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Alguém muito especial

Para minha mãe,


que me cedeu um espaço em seu corpo
para que eu pudesse redescobrir o mundo.

E u era muito pequeno quando o China nasceu. Tinha


só cinco anos, mas ainda me lembro de algumas
coisas estranhas que começaram a acontecer.
Durante muito tempo, minha mãe andou com os olhos
vermelhos e inchados — uma alergia, segundo ela —, o que
custou muito para sarar. Meu pai, um cara alegre e
brincalhão, ficou sério de repente. Chegava do trabalho,
largava sua pasta preta e ficava muito tempo olhando para
o teto, sem falar com ninguém. Eu não sabia o que estava
acontecendo, mas passei a respeitar o silêncio que caiu
sobre minha casa.
Meu irmãozinho chorava e mamava, mamava e chorava.
Foi assim durante vários meses.

China tinha os olhinhos puxados, por isso eu passei a chamá-lo assim.


No começo, minha mãe não gostou do apelido, mas com o tempo ela se
acostumou.
China demorava a crescer.
Eu estava louco por um companheiro.
Alguém que jogasse bola comigo, com quem eu pudesse trocar figurinhas,
brincar de super-herói e disputar torneios de videogueime (eu era ligado em
videogueime).
Mas China era mesmo muito devagar.
Tinha preguiça de sentar, nem engatinhava.
Ficava só deitado, quieto.
E eu esperando por ele.
Os anos foram passando.
E, apesar da minha pressa, China continuava na sua, devagar e sempre.
A grande diferença é que ele já andava, corria de um jeito engraçado, mas
nada de falar comigo.
Às vezes, isso me deixava muito triste. Às vezes, voltava a antiga alergia nos
olhos de minha mãe, e meu pai agarrava sua pasta preta com mais força.

Meu irmão entrou para a escola. Não era uma escola como a minha; parece que
todos lá eram um pouco parentes. Todos tinham o mesmo jeito esquisito de andar,
de mover os braços, e eram poucos os que falavam.
Eu pensava: “Esses aí devem ser meio-irmãos do meu China”.
Mas eles também não me davam bola.
Me acostumei a brincar ao lado do meu irmão sem contar muito com ele.

Era um parceiro mudo. Quando brincávamos, eu


falava e eu mesmo respondia como se fosse ele.
Quando China ficava quieto demais, eu respeitava:
ELE ESTAVA OLHANDO PARA DENTRO.
Contei minha descoberta para mamãe, que
sorriu tristemente:
— Sabe, mãe, eu descobri que o China sabe
conversar, só que ele fala para dentro dele mesmo e
a voz não consegue sair.

À noite, antes de dormir, ouvi meus pais conversarem e meu pai dizer que já
era tempo de falarem comigo sobre meu irmão.
O que eles podiam me contar que eu já não soubesse?
“Afinal”, pensei meio irritado, “conheço o China desde que nasceu, e entre nós
não há segredos”.
Dormi aliviado.

Uma moça simpática foi chamada para ensinar meu irmão a falar. Ela tinha um
sobrenome gozado, chamava-se Diana Fonoaudióloga. Eu custei para pronunciar seu
nome certo.
Mas China não era mesmo de papo.
Quando meu irmão fez quatro anos, aconteceu uma coisa muito, muito
esquisita.
Eu já tinha me acostumado a brincar em silêncio. Tinha, até, inventado umas
brincadeiras em que não se falava, era só mímica, e o China gostava disso;
respondia girando os braços, como hélices de avião.
Estava chovendo, e nós dois, sentados no chão, brincávamos quietos. De
repente, eu ouvi uma voz me chamando. Olhei para os lados e nada. Fui até a
cozinha. Minha mãe conversava com a empregada.
— Me chamou, mãe?
— O quê, meu filho?
— Nada, não. Esquece.
Voltei para o quarto. Alguém tinha me chamado, mas quem?
A partir desse dia, quando eu e o China estávamos sozinhos, de vez em quando
eu achava que alguém dizia meu nome baixinho:
— Tico, Tico, me solta, Tico.

Eu não quis contar para ninguém no começo. E eu não acreditava em fantasmas


nem em assombração. Era voz de homem e falava baixinho, mas de uma forma
muito clara. Comecei a ficar assustado.
Até que, um dia, eu perguntei:
— Quem está aí?
E, para bancar o corajoso, continuei:
— Eu não acho graça nenhuma nessa brincadeira. Para já com isso.
A voz se calou.
“Pronto”, eu pensei, “o engraçadinho vai parar de querer me assustar”. Parecia
que tinha funcionado. A voz deu uma trégua, mas não foi por muito tempo.
Uma noite, eu já estava quase dormindo quando ouvi, outra vez, a mesma voz
me chamando:
— Tico, acorde, vamos conversar.
Olhei para a cama ao lado, onde meu irmão dormia tranquilo.
Na manhã seguinte, acordei pálido e febril, mas não contei nada para ninguém.
Duas noites depois, a mesma história, só que a voz se identificou:
— Tico, sou eu, seu irmão China. Não tenha medo de mim,não.
Fiquei todo arrepiado. Ah, eu odiava arrepios. Olhei para o lado e meu
irmãozinho dormia.
Pela manhã, ainda verde de susto, contei toda a história para minha mãe.
— Você anda assistindo televisão demais, meu filho. Como você sabe, seu
irmão não fala. Aliás, você já deve ter percebido que ele não é igual às outras
crianças. Ele tem mais dificuldade em fazer o que a maioria das crianças faz. Ele é
e-x-c-e-p-c-i-o-n-a-l.
Tudo o que minha mãe me contara, eu já estava cansado de saber, mas havia
uma gravidade em sua voz que me apavorou.
— E o que é excepcional, mãe?
— É uma criança diferente, com algumas dificuldades. Algumas não falam
direito, outras não andam, não pensam como a gente; outras, em estados mais
graves, não conseguem fazer quase nada.
— E por que a gente nasce excepcional?
Duas lágrimas correram pelo rosto de minha mãe, que respondeu:
— É uma pergunta tão difícil de responder, nem sempre a resposta existe. Não
tem uma causa aparente. Só Deus poderia responder.
— E você já perguntou para ele?
— Inúmeras vezes, meu filho.
— E o que ele lhe respondeu?
— Que é preciso ter muita paciência, que, um dia, ele vai me explicar.
— Pois, se você quiser saber, eu sei a resposta, mãe.
— E qual é, Tico?
— O excepcional é alguém que está olhando para dentro. Às vezes, ele fica tão
no fundo que não consegue falar com a gente. A voz fica lá, presa, assim com o
olhar e os movimentos.

