e
samento cristão (Teilhard de Chardin, as interações calcadas na racionalidade
Teologia da Libertação) e do socialismo comunicativa (CARPI, 1997).
(Castoriadis, Mariátegui), atualmente A economia de solidariedade corres-
confluentes. ponde a uma corrente genuína do pen-
Embora a caracterização das novas ini- samento latino-americano. Em sentido
ciativas sustentadas no solidarismo econô- propriamente conceitual, o termo empre-
E
endimento econômico solidário foi introdu- Estudos sob essa perspectiva permi-
183
zido pelas formulações de Luis Razeto tiram a identificação de casos semelhan-
(Chile) acerca das formas de economia tes, em que empreendimentos populares
popular. No início dos anos 1980, o autor associativos passaram a lograr algum nível
distinguia, no mundo dos pobladores das de acumulação e crescimento. Mediante
periferias urbanas, grupos que se organi- planificação e investimentos, alcança-
zavam em torno de organizações econô- ram estabilidade mínima e chances de
micas. Para tanto, se valiam de recursos viabilidade, requerendo assim o desen-
pessoais, postos em comum, e de alterna- volvimento de uma nova racionalidade
tivas de ajuda mútua, com vistas a satis- econômica (GAIGER, 2004). Tais caracte-
fazerem necessidades básicas. Algumas rísticas conferem-lhes um padrão distinto
dessas organizações logravam superar a ao das modalidades predominantes de
simples garantia de subsistência e apor- economia popular, em que estão em jogo
tavam melhorias à qualidade de vida, em necessidades imediatas de sobrevivência
certos casos propiciando margens de ou, quando muito, a preservação de meios
acumulação e crescimento econômico, de subsistência num quadro inalterável de
graças a práticas e valores como a soli- pobreza e dependência. Pesquisas caucio-
dariedade, a cooperação e a autonomia. naram a tese de haver uma simbiose entre
Embora se deparando com dilemas de as práticas de cooperação e autogestão e
sobrevivência, essas organizações assu- os imperativos de eficiência e desempenho
miram igualmente um papel de resis- econômico. O êxito dos empreendimen-
tência, em face das exclusões política, tos aparece vinculado a circunstâncias e
social e cultural. As evoluções posteriores fatores cujo efeito positivo é proporcional
conduziram-nas à condição de sujeitos ao caráter socialmente cooperativo por
econômicos plenos, aptos a gerar trabalho eles incorporado. Depreende-se então que
e renda duradouramente (RAZETO, 1983). o fator trabalho é passível de ser levado a
A relação entre solidarismo e empreende- pleno rendimento, como trabalho associado,
dorismo foi enfatizada a seguir, ao se indi- na medida em que a própria comunidade
car que a força econômica dessas organi- de trabalho funciona como determinante
zações repousaria “no fato de que um da racionalidade econômica, sem entrar
elemento comunitário, de ação e gestão em conflito com sua natureza social e par-
conjunta, cooperativa e solidária, apre- ticipativa, produzindo efeitos tangíveis e
sente no interior dessas unidades econô- vantagens efetivas quanto a seus objetivos
micas efeitos tangíveis e concretos sobre o econômicos e sociais.
resultado da operação econômica, efeitos Uma qualidade importante dos em-
concretos e específicos nos quais se pos- preendimentos solidários reside em seu
sa discernir uma particular produtivida- caráter multifuncional, bem como em
de, dada pela presença e crescimento do sua vocação a atuar simultaneamente nas
referido elemento comunitário, análoga esferas econômica, social e política e a
à produtividade que distingue e pela qual agir concretamente no campo econômi-
se reconhecem os demais fatores econô- co ao mesmo tempo em que interpelam
micos” (RAZETO, 1993, p. 41). as estruturas dominantes. Eles rejeitam a
E
antinomia entre interesses econômicos e bem as utilidades do conceito. Em primei-
184
questões sociais, respectivamente atribu- ro lugar, este foi adotado pelo Fórum Bra-
ídos ao binômio mercado privado-Esta- sileiro de Economia Solidária para desig-
do, bem como as fronteiras estabeleci- nar e caracterizar seus integrantes natos,
das entre tempo de trabalho produtivo e isto é, as organizações econômicas de tra-
tempo de satisfação das necessidades. Sua balhadores que comungam da identidade
razão de ser consiste no atendimento às do Fórum, participam de suas estruturas
necessidades materiais de seus membros, de gestão e constituem a referência de
assim como às suas aspirações não-mone- sua plataforma de lutas. Em segundo lugar,
tárias, como reconhecimento, inserção mediante um processo metodológico
social, autonomia, etc. Ao fazê-lo, intro- participativo de delimitação conceitual,
duzem, na esfera econômica, questões de chegou-se a uma definição operacional
fundo ético, que passam a incidir sobre quanto aos empreendimentos que seriam
aquele universo, mediante princípios nor- incluídos no Mapeamento, sem haver pre-
mativos irredutíveis à lógica instrumental julgamento acerca de seu conteúdo efe-
e utilitária. tivamente solidário e empreendedor. Por
Especificamente quanto às organiza- fim, além de ensejar um exame acurado e
ções produtivas, estas representam tanto positivo da racionalidade singular implí-
um instrumento de influência direta e cita na lógica de atuação dos empreendi-
sistemática sobre o processo de produção mentos (GAIGER, 2007b), a base de dados
e gestão, como um espaço de aprendiza- resultante do Mapeamento tem viabiliza-
gem e experimentação democrática. Esse do diversas análises acerca dos tipos de
aspecto constitui um fator de autono- empreendimentos e de seu papel como
mia diante da alienação do mercado e do alternativas para os trabalhadores.
poder burocrático estatal e uma garantia É particularmente urgente conceber
contra a materialização da vida (CARPI, alternativas econômicas e sociais, assim
1997). Esses fatos decorrem, em última como pleitear seu estabelecimento, tanto
instância, do corte que se estabelece entre pelo grau de aceitação, sem precedentes,
os empreendimentos solidários e a lógica da inevitabilidade do capitalismo como
capitalista de produção de mercadorias e opção única, quanto pelo descrédito irre-
de reprodução social. O cerne dessa rup- versível da alternativa sistêmica oferecida,
tura reside na supressão do fosso estrutu- no século XX, pelas economias socialis-
ral dessa lógica, a qual opõe trabalhadores tas centralizadas. No horizonte que se
e meios de produção, trabalho e capital, descortina no século XXI, ainda não se
produção e apropriação. As relações de apresentam teorias e modelos alternati-
produção dos empreendimentos solidá- vos portadores de uma nova totalidade,
rios, portanto, não são apenas atípicas ao rompendo plenamente com as determi-
modo de produção capitalista, mas tam- nações vigentes. No tocante aos empreen-
bém contrárias e virtualmente antagôni- dimentos solidários, seu desenvolvimento
cas à forma de produção assalariada. ainda incipiente e a diversificada relação
O Mapeamento Nacional da Economia de seus membros com a esfera econômica
Solidária no Brasil (2005-2007) ilustra impedem conceituá-los como um modo
E
de produção em sentido estrito. A despei- social aos propósitos de uma nova arqui-
185
to dessas limitações, há possibilidades de tetura mundial. Para se alcançarem tais
formas de existências individuais e coleti- propósitos, necessita-se de participação
vas que escapam ao sistema social capita- cidadã e de propostas experimentadas e
lista e com ele se defrontam. A viabilidade incorporadas na vida cotidiana, nas práti-
e a força emancipadora dessas alternati- cas de trabalho e na produção econômica.
vas poderão resultar em cenários futuros Em seu uso corrente, o conceito de
de importante inflexão histórica (GAIGER, empreendimento econômico solidário
2007a). No presente, essas experiências expõe-se aos mesmos riscos das formula-
dificultam a reprodução do capitalismo, ções sobredeterminadas pelas categorias
impondo-lhe concessões. da práxis. Nesses casos, o fato de se lidar
com práticas e tomadas de posição atinen-
3. Sejam quais forem os desdobramentos tes a propósitos de intervenção na realida-
futuros dessas alternativas econômicas de acarreta problemas de descontrolada
e sociais, no contexto que se verifica no interpenetração entre o discurso analíti-
século XXI, importa ter-se em vista que co e o discurso político e pragmático. A
apenas uma nova práxis de inserção nos reflexão teórica sofre a pressão da práxis
mundos do trabalho e da economia pode militante e, nessa medida, vê-se despro-
gerar uma nova consciência e ocasionar, vida do seu papel de instância crítica, de
sucessivamente, novas mudanças. Esse tornar relativo o dado imediato da reali-
é o requisito básico, verificado nas expe- dade e suas leituras singulares. Uma vez
riências de economia solidária em curso, que o caráter militante das abordagens
que motiva ir-se em busca dos meios de opera uma seleção na realidade com fins
cumprimento daquelas possibilidades. prescritivos, a exclusão de outras questões
Tal fato não significa que se esteja em vias facilmente alimenta um raciocínio circu-
de suplantar as empresas capitalistas, com lar, reiterativo. Instaura-se uma disputa
chances de se ameaçar o próprio capita- simbólica pela representação do campo e
lismo. Os empreendimentos econômi- pela designação das coisas (cf. BOURDIEU,
cos solidários têm como papel fornecer 1989), o que confere a elas determinada
provas convincentes de que são estrutu- visibilidade e relevância e, assim, chances
ralmente superiores à gestão capitalista desiguais de converterem-se em proble-
quanto ao desenvolvimento econômico e mas de conhecimento, com vistas a um
à geração de bem-estar social, por serem melhor discernimento para a ação.
comparativamente vantajosos devido à No plano concreto, esses problemas
sua forma social de produção específica. manifestam-se na reificação do conceito e
Ademais, cabe ressaltar que os critérios na sua assimilação normativa. Ao desper-
de avaliação do êxito ou fracasso das alter- tar entusiasmo e otimismo, sua limpidez
nativas econômicas devem ser gradativos cristalina induz a vê-lo como reflexo
e inclusivos. Não obstante os limites dos depurado da realidade, a despeito das
empreendimentos solidários, aguarda-se ambiguidades e impasses desta ou do fato
deles um passo decisivo para se conferir de recobrir motivações e iniciativas com
credibilidade e gerar-se intensa adesão origens e naturezas distintas, próprias
E
a diferentes lugares e circunstâncias, as teriores entre seus enunciados e os casos
186
quais não comportam uma tendência singulares, sem pretensão de estabelecer
espontânea de confluência para uma correspondência perfeita. “As teorias
nova totalidade social. O conceito pode sociais e econômicas identificam ‘mode-
ainda contribuir involuntariamente para los puros’, que, na realidade empírica, não
delinear a impressão de que o prisma de encontram materialização cabal, mas que
leitura que oferece esteja indubitavelmente existem e operam efetivamente enquan-
em curso, por conta de um devir histórico to potencialidades parcialmente realiza-
já posto teleologicamente. Nesse rumo, das, como racionalidades que presidem e
diagnósticos menos promissores da reali- orientam os comportamentos, como ten-
dade passam a ser entendidos como desa- dências que apontam para identidades em
provações ou discordâncias políticas, não formação.” (RAZETO, 1993, p. 45).
obstante seus fundamentos objetivos. A avaliação de experiências concre-
O uso crítico do conceito é um mister, tas, manejando esse dispositivo concep-
tendo-se consciência dos campos políti- tual com tais cuidados, deve considerar a
co, cultural e científico em que o analista determinação exercida pelos valores, por
esteja inserido, para se reconhecer aquilo conta da racionalidade comunicativa e
que a visão dos problemas deva ao senso expressiva que rege os empreendimentos
comum erudito e à posição nele ocupada solidários. Por sua vez, a hipótese de uma
pelo sujeito do conhecimento. O interes- nova racionalidade em ação implica que
se legítimo em evidenciar as qualidades as características apontadas não apenas
emancipadoras e promissoras das alterna- sejam frequentes e compartilhadas pelos
tivas de produção econômica não dispen- empreendimentos, mas também que se
sa sua análise rigorosa. articulem e se reforcem. Estabelece-se,
Cabe, assim, adotar um sistema de destarte, uma dinâmica objetiva para a
construção conceptual. Nesse caso, está ação dos indivíduos, uma pressão estrutu-
implícito o método weberiano dos tipos ral para que procedam de certa maneira,
ideais, cujo objetivo é formular um con- precisamente porque, no contexto assim
ceito que seja uma síntese inequívoca criado, ela se assevera como a mais lógica.
de certo conjunto de aspectos. Estes são Esses procedimentos de análise reque-
cuidadosamente selecionados e referidos rem uma nova significação dos termos
a determinada classe de fenômenos, cuja habitualmente utilizados na teoria eco-
presença é necessária e suficiente para que nômica, tais como eficiência e interesse,
ditos fenômenos existam (WEBER, 1989). bem como o reconhecimento da natureza
Como tipo ideal, o conceito de empreen- híbrida dos vínculos sociais, evitando uma
dimento econômico solidário é um ins- apreensão meramente altruísta do solida-
trumento heurístico, útil à busca de cone- rismo. O desafio epistemológico e teórico
xões causais, não-acidentais, que operam fundamental consiste em realizar uma
no interior das experiências de economia nova operação de conhecimento, uma vez
solidária e constituem-nas como uma clas- superado o positivismo científico e refuta-
se específica de empreendimentos. O con- da a noção da ciência como caudatária da
ceito objetiva viabilizar comparações pos- ideologia. Cumpre formularem-se propo-
E
sições válidas sobre o que está por vir a ser HIRSCHMAN, A. (1986), El avance de la colectividad: expe-
rimentos populares en América Latina, México: 187
ou, na expressão de Weber, sobre “as cons-
FCE.
telações possíveis no futuro”. Esse parece
ser o caminho indispensável para os estu- KRAYCHETE, G.; LARA, F.; COSTA, B. (Org.) (2000), Eco-
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E
EMPRESA SOCIAL sociais”, as quais se desenvolveram então
188 Jacques Defourny de modo impressionante. Em 1996, cons-
tatando haver iniciativas semelhantes em
1. A noção de empresa social remete a um diversos países europeus, embora menos
conjunto de características e indicado- abrangentes, uma rede européia de pes-
res que definem sua natureza particular. quisadores constituiu-se para estudar o
Empresas assim qualificadas distinguem- estabelecimento das empresas sociais na
se por encerrarem atividades contínuas Europa. A partir do século XXI, inicia-
de produção de bens ou de serviços, por tivas dessa ordem foram impulsionadas
apresentarem alto grau de autonomia, no Reino Unido. Em 2002, o governo de
assumindo riscos econômicos, por com- Tony Blair lançou uma coalition for social
portarem um nível mínimo de empregos enterprise e criou a Social Enterprise Unit para
remunerados, por adotarem objetivos conhecer melhor e sobretudo promover as
explícitos de prestarem serviço à comuni- empresas sociais em todos os países inte-
dade e por seus integrantes terem poder grantes daquela entidade política.
decisório independente da posse do capi-
tal. Sua dinâmica de gestão é participativa, 3. A noção de um novo empreendedo-
envolvendo diferentes etapas da atividade rismo social – e não simplesmente de
e distribuição limitada dos lucros (BORZA- desenvolvimento de organizações não-
GA e DEFOURNY, 2001; DEFOURNY, 2001). lucrativas, de economia social ou de eco-
nomia solidária – remete diretamente às
2. Ainda que praticamente ninguém se diversas teorias do empreendedorismo.
referisse à noção de empresa social até a Segundo Schumpeter, os empresários são
década de 1980, ela se introduziu de modo justamente aqueles cuja função é “exe-
surpreendente na Europa e na América do cutar novas combinações no processo de
Norte. Nos Estados Unidos, encontrou um produção”. Eles não são necessariamen-
primeiro eco significativo no início dos te proprietários de uma empresa, mas os
anos 1990, podendo-se citar, entre outros promotores da mudança em ao menos um
marcos, a social enterprise initiative, lançada dos seguintes planos: o desenvolvimento
em 1993 pela Harvard Business School. de um produto ou de uma qualidade de
Não obstante, a idéia de empresa social produto; a introdução de um método de
permaneceu, com frequência, bastante produção; a abertura de um mercado; a
vaga no contexto norte-americano, desig- conquista de uma nova fonte de matérias-
nando principalmente atividades econô- primas; ou a organização renovada de um
micas mercantis, de iniciativa privada e ramo de atividades. É possível adaptar-se
mesmo individual, muitas vezes, a serviço essa tipologia ao terceiro setor e, em cada
de um objetivo social (DEES, 1998). um desses planos, identificar-se um novo
Na Europa, o conceito foi delimita- empreendedorismo (DEFOURNY, 2001).
do ao final dos anos 1980, sob o impulso Confirmando a manifestação de um
inicial da Itália. Em 1991, o Parlamen- empreendedorismo inédito, diversas
to italiano aprovou uma lei que atribuía legislações nacionais construíram novos
um estatuto específico às “cooperativas ordenamentos jurídicos, supostamente
E
mais bem adaptados a esse tipo de inicia- em evidência. Em 2003, a Social Entreprise
189
tivas que os moldes associativos ou coo- Unit solicitou um trabalho de síntese a
perativos tradicionais. Após a lei italiana uma empresa de consultoria, que efetuou
de 1991, a Bélgica instituiu, em 1995, a um primeiro levantamento aproxima-
sociedade com finalidade social (SFS), e do de 5.300 empresas sociais no Reino
Portugal elaborou, em maio de 1999, um Unido. Conforme seu relatório, a defini-
estatuto de cooperativa social de respon- ção do governo trouxera mais clareza à
sabilidade limitada. Na mesma direção, noção de empresa social, porém, haveria
a lei geral espanhola de 1999 sobre as ainda uma série de dificuldades em ter-
cooperativas reservou um lugar às coope- mos de coerência e de comparabilidade
rativas de serviços sociais. Outras regiões a ser superada para se tornarem esses
definiram ordenamentos jurídicos espe- empreendimentos operacionais. Com
cíficos. No início do século XXI, a França vistas a indicarem caminhos pelos quais
criou o estatuto de sociedade cooperativa essas insuficiências pudessem ser atenu-
de interesse coletivo (SCIC), e o Reino adas, os consultores recorreram a estudos
Unido está em vias de adotar uma nova que informavam haver certo número de
legislação instituindo a community interest empresas sociais operando efetivamente
company. (ECOTEC, 2003). Os autores do relatório
concluíram ser necessário decompor-se a
4. Duas definições de empresa social cons- definição em uma série de características
tituem uma referência conceitual para ou indicadores os quais poderiam, melhor
um conjunto de outros trabalhos. A mais que um overall statement, subsidiar o inven-
recente provém do governo britânico, tário das empresas sociais no Reino Uni-
registrada no documento tornado público do. Esses indicadores tangeriam a três
em julho de 2002, intitulado Social Enter- registros principais: a orientação empre-
prise: a Strategy for Success (DTI, 2002). Outra sarial, os objetivos sociais e a propriedade
definição fora desenvolvida na segunda social das atividades observadas. Embora
metade dos anos 1990, pela rede européia a abordagem britânica mereça atenção,
EMES (BORZAGA e DEFOURNY, 2001). por fundamentar uma política que pro-
Conforme o Department of Trade and move explicitamente a empresa social,
Industry, “uma empresa social é uma ati- ela ainda está em plena construção. No
vidade comercial [business] com objetivos início do século XXI, os trabalhos susci-
essencialmente sociais e cujos exceden- tados por essa vertente situam-se em um
tes, em função dessas finalidades, são âmbito nacional muito circunscrito.
reinvestidos mais nessa atividade ou na A abordagem proposta pela EMES é
comunidade do que guiados pela necessi- fruto de um diálogo estabelecido entre
dade de maximizar os lucros para acionis- várias disciplinas (Economia, Sociologia,
tas ou proprietários” (DTI, 2002, p. 13). A Ciência Política e Administração), assim
partir dessa definição, uma série de tra- como entre as diversas tradições e sensibi-
balhos empíricos foi realizada. Até então, lidades nacionais dentro da União Euro-
grande variedade de abordagens coexis- péia. Além disso, orientada por um pro-
tia em torno dessa noção, cada vez mais jeto simultaneamente teórico e empírico,
E
essa abordagem privilegiou a identifica- organizações não-lucrativas tradicionais,
190
ção e a explicitação de indicadores sobre as empresas sociais podem apelar a recur-
uma definição conceitual bem concisa. sos tanto monetários quanto não-monetá-
Esses indicadores ou critérios dividem-se rios e a trabalhadores tanto remunerados
em duas séries, sendo uns mais econômi- como voluntários. O essencial é que seja
cos, outros mais sociais (DEFOURNY, 2001, mínimo o nível de emprego remunerado.
p. 16-18). A dimensão social dessas iniciativas é
O caráter econômico e empreendedor identificada privilegiando-se cinco indi-
das iniciativas consideradas é atestado cadores: a) Deve haver um objetivo explí-
mediante a presença de quatro indicado- cito de serviço à comunidade. Um dos
res. a) A atividade de produção de bens principais objetivos das empresas sociais é
ou serviços deve ser contínua. Ao contrá- prestar serviço à comunidade ou a um gru-
rio de certas organizações não-lucrativas po específico de pessoas. Esses empreen-
tradicionais, as empresas sociais não têm dimentos caracterizam-se por promover
normalmente como atividade principal a o sentido da responsabilidade social em
defesa de interesses nem a redistribuição âmbito local. b) A empresa social origi-
de capital (como acontece, por exemplo, na-se de uma iniciativa emanada de um
com muitas fundações), mas envolvem- grupo de cidadãos. Essa dinâmica cole-
se, direta e continuamente, na produção tiva envolve pessoas pertencentes a uma
de bens ou na oferta de serviços. A ativi- comunidade ou a um grupo que compar-
dade produtiva representa sua principal tilhe uma necessidade ou um objetivo bem
– ou uma de suas principais – razão de ser. definido. Essa dimensão é sempre mantida
b) As empresas sociais devem ter um alto de uma maneira ou outra, embora não se
grau de autonomia. Elas são criadas e con- deva negligenciar a importância de uma
troladas por um grupo de pessoas a partir liderança exercida por uma pessoa ou um
de um projeto próprio. Ainda que venham núcleo restrito de dirigentes. c) O poder
a depender de subsídios públicos, elas não decisório dos membros independe de seu
são dirigidas, direta ou indiretamente, por capital. Esse critério remete geralmente ao
autoridades públicas ou por outras orga- princípio “um membro, um voto”, ou, ao
nizações (federações, empresas privadas, menos, a um processo decisório em que os
etc.). As empresas sociais têm direito tanto direitos de voto na assembléia – cujo poder
a fazerem ser ouvida sua voz (voice), quanto de decisão é supremo – não sejam distri-
a darem por findas suas atividades (exit). c) buídos em função de eventuais participa-
Há um nível significativo de risco econô- ções no capital. Além disso, mesmo haven-
mico. Os criadores de uma empresa social do muitos proprietários do capital, esse
assumem total ou parcialmente o risco poder é geralmente compartilhado com
inerente a essa atividade. Ao contrário da outros atores. d) A dinâmica da empresa
maioria das instituições públicas, sua via- social é participativa, envolvendo diferen-
bilidade financeira depende dos esforços tes atores na atividade. A representação e a
despendidos por seus membros e por seus participação dos usuários ou dos clientes,
trabalhadores. d) Há um nível mínimo o exercício de um poder de decisão por
de emprego remunerado. Assim como as parte dos diversos integrantes do projeto e
E
uma gestão participativa constituem, com uma teoria específica da empresa social.
191
frequência, características importantes Bacchiega e Borzaga (2001), por exemplo,
das empresas sociais. Em muitos casos, um valeram-se de ferramentas da teoria insti-
de seus objetivos é promover localmente a tucional das organizações para evidenciar
democracia por meio da atividade econô- a natureza inovadora das empresas sociais.
mica. e) A distribuição dos lucros é limi- Os traços definidores da empresa social
tada. Embora possam caracterizar-se por são interpretados assim como um sistema
uma obrigação absoluta de não-distribui- original de incentivos que leva em conta
ção dos lucros, as empresas sociais tam- os objetivos, potencialmente conflituosos,
bém podem, a exemplo das cooperativas perseguidos pelas diferentes categorias
em muitos países, distribuir dividendos. de envolvidos (stakeholders). Evers (2001),
Essa partilha deve ocorrer de maneira limi- por sua vez, desenvolveu uma análise mais
tada, o que evita um comportamento que sociopolítica para argumentar que se pode
vise à maximização do lucro. compreender melhor essa estrutura multi-
Conquanto esses indicadores econô- stakeholder-multiple goal quando se recorre
micos e sociais permitam identificarem-se à noção de “capital social”. Para o autor, a
as empresas sociais, eles podem também produção de capital social também pode
induzir a assim se classificarem organiza- tornar-se um objetivo explícito de organi-
ções mais antigas reconfiguradas por novas zações como as empresas sociais. Já Lavil-
dinâmicas internas. Sobretudo, esses in- le e Nyssens (2001) propuseram elemen-
dicadores não são concebidos como um tos para uma teoria integrada de um tipo
conjunto de condições ao qual uma orga- ideal da empresa social, combinando suas
nização deva formalmente atender para dimensões econômicas, sociais e políticas.
ser qualificada como empresa social. Esses pesquisadores também insistem na
Mais que constituir critérios normativos, importância do capital social, mobilizado
eles descrevem um tipo ideal que possibi- e reproduzido sob formas específicas. Des-
lita situar-se no universo das empresas tacam ainda a natureza particularmente
sociais. A exemplo de uma bússola, esse híbrida dos recursos da empresa social,
instrumento pode auxiliar o pesquisador a avaliando-a como um trunfo essencial
posicionar as entidades observadas umas desse tipo de empresa para resistir às ten-
em relação às outras e, eventualmente, a dências ao “isomorfismo institucional”,
traçar os limites do conjunto das empre- que ameaçam todas as organizações da
sas sociais. Foi nesse sentido que Draperi economia social. Enfim, Borzaga e Solari
(2003), na França, e um grupo de pesqui- (2001) analisaram modelos de governança
sadores de outras partes da Europa traba- eventualmente específicos a essas empre-
lharam para identificar, sob parâmetros sas, indicando os principais desafios de
econômicos, trinta e nove “modelos” de gestão com os quais se confrontam seus
empresas sociais (DAVISTER, DEFOURNY e dirigentes e membros.
GRÉGOIRE, 2004; SPEAR e BIDET, 2003). Em vez de substituir concepções do
terceiro setor ou de fazer concorrência a
5. Alguns avanços já foram verifica- elas, a noção de empresa social enrique-
dos quanto à elaboração progressiva de ce-as. Além disso, ela salienta o quanto a
E
inovação social implica frequentemente DEFOURNY, J. (2001), From third sector to social enter-
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E
EMPRESAS RECUPERADAS de delegação, representação e controle;
Gabriel Fajn 193
dinâmicas por assembléias, entre outras.

1. As empresas recuperadas integram um 2. Desde meados dos anos 1990, com o


grupo heterogêneo de unidades produ- aprofundamento da crise econômica, o
tivas ou de serviços que tenham passado conflito social na Argentina intensificou-
por graves processos de falência ou fecha- se com o surgimento de novos atores:
mento. Suas atividades reiniciam condu- desempregados, membros de assembléias
zidas por seus trabalhadores com base no de bairro, poupadores prejudicados,
trabalho cooperativo de gestão autônoma entre outros, aliados a variadas formas de
e democrática. expressão de protesto. Nesse contexto,
Entre o final dos anos 1990 e o começo iniciaram-se os processos de recuperação
de 2000, grande quantidade de empresas de empresas com força inusitada entre os
foi recuperada por seus funcionários com anos 2000 e 2002, que se propagam até
o principal objetivo de defender os postos hoje.
de trabalho, mantendo-as em funciona- As mais de 200 empresas recuperadas
mento. Com base nessa circunstância, que ou em processo de recuperação desen-
abrangeu cerca de 200 unidades produti- volvem variadas atividades – metalúrgi-
vas em toda a Argentina, iniciou-se um cas, têxteis, químicas, frigoríficos, gráfi-
conjunto de processos sociais, dinâmicas cas, escolas, clínicas, hotéis, etc. –, dos
políticas, estratégias jurídicas e desenvol- mais diferentes portes. Essa diversidade
vimento econômico que ressaltou a grande tem seu correlato nos distintos ritmos
complexidade e riqueza dessas experiên- de recomposição e orientações políticas
cias. As empresas recuperadas represen- e ideológicas. Longe de encontrar uma
tam um dos exemplos mais dramáticos unidade empírica homogênea, o mundo
da destruição sistematizada do aparelho das fábricas e empresas recuperadas apre-
produtivo e da luta dos trabalhadores para senta heterogeneidade, complexidade e
preservarem seus empregos. Essas ins- diversidade interna.
tituições retratam, além disso, um novo Diversos aspectos uniram-se para for-
fenômeno social ocorrido na realidade mação do movimento. Entre os fatores socio-
argentina mediante práticas coletivas que econômicos, encontram-se a destruição do
podem ser entendidas como expressões aparelho produtivo, a profunda recessão
de reação à crise e como propostas alter- iniciada em 1998 e, fundamentalmente, o
nativas de modalidades de gestão. nível alcançado pelo desemprego estrutu-
Os processos de luta foram intimamen- ral. Como fatores políticos, pode-se apontar
te relacionados às formas autogestioná- a intensificação do ciclo de protestos, o
rias que cada organização foi construindo. surgimento de novos atores sociais e a cri-
Podem-se percebê-las por intermédio das se estatal, entre outros.
práticas que se desenvolveram no interior A grande quantidade de fábricas em
das empresas: redistribuição igualitária da processo de recuperação (principalmen-
receita; implantação de processos cole- te no período de 2000 a 2002) caracte-
tivos para a tomada de decisão; formas rizou-se por empresas das mais diversas
E
atividades, integradas por empregados as dinâmicas políticas e as estratégias ado-
194
com trajetórias de trabalho dissimilares. tadas posteriormente tenham contempla-
Enquanto alguns poucos tinham ante- do diferentes opções político-ideológicas.
cedentes sindicais e políticos, a grande Sem alternativas, os trabalhadores
maioria possuía escassa ou nula experiên- optaram pela tomada e ocupação de fábri-
cia nesses âmbitos. cas, acampando às suas portas. Bloquea-
A iniciativa de recuperar as fábricas ram estradas e tomaram outras medidas
adquiriu mais visibilidade pública e apoio de ação direta que objetivaram resguardar
social a partir de sua difusão nos meios de o trabalho e manter a empresa em funcio-
comunicação de massa e na mídia alterna- namento. Outrossim, as máquinas, ferra-
tiva. Alguns dos novos atores organizados, mentas e mercadorias foram custodiadas
como as assembléias, estabeleceram um para evitar as ações de esvaziamento das
vínculo estreito com as empresas recupe- fábricas.
radas, em muitos casos participando ati- Muitos empresários circunscreveram
vamente nesse processo. O ápice da recu- a resolução do conflito ao âmbito judicial,
peração ocorreu no ano de 2001, quando não por respeitarem os aspectos legais,
se verificaram 37% dessas experiências, mas para encontrarem brechas que lhes
havendo um alto nível de conflito, geral- facilitassem ludibriar a lei. Por meio desse
mente acompanhado por ações diretas. artifício, exonerar-se-iam da empresa com
Houve também mais articulação entre as os menores custos econômicos pessoais,
empresas, que começaram a agrupar-se mesmo que isso significasse a destruição
em diferentes movimentos. Na ocasião, as ou o fechamento da fábrica. Os emprega-
primeiras experiências funcionaram como dores não privilegiaram a racionalidade
núcleo dos variados movimentos, trans- econômica com o intuito de preservar as
mitindo experiência e ajuda econômica às empresas e mantê-las em funcionamento,
novas fábricas. destarte optaram por uma lógica predató-
ria que visou ao benefício pessoal.
3. As políticas neoliberais impuseram
um retrocesso aos avanços trabalhistas, 4. A idéia de recuperar empresas surgiu
menosprezando as conquistas históricas, devido a situações de crises terminais,
reduzindo constantemente o número de como recuperação judicial, falências, dívi-
empregados e fomentando um sindicalis- das milionárias, abandono pelos donos,
mo em grande parte burocratizado e dis- ruptura dos contratos de trabalho e dívi-
tante dos seus representados. A ocupação das salariais prolongadas, entre outras
e a recuperação das fábricas configuraram ameaças à continuidade dessas organiza-
uma estratégia defensiva – quase desespera- ções. Diante desse panorama, os trabalha-
da – cujo objetivo fundamental foi a sobre- dores reagiram para manterem as fontes
vivência da empresa e a preservação do de trabalho. Cabe ressaltar que a dinâmica
trabalho. Esse elemento deflagrador foi social coletiva gerou, nesses processos, um
talvez a maior coincidência encontrada no salto qualitativo imprevisto, impensado,
conjunto de empresas que conformaram muitas vezes sequer desejado, que repre-
esses processos de recuperação, embora sentou uma ruptura na história da fábrica.
E
Tendo a certeza do desemprego, os assa- O conflito adquiriu tamanha proporção,
195
lariados conduziram, de forma imediata e que impregnou e instituiu novas “formas
intempestiva, os destinos de suas organi- de fazer” na reabertura das fábricas. Nesse
zações, praticamente sem aprendizagens momento de refundação, foram impor-
formais nem assessorias prévias, tendo tantes os laços construídos entre os traba-
como mediadores apenas o conflito e a lhadores, em suas práticas coletivas e nas
luta. aprendizagens que incorporaram duran-
A recuperação das empresas configura te o processo, para dar continuidade ao
um momento de refundação, no qual os movimento e a um novo modelo organiza-
trabalhadores encarregaram-se das fábri- cional. Destarte, é fatível estabelecer uma
cas em situações extremamente desfavo- relação importante entre a intensidade
ráveis e traumáticas. Assim se iniciou um que o conflito adquiriu nas empresas e
novo ciclo organizacional, cuja primeira as iniciativas de gestão coletiva adota-
fase caracterizou-se pela complexidade das pelos trabalhadores nos primeiros
e pelo número reduzido de alternativas. momentos da recuperação da empresa.
Diante de uma situação de alta incerte- Nesse cenário, o impacto da desvalori-
za jurídico-legal, sem acesso a capital de zação econômica teve importância central
trabalho ou a subsídios estatais, clientes sobre as diferentes atividades industriais
e fornecedores ainda estavam envolvidos e de serviços, pois minimizou as possibi-
com dívidas dos donos anteriores, portan- lidades reais que cada empresa possuía
to desconfiados do novo projeto. A recom- para inserir-se produtivamente. Em janei-
posição da capacidade produtiva foi um ro de 2002, por exemplo, com o ápice de
processo lento e dificultoso na maioria uma crise que se alastrava há vários anos,
das fábricas, mas também prioritário para a economia argentina passou por um pro-
a consolidação econômica da empresa. cesso de desvalorização da moeda. A lei
A reconstrução do espaço organizacio- da convertibilidade, que atrelava o peso
nal, balizada por uma perspectiva auto- ao dólar, na razão de um para um, foi der-
gestionária, abalou as relações capital-tra- rocada, dando lugar ao câmbio flutuante
balho, que são hierarquizadas ao extremo, e acentuando o caos político, econômico
nas quais prevalecem a obediência e a e financeiro.
submissão. Essa desestruturação favore- Múltiplos fatores destacaram-se na
ceu uma apropriação coletiva dos saberes sequência, conforme as particularidades
gerenciais, bem como o estabelecimento de cada setor, como a reestruturação do
de processos democráticos de tomada mercado interno, o acesso ao crédito e o
de decisões na empresa, tendo em vista valor das matérias-primas, entre outros.
haver, nessa forma diferenciada de gerir, a Em geral, não se observaram, nas empre-
prática de assembléias. sas recuperadas, modificações de grande
De qualquer forma, não se deve enten- envergadura no que concerne à organiza-
der e/ou analisar separadamente a inten- ção do processo de trabalho. As modali-
sidade do embate travado em cada fábrica dades herdadas e prevalecentes antes da
e a reorganização das empresas a partir recuperação foram, em parte, mantidas,
das novas práticas utilizadas para a gestão. embora com o implemento de alternativas
E
práticas e inovadoras em algumas regula- de tomada de decisão e autonomia dos
196
mentações trabalhistas. trabalhadores.
A ausência de modificações nos pro-
cessos de trabalho relaciona-se à conser- 5. Tanto a superação da crise de governabi-
vação dos modos de relação dos trabalha- lidade, ocorrida entre 2004 e 2008, quan-
dores com as máquinas e equipamentos to a recuperação lenta, porém constante,
tecnológicos e as matérias a serem trans- da produção e do emprego amorteceram
formadas. Também é certo que a rigidez a intensidade dos protestos. Nesse pano-
tecnológica condiciona bastante as possi- rama, a quantidade de novas empresas
bilidades de reorganização do processo de em processos de recuperação diminuiu a
trabalho, e as adequações necessárias são partir de 2004 e, embora se mantivessem
proteladas em função dos seus custos ele- latentes, verificou-se uma tendência à sua
vados. Na organização do processo de tra- extinção.
balho, percebem-se grandes semelhanças O fenômeno em geral perdeu visibi-
entre as empresas recuperadas e as demais lidade pública, e suas reaparições vin-
empresas no que se refere às funções fixas, cularam-se a protestos específicos. Algu-
à fragmentação das tarefas e às repetições mas empresas consolidaram-se economi-
da mesma operação parcial, entre outras. camente e saíram do primeiro plano das
Já no tocante à gestão do ritmo e à inten- lutas, enquanto outras ainda não defi-
sidade das tarefas, observa-se mais pru- niram sua situação legal. É por isso que
dência, diante da ausência da pressão do a intensidade, nesse período, pode ser
capital e da eliminação dos dispositivos de entendida como uma ondulação do ciclo,
vigilância anteriores. Várias empresas que marcado por conflitos pontuais, como o
já passaram pelos primeiros anos de ocu- tratamento de uma expropriação e a resis-
pação recompuseram grande parte des- tência a uma ordem de despejo, a exemplo
sas condições, conseguiram reinserir-se do hotel Bauen ou da metalúrgica IMPA,
comercialmente e aumentaram sua pro- entre outros.
dução. Em contrapartida, não se verifica- A indefinição quanto a sancionar uma
ram, em suas agendas de curto ou médio nova lei de falências que resolva, em ter-
prazo, quaisquer propostas estratégicas mos gerais, o quadro legal dessas empresas
que modificassem sensivelmente a organi- suscita uma situação fragmentária na qual
zação do processo de trabalho. cada organização deve resolver autono-
A rigidez da organização do proces- mamente sua continuidade. Negociações
so de trabalho pode constituir-se em um particulares confirmam essa incerteza e
dos entraves mais importantes ao desen- reforçam as circunstâncias de isolamento.
volvimento da gestão coletiva e às prá- Como fenômeno em transição, as
ticas democráticas autogestionárias. As empresas recuperadas significam um
mudanças (ou não) nesse sentido aludem espaço organizacional contraditório, vis-
diretamente às modificações nas estraté- to serem produtoras de mercadorias e
gias de controle, no desenvolvimento das necessariamente permutarem seus bens
qualificações, na reestruturação dos traba- e serviços no mercado. Estão sujeitas às
lhos manual e intelectual e nos processos irracionalidades e às oscilações, sendo a
E
desvalorização cambial um bom exemplo. que se apropriam do know-how da ges-
197
Participam da livre concorrência, cujas tão, degradando a dinâmica democrática
regras estão definidas pelas empresas e dificultando a participação coletiva e a
privadas dominantes, logo, seu funciona- gestão econômica.
mento encontra-se determinado pelas leis A incidência do fenômeno de empresas
de valorização do capital (VIEITEZ e DAL RI, recuperadas na Argentina é bastante res-
2001). Nesse sentido, as restrições impos- trita em termos econômicos e seu impac-
tas pelo sistema ocasionam sensíveis limi- to é mínimo na economia como um todo,
tações de autonomia. Essas experiências mas seus exemplos, em termos políticos e
fomentaram ainda potenciais críticos de simbólicos, foram fundamentais. A recu-
um modelo de organização emergente, peração de empresas integra, no século
balizado em práticas cotidianas de cons- XXI, a memória política dos trabalhadores
trução participativa e democrática dos e a “caixa de ferramentas” de estratégias
trabalhadores nos processos de tomada disponíveis de luta contra o sistema.
de decisões e na continuidade dessa alter-
BIBLIOGRAFIA
nativa de gestão. De forma embrionária e
assistemática, suas contribuições às regu- FAJN, G. (Coord.) (2003), Fábricas y empresas recupera-
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às de outras empresas autogestionadas, res recuperando la producción, Buenos Aires: Colec-
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se, igualmente, as ameaças presentes, no cooperativas e empresas de autogestão, Rio de Janeiro:
seu interior, dos grupos “tecnocráticos”, DP&A.
E
ESTADO SOCIAL A filosofia clássica do Estado social
198 François-Xavier Merrien pode ser definida, simplificadamente,
como uma filosofia dos direitos da cidada-
1. No sentido estrito, Estado social signi- nia. Nos Estados sociais plenos, é neces-
fica a monopolização das funções de soli- sário e suficiente, para adquirir a quali-
dariedade social pelo Estado. O Estado dade de beneficiário, enquadrar-se em
social concretiza-se sempre gradualmente, uma categoria juridicamente definida. O
uma vez que nenhum Estado monopo- acesso aos direitos sociais independe do
liza na íntegra essas funções. Mesmo no mérito individual ou de um determinado
campo das solidariedades organizadas e comportamento.
regulamentadas, o Estado desempenha,
frequentemente, um papel direto bastan- 2. O Estado social configurou-se ao final
te pequeno, limitando-se a uma função do século XIX, mas assumiu sua forma
regulamentária. Nesses casos, por exem- moderna após a Segunda Guerra Mun-
plo, estabelece as condições de acesso aos dial (SWAAN, 1995). Os Estados sociais
direitos ou impõe a obrigação de segurida- reais diferem entre si quanto ao modo
de social. Por vezes, administra diretamen- de assumirem os riscos sociais, ao tipo e
te os serviços sociais, mas não raro estes quantidade de instituições e aos serviços
são delegados a organizações públicas ou que disponibilizam à população. Não obs-
privadas, a associações ou a sindicatos. tante, podem ser destacadas categorias
O Estado social não é sinônimo de tipo ideais, modelos ou regimes de Estado
Estado-providência, noção de origem social. É válido classificarem-se os Estados
francesa que imputa ao Estado a respon- sociais em fortes, médios ou fracos, em
sabilidade pelo social e que sugere haver função de seu grau de desmercantilização
oposição estrita entre um Estado onis- (ESPING-ANDERSEN, 1999; POLANYI, 1980),
ciente e cidadãos atomizados e desfavore- isto é, da possibilidade legal que eles ofe-
cidos. A esta, é preferível a noção anglo- recem aos indivíduos de se distanciarem
saxã de Welfare State, de origem posterior, mais ou menos do mercado, enquanto
já que evoca claramente uma das novas levam em conta suas necessidades. Esta-
funções do Estado moderno: garantir o belecendo-se uma tipologia baseada em
bem-estar social dos cidadãos sob parâ- características “institucionais”, podem ser
metros de equidade e de solidariedade. distinguidos três grupos ou famílias de
A despeito dessas considerações, a noção Estados-providência.
anglo-saxã é de difícil tradução, e, cada vez O primeiro modelo corresponde bem
mais, a idéia de Estado social tende a tor- ao regime clássico de serviço público.
nar-se seu sinônimo. Admitida nesse sen- Nele, as instituições públicas desempe-
tido, a noção apresenta duplo mérito: ela nham o papel principal, senão monopo-
ressalta ainda a racionalização e a objeti- lista, o financiamento é essencialmente
vação do direito à ajuda, constituído pela fiscal, e os benefícios são iguais para
passagem de uma solidariedade subjetiva todos e a todos favorecem. Em 1938, o
ou arbitrária a uma solidariedade objetiva, governo da Nova Zelândia criou o pri-
baseada em direitos. meiro serviço nacional de saúde “gra-
E
tuito”, ou seja, financiado pelo imposto. lista forte, cujos melhores exemplos são os
199
Embora a invenção do modelo deva-se aos países escandinavos (FERRERA, 1993).
neozelandeses, os países nórdicos são os A segunda família de Estados sociais
que bem o ilustram: Dinamarca, Suécia, corresponde ao Estado de seguridade
Noruega e Finlândia identificam-se clara- social generalizado. A noção de seguri-
mente com o Estado social universalista, dade social designa, em primeiro lugar,
de “redistribuição institucionalizada” ou a utilização das técnicas da previdên-
“social-democrata”. Isso significa, essen- cia e, de modo particular, a cotização, o
cialmente, que o princípio fundamental compartilhamento dos recursos (pooling)
do Estado social não é a seguridade social, e a consideração dos níveis de riscos.
mas a oferta de prestações alocadas, isto é, Nesse modelo de Estado, a previdência
somas fixas de um montante considerável social distingue-se da previdência priva-
pago automática e universalmente. Essa da por uma série de traços: é obrigatória
oferta “financeira” é complementada pela para toda a população ou para amplos
disponibilidade de serviços públicos uni- segmentos dela; é financiada por coti-
versais (isto é, oferecidos a todo cidadão), zações baseadas nos salários (e não no
gratuitos (ou seja, financiados por impos- grau de risco) e por uma contribuição do
tos) e fundados nas necessidades (e não empregador (quase sempre equivalente
nos direitos adquiridos pelas cotizações à dos assalariados); os riscos segurados
sociais). Em nome do princípio de igual- respeitam sobretudo àqueles afeitos à
dade e de universalidade, todo cidadão vida profissional e a possibilidades de se
tem a garantia, em caso de necessidade, trabalhar e, portanto, receber remunera-
de poder beneficiar-se de uma renda ou ção por um trabalho (velhice, invalidez,
prestação de serviço. Esse direito alcança doença, acidente de trabalho, desempre-
todas as categorias da população – assala- go, etc.); o princípio fundamental dessa
riados, homens ou mulheres do lar, traba- previdência é aprovisionar um salário de
lhadores autônomos ou pessoas portado- substituição que represente porção sig-
ras de deficiências. A noção de igualdade nificativa do salário real; a mutualidade é
dos direitos é muito importante, tradu- ampla, permitindo reduzirem-se os cus-
zindo-se, por exemplo, em direitos iguais tos que competem a cada um dos agen-
e individualizados do homem, da mulher tes envolvidos.
e das crianças. Nesse regime, a parcela O Estado detém o monopólio sobre a
assumida pelo setor público é muito gran- regulamentação da previdência, exercen-
de, e o setor privado e associativo é frágil, do controle mesmo sobre as instituições
embora os sindicatos ocupem um lugar autônomas que gerem grande parte do
privilegiado nas políticas do emprego. Estado social. O Estado social fundado na
O modelo universalista é, às vezes, cha- seguridade é o mais difundido no mundo,
mado beveridgiano, classificação que, em sendo majoritário na Europa e fundamen-
seu princípio, é justa. Na prática, deve-se tando muitos regimes de seguridade social
distinguir um modelo universalista frágil, na América Latina. O regime de seguro-
ao qual pertencem tanto a Grã-Bretanha velhice dos Estados Unidos baseia-se nes-
quanto a Irlanda, de um modelo universa- se modelo.
E
Embora criticados pelos autores escan- pendentes de sua vontade, o indivíduo
200
dinavos, por seu aspecto insuficientemen- não lograr obter seus meios de subsistên-
te redistributivo, os sistemas de proteção cia no mercado, as solidariedades fami-
social, bismarckiano ou de contribuição, ou liares deverão provê-los; na falta delas, as
os “conservadores-corporativistas” cons- redes privadas de solidariedade assumirão
tituem mais um grande passo rumo a uma tal encargo. O Estado deve intervir apenas
solidariedade social mais plena. A seguri- em última instância, somente para assis-
dade social fundamenta o direito a rece- tir aos mais pobres, se comprovada sua
berem-se benefícios que não resultam da indigência. A maioria das medidas sociais
caridade pública, mas constituem a con- repousa sobre um controle humilhante da
traparte de cotizações. Os ativos pagam necessidade, e a assistência está longe de
pelos aposentados e pelos desemprega- garantir um vital mínimo verdadeiro. A
dos; os saudáveis, válidos e jovens pagam ação social é assegurada por grande núme-
respectivamente pelos doentes, inválidos ro de instituições públicas, semipúblicas,
e velhos, em um sistema global de distri- privadas, frequentemente religiosas, com
buição. O montante dos recursos dispo- fins lucrativos ou não.
níveis cobre a totalidade das necessidades Desejando-se estabelecer, mais rigoro-
existentes. samente, modelos institucionais de Estado-
Do ponto de vista institucional, os Esta- providência, a análise pode repousar sobre
dos sociais bismarckianos compreendem, quatro indicadores: o tipo de instituição, o
em geral, um vasto setor de previdência modo de financiamento, as formas de pres-
social, gerido pelos parceiros sociais sob tação, as populações-alvo. A combinação
o controle do Estado, e um setor público entre esses critérios permite diferencia-
local que garante as tarefas de ajuda social. rem-se as três categorias típicas de Estado
O setor público é complementado pela social. Esses três modelos históricos vêm
ação de uma miríade de associações pri- sendo objeto de questionamentos e de
vadas ou semipúblicas, geralmente subsi- remodelagens. À crença nas virtudes do
diadas, que exercem papel vital no campo Estado protetor, como coluna vertebral do
das políticas sociais categoriais (política laço social, sucedeu a crença nas virtudes
de luta contra a toxicomania, políticas da do mercado auto-regulador. Desde o final
infância, da adolescência em perigo, dos do século XX, assiste-se a um processo de
deficientes, etc.) e, atualmente, das políti- profundo questionamento acerca do Esta-
cas sociais transversais, como as políticas do social Welfare Backlash. As noções clás-
de inclusão e as políticas de luta contra a sicas de direitos sociais, de redistribuição
pobreza e a exclusão, entre outras. institucionalizada e de universalidade dos
O terceiro modelo de Estado social é direitos vêm sendo substituídas, pouco a
denominado, por vezes, de mercado, ou pouco, por aquelas de responsabilidade
residual. Sua lógica é simples: entende-se individual, de proteção social direcionada
ser o mercado o mecanismo mais eficaz e de privatização dos serviços sociais.
para proporcionar, a cada indivíduo, uma
alocação de recursos em função de seus 3. A partir da década de 1980, as elites
méritos individuais. Se, por razões inde- políticas de todos os países passaram a
E
ser interpeladas, em diferentes graus, pela zado pelo alto coeficiente de intervenção,
201
simplicidade e pelo caráter aparentemen- regulamentação e redistribuição públicas.
te incontestável das idéias neoliberais. A essa avaliação, pode-se contrapor o fato
Como postulado inicial, pode-se afirmar de que as políticas “neoliberais” preconi-
que, no início do século XXI, a disputa dá- zadas por grande número de especialis-
se em torno, para além de arranjos técni- tas não são sistematicamente retomadas
cos, da manutenção ou extinção de uma pelos governos nacionais. Conforme os
filosofia social que constrói uma relação países, o ideário neoliberal varia quanto
social de direito entre o indivíduo e seu ao grau de sistematização, modalidades,
Estado. A “remercantilização” da socie- intensidade e efeitos. A implantação das
dade implica uma mudança total de pers- novas políticas dá-se em gradações variá-
pectivas ou, em outros termos, um novo veis, além de haver sérias divergências
paradigma: a substituição de um sistema quanto à própria concepção dessas políti-
de direitos objetivos por uma série de dis- cas (SCHARPF e SCHMIDT, 2000).
posições que visam tornar o cidadão res- Nos países desenvolvidos, os anglo-
ponsável por seu destino. saxões orientam-se nitidamente para o
Essa evolução aplica-se a todos os cam- modelo liberal. Os países continentais e
pos tradicionais da proteção social: saúde, escandinavos encetaram reorientações,
aposentadoria, desemprego. Em matéria que preservam essencialmente a herança
de saúde, o direito ao tratamento é condi- política e social. Nos países em transição
cionado pelo comportamento individual e nos intermediários, a situação é bem
(modo de vida, dependências químicas, diferente. Os países da Europa Central
a exemplo do tabagismo, etc.); em maté- e Oriental tornaram-se um laboratório
ria de aposentadoria, cada indivíduo fica das reformas da proteção social (REVUE...,
“livre” para buscar um fundo de pensão 2001). As organizações financeiras inter-
privado. Evidentemente, é no campo do nacionais (OFIs) defendem ser necessá-
desemprego e da assistência que essa ria uma mudança radical de orientação
revolução liberal é mais aguda. O benefí- (DEACON, 1997).
cio dos direitos é reduzido, ficando con- A seguridade social não é mais consi-
dicionado à submissão a imperativos com- derada um objetivo legítimo, mas um obs-
portamentais. Em todas essas situações e, táculo ao desenvolvimento da economia
de modo exemplar, no último caso, passa- de mercado. O modelo proposto é o de um
se de uma teoria “solidarista” da socieda- sistema puramente liberal em cujo seio o
de a uma teoria individualista, conforme social não constitui mais do que uma rede
o credo liberal do século XX. Quando o de proteção mínima, recaindo seus riscos
indivíduo encontra-se em uma situação (ou ganhos eventuais) sobre o cidadão.
de risco social, tudo se passa como se ele Na prática, o grau e a temporalidade das
fosse obrigado, doravante, a avaliar seus reformas dependem das preferências das
próprios méritos e deficiências. elites no poder, da relação de forças entre
Com base nesses fatos, alguns pesqui- as elites sociais e as elites financeiras e da
sadores deduzem estar chegando a termo o situação social, demográfica, financeira
Estado-providência tradicional, caracteri- e orçamentária dos diferentes países. Na
E
América Latina, a grave crise dos anos FERRERA, M. (1993), Modelli di solidarieta, Milano: Il
202 Mulino.
1980 ocasionou um reexame completo
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EWALD, F. (1986), L’État-providence, Paris: Grasset. PUF.
E
ÉTICA ECONÔMICA por exemplo, da consistência e congru-
Anne Salmon 203
ência internas na sua construção lógica,
Antonio David Cattani de seu significado como reforço do poder
no seio das organizações, de sua extensão
1. Em sua acepção mais ampla, ética defi- a esferas não-econômicas e de sua influ-
ne-se como o conjunto de princípios, ência antiutópica.
valores e obrigações que rege dimensões
específicas da ação humana e da vida 2. As designações economia natural, econo-
social. Os preceitos e julgamentos éticos mia positiva e economia pura remetem ao
motivam, disciplinam e orientam os com- pensamento utilitarista formulado no
portamentos individuais e sociais tendo século XIX e reproduzido contempora-
como horizonte a consecução da máxima neamente nos preceitos neoliberais,
harmonia, excelência ou perfectibilidade tendo como idéia basilar uma avaliação
em termos crescentemente universais e peremptória do ser humano considerado
impessoais. De acordo com as doutrinas livre e consciente do conjunto de normas
racionalistas, essa acepção corresponde a e leis morais que adota em sua existência
uma visão progressista, voltada ao futuro social. Essa concepção antropocêntrica,
e não atrelada às autoridades religiosas, à pilar essencial que sustenta todo o arca-
tradição e, sobretudo, a interesses imedia- bouço teórico subsequente, compreende
tos e parciais. A justificação, legitimidade os indivíduos como idênticos e sempre em
e alcance das normas éticas são associados pé de igualdade, como seres dotados de
aos processos civilizadores e não à preten- racionalidade pura e uniforme, exercendo
são de determinados grupos, classes ou continuamente o livre arbítrio e buscando
segmentos sociais cujos interesses e obje- maximizar as utilidades, ou seja, agencian-
tivos políticos e econômicos não tenham do, de maneira pragmática e eficiente, os
caráter universalizador. meios com vistas aos fins almejados. De
Concepções circunscritas de ética acordo com os principais teóricos dessa
traduzem-se quase sempre como redu- corrente interpretativa, a razão concer-
ções particularistas, representando, em ne ao conhecimento natural, diferente
alguns casos, meros códigos de conduta do conhecimento revelado, cujas origens
autoproclamados ou deontologias, que situam-se na fé ou no dogma. Supondo-se
buscam, entretanto, legitimidade em a inexistência de condicionamentos pré-
referências a princípios éticos gerais. vios, de origem política ou econômica, o
Exatamente por isso, essas concepções exercício da razão seria, portanto, univer-
precisam ser analisadas com extremo cui- sal e objetivo, correspondendo à verdade
dado, de maneira a identificarem-se seus dos fenômenos. As formulações subse-
princípios e sua coerência interna, suas quentes, que constituem a denominada
valorações pragmáticas e prescritivas, ciência econômica, nada mais são que o
bem como seu alcance ideológico. A refe- resultado de um encadeamento axiológi-
rência à ética econômica como emanação co a partir da ficção do homo æconomicus. As
da corrente de pensamento dominante teorias do livre mercado auto-regulador,
envolve vários questionamentos acerca, da firma, do consumidor soberano com
E
suas ordens de valores, sustentam-se nes- No capitalismo, a ética econômica
204
sa concepção particular da ação humana, deve ser entendida como um conjunto de
hedonista, auto-suficiente e egoísta, sen- princípios, práticas e valores definido em
do nada mais do que crenças, discursos um quadro que parte da injustiça e nela
que traduzem interesses específicos. Para resulta. Somente é possível considerar-se
legitimar as razões do poder, a economia legítimo o caráter amoral do capitalismo,
“pura” precisa abstrair o mundo real, apa- como o faz um influente filósofo con-
gando os paradoxos, negando a violência temporâneo, Compte-Sponville (2004),
e a dominação e escondendo as contra- aceitando-se a exploração do trabalho
dições e as desigualdades já constituídas. tido como fungível, a irracionalidade do
A construção ideológica vale-se do poder produtivismo forçado e a relação deletéria
dos substantivos e dos adjetivos positivos: com a natureza e ignorando-se, sobretudo,
racional, pragmático, equilibrado, eficaz as dimensões predatórias das corporações
(que produz o efeito desejado), eficiente (BAKAN, 2008). A alegação de o capitalismo
(que produz os melhores resultados) e, ser regido por uma ordem autônoma, des-
ainda, dinâmico e competente, para ide- vinculada das outras dimensões da vida,
alizar situações materiais e sociais marca- permite designarem-se como eficientes e
das pela irracionalidade produtivista, pelo eficazes condutas que, de fato, são anti-
consumo alienado e pela mercantilização humanas e anti-sociais.
de todas as dimensões da vida humana. Considerando somente o poder ori-
A mais grave incoerência dessa cons- ginário das diferenças incomensuráveis
trução teórica situa-se entre o princípio da entre o tamanho das empresas, é possí-
igualdade dos sujeitos e a propriedade dos vel apontar outra inconsistência lógica
meios de produção, que assegura a apro- presente nas teorias utilitarista e do livre
priação privada da produção social. Garan- mercado. A partir de certo tamanho ou de
tindo direitos de sucessão, a sacralização da uma posição privilegiada no mercado, as
propriedade privada inviabiliza a igualdade empresas podem fraudar todos os princí-
de chances, estendendo seus reflexos ao pios da livre concorrência, da igualdade
mercado de trabalho e à esfera produtiva. de chances e das racionalidades admi-
O princípio da acumulação ilimitada refor- nistrativa e produtiva (GALBRAITH, 2004;
ça e intensifica os desequilíbrios. Longe MATHERS, 2004; NORDSTROM, 2007). O
de materializar um processo unitário, com mais importante é que esses expedientes
resultados homogêneos meritamente con- não se reduzem a práticas excepcionais,
quistados, o capitalismo cria e recria con- sendo corriqueiros no “supercapitalis-
tinuamente as desigualdades, penalizando mo” (REICH, 2008). Outra incoerência
e marginalizando os mais vulneráveis. Ora, lógica revela-se pela adoção, por grandes
uma ordem social justa associa-se obriga- empresas multinacionais, de “cartas éti-
toriamente à idéia de igualdade e equida- cas” válidas em seus países de origem, mas
de. A racionalidade capitalista opera em não no Terceiro Mundo. Assim, declara-
sentido oposto, construindo e redefinindo ções de respeito aos códigos de trabalho
hierarquias, particularismos, privilégios e ou à legislação ambiental servem à Euro-
exclusões. pa ou aos Estados Unidos e Canadá, mas
E
não são adotadas nos demais países. Em de responsabilidades empresarial e social
205
um tardio respeito aos consumidores do e, muito particularmente, no desenvolvi-
Primeiro Mundo, multinacionais farma- mento da neofilantropia.
cêuticas retiram do mercado medicamen- Embora a “ética econômica” inscreva-
tos condenados pelos serviços de saúde e se mais no campo discursivo e traduza-se
continuam vendendo-os na África ou na menos em comportamentos, seus impac-
América Latina. Ao mesmo tempo em que tos fazem-se sentir nos ambientes de tra-
proclamam sua missão redentora inter- balho. A questão do disciplinamento da
nacionalista, dividem os seres humanos força de trabalho e das formas de coope-
entre cidadãos de primeira classe (bran- ração, isto é, da regulação das interações
cos norte-ocidentais, merecedores de res- na esfera econômica, coloca-se com gravi-
peito ético) e de segunda (o restante do dade no momento, quando a desarticula-
mundo, indigno de consideração). Uma ção entre o econômico e o social interroga
ética econômica sob as condições do capi- o sentido da participação de cada um no
talismo realmente existente nada mais é projeto econômico, que se torna cada vez
do que uma peça publicitária, estratégia menos justificável humana e socialmente.
indireta para assegurar-se o objetivo pre- Ao mesmo tempo, as mutações verificadas
cípuo do capitalismo, a maximização do na esfera da produção e a terceirização da
lucro (BAKAN, 2008). economia reforçam o imperativo de os
atores envolverem-se no sistema, já que
3. A partir da década de 1990, a expansão as capacidades relacionais e comunicacio-
capitalista foi marcada pela redução do nais estão sendo progressivamente solici-
Estado de bem-estar, pela precarização do tadas nas organizações. Em um período
trabalho e pela multiplicação dos escânda- em que a racionalidade capitalista busca
los corporativos. As desigualdades sociais mobilizar não mais tanto o gesto, mas a
que acompanham esse crescimento foram pessoa global como recurso a serviço do
ampliadas devido ao significativo aumen- aumento das riquezas, espera-se haver
to da concentração de renda. Somado uma motivação extra por parte dos assa-
aos graves impactos ambientais, esse lariados. Torna-se preciso inventarem-
fenômeno reacendeu uma infinidade de se novas formas de cooperação que não
movimentos da sociedade civil, que refor- podem se reduzir às formas de integração
çaram antigas resistências, abrindo novos funcionais da organização taylorista. É
campos de embate contra a dominação necessário acrescentar-se, à hipótese da
do sistema capitalista. É nesse campo de erosão da crença no progresso, a suposi-
enfrentamento que é possível entender ção de que as transformações operadas na
o desenvolvimento das práticas ditas de sociedade requerem menos a restauração
“boa governança corporativa”, de “res- dessa fé e mais uma ideologia de substitui-
ponsabilidade social empresarial” e de ção que acompanhe essas mutações.
“ética econômica”. Esta última, expressa A nova organização do trabalho rede-
sob tonitruantes declarações de princípio fine “a unidade do trabalhador” na base
amplamente divulgadas pela mídia, apa- de uma “gestão” das trocas, opondo-se a
rece nos balanços sociais, nas ações ditas uma economia dos movimentos obtida
E
por uma divisão cada vez mais acurada dos ética retrabalhada pelas lógicas econômi-
206
gestos e, portanto, pela especialização e cas encontra uma expressão paroxística
fragmentação das tarefas. Nesse sentido, nas cartas e nos códigos das empresas.
se a ética progressista contribuiu para Neles, a ética estabelecer-se-ia como meio
forjar o homo faber, é possível levantar-se de regulação pelos valores e fins, todavia,
a hipótese de que a ética econômica das as motivações da adesão repousam, essen-
empresas vise essencialmente (re)formar cialmente, na afirmação de um “desejo
o indivíduo por e para o desejo de troca irracional de acreditar-se em alguma coi-
de conhecimentos, de savoir-faire e de uma sa” e de sentir-se estruturado por normas
comunicação crescente nas organizações. que as instituições tradicionais, atingidas
Já que se espera a evolução das relações pela “perda de autoridade”, não fornecem
da empresa com seu meio e das relações mais realmente.
internas entre os diferentes serviços e O mesmo significado pode ser estendi-
entre os assalariados, o controle não deve do ao restante da sociedade. Valores posi-
mais incidir unicamente sobre o processo tivos são mobilizados (respeito ao outro,
de produção, mas também sobre a perso- desenvolvimento pessoal, solidariedade,
nalidade dos produtores. etc.) e oferecidos pela empresa aos indi-
A tentativa de se estabelecerem formas víduos em “busca de sentido”. Percebe-
de controle e regulação pelo mercado den- se assim uma forma de privatização dos
tro da própria empresa não gerou os frutos valores ligada às próprias motivações da
esperados. Pondo fim às solidariedades e adesão mais comerciais e publicitárias e
às referências tradicionais, a individuali- menos estritamente ideológicas e de pro-
zação crescente da nova gestão, que reduz paganda. A eficácia desses procedimentos,
a troca à sua dimensão mercantil, resulta para além das lógicas de sedução, repousa
em fragilização das bases sobre as quais sobre lógicas de autopersuasão. A publici-
repousava a coordenação da ação coletiva. dade dos bens e dos valores manteria, por
Consequentemente, a empresa defronta- meio de um simulacro, o laço entre o real
se com o problema de uma conciliação, de e a meta ética, o sistema e o mundo viven-
um lado, das lógicas de concorrência e de ciado, entre os meios e os fins. A ética ima-
competitividade (introduzidas em nome nente à ordem econômica fica reduzida a
dos valores liberais individualistas), das pura mística social, cuja vocação seria sus-
quais ela espera mais eficácia, e, de outro, tentar uma ação humana desprovida de
da manutenção das formas de cooperação sentido e de valores, mas que é gestada,
de que se beneficiou quando a produção organizada e controlada pela economia,
das riquezas sociais referia-se a objetivos mesmo quando não passa de uma agitação
identificados. sem fim para o homem. A solidariedade é
A “oferta ética” voltada aos assala- deturpada e manifesta-se apenas como
riados surge dessa necessidade. A ética efeito de poder (DEMO, 2002).
econômica das empresas seria a respos-
ta “técnica” concebida pela gestão para 4. A fim de preservar ou recuperar a legiti-
suprir o déficit de regulação o qual elas midade das práticas capitalistas, além dos
próprias contribuem para instalar. Essa procedimentos analisados anteriormente,
E
empresários e ideólogos instrumentalizam festação empresarial da ética econômica
207
princípios éticos para provar a capacidade busca atender pragmaticamente aos inte-
de auto-regulação e de aperfeiçoamento resses restritos do capital, corrompendo
do sistema. Não sendo suficientes os argu- o imperativo categórico do dever moral e
mentos baseados na racionalidade e efici- deturpando o princípio do respeito à dig-
ência técnica, glorificam-se as dimensões nidade humana universal.
humanas, éticas e responsáveis. A ofensiva
visa desclassificar as tentativas libertárias
em construção, concorrendo no mesmo BIBLIOGRAFIA
espaço disputado pelas economias solidá- BAKAN, J. (2008), A corporação, São Paulo: Novo
ria, autogestionária ou cooperativa. Conceito.

