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O Que Tera Acontecido A Baby Ja - Henry Farrell
O Que Tera Acontecido A Baby Ja - Henry Farrell
***
Mitch Douglar
1908
1959
“Não me importo com o que meu pai diz. Estou apaixonado por
você, Meg. O que são todos os milhões de pessoas comuns ao
lado de um anjo como você?”
Ele era um jovem bem-vestido, com cabelo lustroso e escuro,
penteado bem rente à sua cabeça. Enquanto falava, sua
companheira, a garota loira com encantadores olhos fulminantes,
olhava para ele. Suas sobrancelhas, que não eram mais do que
meias-luas finamente desenhadas a lápis, levantavam-se
ligeiramente nos cantos interiores, dando a ela um olhar de
dúvida com mágoa. A luz da lua irradiava intensamente de algum
lugar atrás, aninhando-se em seu cabelo platinado em um halo
perfeito. Ela usava uma bata de organdi brilhante com enormes
mangas bufantes e uma saia que se abria amplamente a partir
dos joelhos. A música irrompia na noite mágica, assim como o
próprio ar que os rodeava. A canção — o tema deles — se
chamava “O Luar na Quinta Avenida”.
“Mas ele vai deixá-lo sem um centavo. Ai, Jeff, você nunca
teve que trabalhar para viver.”
O jovem, no entanto, tinha agora a força de seu amor, e ele
sorriu para mostrá-la. “Eu vou aprender a trabalhar por você,
Meg. Eu quero. Você vai ver… você vai ter orgulho de mim.”
A garota ergueu o olhar para o dele e, embora tivesse os
olhos úmidos, seu rosto estava tranquilo. “Mas não é tão simples.
Você nasceu para…” — seu movimento compreendeu a varanda
de gesso em que eles estavam, a mansão ao fundo, os acres de
gramado aparado, as fontes, as duas taças de champanhe pela
metade no corrimão — “… para tudo isto. Você consegue ao
menos imaginar como é morar em um apartamento com água
fria?”
“Seria o paraíso… com você.”
“Ah, Jeff, seu pobre — e romântico — bobinho!”
Enquanto “O Luar na Quinta Avenida” tocava calmamente,
eles se abraçaram. Os olhos impetuosos se abriram e fecharam,
provavelmente em êxtase. Um saxofone gemeu. Os violinos, uma
centena deles, avolumaram a noite com uma vibração inebriante.
E então, como se tivessem sido banidos pelo enorme ruído, a
varanda, a mansão, e, finalmente, os próprios amantes
desapareceram de vista. Em seu lugar, apareceu um homem
com um sorriso tenso e círculos sob seus olhos…
“Desculpe por interromper este ótimo filme, amigos, mas
vocês vão ficar felizes por eu ter feito isso quando virem o que
tenho aqui para seu cachorro favorito!”
Movendo seu corpo confortavelmente expandido para a frente
de sua poltrona, a sra. Bates estendeu a mão e baixou o volume.
Sorrindo delicadamente com uma doce lembrança, ela olhou
para Harriett Palmer, sentada no outro lado da mesa de centro,
no divã. “Ah, eu lembro quando vi esse filme pela primeira vez,
achei simplesmente maravilhoso. Claude me levou… em um
domingo à tarde.” Ao ver que a xícara de café de Harriett estava
vazia, ela se levantou e a pegou. “Estava passando no antigo
Majestic.”
Harriett Palmer sorriu agradavelmente e concordou com a
cabeça. “Eu acho que vi; não tenho certeza. Você se lembra
quando foi feito?”
A sra. Bates fez uma pausa na entrada do corredor. “Trinta e
quatro. Era o que dizia o programa no jornal.”
Quando ela voltou com a xícara reabastecida, aproximou-se
de Harriett e colocou-a na mesa diante dela.
“Sabe, acho que nunca perdi um filme de Blanche Hudson.”
Ela olhou para o aparelho a fim de se certificar de que ainda
estavam passando os comerciais. “Eu era tão fanática por ela,
até o momento em que sofreu o acidente. Ah, você se lembra
quando foi que isso aconteceu? Eu me senti tão mal, como se
fosse alguém da minha própria família.”
Harriett, tomando um gole do café, olhou para cima e
concordou. “Ah, eu sei. Ela era linda. Ainda acho isso.”
Mesmo com a luz tênue, a diferença entre as duas mulheres,
embora ambas no início de seus cinquenta anos, era
impressionante. A sra. Bates, com um rosto — e um corpo —
inegavelmente gordo, de alguma forma parecia um pouco mais
velha do que Harriett Palmer, que se manteve elegantemente
magra. Enquanto a sra. Bates tinha deixado a cor de seus
cabelos assumir uma tonalidade de um cinza prateado natural,
Harriett mudou o seu para um loiro lustroso e platinado. A sra.