Minha mãe me abraçou emocionada. Acho que ela ficou contente com a
resposta que eu tinha achado para explicar o meu irmão China.
O assunto da voz tinha morrido depois da conversa com mamãe.
Mas eu continuava impressionado.
Cada barulho que eu ouvia me arrepiava. Um galho batendo na janela, uma ave
piando, um relâmpago no céu, tudo me deixava de cabelos em pé.

Uma noite eu fui dormir bem cedo, porque estava com um pouco de dor de
garganta. Logo que caí na cama, peguei no sono. Eu dormia pesado quando ouvi a
voz me chamando, mais alto e mais claro do que das outras vezes.
Olhei para o China. Ele até roncava.

— Tico, por favor, não tenha medo. Sou seu irmão, China.
Ele falava como alguém mais velho do que eu.
— Estou cansado de falar para dentro. Só você, em todos esses anos, foi capaz
de ouvir minha voz, trancada lá no fundo. Agora pode fechar a boca, senão o seu
queixo cai.
Ele riu, um riso doce e quieto.
Toquei nos lábios e eles estavam gelados. Aliás, eu estava todo gelado. “Deve
ser a febre”, pensei.
China continuou:
— Eu tenho muitas histórias para lhe contar, e só você tem ouvidos para me
ouvir. Sabe, quando nós dois brincamos de guerreiros, de lutas e de heróis, eu fico
com muita vontade de contar para você aventuras que eu também já criei: uma vez
fui um grande guerreiro, usei armaduras, aprendi a lutar com espadas e lanças e
andei muito a cavalo. Também fui pirata; fui nobre e poderoso, senhor e escravo.
Defendi cidades e povoados quando fui piloto de guerra.
— Mas como é que você brinca disso tudo, se está sempre parado?
— É que eu brinco para dentro, ora... Mas não conte para os outros, eles não
iriam entender. A gente pode ser tudo e viajar no tempo e no espaço, basta
querer. Eu vou lhe ensinar.

Era tão bonita a voz do China que eu era capaz de ficar horas e horas ouvindo
suas histórias. Era melhor que seriado de televisão.
Durante o dia, eu guardava nosso segredo a sete chaves. De vez em quando,
olhava para o China brincando ao meu lado e dizia no seu ouvido:
— Oi, velho. Você pode ficar aí, quieto no seu canto, que à noite a gente
conversa.
Meu irmão me olhava com seu olhar vago e sorria.

Um dia, meu pai chegou mais cedo do trabalho.


Largou sua pasta preta e, para surpresa geral, avisou:
— Vão se trocar. Vamos aproveitar esta linda tarde de verão e dar uma volta.
Está fazendo muito calor.

Saí todo orgulhoso, abraçado com meu pai. China nos seguiu, em silêncio,
como sempre.
Tomamos sorvete, jogamos bola, lutamos na grama.
Meu pai parecia uma criança.
Na volta para casa, o tempo fechou.
Nuvens escuras surgiram, de repente, e grossos pingos de chuva começaram a
cair. Relâmpagos e trovoadas riscavam o céu. O vento arrancava as folhas das
árvores com violência, e até os passarinhos passavam assustados.
Eu nunca tinha visto nada igual.
Meu pai agarrou nossas mãos com força e nos puxou.
— Corram, meninos, vamos tentar chegar até o carro, antes que a chuva
aumente — disse ele, muito pálido.
Eu tremia de susto.
Era uma tempestade de arrepiar os cabelos.
Foi, então, que eu olhei para o China. Seus olhinhos puxados brilhavam de
alegria. Ele soltou nossos dedos e,
como uma ave ensaiando o vôo,
enfrentou a chuva. As gotas
encharcavam seus cabelos lisos, e
ele dançava, corria, pulava. Feliz
da vida.
Meu pai tentou alcançá-lo, mas
ele nem ligou. Nós nos olhamos
espantados, meu pai e eu.

China corria solto sob a chuva. Como um guerreiro, ele lutava com os grossos
pingos, soltando suas amarras.
Num gesto de amor, ele me puxou e nós dois rolamos juntos pelas poças de
água. Ele queria brincar.
China me mostrou que a tempestade era uma festa da natureza, com seus
tambores, trombetas e fogos de artifício.
China tinha me ensinado a olhar as tempestades sem medo.

Naquela noite, chegamos os três encharcados em casa, prontos para ouvir a


bronca de minha mãe, mas estávamos felizes.
Meu irmão dormia encostado no meu ombro e eu beijei sua testa úmida:
— Quantas coisas eu tenho de aprender com você, meu velho — eu disse
baixinho, para que meu pai não escutasse.

Miriam Portela
Alguém muito especial
São Paulo (SP), Editora Moderna, 2001

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