Inicialmente, a economia dominante COMTE-SPONVILLE, A. (2004), El capitalismo es moral?


Madrid: Paidós.
ignorou os esforços alternativos e alter-
mundialistas, depois, tratou-os com ironia DEMO, P. (2002), Solidariedade como efeito de poder, São
Paulo: Cortez.
e desdém para, finalmente, contra-atacar
GALBRAITH, J. K. (2004), A economia das fraudes inocen-
no campo ético, porém, a tentação ética
tes, São Paulo: Cia. das Letras.
do capitalismo (SALMON, 2007) é antiutó-
MATHERS, C. (2004), Crime school: money laundering,
pica. Ela reforça a participação regrada
Buffalo: Firefly Books.
pelos valores e interesses dominantes,
NORDSTROM, C. (2007), Global outlaws: crime, money
promovendo o envolvimento no sistema and power in the contemporary world, Berkeley:
que se quer sem alternância. Em sua visão University of California Press.
empobrecida do destino humano, aponta REICH, R. (2008), Supercapitalismo, São Paulo: Campus.
a economia capitalista como fato inelutá- SALMON, A. (2007), La tentation éthique du capitalisme,
vel e intransponível. Antiutópica, a mani- Paris: La Découverte.
F
FINANÇAS SOLIDÁRIAS 2. As FSs encontram-se em um estado
Ruth Muñoz incipiente, nutridas por diversas modali-
dades financeiras com origens e enfoques
1. As finanças referem-se à utilização do sumamente heterogêneos (ainda que
dinheiro, seu preço, rendimento, prote- tenham tecnologias financeiras similares),
ção, transferência e controle, emprésti- conformando uma interessante hibrida-
mo e, em geral, a todas as atividades que ção. Entre essas modalidades financeiras
conformam o fluxo monetário de entrada verifica-se, em primeiro lugar, o histórico
e saída ao longo do tempo. Tal conceitu- cooperativismo de economia e crédito,
ação não faz qualquer referência a quem cuja referência são os princípios da Alian-
sejam os atores envolvidos, os objetivos ça Cooperativa Internacional (CARTILLAS,
almejados, etc., preocupações estas que 2007). Sua formulação mais elementar
se fazem necessárias ao apontar-se que, baseia-se nas cooperativas de sócios/pro-
em seu desenvolvimento “normal”, as prietários, os quais são mútua e alterna-
finanças hegemônicas captam recursos de tivamente credores e devedores entre si.
muitos para gerar crescente concentração Essas cooperativas funcionam, ao menos
e centralização entre poucos. formalmente, de maneira democrática, já
Em resposta a essa lógica, estrutu- que cada sócio tem um voto.
ram-se diversas modalidades financei- Essa modalidade dá lugar a diferen-
ras, muitas vezes denominadas “finanças tes formas cooperativas cujo status legal
solidárias” (FS), visando democratizar os e regulamentação variam muito de país
recursos financeiros, para que as finanças para país, sendo as mais comuns a banca
operem a serviço das necessidades de cooperativa, as cooperativas de economia
todos. No que concerne à intervenção, ou crédito, as caixas cooperativas de eco-
algumas consequências desse enfoque nomia ou crédito e as seções de crédito
são: o tratamento conjunto de instru- de cooperativas não-especializadas, que
mentos financeiros com instrumentos utilizam essa modalidade para financiar
não-financeiros (estrategicamente utili- atividades ou aquisições conforme o obje-
zados conforme a estrutura socioeconô- tivo da cooperativa. Algumas são “fecha-
mica); avaliação complexa dos projetos das”, operando só com as contribuições de
nos níveis ex ante e ex post; e o respeito seus próprios sócios, enquanto outras são
pela racionalidade socioeconômica das “abertas” e captam fundos do público em
atividades com as quais se trabalhe, entre geral; algumas funcionam individualmen-
outras. te e outras se integram a redes com dis-
F
tintos tipos de organização, havendo um dos anos 1950 pelos Estados nacionais dos
209
modelo “atomizado-competitivo” e outro “países em desenvolvimento”. As microfi-
“federado” (FISCHER, 2005). Este se apro- nanças propõem-se como um “alívio da
xima mais do espírito das FSs, pois proí- pobreza”, e sua população-alvo é aquela
be a concorrência entre desiguais (como excluída do sistema financeiro formal,
as caixas de crédito da primeira faixa e os havendo uma predominância de mulhe-
bancos cooperativos da segunda) e fun- res entre os usuários. Embora o “micro-
ciona sob esquemas de divisões técnica e crédito” seja o instrumento microfinan-
territorial estritas que conformam o fun- ceiro mais conhecido, há ampla gama de
cionamento do conjunto cooperativo. serviços, entre os quais se encontram os
Essa modalidade financeira foi idea- microdepósitos, microsseguros, remessas,
lizada durante a Revolução Industrial, na microleasing, micropensões, etc.
Alemanha, por parte dos artesãos, peque- Esses serviços funcionam mediante
nas empresas e camponeses, que tinham principalmente três tipos de tecnologias
por única fonte de financiamento os creditícias. Duas delas são de caráter gru-
usurários. Raiffeisen (Internationale Rai- pal, compreendendo os chamados grupos
ffeisen Union) e Schulze Delitzsch foram solidários e o banco comunal. A terceira cons-
os propulsores dessas primeiras coope- titui a tecnologia individual não-convencional,
rativas de economia e crédito, das quais baseada na adaptação dos serviços à situ-
derivariam as “caixas populares”, criadas ação socioeconômica do potencial presta-
por Desjardins, no Canadá, em 1900, para tário, diferenciando-se assim da bancária,
fomentar a economia sistemática e aten- que se funda em documentação e garan-
der às necessidades dos seus associados. tias tradicionais. Neste verbete, descre-
A segunda modalidade financeira vem-se, brevemente, as duas primeiras
enquadrada nas FSs são as microfinan- tecnologias.
ças, entendidas como “serviços financei- Os grupos solidários outorgam emprés-
ros dirigidos às unidades econômicas de timos a postulantes individuais integran-
pequena escala, levados a cabo por meio tes de um grupo, de modo que cada um é
de uma multiplicidade de arranjos institu- responsável mutuamente pelo pagamento
cionais, baseados em relações de proximi- dos créditos de todos os membros. Há dois
dade e utilizando mecanismos inovadores enfoques predominantes quanto ao funcio-
para atingir altas taxas de devolução e dar namento dos grupos solidários. A ACCION
suporte ao manejo da liquidez e dos riscos International promove a adaptação dessa
das unidades socioeconômicas atendidas, metodologia ao contexto da América Lati-
estabelecendo relações duradouras base- na, bem como a vinculação entre organiza-
adas, porém, em atividades de curto pra- ções de base e o capital financeiro global.
zo” (MUÑOZ, 2007, p. 277). Esses serviços Alguns casos reconhecidos são o Banco
começaram a ser oferecidos maciçamente Compartamos, do México (www.comparta
na década de 1970 na Bolívia, Bangladesh mos.com), o Banco Solidário, do Equador,
e Indonésia, apresentando-se como uma e o BancoSol da Bolívia. Já o enfoque do
proposta para se superarem as políticas de Grameen, fundado por Muhammad Yunus,
crédito subsidiado implantadas a partir prevalece na Ásia. A partir da mesma
F
tecnologia financeira da ACCION, difun- mente responsável”. Baseiam-se na apli-
210
de-se mediante “reproduções” da expe- cação de uma série de “critérios positivos”
riência original, tendo mulheres entre a para promover determinadas atividades
maioria de seus usuários. (como o financiamento de atividades de
O banco comunal consiste na formação comércio justo e solidário) e de “critérios
de grupos de 30 a 50 membros proprietá- negativos” para punir outras (como a pro-
rios, que o administram por meio de um dução de armamento). Seus esquemas con-
comitê que recebe capacitação de uma sideram todos os atores envolvidos, sendo
agência de fomento. Essa tecnologia credi- os poupadores que estipulam as priorida-
tícia mobiliza poupança e outorga créditos, des para o destino de suas economias.
havendo reuniões periódicas dos membros. Essa modalidade tende a operar em
Os bancos são financiados por uma conta instituições financeiras tradicionais que,
externa e por outra interna. A conta exter- no seu interior, aplicam voluntariamen-
na baseia-se em empréstimos concedidos te essa série de critérios e regras. Grande
pela agência promotora, no montante de parte de seus atores integra a Associação
uma quantia igual à soma das solicitações Internacional de Investidores em Econo-
de empréstimos individuais. A exemplo mia Social, sendo alguns dos mais reconhe-
do que ocorre nos grupos solidários, os cidos a Banca Ética Italiana e a Associação
membros de um banco comunal assinam de Financiamento Ético e Solidário.
uma garantia coletiva e, então, outorgam- Em quarto lugar, há uma série de
se os empréstimos individuais. Por sua vez, instrumentos monetários e financeiros
a conta interna é formada por recursos inscritos nas finanças solidárias, como a
dos membros, incluindo poupança, juros, emissão de moedas sociais, sistemas locais
multas cobradas dos integrantes, lucros de intercâmbio mediante troca com ou
de outras atividades, pagamentos parciais sem dinheiro, bancos de horas, oferta de
à conta externa, etc. O banco comunal foi créditos sem juros a partir de sofisticados
idealizado na América Latina, nos anos sistemas de poupança prévia, círculos de
1980, por membros da Fundação para a poupança entre vizinhos, associações de
Assistência Comunitária Internacional capital de risco de proximidade, garantias
(FINCA). Um modelo similar a esse é o do de abrangência vicinal e financiamento
Grupo Associativo Centro Internacional de via hibridação com recursos do Estado,
Desenvolvimento e Pesquisa, localizado na do mercado, de doações e de sócios, entre
França e operando principalmente na Áfri- outros. Estes, por sua vez, se nutrem das
ca. Este se difere do FINCA por seus bancos modalidades anteriores e com elas se mis-
formarem-se a partir da comunidade como turam, dando lugar a práticas complexas e
um todo e não de diversos grupos. inovadoras. Como exemplos, há o Banco
A terceira modalidade encontrada Palmas, do Brasil, a Red de Útiles Financie-
entre as finanças solidárias diz respeito ros Alternativos y Solidarios, da Espanha,
às finanças éticas. Estas começaram a difun- e a FIDUCIE du Chantier de l’Économie
dir-se ao final dos anos 1980, nos países Social, do Canadá.
do hemisfério norte, a partir das idéias de Por último, destacam-se as políticas
“poupança ética” e “investimento social- públicas baseadas nas FSs, sendo o Brasil
F
um país inspirador nesse sentido e Paul Em decorrência dessa falta de uma
211
Singer um de seus promotores. O autor visão mais abrangente, pouco avançam as
considera que uma política deste tipo abordagens que tratam as FSs em seu con-
deveria redistribuir a renda, combater a junto. Seria necessário aprofundarem-se,
pobreza e ampliar o mercado interno das por exemplo, as análises sobre o papel mais
massas, para o qual se necessita de uma adequado a cada modalidade e os distin-
nova arquitetura financeira. Em seus pró- tos desenhos possíveis, a forma como se
prios termos, “[...] uma rede comunitária relacionam com as finanças hegemônicas,
de FS, com forte presença nas comunida- etc. Destaca-se haver alguns estudos nesse
des mais pobres, capacitada para captar a sentido, como os relatórios Exclusion et liens
poupança dos sócios e oferecer-lhes cré- financiers, do Centre Walras, os trabalhos
dito para planos de desenvolvimento [...] do Instituto Brasileiro de Administração
e bancos públicos dos governos federal, Municipal (FONTES e DIAS COELHO, 2003)
estadual e municipal, especializados em e pesquisas a exemplo da realizada por
crédito popular, para suprir os fundos de Mendell, Lévesque e Rouzier (2005).
financiamento de investimentos de maio- Embora haja iniciativas de alcance glo-
res quantias” (SINGER, 2005, p. 7). bal (como o Sistema Global de FS, propos-
to no Fórum Social Mundial), predominam
3. Com respeito à situação atual das FSs, as de tipo micro ou meso, muitas vezes
em primeiro lugar, há um crescente desen- desarticuladas de uma perspectiva sistê-
volvimento de debates específicos, os quais mica. Devem ser aprofundados o conhe-
geralmente se constituem e adquirem sen- cimento e as abordagens proposicionais
tido dentro da própria modalidade finan- politicamente viáveis acerca de questões
ceira, em vez de abranger o conjunto de como o aumento da abrangência das ini-
modalidades e instrumentos das FSs. Essa ciativas de FSs atualmente existentes em
realidade pode ser ilustrada com o caso do níveis regional e mundial. É necessário
cooperativismo de economia e crédito, no ainda frear-se o avanço das “novas” formas
qual há as questões da governance interna e da de acirramento da liberalização financeira,
relação entre as cooperativas e o seu entor- mediante, por exemplo, a eliminação dos
no, acompanhadas do risco de abandono tetos para as taxas de juros, de modo que
do consórcio e da revitalização das regras as instituições de microfinanças possam
cooperativas. No âmbito das microfinan- cobrar taxas que lhes permitam “se auto-
ças, um exemplo são as discussões acerca da sustentar”. Outras medidas demandadas
ênfase nos componentes do denominado são uma maior e mais eficaz regulamenta-
“triângulo das microfinanças”, composto ção dos movimentos de capitais em nível
pela auto-sustentabilidade financeira das mundial, o controle das remessas dos imi-
instituições microfinanceiras (IMF), seu grantes por parte das famílias e comuni-
impacto e alcance, cada um comportando, dades receptoras, a resolução da situação
implicitamente, sua gama específica de das dívidas externas dos países do hemis-
serviços oferecidos, a população atendida, fério sul e o estabelecimento de acordos
o uso de subsídios, a necessidade de avalia- sobre reformas tributárias progressivas
ções de “desempenho social”, etc. em diversos países, entre outras.
F
Sobretudo na América Latina, a ins- Definitivamente, as FSs devem estar
212
titucionalização das microfinanças está necessariamente inseridas na disputa pela
produzindo uma concentração de deman- outra economia e por outra sociedade.
das no microcrédito em relação a outros Sem esse alinhamento, é impensável um
instrumentos e modalidades financei- verdadeiro progresso em direção à sua
ras. Essa procura implica uma adequada politização nos termos de tais utopias.
diversificação visando construir sistemas
que efetivamente mobilizem poupanças, BIBLIOGRAFIA
outorguem recursos, administrem o risco BLANC, J. (Ed.) (2006), Exclusion et liens financiers: mon-
e facilitem o intercâmbio de bens e servi- naies sociales, Paris: Economica. Rapport du Centre
Walras 2005-2006.
ços em função das necessidades sociais.
CARTILLAS DE ECONOMÍA SOCIAL (2007), Finanzas para
É questionável o conceito de “solida-
la economía social. Los Polvorines: Universidad
riedade” sobre o qual se fundam algumas Nacional de General Sarmiento, n. 1. Disponível em:
iniciativas em finanças solidárias. Nesses <http://www.tau.org.ar/html/upload/89f0c2b
casos, sua base é individual e direcionada 656ca02ff45ef61a4f2e5bf24/finanzaspara_econo
aos excluídos do sistema financeiro que miasocial.pdf>.
utilizam microcréditos (atividades de bai- FISCHER, K. (2005), Governance, regulación y desem-
peño de intermediarios financieros mutuales. In:
xa escala, ciclos produtivos curtos, etc.),
FEDERICO SABATÉ, A.; MUÑOZ, R.; OZOMEK, S. (Coord.),
discriminando, por exemplo, os atores Finanzas y economía social: modalidades en el manejo
coletivos, de maior escala e nível organi- de los recursos solidarios. OSDE-UNGS, Buenos
zacional, os quais igualmente carecem de Aires: Altamira.
acesso ao sistema financeiro formal – tal FONTES, A.; DIAS COELHO, F. (2003), A expansão das
como as empresas recuperadas. Ademais, microfinanças no Brasil. Instituto Brasileiro de Admi-
esse conceito de solidariedade, muitas nistração Municipal; Fundación Ford. Disponível
em: <www.ibam.org.br>.
vezes, não problematiza os atores res-
MENDELL, M.; LÉVESQUE, B.; ROUZIER, R. (2005), Nue-
ponsáveis pelas decisões, ou a forma de vas formas de financiamiento de las empresas y
dividirem os lucros e custos – em última organizaciones de la economía social en Quebec. In:
instância, a técnica do “grupo solidário” FEDERICO SABATÉ, A.; MUÑOZ, R.; OZOMEK, S. (Coord.),
constitui uma transferência, pelos pres- Finanzas y economía social: modalidades en el manejo
tamistas de grande parte, dos riscos de de los recursos solidarios. OSDE-UNGS, Buenos
Aires: Altamira.
recuperação às mãos dos prestatários.
MUÑOZ, R. (2007), Alcance de las microfinanzas para
Essa imprecisão traduz-se por um risco el desarrollo local. Microcrédito en el Conurbano
latente nos novos serviços microfinan- Bonaerense: el Banco Social Moreno y Horizonte,
ceiros (como os “microsseguros de saú- In: VERBEKE, G.; CARBONETTI, C.; OZOMEK, S.; MUÑOZ, R.
de” ou as “microprevidências”), os quais, (Coord.), Las finanzas y la economía social: experiencias
afastados da disputa por uma segurança argentinas. UNGS, Buenos Aires: Altamira.
social solidária, solidificam um conteúdo SINGER, P. (2005), Contribución para una política
nacional de crédito popular. In: FEDERICO SABATÉ, A.;
político que cerceia a construção de uma
MUÑOZ, R.; OZOMEK, S. (Coord.), Finanzas y economía
economia ancorada na reprodução da vida social: modalidades en el manejo de los recursos soli-
de todos. darios. OSDE-UNGS, Buenos Aires: Altamira.
G
GOVERNAÇÃO LOCAL foram identificados em diferentes taxo-
Sílvia Ferreira nomias. Kooiman distingue autogoverna-
ção (desregulação), cogovernação (redes,
1. A origem do conceito de governa- parcerias, cogestão, cooperação) e hie-
ção é encontrada na ideia de orientação rarquia (burocracia, controle); Hollings-
(steering), no sentido de pilotar um navio. worth e Boyer identificam concorrência
Para muitos autores, a “orientação” é feita (mercado), hierarquia (empresa), coerção
pelo Estado, pelo estadista ou por outros (Estado), solidariedade (comunidade) e
actores relevantes, daí significando tam- negociação (associação); e Jessop identi-
bém um certo tipo de acção estatal. Mas fica troca (mercado), hierarquia (Estado,
também é usada para descrever a governa- empresas) e heterarquia (redes).
ção das empresas, a governação das uni- Governação local reporta-se às políti-
versidades, a governação das profissões, cas, interacções ou instituições que coor-
etc. Numa perspectiva mais restrita, no denam as relações sociais num território
que se refere a muita literatura, a gover- limitado, cuja característica principal é a
nação representa um modo específico de proximidade física.
coordenação de actividades complexas e
interdependentes, envolvendo redes de 2. Não é por acaso que se aponta a primei-
actores estatais e não estatais. Chama a ra utilização do conceito de governação
atenção para a participação de um núme- durante a Idade Média no contexto do
ro alargado de actores e interessados poder feudal na Europa, seguido do seu
nos processos de governação e pretende desaparecimento durante o estabeleci-
assinalar uma mudança nos modos de mento do Estado moderno e o seu retorno
coordenação da centralidade das formas em finais do século XX. Muita da discus-
hierárquicas ou do mercado para a noção são em torno do conceito de governação
de redes, comunidade ou associação. Isto pretende apontar para transformações na
explica porque a governação também é natureza do Estado e, desta, muita pre-
estudada em outras áreas da actividade tende enfatizar a diminuição do papel do
social, incluindo a gestão e a economia, Estado, equacionado com a forma espe-
bem como outras ordens institucionais cífica do Estado-Nação moderno ou com
e esferas na sociedade civil. Em todos os o Estado-providência. Estas discussões
casos a atenção é dirigida para a coorde- assumem frequentemente a dicotomia
nação de um leque vasto de interessados governo/governação. Pierre afirma que
e/ou redes. Vários modos de governação a governação refere-se à “sustentação de
G
coerência entre uma ampla variedade de exteriores e que (5) contribui para a pro-
214
actores com diferentes interesses e objec- dução de objectivos públicos” (2007, p.
tivos, como actores e instituições políti- 9). A emergência deste modo de governa-
cas, interesses empresariais, sociedade ção resulta da crescente fragmentação das
civil e organizações transnacionais. O que sociedades em consequência da sua dife-
eram anteriormente os papéis indispu- renciação funcional em subsistemas autó-
tados do governo são agora vistos como nomos e organizações independentes, da
problemas societais mais comuns e gené- multiplicação e interconexão de horizon-
ricos que podem ser resolvidos por insti- tes espaciais e temporais de acção, e do
tuições políticas mas também por outros esbatimento e questionamento das fron-
actores” (PIERRE, 2000, p. 4). As narrativas teiras entre instituições, sectores e escalas
que têm lugar nesta dicotomia sublinham (JESSOP, 1998), e, ainda, da crescente com-
aspectos que estimularam o interesse na plexidade dos problemas e suas interpre-
governação nos anos 1980 e 1990: crises tações, dos impactos das suas soluções e
financeiras dos Estados, novas estratégias dos diferentes interesses dos envolvidos,
de produção e fornecimento de serviços da necessidade de decisões baseadas em
públicos, problemas de coordenação, conhecimento e das novas formas de ris-
quer no Estado quer na articulação entre co e incerteza (SØRENSEN e TORFING, 2007).
projectos públicos e privados, globaliza- A governação é frequentemente discu-
ção da economia e importância crescente tida em termos de subtipos ou qualidades
de instituições políticas transnacionais, específicas. No que se refere à governação
fracasso do Estado em relação às expec- global ou europeia, aponta-se para espaços
tativas criadas ou questionamento da onde não existe um equivalente à coorde-
eficiência do modelo burocrático (PIERRE, nação efectuada pelo Estado-Nação, nem
2000, p. 4-5). a forma de coordenação hierárquica pare-
Por outro lado, interpretações focadas ce ser eficaz. O subnacional, olhado como
nas redes enfatizam a perda de centralida- nível de governação, também tem tido os
de de formas de governação hierárquicas, seus qualificadores de governação: urba-
não só as representadas pela burocracia na, territorial, comunitária, local. O que é
estatal ou pela forma de organização da novo não é a existência de redes formais e
empresa fordista, mas também as resultan- informais na coordenação do espaço polí-
tes do fracasso do mercado e da sua forma tico local, mas a ideia de governação local
de coordenação predominante, a troca. como estratégia do Estado e de organiza-
Sørensen e Torfing descrevem “governa- ções internacionais visando envolver um
ção em rede” como “(1) articulações hori- maior número de actores na tomada de
zontais relativamente estáveis de actores decisão local. Esta é uma tendência inter-
interdependentes mas operacionalmente nacional, caracterizada pela adopção da
autónomos que (2) interagem através de nova gestão pública nos serviços públicos,
negociações, as quais (3) têm lugar num parcerias público-privadas de produção e
quadro regulativo, normativo, cogniti- fornecimento de bens públicos, envolvi-
vo e imaginário que é (4) auto-regulado mento de organizações locais, grupos de
no contexto de limites fixados por forças interesse e empresas em parcerias políti-
G
cas, e novas formas de envolvimento dos vas, ainda que variando no seu conteúdo.
215
cidadãos, desde sondagens de opinião a Estudando o Reino Unido, Amin (2005)
formas de democracia participativa. Nos analisa o modo como diferentes territó-
países europeus é identificada, em diver- rios são construídos. Enquanto a ideia de
sos graus, com a devolução de decisões às comunidade faz parte da semântica de
localidades e às comunidades e com a sua uma comunidade territorializada e isola-
responsabilização na identificação e reso- da, aplicando-se a áreas economicamente
lução de problemas no sentido de dar aos mais deprimidas e com maior exclusão
cidadãos maior capacidade de ter influ- social, outros espaços como as cidades e as
ência sobre as suas vidas e o lugar onde regiões mais prósperas e o Estado-Nação
vivem. Em países da América Latina, de são vistos de forma pluralista e geografi-
África e da Ásia trata-se não tanto da mul- camente promíscua. O mesmo se poderia
tiplicação de espaços de decisão ao lado dizer de muitas intervenções internacio-
do governo local, mas do fortalecimento nais nos países do Sul onde encontramos,
deste com a ajuda da sociedade civil local lado a lado, uma semântica de reforço
e internacional (GEDDES, 2005). de comunidades locais através do capital
Em contextos específicos, a governa- social, democracia participativa e econo-
ção ocorre através de lógicas e modelos mia social, e uma semântica de promoção
políticos diferentes com variação de país de cidades competitivas ligadas em rede
para país e de escala para escala. Se no num espaço global. Na proposta política
Reino Unido, onde a Terceira Via articula da Terceira Via, a comunidade – que é, na
políticas neoliberais e neocomunitaris- versão dos comunitaristas, uma articu-
tas, a governação local foi qualificada de lação entre interesses e valores comuns
“localização neoliberal”, em outros sítios num determinado território – é a esfera
encontramos tendências mais estatizan- privilegiada para resolver problemas con-
tes ou corporativas. Analisando parcerias temporâneos – nomeadamente os causa-
público-privadas de luta contra a exclu- dos pela globalização. Amin defende que,
são social, Geddes (2005) assinala que as nas localidades pobres, o governo local, as
separações público/privado são mais níti- comunidades locais, as organizações locais
das nos países anglo-saxónicos e que em e os ramos locais da administração central
muitos outros países europeus é possível – concebidos como não tendo relações
identificar uma tradição de cogovernação. e interesses para além do local – devem
Assim, como refere este autor, o concei- interagir na esfera pública local – através
to de governação na dicotomia governo/ de deliberação e parceria – como uma
governação está marcado pelos pressu- comunidade política local – com interes-
postos anglo-saxónicos, ainda que sendo ses comuns – para resolver os problemas
actualmente promovido a nível interna- localmente delimitados nas suas soluções.
cional por efeito da transferência de polí- A comunidade é o princípio e o fim dos
ticas e modelos difundidos por organiza- seus próprios problemas. Espera-se a sua
cionais internacionais. auto-regeneração através da coesão comu-
Novidade é também a constituição do nitária, confiança local e cidadania activa,
local através destas e de outras iniciati- e fala-se menos de emprego, direitos,
G
obrigações do Estado, mobilidade social reprodução da natureza, etc. –, por outro
216
e espacial, investimento na infra-estrutura lado, elas também sofrem o impacto de
local e ligações com o exterior. Neste con- fenómenos como a deslocalização das
texto, “os responsáveis pela acção comu- empresas ou a compressão do tempo e
nitária tornam-se agentes da ‘domesti- do espaço permitida pelas novas tecno-
cação’ da política local, responsáveis por logias da comunicação e de transporte,
fornecer uma cidadania consensual e res- entre outros. De igual forma, na socieda-
ponsável que desempenha as expectativas de civil identificam-se, lado a lado, orga-
de regeneração das elites governantes” nizações locais e activistas inseridos em
(AMIN, 2005, p. 620). redes supralocais, envolvidos em lutas
Por outro lado, a governação local vem localizadas mas com agendas globais e
também acompanhada da ideia de redes e formas de política global, e imaginários
de híbridos, em especial das articulações não cosmopolitas enraizados em temas e
horizontais e verticais criadas por redes de lutas localizadas e articulados em redes
actores, de localidades, cidades, governos horizontais de lutas locais com espaços
locais. A ideia de governação multinível distantes (SWYNGEDOUW, 2005).
indica as interdependências e articulações Ademais, diferentes actores têm dife-
nestas redes. Enfatiza-se que os governos rentes capacidades de mobilizar diferen-
locais estão cada vez mais envolvidos em tes espacialidades e temporalidades (JES-
redes intermunicipais nacionais e supra- SOP, 2007). Como refere Hajer (2003),
nacionais, e que as políticas de promoção saltar escalas é uma estratégia de poder e
destas redes estão associadas a um discur- influência em redes de governação mul-
so de desenvolvimento económico e de tiescalar. Por exemplo, onde a política
concorrência entre localidades, cidades e nacional urbana é crescentemente subs-
regiões. tituída por parcerias locais público-priva-
O local remete para uma escala terri- das, os tipos de actor social e as suas posi-
torial de relações próximas mas que não ções nas geometrias de poder também
podem ser vistas isoladamente. Por isso, mudam: novos actores emergem, outros
há propostas que chamam a atenção para consolidam a sua posição e outros são
as articulações entre o local e o global e marginalizados ou excluídos. Para Harmes
para a preferência pela ideia de glocal. (2006), há um projecto específico neo-
O local (tal como outros espaços) con- liberal de governação que implica “tra-
tém relações sociais com espacialidades zer a economia para cima”, para a escala
e temporalidades diferentes, do próximo supranacional, através da mobilidade do
ao distante, da curta à longa duração. O capital e da centralização de competên-
mundo da vida é atravessado por esta cias políticas facilitadoras do mercado,
multiplicação de escalas e tempos, pois e “empurrar a política para baixo”, atra-
se, por um lado, muitas esferas da vida são vés da descentralização de competências
territorialmente determinadas – o bairro políticas capazes de inibirem o mercado
de residência, a escola, o local de traba- (por exemplo, a territorialização das polí-
lho – e temporalizadas na longa duração ticas de bem-estar). Mas, como o autor
– os tempos da reprodução biológica, da assinala, há outros projectos de governa-
G
ção multiescalar, que passam, nomeada- dos actores locais seja melhor descrita
217
mente, pela reticulação do político e do pela ideia de rede, a metagovernação pode
económico, por “trazer a economia para assumir uma forma hierárquica. Tal é visí-
baixo” ou por “levar a política para cima”. vel quando o governo nacional, local ou
A ideia de governação contra-hegemóni- outras organizações impõem a constitui-
ca implica tais estratégias (SANTOS, 2005). ção de parcerias público-privadas como
condição para acesso a recursos. O seu
3. As narrativas da governação e algumas papel inclui frequentemente a definição
das suas críticas são frequentemente fei- do objecto de governação, a identificação
tas do lado dos planificadores, como se dos interessados, o desenvolvimento da
outros actores sociais não tivessem os infra-estrutura e das ligações adequadas,
seus próprios projectos políticos. Algu- e o próprio discurso sobre governação.
mas definições dominantes de governa- Mas, como Jessop (1998) propõe, esta não
ção tendem a imaginar um espaço onde é a única forma de metagovernação, pois
os vários protagonistas estão nas mesmas ela também pode ocorrer a partir de uma
condições de participar e é possível atin- lógica de mercado ou de redes. É assim
gir um consenso através de negociação que também é possível encontrar inicia-
ou de deliberação, havendo quem propo- tivas englobadas na ideia de governação a
nha que a forma de governação em rede partir de baixo, efectuadas reflexivamente
se caracteriza por relações de reciproci- a partir das redes locais. A forma mais geral
dade e confiança. Idealmente, todos os de metagovernação, envolvendo o reequi-
actores locais, apesar dos seus interes- líbrio de diferentes modos de governação,
ses diferentes, partilham um interesse foi explorada através do conceito de “colli-
comum mais geral e mobilizam-se em bration” (DUNSIRE, 1996).
torno deste, empenhando as suas capa- A ideia de governação em rede permite
cidades e os seus recursos. Isto ignora dar conta da complexidade envolvida na
as diferenças sociais e de poder, as ten- governação, da multiplicação de interes-
dências antagonistas e os conflitos laten- ses, escalas e discursos, e do modo como
tes e as dissensões relativamente ao que interagem. É interessante que em muitos
os diferentes actores consideram como aspectos a semântica da governação em
interesse comum local. rede está próxima de lógicas assinaladas
Há outro aspecto que muita da lite- na sociedade civil, presentes por exemplo
ratura centrada na dicotomia governo/ nas redes de organizações e movimentos
governação tende a negligenciar, que é sociais e expressas na ideia de associação
a ideia de metagovernação, ou seja, da como espaço democrático de debate onde
governação da governação. Esta dicoto- problemas privados são tornados públicos
mia tende a ignorar o papel do governo, (ou políticos) e se constrói um projecto
muitas vezes nacional, na organização das comum. Todavia, se o mercado e a hie-
condições de governação, nomeadamente rarquia fracassam, também a governação
da governação local. Isto foi descrito por em rede tem riscos de fracasso específicos
Jessop (1998) com a ideia de metagover- (JESSOP, 1998). Por isso, em termos con-
nação. Ou seja, mesmo que a organização cretos, é frequente encontrar misturas de
G
diferentes modos de governação como a GEDDES, M. (2005), Neoliberalism and local gover-
218 nance cross-national/perspectives and speculations.
forma estratégica mais vantajosa (DUNSIRE,
Policy Studies, v. 26 n. 3/4, p. 359-377.
1996).
Finalmente, a própria noção de fracas- HAJER, M. A. (Ed.) (2003), Deliberative policy analysis:
understanding governance in the network society,
so da governação merece mais centralidade
Cambridge: Cambridge University Press.
na investigação porque as coisas nem sem-
pre acontecem como planeado – mesmo HARMES, A. (2006), Neoliberalism and multilevel
governance. Review of International Political Economy,
que aconteçam por terem sido planeadas.
v. 13, n. 5, p. 725-749.
Apesar da utilidade do conceito foucaul-
HOLLINGSWORTH, J. R.; BOYER, R. (1997) Coordination
tiano de governamentalidade para indicar
of economic actors and social systems of produc-
um aumento da penetração do Estado em tion. In: _____. (Ed.), Contemporary Capitalism: the
novas esferas em vez da sua retirada, ele é embeddedness of institutions, Cambridge: Cam-
menos útil para estudar a capacidade dos bridge University Press, p. 1-48.
actores de resistirem ou de usarem os novos JESSOP, B. (1998), The rise of governance and the
modos de governação estrategicamente a risks of failure: the case of economic development.
favor dos seus próprios projectos políticos. International Social Science Journal v. 50, n. 155, p.
Por isso, alguns estudiosos da governação 29-45.
concluem que em cetas situações as polí- JESSOP, B. (2007), State Power, Cambridge: Polity Press.
ticas de governação permitiram a abertura KOOIMAN, J. (2003), Governing as Governance, London:
de oportunidades políticas para algumas Sage.
organizações da sociedade civil. Outros
PIERRE, J. (2000), Understanding Governance. In:
referem situações em que estes actores _____. (Ed.), Debating Governance: authority, steering
optaram estrategicamente por permanecer and democracy, Oxford: Oxford University Press.
afastados dos novos espaços de governação SANTOS, B. S. (2005), A crítica da governação neolibe-
local, privilegiando as suas estratégias tra- ral: o Fórum Social Mundial como política e legalida-
dicionais de afastamento ou de confronta- de cosmopolita subalterna. Revista Crítica de Ciências
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I
IDENTIDADE relacionada às fases de sua vida, manten-
Marília Veríssimo Veronese do o cerne de sua personalidade como
Egeu Gómez Esteves um todo coerente. Essa formulação traz
consigo a idéia de individuação por auto-
1. Em uma perspectiva psicossocial, o con- descoberta, havendo alguma mediação da
ceito de identidade é tomado como a rela- alteridade, mas sem que esta tenha maior
ção psicológica do indivíduo com sistemas relevância.
específicos de categorias sociais. Conside- A segunda vertente trata a identidade
ra-se a identidade como uma articulação como uma instância constituída em rela-
do indivíduo com o social a um só tempo ção dialética com a sociedade, sendo for-
estável e provisória, individual e coletiva, mada por processos e relações sociais, que
biográfica e estrutural. Ela se configura no a mantêm, remodelam ou transformam. A
processo das transações do eu (identidade identidade seria a face socializada da indi-
biográfica/subjetiva) com o outro (identi- vidualidade, sendo sempre assimilada por
dade relacional/objetiva) e com o mundo meio de um processo de interação com os
(identidades disponíveis culturalmente). outros, tornando-se assim real para o indi-
As múltiplas identidades de uma pessoa víduo que a vivencia. A tradição da Socio-
(gênero, raça/etnia, sexo, classe, grupos logia descreve um caminho para a cons-
minoritários ou outras) são construídas trução da identidade calcado na idéia de
mediante um processo de negociação socialização e de interação, atribuindo à
intra e interpessoal dentro dos sistemas alteridade papel preponderante na cons-
sociais específicos em que estejam inseri- trução da identidade de alguém. Segundo
das (DUBAR, 2005; FRABLE, 1997). Por tra- essa idéia, a individuação dá-se por socia-
tar-se de um conceito complexo e multifa- lização, ou seja, são os outros que tornam
cetado, é preciso ressaltar que, no campo possível a singularidade.
das ciências humanas e sociais, as discus- As formulações sobre identidade
sões sobre identidade dividem-se em duas que valorizam a tensão entre a dimensão
vertentes: a psicodinâmica e a sociológica. individual e a coletiva podem ser relacio-
A primeira vertente enfatiza a cons- nadas às situações de trabalho. Em sua
tituição de uma estrutura psíquica que articulação com a construção das iden-
tende a estabelecer-se de forma mais ou tidades, o trabalho é entendido como
menos estável, entendendo por identi- locus do estabelecimento de relações em
dade a aptidão do sujeito permanecer o que as dimensões cognitivas e afetivas do
mesmo em meio à mudança constante sujeito são postas à prova, desenvolvidas
I
e intensamente vivenciadas nas múltiplas mo, ao trabalho como algo dignificante e à
220
experiências que o contexto laboral pro- legitimação religiosa do acúmulo de lucro.
porciona. Na esfera da intersubjetivida- A concepção psicodinâmica tem ori-
de produzida pelo trabalho, vivências e gem, a princípio, na teoria freudiana da
aprendizagens incorporam-se à dimensão identificação, processo pelo qual a criança
identitária dos sujeitos em interação, de internaliza aspectos do mundo externo.
tal modo que formas de trabalhar pauta- Produz-se assim o cerne de sua estrutura
das na cooperação e solidariedade possam psíquica, expressa numa identidade con-
ter um impacto significativo sobre a iden- tínua, embora possivelmente conflituosa
tidade dos trabalhadores associados. (PLUMMER, 1996).
Na tradição sociológica, encontra-
2. O conceito de identidade tem uma lon- mos a concepção de identidade ligada ao
ga história filosófica, ligando-se, moderna- conceito de self (ou si-mesmo), categoria
mente, ao desenvolvimento do individua- constituída a partir da linguagem e da
lismo, sendo popularizado no Ocidente comunicação. O self, como uma estrutura
a partir da segunda metade do século XX social, só é concebido mediante as intera-
(PLUMMER, 1996). Exemplo desse proces- ções, sendo o ato comunicativo a unida-
so foi a popularização do termo “crise de de básica de análise das ciências sociais.
identidade”, cunhado por Erikson (1968) Essas idéias estão presentes em Geor-
para descrever fenômenos de desajusta- ge Herbert Mead (1963). A partir desse
mento social da adolescência. Juntamente autor, Herbert Blumer cunhou o termo
com ele, popularizaram-se termos psico- “interacionismo simbólico”, pelo qual a
lógicos correlatos, como “auto-imagem” e identidade não seria fixa, mas sujeita às
“auto-estima”. transformações ocorridas ao longo dos
A noção de identidade como indivi- processos de interação do indivíduo com
dualidade, para Gergen (1997), emerge os grupos sociais. Representam muito
no pensamento social do final do século bem a corrente sociológica as formu-
XVIII; antes, as pessoas tendiam a conce- lações de Berger & Luckmann (2007),
berem-se como pertencentes a categorias segundo as quais a identidade é um ele-
mais gerais, como membros de uma reli- mento-chave da realidade subjetiva e, tal
gião, classe social ou profissão. Mesmo suas como toda realidade subjetiva, acha-se
almas individuais eram posse de Deus (não em relação dialética com a sociedade.
de si próprias) e estavam na Terra transito-
riamente, por obra divina. Com o Renas- 3. Segundo Bauman (2005), a emergência
cimento, houve uma substancial mudança da identidade enquanto questão relevan-
na auto-representação dos sujeitos sociais, te ocorreu em função da “crise do per-
a partir de então calcada progressivamen- tencimento”, uma ruptura moderna com
te na ideologia do “homem feito por si as identidades, comunidades e formas de
mesmo” (self-made man). Para tanto, foram pertença tradicionais, fruto da exposição
definitivos o processo de laicização dos do indivíduo à possibilidade de filiar-se
Estados nacionais e a ascensão do ethos a novas comunidades e construir novas
capitalista, este favorável ao individualis- identidades, o que é próprio do mundo
I
contemporâneo, policultural, pleno de mas de agir em sociedade. Conforme Hall
221
diversidade. O autor complementa que (2001), pode-se falar no sujeito do Ilumi-
a aceleração da globalização acarretou, nismo, no sujeito sociológico e no sujei-
em meio a seu rol de consequências, a to pós-moderno. O primeiro representa
ruptura da classe trabalhadora como ele- o indivíduo unificado, dotado de razão,
mento de identificação que “oferecia um de consciência e de ação e possuidor de
seguro para reivindicações discrepantes uma identidade essencializada, mais ou
e difusas”. “O ‘efeito imprevisto’ disso foi menos estável ao longo de sua existência.
uma fragmentação acelerada da dissensão No segundo, a identidade resulta da inte-
social, uma progressiva desintegração do ração entre o indivíduo e seu mundo cul-
conflito social numa multiplicidade de tural pleno de significações. O terceiro é
confrontos intergrupais e numa prolifera- um sujeito sem identidade fixa, essencial
ção de campos de batalha” (ibid., p. 42). ou permanente, possuindo identidades
Tais “campos de batalha” referem-se aos múltiplas, eventualmente contraditórias,
embates contra os efeitos excludentes da transformadas em relação às formas his-
globalização, cujo instrumento é a afirma- tóricas dos sistemas culturais em que se
ção das identidades locais, étnicas, raciais insira. À medida que os sistemas sociais
e sexuais, entre outras. de significação e representação cultural se
Para Silva (2004), identidade e dife- transformam, o sujeito defronta-se com
rença são produzidas ativamente na lin- uma multiplicidade de identidades pos-
guagem, na cultura e no social. O autor síveis, com as quais pode identificar-se
refere-se a elas como “criaturas da lin- temporariamente.
guagem”, baseando-se no referencial dos
Estudos Culturais. Identidades híbridas, 4. Sobre a participação central do traba-
múltiplas, plurais (no campo da preferên- lho na conformação da identidade, há
cia sexual, por exemplo) evidenciam não muito se sabe que as vivências comparti-
haver mais espaço para oposições biná- lhadas entre os trabalhadores abrangem
rias, simplistas, que demarcaram iden- dimensões cognitivas, afetivas e políticas.
tidades fixas no passado, além de terem Estas possibilitam que eles construam
servido para definir qual seria a identida- representações de si diretamente liga-
de “válida”, “normal”, a partir da qual as das às situações e relações de trabalho,
outras seriam “diferentes”. Concepções que são também atributos definidores de
normalizadoras da identidade estiveram um “eu” (JACQUES, 2002). Como a divisão
fortemente vinculadas a relações de poder do trabalho é complexa – há muitas for-
assimétricas, reproduzindo desigualdades mas contratuais de trabalhar e inúmeras
e colocando no campo da “anomalia” pre- possibilidades de organizar o contexto
ferências sexuais, culturais ou ideológicas laboral –, são enormes as possibilidades
constitutivas das identidades dos sujeitos. identitárias vinculadas a essa atividade
As transformações sociais, econômi- humana tão essencial. Para além das ocu-
cas, tecnológicas e geopolíticas em esca- pações, ofícios e profissões próprios da
la mundial trouxeram implicações sobre divisão social do trabalho, e que por si só
modos de ser e viver dos sujeitos e suas for- já demonstram a importância deste na
I
formação das identidades coletivas e indi- pensam ou se sentem dentro e fora das
222
viduais, encontram-se muitas identidades cooperativas. Ademais, conjecturar livre-
relativas à modalidade de “contrato de tra- mente acerca do “modo de agir” ou do
balho”: escravo ou cativo; servo ou criado; “jeito de ser” dos cooperadores tornou-se
empregado ou assalariado; autônomo ou corriqueiro entre os próprios sócio-traba-
liberal; e sócio ou associado, entre outras. lhadores e aqueles que com eles realizam
Nos anos 1990, simultaneamente à cri- algum tipo de trabalho ou pesquisa.
se da Pós-Modernidade, assistimos à crise Mesmo que de maneira inconclusa e
do trabalho (ou do emprego). O desem- pouco sistemática, já é possível listarem-
prego estrutural – fruto da globalização e se algumas características identitárias
da nova divisão internacional do trabalho que fazem desse novo sujeito social um
(POCHMANN, 2001) – ocasionou o ressur- personagem distinto e singular, portador
gimento dos formatos autogestionários de uma identidade psicossocial própria.
(SINGER e SOUZA, 2000) como mais uma Os sócios-trabalhadores de cooperativas
entre as lutas defensivas dos trabalhado- autogeridas tendem a aceitar certas carac-
res no rol dos “campos de batalha” sobre terísticas psicossociais como próprias de
o qual escreve Bauman (2005). Se a econo- um sócio-trabalhador e, ao mesmo tempo,
mia solidária estrutura-se como um novo refutar outras como opostas a essa condi-
“sistema social específico”, nos termos de ção. Assim, algumas entre muitas caracte-
Frable (1997), então parece emergir daí rísticas esperadas dos sócio-trabalhadores
uma nova identidade no seio desse movi- pelos seus pares são: compromisso e soli-
mento econômico-social cuja afirmação dariedade com o grupo de cooperadores
é também uma forma de resistência aos (dentro e fora da cooperativa); envolvi-
efeitos perversos da globalização sobre os mento e responsabilidade com o trabalho;
interesses dos trabalhadores. Se essa nova prontidão para considerar opiniões e inte-
forma, solidária, de organizar o trabalho e resses aparentemente opostos (presentes
a produção traz consigo um novo sujeito dentro da cooperativa); e preocupação
social (sócio-trabalhador, cooperador, tra- com as condições de vida (sociais, sani-
balhador associado, etc.), então qual seria tárias, econômicas ambientais, etc.) na
o rol singular de características identitárias comunidade (vila ou cidade) onde esteja
que o distinguiriam dos sujeitos sociais do localizada a cooperativa. Simetricamente,
capitalismo (capitalista, investidor, empre- são características refutadas pelos pares:
sário, administrador, patrão, etc., de um pensar em si sem considerar o grupo; esca-
lado, e empregado, funcionário, serviçal, motear-se do trabalho; não querer ouvir a
etc., de outro)? opinião do outro; e desconsiderar o local
A resposta não é fácil e demanda novas onde a cooperativa esteja instalada.
investigações. Embora as pesquisas rea- Essas são apenas algumas das caracte-
lizadas no âmbito da economia solidária rísticas que compõem a identidade psi-
ainda não tenham abordado diretamen- cossocial e é possível que mesmo elas não
te essa questão, elas a tangenciaram por sejam encontradas em todas as cooperati-
diversas vezes, descrevendo modos pelos vas e empreendimentos autogestionários.
quais geralmente agem os cooperadores, Assim mesmo, essa lista tem o mérito de
I
revelar que, em condições autogeridas de FRABLE, D. E. S. (1997), Gender, racial, ethnic, sexual,
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trabalho, traços psicossociais importan-
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tes como compromisso e solidariedade,
envolvimento e responsabilidade, pronti- GERGEN, K. (1997), El yo saturado: dilemas de inden-
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I
INCUBAÇÃO DE REDES proposta e suporte à própria dinâmica de
224 DE ECONOMIA SOLIDÁRIA organização política das práticas de eco-
Genauto Carvalho de França Filho nomia solidária.
Eduardo Vivian da Cunha A incubação de empreendimentos
individuais pode apresentar algumas limi-
1. A incubação no âmbito da economia tações as quais a incubação de redes pre-
solidária apresenta diferenças significati- tende, em parte, dirimir. A principal delas
vas em relação à incubação empresarial. é precisamente seu caráter pontual, ou
Em primeiro lugar, ela se volta geralmente seja, ao incubar um único empreendimen-
a um público de baixa renda, que se orga- to, todo o esforço deposita-se nas capaci-
niza, na maior parte dos casos, em peque- dades de esse empreendimento sobrevi-
nas cooperativas. Em segundo lugar, nesse ver, na maioria dos casos em um ambiente
processo, normalmente não incidem taxas de competição de mercado. As dificulda-
sobre os empreendimentos incubados, dei- des dos grupos incubados são de inúmeras
xando elas de ser um componente impor- ordens, apresentando-se como déficits de
tante dos subsídios. Em terceiro lugar, as formação das pessoas, condições de infra-
instalações das incubadoras não abrigam as -estrutura e tecnologias inadequadas ou
iniciativas incubadas, à exceção de alguns insuficientes nos locais de implantação
casos de incubadoras públicas. Uma quar- de muitos empreendimentos ou, ainda,
ta diferença, muito próxima à primeira e marco regulador de funcionamento dos
de fundamental importância, reside justa- empreendimentos insatisfatório para sua
mente no foco devido ao qual a incubação realidade, entre outras. Ao agirem isola-
em economia solidária diz respeito sobre- damente, esses empreendimentos enfren-