Bates usava um vestido de ficar em casa largo com estampa de
flores pálidas; Harriett vestia calça preta justa e uma blusa de
seda branca. A sra. Bates havia acabado de se mudar para o
oeste, vindo de Fort Madison, Iowa. Harriett Palmer sempre
vivera em Hollywood, Califórnia.
Apesar de todas as suas diferenças, no entanto, era sabido
que as duas mulheres haviam se dado bem desde o primeiro dia
da chegada da sra. Bates em Hillside Terrace. A sra. Bates, viúva
havia menos de um ano, chegara à Califórnia para se afastar de
todas as vistas familiares de casa, que se tornaram apenas
recordações tristes de dias mais felizes antes da morte do
marido. Harriett Palmer era casada com um advogado
corporativo que passava muito tempo fora da cidade. Estando
ambas um pouco desestabilizadas, eram gratas pela companhia
uma da outra. Como faziam hoje, passavam muitas de suas
noites assistindo à televisão na aconchegante sala de estar da
sra. Bates.
“Você já a viu?”, perguntou a sra. Bates. “Quero dizer, ela sai
de casa alguma hora?”
Harriett imediatamente negou com a cabeça. “Não que eu
saiba. Ah, eu já a vi de longe — claro, no carro, quando elas têm
de ir a algum lugar —, mas não a ponto de dizer como ela
realmente é. Eu acho que deve ter pelo menos cinquenta anos
agora.”
A sra. Bates sorriu com uma leve hesitação. “Sabe — eu não
deveria contar isso sobre mim mesma —, mas, quando vi esta
casa, o que realmente me fez decidir comprá-la foi descobrir que
Blanche Hudson morava ao lado. Não é uma bobagem… para
uma mulher da minha idade? E eu nunca vi nem a sombra dela.”
“Bem”, Harriett sorriu, “isso dá à velha colina um toque de
glamour. Havia uma grande colônia de gente do cinema aqui
antigamente, mas ela é a única que permaneceu.”
A sra. Bates concordou. “Lá em Fort Madison — bem, você
nunca via nenhuma estrela de cinema, não em carne e osso.”
Seu olhar se dirigiu para a fileira de portas de vidro que cobriam,
quase totalmente, a parede leste da sala e a escuridão além. A
casa das Hudson, um absurdo em estilo mediterrâneo branco, de
dois andares, se erguia, sombria e fantasmagórica, no final do
jardim. “Ela pode andar?”
“Não sei. Acho que ouvi uma vez que ela havia recuperado
parcialmente o uso de uma das pernas. Mas, aparentemente, ela
ainda tem de ficar na cadeira de rodas o tempo todo.”
A sra. Bates fez um ruído suave de simpatia. “Eu adoraria
conhecê-la”, disse ela melancolicamente. “Uma verdadeira
estrela do cinema. Às vezes fico pensando…” Sua voz foi se
apagando levemente.
“Pensando em quê?”
“Ah, é apenas mais uma das minhas bobagens.” A sra. Bates
se voltou para sua visita. “Passo tanto tempo no jardim. Às vezes
eu estou lá e… bem, fico pensando se ela está me
observando…” Ela se interrompeu, dirigindo o olhar para o
aparelho de televisão. “Ah, o filme começou!” Ela se levantou
com rapidez e aumentou o volume novamente.
A garota loira e uma amiga estavam paradas em uma esquina
movimentada diante de uma lanchonete. À medida que a câmera
se movia para uma tomada média, ela consultou seu relógio de
pulso e depois olhou com ansiedade para a rua. Seu vestido era
simples, mas atraente, e seu cabelo refletia a luz do sol, como já
havia refletido a luz da lua, em um halo perfeito. A outra garota
era menor e mais corpulenta. Seu rosto parecia o de um
querubim amuado e um tanto cansado, deixando sua aparência
cômica e triste ao mesmo tempo. Seus cabelos escuros estavam
presos em uma profusão absurda de cachos. Seu vestido era
espalhafatoso e de mau gosto, e ela usava maquiagem em
excesso nos olhos e na boca. Quando a garota loira virou-se, ela
arregalou os olhos de maneira patética, em uma óbvia tentativa
de conseguir um efeito humorístico.
“Se eles não aparecerem logo”, disse a garota loira, “acho que
simplesmente não vamos comer.”
A morena concordou vigorosamente. “Você disse tudo. Temos
que voltar para o escritório em vinte minutos.”
