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Meu irmão entrou para a escola. Não era uma escola como a minha; parece que
todos lá eram um pouco parentes. Todos tinham o mesmo jeito esquisito de andar,
de mover os braços, e eram poucos os que falavam.
Eu pensava: “Esses aí devem ser meio-irmãos do meu China”.
Mas eles também não me davam bola.
Me acostumei a brincar ao lado do meu irmão sem contar muito com ele.
À noite, antes de dormir, ouvi meus pais conversarem e meu pai dizer que já
era tempo de falarem comigo sobre meu irmão.
O que eles podiam me contar que eu já não soubesse?
“Afinal”, pensei meio irritado, “conheço o China desde que nasceu, e entre nós
não há segredos”.
Dormi aliviado.
Uma moça simpática foi chamada para ensinar meu irmão a falar. Ela tinha um
sobrenome gozado, chamava-se Diana Fonoaudióloga. Eu custei para pronunciar seu
nome certo.
Mas China não era mesmo de papo.
Quando meu irmão fez quatro anos, aconteceu uma coisa muito, muito
esquisita.
Eu já tinha me acostumado a brincar em silêncio. Tinha, até, inventado umas
brincadeiras em que não se falava, era só mímica, e o China gostava disso;
respondia girando os braços, como hélices de avião.
Estava chovendo, e nós dois, sentados no chão, brincávamos quietos. De
repente, eu ouvi uma voz me chamando. Olhei para os lados e nada. Fui até a
cozinha. Minha mãe conversava com a empregada.
— Me chamou, mãe?
— O quê, meu filho?
— Nada, não. Esquece.
Voltei para o quarto. Alguém tinha me chamado, mas quem?
A partir desse dia, quando eu e o China estávamos sozinhos, de vez em quando
eu achava que alguém dizia meu nome baixinho:
— Tico, Tico, me solta, Tico.
Minha mãe me abraçou emocionada. Acho que ela ficou contente com a
resposta que eu tinha achado para explicar o meu irmão China.
O assunto da voz tinha morrido depois da conversa com mamãe.
Mas eu continuava impressionado.
Cada barulho que eu ouvia me arrepiava. Um galho batendo na janela, uma ave
piando, um relâmpago no céu, tudo me deixava de cabelos em pé.
Uma noite eu fui dormir bem cedo, porque estava com um pouco de dor de
garganta. Logo que caí na cama, peguei no sono. Eu dormia pesado quando ouvi a
voz me chamando, mais alto e mais claro do que das outras vezes.
Olhei para o China. Ele até roncava.
— Tico, por favor, não tenha medo. Sou seu irmão, China.
Ele falava como alguém mais velho do que eu.
— Estou cansado de falar para dentro. Só você, em todos esses anos, foi capaz
de ouvir minha voz, trancada lá no fundo. Agora pode fechar a boca, senão o seu
queixo cai.
Ele riu, um riso doce e quieto.
Toquei nos lábios e eles estavam gelados. Aliás, eu estava todo gelado. “Deve
ser a febre”, pensei.
China continuou:
— Eu tenho muitas histórias para lhe contar, e só você tem ouvidos para me
ouvir. Sabe, quando nós dois brincamos de guerreiros, de lutas e de heróis, eu fico
com muita vontade de contar para você aventuras que eu também já criei: uma vez
fui um grande guerreiro, usei armaduras, aprendi a lutar com espadas e lanças e
andei muito a cavalo. Também fui pirata; fui nobre e poderoso, senhor e escravo.
Defendi cidades e povoados quando fui piloto de guerra.
— Mas como é que você brinca disso tudo, se está sempre parado?
— É que eu brinco para dentro, ora... Mas não conte para os outros, eles não
iriam entender. A gente pode ser tudo e viajar no tempo e no espaço, basta
querer. Eu vou lhe ensinar.
Era tão bonita a voz do China que eu era capaz de ficar horas e horas ouvindo
suas histórias. Era melhor que seriado de televisão.
Durante o dia, eu guardava nosso segredo a sete chaves. De vez em quando,
olhava para o China brincando ao meu lado e dizia no seu ouvido:
— Oi, velho. Você pode ficar aí, quieto no seu canto, que à noite a gente
conversa.
Meu irmão me olhava com seu olhar vago e sorria.
Saí todo orgulhoso, abraçado com meu pai. China nos seguiu, em silêncio,
como sempre.
Tomamos sorvete, jogamos bola, lutamos na grama.
Meu pai parecia uma criança.
Na volta para casa, o tempo fechou.
Nuvens escuras surgiram, de repente, e grossos pingos de chuva começaram a
cair. Relâmpagos e trovoadas riscavam o céu. O vento arrancava as folhas das
árvores com violência, e até os passarinhos passavam assustados.
Eu nunca tinha visto nada igual.
Meu pai agarrou nossas mãos com força e nos puxou.
— Corram, meninos, vamos tentar chegar até o carro, antes que a chuva
aumente — disse ele, muito pálido.
Eu tremia de susto.
Era uma tempestade de arrepiar os cabelos.
Foi, então, que eu olhei para o China. Seus olhinhos puxados brilhavam de
alegria. Ele soltou nossos dedos e,
como uma ave ensaiando o vôo,
enfrentou a chuva. As gotas
encharcavam seus cabelos lisos, e
ele dançava, corria, pulava. Feliz
da vida.
Meu pai tentou alcançá-lo, mas
ele nem ligou. Nós nos olhamos
espantados, meu pai e eu.
China corria solto sob a chuva. Como um guerreiro, ele lutava com os grossos
pingos, soltando suas amarras.
Num gesto de amor, ele me puxou e nós dois rolamos juntos pelas poças de
água. Ele queria brincar.
China me mostrou que a tempestade era uma festa da natureza, com seus
tambores, trombetas e fogos de artifício.
China tinha me ensinado a olhar as tempestades sem medo.
Miriam Portela
Alguém muito especial
São Paulo (SP), Editora Moderna, 2001