tudo a empreendimentos solidários, prefe- tam, além dessas, as mesmas dificuldades
rencialmente no formato de cooperativas, das micro e pequenas empresas, o que
incitando a constituição de processos de torna menores suas possibilidades de
autogestão nos empreendimentos criados. sobrevivência nas condições do mercado.
As cooperativas individuais e, mais Dois efeitos negativos podem advir dessa
especificamente, as incubadoras tecnoló- situação: a ocorrência de certo prolonga-
gicas de cooperativas populares (ITCPs), mento do tempo de incubação, em razão
cumprem papéis de extrema importância dos subsídios aportados; e a existência de
no campo da economia solidária. Primei- casos em que o êxito do empreendimen-
ramente, elas capacitam os empreendi- to passa pela incorporação de lógicas de
mentos, tirando muitos deles da informa- funcionamento privado, que comprome-
lidade e da precariedade e propiciando tem o propósito e a finalidade original da
uma renda digna a seus participantes. Um iniciativa. Além disso, como a lógica da
segundo papel é o de articular novas polí- incubação é apenas a de cooperativa, os
ticas públicas no campo da geração de tra- benefícios do empreendimento podem
balho e renda. Já um terceiro relaciona-se limitar-se ao grupo que componha a orga-
ao processo de organização das próprias nização, não necessariamente estenden-
ITCPs, que vêm se congregando em torno do-se ao público mais amplo do território
de redes nacionais, dando consistência à no qual a iniciativa tenha sido gestada.
I
2. Uma rede de economia solidária impli- supõe haver articulação entre iniciativas
225
ca uma associação ou articulação de vários de distintas naturezas – socioeconômicas,
empreendimentos e/ou iniciativas de sociopolíticas, socioculturais e socioam-
economia solidária com vistas à consti- bientais. Além disso, ela admite diferen-
tuição de um circuito próprio de relações tes níveis de articulação com a economia
econômicas e de intercâmbio de experi- local preexistente.
ências e saberes formativos. São dois os Finalmente, o terceiro tipo, aqui deno-
principais objetivos de uma rede de tal minado misto, supõe haver uma dimensão
natureza: permitir a sustentabilidade dos territorial que envolva parcerias e articula-
empreendimentos e/ou iniciativas de eco- ções transterritoriais. Na prática, as redes
nomia solidária em particular; e fortalecer locais de economia solidária propendem
o potencial endógeno de um território para o caráter misto, pelo fato de raramen-
quanto à sua capacidade de promover seu te se encontrar alguma experiência limita-
processo de desenvolvimento. Em termos da a um âmbito geográfico específico, por
tipológicos, as formas de manifestação de razões inclusive de sustentabilidade da
uma rede de economia solidária podem própria rede, que tende a conectar-se com
ser classificadas de três maneiras: trans- outras mediante a expansão de suas ativi-
territorial, territorial ou mista. dades. Embora seja próprio a essas redes
No nível transterritorial, uma rede extrapolarem sua dimensão territorial,
desse tipo pode envolver uma articulação em se tratando de economia solidária, tal
de vários empreendimentos operando na extrapolação só deve acontecer a partir de
cadeia produtiva de determinado produ- raízes muito sólidas firmadas localmente,
to. Ela pode encerrar também acordos por meio de um fortalecimento da econo-
e contratos bilaterais (ou multilaterais) mia local.
entre iniciativas ou organizações, em dife- As redes de economia solidária podem
rentes áreas ou níveis de atuação, a exem- ser vistas como uma estratégia complexa
plo do comércio justo. Esse tipo de rede de cooperação para o desenvolvimento
pode envolver ainda empreendimentos local. Ao induzir a constituição de circuitos
de um mesmo tipo que compartilhem próprios de comercialização e produção,
princípios, saberes e um modo de funcio- tais redes criam essa nova modalidade de
namento próprio, embora preservem sua regulação econômica, o que supõe outro
autonomia como organização individual modo de funcionamento da economia
derivada de um contexto particular. real. Nesta outra economia, a competição
No nível territorial, uma rede de eco- como princípio regulador da relação entre
nomia solidária abarca, em uma mesma os agentes perde sentido, pois a constru-
base territorial, empreendimentos ou ção da oferta é articulada às demandas
iniciativas de economia solidária em dife- previamente colocadas em determina-
rentes âmbitos de atuação, a exemplo de do contexto territorial. Os contratos e
consumo ético, finanças solidárias, tec- acordos são estabelecidos com base em
nologias livres, comércio justo, produção princípios, valores e regras que vão mui-
autogestionária e serviços locais, entre to além dos imperativos de rentabilida-
outros. Nesse sentido, esse tipo de rede de econômica da atividade. Para tanto,
I
consideram-se critérios de cidadania em de mercado. Contudo, ao reconhecer os
226
termos de acesso a direitos, redistribuição limites do próprio mercado em gerar ofer-
equitativa dos benefícios, remuneração ta de emprego suficiente para atender a
digna, efeitos ambientais e compromisso uma demanda cada vez mais crescente, o
com o contexto local de desenvolvimen- discurso insercional-competitivo desloca
to das atividades, entre outros. Importa o foco do emprego para o auto-emprego,
salientar o potencial contido nessa nova exaltando a idéia de empreendedorismo
forma de fazer economia na direção da privado como solução definitiva. Ao con-
institucionalização de novos padrões verter ex-assalariados desempregados em
de relação com os poderes públicos em novos proprietários de micro e pequenos
termos de compras governamentais e negócios, a visão insercional-competitiva
contratos negociados. Com essa idéia de negligencia o fato de que, assim como o
uma outra economia a partir de redes de mercado de trabalho está cada vez mais
economia solidária, está-se pensando em competitivo para os indivíduos que dis-
novas formas de articulação institucional putam vagas, também não há espaço para
envolvendo empreendimentos de eco- todas as micro e pequenas empresas esta-
nomia solidária e instituições públicas, belecerem-se em um regime de competi-
governamentais ou não-governamentais. ção econômica. A fragilidade do empre-
Sob o ponto de vista de uma lógica endedorismo privado é constatável pela
de desenvolvimento, a opção por redes curta existência dos micro e pequenos
de economia solidária rompe de maneira negócios no Brasil: 90% deles não chegam
contundente com as soluções mais conhe- aos cinco anos de funcionamento, segun-
cidas e predominantes em termos de com- do dados do Serviço Brasileiro de Apoio
bate à falta de trabalho. Estas giram em às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE).
torno da aqui denominada concepção inser- A concepção sustentável-solidária consi-
cional-competitiva, em oposição à concepção dera que as saídas ou soluções para a falta
sustentável-solidária. de trabalho não podem se dar individual-
A concepção insercional-competitiva diz mente, baseadas em uma suposta capaci-
respeito às soluções relacionadas à idéia dade empreendedora privada. Considera-
de inserção pela via econômica. Nessa se que, se as razões para o desemprego são
concepção, busca-se incluir a população sobretudo estruturais, relativas à própria
desempregada nos chamados circuitos natureza intrinsecamente excludente do
formais da economia, constituídos, sobre- sistema econômico predominante, então
tudo, pelos postos de trabalho gerados na é preciso substituir inserção ou inclusão
economia de mercado por empresas pri- nesse sistema por construção de uma
vadas. Baseada numa ética da competição outra economia. As soluções de enfren-
como condição para o êxito, a via insercio- tamento à falta de trabalho devem ser
nal-competitiva aponta as iniciativas indivi- coletivas, baseadas em novas formas de
duais como solução ao problema da falta regulação das relações econômico-sociais.
de trabalho. Historicamente, a ênfase tem Tal concepção enfatiza a importância dos
recaído sobre a qualificação profissional territórios, apostando na capacidade de
para o emprego, na chamada economia serem sustentáveis, inclusive aqueles apa-
I
rentemente mais pobres. A premissa fun- ranças comunitárias, representantes dos
227
damental dessa vertente é a valorização de poderes públicos e outras instituições).
soluções endógenas, pois todo local, bair- A rede local de economia solidária com-
ro ou comunidade, por mais pobres que põe um processo envolvendo iniciativas
sejam, podem apresentar soluções a seus de diferentes tipos de economia solidária,
problemas. Essa possibilidade permite entre formas socioprodutivas e socioor-
questionarem-se as formas de desenvolvi- ganizativas. Sendo o enfoque territorial,
mento baseadas exclusivamente na atração é necessário abordarem-se não apenas os
de investimentos externos. A concretiza- empreendimentos socioeconômicos, mas
ção dessa concepção sustentável-solidária também as iniciativas de naturezas socio-
coaduna-se com a idéia de reorganização cultural, sociopolítica e socioambiental.
das chamadas economias locais, com base A construção ou fortalecimento de uma
na afirmação do conceito de rede de eco- dinâmica associativa no local revela-se de
nomia solidária como estratégia complexa fundamental importância no sentido de
e inovadora de cooperação para promoção consolidar espaços públicos necessários
do desenvolvimento local. A incubação ao encaminhamento do processo de incu-
tem exatamente o propósito de contri- bação. A grande relevância desses espaços
buir à construção dessa outra economia. públicos reside no fato de as redes serem
A compreensão dos fundamentos de tal articuladas no interior de um tecido de
concepção, bem como desse tipo de estra- relações sociais, econômicas, políticas e
tégia, figura-se viável apenas mediante a culturais preexistentes. Em termos socio-
adoção de uma outra visão ou paradigma econômicos, por exemplo, a rede encon-
de entendimento do fato econômico e de tra formas e caminhos de relacionamento
seu funcionamento real, ensejando uma com o comércio local, visando a seu forta-
redefinição ou ressignificação do sentido lecimento. Nesse sentido, a metodologia
do agir econômico. valoriza o papel das práticas de finanças
solidárias, com destaque para as experiên-
3. As considerações que seguem con- cias de bancos comunitários de desenvol-
cernem aos aspectos metodológicos de vimento, por seu caráter ao mesmo tempo
incubação de redes baseados na experi- pedagógico e impulsionador da dinâmica
ência recente da Incubadora Tecnoló- socioeconômica da rede, ao financiar mui-
gica de Economia Solidária e Gestão do tas iniciativas.
Desenvolvimento Territorial, da Univer- Quatro eixos de intervenção estru-
sidade Federal da Bahia (ITES/UFBA). turam o processo de incubação de redes
Essa metodologia compreende território, locais de economia solidária: a formação,
como uma comunidade, um bairro ou um a pesquisa, o planejamento e a experimen-
pequeno município, e define a incuba- tação. A formação constitui uma necessi-
ção a partir de uma relação de dialogis- dade permanente e ocorre em diferentes
mo e de interação profunda entre atores níveis ao longo do processo de incubação.
da Universidade (professores, técnicos A importância da formação é diretamente
e estudantes) e sujeitos sociais nos ter- proporcional às características do públi-
ritórios (moradores, profissionais, lide- co incubado, que, em geral, apresenta
I
muitos déficits educacionais. A formação mento local, que pode ser um plano estra-
228
é concebida em diferentes níveis: capaci- tégico de desenvolvimento comunitário
tação técnica para a gestão de iniciativas (PEDECO) ou territorial (PEDETE). Um
de economia solidária; capacitação profis- plano desse tipo redefine e reorienta ofer-
sional relativa à área de atuação do empre- ta e demanda em um contexto territorial,
endimento na rede; e formação geral em na direção da sua construção conjunta
cidadania, associativismo e economia soli- como sentido de uma outra economia.
dária. A formação abrange simultanea- Se o planejamento aponta a rede a ser
mente a dimensão de sociabilidade e a de criada, em contrapartida, é a implantação
gestão do conhecimento, na construção que permite sua execução, embora esta já
de uma cultura do trabalho democrático e possa ser iniciada durante o próprio pla-
autogestionário. nejamento, intercalada com a pesquisa e
A pesquisa diz respeito ao conheci- articulada ao próprio processo de forma-
mento acerca da realidade local neces- ção mediante a experimentação. Esta se
sário à construção da rede, por isso, ela constitui na vivência da economia soli-
tem propósito de diagnóstico sobre o dária por meio de empreendimentos que
contexto socioeconômico e aspectos his- podem ser estabelecidos antes mesmo da
tórico-culturais do território. Baseada em conclusão da pesquisa e do planejamen-
um mapeamento da produção, serviços to, pois há iniciativas indispensáveis a
e consumo local, essa pesquisa permite qualquer rede. Como exemplos, podem-
conhecer, em profundidade, a socioe- se citar as práticas de finanças solidárias
conomia do lugar. É exatamente a partir (como os bancos comunitários), as inicia-
desse conhecimento que se pode projetar tivas no campo da tecnologia da informa-
a rede a ser constituída, indicando-se as ção de base comunitária ou mesmo certas
iniciativas ou empreendimentos a serem iniciativas socioprodutivas ou sociocul-
criados ou fortalecidos. Nesta etapa, já é turais, conforme o apelo de cada territó-
possível vislumbrar-se a dimensão de pla- rio. A experimentação tem um caráter de
nejamento, o qual envolve a definição dos fortalecimento do processo de formação
contornos da rede, isto é, a indicação de e permite uma apropriação efetiva com
iniciativas ou empreendimentos a serem a idéia de rede no âmbito comunitário,
criados e fortalecidos com base em crité- por seu caráter pedagógico de se estarem
rios de viabilidade técnico-econômica e aprendendo, na prática, princípios, valores
associativa sinalizados pela pesquisa. O e procedimentos da economia solidária.
planejamento concretiza a idéia de reor- Metodologicamente, pode-se iniciar
ganização das economias locais como a construção de uma rede desse tipo por
fundamento de uma outra economia e de meio da montagem de um centro associa-
uma concepção sustentável-solidária de tivo de economia solidária (CAES). Esse
desenvolvimento. O intuito de um proces- centro configura uma estrutura organiza-
so desse tipo é permitir que todo territó- tiva de base comunitária assentada sobre
rio, seja uma comunidade, um bairro, seja quatro pilares principais: uma instância
mesmo um pequeno município, tenha seu associativa, uma iniciativa de base tecno-
planejamento estratégico de desenvolvi- lógica, como um infocentro comunitário,
I
uma prática de finanças de proximidade, a um dispositivo de gestão da informação
229
exemplo de um banco comunitário, e um na rede local de economia solidária, seja
núcleo cooperativo. no âmbito de atividades de assessoria
Uma associação ou entidade local de comunicação, seja na constituição de
representativa corporificam uma instân- um banco de dados de cadastro do perfil
cia sociopolítica de organização comu- socioprofissional dos moradores.
nitária juridicamente constituída, o que O núcleo cooperativo, quarto pilar
é particularmente importante, pois ela de um CAES, representa a instância de
confere o abrigo legal necessário às inicia- desenvolvimento dos grupos produtivos,
tivas informais. Além disso, essa instância nas diversas áreas que constituirão muitos
representa um espaço de auto-organi- dos principais elos componentes da rede
zação política ou um espaço público de local.
proximidade (LAVILLE, 1994; FRANÇA FILHO O CAES pode ser definido como o
e LAVILLE, 2004) fundamental ao aprendi- embrião de uma rede cujo desenvolvi-
zado e ao exercício da democracia local. mento supõe a construção de um arranjo
Tal instância associativa pode constituir- institucional mais ampliado, o qual pode
se ainda como lugar de formação em dife- se iniciar pelo funcionamento do núcleo
rentes níveis: técnico-profissional e de cooperativo por meio dos vários empre-
formação geral em economia solidária, endimentos produtivos. Evidentemente,
cidadania, educação ambiental e consu- uma metodologia de incubação desse por-
mo consciente, entre outros. te envolve ainda um processo permanente
A presença do banco comunitário em de monitoramento e avaliação das ativida-
um CAES cumpre o papel de disseminar des realizadas até o processo de implanta-
um sistema de finanças solidárias no ter- ção da rede e sua consolidação para, em
ritório por meio do microcrédito popu- seguida, passar-se à desincubação.
lar solidário. Este pode direcionar-se ao A incubação de redes de economia
financiamento da produção, serviços e solidária envolve alguns passos vitais no
consumo local, além do fomento a ações processo de reorganização das economias
de finanças de proximidade, tais como locais como base para construção de uma
moeda social e poupança comunitária. outra economia. Em primeiro lugar, há
O infocentro comunitário cumpre a mobilização e capacitação dos atores
alguns papéis importantes na formação locais, seguidas de um processo de discus-
da rede. Ele representa um espaço de são pública de seus problemas comuns,
inclusão digital e de suporte tecnológico à juntamente com a realização de diagnós-
realização da pesquisa para diagnóstico da ticos sobre a situação socioeconômica do
realidade socioeconômica local. Ele tam- território. Na sequência, busca-se orien-
bém pode constituir-se como dispositivo tar, mediante planejamento e experimen-
de conexão da rede local com outras redes, tação, a criação de atividades (as ofertas)
no intuito de fortalecer a comercialização e em função de demandas genuínas expres-
de facilitar intercâmbios de aprendizagem sas localmente nesses fóruns associativos.
e articulações institucionais. Finalmente, Instaura-se, assim, um processo de cons-
o infocentro comunitário pode ainda ser trução de arranjos institucionais de tipo
I
novo e com forte potencial de referência as características do contexto em termos
230
para políticas públicas renovadas no cam- da história de organização local, perfil
po do desenvolvimento local. das lideranças e condições mais gerais de
Muitos desafios apresentam-se nes- infra-estrutura e recursos disponíveis. O
se processo. Um deles envolve a própria conjunto desses aspectos deve ser consi-
metodologia de incubação, no que diz res- derado ao avaliar-se o grau de sustentabi-
peito ao aperfeiçoamento dos instrumen- lidade em processos de incubação dessa
tos didático-pedagógicos e de gestão na natureza.
perspectiva de consolidação de tecnologia
BIBLIOGRAFIA
social de referência. Ademais, o cenário
FRANÇA FILHO, G.; LAVILLE, J.-L. (2004), Economia soli-
político local é importante em termos das dária: uma abordagem internacional, Porto Alegre:
parcerias necessárias ao encaminhamen- Editora da UFGRS.
to das atividades. A ausência de marco LAVILLE, J.-L. (Org.) (1994), L’économie solidaire:
legal, nesse caso, representa um obstáculo une perspective internationale, Paris: Desclée de
considerável. Importa mencionar ainda Brouwer.
J
JUSTIÇA COGNITIVA e da técnica, têm sido produzidos como
Maria Paula Meneses não existentes e, por isso, radicalmente
excluídos da racionalidade moderna. Esta
1. A constituição mútua do Norte e do Sul hierarquização de saberes e sistemas eco-
globais e a natureza hierárquica das rela- nómicos e políticos, assim como a predo-
ções Norte-Sul permanecem cativas da minância de culturas de raiz eurocêntrica,
racionalidade moderna, geradora não ape- tem vindo a ser desafiada a partir de pers-
nas da ciência e da técnica, mas também da pectivas subalternas. Estas perspectivas
lógica capitalista, impessoal e devastadora não só vão mostrando a incapacidade das
e causadora de uma ordem política e eco- velhas dicotomias, como também exigem
nómica desigual e assumidamente mono- a descolonização do conhecimento, o que
cultural. Enquanto desafio ético, a justiça passa, necessariamente, pela descoloni-
cognitiva é uma condição para a mudança zação do pensamento económico. Estas
radical da monocultura da ciência, no sen- questões epistemológicas, suscitadas pelo
tido em que esta, em lugar de ser funda- período de transição em que vivemos,
mentalista, é absorvida, negociada e dialo- levam à emergência de um outro pensa-
gada com outros saberes, de forma a criar mento alternativo, que Boaventura de
um mundo plural e dinâmico de infinitas Sousa Santos caracteriza como sendo um
possibilidades cognitivas, e em que a ênfa- pensamento alternativo de alternativas
se está centrada na interacção/tradução de (2006, 2007).
práticas e saberes (SANTOS, 2006).
A relação do projecto imperial do Nor- 2. Pensar uma outra economia, como par-
te global vis-à-vis o Sul global – metáfora te de uma ideia mais ampla de conceber
da exploração e exclusão social – é parte o mundo como pluriversal, é um assunto
da relação global capitalista. No campo problemático (HOUNTONDJI, 2007). Uma
do conhecimento, a divisão radical entre “outra” economia, solidária, participa-
saberes atribuiu à ciência moderna o tiva, alternativa, informal, pressupõe a
monopólio universal de distinção entre o existência de um modelo dominante.
verdadeiro e o falso, gerando as profundas Paralelamente, esta “outra” economia
contradições que hoje persistem no cen- procura suplantar ou substituir os mode-
tro dos debates epistemológicos (SANTOS, los económicos dominantes. Na essência,
2000, 2007). esta perspectiva assume a hegemonia da
No Norte global, os outros saberes, as racionalidade moderna, que implicita-
outras experiências, para além da ciência mente é vista como a forma dominante
J
de saber económico, na qual o positivis- -Nação. A sua gramática estava imersa no
232
mo matemático é o garante de uma aura modelo de transferência de tecnologia,
de verdade universal, inquestionável. das metrópoles para as periferias colo-
O pensamento económico dominante niais, transformando-se a invenção e ino-
assenta no pressuposto de que a moderni- vação em desenvolvimento (VISVANATHAN,
dade e o capitalismo surgiram na Europa 2006). Se o projecto do desenvolvimen-
num determinado período da história, ten- to resume o paradigma monocultural do
do-se expandido pelo globo ao longo do conhecimento, as críticas ao desenvol-
tempo (DUSSEL, 1994). Nesse movimento, vimento e às políticas económicas que o
esta expansão conheceu encontros, nego- estruturam terão igualmente de ser alvo
ciações e apropriações violentas. Esta nar- de uma mudança paradigmática, que per-
rativa teleológica assenta no pressuposto mita a descolonização.
da existência de um tempo linear, ou seja, A economia moderna, celebrada como
que a história se move em direcção a um uma “ciência” da acumulação material,
fim definido e concreto, em direcção ao sancionou e celebrou historicamente a
progresso, e que algumas sociedades che- exploração e a colonização de recursos e
garam a esta etapa final com algum atraso saberes do mundo. A economia, num sen-
(especialmente os povos colonizados). Por tido dominante, pode pois ser caracteriza-
exemplo, nos textos fundadores da Eco- da como uma gramática colonial, cujo dis-
nomia Política, a “humanidade” percorre curso produz a exclusão e o apagamento
várias etapas económicas (caça, pastoreio, do que é não familiar – embora explorável:
agricultura e, finalmente, comércio), sen- as “outras” práticas sociais e subjectivida-
do cada uma destas etapas caracterizada des. Isto não significa que o pensamento
por um determinado tipo de proprieda- económico se tenha mantido estagna-
de e por formas culturais específicas. Esta do. Pelo contrário, muitas inovações têm
concepção do desenvolvimento da econo- ocorrido, do novo institucionalismo até
mia apresenta uma narrativa clara da fun- à economia solidária. Contudo, importa
ção histórica organizativa da propriedade questionar, na procura de uma ruptura
como princípio estruturador da cultura e com um pensamento único e teleológico,
da sociedade, justificando, em paralelo, a o sentido do “novo”, se estamos perante
lógica histórica da alteridade que a sustém. uma renovação do discurso económico
Como vários autores têm vindo a afirmar, o ou se, de facto, se buscam mudanças no
facto de um crítico capitalista tão podero- sentido de amplificar – na diversidade de
so como Marx ter insistido na réplica das alternativas – um desafio ao paradigma
imagens do “outro” enquanto um espaço dominante.
de atraso (justificando assim a coloniza- Por exemplo, a moderna história eco-
ção britânica) revela que as operações de nómica de África poderá ser ampliada
alteridade enquanto subalternidade estão explorando a tensão entre as tentativas
profundamente impregnadas na moderna de “formalização” económica (especial-
estrutura do pensamento económico. mente no que concerne às tentativas de
O desenvolvimento moderno inte- “fixação” de medidas económicas e sociais
grou o processo de construção do Estado- por meio de documentos e outras medi-
J
das quantitativas convencionais), e as mais fundo, uma abertura à pluralidade
233
lógicas vernaculares em prática, as quais de experiências económicas, longe de
suspeitam e desafiam estes reducionis- apenas revelar uma resistência ao modelo
mos e fixações. Enquanto os planificado- hegemónico neoliberal sustentado pelo
res, quer coloniais quer contemporâneos, monopólio sobre os recursos económicos,
frequentemente assumem que um siste- exige alargar o pensamento alternativo às
ma “moderno” assente na lógica formal alternativas, sobre o que significam as eco-
do documento e das previsões científicas nomias alternativas.
iria naturalmente substituir a tradicional Neste sentido, o pós-colonial deve ser
África indómita e desorganizada, a histó- visto como o encontro de várias perspec-
ria tem mostrado uma imagem bem mais tivas e concepções sobre a hegemonia do
complexa: ilhas de “formalização” num conhecimento moderno, um idioma críti-
meio onde dominam lógicas extraordina- co que procura reflectir sobre os proces-
riamente vitais de negociação informal, de sos de descolonização, nas zonas geradas
conversão e manipulação do valor (GUYER, pela violência do encontro colonial. Ques-
2004). tionar esta hegemonia deverá ser visto
Importa, pois, ir mais longe e ultrapas- como uma possibilidade contingente de
sar a situação paradoxal a que se assiste mudança em direcções que não repro-
no campo da teorização económica sobre duzem a subordinação cultural, política
as alternativas à economia neoliberal: ao e económica. Este questionamento crí-
mesmo tempo que se amplia – através de tico não é um fim em si mesmo, mas um
múltiplas iniciativas como a economia estímulo a uma compreensão mais ampla
solidária, a informal, etc. – uma gramáti- das várias tentativas e dos múltiplos pro-
ca quantitativa importante, a condescen- cessos económicos. Ocultar ou aniquilar a
dência da economia face ao positivismo é diversidade implica sempre o retorno da
marcante. É disto exemplo a relutância em exclusão.
questionar categorias económicas centrais O contraste entre um discurso hege-
como “capital” ou “trabalho” (CHAKRABAR- mónico liberal e práticas económicas
TY, 2000). Termos como subdesenvolvi- cada vez mais heterodoxas permite iden-
mento e neocolonialismo continuam a tificar, de forma cada vez mais precisa, a
ser usados embora as suas origens teóricas presença do questionamento pós-colo-
os impliquem numa teleologia e determi- nial à economia. Esta perspectiva apela
nismo incongruentes com as críticas pós- explicitamente a uma história subalterna
coloniais à modernidade (ZEIN-ELABDIN, da economia moderna, à análise dos pro-
2004). Questões centrais como a globa- blemas resultantes do cruzamento cultu-
lização neoliberal, as rápidas mudanças ral e da natureza das economias solidárias
tecnológicas, a desregulação financeira e a (e das socializações que esta possibilita e
crescente subordinação das sociedades do promove), assumindo, numa perspectiva
Sul global às instituições de Bretton Woo- de justiça cognitiva, o reforço de outras
ds não podem ser adequadamente com- experiências e reflexões, subalterniza-
preendidas sem a atenção sistemática de das e marginalizadas porque impuras ou
uma perspectiva crítica económica. Indo atrasadas.
J
3. O conhecimento, longe de ser uma enti- tipo de desenvolvimento tecnológico que
234
dade ou sistema abstracto, é uma forma de esta promove –, está a atingir-se o paroxis-
estar no mundo, ligando saberes, experi- mo da destruição de outros saberes e das
ências e formas de vida. A ideia de uma práticas, mundividências, universos sim-
economia alternativa, no plural, é uma bólicos e os modos de vida que eles cre-
tentativa de abrir a ciência moderna para dibilizam e legitimam. O ataque maciço
além dos seus limites, com o objectivo de à diversidade epistemológica do mundo
(re)construir a cartografia dos saberes da tem produzido um empobrecimento, e
Humanidade. mesmo a destruição dramática da expe-
A entrada no século XXI exige uma riência social e cultural. Neste sentido,
análise mais sofisticada, que torne visíveis ampliar o cânone dos saberes (SANTOS
alternativas epistémicas. Um dos elemen- et al., 2005) é uma tentativa de alargar a
tos críticos deste desafio é a própria estru- ciência moderna a possibilidades que esta
tura disciplinar do conhecimento moder- tem suprimido internamente, como tam-
no. As disciplinas académicas simbolizam bém para além da própria ciência. Toda-
uma divisão de saberes, uma estrutura via, os cenários pós-coloniais em presen-
organizativa que procura gerir e tornar ça são extraordinariamente distintos. A
compreensível e ordenado o campo do diversidade da América Latina é distinta
saber, ao mesmo tempo que o controla, do que ocorre em África ou dos contex-
endossando e justificando desigualdades tos europeus e, dentro de cada um destes
entre saberes e gerando outras formas de macrocosmos, existe uma infinidade de
opressão, que perpetuam a divisão abis- microcosmos todos infinitamente distin-
sal da realidade social (SANTOS, 2007). O tos entre si. Contudo, se esta diferença
desaparecimento ou subalternização de espácio-temporal apela para a diferen-
outros saberes e interpretações do mun- ça dentro do Sul, a experiência colonial
do significa, de facto, que estes saberes comum permite a constituição de um Sul
e experiências não são considerados for- global, onde a condição pós-colonial se
mas compreensíveis ou relevantes de ser impõe cada vez mais na análise e caracteri-
e estar no mundo; declarados como remi- zação das condições políticas específicas.
niscências do passado, são condenados ao Comum a este Sul global é uma crítica que
inevitável olvido ou a serem processados procura identificar e radicalmente ultra-
pelo saber científico dominante. passar a persistência da colonialidade do
O conhecimento, em lugar de uma poder e do saber (dominação, exploração,
entidade abstracta, é uma forma de expli- marginalização e opressão) para além do
car formas de vida, ocupações e redistri- processo das independências políticas.
buições. Nas relações entre o Norte e o A problemática da pós-colonialida-
Sul globais, entre o centro e as periferias de exige uma revisão crítica de conceitos
do sistema mundial, a colonialidade do hegemonicamente definidos pela racio-
poder é hoje, mais do que nunca, um efei- nalidade moderna, como sejam história,
to da colonialidade do saber científico. cultura ou conhecimento. Rever estes concei-
Com a globalização neoliberal – e as estri- tos integra várias exigências: a histórica,
tas receitas da globalização económica e o ou seja, a necessidade de repensar todos
J
os passados e perspectivas futuras à luz de as estruturas de poder que ainda caracte-
235
outras perspectivas, que não as do Norte rizam o relacionamento científico com
global; a ontológica, que passa pela rene- outros saberes, ao mesmo tempo que se
gociação das definições do ser e dos seus procura transformar essas estruturas e,
sentidos; e, finalmente, a epistémica, que consequentemente, os termos do diálogo.
contesta a compreensão exclusiva e impe- A geração de traduções entre situações
rial do conhecimento, desafiando o privi- contemporâneas pressupõe o reconheci-
légio epistémico do Norte global. mento mútuo, o qual terá de ser criado, a
No seio desta multiplicidade ontológi- partir do descentrar das narrativas domi-
ca, e da consequente possibilidade perma- nantes produzidas no Norte global, apos-
nente de configurações alternativas, impor- tando numa tecedura da análise assente
ta avaliar modos de coexistência entre os numa ecologia de saberes enquanto rede
saberes e as formas da sua legitimação. A composta de múltiplas narrativas inter-
ênfase na pluralidade resulta do reconhe- ligadas. Outro dos dogmas a desafiar é o
cimento da extrema diversidade de experi- do tempo linear, que legitima os estádios
ências, cuja riqueza, em termos de possibili- de progresso cultural no espaço-tempo
dades de mudança, não pode ser sumariada da modernidade. No caso africano, a tra-
num único horizonte disciplinar, numa úni- dição, na medida em que atribui um lugar
ca forma de pensar a alternativa. de especificidade à realidade africana,
transforma-se no artifício ideológico que
4. Pensar a descolonização da economia tem justificado não só a invenção do mun-
requer necessariamente o reconhecimen- do local, como também a naturalização da
to de que não há justiça social global sem não contemporaneidade de África com os
justiça cognitiva global. O conceito de jus- tempos do Norte global. Assumir a pre-
tiça cognitiva assenta exactamente na bus- sença de diferentes lógicas e diferentes
ca de um tratamento igualitário de todas formas de pensar exige a possibilidade de
as formas de saberes e daqueles que o pos- diálogo e de comunicação entre culturas,
suem e trabalham, abrindo o campo aca- incluindo, depois de reconfiguradas, as
démico à diversidade epistémica no mun- experiências de conhecimento do Norte.
do. Este apelo à descolonização requer, Promover uma justiça cognitiva global
em simultâneo, a identificação de proces- só será possível mediante a substituição
sos mediante os quais a epistemologia e a da monocultura do saber científico pelo
racionalidade hegemónicas produzem a alargar dos saberes e das experiências.
“ausência” de saberes, ao mesmo tempo Este alargar epistémico à diversidade – as
que se procura conceptualizar a criação de epistemologias do Sul – inclui, na propos-
um novo tipo de relacionamento entre os ta de Boaventura de Sousa Santos, a reve-
saberes do mundo. lação dos outros saberes, e a construção
Para garantir que qualquer novo enga- de um diálogo entre estes que garanta
jamento político não arrasta, de novo, “igualdade de oportunidades” aos dife-
a destruição epistémica que se procura rentes conhecimentos em disputas epis-
ultrapassar, importa reconhecer a dife- temológicas cada vez mais amplas com
rença que faz a diferença, desmascarando o objectivo de maximizar o contributo
J
de cada um deles na construção de uma GUYER, J. I. (2004), Marginal Gains: monetary trans-
236 actions in Atlantic Africa, Chicago: University of
sociedade mais democrática e justa e tam-
Chicago Press.
bém mais equilibrada na sua relação com
a natureza. Não se trata de atribuir igual HOUNTONDJI, P. J. (2007), La Rationalité, une ou plu-
rielle? Dakar: CODESRIA.
validade a todos os conhecimentos, mas
antes de permitir uma discussão pragmá- SANTOS, B. S. (2000), A Crítica da Razão Indolente: con-
tica entre critérios alternativos de valida- tra o desperdício da experiência, São Paulo: Cortez
Editora.
de que não desqualifique à partida tudo o
que não cabe no cânone epistemológico ___. (2006), A gramática do Tempo: para uma nova cul-
tura política, São Paulo: Cortez Editora.
da ciência moderna (SANTOS et al., 2005).
A justiça cognitiva, enquanto nova ___. (2007), Para além do pensamento abissal: das
gramática global, contra-hegemónica, linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crí-
tica de Ciências Sociais, n. 78, p. 3-46.
reclama, acima de tudo, a urgência da visi-
bilidade de outras formas de conhecer e SANTOS, B. S.; MENESES, M. P.; NUNES, J. A. (2005), Intro-
experimentar o mundo, especialmente dos dução. Para ampliar o cânone da ciência: a diversi-
dade epistémica do mundo. In: SANTOS, B. S. (Org.),
saberes marginalizados e subalternizados. Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade
e dos conhecimentos rivais, Rio de Janeiro: Civiliza-
ção Brasileira, p. 25-68.
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DUSSEL, E. (1994), 1492 – El encubrimiento del Otro: lonial (with economics in mind). In: ZEIN-ELABDIN; E.
hacia el origen del ‘mito de la modernidad’, La Paz: O.; CHARUSHEELA, S. (Ed.), Postcolonialism meets econo-
Plural Editores. mics, Cambridge: Routledge, p. 21-39.
M
MACROECONOMIA haver confluência de três coletivos, com
E ECONOMIA POPULAR três lógicas diferentes, e não pela interfe-
Ricardo Diéguez rência simultânea do capital e do Estado
no mercado, conforme aponta o sentido
1. A compreensão do funcionamento convencional do termo.
macroeconômico do capitalismo é essen- Em uma economia predominante-
cial para se analisarem as possibilidades de mente de mercado, este atua como o
outra economia. Como parte integrante principal organizador dessas articulações,
do sistema social, o subsistema econômi- que se configuram por meio dos preços.
co remete à produção, distribuição, circu- A confluência/confrontação no mercado
lação e consumo de bens e serviços. Sob a dos processos sociais de produção e cir-
hegemonia do capital, o capitalismo apa- culação constrói o sistema de preços das
rece como um “sistema total que articula mercadorias que compõem o produto
a reprodução material e social” (CATTANI, social. Aceitando-se analiticamente essa
2004). Nesse “sistema total”, distinguem- redução da organização da vida social, sem
se: a) o subsistema capitalista, que respon- se ignorarem os outros aspectos da vida
de à lógica de reprodução do capital; b) o humana, pode-se examinar a forma como
subsistema estatal, que responde à lógica se enlaçam as relações sociais mediadas
de reprodução do poder político; e c) o por coisas, na qual os preços funcionam
subsistema da economia popular, que res- como articuladores, tal como sucede na
ponde à lógica de reprodução da vida. moderna sociedade capitalista. Sob esse
A articulação entre esses três subsis- ponto de vista, é possível identificarem-se
temas, com suas lógicas entrelaçando as transações e transferências entre os três
unidades microssociais nas quais se cons- subsistemas. Aqui, são analisados cada
tituem (CORAGGIO, 2004), caracterizou um deles, observando-se sua participação
o capitalismo desde sua formação, sen- na produção de bens e serviços voltados à
do essa separação meramente analítica. satisfação de necessidades.
Nesse sentido, fala-se de economia mista Ao observarem-se as indústrias orga-
toda vez em que as estruturas de interação nizadas pelo capital privado, é necessário
entre unidades de uma ou várias lógicas atentar-se a uma distinção que determina
manifestam-se na base econômica das o funcionamento do subsistema do capi-
sociedades contemporâneas e, por sua tal. De um modo geral, essas empresas
vez, na produção/reprodução de seu teci- dividem-se entre indústrias organizadas pelo
do social. Essa economia é mista por nela capital de concorrência e indústrias organizadas
M
pelo capital concentrado (O’CONNOR, 1981). Em ambas, o setor privado também opera
238
Enquanto as primeiras chegam ao mer- com preços administrados; porém, nessa
cado como “tomadoras de preços”, as administração, confluem o capital privado
segundas fazem-no como “formadoras – organizado em busca de benefício – e
de preços” mediante “preços administra- o Estado – que não investe em busca de
dos” e formam seus preços “fora do mer- lucro. É necessário, portanto, distinguir
cado”, conforme a renda que pretendam estas indústrias daquelas caracterizadas
obter após deduzidos os impostos. Essa no sistema anterior.
estratégia operacional não significa que Supondo que as funções básicas do
a “demanda com poder aquisitivo” não Estado capitalista (O’CONNOR, 1981) sejam
tenha qualquer função; simplesmente, garantir a rentabilidade do capital privado
essas agências capitalistas estão em con- e estabelecer as condições que preservem
dições de estimar a quantidade de bens a harmonia social, os gastos estatais têm
que, dada sua capacidade instalada, pos- um duplo sentido. De um lado, o capital
sam colocar efetivamente no mercado a estatal visa assegurar a rentabilidade geral
preço que lhes garanta a rentabilidade do capital e, de outro, o gasto social visa sal-
esperada. vaguardar a harmonia social e a própria
Enquanto tomadoras de preços, as legitimidade do Estado via, por exemplo,
indústrias organizadas pelo capital de a assistência social. Por sua vez, o capital
concorrência obtêm a determinação estatal pode diferenciar-se em: a) investi-
de sua taxa de lucro no mercado. Nesse mento estatal, compreendendo atividades
subsistema, o capital concentrado apro- realizadas pelo Estado que aumentem a
pria-se de uma porção maior do produto produtividade de uma determinada quan-
social, devido a sua condição de formador tia de força de trabalho, elevando o lucro
de preços. Tal apropriação determina que do setor privado, por exemplo, via criação
o capital concentrado seja o único que de parques industriais financiados pelo
possa incorporar a seus lucros os aumen- Estado; e b) o consumo estatal, abrangendo
tos da produtividade gerados pelas ino- atividades que diminuam o custo de repro-
vações tecnológicas, enquanto aqueles dução da força de trabalho, contribuindo
incorporados pelo capital de concorrên- também para aumentar a taxa de lucro do
cia tendem a expandir-se por todo o setor, setor privado, como por meio da previdên-
refletindo-se na baixa dos seus preços. cia social, sistemas de saúde ou educação.
No subsistema estatal, encontram- Na economia popular e sua unidade
-se as indústrias organizadas pelo capital microssocial, a unidade doméstica (UD)
estatal. Elas se distinguem entre aquelas (CORAGGIO, 2004), incluem-se o trabalho
organizadas diretamente pelas agências assalariado, o trabalho doméstico, outros
estatais, produzindo bens e oferecendo trabalhos que gerem valores de uso, mas
serviços (petróleo, eletricidade, serviços não valores de troca, os empreendimen-
postais, educação, saúde, etc.), e aquelas tos produtivos não-orientados pelo lucro,
que produzem mediante contratos firma- mediante diferentes formas associativas, e
dos com o Estado (abastecimento militar, as atividades envolvidas na “pequena pro-
construção de moradias e rodovias, etc.). dução de mercadorias” (produtores por
M
conta própria que colocam sua produção fluência/confrontação entre o processo
239
no mercado). Sob a ótica da “produção de social de produção e o processo social de
mercadorias”, neste subsistema “produz- circulação, dentro de um quadro institu-
se” a mercadoria “força de trabalho”. Na cional historicamente determinado. Nes-
realidade, o que a UD produz/reproduz é sa interação, estipulam-se os preços das
a capacidade que homens e mulheres têm mercadorias e as quantidades de remessas
de trabalhar, independente de essa capa- de transferências (subsídios, impostos,
cidade ser vendida como mercadoria ou etc.), definindo assim, em última instân-
utilizada em outras atividades. Essencial- cia, a forma como se distribui o produto
mente, a produção/reprodução da força social excedente.
de trabalho é uma atividade coletiva na Os preços de mercado expressam não
qual confluem o trabalho (gasto de cére- só os custos de produção e o lucro do
bro e músculo humanos) de todos os inte- capital, entendido como um markup sobre
grantes da UD. Essa convergência ocorre aqueles, mas também os impostos, tanto
tanto na concepção restringida da UD os que afetam o consumo quanto os que
– a família nuclear –, como em sua concep- o capital privado concentrado transfere.
ção ampliada, relacionada aos vínculos e Esse capital procede a tal transmissão
entrelaçamentos da unidade familiar com mediante os “preços administrados” aos
o seu entorno ou com a família “ampliada”, consumidores, fazendo recair sobre eles a
isso é, a confluência de várias “unidades de carga tributária e o aumento do lucro das
famílias nucleares” vinculadas por laços de agências capitalistas.
parentesco, vizinhança ou outros. Essa transferência da carga impositiva
Ao se definir o funcionamento da eco- aos consumidores resulta em mais gasto
nomia popular a partir de sua unidade na busca de bens e serviços que satisfa-
socioeconômica – a unidade doméstica e çam necessidades e em uma degradação
sua articulação com distintas instituições permanente da equidade social. Para se
sociais (escola, sistema de saúde, sindi- ter uma idéia das transferências realiza-
catos, etc.) –, pode-se constatar que sua das pelo subsistema da economia popular
lógica opera para além dos níveis de ren- para o subsistema do capital, mediante o
da e das pautas de consumo que possam sistema de preços, basta observar-se, por
caracterizá-la. Não se trata, nesses termos, exemplo, que empresas organizadas pelo
de haver uma “economia de pobres para capital concentrado produzem, em gran-
pobres”, mas do fato de essa lógica atu- de medida, os alimentos. Preços e mer-
ar em qualquer unidade doméstica (cf. cado constituem, assim, a ferramenta do
CORAGGIO, 2004), cuja reprodução depen- capital concentrado para trasladar parte
de do emprego continuado da capacidade de sua carga tributária ao subsistema da
laborativa de cada um de seus integrantes, economia popular, enquanto, pela via do
seja qual for sua condição social. investimento estatal, socializa custos e
aumenta seus lucros.
2. Os três subsistemas do capitalismo – ca- A combinação de uma estrutura tribu-
pitalista, estatal e da economia popular – tária regressiva com uma distribuição da
interagem permanentemente na con- renda cuja iniquidade vai de média a alta,
M
juntamente com o predomínio de merca- namente, articulando as transações e
240
dos oligopolistas, faz com que a pressão transferências no mercado. A criação de
tributária recaia, em maior proporção, moeda, tanto pelo Estado quanto pelas
sobre os decis inferiores da distribuição instituições financeiras, determina o limi-
de renda (SANTIERE, GÓMEZ SABAINI e ROSSIG- te superior do volume do processo social
NOLO, 2002). Por meio dos preços, o mer- de circulação, já que este remete à deman-
cado aprofunda as desigualdades sociais, da efetiva, ou seja, à demanda que detém
situação essa bem característica dos países poder aquisitivo. Ao contrário, o limite
da América Latina. Embora essa situação inferior é estipulado pela propensão ao
possa ser mitigada por adequadas políti- consumo, dando-se preferência à liquidez
cas sociais, isso não significa que ela venha e às alternativas que permitam desviar-se
a ser eliminada. No melhor dos casos, ela dinheiro aos mercados financeiros espe-
se manteria sem que se aprofundasse a culativos, não para o consumo.
desigualdade social. Essa realidade mos- Ao gerarem moeda por meio dos em-
tra que em tais situações, via preços de préstimos, os bancos aumentam o poder
mercado, a função de redistribuição do aquisitivo da demanda efetiva. Enquanto
Estado opera marcadamente em prol do geradores de créditos, isto é, de capacida-
capital concentrado, a partir dos setores des de “demandar”, os bancos ampliam
que detêm menos recursos. a capacidade existente de produção das
Por sua vez, as inovações tecnológicas mercadorias colocadas no mercado pelo
tendem a aumentar a produção e, ao mes- capital. Por sua vez, os créditos vinculam-se
mo tempo, diminuir a demanda por força à “capacidade de devolução” que o sistema
de trabalho. Em face desse desemprego bancário considera o próprio solicitante
tecnológico, cresce permanentemente possuir. Assim, os empreendimentos pro-
uma “população excedente”, formada dutivos da economia popular e, em menor
por pessoas demandadas pelo subsiste- medida, os do capital de concorrência são
ma estatal ou pelo subsistema capitalista “menos atrativos” para o sistema financei-
de concorrência (a salários mais baixos), ro do que os organizados pelo capital con-
ou ainda excluídas do processo social de centrado; por isso, o rumo da maior parte
produção capitalista. Essa exclusão não se do dinheiro criado pelos bancos destina-se
aplica necessariamente a seu status de con- aos investimentos produtivos.
sumidores (DE JESUS e MANCE, 2004), pois, Sob a perspectiva do consumo final, os
mediante os preços, esses atores contri- setores de maior renda pertencentes ao
buem para o financiamento do investi- subsistema da economia popular apresen-
mento estatal em inovações tecnológicas. tam possibilidades superiores de aumen-
Os preços são uma “unidade de medi- tar sua “capacidade de devolução”. Já para
da” expressa em dinheiro, o que deman- os setores de menor renda, essa possibili-
da analisar-se a forma como a restrição dade é praticamente nula, o que reduz sua
monetária opera no interior do agregado capacidade de alcançar os bens e serviços
macroeconômico até aqui examinado. que garantam um nível mínimo de quali-
Na condição de homogeneizadora de he- dade de vida e aumenta permanentemen-
terogeneidades, a moeda atua endoge- te a brecha entre os dois setores.
M
A restrição monetária não funciona da rem a esses ganhos o trabalho de produ-
241
mesma forma, de um lado, nas agências ção para o consumo próprio e o trabalho
capitalistas mais concentradas e nos seto- de cuidado, entre outros, essa porção
res da economia popular de maior ren- será ainda maior, sendo todo esse traba-
da e, de outro, nos setores do capital de lho “transferido” à valorização do capital.
concorrência, nos empreendimentos da Esses são os resultados da articulação do
economia popular e nos setores da econo- âmbito econômico via preços por meio
mia popular de menor renda. Esses dife- do mercado.
renciais operam de forma tal que as dissi- O fato de os mercados auto-regulados
militudes tendem sistematicamente a se responderem ao “governo dos preços”
aprofundar em mercados onde o domínio (POLANYI, 1989) e de eles não estarem
do capital concentrado seja hegemônico e completamente “auto-regulados” não
o diferencial de renda entre os atores da invalida a função central ocupada pelos