“Bem, vamos dar mais cinco minutos a eles — e aí vamos.”
“Claro. Além do que, se nós vamos pagar, para que
precisamos de um homem?”
Harriett virou-se bruscamente para a frente, apontando para a
tela. “É ela!” disse. “A outra, quero dizer — ali! —, a irmã.”
A sra. Bates olhou, confusa. “A garota morena?”, perguntou.
“Sim. Você não se lembra? Estava no contrato de Blanche
que eles tinham de usar sua irmã em todos os seus filmes. Eu
havia me esquecido disso. Eles usaram isso em toda a sua
publicidade.”
“Ah, sim! Sim, eu me lembro agora. Mas nunca soube qual
era ela. Pelo amor de Deus! Você a conheceu?”
“Ela?” Harriett olhou em volta com as sobrancelhas levemente
arqueadas. “Não é tão simples assim conhecê-la. Ela é muito
peculiar — estranha —, todos dizem isso.” Ela suspirou. “Às
vezes, fico pensando sobre as duas sozinhas, lá naquele casarão
velho. Elas nunca parecem fazer nada… nem recebem qualquer
visita. Deve ser horrível…”
A sra. Bates voltou o olhar para as portas de vidro e a noite
além. “É bonito, no entanto, que ela tenha ficado e cuidado de
Blanche todos esses anos. Deve ser uma boa pessoa para fazer
uma coisa assim.”
“Bem, talvez sim”, disse Harriett sombriamente, “talvez não.
Dizem que ela teve algo a ver com o acidente, sabe…”
A sra. Bates voltou os olhos bruscamente. “Ela? O acidente
em que Blanche se machucou?”
Harriett assentiu. “Havia uma história circulando na época
sobre como tinha acontecido. Esqueci exatamente como foi, mas
ela parece ter sido a responsável.”
“Ah, como poderia? Foi apenas um simples acidente de
automóvel, não?”
Harriett balançou a mão levemente, como quem diz para
deixar de lado. “Ah, sempre há histórias. Aqui, nesta cidade,
quero dizer. Não dá para dizer realmente no que acreditar.”
A sra. Bates concordou, pensativa. “Eu esqueci”, disse ela.
“Como é mesmo o nome dela? Você me falou uma vez, não?”
“Jane?”, perguntou Harriett. “O nome dela é Jane. Ela
também era famosa, pelo que eu saiba, quando era apenas uma
garotinha. Talvez você se lembre — eles a chamavam de Baby
Jane Hudson.”
A sra. Stitt olhou para a porta trancada com uma onda crescente
de pânico. Fechando as mãos em punhos rígidos, ela bateu
contra a porta o mais forte que pôde.
“Srta. Blanche!”, gritou ela. “Srta. Blanche! Pode me ouvir?
Srta. Blanche!”
Sua voz, no entanto, foi absorvida por um silêncio macabro.
Ela se virou, tentando pensar no que deveria fazer. A srta.
Blanche estava drogada lá dentro, estava convencida disso. Era
a cara de Jane — bebendo como ela só — dar à pobre criatura
um de seus sedativos e depois sair, deixando a irmã sozinha. Era
perverso… criminoso!
Com um ar de súbita decisão, pegou a bandeja do café da
manhã, levou-a para a galeria e desceu a escada. Havia tomado
uma decisão: abriria aquela porta ainda que demorasse todo o
dia e metade da noite. E se Jane Hudson entrasse e a pegasse
fazendo isso, a coisa ia ficar bem feia — para Jane Hudson.
Ela entrou na cozinha e colocou a bandeja sobre a mesa
diante da pia, depois foi até a gaveta de ferramentas sob o
armário e a abriu. Pegou um martelo, o maior e mais pesado que
havia, e uma grande chave de fenda. Armada desses
apetrechos, saiu rapidamente da sala e voltou para a escada. De
uma forma ou de outra, disse a si mesma, com firmeza, que
aquela porta seria aberta.
FIM
CONTOS
HENRY FARRELL
O QUE TERÁ ACONTECIDO À
PRIMA CHARLOTTE?
HENRY FARRELL
Diretor Editorial
Christiano Menezes
Diretor Comercial
Chico de Assis
Editores
Bruno Dorigatti
Raquel Moritz
Editores Assistentes
Lielson Zeni
Nilsen Silva
Designer Assistente
Aline Martins/Sem Serifa
Revisão
Marlon Magno
Maximo Ribera
ISBN: 978-65-5598-048-6
Título original: What Ever Happened to Baby Jane?
[2019]
Todos os direitos desta edição reservados à
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