economia popular mantenha um ritmo preços. É devido a estes que as relações
crescente, como mostram os processos sociais mediadas pelas coisas tornam-se
históricos que comprovam a existência opacas, e os valores gerados por uns são
real da economia. apropriados por outros.
Essas reflexões visam apontar cami-
3. No subsistema da economia popular, nhos para a construção de outra econo-
inclui-se toda a produção de bens e ser- mia e outra sociedade. O associativismo e
viços (força de trabalho como mercado- a organização democrática dos processos
ria e como valor de uso, produção para de produção são ferramentas fortes nesse
o autoconsumo, produção de serviços, sentido, porém, à medida que o conjunto
etc.) que permitem a reprodução da vida da produção atravessar o mercado hege-
de seus membros. Nessa tarefa, recorre- monizado pela empresa capitalista, em
se, entre outras, às “mercadorias coisa” prol dela continuará operando a subsun-
que possibilitem satisfação. Boa parte ção formal. Tal dinâmica permite a essa
das mercadorias produzidas pelas agên- empresa apropriar-se da maior parte do
cias capitalistas somente pode satisfazer produto social excedente, em detrimento
necessidades mediante a intervenção do da produção organizada segundo critérios
trabalho doméstico. Os alimentos são não-utilitaristas.
exemplares nesse sentido. O capital não A ação política sobre o Estado, por
remunera esse trabalho ou imputa-lhe parte dos atores sociais que participam
os “custos de produção”, transferindo- da criação de uma outra economia, torna-
os diretamente às unidades domésticas. se um elemento indispensável para que
Pode-se ver que as agências capitalis- o capital monopólico não socialize seus
tas e as organizadas pelo Estado não se custos (inclusive das “externalidades”,
encarregam, mediante o pagamento de tal como o deterioro do meio ambiente).
salários, do custo de reprodução da for- Essas ações podem fazer com que o Esta-
ça de trabalho, mas apenas de parte dele, do transfira os mesmos recursos ao sus-
melhorando o lucro e o excedente, do tento e ampliação das atividades dirigidas
qual se apropriam. Caso se acrescenta- a essa construção.
M
BIBLIOGRAFIA rines: Editorial Altamira; Universidad Nacional de
242 CATTANI, A. D. (2004), La otra economía: conceptos General Sarmiento; Fundación OSDE.
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In: CATTANI, A. D. (Org.), La otra economía, Los Polvo- me/documento.pdf>.
M
MICROCRÉDITO é a organização de microfinanças com o
Jean-Michel Servet 243
maior número de tomadores de emprésti-
mos (4 milhões) quando comparado com
1. O termo microcrédito designa emprésti- o National Family Planning Coordinating
mos de pequeno valor concedidos a grupos Board, da Indonésia (5,2 milhões), ou
de pessoas solidárias, ou a tomadores de com o programa da Nabard, na Índia, com
empréstimos individuais, por instituições 24 milhões de membros organizados em
que podem ser organizações não-governa- grupos de ajuda mútua. Se for concebida
mentais, bancos ou programas públicos. também a poupança como atividade de
O público-alvo manifesto dos programas uma instituição que pratica o microcré-
de microcrédito é constituído de pessoas dito, o Grameen parecerá menor ainda
ou grupos que detenham baixa renda ou diante dos 28 milhões de poupadores do
sofram discriminações sociais e culturais. BRI, o banco “popular” indonésio.
Em países onde vastos segmentos da popu- Quase desconhecido no início dos anos
lação tenham sofrido um empobrecimen- 1990 fora de um círculo estreito de espe-
to acentuado (por exemplo, Argentina ou cialistas, o microcrédito foi objeto de uma
Estados da Europa Central e Oriental), popularização crescente. Passou então,
o microcrédito destina-se amplamente com frequência, a ser apresentado como
aos “novos pobres” das camadas instruí- um instrumento, entre os mais eficazes,
das. Nos países “em desenvolvimento”, a para se erradicar a pobreza ou garantir um
maior parte da população encontra-se em desenvolvimento local. Ele é sobretudo
situação de exclusão financeira e constitui operacionalizado pelos poderes públicos
clientela potencial do microcrédito. Nos no âmbito das estratégias estabelecidas
países “desenvolvidos”, onde o número de para se atingirem, em 2015, os Objetivos
assalariados é dominante, o microcrédito do Milênio de luta contra a pobreza.
destina-se a uma proporção limitada dos Sua difusão foi bastante beneficiada
trabalhadores, e o auto-emprego não pas- pelas cúpulas do microcrédito e por sua
sa de uma solução limitada à questão do reduplicação nos níveis continentais e
desemprego e dos trabalhadores pobres. nacionais com o apoio do Banco Mundial.
A primeira cúpula reuniu em Washington,
2. O Grameen Bank, de Bangladesh, é em fevereiro de 1997, mais de 2.900 par-
frequentemente considerado a primeira ticipantes, de 137 países. Um ponto cul-
organização a ter praticado o microcré- minante das manifestações públicas de
dito contemporâneo. Na verdade, suas apoio ao microcrédito foi o conjunto de
atividades iniciaram em 1976, ao passo conferências ocorridas em 2005, decla-
que a Opportunity International, organi- rado Ano Mundial do Microcrédito pela
zação sem fins lucrativos, de origem cris- Organização das Nações Unidas. O último
tã, começou a dar pequenos empréstimos encontro ocorreu em novembro de 2006,
na Colômbia já em 1971, e a organização no Canadá, em Halifax (Nova-Escócia),
não-governamental Accion International para consagrar o sucesso dessas campa-
ofereceu seus primeiros créditos em 1973, nhas com vistas a atingir 100 milhões de
no Brasil. O Grameen Bank tampouco pobres e definir novos objetivos para as
M
campanhas de mobilização em torno do A crença na possibilidade de se
244
microcrédito. É surpreendente o contras- implantarem rapidamente instituições
te que há entre o luxo geralmente eviden- rentáveis de microcrédito é sedutora. Para
ciado nesses encontros e sua finalidade se alcançar esse objetivo, são definidas
expressa de contribuir para a luta contra normas de boa gestão das instituições de
a pobreza. microfinanças, que devem privilegiar lar-
gamente critérios financeiros. São feitas
3. Sob o termo microcrédito oculta-se, campanhas, às vezes bem-sucedidas, a fim
de fato, uma diversidade de modelos. As de suprimir-se, em prol das organizações
organizações tendem a associar-lhe cada de microcrédito, o limite das taxas de usu-
vez mais serviços além do crédito, parti- ra. Esses créditos são caros, admite-se,
cularmente a poupança, os seguros e as mas esse custo é o preço do serviço presta-
transferências, o que resulta falar-se de do. Para o tomador, a capacidade de con-
microfinanças. As metodologias privile- trair empréstimo para realizar um projeto
giadas pelas instituições de microfinanças importaria mais do que a taxa de juros. Ao
(microcrédito solidário, empréstimo indi- lado de fundos de caráter não-lucrativo e
vidual, aval bancário, etc.) são fortemente dos investimentos éticos, instituições de
determinadas por incentivos públicos. Em microcrédito tornam-se objeto de concor-
cada país, a prevalência desta ou daquela rência e de aposta – elas podem converter-
metodologia depende dos apoios finan- se em objeto de investimento (sob a for-
ceiros oferecidos pelos poderes públicos e ma de participação ou de empréstimo)
da imposição de normas regulamentares. que pode render, promete-se, até 15% ao
O microcrédito é pensado pelos neo- ano. Além disso, organizações de forma-
liberais como um estímulo ao trabalho via ção que divulgam os padrões de avaliação
auto-emprego e como um meio particular- das instituições de microfinanças lucram
mente insidioso de se desmantelarem as com essa ideologia, captando uma parte
políticas de auxílio aos desempregados e da ajuda endereçada às microfinanças.
às pessoas desfavorecidas, nas zonas mais Paralelamente a esse discurso, uma
marginalizadas. Esses auxílios constituiriam extraordinária máquina midiática é
despesas sociais passivas, enquanto o apoio acionada para atraírem-se os fundos de
dado sob forma de microempréstimos tan- cooperação multilateral, cooperações
geria às despesas sociais ativas, sendo mais bilaterais, doadores privados, bancos e
eficaz ao desenvolvimento econômico investidores privados. Em 2005, de acordo
local. O crescimento das microempresas, com os dados disponíveis, a ajuda pública
cujas atividades poderiam competir com ao desenvolvimento consagrada às micro-
o sistema salarial, também apresenta o ris- finanças não passaria de 1,2 bilhão de
co de contribuir para o desmantelamento dólares, o Banco Mundial não consagraria
dos sistemas tradicionais de solidariedade senão 1% de seus recursos às microfinan-
e de proteção, pressionando as remunera- ças e o PNUD, 3%. Em uma fase de supos-
ções mais baixas, desdenhando as normas to crescimento do volume da ajuda, o ris-
ambientais e as condições de produção, co acha-se em contribuir-se para o desvio
além de estimular o trabalho infantil. de meios que possam ser mais eficazes que
M
o microcrédito na luta contra a pobreza. fosse constituída de pessoas pobres, até
245
Além do mais, é bem possível que o micro- mesmo muito pobres. Isso só é verdade
crédito não cumpra suas promessas. em circunstâncias bastante excepcionais e
dificilmente reproduzíveis.
4. O microcrédito não seduziu apenas os Em 2005, mais de 92 milhões de to-
adversários do neoliberalismo. A crença madores de empréstimos (dos quais 66
em seus sucessos baseia-se na divulgação milhões de pessoas ditas “pobres”) teriam
de histórias de tomadores de emprésti- sido clientes de uma das 10 mil organiza-
mos (em geral, mulheres) que alcançam, ções de microfinanças ativas no mundo, das
graças a pequenas somas, uma mudan- quais somente 1% seria financeiramente
ça significativa de vida. Eles – sobretudo rentável. Os resultados dos estudos socio-
elas – aumentam sua renda de modo sur- econômicos sobre o impacto do micro-
preendente e realizam pequenos inves- crédito mostram-se contraditórios e não
timentos não somente produtivos, mas permitem afirmar que ele desempenha um
também pessoais: escolarizam melhor papel positivo às camadas mais pobres da
seus filhos, tratam-se, têm êxito no com- Terra. É duvidoso ainda situar-se a eman-
bate ao alcoolismo masculino, ganham cipação das mulheres em termos de aces-
autonomia de ação. Apoiados na idéia de so ao crédito, assim como afirmar-se ser o
que as mulheres são melhores clientes do microcrédito, em si mesmo, promotor de
que os homens quanto às taxas de devo- emancipação e de poder social. Cabe ques-
lução, os sucessos financeiros de certas tionar, igualmente, se a evolução do status
organizações são oferecidos como prova das mulheres explicaria o aumento de suas
de haver um efeito positivo do crédito capacidades de produção, troca e financia-
sobre os beneficiários dos empréstimos. mento (entre as quais, o empréstimo).
A imagem do microcrédito veiculada A crença em que essas organizações
pela mídia e as esperanças nele deposita- tenham capacidade para serem finan-
das pelos poderes públicos fundamentam- ceiramente autônomas acarreta pressão
se em dogmas e em um conhecimento considerável sobre elas no sentido de
equivocado acerca de seus serviços presta- serem rentáveis. A busca de um equilíbrio
dos às populações e de seus efeitos reais. financeiro por parte das instituições cre-
Conforme uma dessas crenças, a necessi- ditórias explica, com frequência, os dados
dade essencial das populações mais pobres que apontam haver diminuição da fração
seria a de crédito. Elas teriam preferência de pobres, embora a própria definição de
manifesta por uma atividade que envol- pobreza mantenha-se vaga. Pelas mesmas
vesse criação pessoal, em detrimento do razões, observa-se também, em numerosas
trabalho assalariado. O microcrédito seria organizações, a substituição do emprésti-
necessário porque as instituições finan- mo solidário de grupo por empréstimos
ceiras careceriam de recursos suficientes a individuais. Nessa direção, o Grameen
emprestar ao atendimento das demandas Bank foi obrigado, em 2002, a abandonar
de crédito quase ilimitadas dessa clientela. o que era uma de suas opções fundadoras.
Seria possível criarem-se instituições de Cabe destacar uma última idéia
microcrédito logo rentáveis cuja clientela falsa: a de que as principais instâncias
M
financiadoras do microcrédito caracteri- balhadores pobres aí existentes para per-
246
zar-se-iam por seu pequeno porte. Ora, ceberem-se os limites desse tipo de polí-
observa-se haver uma concentração muito tica e sobretudo seus perigos. O apoio às
grande de clientela, reforçada pela pres- microfinanças pode contribuir para uma
são dos financiadores, que encorajam a precarização generalizada dos direitos ao
normalização do microcrédito. Segundo trabalho se elas forem apresentadas como
a Campanha das Reuniões de Cúpula do a principal alternativa ou até mesmo a
Microcrédito, cerca de quinze organiza- única. Apoiar as capacidades daqueles que
ções agrupam aproximadamente a meta- desejarem criar merece todo apoio, por se
de dos tomadores de empréstimos. Essa tratar de uma questão de direito. Estabe-
concentração é notável no que tange à lecer incentivos para os economicamente
clientela “pobre”. excluídos que queiram criar representa
uma política inovadora; fazer disso uma
5. As microfinanças são frequentemente solução quase única é uma estratégia dis-
apresentadas como uma iniciativa eco- torcida de desmantelamento dos sistemas
nômica, pois reduzem-se ao microcrédi- de autodefesa dos assalariados e de inter-
to com vistas à criação de auto-emprego dição da usura, os quais levaram quase
ou microempresa. Seu objetivo principal dois séculos para se consolidar.
seria o aumento da renda via incentivo ao
microempreendedorismo. Na verdade, 6. Os resultados das avaliações realizadas
a eficácia de microempréstimos destina- acerca do impacto das microfinanças, em
dos ao desenvolvimento das atividades geral, e do microcrédito, em particular,
econômicas dos mais pobres revela-se sobre a pobreza ainda não são conclusi-
limitada, principalmente porque esses vos. Mais que instrumentos de desenvol-
créditos são outorgados a curto prazo e vimento de recursos produtivos (o que
porque a rentabilidade do capital dessas é uma ilusão largamente difundida), as
unidades de produção é restrita. A con- microfinanças, entre as quais o micro-
cessão de crédito não é suficiente para crédito, constituem alternativas aos mais
que se desenvolva o microempreendedo- desfavorecidos para melhor administra-
rismo; é preciso destinarem-se grandes rem seus recursos em longo prazo. É peri-
recursos ao acompanhamento profissio- goso fazer-se dos pequenos empréstimos
nal, técnico e comercial, dos criadores de a curto prazo uma ferramenta central
atividade, desencastrar-se do seu meio de ao desenvolvimento, sendo primordial
vida, dar-lhes capacidade para se informa- agir-se diretamente em matéria de saúde,
rem melhor sobre a clientela potencial e educação, formação e defesa dos direitos.
desenvolver-se a proteção social institu- Para inscrever-se em uma lógica de
cionalizada para que diminua a pressão solidariedade, o microcrédito deve con-
social exercida sobre as microempresas. tribuir ao embate contra a exclusão finan-
Basta comparar-se o número de em- ceira. Nesse campo, a eficácia das práticas
presas que poderia ser criado pelo micro- de poupança e seguro, de transferências
crédito, nos países ditos “desenvolvidos”, dos migrantes e de garantia de reembol-
com a massa de desempregados e de tra- so é frequentemente maior, em particular
M
às populações que praticamente não têm potencialidades e seus limites sejam bem
247
acesso a serviços financeiros formalizados. compreendidos.
As necessidades devem ser definidas pelas
próprias populações. Além do microcrédi-
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M
MICROEMPREENDEDORISMO também contribuem para o crescimento
248 Pedro Hespanha da economia e para a estabilidade social.
A questão que se coloca é a de saber em
1. Em geral, o conceito de microempre- que medida esses pequenos empreendi-
endedorismo é considerado como sendo mentos ou negócios integram o conceito
uma especificação do conceito de empre- que se foi generalizando de empreendedo-
endedorismo reportado a situações de rismo. Embora o percurso da construção
pequeníssima escala. Em muitos países do conceito tenha sido longo e enviesado,
convencionou-se mesmo, para efeito de e a sua semântica duvidosa, generalizou-
apoios públicos, um limiar máximo de se, sobretudo desde a década de 1990,
dimensão definido através do número uma noção de empreendedorismo que
de pessoas envolvidas ou do volume de identifica este com uma competência
negócios. É esse o caso dos Estados Uni- apurada de detectar e aproveitar oportu-
dos, onde uma microempresa é geralmen- nidades de negócio independentemente
te definida como um negócio com 10 ou de dispor ou não de recursos próprios.
menos empregados e um volume de negó- Popularizada por Peter Drucker (1985),
cios anual até 100 000 dólares. A Comis- fortemente difundida pelas business schools
são Europeia usa o mesmo critério dos 10 de todo o mundo e acolhida nos relatórios
trabalhadores, mas estende o volume de das organizações internacionais e declara-
negócios até aos 2 milhões de Euros. ções solenes dos governos, essa acepção
Contudo, definir a microempresa atra- restrita do conceito deixaria à margem
vés da sua escala oculta uma diversidade indubitavelmente a maior parte daqueles
de situações que desafia qualquer tenta- pequenos negócios.
tiva de encontrar traços comuns de natu- Outras acepções de empreendedo-
reza mais substantiva. Vendedores ambu- rismo que se consolidaram ao longo do
lantes, pequenos camponeses, artesãos tempo, como a de Joseph Schumpeter,
tradicionais ou modernos, costureiras, limitam igualmente o universo da sua
operadores de máquinas, colectores de aplicação. Considerado o fundador dos
lixo, jovens criativos são apenas algumas estudos sobre o empreendedorismo, a
das inúmeras situações que associamos à partir da sua obra The Theory of Economic
pequeníssima empresa. As suas motiva- Development, publicada em 1911 (mas ape-
ções são as mais diversas, embora a grande nas em 1934 traduzida para língua ingle-
maioria dessas pessoas seja pobre e tenha sa), Schumpeter valorizou sobremaneira a
dificuldade de aceder a recursos. Em ter- inovação como atributo fundamental do
mos de emprego, os pequenos negócios empreendedorismo. Ao permitir ultrapas-
ocupam uma parte substancial da popula- sar as conhecidas resistências à mudança, a
ção activa e representam uma proporção inovação reveste-se da maior importância
elevadíssima das empresas: por exemplo, para o sucesso do empreendimento. Ela
mais de 80% na América Latina e 79% na manifesta-se numa diferente combina-
UE (OESMEs, 2007). E, constituindo para ção de meios de produção e pode assumir
muitas pessoas um meio de escapar ao diferentes formas: 1) introdução de um
desemprego e à pobreza, esses negócios novo produto com que os consumidores
M
não estão familiarizados ou de uma nova empreendedor que hoje é celebrada por
249
variedade do produto; 2) introdução de muita literatura. O mesmo economista
um novo método de produção; 3) abertura haveria mais tarde de corrigir a sua des-
de um novo mercado; 4) uso de uma nova focagem admitindo, entre outras coisas,
fonte de matéria-prima ou de produtos que o papel do empreendedor poderia ser
semi-industrializados; e 5) mudanças na desempenhado por uma organização, que
forma de organização da actividade, como ninguém seria empreendedor para toda a
a constituição ou o desmantelamento de vida (apenas enquanto desenvolvesse acti-
um monopólio. Apesar de considerar a vidades inovadoras) e que o que importa-
inovação uma predisposição que distingue ria seria o comportamento e não o actor.
o empreendedor do gestor, Schumpeter Tal como o requisito da detecção das
nunca produziu nenhum corpo de regras oportunidades, também o requisito da
ou orientações pelas quais o empreende- inovação não está presente numa gran-
dor tivesse de se orientar, antes conside- de parte dos pequenos negócios ou da
rou a conduta reflexiva como a mais ade- pequena actividade. Se se juntarem ainda
quada a lidar com o que é novo (SWEDBERG, os requisitos da capacidade de assumir
2000, p. 12). riscos e de gerar valor suscitados por Jean
A conduta dos empreendedores ape- Baptiste Say (o empreendedor desloca
nas o interessou como um aspecto de os recursos económicos para as áreas de
uma nova teoria económica centrada na maior produtividade e maior retorno), e
mudança e no desenvolvimento económi- o da desenvoltura na gestão e na assun-
co. O empreendedor estaria na origem das ção da incerteza introduzido por Frank
mais importantes mudanças da economia, Knight (e mais tarde reassumido por
alterando o sistema económico a partir de Howard Stevenson), nem por isso este
dentro, através da criação de novas fun- tipo ideal de empreendedor ganha maior
ções de produção que marcariam os ciclos consistência empírica.
de negócios. Mais tarde, viria a realçar o A realidade mostra que muitos dos
papel da função empresarial no processo negócios criados por indivíduos isolados
de destruição criativa que, segundo ele, ou por pequenos colectivos não obedecem
caracteriza o próprio capitalismo: o novo a todos estes requisitos: ou não manifes-
substitui o velho. Enquanto isso, o empre- tam uma disposição para assumir riscos,
endedorismo é definido pelos seus atribu- nem envolvem uma operação de elevado
tos de criatividade e intuição. Schumpeter retorno; ou não representam nenhuma
analisa ainda as motivações do empre- inovação em termos da gestão e do pro-
endedor, num registo mais próprio da duto; ou não resultam de uma capacidade
Psicologia do que da teoria económica, de detectar oportunidades, antes de uma
para concluir que existem três motiva- opção induzida ou tomada como alter-
ções principais: a aspiração de poder e de nativa a uma outra menos viável, como
autonomia, o desejo de sucesso e a satis- ter um emprego por conta de outrem;
fação de criar algo. Uma leitura apressada ou, finalmente, não evidenciam qualquer
deste quadro motivacional descambou desenvoltura por parte do empreende-
para a difusão de uma imagem heróica do dor que se mostra muito apegado a uma
M
forma de gestão rotineira e cautelosa. O ram-se alguns exemplos: a) jovens recém-
250
mesmo poderá acontecer com empreen- -graduados ou com níveis elevados de
dimentos de maior dimensão, embora a escolaridade que, não encontrando facil-
evidência empírica permita defender que mente um emprego por conta de outrem,
a probabilidade de faltarem os atributos decidem eles próprios criar o seu próprio
de uma noção estrita de empreendedoris- emprego, sobretudo no sector dos servi-
mo varia no sentido inverso da escala do ços (económicos, culturais, de turismo,
emprendimento. ambientais ou relacionados com as TIC)
A questão é particularmente pertinen- e muitas vezes estimulados pelas próprias
te em sociedades onde proliferem formas escolas onde se formaram; b) pessoas com
de pequena produção pouco ligadas ao experiência profissional em domínios
mercado, movidas por uma racionalidade especializados que decidem montar um
económica não-lucrativa e desenvolvidas negócio por conta própria usando a sua
por pessoas com recursos limitados, como experiência e rede de clientela (situação
é o caso das sociedades da periferia e da mais frequente entre pessoas que perdem
semiperiferia do sistema mundial. De uma o emprego em idades mais avançadas); c)
forma sintética, existem aí, pelo menos, pessoas que procuram um emprego sem
quatro padrões analiticamente marginais aos êxito, ou seja, pessoas dificilmente empre-
do empreendedorismo típico: 1. o das gáveis, que são levadas a montar um negó-
actividades com reduzida criação de valor cio, frequentemente estimuladas pelos
em sectores económicos tradicionais; 2. conselhos e pelas ajudas dos serviços de
o das actividades com reduzida inovação emprego; d) pessoas pobres ou sem recur-
na gestão ou no produto; 3. o das inicia- sos suficientes que recorrem ao microcré-
tivas movidas pela necessidade e não pelo dito para montar um pequeno negócio; e
aproveitamento das oportunidades; e 4. o e) pessoas que desejam ter uma actividade
das actividades que minimizam a assun- independente e investem nisso todo o seu
ção do risco. capital material e relacional, muitas das
A existência de padrões de microem- vezes sem ajudas institucionais.
preendedorismo analiticamente margi-
nais não significa que se tenha de analisar 2. É possível distinguir diferentes situa-
separadamente essas realidades das tipi- ções quanto à inovação, ao sentido de
camente empresariais. Mais importante oportunidade e à assunção do risco. A
do que a pureza classificatória das situa- decisão de criar uma empresa – escolha do
ções parece ser, por um lado, o tratamen- auto-emprego em detrimento do empre-
to delas como estágios num processo de go por conta de outrem – por parte de um
transformação que conduz ou não às for- indivíduo resulta de dois tipos de impul-
mas típicas de empresarialidade e, por sos de carácter económico: a oportunida-
outro, a capacidade de medir e compreen- de e a necessidade.
der o afastamento entre umas e outras. O empreendedorismo de oportunida-
As situações reais podem combi- de, no sentido proposto por Schumpeter
nar – e na realidade frequentemente com- (1934), engloba os indivíduos com capa-
binam – mais de um destes padrões. Refi- cidades empreendedoras que detectam
M
uma oportunidade de negócio potencial- e “crescer e inovar” – nem sempre são
251
mente lucrativo, traduzido por um maior coerentes entre si e, por isso, têm condu-
conhecimento das tecnologias ou mer- zido frequentemente ora a uma orienta-
cados, maiores capacidades de gestão, ção workfare da activação, ora à promoção
menor aversão ao risco ou outra caracte- do aparecimento de pequenas empresas
rística pessoal que o torne mais atreito reduzidamente inovadoras, como se verá
ao auto-emprego. Este tipo de iniciativa adiante.
em que o indivíduo é atraído para o auto-
-emprego designa-se empreendedorismo de 3. Pode questionar-se em que medida o
oportunidade. microempreendedorismo é um concei-
O empreendedorismo de necessidade refe- to mais adequado a definir estas práticas
re-se aos indivíduos que, na ausência de negociais (em sentido etimológico) movi-
oportunidades de emprego por conta das pela necessidade do que outros con-
de outrem ou, pelo menos, de postos de ceitos tradicionalmente usados, tais como
trabalho com características adequadas economia popular, economia de sobrevi-
às suas competências específicas, optam vência, economia moral. Ou, então, em
pelo auto-emprego não por via da detec- que medida é que, usando o conceito de
ção de uma oportunidade de negócio, microempreendedorismo, estamos a des-
mas antes pela ausência de alternativas considerar dimensões dessas práticas que
mais favoráveis para a sua sobrevivência. são verdadeiramente explicativas da sua
O indivíduo é empurrado na direcção do existência, como o ethos de subsistência, a
auto-emprego vendo este como um refú- racionalidade de segurança ou a condição
gio das condições desfavoráveis do merca- de modo de vida.
do de trabalho. As perspectivas sociológica e antro-
Estas situações de criação do próprio pológica sobre o empreendedorismo têm
emprego por pessoas com difícil inser- gerado alguns tópicos que podem ajudar a
ção no mercado regular de trabalho estão dar uma resposta a essas questões.
a ser promovidas e apoiadas, nos países Um primeiro tópico critica o preten-
desenvolvidos, por políticas activas de so universalismo do espírito empreende-
emprego, aparentemente sem atender dor. O espírito empreendedor não é uma
à presença dos requisitos do empreen- característica inata dos indivíduos, antes
dedorismo e apenas porque contribuem resulta de uma socialização em ambientes
para uma redução do desemprego e, con- de forte cultura empresarial e implica uma
sequentemente, para um alívio financeiro predisposição para correr risco. Por isso
dos sistemas de protecção social pública. é mais fácil a alguns do que a outros tor-
Paralelamente, os governos promovem e narem-se empresários ou montarem um
apoiam a criação de PME pelas mudanças negócio por conta própria. De um modo
que estas podem introduzir na reestrutu- muito esquemático, existem, em todas
ração dos mercados por via da inovação e as sociedades, grupos sociais ou meios
da concorrência. Sendo complementares, sociais mais distantes deste ambiente, de
estas duas perspectivas das novas políticas que são exemplos as comunidades pobres,
públicas – “activação” (from welfare to work) em que o risco de empreender é muito
M
elevado e a prioridade vai para a segurança Caracterizam-se pelo baixo nível de orga-
252
básica das famílias, as comunidades com nização e a pequena escala, pela pouca ou
uma cultura operária fortemente enrai- nenhuma divisão entre trabalho e capital
zada, os grupos étnicos que dispõem de como factores de produção, e pelo facto
um mercado natural para certos produtos de as relações de trabalho, quando exis-
entre os seus membros mas que não pode tentes, serem baseadas na maior parte das
crescer para além de uma certa dimensão vezes em empregos ocasionais, relações
(WALDINGER et al., 1980) e os agentes do de parentesco ou em relações pessoais ou
sector da burocracia pública ou privada sociais, em lugar de arranjos contratuais
com uma enraizada cultura de serviço. com garantias formais” (OIT, 2006).
Um segundo tópico critica o preten- Os aspectos negativos desses empre-
so individualismo dos empreendedores endimentos informais são bem conhe-
traduzido em qualidades pessoais e numa cidos, por constituírem quase sempre o
elevada capacidade de decisão autónoma. lado mais divulgado do fenómeno: o seu
Na realidade, o empreendedorismo de carácter ilegal (não conformidade com
sucesso envolve, em geral, a contribui- leis e regulamentos); o seu carácter frau-
ção de mais actores sociais para além do dulento (não contribuírem para as recei-
empreendedor, e o activismo deste últi- tas governamentais devido à evasão de
mo resulta muito do apoio que eles lhe impostos); o seu carácter de concorrência
dão. Nos microempreendimentos, quase desleal (competem em desigualdade com
nunca o empreendedor está sozinho a empresas formais ao evitarem custos a
iniciar uma actividade, ainda que frequen- que estas estão sujeitas); e o seu carácter
temente as pessoas que o apoiam fiquem eventualmente delituoso (algumas acti-
na sombra da formalização burocrática do vidades informais são ilegais ou, mesmo,
negócio (SWEDBERG, 2000; PORTELA et al., criminosas).
2008). No entanto, as actividades informais
Um terceiro tópico diz respeito ao e, sobretudo, as de pequena escala são, na
empreendedorismo informal. A econo- maior parte dos casos, a alternativa possí-
mia informal constitui um contexto muito vel para muita gente, uma oportunidade
favorável ao desenvolvimento de peque- de obtenção de rendimento para aqueles
nos negócios e, mais do que isso, ocorre que, de outra forma, estariam sem meios
frequentemente num período de conso- de subsistência. Em vez de existir nessas
lidação desses negócios, constituindo um pessoas uma espécie de preferência pelo
estágio para a aquisição de experiência informal, o que se verifica é ser o informal
e angariação de clientela, desembocan- é a sua escolha mais racional. Para quem
do mais tarde no aparecimento de novas tem falta de recursos (não só monetários,
actividades no sector formal da economia. mas também educacionais ou sociais) a
A OIT define estas pequenas activida- solução formal pode ser inviável. A incer-
des no sector informal como “unidades de teza acerca do êxito do negócio torna
produção de bens e serviços com o intui- proibitivo e muito arriscado o investimen-
to primordial de gerar emprego e rendi- to na formalização (autorizações, licenças,
mento para as pessoas nelas envolvidas. impostos) desse negócio. O sistema fiscal
M
e o de segurança social, e as leis laborais dos. Existe hoje, por parte dos governos,
253
são excessivamente restritivos ou comple- a consciência de que essas actividades
xos para um empreendimento de peque- desempenham um importante papel de
na dimensão. Além disso, não estando adaptação às situações de crise e, por essa
assegurada a clientela e sendo o ambiente razão, é feita acerca delas uma avaliação
comercial muitas vezes hostil para o iní- menos negativa. Em alguns países, procu-
cio, crescimento e desenvolvimento de ra-se mesmo conferir alguma protecção ao
negócios, a passagem transitória por um sector informal sem o promover e, desig-
período de informalidade é vista como a nadamente, proporcionar mais incentivos
melhor forma de reduzir o risco de não às empresas informais, através da redução
ter clientela e de não dominar o mercado. de custos e do aumento dos benefícios
Finalmente, a falta de recursos materiais e para se tornarem e permanecerem legais.
de bens de propriedade limitam a respon- Quem quer montar um pequeno negó-
sabilidade e impede o acesso ao crédito cio em geral não tem acesso a serviços de
institucional, abrindo a porta ao crédi- marketing, de formação em competências
to fiduciário das redes sociais primárias básicas ou de transferência de tecnologias.
(mas também ao crédito usurário, como Uma orientação recente vai no sentido de
observou Muhammad Yunus no Bangla- tornar mais fácil o acesso a esses serviços
desh). Apenas razões deste tipo explicam e de ajudar à formalização das empresas.
a insegurança e o risco suportados pelos Um quarto tópico refere-se ao empre-
empreendedores informais: multas fiscais, endedorismo económico solidário. Nesta
confisco, punição por delito económico, categoria, integram-se todas as formas de
condenação por ilicitude, etc. associação produtiva entre trabalhadores
Um argumento bastaria para incluir as como alternativa ao desemprego, falta de
iniciativas no sector informal da economia rendimento e marginalização pelo merca-
neste conjunto de modalidades atípicas do de trabalho. Situadas no domínio do
de negócio que mantêm uma relação pro- que convencionalmente tem sido desig-
cessual com o empreendedorismo: o seu nado de autogestão e cooperação, estas
potencial para desenvolver a capacidade formas caracterizam-se por um conjunto
de empreendimento, inovação e criativi- de princípios que as permite distinguir de
dade. De facto, as actividades informais outras modalidades de empreendedoris-
habilitam os seus promotores a operar mo. De entre esses princípios, destacam-
com alto grau de flexibilidade, familiari- -se: a autogestão e cooperação no trabalho,
zam-nos com o negócio nas suas vertentes a participação, o igualitarismo, a auto-sus-
de organização e de mercados (gestão de tentação, o desenvolvimento humano e a
recursos e comercialização dos produtos), responsabilidade social. A sua filosofia é a
e ajudam a consolidar uma relação estável da solidariedade e não a do dinheiro ou a
com o mercado. do poder administrativo.
A reestruturação das economias e dos A relação entre o lado solidário e o lado
mercados de trabalho tem favorecido o empreendedor destas iniciativas explica-
recrudescimento das actividades infor- -se pela necessidade de novas modali-
mais mesmo nos países mais desenvolvi- dades de associativismo num período
M
marcado pela globalização económica, o raro, beneficiam de apoios importantes da
254
sistema das cadeias produtivas e a crise do parte das entidades públicas e, designada-
sistema de trabalho assalariado, e pela pre- mente, das autarquias locais, precisamen-
ocupação de escapar ao desemprego maci- te pela capacidade que têm de encontrar
ço e à exclusão social dos trabalhadores a uma saída para problemas que as políticas
que estes factores têm conduzido, sobretu- públicas convencionais não resolvem. A
do na periferia do sistema mundial. A saída sua relação com a sociedade civil e com o
empreendedorista representa uma valori- Estado é, portanto, muito próxima, mas
zação simultânea das vantagens da coope- pautada por princípios de solidariedade e
ração em torno de objectivos de melhoria de reconhecimento mútuo.
das condições de vida e da eficiência eco-
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MOEDA SOCIAL Discutir o caráter social da moeda não
Claudia Lúcia Bisaggio Soares 255
é, como se costuma supor, apenas uma
questão de se criar um sistema que propi-
1. Moeda social é uma forma de moeda cie a inclusão social por meio de uma “pro-
paralela instituída e administrada por dução maior e mais descentralizada” de
seus próprios usuários, logo, sua emissão é massa monetária, nem mesmo da gestão
originada na esfera privada da economia. coletiva e transparente desse novo dinhei-
Entre ela e a moeda nacional não há qual- ro dos “despossuídos”, até porque empre-
quer vínculo obrigatório, e sua circulação sas de todo porte utilizam moedas sociais.
baseia-se na confiança mútua dos usuá- A idéia abriga também um aspecto mais
rios, participantes de um grupo circuns- radical: procura-se resgatar o dinheiro, a
crito por adesão voluntária. instituição monetária, enquanto institui-
É importante notar que os idealiza- ção social completa, cuja forma e procedi-
dores dessa experiência e a maioria de mentos transpõem determinada face para
seus participantes assumem-na como a arena de disputa de poder, estimulam
um exercício de vontade, reflexo de uma certos valores sociais e reprimem outros
busca pela recolocação da economia a (respectivamente, a responsabilidade e o
serviço das finalidades sociais e pela rein- individualismo, por exemplo). Além disso,
tegração de seus valores à esfera sociocul- tais formas e procedimentos imprimem ou
tural. Nesses termos, a moeda social deve destroem hábitos, interagindo simultane-
ser percebida como uma instituição de amente em todas as esferas da vida, imbri-
caráter assumidamente normativo, à qual cada no modus operandi do sistema social.
se associa quem compartilha os mesmos Com efeito, tecnicamente, a moeda social
valores. Em cada experiência, a combi- não tem (nem faz sentido ter) lastro em
nação de elementos do conjunto total moeda nacional, mas pode vir a ter relação
de valores a ser perseguido pode mudar, de valor, paridade, com ela.
porém, por via de regra, dois significados As regras de cada experiência são ex-
são atribuídos recorrentemente à moeda pressas, compartilhadas e passíveis de dis-
social: 1) “meio de troca” alternativo ou cussão, embora alguns princípios sejam
complementar, capaz de gerar melhores considerados imutáveis: a) a democracia par-
condições de vida aos aderentes; e/ou 2) ticipativa, que implica gestão da moeda pelo
prática de reinvenção da economia, alme- usuário, transparência administrativa e res-
jando reconstruí-la em moldes responsá- ponsabilidades partilhadas; b) a continuida-
veis e participativos, de forma integrada de das operações de intercâmbio, que possibilita
com as outras esferas da vida. Em qual- a aceitação da moeda, assegurando uma
quer caso, essa moeda merece ser inter- próxima oportunidade para se equaciona-
pretada como uma relação monetária que rem as demandas e ofertas pendentes (por-
procura desmascarar e colocar em evidên- tanto, retidas na forma de “dinheiro”); c) a
cia as relações de poder que comumente confiança no grupo enquanto tal, que respal-
subjazem às atitudes mercantis e ainda, da o “valor” da moeda (que é exatamente o
mais especificamente, ao instrumento de servir de meio de troca entre o grupo);
monetário tradicional. d) o caráter de serviço “público” da moeda,
M
que favorece a circulação e a produção de Quando os grupos são pequenos e homo-
256
mercadorias, não a especulação ou qual- gêneos, é mais fácil equacionarem-se as
quer outro tipo de lucro estéril – não há questões administrativas, embora, por
cobrança de juros ou concessão de prêmio vezes, falte variedade nos itens negocia-
pela retenção de moeda, mas, em alguns dos. Em contrapartida, quando as expe-
casos, punição (juros invertidos) por ente- riências ganham escala, superam-se mais
souramento; e) a atividade econômica como facilmente as necessidades materiais dos
provedora de bem-estar, que pressupõe não participantes. Em que pese a essas consi-
existir a intenção de “lucrar”, no sentido de derações, grupos maiores tendem a recor-
tirar-se proveito de um trabalho não-remu- rer a outros expedientes para além da
nerado de outrem ou de qualquer tipo de confiança mútua originária, a fim de man-
especulação. terem a aceitação e o valor estável de sua
Assim como qualquer outro “equiva- moeda social. Normalmente, esse reforço
lente universal de troca”, a moeda social é alcançado mediante acordos ou regu-
deve cumprir (e tem condições para tan- lamentos passíveis de cobrança judicial.
to) as funções de: a) medida de valor/uni-
dade de conta – facilita o acordo sobre os 2. A experiência contemporânea com moe-
valores relativos das diversas mercadorias; da social tem se dado mais comumente nos
b) meio de pagamento – permite que os chamados clubes de troca (nomeadamen-
intercâmbios ocorram diferidos no tem- te na América Latina), que funcionam por
po, no espaço e entre agentes distintos; meio da emissão física do bônus. Alguns
c) reserva de valor – permite, se a moeda chegam a extrapolar a escala de “clube”,
social estiver sendo bem administrada, envolvendo toda uma região, como as
que seu valor varie muito pouco, ou mode- “Horas”, de Ithaca. Outra modalidade
radamente, de tal forma que ela poderá ser envolvendo a moeda social são as redes de
utilizada para fins de poupança. compensação mútua, ocorrendo quando
Poupar ou não, reter ou não moeda um grupo de pessoas ou empresas reúne-
constitui uma decisão grupal e individual, se a fim de realizar intercâmbio de bens e
pois a possibilidade de servir como reserva serviços mediante uma unidade de conta
de valor é parte integrante da tecnologia instituída pelo grupo. Para tanto, utiliza-se
social “moeda”, função consequente de uma contabilidade própria, que transfor-
uma boa administração do meio circulante ma as transações realizadas em débitos e
e da cultura do grupo. Apenas uma decisão créditos para os agentes respectivos, crian-
consensual entre os usuários pode alterar do, automaticamente, o “meio circulante”
esse quadro. A utilização do expediente de do grupo (comuns na Europa e na América
cobrança de juros invertidos serve para se do Norte). O sistema LETS ou SELs, como
explicitar essa “vontade coletiva” e incen- é conhecido na França, é um exemplo des-
tivá-la, mas tal recurso só será deveras efi- sa forma de atuação, assim como o sistema
ciente se houver acordo entre os partici- WIR, que nasceu em Zurique, na Suíça, em
pantes acerca da questão. 1934, ainda em funcionamento, basica-
A aceitação da moeda social limita-se mente entre empresas de porte médio. Os
à confiança existente entre seus usuários. bancos de tempo, criados na Itália, no iní-
M
cio da década de 1990, e concentrados em do as regras formais e os códigos informais
257
maior número na Europa, nomeadamen- que pautam as relações da instituição são
te na Itália, Espanha e Portugal, também quebrados, o castigo para tanto não se ori-
podem aí ser incluídos. Faz-se evidente gina no interior da instituição, no âmbito
que todas essas experiências respeitam a de seu próprio funcionamento; ao contrá-
mecânica básica de uma moeda social: tra- rio, os desvios tendem a ser internamente
balham com um equivalente geral de cir- recompensados. A falsificação de moeda,
culação restrito, sem qualquer outro lastro por exemplo, resulta em mais poder de
que não a confiança e continuidade espe- compra para o falsificador, logo, a não ser
rada no trabalho e nas mercadorias transa- que outras instituições sejam mobilizadas
cionadas, havendo gestão participativa na para puni-lo, ele será beneficiado ao não
escala do grupo. cumprir as regras. Nessas circunstâncias, a
instituição não é autopunitiva. Quando a
3. Apesar de originar-se de uma coope- situação envolve a moeda nacional, o défi-
ração voluntária, a moeda social sofre da cit é suprimido mediante recurso ao Esta-
fragilidade inerente às instituições que do. No caso da moeda social, tal suporte
rompem uma antiga tradição ou rotina não existe, pois ela se define justamente
(como a relação heterônoma e reificada pela negação da existência desse apoio
que o dinheiro nacional engendra), pois extra-institucional, o que a faz permane-
instituições já incorporadas ao imaginário cer não-autopunitiva, à semelhança das
são capazes de apresentar forte resistência moedas antigas. Estas, por sua vez, eram
a novos modelos. Ao se propor como uma suportadas por outras instituições, oriun-
escola de autonomia (CASTORIADIS, 1982, das de esferas sociais que não a econômi-
2002), a moeda social eleva a demanda ca, como a religiosa e a cultural. Deduz-se
por maturidade e por atitude ética dos que a moeda social (como, de resto, qual-
participantes a um grau capaz de dispen- quer moeda) encontra um primeiro limite
sar a interferência do Estado ou de qual- na necessidade de estar acoplada a outras
quer outra instituição externa com vistas instituições que lhe confiram capacidade
a promover o cumprimento das regras e de punição (o que vai de encontro a seus
contratos estabelecidos. Isso ocorre em valores instituintes) ou então de estar
uma situação em que o rompimento des- associada a grupos de usuários homogê-
sas regras e contratos (como a promoção neos, entre os quais a ideologia partilhada
de fraudes e falsificações, ou mesmo da funcione como instrumento de desestí-
especulação) pode gerar benefícios pesso- mulo à fraude.
ais não-desprezíveis (em detrimento dos Em relação ao hábito, é de se recordar
coletivos, evidentemente). que a metamorfose sofrida pelo dinheiro
Resumidamente, os limites de sobre- quando de sua interpretação moderna
vivência e longevidade de uma instituição – como equivalente geral – foi associa-
de qualquer natureza vinculam-se a quatro da à efetivação da sociedade de merca-
critérios: autopunição, hábito, comodida- do. Essa associação implica que, se for-
de (NORTH, 2001) e conectividade (SOARES, mas diferenciadas do dinheiro ocorriam
2006). Concernente à moeda social, quan- no passado, na moderna sociedade de
M
mercado o padrão caracteriza-se pela conectividades a posteriori, como o siste-
258
unificação, logo, nesta realidade social, ma de fixação de preços e o de relações de
qualquer outra forma de dinheiro será provimento e expedição de mercadorias e
inusitada. Ela irá de encontro a costumes serviços orientados pela respectiva moe-
fortemente arraigados, porém, também é da, torna-se mais penoso ao integrante
evidente que, quanto mais híbrida for a desligar-se do sistema.
economia em questão, contemplando a As potencialidades da moeda social
presença de outros arranjos econômicos, não estão desconectadas dos objetivos e
como a reciprocidade e mesmo a redis- padrões reguladores da experiência em
tribuição (POLANYI, 1980, 1994), maior questão, embora muitas das potenciali-
será a brecha existente no imaginário dades gerais nasçam justamente nos seus
social (CASTORIADIS, 1982) para que expe- pontos de limite. O primeiro ponto resi-
riências no campo monetário possam ser de no fato de, por não ser autopunitiva, a
dinamizadas. moeda social estimular a criatividade e o
Já o critério de comodidade indica-nos exercício da política e da responsabilida-
haver outras situações que balizam as de nas esferas privada e social, além do
possibilidades de utilização da moeda exercício da autonomia. O segundo con-
social, como a punição legal ou o isola- siste em, por não ser cômoda, essa moeda
mento, dependendo da interpretação, promover o amadurecimento individual.
pelas instituições do sistema dominan- Finalmente, por ser conectiva em essên-
te, de existir maior ou menor perigo. cia, mas ainda não ter essa característica
No cenário contemporâneo, adotar uma plenamente amadurecida, incentivar a
moeda diferente da estatal é estar sujei- criatividade trabalhada coletivamente e
to a pagar um alto preço pela insubor- inter-relacionada.
dinação, pelo exercício de uma vontade Geralmente, todos os tipos de experi-
que não a dominante, porque, para que ência realizados com moeda social insti-
os valores partilhados pelos usuários da gam discussões sobre ética e padrões de
moeda social sejam válidos, estes terão desenvolvimento e transformam-se em
de conviver com a rejeição de sua moe- espaços para caminhar-se rumo à rein-
da pelos demais membros da sociedade. tegração dos objetivos econômicos aos
Enquanto os usuários da moeda social imperativos ético-sociais, desenvolvendo
têm suas opções de intercâmbio reduzi- e discutindo desde a solidariedade social
das, os da moeda nacional (o equivalente até novas racionalidades econômicas. Os
geral), ao contrário, têm todas as insti- próprios valores comungados pelas experi-
tucionalidades tradicionais a seu favor, ências determinarão boa parcela dos limi-
podendo fazer valer os contratos. tes e potencialidades delas. A outra parte,
Não obstante essas limitações, o grau vinculada às relações externas da experi-
de conectividade da moeda social, como ência, encontra-se ligada à capacidade de
o de todas as outras, é elevado, critério articulação em torno dessas finalidades.
esse que promove sua durabilidade, desde Apenas a alteração do instrumento mone-
que as ligações ulteriores, de fato, sejam tário em si não é capaz de determinar o
construídas. Uma vez amadurecidas as mundo social ou mesmo o econômico de
M
que se desfruta, o que, ao contrário, pode portanto, criativo. Finalmente, em razão
259
ocorrer na interação estabelecida com o de ser um projeto conjunto, a moeda
dinheiro ou por meio dele. social acaba por estimular novos contex-
A utilização da moeda social compara- tos de sociabilidade (LISBOA, 2004), novos
se a um grande laboratório, do qual resul- agrupamentos e novas ações coletivas.
tam, à semelhança dos ensaios laborato-
riais, algumas novas tecnologias sociais e BIBLIOGRAFIA
experimentações de alternativas. Desses BLANC, J. (1998), Les monnaies parallèles: évalua-
processos decorrem vivências, aprendiza- tion et enjeux théoriques du phénomène. Revue
dos e exemplos de outras formas de exis- d'Économie Financière, n. 49, p. 81-102, sep.
tir, de organizar a divisão social de poder, CASTORIADIS, C. (1982), A instituição imaginária da socie-
de ordenar o trabalho e implementar as dade, Rio de Janeiro: Paz e Terra.

responsabilidades, que podem resultar ___. (2002), A democracia como procedimento e


como regime, In:______, As encruzilhadas do labirinto
em mais aproximação entre as autono-
IV, Rio de Janeiro: Paz e Terra.
mias pessoal e coletiva (CASTORIADIS, 1982,
LISBOA, A. M. (2004), Economia solidária, economia
2002). Ao integrar-se um projeto de tal
barroca: a emergência da socioeconomia solidária na
natureza, desmistifica-se a moeda nacio- América ibérica. Tese (Doutorado), Instituto Supe-
nal e percebem-se as relações econômicas rior de Economia e Gestão, Universidade Técnica de
tradicionais como um exercício de poder. Lisboa.
Experiências realizadas com a moe- NORTH, D. C. (2001), Instituciones, cambio institucio-
da social permitem desvelar ideologias, nal y desempeño económico, México: Fondo de Cultura
pois explicitam a disputa de poder que se Económica.

dá em torno de sua forma e processo e o POLANYI, K. (1980), A grande transformação: as origens


da nossa época, Rio de Janeiro: Campus.
poder que a instituição monetária concen-
___. (1994), El sustento del hombre, Barcelona: Biblio-
tra. Trabalhar com moeda social implica a
teca Mondadori.
tomada de posição por parte do utilizador,
SOARES, C. (2006), Moeda social: uma análise interdis-
o qual, no mínimo, passa a refletir sobre a
ciplinar de suas potencialidades no Brasil contem-
“naturalidade” que lhe é imposta acerca porâneo. Tese (Doutorado), Centro de Filosofia e
do dinheiro – já que terá de administrá- Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa
lo –, o que já é, em si, deveras subversor e, Catarina.
M
MOVIMENTO SOCIAL Na produção sociológica sobre o tema,
260 Ana Mercedes Sarria Icaza é possível identificar duas grandes perspec-
tivas para a compreensão dos movimentos
1. O termo movimento social remete, em sociais. A primeira, predominantemente
um sentido amplo, a lutas sociais trava- estadunidense, denominada mobilização de
das coletivamente, propondo mudanças recursos, explica a ação coletiva como um
em diferentes esferas (política, cultural, processo de escolhas racionais e cálculo
econômica, social) e níveis (local, seto- de custos e benefícios por atores sociais
rial, macrossocial). Esse conceito aporta a privados de algum recurso. Essa escola
idéia de uma ação coletiva que apresenta propõe uma análise estratégica desses
questionamentos ao sistema ou a normas movimentos, insistindo acerca do seu
específicas, designando assim eventos de caráter racional e de suas orientações ins-
composições e alcances distintos. titucionais. Os trabalhos associados a essa
Em um sentido mais restrito, movi- corrente são diversos, abrangendo alguns
mento social é uma categoria analítica de cunho mais economicista, até outros
construída para se entenderem essas mais preocupados em evidenciar variáveis
ações coletivas, tanto internamente, em históricas e sociológicas.
seu processo de configuração, quanto A segunda perspectiva, predominan-
externamente, em seu papel na sociedade. temente européia, enfatiza os processos
Pode-se definir movimento social como de identidade e sua preeminência em
a ação de um conjunto de pessoas que se toda ação coletiva. Considerando as novas
identificam com códigos, valores, necessi- formas coletivizadas de mobilização, tais
dades ou idéias comuns, apresentam um como os movimentos ecológicos, feminis-
projeto de mudança e mobilizam-se para tas e estudantis do final dos anos 1960 e
conferir visibilidade e legitimidade social início da década de 1970, faz uma crítica
àquilo pelo que lutam. ao paradigma tradicional marxista e aos
esquemas utilitaristas e funcionalistas.
2. O termo movimento social começou a Autores como Touraine (França), Offe
ser usado no século XIX para referir-se a (Alemanha) e Melucci (Itália) desenvol-
revoltas, manifestações e diferentes for- veram esquemas interpretativos que con-
mas de ações coletivas que representas- sideram a cultura, a solidariedade e os
sem a expressão das profundas mudanças valores como elementos indispensáveis à
econômicas e políticas desse período, ação dos movimentos sociais. Igualmen-
relacionadas à expansão do capitalismo te, apontam para o declínio da sociedade
e à organização da classe trabalhadora. industrial e a emergência de uma socie-
A partir dos anos 1970, desenvolveu-se dade pós-industrial, marcada por novos
uma importante produção teórica sobre movimentos sociais, outro conceito para
os movimentos sociais, ganhando espaço demarcar a emergência de novos atores
e atraindo interesse a pesquisa sobre eles, coletivos que, diferente do “velho movi-
estimulada pela intensificação de diver- mento social”, não são oriundos das rela-
sas formas de disputas sociais em todo o ções produtivas e reivindicam autonomia,
mundo. reconhecimento das diferenças e novos
M
valores culturais, centrados na justiça e na que remetem principalmente a demandas
261
solidariedade. de acesso a direitos sociais e à democracia
Alain Touraine, um dos autores euro- (cf. DOIMO, 1995, p. 68).
peus com uma vasta produção sobre essa No contexto do capitalismo globaliza-
temática, construiu uma definição de do dos anos 1990, as perspectivas analíti-
movimento social situando-o como uma cas, tanto dos novos movimentos sociais como
ação conflitante de agentes de classes do movimento popular, apresentaram sinais
sociais, pleiteando o controle do siste- de esgotamento, dando lugar a outro viés
ma das grandes orientações históricas da interpretativo, que passou a privilegiar
sociedade. A ação constrói-se pela presen- o conceito de sociedade civil e a integrar
ça de um ator que se define por sua iden- as teorias da democracia. Nesse sentido,
tidade, reconhecendo, ao mesmo tempo, conforme Arato e Cohen (1994, p. 180),
uma relação de oposição e um campo que “o sucesso dos movimentos sociais não é
dão significado àquilo pelo que se luta ou mais concebido como inclusão no poder
às privações do ator. São princípios de estatal (reforma) ou como destruição do
interpretação dos movimentos sociais a Estado (revolução)”. Os segmentos mais
identidade, a oposição e a totalidade, que, reflexivos dos movimentos sociais vêem-
por sua vez, se referem aos três elementos nos “enquanto reconstrução da sociedade
constitutivos de todo movimento social: o civil e o controle da economia de mercado
ator, o adversário e o que esteja em jogo e do Estado burocrático”. Essa perspecti-
no conflito. va influenciou boa parte dos autores que
Outros autores, como Melucci, ques- estudam os movimentos sociais no Bra-
tionam a visão historicista e de unici- sil, os quais desenvolveram uma série de
dade de Touraine sobre os movimentos trabalhos sobre a democracia participa-
sociais. Superando o que chama de “uma tiva e a questão da cidadania, desafiados
visão global e metafísica dos atores coleti- pelo novo contexto de democratização e
vos”, Melucci (2001, p. 23) afirma que “os pela globalização econômica. Conforme
movimentos não são personagens que se Santos e Avritzer (2002, p. 54), a grande
movem com a unidade de fins que lhes é participação dos movimentos sociais nos
atribuída pelos ideólogos. São sistemas de processos de democratização latino-ame-
ações, redes complexas de relações entre ricanos evidenciou o problema da neces-
níveis e significados diversos da ação sidade do que chamam de uma “nova gra-
social”. mática social”, isto é, uma nova forma de
Na América Latina, a categoria movi- relação entre Estado e sociedade.
mento social passou a ser referência cen- A ativação de uma inédita onda de
tral em análises e reflexões, bastante mobilizações e protestos nos primeiros
influenciada pelas construções teóricas anos do século XXI, orientada contra a
européias. Nos anos 1980, cunhou-se o globalização neoliberal e pela busca de
termo movimento popular, uma categoria alternativas, reacende a discussão sobre
latino-americana para referir-se a uma os movimentos sociais e as perspecti-
vasta gama de movimentos reivindicativos, vas de transformação social no mundo
extremamente diversos e fragmentados, contemporâneo. Um dos símbolos dessa
M
nova mentalidade passou a ser o Fórum de problemas (EDER, 2002) ou anunciar o
262
Social Mundial e seu slogan “um outro novo que está nascendo (MELUCCI, 2001),
mundo é possível”. Foi nesse momento seja o de atuar como ativadores de proces-
que tomou força a economia solidária, sos de radicalização democrática (COHEN
trazendo ao debate a própria lógica eco- e ARATO, 2000).
nômica dominante e a necessidade de se Um debate importante refere-se ao
reinserir a economia na sociedade. questionamento das elaborações relativas
Nesse processo, diversas perspecti- aos novos movimentos sociais, em oposi-
vas ganham espaço entre os movimentos ção ao “velho movimento social”, associa-
sociais na América Latina. A primeira do à classe operária e aos sindicatos. Nesse
situa-se na ênfase autonomista em relação sentido, cabe reconhecer que as interpre-
ao Estado, inspirada nas idéias de auto- tações dos movimentos sociais implicam,
res como John Holloway (2003). A outra como afirma Santos (2001, p. 178), uma
corresponde à retomada de uma linha de crítica tanto “da regulação social capitalista
interpretação que mantém os pressupos- como da emancipação social socialista tal
tos centrais do marxismo, entre os quais como foi definida pelo marxismo”. Segun-
se encontram a luta de classes derivada da do o autor, esses movimentos mostram sua
relação capital-trabalho, a premência de radicalização ao “advogar por um novo
unificação das lutas sociais em torno des- paradigma social, menos baseado na rique-
sa contradição central e a necessidade dos za e no bem-estar material e mais na cultu-
aparelhos de Estado como instrumento ra e na qualidade de vida”. Em contraparti-
privilegiado das classes subalternas para da, é necessário destacar a necessidade de
induzir as transformações sociais e supe- aprofundamento dessa crítica, superando
rarem o capitalismo. algumas visões simplistas entre o “velho” e
o “novo” e transcendendo um romantismo
3. A falta de acordo interpretativo em que, muitas vezes, impede de se analisarem
relação ao termo movimento social é indi- em profundidade os desafios para se cons-
cativa das dificuldades conceituais a que truírem novos processos emancipadores.
seu uso remete. As oscilações no interes- Historicamente, os movimentos so-
se de estudos e pesquisas sobre o assun- ciais foram concebidos sob uma pers-
to, desde os anos 1970, mostram que um pectiva de ação política, visualizados
dos grandes problemas reside no fato de principalmente em seu confronto com o
o conceito permanecer atrelado ao con- aparelho estatal e na busca por apropriar-
texto em que seja elaborado, passando de se deles com vistas a impulsionar-se a
momentos de grande otimismo a perío- mudança social. Entretanto, as transfor-
dos de questionamento acerca de seu uso mações ocorridas desde o final do século
e de seu papel explicativo da realidade. XX, tanto na configuração econômica e
Independente dessas oscilações, o certo sociopolítica mundial como nas próprias
é que os movimentos sociais têm sido um formas da ação coletiva, materializaram
dos elementos constitutivos da sociedade novas dinâmicas e geraram perspectivas
moderna, na qual cumprem papel impor- analíticas diferenciadas. A maioria des-
tante, seja o de garantir a comunicação sas análises passou a resgatar o conceito
M
de sociedade civil e a enfatizar o desafio DOIMO, A. M. (1995), A vez e a voz do popular: movimen-
tos sociais e participação política no Brasil pós-70, 263
democrático verificado em sociedades
Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ANPOCS.
caracterizadas por um alto grau de frag-
mentação e diferenciação, pela ampliação EDER, K. (2002), A nova política de classes, Bauru, São
Paulo: EDUSC.
das desigualdades e pelo descrédito nas
utopias totalizadoras. GENDRON, C. (2005), Movimento social. In: LAVILLE,
A economia solidária pressupõe formas J.-L.; CATTANI, A. D. (Org.), Dictionnaire de l´autre écono-
mie, Paris: Desclée de Brouwer.
de ação coletiva que expressam claramen-
te as novas configurações e impulsos dos GOHN, M. G. (1997), Teorias dos movimentos sociais:
paradigmas clássicos e contemporâneos, São Paulo:
novos movimentos sociais ocorridos nas
Loyola.
últimas décadas do século XX. Desde suas
primeiras manifestações, ela congrega ide- HOLLOWAY, JOHN (2003), Mudar o mundo sem tomar o
poder (2003), São Paulo: Boitempo Editorial.
ais mais amplos de contestação e transfor-
mação social. Ligada às lutas da classe ope- MELUCCI, A, (2001), A invenção do presente: movimen-
rária na Europa do século XIX, integra, nos tos sociais nas sociedades complexas, Petrópolis, Rio
de Janeiro: Vozes.
últimos anos do século XX, redes de movi-
mentos sociais, nacionais e internacionais, OFFE, C. (1985), New social movements: challenging
the boundaries of institutional politics, Social Research,
mobilizando atores sociais e idéias. Na bus-
n. 52, p. 817-868.
ca por reincorporar debates acerca da eco-
nomia na sociedade, cria recursos de poder SANTOS, B. S. (2001), Los nuevos movimientos socia-
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capazes de questionar os padrões culturais
Aires: CLACSO, Sept.
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SANTOS, B. S.; AVRITZER, L. (2002), Introdução: para
ampliar o cânone democrático. In: ______, Democra-
tizar a democracia: os caminhos da democracia partici-
pativa, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
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COHEN, J.; ARATO, A. (2000), Sociedad civil y teoría políti-
ca, México: Fondo de Cultura Económica. TOURAINE, A. (1978), La voix et le regard, Paris: Seuil.
P
PATRIMÓNIO COMUM permitir, assim, uma efectiva apropriação
DA HUMANIDADE individual dos respectivos recursos.
José Manuel Pureza A alternativa do património comum
da humanidade a este modelo e aos seus
1. O regime de património comum da resultados selectivos é essencialmente
humanidade constitui um elemento pro- normativa. Ela traduz-se em três dimen-
fundamente inovador no Direito Inter- sões essenciais. Em primeiro lugar, um
nacional no que diz respeito à gestão de princípio de apropriação e gestão direc-
bens e recursos. Consagrado em tratados tamente pela humanidade no seu todo (e
internacionais de primeira importância, não por meio de um clube fechado, como
como a Convenção das Nações Unidas na Antárctida), segundo uma lógica de
sobre o Direito do Mar (1982) ou o Acor- discriminação positiva dos países mais
do de 1979 sobre a utilização do espaço pobres no acesso aos resultados da explo-
extra-atmosférico, o regime de patrimó- ração desses bens e espaços comuns. Em
nio comum da humanidade é uma fórmu- segundo lugar, o princípio da reserva do
la que se afasta radicalmente do modelo património comum da humanidade para
dominante de regulação internacional fins pacíficos, o que inclui não apenas um
desta matéria. Esse modelo dominante conteúdo minimalista (desarmamento e
tem assentado numa suposta alternati- desnuclearização) mas, mais do que isso,
va entre a apropriação soberana pelos uma proibição da exploração dos recursos
Estados dos recursos intrafronteiriços e do património comum da humanidade
a liberdade de uso sem apropriação dos para quaisquer utilizações relacionadas
espaços internacionais. Ora, a verdade é directamente com fins militares. Em ter-
que, para lá do formalismo jurídico, uma ceiro lugar, o princípio da salvaguarda dos
regra e a outra têm facilitado, na prática, direitos das gerações futuras, o que deter-
a apropriação dos principais recursos por mina que a gestão do património comum
um conjunto restrito de actores económi- da humanidade adopte como critério
cos mais poderosos: por um lado, a sobe- essencial o da justiça intergeracional, com
rania dos Estados periféricos é facilmente as inerentes restrições ecológicas ao des-
contornada por esses actores e pelos seus gaste desse património.
Estados; por outro lado, a liberdade de A novidade radical do regime de
uso dos espaços internacionais (alto-mar, património comum da humanidade resi-
por exemplo) acaba por funcionar segun- de, portanto, na adopção de um modelo
do uma lógica de “first come, first served” e de gestão destes espaços e recursos em
P
benefício de toda a humanidade presen- radicalmente com a regulação do acesso
265
te e futura. Ora, este critério implica uma aos bens e recursos onde prevalece uma
transformação profunda na própria con- matriz territorialista, podem detectar-se
cepção de soberania: de poder unilateral na trajectória deste regime, traduzida nas
e autocentrado para um agregado de com- manifestações da sua positivação jurídi-
petências vinculadas por obrigações posi- ca, duas fases distintas aqui denominadas
tivas determinadas pelo interesse geral e as duas idades do regime de património
pelo bem comum da humanidade inteira. comum.
A primeira idade assentou em consa-
2. A Convenção das Nações Unidas sobre grações daquele regime para a regulação
o Direito do Mar – tratado fundamental de espaços comuns em que não se havia
na consagração deste regime – concreti- anteriormente feito sentir, de modo signi-
zou os princípios referidos associando-os ficativo, a afirmação de pretensões sobera-
a uma orientação planificadora centra- nas por parte dos Estados nacionais. Assim
lizada numa organização internacional sucedeu, precisamente, com os fundos
(a Autoridade Internacional dos Fundos oceânicos mais longínquos (para lá das
Marinhos), a quem conferiu poderes de plataformas continentais) e com o espaço
monopólio na gestão dos fundos marinhos extra-atmosférico. A exterioridade desses
qualificados como património comum e espaços relativamente às dinâmicas de ter-
competências extraordinárias de explora- ritorialização nacional competitiva deter-
ção directa desses recursos, configurando- minou que, nestes casos, mais do que con-
-a como uma verdadeira empresa pública testação da lógica territorialista, se tenha
internacional. Neste sentido, a tradicio- verificado uma complementaridade entre
nal liberdade de iniciativa dos Estados ela e o regime de património comum. Na
na exploração dos recursos dos espaços verdade, os espaços qualificados, nesta
internacionais ficou severamente restrin- fase, como património comum mais não
gida. Isso mesmo esteve na base de uma eram que o remanescente de apropriações
intensa contestação da Convenção pelos nacionais de dimensão sempre crescente
países mais industrializados (e, dentro (veja-se, por exemplo, a amplitude extra-
deles, pelos grupos económicos com inte- ordinária da ampliação que, em menos de
resse na exploração dos recursos minerais meio século, foi dada aos espaços marí-
dos fundos oceânicos) que culminou, em timos sob jurisdição dos Estados costei-
1994, na adopção de um acordo adicional ros – de 3 para 200, ou mesmo para 350,
que descaracteriza e esvazia totalmente milhas marítimas!). Neste contexto, a con-
o modelo de 1982, reconduzindo-o, no sagração do regime de património comum
essencial, à prevalência do livre comércio da humanidade em espaços situados para lá
e dos direitos de apropriação pelos agen- das fronteiras dessas apropriações nacio-
tes económicos privados dos países mais nais, embora tenha trazido um elemento
desenvolvidos. de contraste com a regulação dominante,
não veio disputar a sua hegemonia onde
3. Se é indiscutível que o regime de patri- ela se havia consolidado, ou seja, dentro
mónio comum da humanidade contrasta das fronteiras territoriais dos Estados.
P
O modelo da primeira idade do regime nacional. Em ambos os casos, os prin-
266
de património comum reproduz, por- cípios inspiradores do regime de patri-
tanto, a mesma filosofia em que se baseia mónio comum da humanidade passam a
a dinâmica de segmentação da gestão actuar dentro do domínio da soberania
dos bens pelas soberanias nacionais: territorial dos Estados. Ainda que, neste
apropriação pelo respectivo Estado dos tipo de situações, não surja explicitamen-
prolongamentos naturais do território te a designação “património comum da
terrestre (no mar ou no espaço aéreo) e humanidade”, o que emerge é uma influ-
apropriação por uma organização repre- ência dos três grandes princípios, acima
sentativa da humanidade do remanes- referidos, identificadores daquele regi-
cente desse movimento. A lógica é a mes- me, sob formas matizadas, na regulação
ma: em ambos os casos, está claro que a da administração de recursos ou espaços
única alternativa considerada viável à considerados de interesse para a huma-
desregulação seria o Estado – na dinâmi- nidade no seu todo. Nesse sentido, o sig-
ca de territorialização, cada Estado indi- nificado mais importante da consagração
vidualmente; no património comum da deste princípio é a profunda transforma-
humanidade, uma organização suprana- ção da lógica de exercício da soberania
cional que surgiria como antecipação de do Estado sobre esses bens ou recursos.
um verdadeiro governo mundial. O territorialismo competitivo entre os
A segunda idade do regime de patri- vários Estados – que, em bom rigor, pode
mónio comum da humanidade inclui as ser considerado como uma adequação
suas aplicações a bens e recursos situados de escala da tradicional construção do
precisamente dentro das fronteiras dos direito de propriedade individual sobre
Estados. Trata-se, por isso, evidentemen- a articulação entre jus fruendi, utendi et
te de um jogo de forças completamente abutendi – dá lugar, neste novo contexto,
diferente do anterior. Está em causa, em a uma administração parcimoniosa dos
concreto, um conjunto de regimes inter- bens, guiada pela noção de função social
nacionais sobre a gestão de bens cultu- – a função social da soberania, ampliação
rais ou de bens ambientais que, embora planetária da função social da proprie-
mantendo-os como objecto de jurisdição dade. A referência inspiradora e vincula-
dos Estados, os submete, por força da sua tiva dessa função social da soberania é a
qualificação como interesse da humani- humanidade no seu todo, lida segundo
dade no seu conjunto, a regras concretas eixos de transtemporalidade e de transes-
de administração e gestão completamen- pacialidade. “O papel dos Estados corre o
te diferentes das que os mesmos Esta- risco de se transformar no de agentes de
dos aplicam à generalidade dos espaços execução, guardiães ou, na hipótese mais
e recursos intrafronteiras. Vejam-se os favorável à comunidade internacional, em
exemplos da Convenção da UNESCO de trustees” (KISS, 1982). Isso significa que,
1972 sobre protecção do património nesta vertente, o regime de património
mundial natural e cultural ou da Conven- comum da humanidade se materializa na
ção de Ramsar de 1971 sobre protecção transformação da soberania-domínio na
de zonas húmidas de importância inter- soberania-serviço.
P
Aquilo a que se chama segunda idade dos por um conjunto de obrigações posi-
267
do regime de património comum é pois tivas que estabelecem vínculos reforçados
uma reformulação da filosofia de fundo para com a comunidade internacional no
do regime, despindo-a de um enquadra- seu conjunto e que, de acordo com os ter-
mento ideológico de perfil planificador mos da Declaração do Rio de Janeiro sobre
e centralizador, mantendo todavia o seu Ambiente e Desenvolvimento de 1992, são
fundo normativo assumidamente comu- “obrigações comuns mas diferenciadas”.
nitarista e ecológico. Neste quadro, com-
preende-se que a dimensão institucional
BIBLIOGRAFIA
ensaiada na Convenção sobre o Direito
BLANC ALTEMIR, A. (1992), El patrimonio común de la
do Mar tenha perdido lugar central nesta
humanidad. Hacia un régimen jurídico internacional
fase mais recente. De algum modo, a recu- para su gestión, Barcelona: Bosch.
sa do centralismo e do intervencionismo
BROWN WEISS, E. (1989), In fairness to future generations:
assinalados à Autoridade Internacional
international law, common patrimony and intergen-
dos Fundos Marinhos espelha a rejeição erational equity, Tokyo/New York: United Nations
actual de um modelo de regulação que dê University/Transnational Publishers Inc.
protagonismo a um mecanismo institucio- DUPUY, R.-J. (1986), La communauté internationale entre
nal forte e dele faça depender a garantia le mythe et l'histoire, Paris: Julliard.
de cumprimento da substância normativa KISS, A.-C. (1982), La notion de patrimoine commun
do regime de património comum. Nesta de l'humanité. Recueil des Cours de l'Académie de Droit
versão mais modesta do regime de patri- International de La Haye, vol. II.
mónio comum da humanidade, o núcleo PUREZA, J. M. (1998), O património comum da humanida-
essencial passa então a ser o balizar do de. Rumo a um Direito Internacional da solidarieda-
exercício da soberania territorial dos Esta- de? Porto: Afrontamento.
P
POLÍTICAS PÚBLICAS 2. A transformação das carências e neces-
268 Walmor Schiochet sidades próprias da economia solidária em
direitos fez com que a atuação dos gover-
1. Políticas públicas podem ser entendidas nos (gestores) e as mudanças nas estru-
tanto como uma área de conhecimento, turas do Estado assumissem centralidade
como o próprio objeto dessas políticas. para as perspectivas dos empreendimen-
Enquanto área do conhecimento, cor- tos autogestionários. Ao mesmo tempo
respondem a um conjunto de estudos e em que vai se constituindo como identi-
análises sobre questões e temas relativos dade, movimento social e como questão
ao Estado, seu papel e suas instituições pública, a economia solidária reivindica e
(pensamento europeu), ou enfatizam, propõe políticas públicas específicas, à luz
mais especificamente, a própria “ação ou de experiências semelhantes.
produção dos governos” (reflexão teórica Enquanto política pública, a economia
estadunidense) (SOUZA, 2006). Tais refle- solidária é definida pelos contextos histó-
xões oferecem modelos, tipologias e con- ricos de sua emergência. No caso europeu,
ceitos para se compreender a incorpora- pode ser entendida como uma busca de
ção dessas ações do governo (ou Estado) reconfiguração do papel do Estado (poder
e seus impactos sobre a sociedade. público) para garantir coesão e proteção
A política pública é a própria inicia- social baseadas em novas formas de soli-
tiva do governo (ou do Estado) que se dariedade, em frente à crise da socieda-
organiza em planos, programas e ações. de salarial e às metamorfoses atuais da
É importante reconhecer que a “não- questão social. No caso latino-americano,
ação”, a negligência do Estado ou gover- a economia solidária resulta da crise do
no também integra esse conceito. No modelo neoliberal que orientou a ação
Estado moderno e seus governos demo- governamental na década de 1990, cons-
cráticos, o âmbito da política pública é tituindo-se, ao mesmo tempo, em alterna-
a cidadania, entendida como a relação tiva crítica a esse mesmo modelo.
entre Estado e sociedade civil mediada
pelos direitos. 3. Um dos principais debates estabeleci-
Uma das características do movimen- dos em torno da economia solidária como
to em defesa da economia solidária tem política pública relaciona-se justamente às
sido sua capacidade de colocar a proble- potencialidades para a institucionalização
mática da autogestão coletiva na agenda de uma nova sociabilidade, da solidarie-
pública, transformando-a em luta por dade e da ação pública frente aos limites
direitos (direito ao trabalho associado dos compromissos próprios da social-
e à promoção de formas solidárias de democracia, bem como à superação das
organização econômica e de processos políticas neoliberais. O consenso é que
de desenvolvimento, por exemplo). Des- somente como política pública a econo-
sa forma, a economia solidária recoloca mia solidária poderá sair do seu confina-
a defesa da autogestão como princí- mento (FRANÇA FILHO et al., 2006) e “expe-
pio de organização social, econômica e rimentalismo social” para se constituir em
política. uma força contra-hegemônica capaz de
P
construir uma “outra economia”, plural bilidade de que o crescente controle esta-
269
para uns, socialista e autogestionária para tal e a subordinação burocrática estariam
outros. Existe uma clara dimensão nor- em contradição com as potencialidades
mativa na análise da economia solidária emancipadoras próprias da economia
como política pública, que corresponde a solidária. Ao mesmo tempo, autores como
uma identificação entre as políticas públi- Laville e França Filho identificam a exis-
cas de economia solidária e determinados tência de espaços públicos, isto é, “espa-
partidos e grupos políticos que ascendem ços intermediários, no sentido que eles se
ao governo (por exemplo, radicais, socia- reforçam, tendo em vista contribuir para
listas, verdes). a regulação de um campo de práticas de
A incorporação da economia solidária estímulo às interações entre as iniciativas
à agenda governamental é ainda inócua, e os poderes públicos” (FRANÇA FILHO et
dispersa e fragmentada territorial, insti- al., 2006, p. 301) como possibilidade de
tucional e temporalmente. Essas caracte- manutenção da autonomia da economia
rísticas justificam muitas dúvidas sobre a solidária em frente ao Estado.
própria condição da economia solidária Pode-se questionar o alcance da econo-
enquanto política pública. Empiricamen- mia solidária enquanto uma nova política
te, é necessário reconhecer que, de fato, pública. Coraggio, por exemplo, constata
existem políticas de economia solidária, que programas governamentais de apoio
pelo menos, enquanto ação de governos, a formas cooperativas e autogestionadas
pois se verifica haver opções feitas pro- e a redes de empreendimentos familia-
gramática e concretamente por governos res podem ser caracterizados meramente
locais, regionais e nacionais na adoção de como integradores dos pobres ao merca-
ações de apoio à economia solidária e a do excludente. “Estes programas não são
seus sujeitos. Tais “ações de governo” ain- efetivamente uma nova política econômi-
da não se institucionalizam como direitos ca senão uma política social focalizada nos
(da sociedade) e deveres (do Estado), sen- pobres com uma nova matriz de sentido:
do políticas de governo e não políticas de integrá-los como trabalhadores autôno-
Estado. Dessa forma, a inclusão da econo- mos ao mesmo mercado que os excluiu”
mia solidária na agenda governamental (CORAGGIO, 2007, p. 57).
depende da progressiva vontade política Essa constatação também foi feita
de seus adeptos; no entanto, sendo imple- por pesquisadores brasileiros, ao analisa-
mentadas por governos constituídos a rem programas governamentais locais de
partir de processos eleitorais, seus simpa- fomento à economia solidária, na medida
tizantes ficam à mercê das alternâncias de em que verificam poderem essas inicia-
governo que ocorrem periodicamente nos tivas ser fundamentadas em concepções
regimes democráticos representativos. meramente inclusivas dos pobres na eco-
Essa situação não pode justificar a falta nomia informal por meio da promoção do
de debates mais específicos sobre a perti- empreendedorismo liberal (FRANÇA FILHO
nência da própria institucionalização da et al., 2006). A crítica mais incisiva foi fei-
economia solidária como política pública. ta recentemente por Barbosa (2007), ao
Existem receios manifestos sobre a possi- analisar a incipiente atuação do governo
P
brasileiro na economia solidária. Para a excluído que objetiva criar um contexto
270
autora, a economia solidária é uma políti- de emancipação e sustentabilidade; e, d)
ca pública que foi idealizada com base na para tanto, deve reconhecer e fortalecer a
precarização do mundo do trabalho e que organização social dos trabalhadores e a
a reforça, na medida em que se circunscre- constituição do sujeito político como ele-
ve em um contexto de atuação estatal pífia mentos fundamentais para a instituciona-
quanto a políticas de desenvolvimento e lização dos direitos e para o fortalecimen-
investimento público na proteção social. to das esferas públicas democráticas no
Embora essas sejam avaliações sustenta- país. Nessa direção, o controle social das
das em evidências históricas, elas tradu- políticas públicas é questão de princípio e
zem apenas uma realidade que faz parte deve ser processual e permanente.
de um movimento mais vasto, com vistas O caráter emancipador da economia
à construção de uma nova política públi- solidária em termos de política pública
ca voltada à inclusão e emancipação dos somente pode ser compreendido a partir
pobres e trabalhadores. da dimensão normativa e ideológica tanto
Pelo menos no plano normativo, os de seus defensores, quanto de seus críti-
atores envolvidos com as políticas públi- cos. Não há consenso em torno disso, e os
cas têm evidenciado que, diante da pos- conflitos refletem contradições próprias
sibilidade dos riscos compensatórios da sociedade, da qual a economia solidá-
e meramente “reprodutivos” da lógica ria faz parte, construindo novas realidades
excludente, se faz necessário fundamen- e, ao mesmo tempo, reproduzindo reali-
tar a economia solidária em uma con- dades existentes.
cepção adequada de política pública. As políticas de economia solidária são
Por exemplo, a I Conferência Nacional definidas como as que geram trabalho e
de Economia Solidária realizada no Bra- renda. No contexto de crise da socieda-
sil, em 2006, definiu que, como política de salarial (CASTEL, 1998), as tradicionais
pública, a economia solidária: a) não pode políticas de emprego passaram a ser insu-
ser vista como residual, subordinada, ou, ficientes ou inadequadas. Teorias relati-
quando muito, como compensatória aos vas ao mundo do trabalho e às “classes
impactos das crises do capitalismo, pois, que vivem do trabalho” (ANTUNES, 1999)
dessa forma, impossibilita a necessária ganharam novo fôlego. Sem se desconsi-
ruptura com a reprodução da pobreza ou derarem as proposições que sustentam a
de precária sobrevivência; b) faz parte da possibilidade de haver um novo modelo
construção de um Estado republicano e social não mais centrado no trabalho, uma
democrático, pois reconhece a existência das preocupações políticas mais eviden-
desses novos sujeitos sociais, novos direi- tes nas últimas décadas foi a busca por
tos de cidadania e novas formas de produ- alternativas às políticas de emprego pró-
ção, reprodução e distribuição social, além prias do modelo keynesiano. As políticas
de propiciar o acesso aos bens e recursos hegemônicas foram as de corte liberal
públicos para seu desenvolvimento; c) cuja ênfase dá-se na precarização e des-
deve ser uma política de desenvolvimen- regulamentação do mercado de trabalho
to voltada a um público historicamente e no empreendedorismo individualista
P
como formas de ampliar a demanda por se necessário alocar ativos para viabilizar
271
força de trabalho no mercado. As conse- os processos de trabalho. As políticas
quências dessas políticas foram eviden- distributivas de renda são insuficientes,
tes no sentido do aumento da pobreza e caso não sejam acompanhadas por polí-
desigualdade. ticas que incidam sobre a propriedade
A economia solidária foi criada como dos meios de produção, ou sobre a distri-
alternativa tanto às políticas de emprego buição patrimonial. A alocação de terras
(típicas do modelo keynesiano), quanto às e de meios de produção (fábricas, ofici-
políticas de trabalho e renda neoliberais. nas, etc.), assim como a infra-estrutura
Enquanto política de trabalho, a economia requerida para distribuição e comércio
solidária volta-se à ampliação dos postos dos produtos, além da aquisição governa-
de trabalho organizados de forma coletiva mental da produção, são parte integrante
e autogestionária. Assim definida, como dessa política. Outrossim, é mister consi-
política ativa de trabalho e renda, a econo- derar as exigências de democratização do
mia solidária enfrenta um duplo desafio. acesso ao crédito, a adoção de políticas
Ela deve apoiar e fomentar essas formas de educação e formações social e profis-
organizativas, para que se viabilizem e se sional e os desenvolvimentos científico
fortaleçam no interior de uma economia e tecnológico adequados, entre outros.
capitalista cada vez mais circunscrita e Do ponto de vista setorial, a economia
centralizada. Ao mesmo tempo, o fortale- solidária pode se configurar como uma
cimento das organizações não pode ocor- política complementar ou estruturan-
rer em detrimento das condições de vida e te. Exemplos dessa realidade são cons-
dignidade dos participantes a ela associa- tatados nas políticas de distribuição de
dos. Essa dupla atuação implica a busca de renda, de segurança alimentar, de sanea-
regulações para se garantir que os direitos mento básico, de agricultura familiar, de
dos trabalhadores sejam assegurados tam- reforma agrária, de saúde e habitacional,
bém aos que “vivem do mundo do trabalho entre outras. Nesse sentido, pode-se afir-
coletivo e autogestionário”. Para tanto, se mar que a economia solidária não é uma
faz necessário reconfigurar as políticas de política setorial, ou seja, que ela não cor-
trabalho para garantir que os trabalhado- responde a apenas um setor da sociedade
res que participam dessas novas formas de ou da economia. A economia solidária é
organização do trabalho sejam socialmen- uma política de desenvolvimento social e
te protegidos. econômico fundamentada na organização
Como política ativa de trabalho, a coletiva, associativa e autogestionária de
economia solidária, exige a incorporação pessoas. Dessa forma, ela incorporaria “a
de estratégias mais amplas de atuação ação do governo” em muitas questões e
governamental ou estatal. Parte da função setores que fazem parte da agenda públi-
desempenhada pelo capital na organiza- ca. Essa nova configuração estratégica
ção do trabalho passa a ser exercida pelo propiciaria, aos beneficiários das políti-
Estado. Considerando que a economia cas de transferência de renda, o ingresso
solidária envolve pessoas destituídas dos no mundo do trabalho, como alternativa
meios de produção de sua existência, faz- de organização econômica a ex-detentos,
P
coletores de material reciclável, agriculto- liaridades do processo histórico de desen-
272
res familiares e assentados, entre outros. volvimento e recognição da economia
Ainda existem controvérsias sobre solidária como política pública.
esse aspecto da economia solidária, prin- Nesse contexto de dúvidas e contro-
cipalmente em função da possibilidade vérsias, é preciso reconhecer que a econo-
de transferência de responsabilidades mia solidária como política pública carac-
públicas para a sociedade e dos riscos de teriza-se ainda por sua dependência da
desregulamentação da atuação pública e vontade dos governos de incorporarem,
universal do Estado. A economia solidária à sua agenda, os atores que praticam essa
pode ser adotada como uma nova forma de forma de economia. Tal circunstância não
organização e de gestão da própria política impede a constatação de sua potenciali-
pública. São exemplares, nesse sentido, os dade em “fazer política vinculada estrei-
efeitos positivos da política de crédito aos tamente com a economia” (CORAGGIO,
agricultores familiares, cuja implementa- 2007) e, assim, criar novas institucionali-
ção substitui o sistema bancário tradicio- dades, valores e bases para o processo de
nal pelas cooperativas de crédito dos pró- desenvolvimento.
prios agricultores familiares. As compras
governamentais são outro exemplo, pois, BIBLIOGRAFIA
ao adquirir insumos e alimentos de asso- ANTUNES, R. (1999), Os sentidos do trabalho: ensaio
ciações ou cooperativas de produtores, o sobre a afirmação e negação do trabalho, São Paulo:
Estado está exercendo a política de outra Boitempo.
forma. Nesse caso, o que há de novo não BARBOSA, R. N. C. (2007), Economia solidária como polí-
é a mitigação da responsabilidade esta- tica pública: tendência de geração de renda e ressigni-
tal, mas um novo arranjo na articulação ficação do trabalho, São Paulo: Cortez.
entre o Estado e a sociedade, mediada por BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego (2006),
organizações coletivas e autogestionárias CONFERÊNCIA NACIONAL DE ECONOMIA SOLIDÁRIA, I,
e não apenas por empresas privadas ou economia solidária como estratégia e política de desenvolvi-
mento: documento final, Brasília.
diretamente pela burocracia estatal.
Em um plano mais operacional, todas CASTEL, R. (1998), As metamorfoses da questão social:
uma crônica do salário, Petrópolis: Vozes.
essas questões tornam complexa a discus-
são sobre a própria institucionalidade da CORAGGIO, J. L. (2007), Economia social, acción pública y
política: hay vida después del neoliberalismo, Buenos
economia solidária como política pública.
Aires: Fund. Centro Integral Comunicación, Cultura
Outras indagações referem-se ao lugar y Sociedad.
institucional mais adequado, ao conjunto
FRANÇA FILHO, G. C.; LAVILLE, J.-L.; MEDEIROS, A.;
de programas, projetos e ações que carac-
MAGNEN, J.-Ph. (Org.) (2006), Ação pública e economia
terizam a política de economia solidária solidária: uma perspectiva internacional, Salvador:
e a quais os mecanismos mais adequados Edufba; Porto Alegre: Ed. da UFRGS.
de participação e controle social. O que a SOUZA, C. (2006), Políticas públicas. Uma revisão da
experiência tem demonstrado é que esses literatura, Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, p.
arranjos configuram-se a partir de pecu- 20-45, jul./dez.
P
PREVIDÊNCIA SOCIAL grêmios, irmandades e confrarias e a limi-
Claudia Danani 273
tação dos alcances da proteção familiar,
da ajuda paroquial ou do paternalismo
1. O termo previdência social designa do senhor. Sobre a base dessa dinâmica
simultaneamente as garantias ou incerte- histórica geral, os antecedentes mais pre-
zas que conformam as condições da vida cisos da previdência social (como proces-
social e pessoal nas sociedades modernas so histórico e como expressão) tendem a
(capitalistas), cuja origem reconhecida localizar-se entre o final do século XIX e o
está nas formas de organização e funcio- começo do século XX, remontando-se, no
namento destas e no conjunto de inter- primeiro caso, à criação do seguro social
venções e instituições, principalmente na Alemanha de Bismarck e, no segundo,
estatais, desenhadas para enfrentá-las. As à adoção do termo por parte de organiza-
condições de vida incluídas no campo e a ções internacionais, especialmente ao ter-
problemática da previdência social carac- mo da Primeira Guerra Mundial.
terizam-se por seus conteúdos sociotraba- O asseguramento foi consagrado como
lhista e econômico e por sua vinculação seguro nacional pela primeira vez na Ale-
direta ao âmbito das necessidades sociais. manha, em 1883, sob a denominação de
Por esse motivo, a previdência social seguro social. A história atribui sua criação
implica aspectos como trabalho, igualda- ao Primeiro Ministro Otto Von Bismarck,
de e desigualdade sociais e a solidarieda- nos momentos iniciais da fundação do
de, campos como o das políticas e insti- Estado alemão. Desde então, sua caracte-
tuições estatais (principalmente a política rística tem sido constituir uma forma cole-
trabalhista e a política social) e os direitos tiva e obrigatória de poupança para a qual
sociais, bem como atores sociopolíticos, a confluem os trabalhadores, empregadores
exemplo do sindicalismo. e, eventualmente, o Estado, para prover
proteção aos primeiros contra os riscos
2. Uma vez que a industrialização capita- decorrentes da vida laborativa. Tido como
lista envolveu simultaneamente a mobili- “técnica”, o asseguramento envolveu duas
zação da força de trabalho enquanto mão- tarefas simultâneas. Em primeiro lugar,
de-obra livre e a destruição das formas substituiu o consórcio obreiro, ampla-
tradicionais de trabalho e subsistência, a mente difundido até então, mas que esta-
incerteza com respeito à reprodução da va debilitado em função de desigualdades
vida é um traço característico das socie- existentes entre grupos ocupacionais ou
dades modernas. Entre os séculos XVI de idade, que não haviam podido poupar
e XIX, a construção das sociedades de ou prover sua própria proteção, e em vir-
mercado e a consolidação dos mercados tude de defeitos de cálculo, entre outros
de trabalho arrasaram camadas institu- fatores. No lugar do consórcio obreiro, o
cionais total ou parcialmente, paulatina asseguramento instalou um sistema que
ou subitamente, conforme o caso. Nesses introduziu como novidades a permanên-
processos, inscrevem-se a desorganização cia, a cobertura nacional e a obrigato-
e eliminação das formas de trabalho agrí- riedade (DE SWAAN, 1992). Em segundo
cola, a caducidade da regulamentação dos lugar, sob os pontos de vista político e
P
ideológico, substituiu a idéia de “solida- mendações nº 67 e nº 69 da Organiza-
274
riedade de classe”, própria das organiza- ção Internacional do Trabalho – OIT (as
ções obreiras, pela noção de “solidarie- recomendações são acordos que, depois
dade entre classes” (pela contribuição de aprovados, se transformam em refe-
obrigatória dos empregadores). Devido rência para os países membros, embora
a esses conteúdos político-ideológicos, a não tenham a obrigatoriedade dos convê-
iniciativa foi parte das tentativas de des- nios). Essas recomendações estipularam o
politização da questão social e das con- reconhecimento do direito à previdência
dições de vida, transformando os riscos social e ao atendimento médico, respec-
da vida operária em questão de contrato tivamente, tornando-se referência indis-
entre particulares e de cálculo contábil pensável na história do desenvolvimento
(DONZELOT, 2007). Essa mudança foi espe- da previdência social mundial.
cialmente significativa em um país como Finalmente, o Relatório Beveridge é
a Alemanha, intensamente convulsiona- geralmente mencionado como um marco
do por uma mobilização das classes tra- no desenvolvimento da previdência social
balhadoras que ia além do reivindicativo, moderna. O documento foi elaborado por
já que estava ali o Partido Socialista mais William Beveridge, que o apresentou ao
organizado e numeroso do Ocidente. Nos governo britânico em dezembro de 1942.
cinquenta anos seguintes, a previdência O texto continha um plano de proteção
social alemã inspiraria inúmeras expe- social para toda a população, tendo sido
riências na Europa e na América Latina. implantado depois da Segunda Guerra.
Ao término da Primeira Guerra Mun- Embora, nos últimos anos, tenha ocorri-
dial, em 1919, foi criada a Organização do um debate acerca do caráter realmente
Internacional do Trabalho. Sua Carta protetor e universalista da proposta, reco-
Constitutiva reuniu algumas lições apren- nhece-se seu valor por destacar a impor-
didas pelas potências mundiais acerca do tância de mínimo nacional indiferencia-
perigo que as más condições de trabalho do, com serviços financiados por meio de
e de vida acarretavam para a paz mundial contribuições e outros benefícios (como
e para a sobrevivência dos próprios gover- a saúde) custeados pela receita em geral.
nos nacionais, considerando também Atualmente, o conceito de previdência
que, no final da guerra, havia triunfado a social é utilizado sob várias perspectivas
Revolução Bolchevique. Esse reconheci- – sociopolítica, das políticas públicas e da
mento e aprendizagem ficaram claros na Sociologia e Filosofia políticas.
declaração segundo a qual eram propósi- Sob uma perspectiva sociopolítica, o
tos da Organização a promoção de prote- oposto da previdência social – a impre-
ções contra o desemprego, as doenças, os vidência social – sublinha o fato de as
acidentes de trabalho e a velhice, além da incertezas e garantias para a reprodução
defesa da liberdade sindical e do salário. da vida distribuírem-se desigualmente na
Quando já quase terminava a Segunda sociedade, sendo as classes trabalhadoras
Guerra Mundial, foram aprovadas entre (ou não-proprietárias) as que estrutural-
outras, na Conferência Internacional do mente enfrentam mais incertezas e detêm
Trabalho, realizada na Filadélfia, as reco- menos garantias. Nessa acepção, a noção
P
de risco social adquire maior relevo e pode Sob a perspectiva da Sociologia e Filo-
275
ser entendida como toda circunstância sofia políticas, faz-se referência à relação
gerada socialmente que comprometa a entre princípios doutrinários e formas
capacidade de os indivíduos darem pros- de organização, estabelecendo-se uma
seguimento a suas vidas. Beck (1998, p. analogia com as tradições dos pensamen-
25) afirma que “As riquezas se acumulam tos político e social. Quando se utiliza
em cima, os riscos embaixo”, assinalando o conceito nessa perspectiva, alude-se a
o fato de a previdência e a imprevidên- uma corrente de pensamento que propõe
cia social integrarem as lutas há séculos garantias de meios de vida de maneira uni-
travadas entre condições de igualdade e versal, como parte dos direitos da cidadania.
de exploração. Essa perspectiva coloca Neste caso, considera-se que a previdência
o assunto no âmbito das discussões con- social corresponde à tradição socialista ou
temporâneas sobre a questão social. social-democrata e que, inspirada em ide-
Sob a perspectiva das políticas públi- ais democrático-igualitários, contrapõe-se
cas, a previdência social designa o âmbi- ao seguro social e à assistência social. A contra-
to estatal cujas políticas e instituições posição ao seguro social baseia-se em suas
especializam-se em intervenções que características organizativas, entre as quais
organizam a resolução das contingências está a presença muito forte do sindicalis-
mencionadas anteriormente, mediante mo. Esses atributos podem identificar o
formas diversas de distribuição dos riscos. seguro social como uma forma de proteção
Esse atendimento diz respeito ao direito social associada a correntes conservado-
à proteção (direitos de diversos tipos e ras, pois replica o modo de organização em
abrangência) e assume distintas formas torno das corporações da Idade Média. A
de organização (seguro, assistência ou contraposição à assistência social, por sua
ambas), de financiamento (contributi- vez, relaciona-se ao fato de se considerá-
vo, por receitas em geral) e de cobertura la como uma modalidade de intervenção
(consórcio completo, caixas separadas), social própria da tradição liberal, na qual a
todas elas mais ou menos predominantes proteção social não é um direito, mas uma
ou combinadas. Nessa perspectiva, a Pre- “resposta” às necessidades comprováveis
vidência Social (geralmente grafada com (habitualmente conhecida como residual).
iniciais maiúsculas) constitui um setor das
políticas públicas e, especialmente, das polí- 3. As discussões sobre a previdência social
ticas sociais, que tenderam a se desenvol- inscrevem-se nos debates acerca do sen-
ver paralelamente ao reconhecimento do tido histórico e da “função” imputada às
caráter público (estatal) das condições de políticas estatais em seu conjunto. Algu-
vida. Esse processo significou, por sua vez, mas correntes destacam-se nesse campo
a estatização das intervenções até então de análise.
assumidas pela filantropia. Vale mencionar As correntes liberais postulam o cará-
que, nessa mesma perspectiva, geralmen- ter redistributivo e protetor das políticas
te se utiliza o termo previdência social como e instituições de previdência social, valo-
sinônimo de política social, confundindo-se rizando-o positivamente sempre que se
a parte com o todo. mantiver a moderação dessa distribuição
P
de riscos e vincularem-se os lucros ao acessibilidade e qualidade compatíveis
276
esforço pessoal. Em contraposição, as cor- com a capacidade de satisfação de neces-
rentes radicais, principalmente as de ins- sidades das sociedades modernas. Nesse
piração marxista, atribuem à previdência aspecto, a previdência social constitui um
social a função de aumentar a produtivi- problema central para a economia social
dade, “[...] elevar a moral e reforçar a disci- e solidária, como um conjunto de práticas
plina [...]” (O’CONNOR, 1981, p. 190). Sob que pleiteiam uma economia instituciona-
esse entendimento, situa-se a previdência lizada de maneira mais solidária, na qual
social no âmbito das duas principais fun- predominem os princípios de reciproci-
ções do Estado capitalista: acumulação e dade e redistribuição progressiva sobre os
legitimação. princípios de mercado.
Outro aspecto ao redor do qual se Nas últimas décadas, a urgência por
aglutinam pontos de controvérsia é o vencer satisfatoriamente esse desafio
dos processos históricos que deram lugar aumentou ainda mais, dada a profun-
à conformação desses sistemas, regis- da transformação que o neoliberalismo
trando-se posicionamentos semelhantes impôs sobre as condições de trabalho e
àqueles identificados para o caso ante- de vida e sobre os sistemas de proteção.
rior. As correntes liberais definem esses O deterioro geral da condição de trabalho
sistemas como exemplos da evolução e chegou a níveis de gravidade inusitados,
racionalidade crescentes das sociedades tanto pelas condições imediatas de traba-
modernas, no âmbito das quais as instân- lho quanto pela destruição de instituições
cias governamentais e as classes dirigentes que, mesmo contraditoriamente, haviam
vão ampliando e melhorando as condições sido minimamente protetoras durante o
de vida das classes populares. Por sua vez, ciclo do Estado social. Especificamente
a tradição radical os entende como resul- para a previdência social, essa “transfor-
tado das lutas empreendidas pelas classes mação destrutiva” das instituições expres-
trabalhadoras, que obtêm proteções espe- sou-se nas propostas do social risk manage-
cíficas sob a forma de direitos conquis- ment (gestão do risco social) apresentadas
tados. Tal como aponta Topalov (2004), pelo Banco Mundial, mediante as quais
para a política social, uma correta concei- se incentivou o mercado de seguros pri-
tuação da previdência social deve contem- vados, havendo altos custos sociais, pela
plar o caráter complexo e contraditório seleção adversa e pulverização de meca-
desses processos, identificando, em cada nismos solidários sobre a qual se assentou
caso, os elementos – sempre presen- (SOJO, 2001). Além disso, uma parte muito
tes – de iniciativas “de cima” e demandas importante desse deterioro, cujo impacto
“de baixo”. dá-se principalmente sobre os sistemas
de previdência social, refere-se aos níveis
4. No início do século XXI, a previdência de desemprego e precarização do traba-
social enfrenta um desafio-chave que per- lho, pois ambas as vias privam contingen-
meia todas as suas perspectivas: o de pro- tes numerosos de trabalhadores e suas
ver garantias e certezas aos mais amplos famílias dos sistemas institucionalizados,
setores da população, em condições de públicos e coletivos de proteção.
P
Desde o começo da década de 1990, DONZELOT, J. (2007), La invención de lo social: ensayos
sobre la declinación de las pasiones políticas, 277
intensificou-se o debate acerca de qual
Buenos Aires: Nueva Visión.
deveria ser o desenho de um sistema de pre-
vidência social capaz de oferecer proteção. MESA-LAGO, C. (1978), La seguridad social en América
Latina, Pittsburgh: University of Pittsburgh.
Esse modelo deve liberar-se da condição
salarial e, ao mesmo tempo, evitar que essa O’CONNOR, J. (1981), La crisis fiscal del Estado, Buenos
independência implique a legitimação das Aires: Península.

condições de ilegalidade, falta de registro e SOJO, A. (2001), El combate a la pobreza y la diversifi-


precarização que afetam grandes segmen- cación de riesgos: equidad y lógicas del aseguramien-
to en América Latina. Revista Socialis, Rosario, n. 5.
tos de trabalhadores em todo o mundo.
TOPALOV, C. (2004), De la cuestión social a los pro-
blemas urbanos: los reformadores y la población de
BIBLIOGRAFIA
las metrópolis a principios del siglo XX. In: DANANI,
BECK, U. (1998), La sociedad del riesgo: hacia una nueva C. (Org.), Política social y economía social: debates fun-
modernidad, Barcelona: Paidós. damentales, Los Polvorines. Universidad Nacional de
DE SWAAN, A. (1992), A cargo del Estado, Madrid: General Sarmiento; Fundación OSDE; Editorial Alta-
Ediciones Pomares-Corregidor. mira. p. 41-71.
R
REDES DE COLABORAÇÃO em particular depende do modo como ele
SOLIDÁRIA se integra na rede, dos fluxos de que parti-
Euclides André Mance cipa, de como acolhe os demais e com eles
colabora.
1. A noção de rede é peculiar à teoria da Os elementos básicos de uma rede são
complexidade, conservando traços adve- os seus atores, células ou nodos constituin-
nientes da Cibernética, da Ecologia e de tes, as conexões entre eles e os fluxos que os
outras elaborações sistêmicas em dife- perpassam. Suas propriedades básicas são
rentes áreas. Ela enfatiza relações entre autopoiese, intensividade, extensividade,
diversidades que se integram, os fluxos de diversidade, integralidade, realimentação,
elementos circulantes nessas relações, os fluxo de valor, fluxo de informação, fluxo
laços que potencializam a sinergia coleti- de matérias e agregação.
va, o movimento de autopoiese, em que A noção de rede de colaboração soli-
cada elemento concorre para a reprodu- dária resulta da reflexão sobre práticas de
ção dos outros, a potencialidade de trans- atores sociais contemporâneos, compre-
formação de cada parte pela sua relação endidas sob a ótica da teoria da complexi-
com as demais e a transformação do con- dade e da filosofia da libertação. Enquanto
junto pelos fluxos que circulam através de categoria analítica, denota a existência de
toda a rede. A consistência de um membro conexões entre os empreendimentos e ini-

Fluxos Fluxos Fluxos Formação


Centralizados Descentralizados Distribuídos Complexa
R
ciativas de economia solidária e a circula- as cadeias produtivas, para assegurar o
279
ção colaborativa entre eles de informações, bem-viver de todos. Esse objetivo é alcan-
valores e materiais. Seus fluxos podem ser çado: a) produzindo-se, nas redes, tudo
realimentados de maneira centralizada, o que elas ainda consumam do mercado
descentralizada ou distribuída, embora capitalista (produtos finais, insumos, ser-
sua formação seja sempre complexa, rea- viços, etc.), adequando produtos e ser-
limentando simultaneamente fluxos de viços aos horizontes ético e ecológico da
diversos tipos. economia solidária; b) corrigindo-se flu-
Enquanto categoria estratégica, a rede xos de valores, evitando-se realimentar a
de colaboração solidária é elemento cen- produção capitalista, a qual ocorre quan-
tral da chamada revolução das redes, na do empreendimentos solidários compram
qual ações de caráter econômico, político bens e serviços de empreendimentos
e cultural realimentam-se, subvertendo capitalistas; c) gerando-se novos postos
padrões e processos hegemônicos mante- de trabalho e distribuindo-se renda, com
nedores do capitalismo e avançando rumo a organização de novos empreendimen-
à construção de uma globalização solidá- tos econômicos para satisfazerem-se as
ria. Nesta segunda acepção, considerando- demandas das próprias redes; d) garan-
se seu aspecto econômico, trata-se de uma tindo-se as condições econômicas para
estratégia para potencializar as conexões o exercício das liberdades públicas e pri-
já existentes e conectar empreendimentos vadas eticamente exercidas. O reinvesti-
solidários de produção, comercialização, mento coletivo dos excedentes possibilita
financiamento, consumidores e outras reduzir-se progressivamente a jornada de
organizações populares (associações, sin- trabalho de todos, elevar-se o tempo livre
dicatos, ONGs, etc.), em um movimento para o bem-viver e aprimorar-se o padrão
de realimentação e crescimento conjunto, de consumo de cada pessoa.
auto-sustentável, antagônico ao capita- A gestão de uma rede colaborativa soli-
lismo. Quatro são os critérios básicos de dária resulta necessariamente ser demo-
participação nessas redes: a) inexistên- crática, pois a participação dos membros é
cia, nos empreendimentos, de qualquer inteiramente livre, respeitando-se os acor-
tipo de exploração do trabalho, opressão dos firmados entre eles. Entre suas carac-
política ou dominação cultural; b) busca terísticas estão descentralização, gestão
da preservação do equilíbrio ecológico participativa, coordenação e regionaliza-
nos ecossistemas (respeitando-se a tran- ção, que visam assegurar a autodetermi-
sição de empreendimentos que ainda não nação e autogestão de cada organização e
sejam ecologicamente sustentáveis); c) da rede como um todo.
compartilhamento de significativas parce-
las do excedente para a expansão da pró- 2. Nas últimas décadas, formaram-se em
pria rede; d) autodeterminação dos fins e todo o mundo, nos campos da econo-
autogestão dos meios, em espírito de coo- mia, política e cultura, inúmeras redes e
peração e colaboração. organizações na esfera da sociedade civil,
O objetivo básico dessas redes é re- buscando a promoção das liberdades pú-
montar, de maneira solidária e ecológica, blicas e privadas eticamente exercidas,
R
constituindo-se embrionariamente em Iniciando nos campos da cultura e da
280
um setor público não-estatal. Redes e política, essas redes estenderam-se pro-
organizações feministas e ecológicas, gressivamente ao campo da economia,
movimentos na área da educação, saú- afirmando a necessidade de haver uma
de, moradia e muitos outros em prol da democracia total, que somente se concre-
economia solidária e da ética na política tiza introduzindo-se e implementando-se
– para citar apenas alguns – vão se multi- mecanismos de autogestão das socieda-
plicando, fazendo surgir uma nova esfera des em todas as esferas que a compõem.
de contrato social. Uma nova consciência Para além do controle político da socie-
e novas práticas sobre as relações de gêne- dade sobre o Estado, busca-se o controle
ro, proteção do equilíbrio dos ecossiste- democrático da sociedade sobre a econo-
mas e economia solidária, por exemplo, mia, sobre a geração e fluxos de informa-
não emergem das esferas do mercado ou ção, sobre tudo aquilo que afete a vida de
do Estado. O consenso sobre essas novas todos e de cada um e que possa ser objeto
práticas tem sido construído no interior de decisões humanas, visando promove-
de redes sociais, em que pessoas e orga- rem-se as liberdades públicas e privadas
nizações de diversas partes do mundo eticamente exercidas.
colaboram ativamente entre si, propondo Desde as últimas décadas do século
transformações do mercado, do Estado XX, tem-se verificado o surgimento e/ou
e das diversas relações sociais e culturais propagação de numerosas práticas de
a partir de uma defesa intransigente da colaboração solidária no campo da econo-
necessidade de garantir-se universalmen- mia, entre as quais se destacam renovação
te as condições requeridas ao ético exer- da autogestão de empresas pelos trabalha-
cício das liberdades públicas e privadas. dores, cooperativismo popular, fair trade
A progressiva e complexa integra- ou comércio équo e solidário, organiza-
ção dessas diversas redes, colaborando ções solidárias de certificação e etiqueta-
solidariamente entre si, ensejou a pos- gem, agricultura ecológica, consumo crí-
sibilidade de haver uma nova revolu- tico, consumo solidário, sistemas locais
ção planetária ao longo das próximas de emprego e comércio (LETS), sistemas
décadas, no sentido histórico da palavra locais de troca (SEL), sistemas comunitá-
– um progressivo e contínuo processo de rios de intercâmbio (SEC), bancos de tem-
transformações estruturais do modo de po, sistemas de intercâmbio com moedas
produção econômico e de organização sociais impressas em papel ou operadas
social, política e cultural das sociedades. em formato digital com SmartCards ou
Essa revolução seria capaz de subverter via websites, economia de comunhão, sis-
a lógica capitalista de concentração de temas de microcrédito, bancos do povo,
riquezas e de exclusão social, bem como bancos éticos, bancos comunitários, gru-
de superar diversas formas específicas pos de compras solidárias, movimentos
de dominação, em razão de seu avanço de boicote, difusão de softwares livres, fei-
orgânico e tendencialmente hegemônico ras solidárias, portais de economia solidá-
nos campos da política, da economia e da ria e comércio eletrônico solidário, entre
cultura. outras. Significativas parcelas de organi-
R
zações que se inscrevem nessas práticas e consumir e conviver em que a solidarie-
281
que, em seu conjunto, cobrem os diversos dade está no cerne da vida, promovendo
segmentos das cadeias produtivas (consu- um desenvolvimento ecologicamente
mo, comércio, serviço, produção, finanças sustentável, socialmente justo e economi-
e desenvolvimento tecnológico) começa- camente viável. Nessa dinâmica, as redes
ram a despertar recentemente para ações de colaboração solidária: a) permitem
conjuntas em rede, enquanto outras já aglutinar diversos atores sociais em um
vêm atuando dessa forma há mais de três movimento orgânico, com forte potencial
décadas. Diversas redes nacionais e inter- transformador; b) atendem a demandas
nacionais em torno da economia solidária imediatas desses atores por emprego de
têm sido criadas neste início do século sua força de trabalho, por satisfação de
XXI, nos vários continentes. O crescimen- suas necessidades de consumo e pela afir-
to mundial dessas redes indica a amplia- mação de suas singularidades de etnia ou
ção de novos campos de possibilidade de gênero, entre outras; c) negam estrutu-
para ações solidárias estrategicamente ras capitalistas de exploração do trabalho,
articuladas, com o objetivo de promover de expropriação no consumo e de domi-
as liberdades públicas e privadas e o bem- nações política e cultural; e d) passam a
viver de todos. implementar uma nova forma pós-capi-
talista de produzir, consumir e organizar
3. Para haver crescimento dessas redes a vida coletiva, afirmando o direito à dife-
colaborativas no horizonte do desenvolvi- rença e à singularidade de cada pessoa e
mento sustentável, destaca-se a importân- promovendo solidariamente as liberdades
cia da difusão do consumo solidário, de públicas e privadas eticamente exercidas,
reinvestimentos coletivos de excedentes e visando assegurar o bem-viver de todos.
da colaboração solidária entre todos. Em Atuando sobre as condições necessá-
uma rede, as organizações de consumo, rias ao exercício das liberdades, nas esfe-
comércio, produção e serviço mantêm- ras da economia, política, educação e cul-
se em permanente conexão em fluxos de tura, essas redes de colaboração solidária
materiais (produtos, insumos, etc.), de podem estrategicamente avançar rumo à
informação e de valor, que circulam por construção de uma nova formação social
meio da rede. capaz de desconcentrar a riqueza entre
Com efeito, quando redes locais des- todas as nações e entre o conjunto das
se tipo são estrategicamente organiza- sociedades, abolindo a “exclusão” econô-
das, elas operam no sentido de atender mica. Historicamente, esta tem acom-
a demandas imediatas da população por panhado os processos de “concentra-
trabalho, melhoria no consumo, educa- ção” econômica peculiares ao capitalismo.
ção, reafirmação da dignidade humana Economicamente, as redes promovem
e do seu direito ao bem-viver, ao mesmo a difusão do consumo e labor solidários.
tempo em que combatem as estruturas Sendo uma modalidade do consumo para
de exploração e dominação responsáveis o bem-viver, o consumo solidário traduz-
pela pobreza e exclusão. Começam assim se na seleção dos bens de consumo ou
a implantar um novo modo de produzir, serviços que atendam às necessidades e
R
desejos do consumidor. Esse consumo produtivo não desaguem na acumulação
282
visa atingir o livre bem-viver pessoal, pro- privada fora das redes, mas possam nelas
mover o bem-viver dos trabalhadores que realimentar a produção e o consumo soli-
elaboram ou comercializam o produto ou dários, completando os segmentos das
serviço e proteger o equilíbrio dos ecos- cadeias produtivas sobre os quais as redes
sistemas. Por seu turno, o labor solidário ainda não tenham autonomia.
implica, além da autogestão e co-respon- Politicamente, as redes de colaboração
sabilidade social dos trabalhadores, o solidária defendem a gestão democrática
reinvestimento solidário dos excedentes do poder, buscando garantir, a todas as
do processo produtivo no financiamento pessoas, iguais condições de participar
de outros empreendimentos, amplian- e decidir, não apenas sobre as atividades
do-se as oportunidades de trabalho e a de produção e consumo praticadas nes-
diversidade de oferta de bens e serviços sas redes, mas também nas demais esfe-
solidários, expandindo-se as redes de pro- ras políticas da sociedade. Seu objetivo
dutores e consumidores e melhorando-se é combater toda forma de exploração de
as condições de vida de todos que prati- trabalhadores, expropriação de consumi-
quem a economia solidária. dores e dominação política ou cultural,
Com os excedentes gerados nos em- enfatizando o valor da cidadania ativa na
preendimentos solidários, organizam-se busca do bem comum e da cooperação
novos empreendimentos de produção, entre os povos.
comércio e serviço. Criam-se oportuni- Nos campos da informação e educa-
dades de trabalho para desempregados, ção, as redes de colaboração solidária bus-
propiciando-lhes um rendimento estável cam promover, da melhor maneira possí-
que se converte, graças ao consumo soli- vel, a circulação da informação e a geração
dário praticado por esses mesmos traba- de interpretantes. Além de ampliar os
lhadores, em aumento de consumo final conhecimentos de cada pessoa, suas habi-
de produtos da própria rede, gerando-se lidades técnicas, domínios tecnológicos
mais excedentes a serem investidos. Os ou sua competência em produzir e inter-
novos empreendimentos visam produzir pretar novos conhecimentos necessários
aquilo que ainda seja adquirido no mer- às tomadas de decisão em todas as esferas
cado capitalista pelos membros da rede, de sua vida, esses interpretantes permi-
sejam bens e serviços para consumo final, tem recuperar a sensibilidade, a auto-esti-
ou insumos, materiais de manutenção ma e outros elementos de ordens ética e
e outros itens demandados no processo estética, imprescindíveis ao bem-viver do
produtivo, adaptando-os aos horizontes indivíduo e da coletividade.
de sustentabilidades ecológica e social Eticamente, as redes de colaboração
peculiares à economia solidária. Esse solidária promovem a solidariedade, isto
expediente – acompanhado de uma crí- é, o compromisso pelo bem-viver de todos
tica aos padrões capitalistas de produção e o desejo do outro, preservando-se sua
e consumo, ecologicamente insusten- valiosa diferença, para que cada pessoa
táveis – visa corrigir os fluxos de valor, a possa usufruir e exercer, nas melhores
fim de que o consumo final e o consumo condições possíveis, as liberdades públi-
R
cas e privadas. Desejar a diferença do BIBLIOGRAFIA
283
outro significa acolher a diversidade de ESPÍNOLA SORIANO DE MELLO, R. (2001), A nova econo-
etnias, religiões, credos, esperanças, artes mia das redes solidárias. Jornal de Economistas do Esta-
e linguagens, em suma, acolher as mais do do Rio de Janeiro, Brasil, set.

variadas formas de realização singular da MANCE, E. A. (2000), A revolução das redes, Petrópolis:
Vozes.
liberdade humana, pessoal e coletiva, que
não neguem as liberdades públicas e pri- ___. (2002), Redes de colaboração solidária, Petrópolis:
Vozes.
vadas eticamente exercidas. Favorecer as
PAULI, J. (2006), O poder nas redes de economia solidária.
liberdades significa garantir, às pessoas, as
Dissertação (Mestrado em Sociologia), Instituto de
condições materiais, políticas, informati- Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Gra-
vas e educativas para uma existência ética duação em Sociologia, Universidade Federal do Rio
e solidária. Grande do Sul, Porto Alegre.
R
REDES SOCIAIS bem as estruturas de relações como meios
284 Breno Fontes que configuram oportunidades ou cons-
Sílvia Portugal trangem a acção individual; 4) os mode-
los de redes conceptualizam a estrutura
1. Uma rede social pode ser definida (social, económica, política, etc.) como
como “um conjunto de unidades sociais padrões constantes de relações entre
e de relações, directas ou indirectas, entre actores (WASSERMAN e FAUST, 1999, p. 4).
essas unidades sociais, através de cadeias Como afirmam Degenne e Forsé
de dimensão variável” (MERCKLÉ, 2004, p. (1994), a análise das redes permite passar
4). As unidades sociais podem ser indiví- das “categorias” às “relações”. A maior
duos ou grupos de indivíduos, informais parte dos sociólogos admite que o com-
ou formais, tais como associações, empre- portamento e as opiniões dos indivíduos
sas, países. As relações entre os elementos dependem das estruturas em que estes
da rede podem ser transacções monetá- se inserem. Contudo, a realidade não é
rias, troca de bens e serviços, transmissão concebida em termos de relações, sendo
de informações, podem envolver interac- os dados empíricos trabalhados a partir
ção face a face ou não, podem ser perma- de categorias construídas a priori através
nentes ou episódicas. da agregação de indivíduos com atributos
A abordagem a partir das redes sociais semelhantes – os homens, os jovens, os
posiciona os actores em contextos sociais, operários, os licenciados, os países desen-
permitindo perceber que as trajectórias volvidos, etc. Nas abordagens sociológicas
dos indivíduos não são determinadas inte- que incorporam a noção de rede, os indi-
gralmente pela sua posição na estrutura víduos pertencem não somente a catego-
social, nem tão-somente pelos resultados rias, mas também a redes relacionais, e as
das suas decisões. A inserção numa estru- categorias não são mais do que o reflexo
tura de redes, embora de certa forma con- das relações estruturais que os ligam entre
dicionada pela posição estrutural, garante si (DEGENNE e FORSÉ, 1994, p. 7). Elas não
um certo grau de liberdade na escolha de podem ser dadas a priori e definitivamen-
estratégias de acção, possibilitando deslo- te, mas antes emergir da análise das rela-
camentos na estrutura social. Ao mesmo ções entre os elementos que compõem a
tempo, o desenho da rede social ofere- estrutura. O ponto de partida da investi-
ce diferentes possibilidades no acesso a gação não deve ser, portanto, um conjun-
recursos. to de unidades independentes, mas, pelo
Wasserman e Faust identificam qua- contrário, o conjunto de relações que as
tro princípios fundamentais na teoria das interliga. Não se pode querer compreen-
redes sociais: 1) os actores e as suas acções der a estrutura e ignorar as relações que
são vistos como interdependentes e não se estabelecem entre os seus elementos.
como unidades independentes e autóno- É esta armadilha que a análise das redes
mas; 2) os laços relacionais entre actores pretende evitar, procurando encontrar
são canais onde circulam fluxos de recur- regularidades, grupos, categorizações, de
sos (materiais e imateriais); 3) os modelos modo indutivo, através da análise do con-
de redes centrados nos indivíduos conce- junto de relações.
R
2. O termo “rede” é hoje abundantemente pertença territorial ou industrial. Isola,
285
usado na linguagem corrente, académica então, um terceiro campo, formado pelos
ou política e designa uma grande varieda- laços de parentesco, amizade e conheci-
de de objectos e fenómenos. No entanto, mento, que concebe como uma rede: rede
está longe de ser um neologismo: a palavra de relações, flexível e discreta, em que os
é antiga e a história dos seus usos descre- diferentes membros se podem ou não
ve um longo percurso desde o século XVII conhecer uns aos outros e interagir entre
(MERCKLÉ, 2004; RUIVO, 2000). si (BARNES, 1977). O conceito revelou-se
Na literatura das ciências sociais, importante não só para a descrição da
encontramos registos de importantes estrutura da comunidade, como, também,
estudos sobre redes a partir de Simmel. para a compreensão de processos sociais
A partir da ideia de uma sociologia for- fundamentais como o acesso ao empre-
mal, que tem como objectivo estudar os go ou a cargos políticos. Pouco tempo
fenómenos sociais a partir das interacções após o trabalho de Barnes, os estudos de
entre os indivíduos, Simmel apresenta Elizabeth Bott, publicados pela primeira
uma ampla série de estudos sobre os tem- vez em 1957, chamaram definitivamente
pos modernos, onde investiga as mudan- a atenção da comunidade científica para
ças dos processos de sociabilidades decor- o conceito de rede social. A pesquisa de
rentes das transformações verificadas com Bott sobre a família e as redes de relações
os processos de industrialização e urba- sociais teve especial importância por ser
nização. Estudos como a “Filosofia do a primeira a reconhecer a relação entre o
Dinheiro”, “A Metrópole e a Vida Mental” carácter interno duma relação e a estrutu-
ou “Grupos Sociais” avançam importan- ra duma rede: Bott defendia a ideia de que
tes pistas para a construção da teoria das a dinâmica da estrutura familiar depende
redes sociais. Nesta agenda de pesquisa, não apenas do comportamento dos seus
as temáticas das sociabilidades, de um membros, mas também das relações que
lado, e dos processos de mobilização de estes estabelecem com outros, ou seja, de
recursos (políticos e organizacionais), por que a estrutura da rede de parentes, ami-
outro, são as dominantes. gos, vizinhos e colegas tem uma influên-
Inegável é, também, o contributo da cia directa na definição das relações fami-
Antropologia Social britânica do Pós- liares (BOTT, 1976).
-Guerra. De entre os diversos estudos, Apesar de ter surgido cedo nas ciên-
destacamos dois dos pioneiros: o de John cias sociais, o conceito de rede social foi
A. Barnes e o de Elisabeth Bott. Ao estudar inicialmente usado sobretudo em sentido
a importância das interacções individuais metafórico. A agenda de pesquisa sobre
na definição da estrutura social comuni- redes sociais toma um impulso bastante
tária, Barnes isola dois campos (territorial importante com a incorporação de mode-
e industrial) com base nos quais se esta- los matemáticos e da informática e con-
belecem as relações entre os indivíduos. sequente capacidade de processamento
No entanto, o autor chega à conclusão de dados em larga escala. A utilização de
de que a maioria das acções individuais algoritmos, que permitem processar gran-
não pode ser compreendida com base na des volumes de informação, possibilita
R
construir elegantes modelos matemáticos balho, a mobilização política, a formação
286
(ancorados na teoria dos grafos e na álge- de redes de apoio social, e os processos
bra matricial), formalizando conceitos organizacionais.
já anunciados antes por Simmel, Barnes, Os estudos sobre sociabilidades re-
Bott e outros autores. tomam a discussão sobre o destino da
Durante a segunda metade do século comunidade nas sociedades modernas,
XX, o conceito de rede social tornou-se remetendo para a discussão iniciada por
central na teoria sociológica e deu azo a Tönnies, com a sua tipologia Gemeins-
inúmeras discussões sobre a existência de chaft/Gesellschaft (comunidade/socieda-
um novo paradigma nas ciências sociais. de). Esta dicotomia é problematizada em
No decorrer das últimas décadas, a socio- Max Weber, em Economia e Sociedade, onde
logia das redes sociais constituiu-se como especifica estes conceitos a partir da sua
um domínio específico do conhecimento, tipologia de acções sociais. Estruturações
institucionalizou-se progressivamente e de sociabilidade comunitárias remetendo
ganhou uma visibilidade crescente. A cria- a práticas onde os sentimentos afectivos
ção de associações de pesquisadores, a e tradicionais seriam os predominantes,
edição de revistas especializadas, a realiza- e sociabilidades do tipo societárias carac-
ção de seminários e congressos, o aumen- terizadas pela formação de interesses a
to crescente do número de publicações partir de acções sociais racionais. Acções
sobre esta matéria revelam uma amplia- racionais substantivas ou instrumentais
ção significativa do interesse académico seriam, portanto, o conteúdo predominan-
neste domínio. te das práticas de sociabilidade societárias.
Esta dicotomia fez escola e foi pro-
3. Actualmente a agenda de pesquisa blematizada por inúmeros estudos. No
sobre redes sociais constrói-se a partir entanto, de Simmel à Escola de Chicago
de dois grandes campos de interesse: (a) prevalece a ideia de que a modernidade
a organização das sociabilidades; (b) os seria dominada por sociabilidades secun-
processos de mobilização de recursos. dárias, instrumentalizadas por interesses,
No primeiro campo, destacamos os e substitutas das sociabilidades primárias,
chamados estudos de comunidade, que típicas das sociedades tradicionais.
procuram responder a uma questão já Os trabalhos realizados no âmbito da
relativamente antiga: o impacto das actu- teoria das redes vêm trazer novos contri-
ais transformações socioeconómicas nos butos para esta discussão, sublinhando a
padrões de sociabilidade. No segundo persistência nas sociedades modernas da
campo, partindo da constatação de que importância dos laços primários na estru-
as redes são importantes instrumentos turação das sociabilidades. Neste domí-
de mobilização de recursos (ou de for- nio, os estudos do sociólogo Barry Well-
mação de capital social), diversos estudos man são referência (1985; WELLMAN et al.,
analisam a relação entre as características 1991). Wellman resgata a discussão sobre
estruturais das redes e o acesso a recur- “a perda da comunidade” nas sociedades
sos. Destacamos aqueles que se debruçam contemporâneas para concluir que os
sobre a organização do mercado de tra- habitantes das cidades continuam a acti-
R
var um vasto conjunto de laços sociais no na área da saúde, entre outros. A ideia
287
quotidiano. Estes não têm, contudo, uma central é que as estruturas de redes têm
base geográfica de proximidade, extrava- uma influência decisiva na alocação de
sando largamente os limites da vizinhança recursos. Ou seja, desenhos particulares
e, mesmo, da interacção face a face. de redes seriam mais ou menos funcionais
A utilização da teoria das redes nos para conseguir empregos, ter apoios, con-
estudos neste domínio permite identifi- seguir serviços ou favores.
car campos de sociabilidade ancorados Relativamente ao mercado de tra-
quer em laços fortes, quer em laços fracos balho, o estudo clássico de Granovetter
– para seguir a definição seminal de Gra- (1974) mostra como o uso de diferentes
novetter (1973) – questionando as análi- tipos de laços sociais responde à pergunta
ses tradicionais sobre os laços comunitá- de como as pessoas encontram empregos.
rios. Os questionamentos desenvolvidos O autor mostrou como, quando alguém
por Wellman podem, hoje, ser recoloca- procura um emprego, os laços fracos são
dos relativamente aos ambientes virtuais. mais eficazes do que os laços fortes por-
As interacções, mesmo as ancoradas em que permitem sair do meio social em que
laços fortes, podem ter lugar sem que haja o indivíduo se insere e aceder a informa-
uma âncora territorial e comunicação face ções e contactos que se situam noutros
a face. A base territorial é substituída pelo meios.
“virtual settlement”, o ciber-lugar, espaço No domínio do “apoio social” existe
virtual onde as sociabilidades se desen- uma vasta literatura que revela como as
rolam. Temos ambientes onde se desen- redes sociais são elementos fundamentais
volvem possibilidades de comunicação, no suporte dos indivíduos, ao nível mate-
sejam elas ancoradas em sociabilidades rial e afectivo, tendo impactos muito cla-
primárias (troca de e-mails entre ami- ros na sua saúde física e mental. Os estu-
gos, parentes e amantes), sejam aquelas dos neste domínio permitem identificar
outras onde se reúnem pessoas que têm formas de circulação de recursos suporta-
interesses (profissionais, económicos) em das por práticas de sociabilidade fora do
comum. Nuns casos predominam campos mercado e do Estado, revelando como a
de sociabilidade ancorados em laços for- acção das redes se relaciona com o fenó-
tes, nos outros, prevalecem os laços fra- meno do dom.
cos. Analogamente ao que acontece com Finalmente, no âmbito dos estudos
as interacções face a face, são diversos os organizacionais há uma série de pesquisas
recursos que circulam. que mostram como as novas estratégias de
O segundo campo que domina a agen- gestão se ancoram no conceito de rede.
da de pesquisa sobre redes sociais diz res- Um modelo flexível, policêntrico e des-
peito à acção das redes enquanto instru- territorializado, tornou-se possível com
mentos de mobilização de recursos. Neste a série de inovações tecnológicas ocorri-
domínio existe uma gama importante de das a partir da década de 1970: revolução
estudos, com temáticas bastante dife- informática e das comunicações, baixa dos
renciadas: mercados de trabalho, apoio custos dos serviços telefónicos e de trans-
social, estudos organizacionais, estudos porte, generalização do uso da internet.
R
Estes processos permitiram a “sociedade GRANOVETTER, M. S. (1973), The strength of weak ties.
288 American Journal of Sociology, 78, 1360-1380 (republi-
em rede” (CASTELLS, 1996), sustentada em
cado in LEINHARDT, S. [Org.] [1977], Social Networks.
estruturas organizacionais que se anco-
A developing paradigm, New York: Academic Press,
ram em circuitos inovadores de produção 347-367).
e de consumo, que observam, ao mesmo
GRANOVETTER, M. S. (1974), Getting a job. A study of
tempo, condicionantes locais e globais. contacts and careers, Chicago: The University of
Estas formas organizacionais reticulares Chicago Press.
permitem a adaptação à pluralidade de
MERCKLÉ, P. (2004), Sociologie des réseaux sociaux, Paris:
um mundo cada vez mais glocalizado e são La Découverte.
características de uma nova fase de acu-
RUIVO, F. (2000), O Estado labiríntico. O poder relacio-
mulação do sistema capitalista. nal entre poderes local e central em Portugal, Porto:
Afrontamento.
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DEGENNE, A.; FORSÉ, M. (1994), Les réseaux sociaux, approach, Cambridge: Cambridge University Press,
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R
RESPONSABILIDADE SOCIAL tado para dimensões extra-econômicas
EMPRESARIAL 289
e adotariam espontaneamente valores
Anne Salmon e técnicas a fim de contribuírem para o
Antonio David Cattani bem comum. O segundo ponto de vista
salienta a importância de manifestações
1. A noção de responsabilidade social diversas de associações de consumidores,
corresponde a estratégias desenvolvi- sindicatos e mesmo do poder público,
das, sobretudo, por grandes corporações. que não mais aceitam ser penalizados em
Estas definem, de maneira unilateral, nor- função de externalidades causadas pelas
mas e condutas que, pretensamente, con- empresas, pressionando-as a assumirem
sideram os impactos sociais, econômicos os custos de prevenção dos riscos ou a
e ecológicos de suas atividades. O discur- reduzirem os danos econômicos, sociais e
so dominante é o de que, com isso, essas ambientais. Analisando-se a evolução das
corporações teriam a intenção de assumir experiências de RSE (CAPRON e QUAIREL-
os riscos sociais e ambientais gerados por LANOIZELÉE, 2004; SALMON, 2002), é possí-
suas atividades produtivas e a capacidade vel identificarem-se as razões da mudança
de preveni-los. adotada pelas empresas. O agravamento
O comprometimento voluntário das da crise social motivada pela precarização
empresas com valores e práticas que visa- do trabalho e pelo aumento das desigual-
riam ao “bem comum”, na maioria absolu- dades, os desastres ambientais originados
ta dos casos, não passa de uma intenção pela exploração desmedida da natureza e
retórica. A vontade de “melhorar a socie- escândalos econômicos envolvendo cor-
dade” esbarra na lógica inexorável do rupção e ineficiência empresarial, com-
agente econômico, pautado pela ferrenha prometeram a legitimidade do capitalis-
defesa dos direitos de propriedade e pela mo neoliberal, até então praticamente
lógica da acumulação e do produtivismo inconteste, e provocaram reações de inú-
exacerbados. Dessas concepções, resul- meros segmentos sociais e de instituições
tam a exploração do trabalho humano e internacionais (CATTANI e SALMON, 2006).
a apropriação privada da riqueza social. Se, em um primeiro momento, as empre-
sas apenas reagem às demandas sociais, na
2. O desenvolvimento recente da res- sequência, elas apresentam essas respos-
ponsabilidade social empresarial (RSE) tas como atos de boa vontade originados
pode ser interpretado sob dois ângulos na sua própria iniciativa.
divergentes, situando-a ou como uma A fim de certificar essa iniciativa, as
evolução espontânea do gerenciamen- empresas podem referir-se aos princípios
to empresarial, ou como uma resposta, à diretores de códigos externos ou a outros
demanda social, oferecida pelas corpora- compromissos definidos diretamente,
ções. O primeiro confere primazia absolu- seja no âmbito de sua política de desen-
ta às iniciativas empresariais, logo, a RSE volvimento sustentável, seja na esfera de
resultaria do aperfeiçoamento constante sua carta ética ou de quaisquer outros
da gestão das empresas. Subitamente, documentos (como as diretrizes de gestão
as grandes corporações teriam desper- ou de relacionamento com os clientes e o
R
balanço social). De fato, as empresas tecem bilidade do trabalho não oferece qualquer
290
uma rede de compromissos, mesclando garantia aos trabalhadores.
assim suas próprias iniciativas àquelas No segundo grupo, a RSE propiciaria
fundamentadas nos direitos humanos e um reequilíbrio entre o econômico e o
nas jurisdições nacionais ou internacio- social com vistas a alcançar-se uma har-
nais. Estas são selecionadas com vistas à monização mínima das proteções sociais
sua aplicação nos países em desenvolvi- encetadas de modo voluntário e direto
mento onde estejam implantadas. pelas empresas internacionais enquanto
Deve-se lembrar que esses compro- atores econômicos privados e não apenas
missos não são juridicamente coercivos enquanto contribuintes. Nada mais equi-
e que as sanções supõem uma mobiliza- vocado que essa interpretação. Tendo-se
ção constante das partes envolvidas para como campo de análise países da América
contestarem as práticas, em um confron- Latina, é possível identificar a RSP como
to direto com as empresas denunciadas. uma das mais demagógicas tentativas de se
Frequentemente assumido pela mídia, na ocultar a exploração da força de trabalho,
qual essa contestação apóia-se, o boicote especialmente nos casos de subcontrata-
a um produto representa uma tentativa ção e terceirização (TORRES, 2000, 2005).
de sanção do mercado. Reativas à crítica, O discurso empregado por seus defensores
preocupadas em preservar sua imagem, é convincente: a ética, o desenvolvimento
que se tornou um “ativo essencial no sen- sustentável e a responsabilidade social
tido capitalista mais estrito do termo” estariam sendo fortalecidos mutuamente
(DUVAL, 2003, p. 153), as direções visam nas políticas de suporte a uma orientação
à restauração de uma legitimidade a qual global, pois as empresas não mais estariam
elas podem estabelecer a partir de um se dedicando exclusivamente a produzir
novo acordo social, cujo sentido ainda riquezas, deixando a questão da harmonia
precisa ser elucidado. social ao cuidado das instituições públi-
Por vezes, significados diferentes cas. Elas estariam investindo em projetos
são atribuídos à responsabilidade social que as instaurariam como agentes incon-
empresarial, conforme os níveis de desen- tornáveis da regulação do econômico e
volvimento econômico dos continentes. do social, juntamente com os poderes
Ela pode ser concebida, por exemplo, ou públicos. “O bem para a sociedade” e “o
como um exercício tecnocrático, ou como interesse geral” estabelecidos como novas
uma expressão democrática da responsa- finalidades das empresas justificariam, aos
bilidade. Nos países do Norte, a respon- olhos destas, uma ampliação de suas prer-
sabilidade social empresarial é entendida rogativas. Elas teriam agora a legitimida-
como um retrocesso comparativamente de para assumir uma parte das atribuições
aos sistemas de proteção social, larga- tradicionais do Estado por meio de práti-
mente mais ambiciosos e coercivos do cas voluntárias e diretas de redistribuição,
que os códigos de boa conduta. Em com- em outras palavras, flexíveis, na ausência
pensação, em países do Terceiro Mundo, de sanções legais.
ela pode ser considerada um progresso, Assumindo atribuições de Estado, a
sobretudo naqueles Estados onde a flexi- RSE ultrapassa a mera questão do ressur-
R
gimento de uma figura modernizada do países do Terceiro Mundo. Além disso, o
291
paternalismo com vocação “filantrópica envolvimento dos trabalhadores limita-se
globalizada”. A RSE coloca em relevo o a áreas restritas, e as reformas cogitadas
problema de uma regulação da economia buscam favorecer a consideração dos inte-
globalizada assumida por empresas cada resses de diversas partes implicadas sem
vez mais poderosas. Sob a ótica destas e que sua representação esteja verdadeira-
segundo seus interesses, elas pretendem mente organizada. Em ambos os casos, o
ter condições de regular a economia tão poder do empreendedor, de determinar as
eficazmente quanto os poderes públicos, finalidades das ações sociais, resta intacto.
na medida em que conciliariam, de modo Na ausência de um enquadramento
pragmático, as exigências de seu próprio jurídico que fixe e estabilize os poderes
crescimento com aquelas do progresso entre as diferentes partes envolvidas, as
social. Nesse caso, a RSE assumiria neces- decisões relativas aos aspectos sociais e
sariamente formas muito mais sistemáti- ambientais continuam sendo o resulta-
cas do que a da caridade tradicional, ligada do de um processo cujos interlocutores,
à figura pessoal do “patrão benevolente”. mesmo quando haja negociação, não se
encontram em pé de igualdade. Pode-se
3. O exame crítico da questão não deve então duvidar da legitimidade democrá-
deter-se na qualificação moral das direções tica das propostas das empresas, que, no
e na autenticidade de seus compromissos, entanto, concernem à vida dos cidadãos.
nem mesmo na avaliação do desempenho A responsabilidade social empresarial
societário das empresas. A qualificação pode subtrair, aos cidadãos, uma parcela
técnica da RSE, sobre a qual insistem, por importante de sua própria responsabilida-
sua vez, as empresas de auditoria especia- de em matéria de solidariedade social e de
lizadas, pode ocultar a necessidade de se escolhas ambientais. De um lado, os Esta-
efetuar uma análise da significação polí- dos ficam tentados a reduzir os encargos
tica das técnicas de RSE sugeridas pelas fiscais, para atrair os investidores. De outro,
empresas. De fato, em nome da demanda favorecem o envolvimento das empresas
social emergente, a qual as empresas ten- enquanto agentes econômicos privados,
dem a reduzir a uma exigência de eficácia, instando-as a assumir parte mais ou menos
elas podem justificar uma resposta estrita- importante da redistribuição, de modo
mente tecnocrática a problemas que tan- voluntário e direto. Isso significa que a fra-
gem a decisões democráticas. ternidade, como preconiza Bastiat (1848),
Decidida unilateralmente pelas dire- em sua rigorosa crítica à “fraternidade
ções, a RSE começa, ainda que timida- legal”, procederá cada vez menos da livre
mente, a ser objeto de negociações com e espontânea deliberação dos cidadãos.
os sindicatos. As direções da companhia Além dos problemas de estabilidade,
estatal francesa de energia elétrica EDF de dependência e até de corrupção, caso a
e da multinacional Rhodia, por exemplo, responsabilidade permaneça como poder
assinaram recentemente acordos com os discricionário e unilateralmente determi-
parceiros sociais, no entanto, as cláusulas nado, o risco mais grave permanece sendo
não arrolam prerrogativas extensíveis a o despojamento dos cidadãos de seu poder
R
de inflectir as formas de redistribuição e de BIBLIOGRAFIA
292
pesar no sentido do bem comum. Quan- BASTIAT, F. (1848), Justice et fraternité, Journal des
do uma potência qualquer se encarrega Économistes, 15 Junho.
de satisfazer o interesse geral sem haver CAPRON, M.; QUAIREL-LANOIZELÉE, F. (2004), Mythes et
controle democrático, então o espec- réalités de l’entreprise responsable: acteurs, enjeux, straté-
gies, Paris: La Découverte.
tro do despotismo esclarecido ressurge.
A análise da RSE precisa ser feita sepa- CATTANI A. D.; SALMON, A. (2006), Responsabilidade
rando-se as realizações pontuais, even- social das empresas, In: CATTANI A. D.; HOLZMANN, L.
(Org.), Dicionário de trabalho e tecnologia, Porto Alegre:
tualmente positivas, do seu significado
Editora da UFRGS, p. 244-248.
geral. No conjunto, ela se constitui como
DUVAL, G. (2003), Le libéralisme n’a pas d’avenir: big busi-
um empreendimento de sedução com
ness, marchés et démocratie, Paris: La Découverte.
vistas à renovação da legitimidade do sis-
SALMON, A. (2002), Ethique et ordre économique: une
tema, recuperando e neutralizando as crí-
entreprise de séduction, Paris: CNRS Editions.
ticas sociais e motivando o engajamento
e a simpatia de segmentos sociais impor- TORRES, C. (2000), Entre o bem-estar social e o lucro. Dis-
sertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação
tantes que estão querendo contribuir para em Antropologia e Ciência Política, Universidade
a melhoria da sociedade. As dimensões Federal Fluminense, Rio de Janeiro.
positivas da RSE precisam ser questiona-
___. (2005), Responsabilidade social empresarial:
das levando-se em conta seu caráter ins- o espírito da mudança e a conservação da hegemo-
trumental de subordinação da ética e da nia, In: ADDOR, F.; LIANZA, S. (Org.), Tecnologia e desen-
generosidade dos indivíduos à ordem e volvimento social e solidário, Porto Alegre: Editora da
à racionalidade econômica dominantes. UFRGS.
S
SABERES DO TRABALHO ASSOCIADO pectos materiais, intelectuais e subjetivos
Maria Clara Fischer presentes na atividade do trabalho e sendo
Lia Tiriba entendido como resultante dos processos
prático-teóricos de transformação e com-
1. A expressão saberes do trabalho associado é preensão da realidade humano-social. O
utilizada para designar os saberes produ- conceito relaciona-se às idéias de práxis,
zidos pelos trabalhadores nos processos saber popular, saberes da experiência,
de trabalho que se caracterizam pela apro- conhecimento tácito, trabalho como prin-
priação coletiva dos meios de produção, cípio educativo, produção de saberes em
pela distribuição igualitária dos frutos do situação de trabalho, produção e legitima-
trabalho e pela gestão democrática das ção de saberes do/no trabalho.
decisões quanto à utilização dos exceden-
tes (sobras) e aos rumos da produção. O 2. O conceito de saberes do trabalho associa-
termo diz respeito ao conjunto de habi- do remete à análise das relações históricas
lidades, informações e conhecimentos entre trabalho e educação e, especifica-
originados do trabalho vivo, tecidos na mente, entre trabalho e produção de sabe-
própria atividade de trabalho e engendra- res. Em seu sentido ontológico, o trabalho
dos e acumulados ao longo da experiência é entendido como mediação dos seres
histórica dos trabalhadores e trabalha- humanos com a natureza, sendo elemento
doras que se associam de forma autoges- central da formação humana. Por meio do
tionária na produção de bens e serviços, trabalho, objetivam as coisas da natureza
contrapondo-se à lógica do sistema do e conferem-lhe humanidade, humanizan-
capital. Abrange os saberes formaliza- do-se com as criações e representações
dos nos fóruns coletivos que articulam as que produzem sobre o mundo; trabalham
experiências de trabalho associado, bem de acordo com determinada cultura e, ao
como no âmbito da pesquisa e produção trabalhar, produzem cultura. Quanto à
científica do conhecimento acerca das atividade do trabalho como fonte de sabe-
dimensões técnicas, políticas, econômi- res e sua formalização em conhecimentos
co-filosóficas e culturais do fazer/pensar/ científicos/escolares, Saviani (2007) lem-
refazer o cotidiano do trabalho associado bra que a produção da existência humana
e sua relação com o processo mais amplo pressupõe a apreensão das leis da nature-
de produção da vida social. za (o que vem a se constituir como “ciên-
A palavra saber é utilizada como sinô- cias da natureza” ou “ciências naturais”),
nimo de conhecimento, envolvendo os as- bem como a compreensão sistemática das
S
relações que os grupos e classes sociais fora para indicar que, em qualquer tra-
294
estabelecem entre si (“ciências sociais”). balho físico, mesmo o mais mecânico e
Nesses termos, a “linguagem” e a “mate- degradado, há um mínimo de atividade
mática” são instrumentos de expressão, intelectual criadora. De acordo com o
codificação e decodificação dos conheci- filósofo italiano, no capitalismo, “o ope-
mentos das leis que regem a natureza e a rário ou proletário, por exemplo, não se
sociedade. caracteriza especificamente pelo trabalho
Assim como o trabalho, as relações manual ou instrumental, mas por este tra-
entre trabalho, educação e produção de balho [realizar-se] em determinadas con-
saberes ganham diferentes configurações dições e em determinadas relações sociais”
ao longo da história da humanidade. A (GRAMSCI, 1982, p. 7). Dado que, nos pro-
dicotomia “mundo do trabalho” e “mundo cessos de trabalho associado, a força de
da cultura” constitui-se como uma marca trabalho não se caracteriza como uma
da sociedade de classes e, em especial, da mercadoria, pressupondo relações econô-
sociedade capitalista, na qual os possuido- mico-sociais opostas às relações capitalis-
res dos meios de produção e seus repre- tas, pode-se inferir que um dos objetivos
sentantes são considerados detentores do da educação de trabalhadores associados
saber científico, enquanto aos vendedores “consiste em elaborar criticamente a ati-
de força de trabalho cabe o saber prático, vidade intelectual que existe em cada
adquirido na experiência do trabalho vivo. um em determinado grau de desenvolvi-
Com a primeira Revolução Industrial, mento, modificando sua relação entre o
ocorrida no século XVIII, os conhecimen- esforço de intelectual-cerebral e o esforço
tos científicos e tecnológicos passaram muscular-nervoso, enquanto elemento
a ser incorporados como força motriz da de uma atividade prática geral, que inova
produção capitalista. Nesse contexto, a continuamente o mundo físico e social,
escola (que, em grego, significa “lugar de torne-se o fundamento de uma nova e
ócio”, ou seja, local onde pequena parcela integral concepção de mundo” (GRASMCI,
da população, pertencente à classe econo- 1982, p. 8).
micamente dominante, poderia passar o As experiências históricas de auto-
“tempo livre”) tornou-se uma instituição gestão revelam que, no embate contra a
onde a classe trabalhadora e seus filhos exploração e a degradação do trabalho,
deveriam apreender os conhecimentos, não é suficiente que os trabalhadores
valores e atitudes estritamente necessá- apropriem-se dos meios de produção.
rios ao trabalho na fábrica. Essas práticas indicam haver a necessida-
Sobre as relações entre trabalho e de de articulação dos saberes do trabalho
educação, Antonio Gramsci analisa que, fragmentados pelo capital e de apropria-
embora a divisão capitalista do trabalho ção dos instrumentos teórico-metodo-
insista em separar o Homo faber do Homo lógicos que lhes permitam compreender
sapiens, não existe atividade humana da os sentidos do trabalho e prosseguir na
qual se possa excluir totalmente a inter- construção de uma nova cultura do traba-
venção intelectual. A expressão “gorila lho e de uma sociedade de novo tipo. Em
amestrado”, de Taylor, seria uma metá- seus escritos sobre o movimento operário
S
ocorrido em Turim, entre 1919 e 1921, nova cultura do trabalho, os saberes do
295
Gramsci analisa os conselhos de fábrica, trabalho associado necessitam ser identi-
afirmando que as experiências nas quais ficados, reconhecidos e legitimados. Essa
os trabalhadores têm o controle sobre a busca inscreve-se na luta histórica da clas-
produção representam uma “escola mara- se trabalhadora pelo reconhecimento e
vilhosa de formação de experiência políti- (re)apropriação dos saberes do trabalho
ca e administrativa” (GRASMCI e BORDIGA, produzidos ao longo de sua história cole-
1977, p. 36). Na “escola do trabalho” e, em tiva e, portanto, na sua afirmação enquan-
especial, nas vivências de trabalho associa- to classe social (PUIGRÓS e GAGLIANO, 2004;
do, as pessoas atribuem sentidos ao vivido REVISTA..., 2006).
ou realizado; assim, de forma mais abran- Na empresa capitalista, as tecnologias
gente, é fundamental que transformem de gestão da força de trabalho, de base
suas vivências pregressas e atuais em expe- toyotista, estimulam intencionalmente o
riências propriamente formadoras. trabalhador a reconhecer sua capacidade
Experiência é uma palavra oriunda do ativa e criativa na resolução de problemas
latim experientia, do verbo experire, que sig- que emergem no cotidiano de trabalho.
nifica experimentar. O que se vivencia deixa Ocorre, dessa forma, a incorporação mais
marcas éticas, políticas, culturais e exis- rápida de novas idéias tanto ao processo
tenciais, além de inúmeros saberes. Cole- como ao produto do trabalho, resultan-
tivamente também se vivenciam modos de do, consequentemente, em melhorias dos
ser, produzir e de se reproduzir material, níveis de competitividade e produtividade
social e culturalmente. Nessas vivências, do capital. Isso requer a mobilização inten-
vão se criando saberes e tradições de um siva da inteligência e da subjetividade do
grupo, instituição, povo ou classe social. trabalhador pelo capital. Contraditoria-
Marie-Christine Josso (2002) distingue mente, esse contexto propicia condições
experiência de uma vivência qualquer. para que o trabalhador possa ampliar a
Para a autora, a tomada de consciência do percepção de sua capacidade de trabalho
sujeito acerca de vivências significativas e de criações individual e coletiva, o que
torna-as experiências propriamente ditas: pode contribuir para a autovalorização do
experiências formadoras. Uma forma de trabalhador e a legitimação e validação de
transformação das vivências em experiên- seus saberes, não somente nos cursos de
cias acontece mediante a compreensão do formação, mas também em processos de
como e do porquê de determinados modos negociação coletiva ou mesmo individual
de fazer, pensar ou sentir. Vivências com- de trabalho. A apropriação pelos trabalha-
preendidas e apropriadas podem auxiliar dores dos saberes produzidos em situações
cada trabalhador e cada coletivo de tra- de trabalho assalariado e associado apro-
balhadores na construção ou modificação funda seu significado histórico e político se
de seus projetos de vida ou de formação. esses saberes forem articulados criticamen-
Concepção e prática estariam consciente- te com os fundamentos científico-tecnoló-
mente articuladas em base sólida para se gicos do processo laboral (SANTOS, 2003).
pensar o passado e o presente e projetar Nas sociedades de classe, via de re-
o futuro. Assim, na perspectiva de uma gra, os trabalhadores interrompem sua
S
escolarização para poder sobreviver e, ção da existência. Tal disputa ocorre tam-
296
assim, deixam de se apropriar do saber bém subjetiva, individual e coletivamente
formal; no entanto, durante esse percur- entre tais sujeitos. Esses são processos de
so, produzem outros saberes, valores e legitimação e validação de uma nova for-
hábitos relacionados ao trabalho e à vida ma de produzir o trabalho e a vida social
fora da escola. Esses saberes ficam à espe- ou de se manterem apegados ao trabalho
ra de crítica e formalização, como um assalariado e à cultura capitalista que lhe
direito a ser conquistado. Para sujeitos corresponde.
comprometidos com iniciativas de traba-
lho associado, há a identificação, reconhe- 3. Com a crise estrutural do emprego e a
cimento, análise, crítica e legitimação de flexibilização das relações entre capital e
saberes e experiências produzidos em ati- trabalho, decorrentes da reestruturação
vidades pregressas de trabalho assalariado produtiva necessária ao regime de acu-
(emprego ou subemprego), na relação de mulação flexível, proliferam organizações
continuidade e de ruptura com a experi- econômicas associativas de trabalhadores/
ência e os saberes produzidos no ambien- as do campo e da cidade. Para subsistir ou
te de trabalho associado. Trata-se, pois, do contrapor-se à lógica capitalista, desde o
desenvolvimento da práxis crítica. final da década de 1980, por meio da ação
O desenvolvimento de uma cultura coletiva e autogestionária, os/as trabalha-
própria do trabalho associado acontece dores/as expulsos/as do mercado de tra-
à medida que se reconhece a cultura do balho assalariado vêm ocupando fábricas
trabalho assalariado, suas possibilidades fechadas, ativando sua produção e criando
e seus limites históricos sob a perspecti- associações e cooperativas de produção,
va da classe trabalhadora. Ao se reconhe- consumo e crédito. Em torno de um movi-
cerem os processos de continuidade e mento que, nacional e internacionalmen-
ruptura, constrói-se com e entre os traba- te, ganha a denominação de economia
lhadores a análise das relações históricas solidária, trabalhadores/as articulam redes
entre o “velho” e o “novo” (de modos de de produção e comercialização, complexos
produção da existência), em outras pala- cooperativos e cadeias produtivas.
vras, do “novo” que está nascendo no seio O trabalho associado traz, para os/as
do “velho” ou, ainda, das continuidades e trabalhadores/as, o desafio de articular
descontinuidades históricas. O trabalho os saberes da experiência anteriormente
associado está sendo instituído no pró- adquiridos e produzidos em situação de
prio contexto da formação social capi- trabalho assalariado e em outras instân-
talista e necessita conquistar seu lugar cias das relações sociais. Pesquisas indi-
como uma alternativa para a classe traba- cam que o conhecimento constitui-se
lhadora libertar-se das diversas formas de como um calcanhar-de-aquiles das orga-
trabalho alienado. Os sujeitos direta ou nizações econômicas associativas, o que,
indiretamente envolvidos em experiên- em grande medida, se deve ao fato de a
cias de trabalho associado estão vivendo classe trabalhadora, principalmente nos
um processo de disputa por legitimação países periféricos do capitalismo, não
e validação social desse modo de produ- ter usufruído o direito à educação básica
S
pública e gratuita (ensino fundamental e quisa e formação sobre produção de sabe-
297
médio) prometido pelo Estado do bem- res do trabalho associado, destacam-se as
estar social. Também é preciso destacar contribuições políticas, éticas e epistemo-
que, historicamente, como expressão das lógicas da educação popular e da pesquisa
contradições entre capital e trabalho, à participante (BRANDÃO e STRECK, 2006).
grande maioria da classe trabalhadora foi Vinculadas às lutas emancipadoras lati-
oferecida uma educação cujo objetivo é no-americanas, essas contribuições têm
ajustá-la às “necessidades do mercado”, alimentado processos de sistematização
ou seja, do capital (FISCHER, 2004). de experiências e, portanto, de saberes de
A educação/formação em economia trabalho associado e projeção de estraté-
(popular) solidária contrapõe-se aos pro- gias político-pedagógicas no campo da
jetos educativos do capital, os quais se economia solidária. Aportes da Ergologia,
apresentam nas formas de educação para de origem francesa, especialmente o dispo-
a empregabilidade (para tornar vendável a sitivo a três pólos (SCHWARTZ, 2001; SCHWARTZ
força de trabalho no mercado), educação e DURRIVE, 2007), têm trazido elementos
para o empreendedorismo (para estimular a para se pensar a pesquisa e a formação
“gestão do próprio negócio”) e educação sobre saberes do trabalho associado que,
para o ( falso) cooperativismo (para garantir de certa forma, entram em relação de
a nova cadeia produtiva requerida pela complementaridade com o patrimônio
acumulação flexível). Com perspectivas da educação popular e da pesquisa par-
político-pedagógicas distintas do capital, ticipante. Nesse dispositivo, o primeiro
a pedagogia da produção associada apresenta- pólo refere-se aos saberes acadêmicos.
se como campo teórico-prático que visa O segundo pólo é o dos saberes da expe-
ao estudo e à concretização dos processos riência, gerados na atividade de trabalho.
educativos cujos objetos de ação e pesqui- O terceiro diz respeito às disposições éti-
sa são a socialização, produção, mobiliza- ca e epistemológica dos sujeitos envolvi-
ção e sistematização de saberes voltados dos nos outros dois pólos para reconhecer
ao fortalecimento de atividades econômi- a incompletude do seu conhecimento e,
cas fundadas na autogestão do trabalho e destarte, aprender com o outro, permitin-
da vida em sociedade, contribuindo para do questionamento mútuo dos conceitos
a formação humana omnilateral e emanci- e dos saberes produzidos na atividade de
pação da classe trabalhadora (TIRIBA, 2001, trabalho.
2004). Como condição fundamental à
produção e efetivação de saberes do e para BIBLIOGRAFIA
o trabalho associado, no âmbito da peda- BRANDÃO, C. R.; STRECK, D. (Org.) (2006), Pesquisa
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S
SOCIEDADE-PROVIDÊNCIA porventura pobres mas em regra eficien-
Pedro Hespanha 299
tes. Apenas em algumas partes do mun-
Sílvia Portugal do, sobretudo as atingidas pela guerra,
epidemias ou cataclismos, não foi possível
1. O conceito de Sociedade-providência consolidar sistemas informais de apoio e
é um conceito relacional no sentido em vigoram regimes de insegurança (GOUGH e
que o seu conteúdo é definido por rela- WOOD, 2004). Contudo, o mais comum é
ção com o conceito de Estado-providên- a coexistência de sistemas de welfare esta-
cia. Se este diz respeito à forma do Esta- tal com sistemas societais de protecção
do moderno caracterizada pela provisão informal e, nessas circunstâncias, o con-
de um conjunto mais ou menos extenso ceito de Sociedade-providência pode ser
de ajudas sociais aos seus cidadãos, por adequado a evidenciar as inter-relações e
Sociedade-providência entende-se a parte as porosidades que intercedem entre aju-
da sociedade civil (famílias, grupos sociais, da pública e ajuda informal sobretudo à
comunidades territoriais e organizações) escala micro da utilização das ajudas pelos
que cuida dos seus membros em comple- indivíduos e famílias. Estudos vários têm
mento ou substituição do Estado. Mais, mostrado precisamente como é possível
a sorte da Sociedade-providência parece às famílias maximizarem o efeito das aju-
estar dependente das transformações e das combinando várias fontes públicas e
reformas operadas no próprio Estado: ela privadas de rendimento (emprego garan-
tinha um papel quase exclusivo de protec- tido, emprego precário, trabalho informal
ção social até ao aparecimento do Estado- e prestações sociais).
-providência (Sociedade-providência pré- Neste sentido, as conceptualizações
-moderna), no período de consolidação mais antropológicas de Sociedade-pro-
deste a Sociedade-providência reduz a sua vidência são preferíveis. É o caso da de
acção limitando-se a complementar a aju- Boaventura de Sousa Santos, pensada
da estatal (Sociedade-providência moder- para analisar uma sociedade – a portu-
na) e, por fim, com a crise e as reformas do guesa – caracterizada, precisamente, por
Estado-providência a sociedade civil é de combinar uma provisão estatal fraca com
novo convocada a (re)assumir muitas das uma forte presença de protecção infor-
funções que o Estado aliena (Sociedade- mal. Este definiu a Sociedade-providência
-providência pós-moderna). como “as redes de relações de interconhe-
Sendo um conceito relacional, uma cimento, de reconhecimento mútuo e de
primeira observação é que ele não é útil entreajuda baseadas em laços de paren-
para aplicar às sociedades onde não exista tesco e de vizinhança, através dos quais
um Estado-providência ou onde este este- pequenos grupos sociais trocam bens e
ja apenas numa fase embrionária. Nessas serviços numa base não mercantil e com
sociedades, a ajuda não provém do Estado uma lógica de reciprocidade semelhante
mas de outras origens – redes sociais, gru- à da relação de dom estudada por Marcel
pos primários, sistema clientelar, organi- Mauss” (SANTOS, 1993, p. 46).
zações internacionais, etc. – e nelas predo- O conceito de welfare society tem-se
minam sistemas informais de protecção, prestado a inúmeros equívocos, uma boa
S
parte deles devido aos próprios equívocos esperando-se que, deste modo, ela fique
300
da distinção entre Estado e sociedade civil liberta para desenvolver formas mais
que entranharam o pensamento moder- avançadas de democracia e de bem-estar.
no ocidental, designadamente o de que a Porém, como foi apontado, a sociedade
sociedade civil reemergente é da mesma civil social-democrática ficou bem aquém
natureza que a sociedade civil liberal clássi- do esperado, tornando-se demasiado pas-
ca e o de que a Sociedade-providência não siva, não encontrando formas criativas de
pode ser senão uma outra face do Estado. parceria com o Estado, não renovando as
Ora esta pode ser, tal como os movimen- formas de participação e iniciativa local,
tos sociais que estão na sua origem, eman- nem envolvendo suficientemente o ter-
cipadora e orientada por preocupações ceiro sector.
pós-burguesas e antimaterialistas.
O papel que as teorias políticas reco- 2. O conceito de Sociedade-providência
nhecem ao Estado em matéria de pro- tem sido aplicado com sucesso sobretudo
tecção social determinou o modo como nas análises acerca da especificidade de
elas vêem a Sociedade-providência. A um um modelo (semi)periférico de produ-
papel residual, de intervenção correctiva ção de bem-estar, onde grande parte da
excepcional e limitada, como defende a protecção social não passa pelo Estado.
teoria política liberal, corresponde a ideia A sua utilização tem permitido sublinhar
de que a essência da Sociedade-providên- a importância da protecção social infor-
cia é libertar, autonomizar e responsabi- mal, questionando as análises tradicio-
lizar a sociedade, evitando que o Estado nais, construídas sobretudo através de
destrua as solidariedades nas relações um enfoque na provisão estatal. A valori-
humanas e torne os cidadãos dependen- zação da protecção oferecida pelos laços
tes de si próprios. Para alguns a Socieda- informais permitiu questionar modelos
de-providência constitui a antítese do analíticos e destacar a complexidade dos
Estado-providência e não uma parte cons- arranjos institucionais na provisão de
tituinte da sua evolução (RODGER, 2000, p. bem-estar, que distinguem as sociedades
8). Seja como for, a argumentação que os de desenvolvimento intermédio.
governos estão a usar para fundamentar as Apesar de os juízos sobre os contribu-
reformas, os cortes e as privatizações nas tos da Sociedade-providência serem alvo
políticas sociais é bem menos sofisticada de alguma controvérsia, contrastando os
e invoca quase exclusivamente a ineficiên- que destacam a sua vitalidade e importân-
cia do Estado na resposta às necessidades cia com os que a vêem como recurso episó-
sociais dos cidadãos. dico, inúmeros estudos têm demonstrado
Por seu turno, as sociais-democracias o seu papel activo na satisfação das neces-
têm concebido o papel do Estado como sidades de bem-estar dos indivíduos.
uma intervenção de primeira linha, base- As pesquisas empíricas neste domínio
ada em direitos universais que este deve têm revelado o papel preponderante da
respeitar e cumprir. Dada esta centrali- Sociedade-providência no acesso a recur-
dade do Estado, corresponde à sociedade sos como a habitação e o emprego, iden-
um papel providencial muito reduzido, tificado a sua capacidade de resposta no
S
domínio dos cuidados à população depen- sustentam uma elevada capacidade de
301
dente (crianças, idosos, deficientes, doen- resposta dos laços sociais, demonstram,
tes mentais) e sublinhado a diversidade simultaneamente, uma enorme fragilida-
da sua intervenção e a sua versatilidade. de, dado que os arranjos informais nos
Elas mostram que a acção da Sociedade- quais se baseia a acção da Sociedade-pro-
-providência permite suprir necessidades vidência estão sistematicamente sujeitos
sociais em domínios em que o Estado e a contingências e imprevistos que tornam
o mercado são omissos ou deficitários e a protecção oferecida errática, não permi-
permite, também, aceder a recursos que, tindo dispensar outras formas de provisão
de outra forma, seriam inacessíveis aos de bem-estar.
indivíduos. Por outro lado, as interacções e as tro-
As descrições da intervenção da Socie- cas que suportam a intervenção da Socie-
dade-providência nos países do Sul e, dade-providência obedecem a modelos
especificamente em Portugal, têm per- complexos de normas, cujos princípios
mitido identificar algumas das principais são, muitas vezes, contraditórios entre si
características da provisão informal de e geradores de tensões e conflitos. Se os
bem-estar, assim como identificar os acto- estudos empíricos mostram que a tríplice
res mais activos do processo. As pesquisas obrigação “dar, receber e retribuir” estru-
têm, sistematicamente, revelado que os tura as práticas e representações dos acto-
laços de parentesco e as solidariedades res, eles revelam também a complexidade
familiares são os grandes sustentáculos da por detrás deste enunciado.
Sociedade-providência e que, no interior Reciprocidade, obrigação, igualdade,
da família, as mulheres são os elementos autonomia – as normas são claras, mas a
fulcrais pelo trabalho que desenvolvem, sua análise detalhada desvenda contra-
mas também pelo papel que desempe- dições, resistências e conflitualidade. A
nham na mobilização das redes. norma da reciprocidade colide com a assi-
Por referência à provisão oferecida metria das trocas que, por exemplo, hoje
por outras esferas, a Sociedade-providên- se verifica nas relações intergeracionais,
cia revela flexibilidade, espontaneidade e em que o desequilíbrio é muito claro, a
autonomia. No entanto, sendo fundada favor das gerações mais jovens. O senti-
sobre relações sociais particularistas, de mento de obrigação e dever para com o
parentesco, vizinhança, amizade e outras, outro conflitua com o primado da liber-
a protecção que oferece é selectiva e exclui dade e da afectividade que actualmente
os que estão fora do laço relacional. Deste faz mover as relações sociais. A autonomia
modo, tem sido sublinhada a importância individual é questionada pela dependên-
de não ver os seus contributos como subs- cia dos apoios. O princípio da igualdade
titutos da providência estatal, baseada em é minado pelas desigualdades sociais e
direitos sociais e em regras de equidade. sexuais que perpassam toda a intervenção
As virtudes da Sociedade-providência da Sociedade-providência.
são, em grande medida, as principais res- A questão da reprodução das desi-
ponsáveis pelos seus problemas. Por um gualdades é um elemento fundamental
lado, se a plasticidade e espontaneidade para a discussão deste conceito. Por um
S
lado, as pesquisas empíricas revelam que a textos de extrema precariedade a Socie-
302
protecção informal reproduz as desigual- dade-providência é inoperante. Faltam
dades sociais entre indivíduos e famílias, as condições mínimas que permitem o
quer em termos de quantidade de apoios desenvolvimento das ajudas solidárias:
prestados, quer em termos de conteúdos disponibilidade de tempo para ajudar (o
e significados das ajudas. Por outro lado, tempo é consumido em actividades de
mostram como a obrigação de “cuidar dos sobrevivência básica), disponibilidade de
seus” se inscreve nas representações de recursos materiais para viabilizar a ajuda
todos, mas, sobretudo, nas práticas das (para ajudar é preciso ter alguns recursos)
mulheres. e coesão social (diversas comunidades
Os custos da acção da Sociedade-pro- tradicionais de aldeia ou de bairro urba-
vidência recaem, essencialmente, sobre no apresentam uma fragmentação que
as mulheres, às quais continua a ser atri- enfraquece o espírito de entreajuda). Nes-
buída a responsabilidade pelo trabalho tes contextos, os custos de oportunidade
doméstico e pelo cuidar dos dependentes. para o investimento nas solidariedades
Os estudos têm mostrado com clareza o são demasiado elevados e desestimulam
modo como as solidariedades femininas esse investimento (HESPANHA et al., 2000).
sustentam a produção informal de bem- Por outro lado, os estudos revelam,
-estar, assegurando a reprodução quoti- também, a existência de contextos sócio-
diana das famílias e alimentando as redes -espaciais em que se acumulam factores
de entreajuda. limitativos da operatividade da Socieda-
Deste modo, o desafio hoje colocado de-providência, a par de outros contextos
pela análise da Sociedade-providência em que essa operatividade é favorecida.
consiste em equacionar em que medida Por exemplo, quando a Sociedade-provi-
a sua acção tem ou não potencialidades dência assenta num modelo de desenvol-
emancipatórias. Se as análises, a partir do vimento estagnado – com uma proporção
Sul da Europa, têm destacado a dimen- relativamente elevada da população a
são vertical e a assimetria, sublinhando a viver da agricultura e com uma propor-
importância do clientelismo e do parti- ção igualmente elevada de mulheres com
cularismo no acesso aos recursos, sabe- ocupações domésticas – e, simultanea-
mos, também, que as relações baseadas na mente, em padrões demográficos con-
dádiva podem ser geradoras de relações servadores, então estamos claramente
horizontais de associação. É esta questão perante uma combinação regressiva de
que importa debater, sendo necessária factores, em que o papel providencial da
uma reflexão sobre a articulação da Socie- sociedade está gravemente afectado. Pelo
dade-providência com outras esferas de contrário, quando a taxa de actividade
produção de bem-estar, nomeadamente feminina é mais elevada e se consegue
a estatal, assim como uma identificação conciliar trabalho fora de casa com traba-
dos contextos em que a sua acção é mais lho doméstico, porque existem medidas
dinâmica. de política e apoios institucionais favo-
Os estudos de terreno, neste domí- ráveis, então estamos perante uma com-
nio, mostram, por um lado, que em con- binação claramente progressiva em que
S
a Sociedade-providência se revela mais pouco confiável (JACOBI, 1993). Aí, a ins-
303
activa (HESPANHA e PORTUGAL, 2002). titucionalização dos movimentos sociais
A Sociedade-providência defronta-se democráticos através de organizações não
com desafios incomensuráveis nesta fase governamentais ou do terceiro sector é
de reestruturação do Estado-providência particularmente visível no domínio das
e não está claro qual o impacto que nela políticas sociais, onde inúmeras organiza-
terá a médio prazo esta crescente redução ções se mobilizam para assegurar as dife-
da função providencial do Estado tanto rentes modalidades de protecção social de
em países de tradição liberal quanto em que as camadas mais pobres da população
países de tradição social-democrática. carecem (GOHN, 1997, p. 340).
Existem sinais de que ela vai assumir uma O risco de cooptação pelo Estado, no
parte das funções dispensadas pelo Esta- sentido de este fazer reverter em seu bene-
do, sobretudo se esta passagem for acom- fício o trabalho das organizações, existe
panhada de compensações financeiras, e mas é contrariado por estas. Por um lado,
nesse caso importa saber se a natureza e a através de uma prática de trabalho em par-
qualidade dos serviços prestados vai sofrer ceria envolvendo redes alargadas de par-
alterações visíveis. Dado que a lógica de ceiros destinadas a aumentar o seu poder
mercado vai prevalecer, é de esperar que negocial, por outro lado, através de um
a clientela desses serviços seja constituída forte enraizamento nos movimentos que
pelas camadas menos afluentes da socie- lhes deram origem ou nas comunidades
dade e que as organizações que os prestam que os suportam para não se desligarem
sejam obrigadas a ficar na dependência da da sua base social. Segundo Santos, esta-
ajuda financeira do Estado. Sempre que mos perante “uma Sociedade-providência
isto não seja possível, a redução do Estado transfigurada que, sem dispensar o Estado
pode desencadear uma reacção defensiva das prestações sociais a que o obriga a rei-
da Sociedade-providência através de uma vindicação da cidadania social, sabe abrir
retoma dos processos de produção infor- caminhos próprios da emancipação e não
mal com um recuo irreparável da filosofia se resigna à tarefa de colmatar as lacunas
universalista e um enorme impacto nega- do Estado e, deste modo, participar, de
tivo na vida das famílias e das comunida- forma benévola, na ocultação da opressão
des, como aconteceu em Inglaterra após e do excesso de regulação” (SANTOS, 1994,
as reformas conservadoras dos anos 80. p. 239).
Porém, o recuo do Estado social pode
desencadear uma maior mobilização da
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S
SOCIOLOGIA ECONÔMICA lógica da economia, tal como foi delimi-
Benoît Lévesque 305
tada pelos economistas neoclássicos. Em
Ensaios sobre a Teoria das Ciências Sociais
1. A Sociologia Econômica é definida (1959), em que examina os métodos res-
como o conjunto das teorias que buscam pectivos das ciências naturais e das ciên-
explicar os fenômenos econômicos a cias da cultura, Weber põe fim à discussão
partir de elementos sociológicos e como acerca dos métodos (methodenstreit). Mos-
disciplina capaz de pensar sociologica- tra, ao mesmo tempo, que a ciência eco-
mente os fatos econômicos. Ela é insepa- nômica não é pura especulação e que suas
rável da Sociologia geral, na medida em leis não são naturais, mas tipos ideais, cujo
que “o traço característico da sociedade valor preditivo é limitado em razão de sua
moderna é apresentar-se sob a aparência grande generalidade. Do mesmo modo,
de uma sociedade econômica”, de modo após observar que a economia tange, à
que a “reflexão sobre as relações entre o primeira vista, apenas a coisas (portanto,
econômico e o social pode ser caracteri- sem ser de interesse para a moral ou para a
zada como a tarefa central da sociologia e Sociologia), Durkheim demonstra que, no
das ciências sociais” (CAILLÉ, 1994, p. 9). seu curso efetivo, ela repousa sobre repre-
Sob esse ângulo, pode-se identificar uma sentações, crenças e valores.
“sociologia geral da economia” e uma “so- A Sociologia Econômica questiona a
ciologia econômica” (CUSIN e BENAMOUZIG, delimitação feita pelos economistas, que
2004). A primeira corresponde a uma reduzem a economia ao cálculo racional
sociologia do capitalismo como “sistema concernente a recursos raros que devem
econômico e social” (TRIGILIA, 2002), ou ser alocados a necessidades consideradas
ao que Weber (1959) denominava “ciência ilimitadas. Mais positivamente, ela pro-
da economia social” (die sozialökonomische põe uma definição mais ampla da econo-
Wisenschaft). A segunda, a Sociologia Eco- mia, como representações sociais na tra-
nômica, que remonta igualmente aos fun- dição durkheimiana, atividades sociais
dadores da Sociologia, visa dar conta “dos que dizem respeito a uma racionalidade
principais fatos identificados pela ciência ampliada na tradição weberiana, relações
econômica”, aplicando-lhes “uma pers- sociais de produção, distribuição e consu-
pectiva radicalmente diversa e um tipo mo conforme a tradição marxista e ativida-
bastante inédito de análise institucional” des que repousam sobre princípios econô-
(PARSONS apud SMELSER e SWEDBERG, 1994, micos plurais – mercado, redistribuição,
p. 65). Entretanto, como a Sociologia reciprocidade e donativo – em uma pers-
supõe que “o mundo social está presen- pectiva polanyiana. Em suma, a Sociolo-
te em cada ação econômica” (BOURDIEU, gia Econômica pode ser definida como “o
2000, p. 13), não existe fronteira estanque conjunto das teorias que se esforçam para
entre “sociologia geral da economia” e explicar os fenômenos econômicos a par-
Sociologia Econômica. tir de elementos sociológicos” (SWEDBERG,
1987), ou como a disciplina capaz de “pen-
2. Weber e Durkheim analisaram a possi- sar sociologicamente os fatos econômicos”
bilidade de haver uma abordagem socio- (GISLAIN e STEINER, 1995).
S
A definição da Sociologia como dis- cujas datas e avaliações variam conforme
306
ciplina, no século XIX, foi precedida o olhar incida sobre a Europa ou sobre os
pela formação da teoria política moder- Estados Unidos. O período 1890-1920 é
na (Maquiavel no século XVI, Hobbes reconhecido como crucial, devido à contri-
no século XVII e Montesquieu no sécu- buição dos fundadores da Sociologia. Para
lo XVIII) e da teoria econômica, com os certos analistas, entre os quais Swedberg
fisiocratas e Smith na segunda metade do (1987), os anos 1920-1960 representam
século XVIII. A constituição dessas esferas um segundo período pouco interessante.
separadas seria fortemente questionada A Sociologia Econômica contentava-se
por More no início do século XVI, pelos então em “simplesmente retomar idéias
utopistas (Owen e Fourier) e pelos pré- antigas”, encetando assim o descrédito de
sociólogos (Saint-Simon e Comte) do seus postulados, do final dos anos 1930
século XIX. Esses pensadores propuseram até o início dos anos 1960. Ao longo desse
simultaneamente uma “outra sociedade e período, fragmentou-se cada vez mais em
uma outra economia”, apelando mais para subespecializações: Sociologia do traba-
a solidariedade do que para o individualis- lho, do desenvolvimento, da empresa, das
mo, e uma “outra abordagem da socieda- organizações, entre outras. Uma institu-
de e da economia”, a partir de uma visão cionalização mais tardia em relação à da
sintética e holística da sociedade. Ciência Econômica e à da Ciência Política
Fundada nessa herança, a Sociologia explicaria por que a Sociologia teria entra-
clássica, que tomou forma na virada do do nas universidades norte-americanas
século XIX, inscreve-se em um contexto como “ciência dos restos”.
de “grande transformação”, caracterizado Embora sua institucionalização na
pela predominância de uma economia de Europa tenha sido posterior, a Sociologia
mercado sustentada por uma filosofia do Econômica aí teria continuado interes-
laissez-faire. Ela se apresentou então como sante, permanecendo inscrita em uma
resposta às pretensões hegemônicas da Sociologia geral e mantendo relações
escola neoclássica, formulada no início mais estreitas com os economistas hete-
dos anos 1870 e centrada “na troca mer- rodoxos. Destacam-se, assim, os trabalhos
cantil entre agentes supostamente racio- da escola francesa de Sociologia, princi-
nais, na formação do sistema dos preços palmente os de Mauss, sobre a troca e a
e na análise matemática das condições dádiva (1923-1924), de Halbwachs, sobre
do equilíbrio geral” (CUSIN e BENAMOUZIG, as classes sociais e o consumo (1933), e de
2004, p. 437). Como a Sociologia geral Simiand (1932-1934), sobre a evolução
questionou os postulados de base dessa dos salários, a moeda e as mentalidades
nova ciência, seria vista como uma anti- econômicas. Do mesmo modo, impõe-se
economia, ao menos até os anos 1970, a contribuição sociológica do economista
quando a “sociologia da escolha racional” austríaco Schumpeter (1833-1959), prin-
começou a se afirmar. cipalmente sobre o capitalismo, o empre-
Para dar conta do desenvolvimento da endedor e as inovações, na sequência
Sociologia Econômica, os analistas iden- da obra de Weber. Após emigrar para os
tificam ao menos três grandes períodos, Estados Unidos, em 1932, o economista
S
austríaco constituiria, nos anos 1980, uma Dois acontecimentos extraordinários –
307
fonte de inspiração para os neo-schumpe- um ao final dos anos 1960 e outro nos anos
terianos e para os evolucionistas (Nelson e 1980 – favoreceriam o nascimento de uma
Winter, Freeman, Perez, Dosi, Lundwall), nova Sociologia Econômica. O primeiro
sobretudo na questão dos sistemas de foi resultante da formação de novos movi-
inovação (LÉVESQUE, BOURQUE e FORGUES, mentos sociais (de estudantes, mulheres,
2001). Fortemente inspirado pela Antro- ecologistas), que passaram a pleitear auto-
pologia, Polanyi (1886-1964), que deixou gestão, qualidade de vida, criatividade e
a Áustria em 1934, depois a Inglaterra em auto-realização. Essas reivindicações, cuja
1943, trocando-a pelos Estados Unidos, satisfação vai além da distribuição dos
contribui com um conjunto de noções ganhos de produtividade, contribuíram
na linha dos fundadores, principalmente para a ruptura do compromisso fordista,
as de encastramento social da economia invalidando imparcialmente as aborda-
e de princípios econômicos plurais. A gens de Keynes e da reprodução funciona-
Grande Transformação (1944) representa, lista e marxista. O segundo acontecimento
assim, uma fonte de inspiração impor- foi provocado pelas políticas neoliberais,
tante para a nova Sociologia econômica que apontam a intervenção do Estado
e para a outra economia (LAVILLE, 1994). como principal causa dos problemas eco-
Enfim, Economia e Sociedade (1956), escrito nômicos. Embora a crise dos Estados-
por Parsons e Smelser, recoloca a análise providência e a escalada do desemprego
da economia no âmbito de uma teoria representassem ameaças para as conquis-
geral da sociedade que repousa sobre qua- tas anteriores, elas também convidaram à
tro sistemas (sistema econômico, sistema resistência e à busca de alternativas, como
político, sistema cultural e sistema de atestam a altermundialização e a altereco-
integração social), interligados por rela- nomia (LAVILLE, 1994). Nesse contexto de
ções de troca que produzem uma espécie “grande transformação”, a Sociologia Eco-
de equilíbrio geral. Além de apresentar nômica reataria com a tradição clássica e
certa contaminação econômica, essa elucidaria a diversidade das configurações
Sociologia estrutural-funcionalista per- “Estado, mercado e sociedade civil”.
maneceu abstrata demais para alimentar
uma verdadeira programação de pesqui- 3. Admitindo-se que a ciência econômica
sa. Malgrado essas contribuições maiores neoclássica forneça, aos atores-chave do
e a influência do marxismo, a Sociologia capitalismo, representações que contri-
Econômica do Pós-Segunda Guerra Mun- buam à realização de seus progressos, a
dial não conseguiu “encontrar espaço no nova Sociologia Econômica responde a
campo econômico” compartilhado pela uma dupla demanda – uma crítica ao neo-
microeconomia neoclássica, com seus liberalismo e uma busca por alternativas
modelos matemáticos aplicados ao mer- concretas. Ela também esclarece, de modo
cado, e pela macroeconomia de inspira- pertinente, as mutações dos anos 1990,
ção keynesiana para o estudo das polí- sobretudo com o surgimento de uma nova
ticas econômicas (CUSIN e BENAMOUZIG, economia e de um “novo espírito do capi-
2004, p. 442). talismo” (BOLTANSKI e CHAPIELLO, 1999).
S
Uma economia relacional que repouse a natureza de cada uma dessas esferas e
308
sobre o saber e os serviços mobiliza, mais sobre sua permeabilidade. Assim, a eco-
do que antes, fatores extra-econômicos e nomia é manifestamente ampliada para
não-mercantis, como a pesquisa, a forma- incluir o não-mercantil e o não-monetá-
ção e a qualidade do meio ambiente. Essa rio, enquanto o político se expressa tanto
mobilização supõe haver uma reconfigu- por meio do espaço público quanto pela
ração do Estado e de suas modalidades relação com o Estado, de modo que a
de intervenção centradas em uma oferta questão social pode então ser relacionada
integrada, novos modos de regulação que à economia. Enfim, os novos riscos econô-
apelem à sociedade civil, modos de gover- micos e sociais propiciam o início de um
nança mais horizontal e novas solidarie- desenvolvimento sustentável e justo, por
dades. A Sociologia Econômica revela, intermédio da regulação do mundo asse-
outrossim, que as formas de coordenação gurada por instituições internacionais
são múltiplas, incluindo não somente o que respeitem a democracia.
mercado (mão invisível) e a hierarquia A Sociologia Econômica fez progres-
(mão visível dos administradores), mas sos inegáveis desde o final do século XX,
também o Estado, as associações, as interessando-se pelo núcleo duro da
redes, as comunidades. A importância da Economia. Entretanto, numerosas abor-
complexidade e da diversidade da confi- dagens e subespecializações conservam-
guração “Estado, mercado e sociedade se fragmentadas, tornando mais complexa
civil” mostra bem a “diversidade dos capi- e difícil a integração dos novos saberes
talismos” e dos “modelos nacionais de assim produzidos (SMELSER e SWEDBERG,
desenvolvimento”, inclusive nas compa- 1994). O desafio de integração permanece
rações Norte-Sul. ainda mais difícil porque não há consenso
Da mesma maneira, os trabalhos sobre sobre a direção a se tomar, como indicam
a economia social e solidária permitem propostas frequentemente discordantes
compreender como a atividade econômi- sobre a formação de uma Sociologia Geral
ca repousa sobre diversos princípios eco- da Economia, de uma Sociologia Econô-
nômicos (mercantis, não-mercantis e não- mica que se erigiria como disciplina, de
monetários) cuja articulação não garante uma Socioeconomia aberta às diversas
o bem comum, a não ser apelando para a disciplinas interessadas pela Economia.
democracia representativa e deliberativa, Cabe indagar se, uma vez que toda
o que evidencia as dimensões políticas da Sociologia Econômica inscreve-se em uma
outra economia. Esses princípios plurais Sociologia geral, a tarefa de integração dos
também estão presentes no capitalismo, conhecimentos sociológicos não tangeria
mas não são reconhecidos, por falta de igualmente à Sociologia geral, ela própria
democracia econômica. As associações, fragmentada em diversas tradições. Por
as empresas sociais e as iniciativas da outra via, pode-se inquirir se as noções
sociedade civil, no campo da economia, de economia social e de encastramento
suscitam questões relativamente novas social da economia, cada vez mais empre-
não somente sobre as relações entre a gadas, não seriam tão ambíguas quan-
economia e o político, mas também sobre to a corrente “economia e sociedade”.
S
Ademais, essas noções não supõem ser a CAILLÉ, A. (1994), Prefácio. In: SWEDBERG, R., Une
histoire de la sociologie économique, Paris: Desclée de 309
economia externa à sociedade, mas afir-
Brouwer.
mam justamente o contrário. As propo-
sições de Polanyi (1983), sobre o desen- CUSIN, F.; BENAMOUZIG, D. (2004), Economie et sociolo-
gie, Paris: PUF.
castramento da economia moderna, e de
Granovetter (2000), sobre seu encastra- DURKHEIM, E. (1895), Les règles de la méthode sociologi-
que, Paris: PUF; Quadrige 2.
mento nas redes, podem se reconciliar,
já que o primeiro autor considera o “pró- GISLAIN, J. J.; STEINER, P. (1995), La sociologie économique,
1890-1920, Paris: PUF.
prio princípio do mercado” como tipo
ideal tal como definido pelos economis- GRANOVETTER, M. (2000), Le marché autrement: les ré-
seaux dans l’économie, Paris: Desclée de Brouwer.
tas, enquanto o segundo debruça-se sobre
os “mercados concretos”, cujo funcio- LAVILLE, J.-L. (Dir.) (1994), L’économie solidaire:
une perspective internationale, Paris: Desclée de
namento mobiliza as redes e as relações
Brouwer.
pessoais. Sob um ponto de vista político,
LÉVESQUE, B.; BOURQUE, G.; FORGUES, E. (2001), La nou-
essas duas posições divergem: uma ques-
velle sociologie économique: originalité et diversité des
tiona uma “economia de mercado”, que approches, Paris: Desclée de Brouwer.
se tornou “sociedade de mercado”, ao
PARSONS, T.; SMELSER, N. J. (1956), Economy and society
passo que a outra aceita que o mercado in the integration of economic and social theory, Glencoe
“instrumentalize” as relações sociais para III: Free Press.
suas próprias finalidades. Essa controvér- POLANYI, K. (1983), La grande transformation: aux origi-
sia mostra claramente a importância de nes politiques et économiques de notre temps, Paris:
se considerar o mercado no âmbito de Gallimard.
um capitalismo responsável pela questão SMELSER, N. J.; SWEDBERG, R. (Ed.) (1994), The hand-
social, por intermédio da autonomização book of Economic Sociology, Princeton: Princeton Uni-
de esfera econômica. versity Press; New York: Russell Sage Foundation.
SWEDBERG, R. (1987), Une histoire de la sociologie écono-
mique. Paris: Desclée de Brouwer.
BIBLIOGRAFIA TRIGILIA, C. (2002), Sociologie économique: État, mar-
BOLTANSKI, L.; CHAPIELLO, M. E. (1999), Le nouvel esprit ché et société dans le capitalisme contemporain,
du capitalisme, Paris: Gallimard. Paris: Armand Colin.
BOURDIEU, P. (2000), Les structures sociales de l’économie, WEBER, M. (1959), Essai sur la théorie de la science (1918),
Paris: Seuil. Paris: Plon.
S
SOLIDARIEDADE A segunda forma de solidariedade
310 Jean-Louis Laville baseia-se tanto na ajuda mútua, como
na expressão reivindicativa, tangendo,
1. O conceito moderno de solidariedade ao mesmo tempo, à auto-organização e
remete a dois projetos diametralmen- ao movimento social. Esta segunda ver-
te opostos, sendo, portanto, impossível são supõe haver uma igualdade de direi-
apresentar uma acepção unificada. A to entre as pessoas que nela se engajam.
solidariedade filantrópica corresponde Pressupondo a liberdade de acesso ao
ao primeiro deles, remetendo à visão de espaço público para todos os cidadãos, ela
uma sociedade ética na qual os cidadãos, se empenha em aprofundar a democracia
motivados pelo altruísmo, cumprem seus política mediante uma democracia econô-
deveres uns para com os outros volunta- mica e social.
riamente. A segunda forma é a versão da É verdade que a solidariedade filantró-
solidariedade como princípio de demo- pica desempenhou um papel importante,
cratização societária, resultando de ações como atestam as variadas formas de patro-
coletivas. nato e paternalismo desenvolvidas no
A solidariedade filantrópica concen- século XIX. No entanto, foi a amplitude
tra-se na “questão da urgência” e na pre- da mobilização do registro da solidarie-
servação da paz social, concepção que dade democrática que marcou a história
tem por objeto o alívio dos pobres e sua francesa e a de outros países europeus e
moralização por meio do emprego de sul-americanos, comparando-as a contex-
ações paliativas. A dádiva aqui não se sub- tos anglo-saxões.
mete a outras regras capazes de estabilizar
suas condições de exercício senão àquelas 2. Quanto à história do conceito de soli-
emitidas pelos doadores, podendo assim dariedade democrática na França, duas
converter-se em instrumento de poder e etapas podem ser distinguidas. A solida-
dominação. A inclinação a ajudar outrem, riedade é um termo que Leroux introduz
valorizada como um elemento constitu- na Filosofia a fim de demarcar o vínculo
tivo da cidadania responsável, implica a social-democrático da caridade. Segundo
ameaça de uma “dádiva sem reciprocida- o autor, “a natureza não criou um único
de” (RANCI, 1990). A única contrapartida ser para si mesmo [...] ela os criou uns
possível é a gratidão sem limites, estabele- para os outros e colocou entre eles uma
cendo-se uma dívida que jamais pode ser solidariedade recíproca” (LEROUX, 1841,
honrada pelos beneficiários. Os vínculos p. 170). A despeito do cunho datado dessa
de dependência pessoal que a solidarieda- teologia política, é importante reter dela
de filantrópica promove firmam o risco de a forte crítica, tanto da filantropia como
se colocarem os donatários em situações de uma visão organicista da sociedade.
de inferioridade. Em outras palavras, ela Para subtrair-se a um individualismo
porta um dispositivo de hierarquização competitivo, bem como a um estatismo
social e de manutenção das desigual- autoritário, Leroux insiste no estabele-
dades apoiado nas redes societárias de cimento de uma comunicação entre o
proximidade. Estado e a sociedade que supõe grupos
S
intermediários. O autor conta com redes as dependências pessoais ao viabilizar o
311
de solidariedade que passam pela ofici- acesso ao direito, mas reforça “seu poder
na e com associações ou a imprensa para tutelar” e “seu papel central de dar forma
manter o espírito público indispensá- à sociedade” (LAFORE, 1992). A noção de
vel à democracia. Seu pensamento entra solidariedade ganha novo sentido e mos-
em consonância com os movimentos da tra-se, para os republicanos, como o meio
época que se engajam na busca por uma de se reconciliarem os direitos individuais
nova economia: a organização do trabalho e a responsabilidade do Estado; em con-
a ser encontrada dará a oportunidade de trapartida, ela avaliza a preeminência da
se constituírem entidades produtivas que economia de mercado, na qual o Estado
inscrevam a solidariedade na economia. apóia-se para captar os meios necessários
Em frente aos limites impostos a essa à realização das funções sociais cuja res-
primeira abordagem após os eventos de ponsabilidade assume por meio da redis-
1848, uma outra concepção da solidarie- tribuição pública.
dade democrática vem suceder-lhe, ao Ilustrando o triunfo da segunda con-
mesmo tempo prolongando-a e com ela cepção, o direito do trabalho substitui o
rompendo (LA REVUE DU MAUSS, 2000). debate sobre o direito ao trabalho. A qui-
A solidariedade democrática continua, tação da dívida social inclui agora o traba-
é verdade, demonstrando uma recusa lho, que não é mais um contrato, mas um
à posição liberal, que reduz o vínculo status, já que proporciona direitos sociais.
societário à troca contratual. A despeito A partir da segunda metade do século XIX,
dessa permanência, o solidarismo defen- a solidariedade, na condição de princípio
dido por políticos, juristas ou sociólogos organizador da resistência à expansão sem
é diferente. Ele repousa na idéia de uma limites do mercado, exprime-se sobretu-
dívida social que o indivíduo contrai, por do pelas proteções vinculadas ao empre-
ser membro da sociedade, a qual o induz go assalariado em um âmbito nacional
a assumir um “quase-contrato” com seus (CASTEL, 1995). Nas condições atuais, a
semelhantes. Esse não é um compromisso solidariedade não pode ser limitada a esse
interindividual voluntário, mas um com- aspecto, haja vista os obstáculos à conse-
promisso firmado perante a coletividade, cução de um trabalho “digno”. Ela tam-
cujo respeito o Estado deve assegurar por pouco pode ser atingida a troco de uma
obrigação. redistribuição indexada pelo crescimento
Como indica Bourgeois (1998, p. 22- do mercado, tendo em vista os desgas-
23), “o dever social não é uma pura obri- tes ecológicos que somente podem ser
gação de consciência, é uma obrigação combatidos via formas de intervenção as
fundada em direito, a cuja execução não quais supõem coordenações transnacio-
é possível subtrair-se sem uma violação de nais. Isso leva a questionar a expansão da
uma regra precisa de justiça”, e o Estado solidariedade horizontal em relação aos
pode impor essa regra “à força, se necessá- pobres e a consideração da solidariedade
rio”, a fim de garantir “a todos, assim, sua vertical, entre as gerações. O “princípio
parte legítima no trabalho e nos produ- responsabilidade” (JONAS, 1998) recla-
tos”. A intervenção do Estado emancipa ma uma intensificação da solidariedade
S
a partir desses dois eixos, subentendidos cia e a eficiência, ou eles reivindicam sua
312
na noção de desenvolvimento sustentá- singularidade. Neste caso, seu domínio
vel. Embora haja um aparente consenso, de ação deve ser extremamente limitado,
apresentam-se dois projetos divergentes centrado nas populações empobrecidas, a
quanto às formas de solidariedade impli- assistência prestada pelo serviço público
cadas: um baseia-se na reatualização de devendo ser completada pela intervenção
uma versão filantrópica da solidariedade; caritativa de outras associações de caráter
o outro se apóia em uma adaptação da ver- privado (MEDEF, 2002).
são democrática. Nessa concepção de empresa privada,
a responsabilidade social é alternativa à
3. No projeto baseado na volta da solida- ingerência pública. Perante a ascensão
riedade filantrópica, as variáveis sociais incipiente de novas regulações públicas,
e ecológicas constituem externalidades. inclusive internacionais, a auto-respon-
Elas somente são integradas a esse pro- sabilização da empresa em se tratando de
jeto mediante sua internalização, ou seja, questões sociais e ecológicas sugere que
a fixação de um equivalente monetário uma via baseada no voluntariado da con-
(criação de mercado de direitos de polui- duta ética possa se mostrar mais adequa-
ção, medidas fiscais de incentivo, etc.). O da. Essa auto-responsabilização implica
objetivo dessa “indexação” é influencia- reestruturar-se a lógica de potência de
rem-se os agentes econômicos quanto a grandes grupos internacionais, mostran-
suas escolhas de produção e de consumo. do-lhes que sua capacidade de autocon-
A contradição entre dinâmica econômica trole pode evitar uma intervenção externa
e variáveis socioecológicas pode ser supe- virtualmente prejudicial a suas metas. A
rada por mecanismos corretores internos relegitimação de atores econômicos cujas
à economia de mercado, única capaz de decisões em matéria de meio ambiente ou
gerar os antídotos aos problemas que ela de emprego são contestadas tem também
mesma ocasiona. uma função interna (SALMON, 2002): tran-
Essa crença na capacidade de auto- quilizar os assalariados, que poderiam se
reforma do mercado é substituída pela questionar sobre os fenômenos de exclu-
afirmação de que somente a empresa é são e de risco ecológico. A empresa oferece
criadora de riquezas. O setor público e as provas de sua benevolência quanto à socie-
formas de empresa nas quais a proprieda- dade, o que a autoriza a enunciar injunções
de não é reservada aos detentores de capi- morais relativas à atitude de cada funcioná-
tais – aquelas agrupadas sob a denomina- rio. À abstração das declarações societárias,
ção de economia social – são considerados associa-se um conjunto de recomendações
como possuidores de privilégios os quais que tangem à vida cotidiana do assalaria-
convém reduzirem-se para se restaurar do. Nesse quadro filantrópico, o desenvol-
uma concorrência justa e transparente. vimento sustentável pode resultar em uma
Ou os setores público e social alinham-se espécie de enquadramento pelo mercado,
às empresas privadas, mediante a adoção as empresas assumindo externalidades
de critérios de mercado ou de quase-mer- negativas e aparecendo como responsáveis
cado, únicos capazes de verificar a eficá- frente à sociedade.
S
A concepção democrática da solidarie- rior, que alegava a unicidade da empresa
313
dade, por sua vez, reinsere a economia em e do mercado, essa versão do desenvolvi-
seu papel de meio destinado a atingir fins mento sustentável tem condições de fun-
de justiça social e de sustentabilidade eco- dar discussões públicas sobre as evoluções
lógica. Essa reinscrição em uma interroga- econômicas em prol do fortalecimento
ção teleológica acerca da convivência dos de uma economia plural. Esta economia
homens supõe que sejam empiricamente apresenta-se como o vetor indispensável
asseguradas ao menos duas condições para a instauração de uma forma de desen-
quanto ao quadro institucional em que se volvimento mais solidária. Uma economia
encontra a economia. plural, tanto pelos princípios econômicos,
A primeira condição aponta que um quanto pelas formas de propriedade, e
conjunto de regras cujo objetivo seja cuja pluralidade seja valorizada como uma
“socializar” o mercado e restringir seu riqueza, pode traçar os caminhos de uma
acesso a estoques limitados de recursos solidariedade democrática reorganizada.
não-renováveis pode ser legitimamente Sob esse ponto de vista, a possibilidade de
estabelecido, o que implica arbitragens se relegitimar o serviço público democra-
públicas. Os mercados são compatíveis tizando seu funcionamento pode se sus-
com instituições reguladoras que não se tentar na estabilização de uma economia
limitam a uma internalização das exter- social e solidária, cujos componentes mais
nalidades negativas, mas manifestam uma dinâmicos foram criados para inserir a
vontade coletiva de se inscrever o merca- economia em normas sociais e ecológicas.
do na ordem democrática. O “enquadra- A solidariedade democrática não pode
mento” institucional dos mercados, além mais se limitar ao nível nacional e ao tra-
disso, deve ser completado por um “trans- balho; continuando presente nesses pla-
bordamento” (CALLON, 1999) provenien- nos, ela somente pode atingir sua finalida-
te da mobilização de uma pluralidade de de de justiça abrindo-se aos níveis local e
lógicas de ação e de princípios econômi- internacional, sendo exercida sempre em
cos. O surgimento da atividade econômi- favor dos pobres e entre as gerações.
ca unicamente a partir do mercado resul-
ta, de fato, na adoção de uma perspectiva 4. A escolha reatualizada entre as formas
“individualista”, “atomista”. Essa perspec- de solidariedade culmina no questiona-
tiva pode ser relativizada pela diversidade mento da definição formal da economia
dos princípios econômicos e formas de (POLANYI, 1977), assumida desde o advento
propriedade, enriquecendo o repertório da economia neoclássica. Enquanto gran-
das ações de dimensão econômica. dezas como produtividade e crescimento,
No projeto da concepção democráti- emblemáticas de tal definição, perdem
ca da solidariedade, um desenvolvimen- seu relevo e até sua pertinência, a questão
to sustentável só pode ser traduzido em das consequências sociais e ambientais da
avanços constatáveis pela ótica do revi- atividade econômica praticamente não
goramento das esferas não-mercantis e pode mais ser ignorada. Uma primeira
não-monetárias articuladas a mercados resposta ao problema consiste em inter-
regulados. Ao contrário do projeto ante- nalizar as externalidades e em completar
S
essa reorganização do mercado por meio da pela amplitude das questões sociais e
314
de uma ética mantida por empresas cons- ecológicas.
cientes de suas responsabilidades sociais e
ambientais. Neste caso, pela primeira vez, BIBLIOGRAFIA
a ética – que antes provinha da esfera reli- BOURGEOIS, L. (1998), Solidarité, Paris: Presses Univer-
giosa ou filosófica – é concebida a partir sitaires du Septentrion.

da esfera econômica. Essa ética, da qual CALLON, M. (1999), La sociologie peut-elle enrichir
l’analyse économique des externalités? Essai sur la
se vale agora a empresa, fragiliza a inter-
notion de débordement. In: FORAY, D.; MAIRESSE, J.
venção das instâncias políticas no mundo (Ed.), Innovations et performances: approches inter-
econômico. Após uma longa história da disciplinaires, Paris: Éditions de l’École des Hautes
limitação da economia pela solidariedade Études en Sciences Sociales.
democrática, o que se propõe é uma soli- CASTEL, R. (1995), Les métamorphoses de la question socia-
dariedade filantrópica marcada pela cons- le, Paris: Fayard.
ciência da responsabilidade cidadã das CHANIAL, P.; LAVILLE, J.-L. (2002), L’économie soli-
elites. A outra resposta concerne a uma daire: une question politique. Mouvements, Paris: La
Découverte, n. 19, jan./fév.
abordagem extensiva da economia. Nela,
JONAS, H. (1998), Le principe responsabilité, Paris:
a dimensão ética não é mais delegada à
Garnier-Flammarion.
empresa, mas é objeto de uma deliberação
LA REVUE DU MAUSS (2000), L’autre socialisme: entre
e de uma negociação coletivas.
utilitarisme et totalitarisme, Paris: La Découverte, n.
O que alimenta concretamente esse 16, second sem.
debate é a pluralidade das lógicas econô- LAFORE, R. (1992), Droit d’usage, droit des usagers:
micas. O cuidado a elas associado, de se une problématique à dépasser. In: CHAUVIERE, M.;
considerar a economia em seus meios GODBOUT, J. T., Les usagers entre marché et citoyenneté,
social e natural, evoca a abordagem que Paris: L’Harmattan.
Polanyi classificava como substantiva, na LEROUX, P. (1841), Aux philosophes, Paris: Lesourd.
qual a economia é concebida apenas como MEDEF (2002), Concurrence: marché unique, acteurs
um meio a serviço de finalidades humanas pluriels. Pour de nouvelles règles du jeu, Paris: Mou-
vement des Entreprises de France.
que dependem de uma escolha política.
POLANYI, K. (1977), The livelihood of man. Ed. by Harry
Na acepção democrática da solidariedade,
W. Pearson, New York: Academic Press.
a reflexão moral não poderia ser separada
RANCI, C. (1990), Doni senza reciprocità. La persis-
do debate sobre os fins legítimos no espa-
tenza dell’altruismo sociale nei sistemi complessi,
ço público. Filantropia ou democracia, Rassegna Italiana di Sociologia, XXXI, n. 3, luglio/sett.
trata-se de uma alternativa recorrente há SALMON, A. (2002), Ethique et ordre économique: une
dois séculos, cuja persistência é confirma- entreprise de séduction, Paris: CNRS Editions.
T
TECNOLOGIA SOCIAL Embora associada aos movimentos
Renato Dagnino sociais e, especialmente, à economia soli-
dária, a definição de TS apresenta uma
1. Tecnologia social (TS) é o resultado nítida fragilidade analítico-conceitual.
da ação de um coletivo de produtores Ela ainda não indica os elementos essen-
sobre determinado processo de trabalho ciais que garantiriam sua plena aplicabili-
engendrado pela propriedade coletiva dos dade (que não se resume à dimensão eco-
meios de produção, pelo controle auto- nômica). Esses elementos dizem respeito
gestionário e pela cooperação voluntária a um conjunto de indicações de caráter
e participativa, permitindo a redução do sociotécnico alternativo ao atualmente
tempo necessário ao fabrico dos produtos hegemônico capaz de orientar as ações
e a repartição concertada dos resultados. de fomento, planejamento, capacitação
Esse conceito, gerado no Brasil, compre- e desenvolvimento de TS dos implicados
ende “produtos, técnicas ou metodolo- com esses empreendimentos: gestores
gias reaplicáveis, desenvolvidas na intera- das políticas sociais e de C&T, profes-
ção com a comunidade e que representem sores e alunos atuantes nas incubadoras
efetivas soluções de transformação social” de cooperativas, técnicos de institutos
(REDE, 2008). Tal definição reflete a cor- de pesquisa, trabalhadores ou outros
relação de forças existente no conjunto agentes.
ideologicamente heterogêneo de atores Outro inconveniente daquela defini-
envolvidos com a TS, o qual abriga desde ção é que ela abrange procedimentos que
os que entendem a TS como um elemento pouca ou nenhuma ligação possuem com
vinculado às propostas de responsabilida- o ambiente produtivo (ou com o processo
de social empresarial até os que labutam de trabalho), o qual é o que efetivamente
em prol da construção de uma sociedade estabelece as relações econômico-sociais
socialista. Essa heterogeneidade talvez causadoras da exclusão e deve ser trans-
explique por que a TS venha sendo tão formado por meio da TS. Essa discordân-
amplamente difundida no Brasil, con- cia acerca da ampliação do conceito de
quanto não haja um conceito adequado tecnologia é especialmente problemática;
para se abordar o seu objetivo principal, talvez os movimentos sociais atribuam a
qual seja, o desenvolvimento de tecnolo- denominação de “tecnologias” às meto-
gias alternativas à tecnologia convencio- dologias alternativas por eles propostas a
nal (TC) produzida pela e para a empresa fim de granjearem o merecido apoio e res-
privada. peitabilidade que eles merecem.
T
Por fim, assinala-se que essa definição que, para desenvolver a TA, bastava uti-
316
não está à altura da maneira radical com lizar o conhecimento “armazenado” na
que a TS vem sendo tratada em diversas universidade, tentando adaptá-lo (ou sim-
instâncias. Destacam-se os fóruns que a plificá-lo) para que sua aplicação evitasse
discutem, os locais em que vem sendo ado- os impactos negativos habitualmente cau-
tada como agenda de pesquisa e extensão sados pela TC, entre eles a demanda por
e os espaços governamentais onde começa mão-de-obra “qualificada”, o alto custo
a ser vista como um meio para promover a de capital por posto de trabalho gerado,
inclusão social, mesmo que ela não esteja o desemprego, a marginalização, o uso
consignada à produção dos autores que intensivo de insumos sintéticos, a degra-
tratam da Economia Solidária (ES). dação ambiental, etc.
Determinados autores sustentavam
2. O surgimento da TS como tecnologia que seria ingenuidade supor que uma
alternativa à convencional ocorreu no Bra- tecnologia alternativa pudesse modificar
sil recebendo essa designação no início da práticas culturais e estruturas de poder
década de 2000. Seus atores estavam pre- indesejáveis. Outros argumentavam que
ocupados com a crescente exclusão social, a TA poderia se converter em algo signifi-
precarização e informalização do trabalho cativo pela simples passagem do ambiente
e animados pela percepção de que era politicamente correto dos cientistas bem-
necessária uma tecnologia que pudesse intencionados dos países avançados para
contribuir à solução desses graves pro- o espaço da policy e da politics da C&T dos
blemas sociais. A crítica à tecnologia con- países periféricos, revelando o posiciona-
vencional, que tem em Mahatma Ghandi mento de que, se a TA não fosse “deman-
um de seus pioneiros, está associada à dada” por um ator com força política, ela
proposta da tecnologia intermediária de permaneceria como uma curiosidade ou
Schumacher (1973) e alcança seu auge benemerência tecnológica. No contexto
com o movimento da tecnologia apro- sociopolítico latino-americano de então,
priada (TA) nos EUA, embora as ações que esse ator seria o Estado.
esse movimento ensejou tenham sido cri- A reflexão que se seguiu a esse momen-
ticadas devido a sua pouca eficácia. to de crítica ao movimento da TA des-
Algumas críticas já haviam sido expli- dobrou-se por meio de duas vertentes. A
citadas nos círculos dos analistas da políti- primeira mantinha a idéia de, partindo
ca de ciência e tecnologia (STEWART, 1987; das características da TC, conceber, por
SACHS, 1976; DAGNINO, 1976). Na América exclusão ou negação, aquelas que a TS
Latina, o tema permaneceu praticamen- deveria possuir. Por adotar a perspectiva
te invisível, sendo ignorado pela comu- dos Estudos Sociais da Ciência e Tecno-
nidade de pesquisa. A crítica à TA tinha logia (ESCT), essa via foi capaz de colocar
como foco principal a idéia de que ela em discussão os obstáculos ao desenvolvi-
poderia ser produzida por pesquisadores, mento da TS e as ações que deveriam ser
“ofertada” por meio de bancos de dados realizadas visando à sua neutralização. Por
e “demandada” pelos pobres do campo e entender a C&T como construções sociais
da cidade. Atacava-se também a noção de “negociadas”, essa vertente sugeria a
T
conscientização dos atores envolvidos na tiam avançar em direção ao que se desejava
317
produção e a utilização do conhecimento construir. Tratava-se daquele já menciona-
tecnocientífico. Ademais, por perceber do conjunto de indicações de caráter socio-
a necessidade de que a TA fosse “deman- técnico para o desenvolvimento da TS, as
dada” por atores com força política, seus quais permitiam:
defensores apontavam como aliados, no a) recuperar a noção, hoje obscureci-
campo produtivo, as cooperativas e fábri- da pela teoria da inovação e pelo neoli-
cas recuperadas, no político, os gestores beralismo, de que a TC teria como obje-
das políticas sociais e de C&T, e, no cogni- tivo aumentar a mais-valia apropriada
tivo, os professores, alunos e técnicos de pelo empresário e, só depois disso e se
institutos de pesquisa, em especial os que ele achasse conveniente, acirrar a com-
militavam nas incubadoras universitárias petição intercapitalista, que poderia ele-
de cooperativas. Destacavam haver, para var a competitividade do país e evitar o
esses e outros atores e preocupações, um desemprego;
espaço agregativo, os Empreendimentos b) explicitar a relevância da proprie-
Solidários (ESs), entendidos como um dade privada dos meios de produção na
motor crucial da TS. determinação das características da TC
Os ESs eram assim concebidos por (BRAVERMAN, 1987);
serem, mais que “demandantes” de TS, c) mostrar como a ciência (BLOOR,
participantes, no terreno mesmo da pro- 1998) e a tecnologia (PINCH e BIJKER, 1990)
dução material, da sua geração. Além seriam construções sociais negociadas
disso, os ESs significavam uma alterna- entre atores e não um resultado de uma
tiva radical, dado atuarem nesse terreno busca pela verdade e eficiência;
essencial para o questionamento estru- d) trazer, para a reflexão sobre as alter-
tural da forma de produção capitalista. Se nativas à TC, a idéia de tecnociência;
apoiados na TS, os ESs poderiam ensejar e) negar, por meio da crítica à percep-
uma revitalização das formas associativas ção do marxismo ortodoxo sobre a neutra-
e autogestionárias que a classe trabalha- lidade da ciência e o determinismo tecno-
dora historicamente vinha privilegiando lógico, a possibilidade de que a tecnologia
para organizar a produção material e resis- capitalista viesse a servir para a construção
tir ao avanço do capital. Em função dessas de um projeto político alternativo;
ponderações, essa vertente considerava os f ) politizar a idéia da construção social
ESs como uma vanguarda do movimento da tecnologia mediante a incorporação
social brasileiro. da Teoria Crítica e, negando seu compo-
A segunda vertente propunha um mar- nente determinista, argumentar que ato-
co analítico-conceitual para abordar a TS res sociais contra-hegemônicos poderiam
a partir de idéias que haviam surgido e alterar as características da TC (FEENBERG,
disseminado-se no campo dos ESCT após 2002);
o auge do movimento da TA. Destacavam- g) incorporar um conteúdo de classe ao
se oito contribuições teóricas que, embo- processo de reprojetamento (redesigning)
ra geradas independentemente entre si e da TC, que deveria ocorrer mediante a
não-ligadas ao movimento da TA, permi- contaminação dos ambientes onde a C&T
T
fosse produzida, com valores e interesses seguida, uma tendência capaz de influen-
318
distintos aos do capital (LACEY, 1999); ciar a construção de uma “outra econo-
h) sinalizar os obstáculos advindos mia”. Perduram obstáculos que se inter-
do modelo cognitivo e da dinâmica de põem ao movimento da TS.
funcionamento da política de C&T e de Um desses entraves reside na ainda
ensino superior para o avanço do movi- escassa compreensão, por parte dos ato-
mento de TS e para seu desenvolvimento res envolvidos com o Estado ou com a
(VARSAVSKY, 1969); construção da “outra economia”, sobre o
i) introduzir o diagnóstico acerca dos papel que a TS pode assumir nesse proces-
obstáculos que a dependência cultural e so. Em um primeiro nível mais concreto e
a “condição periférica” latino-americanas imediato, a TS é um elemento viabilizador
interpunham à geração autóctone de tec- das “sustentabilidades” dos ESs. Em um
nologia (HERRERA, 1975); segundo, ela se apresenta como um ele-
j) advertir sobre o modo como o des- mento articulador de formas de produção
conhecimento dos fatores evidenciados e organização da sociedade, alternativas
pelas contribuições mencionadas tendia àquelas engendradas pelo capital. Em um
a manter obscuras as oportunidades, os terceiro nível, mais abrangente e de longo
desafios e as relações sociais e cognitivas, prazo, a TS opera como o núcleo do subs-
os quais os atores envolvidos com a TS trato cognitivo que deverá tomar o lugar
precisavam “desnaturalizar” (DAGNINO, da tecnociência, a qual amalgama e galva-
2008); niza a infra-estrutura econômico-produti-
l) assinalar a necessidade de que a va e a superestrutura político-ideológica
disseminação dessas contribuições fosse do capitalismo, no cenário em construção
assumida como prioritária, por serem elas da “outra economia”.
uma condição para a convergência das Em favor da brevidade, será tratado
políticas sociais e de C&T; apenas o fato de que nem aquele primei-
m) indicar que os ESs seriam susten- ro nível foi alcançado, o que pode ser
táveis apenas à medida que funcionassem avaliado pela quase completa ausência
em redes de produção e consumo (cadeias do tema na produção bibliográfica dos
produtivas) crescentemente independen- autores do campo da ES. Estes interrom-
tes do mercado; e, finalmente, pem sua preocupação acerca da órbita da
n) sugerir, mediante a proposta da produção no nível das questões relativas
adequação sociotécnica (DAGNINO, 2008), à gestão dos empreendimentos e à orga-
um caminho possível para se transitar de nização do processo de trabalho, sem
um ambiente hegemonizado pela “cultu- perceber a inadequação do conjunto de
ra” da TC para um outro que viabilizasse a aspectos da TC (inclusive a sua dimensão
construção da TS. de hardware) como um obstáculo à sus-
A disseminação dessas duas vertentes, tentabilidade dos ESs. Essa perspectiva
em especial da segunda, representou uma parece resultar de uma não-assimilação
inflexão no longo processo de desenvolvi- da crítica contemporânea à visão neutra
mento das idéias associadas à TS. Ela não e determinista do marxismo ortodoxo
gerou, entretanto, como se discutirá em (DAGNINO e NOVAES, 2007).
T

contexto ambiente da 319


contrato social
socioeconômico produção
Ator
Forma de
Coerção Controle Cooperação
propriedade

produtor direto - - individual -

coletivo de voluntária
coletiva associativismo autogestão
produtores participativa

física, pelos
escravos privada coercitivo forçada
proprietários

vendedores
ideológica, pelo imposto taylorismo,
de força de privada
Estado assimétrico toyotismo
trabalho

Orientar eficazmente a promoção da Tem-se procurado nesse sentido, sem


TS, no plano das políticas públicas e no abandonar a construção de uma utopia
plano cognitivo, supõe alterar a estratégia que caracteriza o movimento da TS, ado-
habitualmente adotada. Essa estratégia tar uma estratégia inversa, formulando
parte das implicações sociais, econômi- uma abordagem ao mesmo tempo gené-
cas, políticas e ambientais negativas da rica, dado que permite o entendimento
TC, buscando, por exclusão ou negação, de qualquer tecnologia, e específica, na
o desenvolvimento da TS. Almeja, assim, medida em que está alinhada com os prin-
uma tecnologia que não determine essas cípios da TS. Essa estratégia não se volta a
implicações, o que coloca os envolvidos na explicar a dinâmica da inovação (ou tecno-
frágil situação de tentar desenvolver algo- logia) de produto, mas a de processo, que
que-não-é aquilo que não queremos. mais interessa ao campo da TS. Ela parte

forma de controle:
propriedade: imposto
privada assimétrico
Capital
cooperação:
Trabalho taylorismo
morto Lucro
coerção: toyotismo
ideológica
Capitalismo (Estado)
TECNOLOGIA
CAPITALISTA
Trabalho Salário
vivo
Força de
Trabalho

CONTEXTO ACORDO SOCIAL AMBIENTE


SOCIOECONÔMICO PRODUTIVO
Empresa
Privada
T
da consideração do processo de traba- doxo e quase herético, permite entendê-
320
lho em que se envolvem os indivíduos no la de modo mais coerente com a idéia de
ambiente da produção, para derivar ana- TS.
liticamente as características que ele tem Tecnologia é o resultado da ação de um
de assumir de modo a tornar-se funcional ator social sobre um processo de trabalho
a um contexto socioeconômico específico por ele controlado. Em função das carac-
e ao acordo social que este engendra. terísticas do contexto socioeconômico,
Após explicar-se a abordagem e mos- do acordo social e do ambiente produtivo,
trar-se que ela elucida as características da esse ator é capaz de provocar uma altera-
TC a partir do contexto socioeconômico ção nesse processo no sentido de reduzir
capitalista, expõe-se um procedimento o tempo necessário à fabricação de um
inverso àquele proposto pela trajetória dado produto e de fazer com que a produ-
até agora seguida, indicando-se as pecu- ção resultante seja dividida de acordo com
liaridades que a TS deveria ter para tor- seu interesse.
nar-se funcional à “outra economia”. O Na primeira linha do quadro, estão os
quadro e o diagrama apresentados ante- três espaços de cujas peculiaridades resul-
riormente ilustram, partindo do ambien- tariam os tipos de tecnologia. Na segun-
te produtivo, seu primeiro e mais impor- da, os quatro elementos adstritos a esses
tante elemento: o controle. Entendido espaços. Na primeira coluna, encontram-
como a habilidade relativa ao uso de um se os atores típicos (um individual e três
conhecimento intangível ou incorporado grupais) das quatro situações que se abor-
a artefatos tecnológicos, ele constitui um dam. O quadro resume como é possível,
traço inerente a qualquer processo de tra- em cada uma das quatro situações, deriva-
balho. O segundo, também pertencente rem as características da tecnologia.
ao ambiente produtivo, é o de cooperação O diagrama apresenta outra visualiza-
(ato de agir em conjunto com outro(s) ção da abordagem, agora particularizada
visando a um benefício percebido como para a tecnologia capitalista (ou TC). Ele
mútuo), verificado em processos de traba- evidencia que a propriedade privada dos
lho grupais. O terceiro, relativo ao contra- meios de produção não é a responsável
to social engendrado por um dado contex- direta pelas características da TC. Ela é um
to socioeconômico, é o de coerção (ato de elemento exógeno ao ambiente produtivo,
compelir alguém a uma ação ou escolha que viabiliza o estabelecimento de tipos
diretamente ou por meio de mecanis- específicos de coerção e controle. Estes,
mos ideológicos). O quarto, pertencente por sua vez, implicam uma forma de coope-
a esse contexto, corresponde à forma de ração que preside a concepção e utilização
propriedade dos meios de produção ou da TC, tecnologia que – e é esta a questão
do trabalho morto (a qual, nos processos central que interessa desde o início res-
de trabalho grupais, pode ser coletiva ou saltar – pode guardar consigo esses tipos
privada, resultando, neste caso, na venda de controle e cooperação mesmo quando
de força de trabalho ou trabalho vivo). A aquele elemento exógeno deixe de existir.
abordagem conduz a um conceito genéri- TC é o resultado de uma ação do capi-
co de tecnologia o qual, ainda que hetero- talista sobre um processo de trabalho no
T
sentido de reduzir o tempo necessário DAGNINO, R. (1976), Tecnologia apropriada: uma alter-
nativa? Dissertação (Mestrado), Departamento de 321
à fabricação de dado produto e de fazer
Economia, Universidade de Brasília, Brasília.
com que uma parte da produção resultan-
te possa ser por ele apropriada. Esse pro- ___. (2008), Neutralidade da ciência e determinismo tec-
nológico, Campinas: Editora da Unicamp.
cesso é viável em um contexto socioeconô-
mico que engendre a propriedade privada DAGNINO, R.; NOVAES, H. T. (2007), As forças produ-
tivas e a transição ao socialismo: contrastando as
dos meios de produção e de um acordo
concepções de Paul Singer e István Mészáros, Revis-
social que legitime uma coerção ideológi- ta Organizações & Democracia, Unesp, Marília, v. 8, p.
ca por meio do Estado, a qual enseja, no 60-80.
ambiente produtivo, uma cooperação de FEENBERG, A. (2002), Transforming technology, Oxford:
tipo taylorista ou toyotista e um controle Oxford University Press.
imposto e assimétrico. HERRERA, A. (1975), Los determinantes sociales de la
A comparação entre esse conceito e o política científica en América Latina. Política cientí-
de TS apresentado inicialmente e deriva- fica explícita y política científica implícita. In: SABATO,
do da abordagem desenvolvida evidencia J. (Ed.), El pensamiento latinoamericano en la problemática
o que esta possui de original e promissor. ciencia-tecnología-desarrollo-dependencia, Buenos Aires:
Paidós. p. 98-112.
Especificamente, trata-se da idéia de que o
controle é um atributo inerente a qualquer LACEY, H. (1999), Is science value-free? Values and scien-
tific understanding, London: Routledge.
forma de produzir, formulação coerente
com a observação de que não basta, para PINCH, T.; BIJKER, W. E. (1990), The social construc-
tion of facts and artifacts: or how the Sociology of
construir formas solidárias de produção, a
Science and the Sociology of Technology might
abolição da propriedade privada dos meios benefit each other. In: BIJKER, W.; HUGHES, T.; PINCH,
de produção. O tipo de controle que a rela- T. (Ed.), The Social construction of technological systems.
ção social fundamentada na propriedade Cambridge: MIT Press.
privada impõe fica impregnado na forma de REDE DE TECNOLOGIA SOCIAL, Tecnologia social. Disponí-
produzir tecnologia capitalista e funciona vel em: <http://www.rts.org.br/tecnologia-social>.
com um obstáculo à mudança social. A con- Acesso em: 21 jul. 2008.
sideração desse controle possui uma cen- SACHS, I. (1976), The discovery of the Third World, Cam-
tralidade desproporcional à pouca impor- bridge, Mss.: MIT Press.
tância que ele tem até agora merecido. SCHUMACHER, E. F. (1973), Small is beautiful: a study of
economics as if people mattered, London: Blond &
Briggs.
BIBLIOGRAFIA STEWART, F. (Ed.) (1987), Macro-policies for appropriate
BLOOR, D. (1998), Conocimiento e imaginario social, Bar- technology in developing countries, London: Westview
celona: Gedisa. Press.
BRAVERMAN, H. (1987), Trabalho e capital monopolista, VARSAVSKY, O. (1969), Ciência, politica y cientificismo,
Rio de Janeiro: Guanabara. Buenos Aires: Centro Editor de America Latina.
T
TERCEIRO SECTOR tor não lucrativo (EUA), economia social
322 Sílvia Ferreira (Europa continental), ONG e organiza-
ções de base (países do Sul), etc. O que é
1. O termo terceiro sector é uma definição relevante, independentemente da desig-
usada para descrever um conjunto de nação ou do seu conteúdo específico, é o
relações sociais diferentes das do Estado surgimento de um sector em relação com
e do mercado. Como tal, é uma defini- o Estado e o mercado, como um “outro”
ção relacional que também depende das distinto da economia de mercado e do
mudanças na natureza do Estado e das Estado, e a tentativa de observar aspectos
forças de mercado. É aplicado frequen- comuns num amplo leque de iniciativas
temente a uma grande variedade de ini- frequentemente isoladas entre si.
ciativas, como organizações de caridade,
associações, fundações, grupos de auto- 2. Há dois aspectos importantes a ter em
-ajuda, iniciativas populares de base, redes conta na análise histórica da emergência
e movimentos sociais, mutualidades, coo- do sector. Um é o surgimento do termo, o
perativas, empresas sociais e outras. Com contexto deste surgimento e a sua semân-
base em tradições teóricas diferentes e tica. Outro é a estruturação de um campo
com ênfases diferentes, têm sido apresen- social que se inventou como sector, com-
tadas listas de propriedades para definir e posto por um tipo específico de relações
classificar o terceiro sector. Estas podem sociais, organizações e princípios, e o sig-
referir-se a características organizacionais nificado estratégico desta construção para
– como o carácter privado, a ausência de um diversificado leque de actores sociais.
finalidades lucrativas, o objectivo de bene- O surgimento do termo está ligado ao
ficiar a comunidade ou os seus membros, Estado-providência e ao Estado desen-
o seu carácter autogovernado e voluntário volvimentista, particularmente à sua crí-
e o seu grau de organização formal –, ou tica, às suas crises e às suas transforma-
a racionalidades ou valores específicos ções. Obviamente, muitas das iniciativas
– solidariedade, participação democráti- e relações designadas agora de terceiro
ca, enraizamento local. Estas perspectivas sector existiam anteriormente, algumas
derivam de pontos de observação diferen- precedendo a intervenção do Estado em
tes, não são equivalentes e o peso relativo muitas áreas, enquanto que outras cres-
destes valores varia nas organizações em ceram em consequência de programas
diferentes momentos. Conforme Souza- do Estado-providência. Porém, estas ini-
-Cabral (2007) aponta, no terceiro sector ciativas não eram descritas como sector
o todo é maior do que a soma das partes. até à década de 1970. Nesta década, nal-
O termo tem sido usado como fórmula guns países ocidentais, o surgimento de
genérica para uma realidade mais comple- iniciativas da sociedade que expressavam
xa e mostra-se útil na investigação com- ou implicavam uma crítica tanto ao Esta-
parativa internacional. Daí que seja usado do como ao mercado coincidiu com uma
como um equivalente para definições mais crise financeira, económica e de legitimi-
locais e contextuais, como sector voluntá- dade do Estado-providência e do Esta-
rio (Reino Unido e países nórdicos), sec- do desenvolvimentista e com a busca de
T
alternativas por parte tanto da esquerda Em muitos países a “invenção” de um
323
como da direita políticas. O termo foi sector não adoptou sempre a semânti-
usado inicialmente neste contexto, tendo ca de terceiro sector mas, em vez disso,
assumido significados e projectos políti- designações locais que deram expressão a
cos diferentes. Theodor Levitt usou-o pela tradições nacionais. Nalguns países, como
primeira vez em 1973, nos EUA, para des- os EUA, a França e o Reino Unido, as orga-
crever iniciativas, entre o público e o pri- nizações criaram estrategicamente o sec-
vado, desde as organizações de caridade e tor. Hall (1992) descreve este processo
associações populares até aos sindicatos nos EUA como uma estratégia de autopro-
e às organizações dos novos movimentos tecção das fundações em relação ao ques-
sociais. De acordo com o autor, estas ini- tionamento da sua prosperidade e do seu
ciativas faziam, ou exigiam que fosse fei- estatuto fiscal, motivado pelo seu apoio
to, aquilo que o Estado e o mercado não financeiro a grupos e movimentos sociais
faziam ou faziam mal. Amitai Etzioni usou que questionavam a política governamen-
o termo com outro significado, designan- tal. Esta estratégia incluiu a criação de uma
do com ele as iniciativas entre o Estado e o comissão para estudar a contribuição do
mercado, públicas mas não governamen- terceiro sector, o estabelecimento de uma
tais, tais como as organizações voluntárias associação de cúpula e o desenvolvimento
e as fundações e as iniciativas resultantes de uma identidade baseada sobretudo no
das parcerias entre o sector público e as estatuto legal de organizações não lucrati-
empresas. Segundo este autor, o terceiro vas. Os pesquisadores, economistas na sua
sector seria a melhor solução para garantir maioria, desenvolveram a ideia de um sec-
a prestação de bens públicos permitindo tor específico com um papel próprio de
manter reduzido o aparelho do Estado. compensação das falhas do mercado e do
Em França, as primeiras referências ao Estado. Defourny e Campos (1992) tam-
termo estiveram relacionadas com a crise bém descrevem a reemergência da econo-
do emprego e a crítica da relação salarial mia social em França como uma estratégia
fordista e foram inspiradas pelas inicia- de uma coligação de cooperativas, mutu-
tivas de autonomia no trabalho. Jacques alidades e associações com o intuito de
Delors utilizou-o em 1978 num relatório aumentar o seu acesso a financiamentos
da Comissão Europeia sobre a criação de e ao poder político e também como refle-
emprego e, em 1984, Alain Lipietz propôs xo das inovações sociais e económicas da
que o terceiro sector (entre l’entreprise capi- década de 1960. Tal como nos EUA, estes
taliste et la fonction publique) fosse promo- esforços foram também apoiados por aca-
vido e apoiado de modo a existir paralelo démicos com pesquisa sobre a economia
à empresa capitalista. Num contexto de social e as suas raízes históricas. Esta recu-
pressão para a exoneração das empresas peração histórica ajuda a perceber a razão
das contribuições sociais em nome do pela qual a ideia de economia social se
contributo para a criação e manutenção baseia na noção de que existem outras for-
de empregos, o terceiro sector criaria a mas de organizar as relações económicas
possibilidade de resistir a estas pressões para além do mercado (nomeadamente,
promovendo alternativas de emprego. a reciprocidade e a redistribuição), assim
T
como na ênfase das falhas da perspectiva definição estrutural operativa focada em
324
económica neoclássica (EVERS e LAVILLE, características organizacionais e para uma
2004). Alguns países seguiram caminhos classificação de acordo com áreas de acti-
idênticos para a estruturação do terceiro vidade (serviços sociais, saúde, educação
sector, mas em muitos outros ele conti- e investigação, desenvolvimento e habita-
nuou fragmentado. ção, cultura e recreio, militância e políti-
A nível académico, a década de 1990 ca, ajuda internacional, ambiente, religião
é de institucionalização do “sector”, com e associações empresariais, profissionais
um acréscimo significativo de pesquisa e e sindicatos). Desde que este projecto
de publicações, de lançamento de cen- começou, em 1990, já foi desenvolvido em
tros de pesquisa e de revistas, de criação trinta e seis países, tendo, nalguns casos,
de associações nacionais e internacionais permitido os primeiros estudos nacionais
de pesquisadores, como a International abrangentes e possibilitado comparações
Society for Third Sector Research. Muita pes- internacionais. Além disso, a capacidade
quisa dedicou-se a estabelecer definições de o projecto dar conteúdo à ideia interna-
e classificações, justificar ou explicar a sua cional de sector manifestou-se no desen-
existência e estudar os seus diferentes volvimento de uma contabilidade satélite
papéis de prestação de serviços, desen- destinada a incluir o sector nas contas
volvimento económico, transição demo- nacionais. Foi elaborado um Manual, fru-
crática, desenvolvimento de políticas, etc. to da cooperação entre os pesquisadores
Um dos aspectos mais interessantes é o do projecto e a divisão de estatística das
enfoque multidisciplinar, com cientistas Nações Unidas e, de acordo com o sítio
das varias áreas das ciências sociais dando do projecto na internet (http://www.jhu.
conta do seu carácter multifacetado mas, edu/ccss/unhandbook/), já são vinte e seis
ao mesmo tempo, impedindo a fixação os países interessados em adoptar este
dos estudos numa disciplina específica e Manual.
contribuindo, assim, para algum subde- Inevitavelmente, classificações e defi-
senvolvimento teórico. nições seleccionam partes da realidade, o
Os estudos comparativos interna- que significa que são susceptíveis de serem
cionais que criaram a ideia da importân- contestadas por valorizarem alguns aspec-
cia crescente deste sector, em especial tos e actores em detrimento de outros.
em termos do número de trabalhadores Duas críticas relativas às selecções do pro-
(incluindo voluntários) e de volume de jecto Johns Hopkins – por vezes estendi-
rendimento gerado, ajudaram a construir das ao conceito de terceiro sector – giram
o argumento sobre a necessidade de polí- em torno dos conceitos de economia social
ticas de apoio ao contributo do sector para e de sociedade civil e exprimem as tensões
a resolução dos problemas de emprego e da construção do sector. Pesquisadores
do fracasso das políticas sociais. O Projec- da Europa continental consideram que a
to Comparativo do Sector Não Lucrativo exclusão de uma parte importante da eco-
da Universidade Johns Hopkins (http:// nomia social, nomeadamente, a maioria
www.jhu.edu/~cnp/), nos EUA, consti- das cooperativas e das mutualidades, com
tui uma proposta importante para uma base no critério da não lucratividade, torna
T
o quadro analítico inadequado para reali- Contudo, estas discussões não esgo-
325
dades como a europeia e de muitos países tam a realidade do terceiro sector. Em
onde iniciativas populares de produção e cada país, de acordo com as suas tradições
comercialização têm um papel fundamen- políticas, existe uma ampla variedade de
tal no suporte das comunidades. Estes relações e de articulações que se tornam
pesquisadores também rejeitam o quadro perceptíveis nos estudos nacionais. No
anglo-saxónico de separação e antagonis- entanto, elas ilustram a luta pelas defi-
mo entre o Estado e o terceiro sector, pois nições e a importância estratégica des-
na Europa existe uma tradição de coope- tas no que se refere à criação de quadros
ração. A oposição encontra-se sobretudo institucionais que favorecem determina-
no campo da economia, entre a economia das iniciativas e racionalidades em detri-
de mercado e outras economias (EVERS e mento de outras. Partindo do conceito de
LAVILLE, 2004). De facto, mesmo no mun- “economia imaginada” de Jessop (2004),
do anglo-saxónico a tradição de coopera- podemos considerar algumas implica-
ção é bem mais saliente do que o mito da ções concretas destes debates. Desde o
separação e do antagonismo deixa antever momento em que o terceiro sector é ofi-
(ANHEIER e KENDALL, 2001). Uma segun- cialmente reconhecido torna-se objecto
da crítica exprime-se na preferência pelo de cálculo económico e de regulação e,
conceito de sociedade civil, considerado ao ser valorizado pelo seu contributo para
mais amplo e capaz de acolher aspectos o desenvolvimento económico ou para a
que têm sido desvalorizados nas formula- compensação das políticas sociais (e não
ções e pesquisas do sector. Esta mudança para a cooperação, solidariedade, activi-
reflecte transformações semânticas resul- dade voluntária ou filantrópica), torna-se
tantes de um descentramento em relação parte da “economia imaginada” e é mobi-
ao contexto particular em que o conceito lizado como instrumento de apoio à vira-
teve origem, em especial nos processos gem para o neoliberalismo.
de transição democrática dos países da
Europa Central e de Leste, de democrati- 3. No contexto actual dos debates sobre
zação e liberalização dos países do Sul ou, as definições de terceiro sector ou sobre o
de forma mais global, nos processos de seu lugar estrutural, como Santos o desig-
mudança do governo para a governação. na (2006), algumas propostas têm tentado
Também aqui têm surgido projectos glo- apreender e compreender a sua heteroge-
bais, como o Civil Society Index desenvol- neidade através de quadros analíticos que
vido pelo CIVICUS (http://www.civicus. dêem conta das características específicas
org/new/CSI_home.asp). Argumentam al- das iniciativas em contextos particulares,
guns dos seus autores, num debate no seja em termos das diferenças nacionais
Journal of Civil Society (vol. 1(3), 2005), que seja em termos da heterogeneidade do
o conceito de sector não lucrativo se cen- sector nos diferentes países. Por exemplo,
tra em demasia nos aspectos económicos Salamon e Anheier (1998) desenvolvem
e organizacionais, enquanto o conceito de uma teoria das “origens sociais da socieda-
sociedade civil permite focar o lado políti- de civil”, procurando explicar as diferenças
co destas iniciativas. nacionais de acordo com a mobilização
T
de recursos das classes sociais e as insti- não satisfeitas que subsistem e têm mes-
326
tuições existentes. Os autores europeus, mo vindo a aumentar com as transforma-
indo beber quer às teorias das economias ções socioeconómicas. Poderíamos acres-
mistas de bem-estar quer às teorias sobre centar aqui que este valor acrescentado é,
a economia plural, desenvolveram aborda- em grande medida, o resultado da mobi-
gens que têm em conta a variedade interna lização da lógica da comunidade e da
do terceiro sector (EVERS e LAVILLE, 2004). sociedade civil para se misturarem com a
O terceiro sector foi então descrito como lógica do mercado e do Estado. Trata-se,
ocupando uma posição intermédia dentro como Santos (2006) referiu ao descrever
de um espaço delimitado por um triângu- os movimentos sociais da década de 1960,
lo cujos vértices são o mercado, o Estado e do regresso do pilar da comunidade e da
a comunidade, parte da esfera pública na subjectividade. No entanto, tal como San-
sociedade civil, interagindo com as insti- tos também sugere, isso não é garantia de
tuições e racionalidades nos três vértices que estas racionalidades sejam hegemó-
e na sociedade civil e sendo influenciado nicas, em especial no contexto actual de
por umas e outras (EVERS e LAVILLE, 2004). crescente penetração da lógica mercantil
Assim, diferentes organizações do terceiro em novas esferas do Estado, da socieda-
sector apresentam misturas particulares de e da subjectividade. Tal também não
destas racionalidades consoante as rela- é garantia de que o terceiro sector não
ções específicas. Daí que a pesquisa tam- seja um mecanismo dessa mesma pene-
bém tenha assinalado a variedade dentro tração, antes dependendo da natureza
das organizações, que têm sido descritas da sua relação com a sociedade civil, o
como híbridas, misturando diferentes Estado e o mercado. Todavia, faz senti-
princípios e racionalidades. Outros auto- do reter o conceito de terceiro sector, e a
res desenvolveram ideias idênticas, notan- heterogeneidade que ele descreve, como
do que a característica principal do terceiro indicação das limitações da dicotomia
sector é a mistura de princípios económi- mercado/Estado e como o “outro” que
cos diferentes e racionalidades sociopo- existe juntamente e em inter-relação com
líticas distintas (EVERS e LAVILLE, 2004, estas e outras racionalidades. E, também,
ENJOLRAS, 2002). Estas interpretações coin- no contexto dos debates internos, como
cidem, em termos epistemológicos, com uma observação dos limites e uma relati-
um maior interesse nas misturas e nos vização das fronteiras que são construídas
híbridos e com o questionamento da sufi- em torno de si.
ciência de formas de explicação do mundo
em termos de fronteiras e dicotomias.
BIBLIOGRAFIA
Tal como Lipietz (2001) sugere, depois
ANHEIER, H. K.; KENDALL, J. (Ed.) (2001), Third Sector
de a actividade humana ter sido reduzida
Policy at the Crossroads: an international nonprofit
às relações mercantis e/ou estatais e de a analysis, London: Routledge.
família ter sido subordinada às necessida-
DEFOURNY, J.; CAMPOS, J. L.-M. (Ed.) (1992), Écono-
des da reprodução capitalista, o terceiro mie sociale – entre économie capitaliste et économie
sector, através da produção de um valor publique/The third sector – cooperative, mutual and
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tural political economy, Critical Discourse Studies, controle social, São Paulo: Saraiva.
v. 1, n. 2, p. 159-174.
U
UTOPIA passado e nem poderá vir a sê-lo no futuro.
Antonio David Cattani Plano ou sonho irrealizável”. Nesse senti-
do, o termo é usado correntemente para
1. Utopia significa desejo de alteridade, se desacreditarem e condenarem projetos
convite à transformação que constrói o de superação da realidade. Recentemen-
novo, a busca da emancipação social, a con- te, registra-se sua utilização em um sen-
quista da liberdade. Utopia não se resume tido libertário, como crítica do presente
a um conceito ou quadro teórico, mas a e consciência antecipatória de um futuro
uma constelação de sentidos e projetos. A outro. O presente verbete será desenvol-
verdadeira utopia constitui-se na visão crí- vido tomando-se utopia no sentido de
tica do presente e de seus limites e na pro- exploração de virtualidades, de revolta e
posta para transformá-lo positivamente. ruptura e, sobretudo, de superação dos
limites sociais e econômicos impostos.
2. Etimologicamente, utopia é um neo-
logismo criado pelo estadista e filósofo 3. O termo utopia encontra seu lugar tam-
inglês Thomas Morus (1477-1535) para bém enquanto gênero literário. A obra de
intitular sua obra maior publicada na T. Morus retomou a preocupação da filo-
Holanda, em 1516. O termo foi forjado sofia grega clássica quanto aos modelos de
a partir de duas palavras gregas (ou, do Estado ideal, preocupação essa notada-
advérbio de negação, e topos, lugar). Uto- mente aprofundada em A República de Pla-
pia seria um “não-lugar”, um lugar que tão. Morus inaugurou o ciclo moderno de
não existe ou, simplesmente, um lugar textos de ficção, entre os quais se destacam
imaginário. Em sua obra, Morus refere-se A cidade do Sol (1602), de T. Campanella, e
a um lugar ideal que abriga uma sociedade A Nova Atlântida (1627), de Francis Bacon.
igualitária, justa e feliz, ou seja, um “bom Essas obras têm como característica prin-
lugar”. Essa acepção positiva do termo cipal colocar a possibilidade de organiza-
vigorou durante dois séculos, afirmando a ção diferenciada do poder político e das
possibilidade de aperfeiçoamento do ser relações sociais num momento em que o
humano e de suas realizações. A partir de Absolutismo monárquico vigorava incon-
meados do século XVII, o vocábulo adqui- teste e em que as relações sociais perma-
riu um sentido depreciativo, que perma- neciam rigidamente estratificadas.
neceu até o século XXI. Segundo o dicio- Com a expansão do capitalismo ocor-
nário Michaelis, utopia “é o que está fora rida ao final do século XVIII e ao longo do
da realidade, que nunca foi realizado no século XIX, registrou-se uma segunda leva
U
de textos propondo modelos fechados de arquitetura e o urbanismo dos falanstérios,
329
sociedades planificadas e harmônicas. Em que deveriam ser construídos em espaços
face da violência e anarquia do crescimen- virgens, longe das mazelas urbanas já pro-
to capitalista, especialmente na França, vocadas pelo capitalismo emergente.
Itália, Inglaterra e Alemanha, diversos Mais para o final do século XIX, foram
autores propuseram versões romancea- publicadas centenas de obras que podem
das ou obsessivamente técnicas de cida- ser classificadas como literatura de ante-
des utópicas nas quais a paz e o equilíbrio cipação. Destacam-se, notadamente, os
societário permitiriam surgir uma nova textos dos ingleses William Morris (1834-
espécie de indivíduos. O pensamento utó- 1896), autor de News from Nowhere, e
pico apresentava-se, claramente, como Edward Bellamy (1850-1898), autor de
denúncia das injustiças, privilégios e múl- Looking Backward 2000-1887. Trata-se
tiplas faces do poder. de exercícios de imaginação buscando
Em 1838, Wilhelm Weitling (1808- perscrutar possibilidades técnicas, tec-
1871), considerado o fundador do comu- nológicas e societárias positivas para a
nismo alemão, lançou, com grande reper- humanidade.
cussão, o manifesto da Liga dos Justos, Após a Primeira Guerra Mundial, a
intitulado A humanidade como ela é e como utopia como gênero literário específico
deveria ser, seguido, em 1842, de Garantias extinguiu-se, sendo substituída por obras
de harmonia e liberdade. O autor inaugurou, de ficção científica, romances de futurolo-
assim, as reflexões que fomentavam expe- gia ou propostas visionárias, os quais em
riências concretas. Weitling fundou mais nada se aproximavam da complexidade e
tarde, nos Estados Unidos, a colônia auto- profundez registradas nos textos dos dois
gestionária Comúnia. séculos precedentes. Nas obras clássicas
Outro autor que exerceu grande influ- da literatura utópica, a referência a situa-
ência sobre as experimentações sociais ções imaginárias, a condições irreais e a
alternativas foi Charles Fourier (1771- processos visionários era acompanhada
1837). Em O novo mundo industrial e societá- pelo debate sobre a justiça, o bem comum
rio (1829), Fourier aliava uma concepção e o sentido e destino da vida em socieda-
cosmogônica a determinações precisas de. Compartilhavam a crítica à civilização,
sobre a construção da sociedade ideal. aos valores e às práticas dominantes, desa-
Harmonia seria uma cidade modelo de fiando o leitor a pensar diferente e a dese-
progresso industrial, versão terrestre do jar diferente. O valor dessas obras reside
paraíso, onde as pulsões e paixões huma- em não se limitarem à dimensão literária,
nas estariam ordenadas racional e praze- remetendo à história das idéias e aos exer-
rosamente. Harmonia seria materializada cícios intelectuais que recusam a resig-
nos falanstérios (de falange, formação de nação. Seus limites encontram-se em seu
combate ou grupo estreitamente unido, espírito por vezes panfletário, doutriná-
composto por l.800 membros). Fourier rio ou mesmo totalitário; as formulações
detalhou as condições da produção mate- são, de modo geral, desvinculadas dos
rial (cooperativas de produção e consu- movimentos sociais concretos, estes sim,
mo) e da vida cultural, social e amorosa, a impulsionadores de reais transformações.
U
4. É possível relacionar-se razão utópica exprime-se na teoria das elites, conforme
330
e correntes de pensamento que impulsio- se verifica em Vilfredo Pareto e Gaetano
naram múltiplas transformações práticas Mosca. Em sua dimensão mais profunda,
e teóricas as quais fizeram avançar a civi- aquela que alia dominação ideológica a
lização. O elo entre, de um lado, a razão senso comum, a antiutopia expressa-se
utópica e, de outro, o espírito iluminista na compreensão do mundo e da vida de
e a filosofia da práxis pode ser estabele- acordo com perspectivas fatalistas e resig-
cido na medida em que essas correntes nadas. O entendimento de que a essência
compartilham os seguintes princípios: o humana e as realizações sociais são imu-
ser humano pode (condicional) ser livre táveis (o eterno retorno a uma ordem
e desenvolver toda espécie de atividade eterna), de que a vida política resume-se à
criativa e auto-criativa; pode (novamente sucessão dos poderosos e de que as hierar-
condicional) vir a ter consciência de si e quias sociais e as injustiças daí resultantes
da sociedade; essa consciência pode vir a são naturais, portanto, necessárias, pode
ser ampliada mediante a ação prática-crí- ser classificado como a forma mais nefasta
tica, superando, dessa forma, a alienação do pensamento antiutópico. Permanên-
e opressão, a permanência e a pseudo- cia, imutabilidade, repetição e impotência
imutabilidade das coisas e das relações. O designam percepções sobre a realidade
processo civilizador é entendido como o que legitimam a dominação, que configu-
progresso da liberdade e da consciência ram a “servidão voluntária”.
dessa liberdade. A liberdade e a autono- O liberalismo, mais precisamente
mia (conforme o sentido kantiano, não em sua versão econômica recente, é um
de agir conforme a lei, mas de definir a exemplo complexo dessa visão de curto
própria lei) não se limitam às esferas indi- prazo e de curtíssimo alcance: a vida frag-
vidual ou da subjetividade, mas remetem, mentada e medíocre é o horizonte possí-
sempre, ao coletivo, à emancipação social vel da realização humana. O fetichismo da
ampla que garante o bem comum e a vida mercadoria e a sacralização do mercado
em sociedade. Para estabelecer melhor auto-regulável definem a rotina narcísea
a conexão entre razão utópica e o pensa- do consumo e do individualismo abúlico.
mento não-conformista, progressista e Conjugados ao pensamento pós-moder-
libertário, é preciso fazer-se um paralelo no, liberalismo e neoliberalismo propõem
entre as antiutopias, distopias e as utopias que a situação do século XXI esteja defi-
de ruptura, de superação e de criação. nitiva e que não haja mais transcendência.
O inverso da utopia manifesta-se de A realidade é naturalizada e apresentada
múltiplas formas. Na literatura, ela se apre- como horizonte intransponível para indi-
senta como distopia, a exemplo das obras víduos e instituições. Ela pode ser con-
1984, de Georges Orwell, e Admirável mun- templada, fruída, mas não mudada.
do novo, de Aldous Huxley. Na filosofia, O espírito das luzes, a Aufklaerung, a
autores como Schopenhauer, Nietzsche sociabilidade associativa inspirada em
e Cioran escreveram obras antiutópicas. Babeuf, o socialismo utópico, o anarquis-
Na análise histórica, a antiutopia revela-se mo e a filosofia da práxis estão na con-
em Oswald Spengler e, na análise política, tracorrente das antiutopias. O desafio
U
iluminista sapere aude (ouse conhecer) des- consciente e o consequente aumento de
331
dobra-se, imediatamente, em ouse ima- responsabilidades; c) a sociedade interna-
ginar o diferente, ouse mudar, ouse criar. cional que associa cosmopolitismo e iden-
As categorias do entendimento (dialética, tidades e culturas locais; d) a possibilidade
práxis, contradição, contingência, cons- de realização, de emancipação individual
ciência, ação) e os processos (poder, con- sem que isso signifique o comportamen-
flito, luta de classes, movimentos sociais, to auto-suficiente e predatório. Enfim,
criação histórica) não são meramente con- civilização é o respeito ao outro, o respei-
templativos. A razão utópica está associa- to fraterno à sua liberdade e diferença”
da à ação, ao questionamento do fato e do (CATTANI, 1991, p. 20, 21). Ficam, assim,
dado. A compreensão não é suficiente; é excluídos os processos erroneamente
necessária a realização do desejo. O resul- identificados como utópicos, como o faz
tado dos movimentos libertários e auto- Armand Mattelart (2002) em História
nomistas tem sentidos específicos. Todo da utopia planetária. As tecno-utopias, as
movimento da ação crítica/ação prática expansões imperiais, as revoluções geren-
é animado por valores verdadeiramente ciais do tipo fordista-taylorista e a socie-
civilizadores: pacifismo, cosmopolitismo dade informacional promovem mudanças,
que preserva as identidades locais (ou mas não constituem, necessariamente,
seja, a sociedade das nações) e, sobretudo, avanços civilizadores. Destes ficam, sobre-
a sociedade democrática, igualitária, justa tudo, excluídos os projetos e processos de
e fraterna. mudança de cunho totalitário, dogmático
A referência ao processo civiliza- e elitista, bem como o liberalismo regres-
dor é necessária para se distinguirem os sivo. A verdadeira utopia, antecipação
autênticos avanços sociais e humanos de criativa que conjuga “a corrente fria do
mudanças inespecíficas. “Civilização é um conhecimento científico com a corren-
ato de justiça”, afirmava o revolucionário te quente da esperança” (BLOCH, 1972),
e constituinte Mirabeau durante a Revo- não alimenta concepções nem projetos
lução Francesa. Civilizado é o “cidadão do reformistas, paliativos e anestésicos para
mundo”. A derivação de civilis “expressa o os mecanismos reprodutores da desigual-
processo social de criação, de afirmação dade e da injustiça. A utopia civilizadora
humana superior ao destino e ao tempo não se resigna a olhar a realidade social.
cíclico. Civilização é a negação da violên- Ao propor que o mundo seja novamente
cia, das tutelas paternalistas ou messiâni- fundado, rompe com as teorias do direito
cas, dos paternalismos aristocráticos ou natural (incluindo-se o direito à apropria-
caudilhescos, dos racismos, dos precon- ção privada da produção social), transfor-
ceitos e dos privilégios que compõem o mando-se em processo de conquista do
submundo dos particularismos excluden- lugar e do tempo.
tes. Civilização é: a) a universalização dos
procedimentos e de certos direitos, sem 5. Pode-se afirmar haver uma lenta e par-
que isso signifique nivelamento ou impo- cial concretização da utopia, da liberdade
sição tirânica; b) o alargamento substan- criadora do gênero humano, embora não
cial da política através da participação se trate de processo inexorável. O avanço
U
da civilização jamais foi linear, sendo mar- liberdade criadora que visa à emancipação
332
cado por estagnações e, por vezes, tristes social vem se manifestando na luta contra
recuos. O verdadeiro progresso não cons- os dogmatismos, messianismos e determi-
titui um processo pacífico, pois ele é assi- nismos estruturais, contra a subserviência
nalado pela dinâmica social definida pela e a violência, enfim, contra o domínio das
dialética dos conflitos e do poder. Civiliza- minorias reacionárias ou tutelares. Entre
ção, tal como conceituada anteriormente, as mais importantes realizações incorpo-
não se apresenta como imanência, mas radas à vida social que, no seu início, eram
como possibilidade ou virtualidade. consideradas utópicas, destaca-se a luta
Entre os exemplos localizados de contra o trabalho escravo e o emprego
aspiração utópica, podem-se citar a uto- legal da tortura. Movimentos sociais ao
pia missioneira dos 30 povos das Missões longo de décadas conquistaram a redu-
(KERN, 1994), a Comuna de Paris de 1871, ção dos privilégios hereditários, o sufrá-
as comunidades libertárias que prolifera- gio universal e uma gama ampliada de
ram no século XIX, nos Estados Unidos direitos humanos associados a uma ética
e na Europa Continental, experiências universalizadora. O movimento operário
pontuais ocorridas na América Latina (no conquistou, para milhões de trabalha-
Paraná, Brasil, a Colônia Cecília, entre dores, direitos que deram consistência à
1888 e 1889), os efêmeros falanstérios versão inclusiva do Welfare State. Mais
inspirados na obra de Fourier, os sovietes recentemente, o combate ao racismo e ao
russos (1905-1917), os conselhos operá- trabalho infantil e as reivindicações pelo
rios de Turin (1919-1920), as formas da direito à infância, à educação e ao lazer,
auto-organização proletária durante a bem como pela liberdade de opção sexu-
Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e os al e em defesa de minorias, entre outras,
primeiros tempos dos kibutz em Israel. foram impondo um novo padrão de tole-
Mais recentemente, ocorreram experiên- rância e liberdade. Enfim, a democracia
cias sociais que reavivaram o espírito coo- representativa também foi uma conquista
perativista do pioneiro Robert Owen. Em importante, sobretudo na medida em que
todos esses casos, é mais apropriado falar- ela se extravasa em democracia participa-
se em aspirações utópicas, pois, mesmo tiva. Todos esses casos constituem avanços
que alguns exemplos tenham sobrevivido rumo à superação da dominação elitista e
por décadas, trata-se de materializações dos privilégios detidos por minorias.
parciais e vulneráveis, política e geografi- Nas últimas duas décadas do século XX
camente circunscritas. Essa avaliação em e no início do século XXI, registraram-se
nada desmerece o que foi realizado, inclu- recuos significativos nesse embate. Con-
sive porque, em vários casos, tratou-se de cretamente, aumentou a concentração de
um fracasso imposto do exterior mediante renda e a manipulação da opinião públi-
violência inaudita, a exemplo da Comuna ca pela mídia; o individualismo egoísta
de Paris e da autogestão espanhola. e predatório tenta relegar a socialização
Pode-se falar mais propriamente de libertária ao esquecimento. Não obstan-
concretização da utopia em uma esfera te, esse refluxo é seguramente provisório,
mais genérica e não menos importante. A porquanto a razão utópica é atemporal e
U
o sonho de liberdade é permanente. Dois BIBLIOGRAFIA
333
exemplos mais expressivos apontam para BLOCH, E. (1972), Le principe espérance, Paris: Gallimard.
a recuperação do “princípio esperança”: a CATTANI, A. D. (1991), A ação coletiva dos trabalhadores,
realização dos fóruns sociais mundiais em Porto Alegre: S. M. Cultura; Palmarinca.
Porto Alegre, a partir de 2001, e as nume- ___. (2002), Autonomia. In: ____. (Org.), Dicionário
rosas manifestações da economia solidá- crítico sobre trabalho e tecnologia, Porto Alegre; Petrópo-
lis: Editora da Universidade; Vozes.
ria analisadas nesta obra.
A superfície imediata dos fatos revela KERN, A. (1994), Utopias e missões jesuíticas, Porto Ale-
gre: Editora da Universidade.
um mundo opressivo, que promove os ladi-
MATTELART, A. (2002), História da utopia planetária,
nos e arrasta os demais para um caminho
Porto Alegre: Sulina.
marcado pela apatia, subserviência e con-
RIOT-SARCEY, M.; BOUCHET, T.; PICON, A. (Dir.) (2002),
formismo alienado. Sob essa face, perma-
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nece a vontade de superação, o desejo de
SOUSA, J. T. (1999), Reinvenções da utopia, São Paulo:
viver em uma sociedade planetária cosmo-
Hacker Editores.
polita e criativa, na qual liberdade e frater-
TEIXEIRA, A. (Org.) (2002), Utópicos, heréticos e malditos:
nidade sejam princípios maiores de cons- os precursores do pensamento social de nossa época,
trução da civilização. Permanentemente, Rio de Janeiro: Record.
ressurgem o espírito libertário e formas UTOPIA. In: MICHAELIS (1998), Moderno dicionário de
novas de mobilização social, demonstran- Língua Portuguesa, São Paulo: Melhoramentos.
do que um outro mundo é possível...
AUTORES
335

ALAIN CAILLÉ – Professor de Sociologia na área de teoria sociológica, movimen-


na Université Paris X (Nanterre, França) e tos sociais e economia solidária. Actua em
Co-Director do Laboratório de Sociologia processos de educação popular e elabora-
e de Filosofia Políticas (SOPHIAPOL) e da ção e avaliação de projectos na Nicarágua,
Revue du MAUSS – Mouvement anti-utilitaris- Bélgica e Brasil. Possui diversas publica-
te dans les sciences sociales. É autor de nume- ções em livros e revistas, sobre movimen-
rosos artigos e livros, entre os quais Cri- tos sociais, economia solidária e políticas
tique de la Raison Utilitaire (2003), Histoire públicas.
Raisonnée de la Philosophie Morale et Politique
(2001) e Dé-penser l’Économique (2005). ANNE SALMON – Socióloga e Maître de
Conférences Associé pela Université de
ALFONSO COTERA – Consultor em econo- Caen (França), no Centre d'Études et de
mia social solidária, desenvolvimento lo- Recherches sur les Risques et les Vulnéra-
cal e comércio justo. Fundador e actual bilités (CERREV). Seus temas de pesqui-
Director-Executivo do Grupo Red de sa abrangem responsabilidade social das
Economía Solidaria del Perú (Lima, Peru). empresas, ética económica e desenvol-
Fundador e Coordenador da Red Perua- vimento durável. Publicou, entre outros
na de Comercio Justo y Consumo Ético. trabalhos, Éthique et Ordre Économique: une
Fundador e actual responsável da Mesa entreprise de séduction (2002), Responsabili-
de Coordenação Latino-Americana de té Sociale et Environnementale de l’Entreprise
Comércio Justo. Fundador e membro do (com M-F. Turcotte, 2005) e La Tentation
Comité de Coordenação Internacional da Éthique du Capitalisme (2007).
Red Intercontinental de Promoción de la
Economía Social Solidaria (RIPESS). Res- ANTONIO DAVID CATTANI – Doutor pela
ponsável pela América Latina na Aliança Universidade de Paris I Panthéon-Sor-
por um Mundo Responsável, Plural e Soli- bonne, com pós-doutoramento na École
dário (ALOE). de Hautes Études en Sciences Sociales.
Professor Titular de Sociologia (Depto. de
ANA MERCEDES SARRIA ICAZA – Doutora Sociologia e Programa de Pós-Graduação
em Ciências Políticas e Sociais pela Uni- em Sociologia) da UFRGS (Porto Alegre,
versité Catholique de Louvain, Bélgica. Brasil). Pesquisador do CNPq. Autor e orga-
Professora do Centro Universitário La nizador (com Lorena Holzmann) do Dicio-
Salle – UNILASALLE (Canoas, Brasil). nário de Trabalho e Tecnologia (Prémio Açoria-
Professora e pesquisadora universitária, nos 2007). www.antoniodavidcattani.net.
BENOÎT LÉVESQUE – Professor de Socio- do publicado vários livros e artigos sobre
336
logia na Université du Québec à Montréal esses temas.
(Canadá). Membro do Centre de Recher-
che sur les Innovations Sociales (CRISES) CLAUDIA LÚCIA BISAGGIO SOARES – Eco-
e da Alliance de Recherche Universités- nomista formada pela UFRJ (Brasil), mes-
-Communautés (ARUC) em Economia tre em Economia pela UTL (Portugal)
Social, do qual foi fundador e Director até e doutora em Ciências Humanas pela
2003. É um dos autores da obra La Nouvelle UFSC (Brasil). Desenvolve pesquisas nas
Sociologie Économique (2001). áreas de indicadores sociais, económicos
e ambientais, conflitos socioambientais,
BRENO FONTES – Doutor em Estudos gestão ambiental, desenvolvimento, eco-
das Sociedades Latino-Americanas pela nomia monetária, economia solidária e
Université de Paris III (Sorbonne-Nouvel- moeda social. Actualmente, é professora
le) em 1990. Possui Pós-Doutoramento do Centro Universitário Municipal de São
na Harvard University (1998-1999) e na José (Brasil).
Université de Nanterre (2003-2003). É
professor da Universidade Federal de Per- DANIEL MOTHÉ – Pseudónimo de Jac-
nambuco desde 1994, vinculado ao Pro- ques Gautrat. Ex-operário sindicalista
grama de Pós-Graduação em Sociologia, CFDT (França). Sociólogo do LISE (CNRS-
do Departamento de Ciências Sociais. CNAM). Publicou, entre outros trabalhos,
Publicou vários artigos em revistas bra- Journal d’un Ouvrier (1958), L’Autogestion
sileiras e especializadas e participou em Goutte à Goutte (1980) e L’Utopie du Temps
projectos de pesquisa, com financiamen- Livre (1998).
to de agências nacionais ou internacio-
nais na área de Sociologia, com ênfase DIPAC JAIANTILAL – Economista sénior
em Políticas de Planeamento Urbano, do Banco Mundial, é professor convidado
redes sociais, poder local, movimentos na State University of New York e na Uni-
sociais e Sociologia da Saúde. Também versidade Eduardo Mondlane, em Mapu-
participa em actividades de cooperação to, e Investigador do Instituto Cruzeiro
internacional em diversas Universidades do Sul, em Maputo, tendo liderado diver-
estrangeiras. sas pesquisas no âmbito do Instituto, com
parcerias públicas e privadas. Foi Director
CLAUDIA DANANI – Doutora em Ciências do Departamento de Estatística e Pesqui-
Sociais pela Universidad de Buenos Aires. sa do Banco Nacional de Moçambique.
Professora e pesquisadora da Universi-
dad Nacional de General Sarmiento e da EDUARDO VIVIAN DA CUNHA – Mestre em
Universidad de Buenos Aires (Argentina). Administração e doutorando do Curso de
Consultora em projectos de assistência Administração pelo Núcleo de Pós-Gradua-
técnica a instituições e projectos sociais. ção da UFBA (Salvador, Brasil). Trabalha
Possui especialização nas áreas de políti- em projectos de incubação em economia
cas sociais, economia social, sindicalismo, solidária, actuando especialmente como
sistemas de saúde e segurança social, ten- técnico da Incubadora Tecnológica de
Economia Solidária e Gestão do Desen- bro do Centro de Estudios de la Realidad
337
volvimento Territorial (ITES/UFBA). Nacional (CEREN). Entre 1973 e 1976, foi
professor convidado da Universidade Livre
EGEU GÓMEZ ESTEVES – Psicólogo, mes- de Berlim. Desde 1976, é professor da Uni-
tre e doutorando em Psicologia Social pelo versidad Nacional de Costa Rica. De 1976
Instituto de Psicologia da Universidade de a 2006, foi integrante da equipe de pes-
São Paulo (Brasil), professor do curso de quisadores do Departamento Ecuménico
Psicologia da Universidade Cruzeiro do Sul de Pesquisadores. Suas publicações mais
– UNICSUL, membro da VERSO Coopera- recentes são Hacia una Economía para la Vida
tiva de Psicologia e da PLURAL Cooperati- (com Henry Mora, 2007), El Sujeto y la Ley
va de Consultoria, Pesquisa e Serviços. (2003) e Crítica de la Razón Mítica (2007).

EUCLIDES ANDRÉ MANCE – Filósofo e GABRIEL FAJN – Bacharel em Sociologia


fundador do Instituto de Filosofia da pela Universidad de Buenos Aires. Profes-
Libertação (Curitiba, Brasil). Leccionou sor da Faculdade de Sociologia – Faculda-
Filosofia da Ciência e Filosofia na América de de Ciências Sociais – UBA (Argentina).
Latina, na Universidade Federal do Para- Co-autor do livro Fábricas y Empresas Recu-
ná, na década de 1990. Actuou como con- peradas: protesta social, autogestión y rupturas
sultor em projectos da Unesco e da FAO en la subjetividad (2003).
relacionados com o desenvolvimento sus-
tentável. É criador e mantenedor do Por- GENAUTO CARVALHO DE FRANÇA FILHO
tal Solidarius. Sua obra filosófica e econó- – Pesquisador do CNPq com bolsa de
mica sobre redes colaborativas no campo produtividade em pesquisa. Professor
da economia solidária está traduzida em da Escola de Administração da UFBA
vários idiomas, com artigos e livros acessí- (Salvador, Brasil) e Coordenador do eixo
veis em www.solidarius.com.br/mance. académico (mestrado e doutorado) do
Núcleo de Pós-Graduação em Adminis-
FRANÇOIS-XAVIER MERRIEN – Professor tração (NPGA/UFBA). Professor do Pro-
na Université de Lausanne (Suíça). Pes- grama de Mestrado Multidisciplinar em
quisador sobre a origem e as transforma- Gestão Social do Desenvolvimento do
ções do Estado Social. Consultor de vários CIAGS/UFBA e Coordenador da Incuba-
órgãos das Nações Unidas. Autor, entre dora Tecnológica de Economia Solidária
outros, de L’Avenir des États Providence: une e Gestão do Desenvolvimento Territorial
analyse critique des recherches récentes (2002), (ITES/UFBA).
Les Nouvelles Politiques de la Banque Mondiale:
le cas des pensions (2001) e L’État Providence HENRY MORA JIMÉNEZ – Economis-
(2000). ta, Doutor em Ciências Económicas e
Empresariais. Foi director da revista Eco-
FRANZ J. HINKELAMMERT – Doutor em nomia y Sociedad e director da Escuela de
Economia pela Universidade Livre de Economía de la Universidad Nacional,
Berlim. De 1963 a 1973, foi professor da Heredia (Costa Rica). Actualmente, ocu-
Universidade Católica do Chile e mem- pa o posto de Decano da Faculdade de
Ciências Sociais dessa universidade. Suas JACQUES DEFOURNY – Professor de Eco-
338
publicações mais recentes são 101 Razones nomia e Director do Centre d’Économie
para Oponerse al Tratado de Libre Comercio con Sociale, na Université de Liège (Bélgica).
los Estados Unidos (2005), Doce Ensayos por la Co-Coordenador do EMES European
Dignidad Nacional, la Soberanía y el Derecho al Research Network. É autor e editor, entre
Desarrollo (2006) e Hacia una Economía para outros, de Économie Sociale au Nord et au Sud
la Vida (com Franz Hinkelammert, 2007). (1999), Tackling Social Exclusion in Europe:
the role of the social economy (2001) e The
HERMES AUGUSTO COSTA – Doutor em Emergence of Social Entreprise (2001).
Sociologia. Professor da Faculdade de
Economia da Universidade de Coim- JEAN-LOUIS LAVILLE – Sociólogo e eco-
bra. Investigador do Centro de Estudos nomista, foi pesquisador e Director de
Sociais. Livros mais recentes: Sindicalismo Pesquisa do CNRS. Actualmente, é Profes-
global ou metáfora adiada? Discursos e práticas sor Titular da cátedra Relations de Service
transnacionais da CGTP e da CUT (2008); As e pesquisador no LISE – CNRS-CNAM
vozes do trabalho nas multinacionais: o impacto (França). É Coordenador para a Europa
dos Conselhos de Empresa Europeus em Portugal do Karl Polanyi Institute. No Brasil, dirige,
(2008) (em co-autoria com Pedro Araújo). com Antonio David Cattani, a série Socie-
dade e Solidariedade (Editora da UFRGS) e
HUMBERTO ORTIZ ROCA – Economista publicou, como co-autor, o livro Econo-
pela Pontifícia Universidad Católica del mia Solidária: uma abordagem internacional
Peru. Secretário-Executivo da Comissão (2004) e, como co-organizador, a obra
Episcopal de Acção Social (Lima, Peru). Ação Pública e Economia Solidária (2006).
Coordenador da equipe de Economia
Solidária do Departamento de Justiça JEAN-MICHEL SERVET – Doutor de Esta-
e Solidariedade do CELAM. Represen- do em Economia (Université Lumière
tante do CEAS no grupo Red de Econo- Lyon-II). É professor no Institut Univer-
mía Solidaria del Peru. Membro da Rede sitaire d’Études du Développement de
Intercontinental de Promoção da Eco- Genebra (Suíça) e Director de Pesquisa no
nomia Social e Solidária. Integrante da Institut de Recherche pour le Développe-
Red Latinoamericana Deuda y Desarrollo ment (Índia). Suas principais publicações
(Latinidad). são Une Économie sans Argent, les Systèmes
d’Échange Local (1999), Rapport Exclusion et
JACOB CARLOS LIMA – Professor Titular Liens Financiers (1999-2000) e Banquières et
do Departamento de Sociologia da Uni- Banquiers aux Pieds Nus (2006).
versidade Federal de São Carlos (Brasil) e
pesquisador do CNPq. É autor dos livros JEAN-PAUL MARÉCHAL – Maître de Con-
Ligações Perigosas: trabalho flexível e trabalho férence en Sciences Économiques pela
associado (2007) e As Artimanhas da Flexibili- Université Rennes-II-Haute Bretagne
zação: o trabalho terceirizado em cooperativas de (França). Director de Pesquisa sobre eco-
produção (2002), além de diversos artigos nomia do meio ambiente, justiça social,
sobre a temática trabalho. desenvolvimento durável e ética econó-
mica. Seu livro Humaniser l’économie (2000, -coordenador do Núcleo de Estudos para
339
reeditado em 2008) foi premiado pela a Paz.
Academia de Ciências Morais e Políticas.
Publicou, entre outros, Ethique et Écono- LEE PEGLER – Mestre e Doutor pela
mie, Le Développement Durable (2005). London School of Economics. Honours
Degree em Economia pela University of
JEOVÁ TORRES SILVA JUNIOR – Gradua- Western (Austrália). Durante os últimos
do em Administração pela Universidade trinta anos, tem trabalhado para sindica-
Estadual do Ceará (2001) e Mestre em tos, governos e universidades em vários
Administração pela UFBA (2004). Profes- países. Sua área de actuação compreen-
sor da Universidade Federal do Ceará, no de os processos de trabalho, sindicatos e
Curso de Administração. Coordenador do órgãos representativos e cadeias produ-
Laboratório Interdisciplinar de Estudos tivas. Coordena um cluster internacional
em Gestão Social – LIEGS/UFC (Fortale- de pesquisa sobre cadeias produtivas, no
za, Brasil). Possui artigos publicados sobre Institute of Social Studies (ISS) em Haia,
gestão de empreendimentos solidários Holanda.
e bancos comunitários. Co-organizador
dos livros Gestão Social: práticas em debates LIA TIRIBA – Doutora em Ciências
(2004) e Teorias em Construção: os desafios da Políticas e Sociologia pela Universidade
formação em gestão social (2006). Complutense de Madrid (Programa de
Sociologia Económica e do Trabalho).
JOSÉ LUIS CORAGGIO – Economista. Professora da Universidade Federal Flu-
Director Académico da Maestria en Eco- minense – UFF (Niterói, Brasil) e pesqui-
nomia Social do Instituto del Conurba- sadora do Núcleo de Estudos, Documen-
no – Universidad Nacional de General tação e Dados sobre Trabalho e Educação
Sarmiento (Argentina). Organizador res- (NEDDATE). Possui publicações sobre o
ponsável da Red Latinoamerica de Inves- mundo do trabalho e formação humana e,
tigadores en Economía Social y Solidaria em especial, sobre formação de trabalha-
(RILESS). Autor de mais de 120 artigos e dores associados, autogestão e economia
autor e co-autor de 25 livros, encontran- popular e solidária.
do-se, entre os mais recentes, Economía
Social, Acción Pública y Política (2007) e La LINA COELHO – Investigadora do Cen-
Economía Social desde la Periferia (Org, 2008). tro de Estudos Sociais. Assistente e douto-
www.coraggioeconomia.org. randa em Economia na Faculdade de Eco-
nomia da Universidade de Coimbra com
JOSÉ MANUEL PUREZA – Professor de o tema “Mulheres, Família e Desigualdade
Relações Internacionais na Faculdade de em Portugal”. Com interesses de investi-
Economia da Universidade de Coimbra, gação nas áreas da Economia da Família e
onde é co-coordenador do Programa de Economia Feminista.
Doutoramento em Política Internacional
e Resolução de Conflitos. Investigador LUIZ INÁCIO GAIGER – Doutor em Socio-
do Centro de Estudos Sociais, onde é co- logia (Université Catholique de Louvain).
Há anos, dedica-se a estudos sobre os de Católica do Rio Grande do Sul (1991),
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movimentos sociais e a economia solidá- Mestre e Doutora em Psicologia pela mes-
ria. Coordenou a pesquisa nacional Carac- ma universidade (2004). Realizou estágios
terísticas e Tendências da Economia Solidária no “sanduíche” na Universidade de Havana
Brasil (Rede Interuniversitária de Estudos (2001) e no Centro de Estudos Sociais da
e Pesquisas UNITRABALHO), tendo inte- Universidade de Coimbra (2003). Actu-
grado a Coordenação do Fórum Brasileiro almente, é professora e pesquisadora do
de Economia Solidária e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciências
CNPq. Coordena a Cátedra da UNESCO Sociais da Universidade do Vale do Rio
Trabalho e Sociedade Solidária e o Progra- dos Sinos (Brasil).
ma de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos NOËLLE M. P. LECHAT – Graduada em
(Brasil). Publicou livros e artigos, entre Sociologia pela Université Catholique de
os quais Sentidos e Experiências da Economia Louvain (1970), Licenciada em Ciências
Solidária no Brasil (Org., 2004). Sociais pela Université de l’État à Liège
(1978), Mestre em Antropologia Social e
MARIA CLARA BUENO FISCHER – Douto- Doutora em Ciências Sociais (UNICAMP,
ra em Educação pela University of Not- 1993 e 2004). Professora do Departamen-
tingham, Reino Unido. Professora do Pro- to de Ciências Sociais e do Mestrado em
grama de Pós-Graduação em Educação e Desenvolvimento da Universidade Regio-
do Curso de Pedagogia da Universidade nal do Noroeste do Estado do Rio Gran-
do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS de do Sul – UNIJUÍ (Brasil), onde exerce
(Brasil) e pesquisadora do CNPq. Pesquisa a função de Coordenadora Científica da
e publica no campo de estudos Trabalho- Incubadora de Economia Solidária. Possui
Educação, em especial sobre educação do publicações e actua nos temas de econo-
trabalhador e saberes do e para o trabalho. mia solidária, incubação, cooperativismo,
desenvolvimento regional, desemprego e
MARIA PAULA MENESES – Pesquisadora movimentos sociais.
no Centro de Estudos Sociais da Univer-
sidade de Coimbra. De entre os temas que PATRICK VIVERET – Filósofo e magistrado
tem vindo a trabalhar destacam-se os pro- na Cour des Comptes (França). Envolvido
cessos identitários, a diversidade de sabe- em movimentos cívicos, participou da fun-
res, o impacto das fracturas coloniais e a dação da ATTAC. Coordenou dois grandes
questão pós-colonial. Tem vários artigos estudos para os poderes públicos france-
e livros publicados. Editou, juntamente ses. O primeiro, de 1988 a 1990, versou
com Boaventura de Sousa Santos e João sobre a avaliação das políticas públicas e
Carlos Trindade, o livro Law and Justice in o segundo, de 2002 a 2003, sobre a nova
a Multicultural Society: the case of Mozambique abordagem da riqueza. Publicou, recente-
(Dacar, Codesria, 2006). mente, Pourquoi ça ne va pas plus mal (2006).

MARÍLIA VERÍSSIMO VERONESE – Graduada PAULO DE JESUS – Doutor em Ciências


em Psicologia pela Pontifícia Universida- da Educação pela Université Paris VIII,
com pós-doutoramento em Economia associado ao Institut d’Études Européen-
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Social/Solidária na Sorbonne (IEDES – nes da Université de Paris VIII (França) e
Université Paris I). Professor da Universi- professor do Institut d’Études Politiques
dade Federal Rural de Pernambuco (Reci- de Paris. É autor de numerosos artigos e
fe, Brasil). Coordenou, em Pernambuco obras colectivas. Pesquisa actualmente os
(2005-2008), o projecto Mapeamento ciclos hegemónicos no sistema mundial
da Economia Solidária (MTR/SENAES). contemporâneo.
Coordena o projeto do Centro de Forma-
ção em Economia Solidária – Nordeste PHILIPPE CHANIAL – Maître de Confé-
Brasileiro, em parceria com Ministério do rences em Sociologia na Université Paris-
Trabalho e Emprego e com o Fórum Bra- IX-Dauphine (França). Pesquisador do
sileiro da Economia Solidária. Participou CERSO na mesma universidade e membro
em colectâneas e artigos publicados em do Comité Editorial da Revue du MAUSS.
revista da UERJ, UNISINOS e ECA/USP. Seus trabalhos consagram-se principal-
mente à abordagem socioantropológica e
PAULO HENRIQUE MARTINS – Sociólogo.
histórica do facto associativo e às formas da
Professor titular do Departamento de
solidariedade social na democracia. Publi-
Ciências Sociais da Universidade Federal
cou, designadamente, Justice, Don et Associa-
de Pernambuco (Recife, Brasil), com bolsa
tion: la délicate essence de la démocracie (2001).
de produtividade do CNPq. Vice-Presi-
dente do MAUSS (Movimento Anti-Utili-
RENATO DAGNINO – Doutor em Ciência
tarista nas Ciências Sociais) e Director da
Económica pela Universidade Estadual
Associação Latino-Americana de Sociolo-
de Campinas (Brasil). Professor Titular da
gia (ALAS). É autor de livros e artigos vol-
Universidade Estadual de Campinas (Bra-
tados para a difusão de uma “outra socio-
sil). Desde 1977, na UNICAMP, envolveu-
logia”, que dialoga solidariamente com
-se em projectos pioneiros na América
uma “outra economia”.
Latina, como a primeira incubadora tec-
PEDRO HESPANHA – Doutorado em nológica da região e seu primeiro centro
Sociologia pela Universidade de Coimbra. consagrado à Política de C&T. Dedica-se,
Professor da Faculdade de Economia e actualmente, à análise do processo deci-
membro fundador do Centro de Estudos sório da C&T, à Economia Solidária e à
Sociais, onde lidera o Núcleo de Cida- Tecnologia Social, visando a construção
dania e Políticas Sociais. Coordenador de um estilo de política de C&T adequado
do Programa de Mestrado em Sociologia ao cenário da democratização em curso
“Políticas Locais e Descentralização. As na América Latina. Publicou cerca de 70
Novas Áreas do Social”. Tem investigado, artigos, 40 capítulos e livros, tendo orien-
ensinado e publicado nas áreas dos estu- tado mais de 30 mestres e doutores. Seus
dos rurais, políticas sociais, sociologia da livros mais recentes são Ciência e Tecnologia
medicina, pobreza e exclusão social. no Brasil: o processo decisório e a comunidade
de pesquisa (2007) e Neutralidade da Ciên-
PHILIP GOLUB – Politólogo, Especialis- cia e Determinismo Tecnológico (editora da
ta em Relações Internacionais. Professor UNICAMP).
RICARDO DIÉGUEZ – Licenciado em Economia Social do Instituto de Estudios
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Economia. Pesquisador e docente da Uni- y Formación da Central de Trabalhadores
versidad Nacional de General Sarmiento da Argentina (IEF-CTA). Possui publica-
(UNGS, Argentina). Professor da Faculdad ções individuais e em colaboração, acerca
de Ciencias Económicas da Universidad do cooperativismo de poupança e crédito,
de Buenos Aires. Professor da Maestria en microfinanças e economia social.
Economia Social da UNGS.
SÍLVIA FERREIRA – Professora da Facul-
ROGÉRIO ROQUE AMARO – Doutorado dade de Economia da Universidade de
em Economia pela Université de Sciences Coimbra, investigadora do Centro de
Sociales II, Grénoble, Professor do Insti- Estudos Cooperativos desta Faculdade
tuto Superior de Ciências do Trabalho e da e do Centro de Estudos Sociais da Uni-
Empresa, onde coordena o Mestrado em versidade de Coimbra. É doutoranda no
Desenvolvimento, Diversidades Locais e Departamento de Sociologia da Univer-
Desafios Mundiais e lecciona no Doutora- sidade de Lancaster, no Reino Unido. As
mento em Estudos Africanos. Tem inves- suas áreas de pesquisa são relações entre
tigado, ensinado e publicado nas áreas do o terceiro sector e o Estado-providência,
desenvolvimento local, intervenção social governação e parcerias, políticas sociais e
e exclusão social. empreendedorismo social.

RUI NAMORADO – Jurista e cooperativis- SÍLVIA PORTUGAL – Doutora em Sociolo-


ta, Professor da Faculdade de Economia gia pela Universidade de Coimbra. Profes-
da Universidade de Coimbra, cujo Centro sora da Faculdade de Economia e Inves-
de Estudos Cooperativos coordena. Inves- tigadora do Centro de Estudos Sociais
tigador do Centro de Estudos Sociais. (CES). O seu trabalho de investigação tem
Membro da Comissão Científica da Eco- usado a teoria das redes para discutir as
nomia Social e Cooperativa do CIRIEC relações entre sistemas formais e infor-
– International; do Conselho Editorial mais de produção de bem-estar. Neste
dos Estudos de Direito Cooperativo e Cidada- âmbito, tem pesquisado sobre a impor-
nia, editados pela Faculdade de Direito tância da família no sistema de protecção
da Universidade Federal do Paraná; e do social português, dando especial desta-
Consejo Asesor da REVESCO, editada pela que ao papel das mulheres. Tem diversas
Universidad Complutense de Madrid. publicações nacionais e estrangeiras sobre
essas temáticas.
RUTH MUÑOZ – Graduada em Econo-
mia pela Universidad de Buenos Aires SUSANA HINTZE – Socióloga. Professora
(2000) e Mestre em Economía Social no Instituto del Conurbano da Univer-
pela Universidad Nacional de General sidad Nacional de General Sarmiento
Sarmiento (2006). É docente-pequisa- (Argentina). Coordenadora e consultora
dora do Instituto del Conurbano da Uni- de projectos de assistência técnica em
versidad Nacional de General Sarmiento organizações sociais e em organismos
(Argentina) e Coordenadora do Espaço de internacionais. Docente e pesquisadora
na Argentina, Bolívia, México e Venezuela Brasília. Professor do Departamento de
343
nas áreas de epistemologia e metodologia Ciências Sociais e Filosofia e do Programa
das Ciências Sociais e temas relacionados de Pós-Graduação em Desenvolvimento
com a problemática alimentar, políticas Regional na Universidade Regional de Blu-
sociais, avaliação de programas sociais e menau (Brasil). Exerceu o cargo de Direc-
políticas públicas para a economia social e tor de Estudos e Divulgação na Secretaria
solidária. Autora de diversos artigos e livros Nacional de Economia Solidária (2003-
sobre os temas de sua especialidade. 07). Autor do livro Sociedade Civil: o social
pensado politicamente (2005) e co-autor de
WALMOR SCHIOCHET – Doutor em So- Políticas Públicas de Economia Solidária: por
ciologia Política pela Universidade de um outro desenvolvimento (2006).
344
CORPO TÉCNICO

Revisoras dos Verbetes Brasileiros e das Revisor dos Verbetes Portugueses


Traduções do Espanhol e Francês
VICTOR FERREIRA – Revisor, desde 1999,
MÁRCIA RODRIGUES GONÇALVES – Espe- quer na área da ficção, quer em áreas espe-
cialista em Ensino da Língua Portuguesa cializadas, como o Direito e as Ciências
(PUCRS) e Mestre em Linguística Aplica- Sociais.
da pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul – PUCRS (Brasil). Tradutora dos Verbetes em Espanhol
Professora de Literatura e Língua Portu-
guesa. Desde 2002, actua como reviso- LUCIMEIRA VERGILIO LEITE – Tradutora
ra do processo vestibular da PUCRS e, a pela Faculdade Ibero-Americana de São
partir de 2008, no grupo de revisores do Paulo (Brasil), socióloga pela Universidad
vestibular da Universidade Federal do Rio del Salvador, de Buenos Aires (2004), com
Grande do Sul. especialização em Terceiro Sector, pela
FLACSO – Buenos Aires (2003). Traba-
NARA WIDHOLZER – Especialista em Le- lhou como consultora externa para o Pro-
tras (UFRGS), mestre e doutoranda em grama Delnet da OIT, Turim, Itália.
Linguística Aplicada pela Universidade
Católica de Pelotas – UCPel (Brasil). É re-
visora de publicações do IFCH/UFRGS e Tradutora dos Verbetes em Francês
Editora Júnior da Revista Linguagem & Ensi-
no. Na sua área de pesquisa, destacam-se PATRICIA CHITTONI RAMOS REUILLARD
as publicações Gênero em Discursos da Mídia – Doutora em Estudos da Linguagem pela
(co-autoria com Susana B. Funck, 2005) Universidade Federal do Rio Grande do
e Produção de Livros: da prática à teoria (no Sul (Brasil). Professora e pesquisadora nas
livro Produção de Materiais de Ensino, org. áreas de Francês e Linguística, nas linhas
Vilson Leffa, 2008). de Terminologia, Lexicografia e Tradução.

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